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ANAIS SIMPÓSIO

MEMÓRIA, (AUTO) BIOGRAFIA E


DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA

Elizeu Clementino de Souza (Org.)

Salvador - Bahia – Brasil


2014

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1


© 2014 Grupo de Pesquisa Autobiografia, Formação e História Oral

Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de inpressão, em forma idêntica,
resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma
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Elizeu Clementino de Souza e Ednei Santos
PPGEduC/UNEB

Ficha Catalográfica – Biblioteca PPGEduC/UNEB


Bibliotecária: Hildete Santos Pita Costa

Simpósio Memória (Auto) biografia e Documentação Narrativa

Simpósio Memória, (Auto)biografia e Documentação


Narrativa (4.;2014: Salvador, BA)
SOUZA, Elizeu Clementino de [et. al.]. Anais…
Simpósio Memória, (Auto)biografia e Documentação
Narrativa. Salvador. GRAFHO, 2014. 1413p.
Salvador: PPGEduC/UNEB; DEDC-I/UNEB/GRAFHO, 2014
ISSN 2718-3381

1. MemóriasAutobiográficas 2. Documentação Narrativa. I.


Souza, Elizeu Clementino de II. Titulo
CDD: 920

Financiamento:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 2


José Bites Carvalho
Reitor

Carla Liane Nascimento Santos


Vice-Reitora

Atson Carlos Souza Fernandes


Pró-Reitor de Pesquisa e Ensino de Pós-Graduação

Marta Valéria Almeida Santana


Pró-Reitora de Extensão

Marcius de Almeida Gomes


Pró-Reitor de Ensino de Graduação

Jairo Luiz Oliveira de Sá


Pró-Reitor de Administração

Benjamin Ramos Filho


Diretor da Unidade de Desenvolvimento Organizacional

Valdélio Santos da Silva


Diretor do Departamento de Educação – Campus I

Eduardo José Fernandes Nunes


Antonio Dias Nascimento
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade

Elizeu Clementino de Souza


Coordenador IV Simpósio Memória, (Auto)biografia e
Documentação Narrativa

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Comissão Organizadora
Elizeu Clementino de Souza – UNEB
Kátia Maria Santos Motta – UNEB
Verbena Maria Rocha Cordeiro – UNEB
Lívia Alessandra Fialho da Costa – UNEB
Jussara Fraga Portugal – UNEB

Comitê Científico
Elizeu Clementino de Souza – UNEB (Coordenador)
Ana Chrystina Venâncio Mignot – UERJ
Ana Sueli Teixeira de Pinho – UCSal
Augusto Cesar Rios Leiro – UNEB/UFBA
Carmen Teresa Gabriel – UFRJ
Christine Delory-Momberger – Paris 13/Nord
Cláudio Orlando Costa do nascimento – UFRB
Cynthia Pereira de Sousa – USP
Daniel Hugo Suárez – UBA
Ecleide Cunico Furlanetto – UNICID
Edla Eggert – UNISINOS
Elsa Lechner – CES/UC
Gabriel Jaime Murillo Arango – UA/Medellín
Inês Ferreira de Souza Bragança – UERJ
Izabel Galvão – Paris 13/Nord
Jorge Luiz da Cunha – UFSM
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios – UNEB
José Antonio Serrano Castañeda – UPN/México
Juan Mario Ramos Morales – UPN/México
José Gonzáles Monteagudo – US/Espanha
Jussara Fraga Portugal – UNEB
Jussara Midlej – UESB
Lúcia Maria Vaz Perez – UFPel
Márcia Rios da Silva – UNEB
Marcos Luciano Messeder – UNEB
Maria Antonia Ramos Coutinho – UNEB
Maria da Conceição Passeggi – UFRN
Maria de Lordes Soares Ornellas – UNEB
Maria Helena Menna Barreto Abrahão - PUCRS
Maria Roseli Gomes Brito de Sá – UFBA
Maria Teresa Santos Cunha - UDESC
Marie-Christine Josso – Université de Genève - Suiça
Paula Perin Vicentini – USP
Rita de Cássia Gallego – USP
Roberto Sidnei Macedo – UFBA
Rosvita Kolb Bernardes – UEMG
Tânia Regina Dantas – UNEB
Verbena Maria Rocha Cordeiro – UNEB
Yara Dulce Bandeira de Ataide – UNEB
Vânia Alves Martins Chaigar – FURG

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Sumário

Apresentação 12

Comunicações por Eixo Temáticos 15


I - Pesquisa (auto)biografia e práticas de formação 16

Narrativas autobiográficas como prática de formação de jovens do campo 17


Adelson Dias de Oliveira
Entre pedras e caminhos que levam à roça, as histórias de uma professora 32
itinerante
Alcione Costa Santos & Simone Santos de Oliveira
Entre o ensino de Geografia e o cordel, a história de um geógrafo cordelista 49
Ailson Porcino de Araujo & Simone Santos de Oliveira
Imagens docentes: um diálogo entre a improvisação teatral e a memória escolar 66
Alessandra Ancona de Faria & Ana Angélica Medeiros Albano
Professores iniciantes na alfabetização: identidades em formação 81
André Afonso Vilela; Eliane Greice Davanço Nogueira & Janine Cano Quintino
“Cosme de Farias e sua contribuição para a formação da cidadania baiana” 95
Andrea Tourinho Pacheco de Miranda
Por caminhos contados e estéticas narradas: elementos que compõem a 101
professoralidade
Anthony Fábio Torres Santana & Maria Emérita Jaqueira Fernandes
Vida universitária: contextos históricos de vida, adaptação e superação 117
Bárbara do Carmo Passos
Sobre os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na 122
formação de professores de língua portuguesa
Carla Sousa Ferreira & Lucília Santos da França Lopes
A pedagogia da cooperação na prática docente nas escolas 131
Claudia Almada Leite & Helena Amaral da Fontoura
(Im)passes subjetivos em educação: história de vida dos arte-educadores em 142
formação de Camaçari/BA
Claudia Bailão Opa
PNAIC: narrativas de formação, (auto) biografia e alfabetização. O que dizem as 159
professoras
Cledineia Carvalho Santos
Diário de bordo, prática de (auto)formação 169
Crystina Di Santo D’Andrea
A história de vida do Maestro Levino Ferreira de Alcântara: uma fonte 181
autobiográfica da área de Educação Musical do Distrito Federal
Delmary Vasconcelos de Abreu
Subjetivação nas dobras da produção de si: como se vem a ser professor de 192
filosofia
Elenilda Alves Brandão
Memórias de alfabetização: experiências de vida e de profissão. 204
Fabiane Santana Oliveira
Entre narrações e memórias: a docência como espaço de vida-formação 213

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Fulvia de Aquino Rocha & Sara Menezes Reis de Azevedo
A formação político-pedagógica dos Monitores das Escolas Famílias Agrícolas do 224
Médio Jequitinhonha-Minas Gerais
Gilmar Vieira Freitas
Desafios do trabalho docente em classes multisseriadas: analisando interfaces nas 236
narrativas dos professores
Geângelo de Matos Rosa & Edna Souza Moreira
Arquiteturas de si: (auto)biografia, ruralidades e docência na educação 247
profissional técnica
Graziela Ninck Dias Menezes & Jane Adriana Pacheco Vasconcelos Rios
Narrativa sobre a própria formação e a formação de pedagogos: contribuições 260
para a construção do currículo no contexto da disciplina História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena
Heldina Pereira Pinto Fagundes
Os fios da matemática nas narrativas de pedagogas 276
Isabela Benevides de Melo & Jussara Midlej
Nos movimentos de professoralização, as forças vivas da professoralida 287
Ivana Conceição de Deus Nogueira & Rosane Alves Rodrigues
Narrativas de professoras-estudantes no contexto da formação no PARFOR 298
Ivonete Barreto de Amorim
Narrativas autobiográficas: análise crítico-reflexiva da qualificação formativa de 310
estudantes universitários
Jessica Santana Bruno; Valterci Ribeiro & Claudio Orlando Costa do Nascimento
Nas desdobras dos movimentos de professoralização, os acordes da 319
professoralidade
Jussara Midlej & Isabela Benevides de Melo
“Vamos contar outra vez?” um relato de experiência 330
Luciene Freitas Mota & Luciene Souza Santos
Narrando minha prática docente online: uma experiência formativa sobre as 341
relações na educação a distancia
Lydia Passos Bispos Wanderley; Glaucia Guimarães
História de vida, formação docente e emancipação humana 357
Maria Aparecida da Silva Andrade
Método autobiográfico e formação de docentes 367
Marinalva Batista dos Santos Neves & Nívea Maria Fraga Rocha
Recontextualização curricular na prática docente: dialogando com as narrativas 377
(auto) biográficas
Marlene Moreira Xavier
Memoriais dos professores supervisores de estágio 392
Maria Auxiliadora Lisboa Moreno Pires & Luiz Márcio Santos Farias
Narrativas (auto)biográficas de professores: experiência e formação 408
Maria Emérita Jaqueira Fernandes & Anthony Fábio Torres Santana
Trajetórias profissionais e de formação: lentes ampliadas a partir da experiência 419
no PIBID
Maria do Socorro da Costa e Almeida
A democratização da universidade e as escolas públicas no recôncavo da Bahia: 429
acesso, formação e extensão
Milena dos Santos; Miriam Feliciano de Barros & Samylle Pinto dos Santos
Vida de professora: da estagiária que acalma o mar à professora que guarda 440

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tamanhos segredos
Monique Millet de Lima & Roseli Chagas de Santana
Travessias de professoras rurais: apreendendo vida e trabalho docente em classes 451
multisseriadas
Natalina Assis de Carvalho
Histórias de vida dos professores de espanhol em formação na UNEB Campus I 461
Núbia Cruz
A formação continuada de professores iniciantes nas classes de alfabetização de 469
uma escola em tempo integral da rede municipal de ensino de Campo Grande-MS
Pabliane Lemes Macena; Eliane Greice Davanço Nogueira & Andre Afonso Vilela
Da roça, onde nasci, para a cidade, onde me reconheci: narrativas de formação e 479
imagens-lembranças que me tornaram um professor
Priscila Lima de Carvalho & Áurea da Silva Pereira
Histórias de vida e formação do professor de música: desafios a partir da Lei 490
11.769/2008
Rafael de Souza
Da formação da NATA@: um estudo sobre os modos de produção de sonhos na 501
escola
Reinaldo Ramos da Silva
A diversão como sentido da escola na vida de futuros professores de matemática 513
Renan Marcel Barros dos Santos & Rita de Cassia Gallego
Rastros de leitura: por entre histórias e memorias 527
Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima
Programa de formação inicial para professores em exercício na educação infantil: 535
resultados dos docentes egressos da turma 2006/2007 de Vitória da Conquista-
BA
Ronilda Rodrigues da Silva Oliveira
Nas enunciações biográficas, as artes da professoralidade 547
Rosane Alves Rodrigues & Rita de Cássia Santos Côrtes
Revisão conceitual da pesquisa sobre formação de Educadores do Campo: 558
desafios e perspectivas contemporâneas para um novo projeto político-
pedagógico
Sandra Regina Magalhães de Araújo & Eduardo José Fernandes Nunes
Narrativas de Vida na Formação do Sacerdote Redentorista 569
Sebastião Fernandes Daniel & Francisco Evangelista
Narrativas autobiográficas: a EJA em Santo Antônio de Jesus 576
Silvania de Jesus Santiago & Regina Marques de Souza Oliveira
Formação docente: reflexões sobre a vida-formação-profissão no/para o ensino 591
superior
Simone Martins de Jesus
A experiência formativa de mediação docente em meio rural: relato, memórias e 604
construção de saberes
Susiara Moreira Reis Coutinho
Os professores licenciados em Ciências Biológicas e suas histórias formativas: o 615
que os escritos nos contam
Talamira Taita Rodrigues Brito & Maria Soares da Silva Teixeira
Aprendizagem da docência – aprender o saber-fazer: um estudo a partir de 628
narrativas de professores de música da educação básica
Tamar Genz Gaulke

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 7


Escritas autobiográficas e autoformação: a construção de sujeitos atores/autores 643
Valterci Ribeiro & Jessica Santana Bruno
Memória, identidade e leitura: o professor José no Vozes Literárias do Portela
Vanusia Maria dos Santos Oliveira; Denise Porto Cardoso & Tatiane Oliveira da 656
Cunha
Diários de leitura na sala de aula: narrativas de formação
Zélia Malheiro Marques & Ginaldo Cardoso de Araújo 671

II - Memória e (auto)biografia: questões teórico-metodológicas 682


A vocação memorialística de Isaías Alves: variantes (auto)biográficas 683
Carla de Quadros
A trajetória de vida como percurso metodológico e epistemológico 695
Cláudia Moraes da Costa & Cláudia Pato
Memórias de cantigas de roda: percurso teórico-metodológico na construção de
saberes e de fazeres de mulheres quilombolas 707
Cristiane Andrade Fernandes & Arlete Vieira da Silva
Memória social: contando e recontando histórias sobre Lampião 721
Geralda de Oliveira Santos Lima & Maristela Felix dos Santo
Existem narrativas infantis?
Herli de Sousa Carvalho; Gilcilene Lélia Souza do Nascimento & Maria da 733
Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi
Leituras literárias memorialísticas: em cena as escritoras alagoinhenses Maria
Feijó, Joanita Santos e Luzia Senna 743
Maria José de Oliveira Santos
Autobiografia: práticas de leitura e de escrita no ensino fundamental
760
Maristela Felix dos Santos & Geralda de Oliveira Santos Lima
Memória e verdade: a importância da pesquisa documental para o nosso resgate
772
histórico
Monica Cristina Carneiro Simplício, Andrea Tourinho Pacheco de Miranda, Nair
Patrique Matos Silva Lima & Nilton Oliveira
777
A voz da oralidade vinda da “mãe das águas” – memória performática dos
narradores de Icoaraci
Nailce dos Santos Ferreira
“A educação antes e depois da ditadura militar: breve análise sobre a formação do
794
sujeito como ser pensante”
Osimara de Barros & Andrea Tourinho Pacheco de Miranda
Escuta no plural: grupo de discussão – possiblidades intercambiáveis das
805
narrativas com adolescentes
Rita de Cássia Magalhães de Oliveira
A narrativa em Paul Ricouer: relendo Heidegger e acionando sentidos e 814
significados para o mundo
Rony Henrique Souza
Genealogia do sobrenome: uma análise autobiográfica 824
Rosa Maria da Motta Azambuja
“Cartografias de amozades” e “relatos ecobio/gráficos”: a terminologia como
poética do pensamento 831
Sahmaroni Rodrigues de Olinda
Arquivos e memórias da Escola de Samba Deixa Malhar: um tipo de samba

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 8


proscrito durante o Estado Novo 844
Sormani da Silva
As tramas narrativas em Ovelhas Negras: os aspectos de memória e autobiografia
na obra de Caio Fernando Abreu 855
Urandi Rosa Novais & Alessandra Leila Borges Gomes
Relatos e reflexões sobre uma metodologia da pesquisa com crianças 864
Vanessa Cristina Oliveira da Silva; Debora Borges de Araújo & Maria da Conceição
Passeggi

III - Documentação narrativa, escritas de si e formação 878


Carta a um jovem poeta e Drummond encantado, de Aleilton Fonseca: a
construção do sujeito no discurso autobiográfico 879
Adna Evangelista Couto dos Santos & Silvia La Regina
Narrativa autobiográfica: espaço acadêmico e as implicações de pertencimento 891
Aline Santos Santos
Professor(a) pesquisador(a) na educação fundamental: os desafios do ensino,
902
formação, pesquisa e produção acadêmica
Analia Santana
O início da carreira no ensino superior: narrativas de professores do curso de 914
pedagogia da UESPI, campus de Parnaíba – PI
Ana Patrícia Coelho Sousa & Renata Cristina da Cunha
Memórias da escola: trilhando uma formação docente 923
Ana Paula Silva da Conceição & Renata da Silva Massena
Atos de currículo e re-existências epistemológicas e formativas: um olhar crítico-
hermenêutico sobre a formação de professores em atuação 934
Ana Verena Freitas Paim
O caminho se faz ao caminhar: narrativas de uma prática formativa 950
Cátia Nery Menezes
Adylane Santos de Jesus
As crianças e as escritas de si: os portfólios (auto)biográficos nas itinerâncias 961
formativas da/na infancia
Daniele Farias Freire Raic & Larissa Monique de Souza Almeida
Narrativas da formação inicial à prática docente: dilemas e desafios entre a teoria 972
e a prática
Enoilma Simões Paixão Correia Silva & Tânia Regina Dantas
Estágio supervisionado de língua materna: narrativas das aprendizagens na/sobre 986
a formação
Fabíola Silva de Oliveira Vilas Boas & Obdália Santana Ferraz
A trajetória docente de uma licencianda: da escola do campo ao PIBID 994
Fabrício Oliveira da Silva
Estudos sobre a (auto) biografia no teatro documentário
1004
Fernanda Saldanha & Raquel Guerra
Escritas e leituras de si: problematizando a permanência na universidade a partir
1015
de relatos autobiográficos
Iansmin de Oliveira Gonçalves; Elder Luan dos Santos Silva; Thais Calixto dos
Santos & Tatielle de Souza Silva
Emilia Biancardi e a escrita feminina censurada: memórias e identidades do povo
1028
baiano em “Dez Anos de Viva Bahia”

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 9


Isabela Calmon & Rosinês de Jesus Duarte
A visão da cordilheira: Daniel Galera e o campo literário 1041
Jamille Maria Nascimento de Assis
As marcas identitárias do sujeito de transformação: autobiografias de duas
educadoras rurais 1053
Juliana de Conti Macedo & José Rubens Lima Jardilino
Negras e femininas escritas de si: (re) lembrando para (re) significar e dignificar
negras memórias 1068
Júlio Cézar Barbosa & Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro
O entretecimento do currículo com os fios do ciclo de formação humana: um vir a
ser 1083
Larissa Monique de Souza Almeida & Daniele Farias Freire Raic
Narrativas e escritas de si no processo formação: a contribuição das tensões e 1095
dificuldades vivenciadas pelos alunos em formação inicial
Lucia de Fátima Carneiro Ferreira Lessa & Luiz Marcio Santos Faria
A escrita de si como ferramenta de (auto) percepção e avaliação: um processo de 1106
formação
Magnaldo Oliveira dos Santos & Jackeline Pinto Amor Divino
Vivência pedagógica com xadrez numa escola do campo – a influência na 1117
formação docente através da atividade realizada do PIBID
Manoel Henrique de Morais Neto & Daniela marques alexandrino
Atos de currículo como mediação no processo de construção das políticas de
sentido da didática no contexto da formação docente 1125
Maria Cláudia Silva do Carmo
O nó que nos une na prática docente – Narrativas dos educadores (as) /alunos (as)
sobre gênero e raça 1142
Maria da Anunciação Conceição Silva
“Retalhos” que tecem subjetividades 1151
Maria Helena da Silva Reis Santos
Contribuições da psicologia da educação na formação dos discentes do curso de
licenciatura em Matemática: narrativas de uma experiência no Instituto Federal 1166
de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) – Campus de Camaçari
Maria Raidalva Nery Barreto
Do leme ao pontal: a travessia de si no tornar-se professor(a) 1173
Maximiano Martins de Meireles
Recordar é preciso: memória e histórias de idosos no sertão da Bahia 1185
Miriam Barreto de Almeida Passos
Autobiografia de estudante de origem popular: um estudo de caso na UFRB 1193
Natanael Conceição Rocha
De lagarta a borboleta: experiências de leitura como ecdisona necessária à
metamorfose 1203
Patrícia Petitinga Silva
Educação na contemporaneidade: experiência docente com o ensino fundamental
I, numa escola soteropolitana 1218
Roseli Chagas de Santana & Monique Millet de Lima
A narrativa autobiográfica como estratégia de construção e de compreensão da
identidade da professora formadora 1229
Vera Luísa de Sousa

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 10


IV – Espaços biográficos, fontes e análise 1240
Fontes para a história da formação de professores no Piauí: narrativas de egressos
de instâncias formadoras atuantes no período de 1910 a 1970
Alessandra Raniery Alves de Sousa ; Samara Layse da Rocha Costa & Maria da 1241
Conceição Sousa de Carvalho
Manoel Balthazar Pereira Diégues Júnior (1852-1922): a tessitura de uma 1254
identidade docente
Edna Telma Fonseca e Silva Vinlar & Izabela Cristina de Melo Santos
Arquivo pessoal de Moreira Campos: um lugar de memoria 1268
Elisabete Sampaio Alencar Lima
Um teatro vivo, livre, colorido, popular: origem, trajetória, gestão cultural, modos
de produção e meios de sustentabilidade do Teatro Popular de Ilhéus 1280
Elson Luis Cunha Rosário
Memórias de um intelectual revolucionário (fragmentos de uma autobiografia) 1284
Esmeralda Guimarães Meira & José Rubens Mascarenhas de Almeida
Narrativas infantis: o olhar das crianças sobre o primeiro ano do ensino 1298
fundamental
Iêda Licurgo Gurgel Fernandes; Evelyn Silva Soares & Maria da Conceição Passeggi
“Casa de pai, escola de filho”: notas biográficas sobre o processo de formação de
um vaqueiro do sertão baiano 1312
Izabel Dantas de Menezes
Passos iniciais do cronista João Ubaldo Ribeiro: o riso no contexto da ditadura 1325
militar
Karina Ramos Babosa
Com o seio e conselhos, tornei-me professora 1339
Lorena Passos & Rony Henrique Souza
Memória e histórias da língua brasileira de sinais no processo educacional de 1351
pessoas surdas no município de Jequié/Bahia
Lucília Santos da França Lopes & Carla Sousa Ferreira
A identidade na blogesfera: (auto)biografia feminina em questão 1362
Manuela Cunha de Souza
Reflexões sobre a criação de conhecimentos na EJA (Educação de Jovens e 1373
Adultos): o espaço biográfico como parte da formação
Miriam Araújo Nascimento
Eu quero ouvir minha voz: Henfil cronista 1381
Priscila Paschoalino
As canções de alto-falante: fontes de memórias biográficas 1395
Silvio Roberto Silva Carvalho
Sigla das Instituições 1412

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 11


Apresentação

Os diferentes Simpósio Memória e (Auto)Biografia configuram-se como ações do


Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/PPGEduC/UNEB), no
âmbito do movimento biográfico. Ele vem se consolidando no território das histórias de vida
e da pesquisa (auto)biografia em seus diferentes domínios, perspectivas epistemológicas e
métodos de investigação e de socialização do saber produzido na universidade e nas escolas
de Educação Básica. Os estudos conduzidos nesses diferentes domínios caracterizam-se
como atividades de pesquisa-formação que tomam como principios fundantes a constituição
do sujeito em suas relações com as aprendizagens, com o outro e com o mundo ao longo da
vida.
Em suas diferentes edições, o Simpósio – Memória e (Auto)biografia – vem inovando
a cada ano para ampliar as discussões, ao adjetivar, na sua proposição, enfoques específicos
que que verticalizam diferentes entradas e perspectivam outros horizontes na busca de
possibilidade do trabalho com o (auto)biográfico.
A primeira edição, realizada entre os dias 02 e 03 de outubro de 2007, buscou
entrecruzar e aprofundar discussões sobre as pesquisas no campo da memória, das histórias
de vida e suas dimensões de diversidade e interculturalidade, tendo como temática
Memória, (auto) biografia e diversidade. O olhar construído naquele momento histórico
tomou como foco a interface entre as diferentes práticas de memória, as escritas
(auto)biográficas e a diversidade constitutiva tanto das fontes e procedimentos de
investigação, quanto de questões epistemológicas que marcam a emergência e expansão do
campo das histórias de vida no quadro da pesquisa educacional no Brasil.
A segunda edição, desdobrou-se como extensão do III CIPA (Congresso Internacional
sobre Pesquisa (Auto)biográfica, realizado entre 14 a 17 de setembro de 2008, promovido
pela UFRN em co-organização com diferentes Grupos de Pesquisas vinculados aos
Programas de Pós-graduação em Educação do país. No âmbito regional, o Simpósio
Memória, (Auto)Biografia e Formação foi co-organizado pelo GRAFHO (PPGEduC/UNEB) e
FORMACCE (PPGE/UFBA), objetivando discutir questões teórico-metodológicas, no âmbito

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 12


do movimento biográfico, que vem se consolidando como área de pesquisa na Pós-
graduação em Educação na Bahia/Brasil.
A terceira edição do Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Ruralidades realizou-se
com o apoio do IV CIPA, organizada pelo GRAFHO em colaboração com o Departamento de
Educação do Campus I, o Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, o
Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens, como atividade vinculada à Pesquisa
‘Ruralidades diversas – diversas ruralidades: sujeitos, instituições e práticas pedagógicas das
escolas rurais – Bahia/Brasil’, a qual conta com financiamento da Fundação de Aparo a
Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB – Edital 004/2007 Temático Educação) e do Conselho
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Edital Ciências Humanas, Sociais e
Sociais Aplicadas, 2008 e Edital Universal, 2010), bem como da Coordenadoria de Pessoal de
Ensino Superior (CAPES), como atividade do Projeto ‘Pesquisa (Auto)biográfica: docência,
formação e profissionalização’, no âmbito do Programa de Cooperação Acadêmica – Novas
Fronteiras (PROCAD-NF/2008).
A quarta edição do Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa
realiza-se como ação dos Projetos ‘Multisseriação e trabalho docente: diversidade, cotidiano
escolar e ritos de passagem’ (FAPESB – Edital 028/2012) e ‘Pesquisa (Auto)biográfica:
narrativas e formação’ (PROFORTE-PPG/UNEB – Edital 2011), bem como através de parcerias
interinstitucionais empreendidas entre pesquisadores e grupos de pesquisas que vêm se
debruçando sobre o biográfico como dimensão de investigação-formação-ação e de redes
de colaboração entre estudiosos do campo (auto)biográfico.
Objetivou-se nesta quarta edição do Simpósio aprofundar questões teórico-
metodológicas sobre biografias e documentação narrativa, nos domínios das práticas
formativas no campo educacional em diálogo com diferentes fontes e perspectivas de
análise. Do mesmo modo, o Simpósio amplou redes de pesquisas e colaboração entre
pesquisadores brasileiros, latino-americanos e europeus que têm assumido a pesquisa
(auto)biográfica como perspectiva de investigação-ação-formação, ao intencionar ampliar a
articulação entre grupos de pesquisa através da socialização de experiências de pesquisa e
contemplar outras reflexões sobre diversos objetos de investigação e suas diferentes
possibilidades de análise, de produção de conhecimento, ao enfocar questões sobre

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 13


documentação narrativa, escritas, análise de fontes e suas múltiplas manifestações no
campo da pesquisa educacional com amplas aberturas para a sociedade contemporânea.
O Simpósio é promovido pelo GRAFHO (PPGEduC/UNEB), com apoio da Associação
Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOgraph), da Associação Internacional das Histórias
de Vida em Formação e de Pesquisa Biográfica em Educação (ASIHVIF-RBE), da Rede
Latinoamericana de Pesquisa Narrativa, (Auto)biografia e Educação (RedNAUE), da Rede
Científica de Pesquisa Biográfica América Latina - Europa (BioGraFia), do Colégio
Internacional de Pesquisa Biográfica em Educação (CIRBE) e da Associação Norte e Nordeste
das Histórias de Vida em Formação (ANNIHIVIF), contando ainda com apoio da LDM (Livraria
de Distribuidora Multicampi) e da Pedagógic Assessoria Educacional (PEDAGÓGIC).
A socialização de resultados de pesquisa cujos objetos contemplam aspectos teórico-
metodológicos da pesquisa (auto)biográfica e outras dimensões de pesquisa-formação-ação,
estão vinculados aos quatros eixos do Simpósio, a saber: I - Pesquisa (auto)biografia e
práticas de formação; II - Memória e (auto)biografia: questões teórico-metodológicas; III -
Documentação narrativa, escritas de si e formação; IV – Espaços biográficos, fontes e
análise, os quais foram contemplados nas conferencias de abertura e de encerramento, nas
seis mesas redondas e num conjunto de 220 comunicações de pesquisadores e estudantes
vinculados aos programas de pós-graduação de diferentes estados do páis, atestando modos
próprios de circulação e consolidação das pesquisas na área.
As parcerias construídas no PPGEduC/UNEB e o apoio/acolhimento da Universidade
do Estado da Bahia, em suas diferentes instâncias, possibilitaram esta quarta edição do
Simpósio e nos permitem partilhar experiências de vida em formação, na vertente das
dimensões e das práticas de formação das pesquisas com (auto)biografias e histórias de
vida, no campo da pesquisa educacional e da formação docente.
Desejamos que o Simpósio continue abrindo espaços para o fortalecimento da vida,
do sujeito humano e das nossas aprendizagens, a partir da forma como narramos nossas
trajetórias e desenhamos nossas histórias de vida-pesquisa-formação, através das diferentes
formas de registro da vida em suas mais diversas manifestações cotidianas.
Terra, 30 de maio de 2014

Elizeu Clementino de Souza

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 14


Comunicações por Eixo Temáticos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 15


Eixo Temático I
PESQUISA (AUTO)BIOGRAFIA
E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 16


Narrativas autobiográficas como prática de formação de jovens do campo

Adelson Dias de Oliveira


UNIVASF
adelsonjovem@gmail.com

O presente estudo apresenta as narrativas autobiográficas como elemento significativo para o processo
formativo dos sujeitos jovens que vivem no campo. Toma o lugar do enunciado das experiências de vida e
formação de sujeitos jovens que vivem no campo, no sentido de anunciação dos percursos sob os quais esses
processos se constituem e se apresentam enquanto significados na vida dessas pessoas. Os aspectos teóricos e
metodológicas da pesquisa foram se constituindo a partir do entendimento amplo sobre a temática e toda a
sua composição conceitual, tomando como norteador os princípios da hermenêutica e fenomenologia, com
ênfase nas narrativas de experiência de vida e formação desveladas, tomando como propulsor as entrevistas
narrativas fortalecidas pelas concepções teórico-metodológicas da autobiografia. Para analisar as narrativas,
utilizei-me das bases conceituais da Análise compreensiva proposta por Bertaux. Desse modo, a narrativa de
vida pode ser compreendida como a totalidade dos fatos e experiências em que o sujeito vivencia. Todavia,
para este estudo a dimensão evidencia a experiência a partir do momento em que o sujeito narra um fato
vivido a outra pessoa, nesse caso, o pesquisador, significando a produção discursiva do sujeito como forma
narrativa e amplia-se para o entendimento de que o processo narrativo também contribui para a produção do
sujeito diante da sociedade. Não obstante, o cenário contemporâneo aponta para a emergência da temática
juvenil como campo de pesquisa e de aplicação de ações de intervenção social. Em meio a toda essa
complexidade para se conceber a ideia de juventude no campo, encontram-se a questão do desenvolvimento
formativo e as possibilidades de acesso, que são destinadas para o público juvenil, sejam elas na educação, na
cultura, no lazer, na saúde e, especialmente, geração de renda, questões essas desveladas por intermérdio das
narrativas das práticas de formação desses jovens.
Palavras-chave: Percurso formativo; Jovens do campo; Juventudes; Narrativa.

Para início de conversa

Tratar do processo formativo de jovens requer ampliar o olhar para horizontes


diversos diante da sociedade, em si tratando de jovens do campo as especificidades em que
estes sujeitos vivem tomam-se desafiadoras para a inserção na pesquisa. Assim, o texto
apresenta as narrativas autobiográficas como elemento significativo para o processo
formativo dos sujeitos jovens que vivem no campo e toma o lugar do enunciado das
experiências de vida e formação destes que vivem no campo, no sentido de anunciação dos
percursos sob os quais esses processos se constituem e se apresentam enquanto
significados na vida dessas pessoas.
Os aspectos teóricos e metodológicas da pesquisa foram se constituindo a partir do
entendimento amplo sobre a temática e toda a sua composição conceitual, tomando como
norteador os princípios da hermenêutica e fenomenologia, com ênfase nas narrativas de
experiência de vida e formação desveladas, tomando como propulsor as entrevistas
narrativas fortalecidas pelas concepções teórico-metodológicas da autobiografia. Para
analisar as narrativas, utilizei-me das bases conceituais da Análise compreensiva proposta
por Bertaux. Desse modo, a narrativa de vida pode ser compreendida como a totalidade dos
fatos e experiências em que o sujeito vivencia. Todavia, para este estudo a dimensão
evidencia a experiência a partir do momento em que o sujeito narra um fato vivido a outra
pessoa, nesse caso, o pesquisador, significando a produção discursiva do sujeito como forma
narrativa e amplia-se para o entendimento de que o processo narrativo também contribui
para a produção do sujeito diante da sociedade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 17
Não obstante, o cenário contemporâneo aponta para a emergência da temática
juvenil como campo de pesquisa e de aplicação de ações de intervenção social. Em meio a
toda essa complexidade para se conceber a ideia de juventude no campo, encontram-se a
questão do desenvolvimento formativo e as possibilidades de acesso, que são destinadas
para o público juvenil, sejam elas na educação, na cultura, no lazer, na saúde e,
especialmente, geração de renda, questões essas desveladas por intermérdio das narrativas
das práticas de formação desses jovens.
Para melhor compreensão da temática o texto apresenta inicialmente as
construções epistemológicas acerca das narrativas, seguindo da discussão de caracterização
do espaço de pesquisa e os caminhos de análise como fundante para a ampliação do
conhecimento, por fim, aponta reflexões acerca das narrativas e o processo de formação dos
jovens que vivem no campo.

Entrevistas narrativas: concepções e aproximações epistemológicas

O trabalho com narrativas é crescente nas pesquisas em áreas sociais e humanas,


considerando que estão presentes nas mais variadas experiências e espaços da sociedade. A
relação com os mitos, lendas e sua consolidação vai se constituindo mediante a reprodução
e/ou construção e interpretação dos fatos narrados pelos sujeitos que estão presentes em
determinado ambiente social, diante dessa perspectiva os fatos passam a ser retratados e
divulgados nas mais variadas formas e assim vão constituindo num universo amplo e
provoca construções epistêmicas e formativas para a sociedade.
Ao utilizar as narrativas como perspectiva teórica e metodológica nas pesquisas,
encontra-se o desafio de produzir o rigor e imparcialidade na divulgação dos resultados, por
outro lado, aproxima o pesquisador das peculiaridades e aspectos intrínsecos aos sujeitos e
a compreensão dos fenômenos que marcam a concepção de sociedade e das problemáticas
que nela circundam. Dessa forma, ao trabalhar com jovens no intuito de ampliar a
compreensão acerca de suas experiências, as narrativas aliadas às discussões autobiográficas
possibilita a construção de elementos que reforçam a necessidade formativa e os elementos
que estão envoltos a sua constituição enquanto sujeito na sociedade, o que me faz refletir
que,

[...] através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a


experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações para isso,
e jogam com a cadeia de acontecimentos que constróem a vida individual e
social. Contar histórias implica estados intencionais que aliviam, ou ao
menos tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que confrontam a
vida cotidiana normal. (JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002, p. 91)

Um dos aspectos imprescindíveis na realização do trabalho com as narrativas de


formação e vida é a questão da seleção das informações repassadas ao pesquisador, que
impulsiona uma definição clara das práticas vividas que representam um fazer, que pode
está diretamente ligado ao modo de agir e de viver de quem narra sua própria história.
Diante disto, as Entrevistas Narrativas utilizadas como dispositivo de pesquisa, contribui de
maneira significativa para o desenvolvimento da pesquisa com sujeitos jovens que vivem no
campo e podem ser ampliadas para o campo formativo desses sujeitos consoante ao
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 18
entendimento de Bertaux, (2010, p. 29), onde “a narrativa de vida pode constituir um
instrumento importante de extração dos saberes práticos, com a condição de orientar a
descrição das experiências vividas pessoalmente e dos contextos nos quais elas se
inscrevem.
É importante elucidar que o momento das entrevistas narrativas esconde esse lugar
do estranho, do limitado e que, a partir do instante em que pesquisador e pesquisado se
encontram, buscam o desvelamento dos sentidos e significados pertinentes à pesquisa.
Epistemologicamente, a Entrevista Narrativa tem raízes na etnossociologia, muito
utilizada para o apoio à pesquisa empírica de campo nos estudos de caso inspirados na
tradição da etnografia. Entretanto não se restringe à utilização pelos sociólogos ou
etnólogos; sua contribuição é muito significativa nos demais campos de estudo e das
ciências humanas. No campo das pesquisas de abordagem autobiográfica se dá
principalmente no ato de contar os fatos, sejam eles na biografia por completo do sujeito ou
na centralidade de uma categoria temática em que o protagonista da história narra a um
intermediário o fato vivido.
A flexibilidade que a Entrevista Narrativa traz em sua base de organização inspira o
autor da narrativa a abrir o diálogo das mais íntimas situações vividas, às diversas esferas
que circundam o fato narrado, tomando um rumo diferente. Provoca-o, ainda, a refletir
acerca de seu fazer, incluindo, nesse conjunto, aqueles que se pressupõem e predispõem a
contribuir para o processo formativo do narrador.
É pertinente considerar a diversidade de elementos que a Entrevista Narrativa possui,
uma vez que nela está presente a experiência pessoal precedida de acontecimentos e fatos.
A sua constituição está voltada para aspectos cronológicos que consideram uma sucessão de
fatos voltados para diversos acontecimentos que envolvem a vida e formação do sujeito.
Esses dois elementos possibilitam ao narrador ir, aos poucos constituindo sua história e
assim apresentando enredos diferenciados.
Conforme Bauer (2002), a entrevista narrativa visa encorajar e estimular o
entrevistado a contar os acontecimentos e fatos que estão presentes em sua vida em seu
contexto social. A ideia básica para a técnica é reconstruir acontecimentos sociais a partir
dos informantes, sendo a reconstrução mais direta possível, quando maior for o
entendimento e a significação dos resultados.
Tomando os fatos vivenciados como desencadeadores das narrativas, do ato de
contar as histórias torna-se pertinente considerar que essa construção é permeada de
sentimentos subjetivações em que o sujeito passa a fazer seleção dos fatos que irá narrar.
Esta seleção é então marcada por uma temporalidade específica que dependendo do
contexto em que o narrador se encontra e todos os elementos emocionais que a circunda,
poderá ser apresentada de maneira superficial ou com profundidade reflexiva maior, por
conseguinte,

O tempo narrativo, em particular, é afetado pelo modo como a narração se


estende em cenas em formas de quadros, ou se precipita de tempo forte
em tempo forte. [...] Cenas longamente narradas e separadas por
transições breves, ou por resumos interativos [...] podem ser os pilares do
processo narrativo. (RICOEUR, 2010, p. 135)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 19


É com o entendimento de que os fatos que o narrador trará à tona em sua fala de
maneira aligeirada ou apresentada com maior reflexividade e recoberta de emoção,
considerando os aspectos da temporalidade narrativa, que se pauta o processo de
intermediação das Entrevistas Narrativas. Assim, é salutar a exposição da ideia de que o
entendimento e o processo de reflexão e análise dos textos narrativos devam considerar em
sua estruturação cada elemento presente no ato de narrar, marcados pelos gestos, imagens,
sons e hesitações que o sujeito possa apresentar ao longo de sua rememoração de fatos
sociais vividos os quais compõem a sua história de vida.
As Entrevistas Narrativas, nesse contexto, como dispositivo de pesquisa, motivam por
e articulam as mais variadas concepções a cerca dos processos formativos de sujeitos jovens
em seu espaço de vivência, possibilitando a articulação dos conhecimentos na (re)
configuração dos aspectos inerentes a formação que envolve estes sujeitos em seu local de
vivência.
As experiências significativas narradas pelos jovens do campo possibilitam a
apreensão de sentidos e a quebra de paradigmas no que se refere ao proceder a
constituição formativa desses sujeitos. Mais do que falas e relatos, as histórias revividas por
intermédio da entrevista narrativa se constituíram como um espaço de diálogo e
reconstrução de si, implícitas no ato de narrar. Não poderia deixar de destacar que cada
entrevista foi marcada por muita emoção e interação com um passado vivido pelos jovens e
estão presentes nas ações atuais desses sujeitos. Cada silêncio e pausa acompanhados de
palavras emocionadas serviram para que as análises pudessem ser traçadas ao longo do
texto que se constituiu, assim como um artesão constrói uma colcha de retalhos, revestidas
de sentidos e significados particularizados e coletivos, as narrativas dos jovens estão
balizadas por suas experiências de vida e formação.

As entrevistas narrativas: descrevendo cenários e os sujeitos de interlocução

Como elemento fundante na pesquisa autobiográfica, a definição do cenário e de


seus sujeitos torna-se primordial. Quando se trata de pesquisa que envolve a utilização dos
princípios e aspectos teóricos – epistemológicos da autobiografia e das narrativas de vida e
formação, o espaço e a representação dos sujeitos necessitam de descrição densa e
minuciosa para que ao analisar os fatos narrados pelos sujeitos, estes possam fazer sentido e
assim garantir a fidelidade ao fato e não se fazer generalizações, partindo de um “fragmento
particular da realidade social-histórica, um objeto social”. (BERTAUX, 2010, p. 16).
Em conformidade com o exposto, os colaboradores deste estudo são jovens
oriundos de lugares diversos do semiárido baiano. Todos eles fazem parte da República de
Estudantes do Centro de Formação Dom José Rodrigues1 situada em Juazeiro/BA, mantida e
coordenada pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA. A escolha
por esse ambiente se justifica por ser um espaço heterogêneo, com jovens de origens
diversas da região Semiárida Brasileira.

1
Espaço utilizado para realização de cursos de formação pelo IRPAA, distante 12 km da cidade de Juazeiro,
sendo que, existem no mesmo ambiente casas onde moram algumas famílias, dentre elas duas utilizadas como
República (masculina e feminina), para jovens que desejam a formação técnica profissionalizante, em especial,
na área de agropecuária e meio ambiente.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 20
Este espaço, desde o ano de 1994, recebe jovens estudantes originários do campo
para fazerem o curso profissionalizante técnico em Agropecuária e, mais recentemente, o
curso técnico em Meio Ambiente no Centro Territorial de Educação Profissional do Vale do
São Francisco – CETEP SF, sendo a República o espaço de apoio e convivência durante o
período de estudo. O ingresso desses jovens à República do IRPAA tem critérios: ser jovem
do campo onde não há escolas técnicas profissionalizantes mais próximas; ser de famílias
com poucas condições financeiras para mantê-los fora da propriedade familiar, indicados
(as) por entidades e/ou organizações locais que também desenvolvam uma ação efetiva
junto à comunidade; que a família seja participante de organizações e movimentos sociais
locais; jovens que demonstrem interesse pela área agropecuária e militem nos movimentos
sociais de base. Para tanto, a entidade de base da comunidade onde o jovem reside deve
encaminhar carta de apresentação para o IRPAA. Sendo aceito, mediante a disponibilidade
de vagas nas casas da República, o jovem faz a inscrição para participar do sorteio
eletrônico2 realizado pelo CETEP SF. Sendo o jovem contemplado, a organização social de faz
parte, valida a indicação, enviando para o IRPAA uma carta de recomendação.
Após todo esse processo, o jovem é então, encaminhado para a República, que
possui em sua estrutura organizacional um técnico da instituição responsável para
acompanhar e orientar os estudantes ou “republicanos”, por eles assim denominados. Para
desenvolver essa experiência, a instituição oferece algumas condições das quais se destaca:
moradia em grupo (República masculina e feminina); sala com biblioteca e computador;
transporte escolar; bolsa de meio salário mínimo3; àrea de produção animal e vegetal;
cursos, seminários, oficinas, prática de campo, estágio. Os dois últimos itens contribuem
diretamente para o processo formativo dos jovens que ali estão, pois a produção animal
(criação de caprinos, galinha, abelha) e vegetal (grãos, hortaliças e frutas) é convertida para
o consumo e manutenção das duas casas em que os jovens vivem (República masculina e
feminina) e do veículo utilizado como transporte escolar. Com a intenção de elucidar a
pertinência deste espaço enquanto importante para a formação dos sujeitos jovens e
fortalecer a escolha por transitar nele e assim construir o entendimento proposto, trago a
narrativa de um dos jovens colaboradores do estudo4,

[...] quando você faz o paralelo escola e república, era tendo em vista essa
nova concepção nós enquanto integrantes da república do IRPAA tinha, já
que agrotécnica, enquanto espaço profissional tem área de experimentação

2
Mecanismo utilizado pela Secretaria Estadual de Educação da Bahia para seleção dos alunos que farão parte
dos cursos profissionalizantes ofertados pelos CETEPS. Cf. www.educacao.ba.gov.br.
3
Apoiado por projeto financiado por instituição alemã, que às vezes não contempla todo o grupo, limitando
assim a alguns, provocando dessa maneira as suas organizações de origem a mantê-los com a bolsa até que
surja a possibilidade de repasse via projeto do próprio IRPAA.
4
Pseudônimos utilizados para preservar a identidade dos entrevistados, conforme orientação da Resolução nº
196/96 e 466/12 do Ministério da Saúde e Comitê de Ética, uma vez que o texto em referência faz parte de
uma pesquisa maior intitulada Percursos formativos das juventudes do/no meio rural aprovada pelo Comitê de
Ética sob o parecer de nº 277.848/13, originária da Dissertação de Mestrado em Educação e
Contemporaneidade – PPGEDUC/UNEB intitulada Jovens no Semiárido Baiano: Experiências de vida e formação
no campo, do qual o texto foi extraído.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 21


na escola, nas empresas, nós a partir do que a gente acredita, numa
agricultura orgânica, numa agricultura mais sustentável, nós tínhamos um
espaço de experimentação no IRPAA, então no IRPAA tinha vários planteis
de criação de animais, de caprinos, de galinha, várias áreas cultivadas,
hortaliça, pomar, uma curva de nível com forragem, que a gente tinha a
oportunidade nesse espaço, do IRPAA de desenvolver todas atividades que
a gente compreendia naquele momento na escola, e aí a gente tinha muito
forte a presença e o apoio dos colaboradores do IRPAA, nos finais de
semana, nos mutirões, enfim... Mas a vivência na república, ela é muito
parte disso, da experimentação, do fazer, do aprender fazendo, porque na
república não tinha... o professor não tava lá lhe orientando, você tinha vez
que experimentava, quebrar a cara ou não, enfim... mas do aprender fazer
é muito das coisas da republica que eu digo. E o cotidiano na república era
bem complexo, desde o acordar às cinco e trinta da manhã pra dar comida
dos animais, do cortar capim, é... o capim elefante pra você dar comida
pros animais, estudar o dia todo, de manhã e de tarde e chegar na
república sete da noite e ainda ter que limpar a casa e fazer janta (ANGICO,
CITAÇÃO VERBAL, 2013)

A narrativa do jovem descreve um lugar dinâmico e possuidor de muitos elementos


formativos que não se distancia de sua vida comunitária, uma vez que Por está localizada no
campo, a vivência na República requer dos jovens a aplicação prática da experiência da lida
na roça presente em suas vidas, considerando que são jovens filhos de agricultores
familiares. Eles são provocados a desenvolver práticas que tenham vinculação com a lógica
da discussão de convivência com o semiárido – CSA. Aspecto esse, que rompe com a ideia de
combate à seca e insere a perspectiva de valorização do ambiente local e principalmente da
compreensão de como é organizado, suas potencialidades, particularidades e
especificidades, construindo um pensamento crítico sobre as formas predominantes de
intervenção nessa realidade. Sendo assim, corroboro do pensamento de Silva (2008, p. 16)
quando assevera que,

A partir da década de 1980, novos atores sociais passaram a resgatar e a


desenvolver propostas e práticas orientadas pela concepção de que a
sustentabilidade do desenvolvimento implica a convivência com o Semi-
Árido. Ao mesmo tempo, constroem-se estratégias e proposições que
relacionam o desenvolvimento sustentável no Semi-Árido aos avanços
econômicos alcançados com base na eficiência tecnológica e na
racionalidade produtiva que permitem aproveitar as condições
edafoclimáticas locais.

Em outras palavras, a lógica da CSA diz respeito ao paradigma emergente que rompe
com a lógica da política dominante secularmente existente no Brasil, principalmente porque
as discussões nascem de órgãos de pesquisa e de movimentos sociais e organizações não
governamentais. O intuito da ideia de CSA é ampliar o debate para o desenvolvimento local
e regional a partir de práticas e tecnologias que se adequam a região e dessa maneira
produzir conhecimento, desenvolvimento e particularmente formas de conviver com as
características pertinentes ao Semiárido brasileiro, que vão desde as questões climáticas as
voltadas para a produção econômica e social. O marcador principal da discussão de CSA está
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 22
na luta pela terra (discussão da reforma agrária e acesso a terra), no acesso a água
(construção de política de recursos hídricos), no acesso a educação de qualidade e
contextualizada e nas relações igualitárias de gênero, assim, acredito que,

[...] é possível criar como estratégia de convivência com o Semiárido


brasileiro, diversas possibilidades que facilitem a vida das pessoas que
vivem nessa região. A proposta de Convivência com o Semiárido Brasileiro
(CSA) traz uma série de tecnologias voltadas para a captação de água para o
consumo humano e animal e para a produção, organizadas de maneira que
possam existir em formas e ambientes diversificados e que garantam a
qualidade de vida para todos os que vivem na região. (SANTOS, 2010, p. 88)

A discussão de CSA é apresentada aos jovens desde o momento em que estão em


suas comunidades a partir do trabalho desenvolvido pelas associações, sindicatos ou até
mesmo pelas ações do IRPAA por meio das mais variadas ações que fazem parte do seu
cotidiano. A participação dos jovens nos diversos cursos e oficinas, na comunidade e durante
o convívio na República tem o objetivo de garantir a condição de discernir as questões que
mais se adequam ao contexto em que vivem e, dessa maneira, propagar a missão
institucional.
Para permanecerem na República, os(as) jovens assumem algumas convenções,
dentre as quais são destacadas: reformar, melhorar e conservar as instalações da residência;
conservar, reformar e construir as instalações para a criação de animal e as áreas de plantio;
produzir para alimentação e comercialização do excedente (venda); conservar e manter os
livros e computadores, repondo o que for danificado ou extraviado; administrar e
complementar a bolsa para pagar alimentação, transporte, material escolar e outros; ter
disponibilidade e interesse para participar e atuar como multiplicador ou multiplicadora do
conceito de convivência com o semiárido nos espaços, como a escola, grupos de estudo,
seminários; participação ativa na vida escolar; aprovação em 80% dos módulos de formação
desenvolvidos pela equipe técnica do IRPAA para os jovens da roça e em 100% no curso do
ensino médio ou de formação técnica desenvolvido pelo CETEP SF; manter assiduidade na
frequência escolar; buscar formas de convivência no grupo e no meio ambiente,
entendendo-se aí os espaços da roça e da escola, mantendo diálogo para encaminhamento
e desenvolvimento do projeto de desenvolvimento da República na roça; cumprir com o
acordo de convivência construído pelo grupo (DOCUMENTOS..., 2013).
Para a escolha dos sujeitos da pesquisa, foram estabelecidos alguns critérios, entre
eles: o jovem precisava fazer parte da República como estudante ou já ter vivenciado essa
experiência no local; ter vínculo com as ações desenvolvidas pela instituição como estudante
ou técnico; ter entre 15 a 29 anos de idade, fator que serviu apenas como demarcador para
a discussão sobre a construção da categoria juventude do campo em consonância às
políticas públicas nacionais.
Para a apresentação dos narradores que dão vida ao estudo utilizo-me de
pseudônimos voltados para elementos presentes na fauna e flora da caatinga, aproximando-
os da realidade em que vivem, garantindo ao mesmo tempo a confidencialidade e o sigilo a
suas identidades originais. A partir daqui, apresento o perfil biográfico de Angico, Borboleta,
Mandacaru, Umbuzeiro, Abelha e Asa-Branca.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 23


Asa-Branca é uma jovem de 21 anos, nascida em São Paulo, que viveu parte de sua
infância e adolescência entre a Bahia e o Estado de São Paulo, sendo que na Bahia, viveu em
uma comunidade remanescente de quilombo. Umbuzeiro, um jovem de 21 anos, nascido em
área rural do interior da Bahia, viveu entre a roça, área de sequeiro, e a cidade. Mandacaru,
jovem de 23 anos, viveu sua vida inteira na comunidade de área de fundo de pasto e
Borboleta, jovem de 26 anos, nasceu no campo, na roça ou num sítio – uma comunidade um
pouco afastada do povoado, numa área de projetos de irrigação. Todos os já citados
possuem em comum o fato de serem filhos de pais separados e viverem uma vida que,
desde muito cedo, agregaram-lhes obrigações de adultos para administração de conflitos e
organização familiar. Em contraposição Abelha, jovem de 21 anos, residia em uma
comunidade em área de sequeiro, na qual os pais viviam de meeiros e tem dois irmãos,
sendo um deles especial (pessoa com necessidades especiais). Esta se apresenta como uma
das pessoas que tem muito carinho e sente-se responsável pelo irmão. Angico, jovem de 23
anos, natural de uma comunidade também de área de sequeiro, tem a presença de seus pais
constantemente ao longo de seu processo formativo e demonstra em suas narrativas o
envolvimento emocional e o cuidado com os irmãos.
Essa primeira caracterização demonstra o quanto a categoria família é significativa
para o processo formativo dos jovens e para a aquisição de experiências de vida. O processo
formativo desses sujeitos contempla ainda as diversas ruralidades e experiências locais como
parte integrante do seu percurso de formação. Nesse sentido, Josso diz que,

As experiências de vida de um indivíduo são formadoras na medida em que,


a priori ou a posteriori, é possível explicitar o que foi aprendido (iniciar,
integrar, subordinar), em termos de capacidade, de saber-fazer, de saber
pensar e de saber situar-se. O ponto de referência das aquisições
experienciais redimensiona o lugar e a importância dos percursos
educativos certificados de formação aprendente, ao valorizar um conjunto
de atividades, de situações, de relações, de acontecimentos como
contextos formadores. (JOSSO, 2010, p. 266-267)

Compreendo, portanto que, a relação que as pessoas estabelecem ao longo de sua


vida contribui, quiçá influencia em todo o seu percurso formativo.
Com essa compreensão, é pertinente apresentar, de forma sucinta, algumas das
experiências de vida dos narradores que fazem parte desse estudo. A jovem Asa-Branca é de
origem de uma comunidade remanescente quilombola (não reconhecida). Atuou como
catequista e mobilizadora de grupo de jovem em sua comunidade, além de ser Agente de
Desenvolvimento Social do programa Gente de Valor5. Envolvida com o processo de
reconhecimento de comunidade Quilombola, transita pelas discussões ligadas à cultura
afrodescendente e atuou na comunidade em conjunto com a associação comunitária.
O jovem Umbuzeiro estudou na comunidade da área de sequeiro, concluiu o ensino
médio por meio do telecurso 2000. Foi morar com o avô, que morava na cidade, para

5
Programa desenvolvido pelo Governo do Estado da Bahia pela Companhia de Desenvolvimento e Ação
Regional - CAR que prioriza a participação direta dos homens e mulheres do campo na decisão e escolha das
ações a serem implementadas em suas comunidades com foco na redução da fome e da pobreza,
implementados em municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano - IDH. Cf.
http://www.car.ba.gov.br/inst_programas.asp?id=1
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 24
trabalhar num comércio, aos 17 anos. Desde os 12 anos, trabalhou na roça como diarista na
preparação e cultivo agrícola. Por influência do irmão, começou a acompanhar as reuniões
de associação comunitária e, logo depois na participação junto às ações do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais.
Abelha sempre foi calada e tinha poucos contatos durante a infância
(especificamente até a quarta série), ampliando seus laços de amizade quando passou a
residir com sua a avó, que morava na cidade. Voltou a residir com os pais na fazenda (assim
denominada pela jovem) e viajava todos os dias para estudar na cidade, concluindo o ensino
médio. Atendida pelo programa Gente de Valor, executado pelo IRPAA em parceria com o
Governo Estadual, participou de diversos cursos e de reuniões comunitárias.
Mandacaru estudou sempre na comunidade. Participou de grupos de jovens,
chegando a ser coordenador. Envolveu-se com atividades de mobilização comunitária,
catequista, entre outras. Quando estudante foi representante de turma; participava como
membro da associação comunitária, chegando a ser presidente. Foi alfabetizador de jovens e
adultos na comunidade. É aluno do curso de juristas leigos, voltado para comunidades do
campo, no sentido de instrumentalizar os jovens para que possam montar peças jurídicas em
defesa das causas populares, com o propósito de garantir a essa população a condição de
busca pela efetivação dos direitos garantidos em Constituição, onde pela falta de
conhecimento são lesados. O curso é organizado em módulos, dentre os quais se destacam:
Teoria geral do Estado; Teoria geral do Direito; Direito civil; Direito previdenciário; Direito
ambiental; Direito agrário; Direitos humanos fundamentais; Direito do trabalho; Direito
penal e processual penal (AATR, 2013).
Borboleta sempre militou junto a grupo jovem e movimentos sociais na comunidade
e também na associação de trabalhadores rurais. Participou junto à comunidade de um
grupo de teatro. Após a aprovação no vestibular, mudou-se para a cidade e logo depois sua
mãe e a irmã também mudaram. Durante a graduação, fez parte de monitorias e grupos de
pesquisa, além de se envolver com os movimentos estudantis, outros movimentos sociais,
dentre eles Movimento do Sem Terra, Movimento pela revitalização do rio São Francisco.
Angico estudou na comunidade até o final das séries iniciais, e concluinte do ensino
fundamental na Escola Família. Sempre esteve envolvido com grupos de jovens e
participação em associação, além de participar de cursos e encontros que eram ofertados na
comunidade. Fez o curso técnico em Agropecuária em Juazeiro na Escola Agrotécnica, que
atualmente, é o CETEP SF e, residente da República do IRPAA, como estudante bolsista.
Mesmo no final do curso em 2009, já integrava a equipe da instituição no setor de produção.
Ainda no campo da aproximação das experiências formativas, agora no campo
institucionalizado, os jovens Angico, Asa-Branca, Abelha e Umbuzeiro têm como aspecto em
comum o curso Técnico em Agropecuária desenvolvido pelo CETEP SF e a experiência de
viver na República, cada um em tempos diferenciados; entretanto, Angico já concluiu o
curso e atua como técnico na própria instituição e está finalizando o curso de Gestão
Ambiental em nível superior. Asa-Branca finalizou o curso no primeiro semestre deste ano
(2013) e Abelha e Umbuzeiro concluem no mês de janeiro do ano de 2014; ambos estão na
fase de estágio, enquanto a jovem Borboleta já concluiu o curso de Comunicação e
Licenciatura em História e atua como técnica em comunicação do IRPAA. Mandacaru está,
atualmente, cursando Meio Ambiente (técnico) no CETEP SF.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 25


Com essa caracterização, é possível inferir que as experiências diversas dos jovens
incidem diretamente na constituição desses sujeitos; os diversos espaços e os tempos que
eles vivenciam traduzem para si a condição de interação com os demais sujeitos.

Análise compreensiva das narrativas de vida

Como perspectiva de análise, direciona-se o olhar para as questões inerentes a


Análise Compreensiva fundamentada nas discussões apresentadas por Bertaux (2010), uma
vez que tem o objetivo de explicitar as informações e significações nela contidas. Nessa
mesma perspectiva, as reflexões sobre o método da análise compreensiva da experiência de
vida Josso (2010) é também evidenciada nesse processo.
Essa forma de análise tem sua construção por meio do método hermenêutico, tendo
como referência principal as reflexões apresentadas por Gadamer e também Delory –
Momberger, os quais aproximam a metodologia dos aspectos da hermenêutica, dando
ênfase à interpretação dos fatos vivenciados. A análise compreensiva em que me pauto para
ir além das significações apresentadas pelos narradores é uma perspectiva, que tem como
essência a funcionalidade do verbo “compreender” que exprime, dessa maneira, o espírito
da análise. Para ampliar a compreensão das questões desta pesquisa, recorri à
Fenomenologia para o processo de análise das narrativas de vida dos jovens do campo, uma
vez que a abordagem fenomenológica preocupa-se com a realidade incorporada nos
processos das experiências humanas subjetivas (SCHUTZ, 2012).
Como princípio básico da análise compreensiva, a imaginação e o rigor se constituem
como elementos fecundos para o processo de compreensão das narrativas de vida, todavia
dando ênfase à imaginação por se tratar da constituição de uma representação, inicialmente
mental e na sequência discursiva, que marcam os fenômenos dos quais se falam (BERTAUX,
2010). Logo, é o processo de inteligibilidade do analista, seu mundo cultural em
justaposição aos fatos narrados que possibilitarão a compreensão de suas particularidades
expressas de maneira clara ou que se mantêm no anonimato das falas, fazendo vir à tona a
condição imaginativa do analista no sentido de significar o que o narrador apresenta de
maneira diacrônica reconstituída pelos sujeitos; além disso, a condição de recolocar os fatos
e posicionar a imaginação de maneira a considerar os variados percursos de vida e os
contextos históricos em que os fenômenos ocorrem.
É, pertinente destacar que, sendo a análise pautada no processo hermenêutico, a
interpretação dos indícios que se apresentam na narrativa dos sujeitos, denota dessa maneira o seu
contexto vivencial e as nuances que compõem a sua identidade. Conforme expõe Delory –
Momberger (2008, p. 56-57):

A narrativa autobiográfica instala uma hermenêutica da “história de vida”, esto é,


um sistema de interpretação e de construção que situa, une e faz significar os
acontecimentos da vida como elementos organizados no interior de um todo. [...] A
compreensão desenvolvida a partir da inteligibilidade de sua própria vida revela ao
pesquisador a capacidade epistemológica de aderir a sentidos que não eram os
seus e reconstruir relações significantes particulares ao seu objeto de estudo:
época da história, sistema cultural, instituição, obra de arte ou personalidade
histórica. O princípio mesmo de uma ciência humana constrói-se com base na
autorreflexão e na auto-interpretação que o homem, aqui o historiador ou

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 26


pesquisador, é capaz de realizar sobre si mesmo a partir de sua própria experiência
de vida.

A composição das narrativas e os seus significados passam a fazer sentido,


considerando cada frase, casa palavra, cada gesto e silêncio que o narrador apresenta ao
longo da sua produção. A análise, nesse caso, permite um processo permanente de
implicação em sua produção, propondo o distanciamento necessário para a sua construção.
A análise das narrativas dos jovens do campo, sujeitos desta pesquisa, foi constituída
a partir de dois momentos. Inicialmente, após leitura indiscriminada e cuidadosa dos fatos
narrados, levantou-se um conjunto de categorias teóricas, que surgem como indícios de sua
constituição, uma vez que toda narrativa vivenciada pelos sujeitos e mediada ao processo de
reflexo produz numerosas indicações de fenômenos que não são normalmente evidenciados
pela fala (BERTAUX, 2010). Como segundo momento, de posse das categorias e as reflexões
epistemologicamente realizadas entre todos os fatos narrados e considerados pertinentes
ao estudo diante da problemática apresentada e do conjunto de fatores históricos vividos,
montou-se um quadro analítico das categorias insurgidas, possibilitando, dessa maneira,
realizar o cruzamento das narrativas e, assim, inferir o conhecimento válido, questionado ao
longo da pesquisa. Surge neste momento, a percepção das relações intersubjetivas
presentes nas falas do sujeito, também o entendimento de que:

[...] É por meio da comparação entre os percursos biográficos que se percebem


recorrências das mesmas situações, das lógicas de ação semelhantes; que se
descobre, através de seus efeitos, um mesmo mecanismo social ou um mesmo
processo. (BERTAUX, 2010, p. 121)

Esse movimento possibilitou-me enquanto pesquisador retomar as questões de


pesquisa e objetivos no intuito de compor os resultados do estudo com os jovens que vivem
na República do IRPAA e os que viveram nesse espaço de pluralidades significativas e,
atualmente, atuam como técnicos/colaborares da instituição e também com aqueles que
foram beneficiados pelas ações desenvolvidas em suas comunidades. A compreensão dos
fenômenos intrínsecos as experiências de vida dos jovens foi fundamental para atribuir
leituras validadas pelo rigor do método e de toda a composição.

Narrativas e trajetórias de formação: sinalizações e perspectivas de formativas de jovens do campo

Falar de si torna-se uma tarefa não muito fácil, pois envolve um processo de
rememorizar e reviver momentos que fizeram parte da vida do sujeito. A fala do sujeito que
narra pode vir repleta de aspectos voltados para a emoção e hesitações, por sua vez, o
estudioso de história de vida encontra desafio em extrair da enunciação informações
disponibilizadas e aspectos que desvelem e estão presentes no cotidiano da sociedade que
permitam a sua compreensão. Sócrates chamava esse procedimento de partejamento, não
de si, mas das ideias alojadas dentro de si.
No decorrer dos fatos históricos, as histórias de vida ligadas ao método
autobiográfico foram modificando-se, mediadas pelo pensamento de diversos autores. A
prática da confecção de diários que registravam os fatos acontecidos e o ato de refletir sobre
a intimidade, os desejos, sonhos e medos que permearam os tempos históricos, cada um
deles vivido com uma conotação diferenciada a depender do período histórico em que era
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 27
esse estava inserido, fez avançar na construção de uma perspectiva de método. No
Renascimento (séc. XVII), mediante os conflitos que se viviam na época, a publicação de
autobiografias católicas surgem como determinante do desenvolvimento da consciência
individual dos fiéis,

A verdade já não se impõe, é conquistada cotidianamente. O exame de


consciência, seguido de seu registro num diário intimo, torna-se um meio
pessoal importante de recolher vestígios e construir sentido num meio
social turbulento. (PINEAU; LE GRAND, 2012, p. 51)

As histórias de vida, na contemporaneidade, caracterizam-se como estratégias de


pesquisa pessoal e coletiva, que desestruturam paradigmas tradicionais de pesquisa,
implicado na escuta da pessoa e no diálogo (RIOS, 2011). A interlocução do pesquisador para
a obtenção das narrativas se constitui elemento fundante para a construção das histórias de
vida. Conforme Poirier (1999, p. 26)

A história de vida constitui um “acto” de pesquisa, implicando não somente


a pessoa do locutor, não somente a sua envolvência social, mas também a
pessoa do investigador, que realiza a entrevista, e o seu próprio meio
sociocultural. A “recepção” da narrativa não é meramente passiva; o
entrevistador encontra-se inteiramente comprometido nesta empresa de
criação comum.

A criação comum, da qual trata o autor, pode também ser ampliada para a
concepção de que a motivação da construção dos fatos que marca a vida dos sujeitos traz
em sua constituição uma não linearidade e atemporalidade, por mais que se apresentem
datas e se constitua um esforço em situar o ocorrido no tempo, o que é mais significativo é a
apropriação pelo próprio sujeito de sua história e todo o processo de interpretação na
direção de se projetar a sua vida. Diante desta perspectiva o jovem Mandacaru em sua
narrativa aponta elementos que demonstram a não linearidade presente na narrativa,
quando diz:

Eu quero buscar estudar e conseguir uma profissão que venha a dizer o que
eu gosto de fazer [...] eu como um jovem de uma comunidade rural acho
que como muitos [colegas] que conheço, devia ter ido por outro caminho.
Pararam de estudar, ter ido vagabundar junto com outra galera, mas não,
escolhi outro caminho, caminho difícil, mas acho que proveitoso, e eu me
sinto grato com que vivi hoje. (MANDACARU, 2013, CITAÇÃO VERBAL)

O jovem Mandacaru sinaliza, na epígrafe acima, a presença do trabalho em sua


vida, deixa transparecer os aspectos sociais construídos ao longo dos tempos e como estes
influenciaram os seus percursos formativos, especialmente quando trata da relação familiar
e a dimensão do trabalho na sociedade. Esses fatores e outros apontados no trabalho com
as narrativas de vida e formação de jovens da roça possibilitou-me a revisão de muitos
conceitos preestabelecidos no que diz respeito à juventude.
As trajetórias de formação presentes no contexto das novas ruralidades, desveladas
nas narrativas dos jovens do campo apontam para uma complexidade na configuração dos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 28
espaços e tempos em que ocorrem. A formação não é algo que se dá apenas com a
institucionalização. Ela está implícita nas experiências individuais e coletivas a partir da
família, da escola e do trabalho que desencadeiam naturalmente subcategorias
significativas: religiosa, cultural, política e comunitária. Tais elementos estão voltados
diretamente para a trajetória de formação dos jovens, necessitando de um olhar mais
cuidadoso ao se pensar nos processos que envolvem ou atendem diretamente esse público.
Tomo como princípio a compreensão de que “falar das próprias experiências
formadoras, é contar a si mesmo a sua própria história, as suas qualidades pessoais e
socioculturais” (JOSSO, 2004, p.48) as quais, aos poucos, vão internalizando-se e sendo
reconstituída. Com isso, a análise compreensiva das narrativas evidencia o reflexo da
construção social em que os jovens vivem e a influência no seu processo formativo.
A formação dos jovens no campo tem como princípio norteador as experiências
familiares, tomando a família como primeira instituição social extremamente relevante na
constituição de suas identidades. Um outro espaço formativo que ganha destaque neste
processo é a vivência no ambiente escolar e no trabalho. Por isso, é apresentada também a
relação de convivência com a comunidade como um processo de formação social, política e
cultural presentes nas escolhas e nos projetos de vida que os narradores, colaboradores da
pesquisa, sinalizaram em suas histórias de vida.
A origem familiar é um aspecto que sobressai em todas as narrativas. Ao iniciar as
narrativas, os jovens retomam a origem de seus pais ou de outra pessoa que possui vínculo
parental e desvelam as singularidades das famílias que vivem na roça e as relações
produzidas sobre suas formações. Podemos observar isto no trecho da narrativa de
Umbuzeiro, estudante do Curso Técnico em Agropecuária e vive na República do IRPAA, ao
iniciar sua narrativa de vida afirmando que: “minha história começa com a minha avó”. A sua
história é a continuidade da vivência de outros sujeitos, sendo sempre retomada ao falar de
si, como continua,

Minha vó teve cinco filhos, filhos e filhas e, meu avô foi e largou ela,
separou. Ai ela não tendo como criar esses cinco filhos, deu minha mãe,
doou. [...] esse senhor criou minha mãe, e depois que ela cresceu, casou-se,
ai minha vó veio procurar minha mãe, ai quando chegou que, ai encontrou
primeiro com Marmeleiro, ai falou: "Não, ela já tá casada, já tem filhos” e
ai, minha vó foi atrás de minha mãe, acabou encontrando, e esse senhor
que criou minha mãe, acabou se interessando por minha vó e os dois se
casaram. (Depoimento)

O jovem, em sua narrativa, sinaliza duas questões significativas para a compreensão


de como a sua trajetória formativa se constituiu. A primeira trata do grande número de
filhos que a avó tinha, aspecto que remonta a uma das questões sociais muito frequentes no
campo pela própria dificuldade da vida em meio à seca e com relação à geração de renda, as
doações das crianças, geralmente, para que parentes pudessem criá-las. A segunda questão
aponta as relações matrimoniais. Ao longo da história, o matrimônio aparece como algo
sagrado nas comunidades rurais, se levado em consideração o contexto presente nas
relações familiares constituídas até meados do século XX, no qual predominava o poder
hegemônico e masculinizado. Nesse período, uma união não se desfazia com tanta facilidade
por questões morais e éticas, particularmente no campo, preconizada pelo domínio de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 29
coronéis. Contudo a narrativa de Umbuzeiro aponta para: “meu avô foi e largou ela [...] e
quando eu tinha cinco meses de idade meu pai se separou de minha mãe”. É possível
perceber que ocorre uma espécie de um continuum, possibilitando a compreensão de que o
jovem Umbuzeiro demonstra a instabilidade da relação familiar presente em sua vida, que
reflete de maneira significativa em sua constituição identitária.
A elucidação das experiências familiares está como principio norteador tendo em
vista que a família, como primeira instituição social, aparece como um dos ambientes de
formação com significado relevante para a vida dos sujeitos. Outrossim, estão vinculados a
estes processos a vivência no ambiente escolar e todas as especificidades geradas por esse
espaço, sem desconsiderar o trabalho e a geração de renda como elementos fundantes para
o processo formativo. E, por fim, o conjunto social que constitui a sua comunidade,
destacando-se para este último a formação social, política e de geração de renda presentes
nas escolhas e nos projetos de vida que os narradores colaboradores da pesquisa sinalizam.
Assim, destaco os principais aprendizados e sinalizações a partir das análises das análises
realizadas.
O primeiro aspecto que aponto como sinalização é a presença forte da família como
alicerce de aprendizagem na formação dos jovens. Sendo a primeira instituição oficial em
que os sujeitos passam, essa carrega em seu cerne aspectos sociais e culturais que serão
balizares para a formação de qualquer indivíduo que passe a fazer parte dela. É nesse
contexto que se desencadeiam as principais experiências formativas dos sujeitos. No caso
dos jovens aqui referendados, tem destaque a estrutura familiar em que estão inseridos. A
configuração familiar no semiárido baiano, desveladas por meio das narrativas, remonta à
questões tradicionais, no que se refere à forma de organização familiar presente no início do
século XIX, onde o casal é composto por homens mais velhos e as mulheres contraem o
matrimônio ainda adolescente, construindo, a partir daí, famílias muito numerosas.
Outro aspecto que os jovens desvelaram por meio de suas narrativas é o fato de que,
além da perspectiva familiar apresentada, as separações entre o pai e a mãe é muito
evidente no espaço estudado. Dos seis jovens entrevistados, somente dois deles convivem
com a família composta pelo pai e a mãe, as demais possuem outras configurações,
inserindo-se, nesse contexto, a presença dos avós e tios. Nesse processo, a responsabilidade
pela manutenção e cuidado dos filhos recai sobre a mulher e, geralmente, pelos pais (avôs)
dessa mulher, inclusive construindo um núcleo familiar onde mais de uma família se agrega,
quebrando o paradigma da família tradicional patriarcal e monoparental.
Ainda falando do núcleo familiar, destaca-se a questão do pouco conhecimento
escolarizado por parte dos pais. Todavia, esse aspecto não traz prejuízos quanto ao incentivo
desses jovens ao estudo, uma vez que em suas narrativas destacam sempre o incentivo dos
pais para que continuem estudando, como forma de os filhos terem aquilo que não lhe foi
possível adquirir em suas vidas.
O desafio que este trabalho lança é o de proporcionar aos jovens, educadores e
família uma reflexão sobre os processos formativos desses sujeitos, visando a necessidade
de busca constante pela garantia de acesso aos seus direitos. Nesse sentido, não se pode
perder de vista que o campo possui particularidades e necessidades que necessitam ser
desveladas para que uma nova emergência paradigmática possa adentrar ao universo da
pesquisa e da intervenção social, partindo da utilização das narrativas autobiográficas como
elemento articulador de processos formativos desses sujeitos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 30


Referências
ASSOCIAÇÃO DE ADVOGADOS DE TRABALHADORES RURAIS DO ESTADO DA BAHIA. Juristas
leigos. Disponível em: http://www.aatr.org.br/Programas/Juristas_Leigos.htm. Acesso em:
19 de dez. de 2013.
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BERTAUX, Daniel. Narrativa de vida: a pesquisa e seus métodos. Tradução Zuleide Alves
Cardoso Cavalcante; Denise Maria Gurgel Lavallée. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus,
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DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e educação: figuras do individuo-
projeto.Tradução de Maria da Conceição Passeggi; João Gomes da Silva Neto; Luis Passeggi.
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JOVCHELOVITCH, Sandra. BAUER, Martin W. GASKELL, George. Entrevista Narrativa.
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POIRIER, Jean. et al. Histórias de vida: Teoria e prática. Tradução de João Quintela. Revisão
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Educação e Contexto (Orgs) Conceição de Maria de Sousa e Silva; Elmo de Souza Lima; Maria
Luíza de Cantalice; Maria Tereza de Alencar; Waldirene Alves Lopes da Silva. INSA. Campina
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SCHUTZ, Alfred. Sobre fenomenologia e relações sociais. Tradução de Raquel Weiss.
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transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Fortaleza: Banco do
Nordeste do Brasil, 2008.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 31


Entre pedras e caminhos que levam à roça, as histórias de uma professora itinerante

Alcione Costa Santos


UNEB
aalcione_67@hotmail.com
Simone Santos de Oliveira
UNEB/PPGEduC/GRAFHO/
ssoliveira_valentec3@yahoo.com.br

Este trabalho busca conhecer, a partir da narrativa (auto)biográfica, as trajetórias de vida e de formação de
uma professora itinerante de Geografia que vive na cidade e atua numa escola da roça localizada no Povoado
de Isabel, espaço rural do município de Serrinha-Ba, intentando analisar as implicações no seu devir
profissional pelas suas itinerâncias de vida-formação-profissão. A pesquisa é de natureza qualitativa, ancorada
no método (auto)biográfico, tendo a entrevista narrativa como técnica de recolha de dados. Tendo em vista a
natureza deste estudo, os diálogos e análises são possibilitados pelos seguintes autores: Souza (2006), Bueno
(2002); Bueno, Chamlian, Souza, Catani (2006), dentre outros, por compreender as contribuições dadas por
esses autores nas pesquisas com história de vida na formação de professores e profissão docente. A pesquisa
encontra-se também fundamentada nos trabalhos de Santos (2006; 2003), Rios (2008; 2011) e Neves (2007)
por abordarem em seus estudos a escola da roça e por autores que discutem questões referentes ao ensino de
Geografia e a formação do professor-geógrafo. O trabalho evidenciou que a (auto)biografia é uma forma de
investigação de valor inexorável para os estudos acadêmicos, sobretudo para compreender como nos
constituímos professores e damos significado ao exercício profissional docente. Ao narrar a história de vida-
formação-profissão de uma professora de Geografia percebemos que as experiências e as aprendizagens
vividas ao longo da trajetória pessoal e profissional são demarcadas por incertezas quanto à escolha
profissional e o medo da inserção na profissão docente. Os excertos narrativos da professora
pesquisada/colaboradora nesta investigação nos possibilitou entender como uma pessoa/profissional
itinerante estabelece sentidos a sua história de vida-formação-profissão, as suas experiências formadoras
inscritas em suas identidades e subjetividades construídas ao longo da vida, embora muito ainda esteja por
entender e dizer, mas esta investigação contribuiu para compreender um pouco a dinâmica de quem exerce a
profissão docente numa escola inserida num espaço rural no Território de Identidade do Sisal baiano.
Palavras-chave: História de Vida; Professora de Geografia; Roça.

O contexto do trabalho: uma introdução

No contexto da contemporaneidade torna-se pertinente refletir e discutir sobre as


concepções teóricas e metodológicas que norteiam as pesquisas de abordagens
(auto)biográficas, bem como a importância que os estudos com e sobre histórias de vida de
professores vêm adquirindo na área educacional, sejam eles como metodologia de pesquisa,
prática de formação ou investigação-formação.
Como prática de investigação, estes estudos têm contribuído de forma crucial para
compreendermos como os professores em atuação se constituem no devir da profissão, pois
ao emergir nestes sujeitos as memórias de vida e as experiências formativas adquiridas ao
longo de sua trajetória, estes nos apresentam elementos essenciais para compreendermos
as razões e as origens pela qual optaram/chegaram à profissão docente.
Esse trabalho é um recorte da pesquisa de conclusão apresentado ao curso de
Licenciatura em Geografia da Universidade do Estado da Bahia, Campus XI, intitulado “A
caminho da roça: história de vida, percursos formativos e atuação profissional de uma
professora de Geografia”, cujo objetivo foi conhecer, a partir da narrativa (auto)biográfica,
as trajetórias de vida e de formação de uma professora itinerante de Geografia que vive na
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 32
cidade e atua numa escola da roça localizada no Povoado de Isabel, espaço rural do
município de Serrinha-Ba, intentando analisar as implicações no seu devir profissional pelas
suas itinerâncias de vida-formação-profissão.
Vale ressaltar que esta pesquisa é ancorada na abordagem qualitativa, amparada no
método (auto)biográfico por compreender que as narrativas de vida e de formação não
podem ser desconsideradas num processo formativo docente, pois este “[...] possibilita, a
partir das narrativas (auto) biográficas, entenderem os sentimentos e representações dos
atores sociais no seu processo de formação e autoformação (SOUZA, 2006a, p. 34),
permitindo que o sujeito se torne mais visível, possibilitando o conhecimento de si para
poder promover ações transformadoras no seu devir profissional docente.
Assim, o trabalho com (auto)biografia é considerado por muitos autores que
pesquisam a formação docente, a exemplo de Souza (2006) como um campo fecundo de
investigação e de grande potencial para os estudos na área da educação, sobretudo nos
processos de formação inicial e continuada. Este método tem permitido aos sujeitos a
ressignificação das lembranças que comportam a subjetividade e a singularidade,
possibilitando-os uma reflexão das experiências vivenciadas ao longo de sua trajetória de
vida e de formação, exaltando não só a pessoa, mas também e, principalmente, o
profissional.
Desta forma, o método (auto)biográfico tem contribuído para a pesquisa educacional
e a formação docente na medida em que tem nos permitido uma gama de conhecimento
sobre os processos formativos docentes, bem como também na desconstrução de ideias e
representações sobre a ação docente que vinculava até o início da segunda metade do
século XIX e que exaltava o profissional em detrimento da pessoa que este se constituía
(SOUZA, 2006). Assim, os estudos com o método (auto)biográfico:

[...] se revela como pertinente para a autocompreensão do que somos, das


aprendizagens que construímos ao longo da vida, das nossas experiências e
de um processo de conhecimento de si e dos significados que atribuímos
aos diferentes fenômenos que mobilizam e tecem a nossa vida
individual/coletiva. Tal categoria integra uma diversidade de pesquisas ou
de projetos de formação, a partir das vozes dos atores sobre uma vida
singular, vidas plurais ou vidas profissionais, no particular e no geral,
através da tomada da palavra como estatuto da singularidade, da
subjetividade e dos contextos dos sujeitos (SOUZA, 2006a, p. 27).

É nesta perspectiva de compreensão do singular e do plural da vida cotidiana que


este trabalho se insere, uma vez que analisar a trajetória de vida e de formação de uma
professora de Geografia que vive na cidade e atua na escola da roça6, localizada em Serrinha,
torna-se imprescindível para conhecer as subjetividades e as singularidades que constituem
os sujeitos deste espaço (a roça) a fim de compreendermos o processo de ensino e de
aprendizagem neste lugar.

6
Termo muito utilizado por Fábio Josué dos Santos Souza (2006) por considerar a roça, uma categoria teórica,
e geográfica, importante por possuir múltiplos sentidos no modo de vida dos sujeitos que residem em áreas
rurais.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 33


Nesta perspectiva, a narrativa (auto)biográfica nas pesquisas educacionais opera
como um subsídio importante tanto para o pesquisador quanto para o docente, pois ajuda a
compreender sua formação e refletir um pouco mais sobre suas experiências, suas
aprendizagens e sua prática em sala de aula, pois a pesquisa (auto)biográfica nos permite
“[...] compreender uma vida, ou parte dela, como possível para desvelar e/ou reconstituir
processos históricos e ontrealvess vividos pelos sujeitos em diferentes contextos” (SOUZA,
2006a, p. 24).
Como dispositivo de coleta de dados, utilizamos a entrevista narrativa, considerada
importante neste trabalho por se caracterizar como “[...] uma forma de entrevista não
estruturada, de profundidade, com características específicas” (JOVCHELOVITCH; BAUER,
2008, p. 95), com o intuito de conhecer, a partir da narrativa (auto)biográfica, as trajetórias
de vida e de formação de uma professora itinerante de Geografia, colaboradora deste
estudo, que nasceu na roça, vive na cidade e trabalha numa escola rural.
A relevância desta temática para a escolha investigativa emerge, sobretudo, das
observações e reflexões de uma das autoras deste artigo, moradora do Povoado, onde se
localiza o locus desta pesquisa, sobretudo por ter sido aluna da Escola Marlene Assis de
Lima, localizada no referido povoado, e por ter convivido com alguns professores que
lecionavam/lecionam neste espaço educativo, além de ser uma temática emergente, com
poucas produções acadêmicas que envolvem histórias de vida, formação e atuação docente
nos espaços rurais. Além disso, a justificativa atribuída à escolha deste objeto de
investigação também está relacionada ao fato desta mesma autora ter sido moradora da
roça, cujas raízes culturais são de espaços rurais, inserida num espaço educativo superior,
cujo curso não oferece uma disciplina/componente curricular que discuta melhor a
educação rural/campo. Além disso, estas questões relacionadas às escolas localizadas em
espaços rurais e, principalmente, aos professores que atuam nestes espaços, têm sido um
tema periférico no meio acadêmico, sendo pouco discutidos em trabalhos científicos.

Entre pedras e caminhos que levam à roça, as narrativas de uma professora itinerante

Muitas são as subjetividades que envolvem a vida, a formação e a profissão de uma


pessoa. Chaves (2006) anuncia que é “Conhecendo os cantores, conseguimos compreender
melhor as canções que elas entoam, podendo, assim colaborar, na composição de
novas/outras melodias (p. 162). Melodias estas que marcam a nossa vida, a nossa formação
e atuação docente.
Deste modo, falar de educação nos espaços rurais é falar dos sujeitos que interagem
neste espaço.
Assim, a entrevista narrativa contribuiu incisivamente para a atividade investigativa
porque proporcionou o contato direto com o sujeito da pesquisa, admitindo ver, sentir,
ouvir e perceber os gestos desta professora ao narrar sua vida, sua formação e sua profissão,
pois a partir desta técnica, o pesquisador se apropria de informações acerca do que os
entrevistados creem, esperam, expressam, sentem e desejam, numa perspectiva
interpretativa analítica de fatos e fenômenos biográficos que marcaram sua história.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 34


A professora Sol7 em sua entrevista começa descrevendo quem ela é, sua idade,
filhos, formação, entre outros. Neste sentido, foi/é importante a partir da entrevista
narrativa contextualizar o perfil do sujeito (Quadro 1) no sentido de definir características e
singularidades, como bem salienta Souza (2006).

Quadro 1- Perfil biográfico da Professora Sol

IDADE 42 anos
ESTADO CIVIL Casada
Nº DE FILHOS 2
FORMAÇÃO Pedagogia; Psicopedagogia; Letras
Vernáculas
TEMPO EM QUE ATUA COMO 16 anos
PROFESSORA
TEMPO EM QUE ATUA EM ESPAÇO 10 anos
RURAL
SITUAÇÃO FUNCIONAL Concursada
TEMPO EM QUE ENSINA 9anos
GEOGRAFIA
TEMPO EM QUE ATUA NA ESCOLA 3anos
Fonte: Dados da pesquisa.

Em sua narrativa, sobre as lembranças do espaço onde vivia, a Professora Sol relata
que quando morava na zona rural8 ia para a roça trabalhar com seus pais. Segundo ela,
embora fosse a mais nova dos seus seis irmãos, fazia o trabalho mais leve na roça, como
plantar milho, feijão e raspar mandioca, trabalho muito comum na vida dos moradores deste
lugar. Ainda relata ter tido uma infância mal vivida porque não foi estimulada a realizar
algumas das ações próprias da sua idade, como brincar e ser criança. Em seu relato, acredita
não ter vivido esta fase por causa da cultura de seus pais e da educação que tivera na roça,
“Não vivi muito a fase talvez por causa da cultura e da educação que tive. [...]. Não lembro
que eu brincava de boneca, eu não vivi esse momento tão infantil. (Trecho da entrevista
narrativa da Professora Sol, 2012).
Sobre o período de sua escolarização, a Professora Sol conta que, embora seus pais
não fossem alfabetizados, eles se preocupavam com a escolarização de seus filhos por
acreditar que a educação pudesse melhorar suas vidas, algo muito comum quando nos
reportamos aos pais e o sentido da educação e da escola na vida de seus filhos.
Segundo a Professora Sol, sua trajetória de vida estudantil nos anos iniciais ocorreu
no espaço rural, onde estudou até a 4ª série/5º ano do ensino fundamental. Vítima da
palmatória, diz ter sido uma aluna traumatizada ao enfatizar as recordações do processo de
aprendizagem, sobretudo do conhecimento matemático. Fica evidente em sua narrativa que

7
Nome fictício dado à professora colaboradora no intuito de preservar sua identidade.
8
Termo bastante utilizado pela docente, colaboradora desta pesquisa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 35
para ela, aprender/decorar as quatro operações, como por exemplo, a multiplicação na 3ª e
4ª séries/4º e 5º ano foi muito difícil, entretanto, salienta que apesar desta não ter sido a
forma correta, ela aprendeu muito e descreve que:

Tinha pavor da aula de sexta-feira porque era dia de tabuada, sabatina, pois
apanhava dos colegas quando não acertava a tabuada[...]Na hora de ficar
enfileirado porque a dinâmica era ficar todo mundo em pé, ai eu ficava
sempre perto daqueles que não batiam forte [...] mas tomei muita
palmatória. Agora assim, memorizei e realmente aprendi tabuada na
terceira série. Na verdade, acho que não aprendi, apenas memorizei e
decorei mesmo. Hoje sei que não aprendi da forma correta, mas na época,
a forma era essa e a metodologia era apanhar, ficar de joelhos no caroço de
milho. (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).

Este excerto narrativo da Professora Sol fica evidenciado as marcas


impressas/deixadas pelo seu processo de escolarização ocorrida na escola da roça,
reconhecendo as formas de ensinar e aprender neste lugar. A palmatória fazia parte do
cotidiano na sala de aula, tornava-se um instrumento para moldar e adestrar o aluno,
deixado marcas no processo de aprender e ensinar destes alunos.
A Professora Sol ainda relata que estudou numa escola de classe multisseriada
localizada numa casa que a sua professora havia herdado de seu pai e ela mesma que
ministrava as aulas. Narra também que lembra muito do ABC e da cartilha. No seu processo
de aprendizagem, ela recorda que não podia ler alto, mas não se lembra dos motivos para
isto. Das lembranças deste processo inicial de escolarização, rememora que:

A professora pedia muito para quando a gente voltasse da cidade


para casa na roça, quando íamos de vez em quando, para a gente
observar todos os nomes das casas comerciais e era para a gente ler.
Dizia para a gente procurar modernizar-se civilizar-se, saber se
posicionar nos ambientes, [...] a professora enfatizava muito os
elementos da cidade (Trecho da entrevista narrativa da Professora
Sol, 2012).

É de grande relevância perceber neste excerto narrativo, que o ensino no meio rural,
desde períodos remotos, foi pensado a partir de um modelo de escola de padrão urbano,
permeada por metodologias e ideologias destinada a fins políticos, contraditórias à realidade
e o conhecimento das identidades rurais. Uma escola rural que foi, e ainda é, (de certa
maneira) vista preponderantemente pelo Estado como uma extensão da escola urbana, sem
uma preocupação em aproveitar e explorar a bagagem cultural, do aluno(a) da roça,
impondo uma ficção, uma realidade social imaginária, contrastante com as observações e
vivências destes sujeitos.
Aliás, uma das principais dificuldades encontradas pelos professores que atuam no
meio rural tem sido compreender que os moradores da roça “[...] mais do que instrumento
da produção agrícola, são autores e consumidores de um modo de vida, [...] um produtor de
um modo de ser” (RIOS, 2008, p. 95). Este modo de ser da roça, como nos diz Santos (2006),

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 36


não é contemplado por causa de um modelo de organização escolar que valoriza o urbano,
ao colocar que:

[...] Um modelo de organização escolar herdado da Modernidade que,


embora seja fundado em referenciais universais de igualdade, acaba,
também, por discriminar os/as alunos/as da roça por não considerar seus
marcadores identitários e tratá-los/as de forma semelhante aos/às
alunos/as da cidade (SANTOS, 2006, p. 161).

Ainda sobre a formação que tivera nos anos iniciais na escola da roça, a Professora
Sol relata que tivera uma professora leiga que fazia um curso de formação na década de
1980 e não se lembra ao certo se era para a melhoria do exercício docente dela. Lembra-se
que ela se deslocava uma vez por semana para uma cidade próxima à zona rural onde
morava. Em seu relato, diz ter recordações muito boas desta professora na infância. Foi sua
primeira professora e a considerava uma pessoa “muito boa, muito sabida, moderna, bem
civilizada” (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012), a qual deixou marcas
significativas em sua vida.
A Professora Sol relata que por volta dos nove ou dez anos de idade, não se lembra
ao certo, migrou da zona rural para a cidade de Serrinha porque a escola em que estudava
não ofertava o ensino Fundamental II, de 5ª a 8ª séries/6º ao 9º Ano, onde concluiu os
cursos de Formação Geral e, em seguida, o de Magistério, numa escola pública. Sobre este
período escolar, ela assim rememora:

Me matriculei no magistério, mas quando cheguei à escola que assisti uma


semana de aula fiquei com medo e desisti. Fiquei me imaginando o que ia
fazer na sala de aula como professora [...] eu achava que não conseguiria
superar esta dificuldade. Eu imaginava na hora quando chegasse o estágio
como era que eu ia dar aula, que vergonha iria ter para dar aula, então
desisti e mudei para o curso de Formação Geral e me senti aliviada. Que
coisa boa não voltar a dar aula! Tirei um peso das minhas costas naquele
momento. Tenho essa característica de ser medrosa, isto vem desde minha
infância e tenho que trabalhar muito isso. Saí do magistério e conclui o
curso de Formação Geral. Mas, após ter concluído o curso voltei a me
matricular no magistério novamente. Era para ser professora mesmo!
Então, encarei, peguei uma turma boa, tinha colegas que já conhecia. Era
uma turma grande e cai no magistério e quando chegou a hora do estágio
já estava um pouco mais solta, mais relaxada. Me dediquei, fiz as coisas
tudo direitinho. Superei, consegui vencer a etapa e fiquei formada, quer
dizer, concluinte do magistério porque formar, a gente está se formando
sempre. Fiquei com essa certificação em mãos e continuei como vendedora
autônoma (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).

Ao narrar sobre suas trajetórias formativas, a Professora Sol fala de suas histórias de
formação inicial, sobretudo, no Ensino Médio. Em sua narrativa fica evidente as incertezas
quanto à escolha profissional, à sua formação e o medo da profissão docente, ao colocar que
“[...] Tinha vergonha da regente, me achava muito inferior, me achava tão pequena” (Trecho
da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 37


Souza (2004) coloca que, no processo de formação, o estágio, pode representar para
muitas pessoas “[...] momentos de afirmação, de questionamentos ou dúvidas sobre a opção
pela profissão” (p. 275). Este momento é importante para que o aluno em formação esteja
consciente de sua escolha profissional, e, foi neste período que a Professora Sol vivenciou
tais anseios (as aprendizagens, dificuldades, medo, insegurança), entretanto, o estágio é um
momento imprescindível para a formação docente, uma vez que nos possibilita o
conhecimento e o (auto) conhecimento do que somos e das aprendizagens que construímos
neste processo formativo, pois pode ser considerado como um momento fundamental na
formação profissional por “[...] proporcionar aos futuros professores, além de conhecimento
do espaço escolar, das relações que nele se constituem, possibilita ao aluno uma experiência
da atividade docente” (KHAOULE, 2012, p. 57). Assim, o estágio também nos possibilita
compreender, na prática, que o processo de ensinar está além das relações construídas dos
saberes e da construção do conhecimento na sala de aula, mas ensinar perpassa por
compreender todo o contexto social da escola e dos sujeitos envolvidos.
Sobre as dificuldades encontradas ao longo do seu estágio no magistério, a
Professora Sol narra que:

[...] eu era muito recalcada, tímida e tinha vergonha, eu era muito


envergonhada! Sofri muito com isso! “[...] no estágio encontrei meninos
retados, faziam xixi e colocavam no barquinho de papel e me davam. Sentia
o xixi quentinho em minha mão” “[...] fiz as coisas tudo direitinho. Superei,
consegui vencer a etapa” (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol,
2012).

Em sua narrativa, a Professora Sol socializa as marcas deixadas pelo estágio como um
dever cumprido. Os sentimentos revelados na narrativa desta professora expressam medo,
angústia e insegurança sobre o início de experienciar a docência no estágio supervisionado,
como também em sua vida pessoal e profissional por se sentir uma pessoa inferior, talvez
pela forma de ter sido educada, talvez pelo fato de achar que o lugar de onde nasceu e
cresceu (roça) fosse inferior, uma vez que os espaços rurais são vistos como lugares
atrasados em relação aos espaços urbanos. Em sua narrativa, a Professora Sol não esclarece
os motivos, mas ficam sutilmente relevados em suas expressões faciais durante a entrevista
narrativa.
Como salienta Rios (2008) “ser da roça” denota ser inferior, ignorante, ser de outro
grupo, possuir outra linguagem e, acima de tudo, ser diferente. Assim, aos olhos urbanos, a
roça é vista como aversão ao urbano que “é “evoluída e inovadora” fora do estereótipo do
atraso da roça [...] um espaço atrasado, tradicional, rústico, incivilizado” (RIOS, 2008, p. 67).
Esta ideia hegemônica que se tem da roça também ficou presente na narrativa da professora
colaboradora desta investigação quando aceitou participar da pesquisa e conheceu a
intenção desta investigação, ao me questionar por que o termo roça e não rural.
Entretanto, embora o termo roça seja bastante utilizado na região do Território do
Sisal, ultimamente temos percebido certa resistência ao termo, este vem sendo substituído
pelos moradores da região por “zona rural”. Para eles, roça ainda é sinônimo de “tabaréu”,
termo pejorativo e estereotipado que historicamente se deu aos moradores da roça, por
isso, estes habitantes vêm criando esta resistência em não utilizar mais o termo roça, mas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 38


sim zona rural, embora este último não seja suficiente para caracterizar, em sua totalidade,
as especificidades que o termo roça carrega, como bem salienta Santos (2006).
Estas considerações, dadas por Santos (2006) e Rios (2008) são pertinentes, uma vez
que é compatível com o espaço da pesquisa, o Povoado de Isabel, localizado em Serrinha,
intensamente caracterizado por elementos aqui abordados, uma vez que o modo de vida
destes sujeitos se diferenciam da zona urbana: sua cultura, seu trabalho, seus sujeitos e suas
crenças, a relação que estes mantêm com a natureza, por exemplo, quando é o período de
plantação e colheita, saber do tempo certo para cada etapa do trabalho na roça, a lida com
os animais, a relação de trabalho e de sobrevivência, enfim, o modo de ser e de fazer este
espaço fazem parte do cotidiano que caracteriza este lugar. Sendo assim, essa é uma
realidade que se insere na vida dos habitantes desse lugar, chamado Povoado de Isabel,
localizado ao sudeste do município de Serrinha.
No seu processo de escolarização, a Professora Sol ainda relata que não se lembra
muito das aulas, sobretudo às de Geografia e conta que, “[...] não lembro. Até tenho uma
simpatia por Geografia, não era uma disciplina que eu detestasse, mas não tenho nada
marcante desta matéria em si. (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).
A Professora Sol também revela que, ao mesmo tempo em que estudava, trabalhava
como vendedora autônoma de revistas, louças e bijuterias para ajudar no sustento da sua
família, contribuindo com a renda familiar. E, foi nesse período de sua juventude que
começou a pensar na escolha profissional. Assim, ela se desvela:

Eu comecei a ser professora, no início de minha juventude. Quando vim


para a cidade para estudar e trabalhar como vendedora autônoma, eu
vendia revistas, bijuterias e louças. Eu era sacoleira mesmo! [...]. Eu gostava
deste trabalho autônomo, fui ganhando meu dinheiro dessa forma,
estudando e trabalhando ao meu modo, determinando meus horários. Em
1996 abriu o concurso de magistério municipal em Serrinha e minha irmã
logo se prontificou para fazer e aí eu pensei duas vezes, não queria fazer
não, porque o emprego municipal não era muito valorizado naquela época,
mas tinha melhorado com a nova gestão, estava começando a funcionar
com mais seriedade, pagava certo, todo mundo começou a observar que
tava melhor e aí comecei a observar também. Então, abriram as inscrições
do concurso e eu me inscrevi, mas não tinha aquela vocação para ser
professora [...] na verdade era por conta do salário, da segurança salarial,
era um emprego e tal. E, assim me tornei professora, embora não exercesse
a profissão com paixão (Trecho da narrativa da Professora Sol, 2012).

Fica evidente neste excerto da narrativa da Professora Sol que a escolha profissional
não se deu pelo desejo e pela vocação de estar na profissão docente e sim mediante à
segurança de um emprego público que o concurso lhe daria. Percebemos também a
influência de sua irmã, uma pessoa charneira, na escolha profissional ao relatar que “[...] eu
e minha irmã éramos parceiras e, quando surgiu o concurso, minha irmã logo se prontificou
para fazer, se empolgou e me chamou para fazer também [...]” (Trecho da entrevista
narrativa da Professora Sol, 2012).
A Professora Sol relata que, após ser aprovada no concurso público municipal de
Serrinha para o exercício docente, inicialmente não foi para a sala de aula, ela trabalhou com

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 39


um projeto de reforço escolar para alunos carentes do município de Serrinha, só depois
atuou como docente na escola da roça. Ela relata que a escolha para lecionar na escola da
roça não ocorreu por vontade própria, apesar de ter raízes culturais com este meio, não foi
exatamente uma escolha sua, mas foi, sobretudo, pelas poucas vagas existentes nas escolas
da cidade, uma vez que eram limitadas para pessoas gestantes e com problemas de saúde.
Além disso, a professora Sol relata que a escolha pela escola da roça deve-se a outros
motivos, como:

Na roça as turmas são menores, o fluxo de alunos também é menor. No


contexto geral não são alunos ousados, desafiadores no sentido de querer
descobrir, de questionar. São alunos mais tranquilos, não se expõem, não
querem aprender, são mais acomodados, é um pouco fechado [...] Em
geral, são alunos mais fácil de se trabalhar, então a gente acaba gostando
disso e acha isso bom. Então, o contexto é outro e nós professores
desejamos atuar na roça por conta dessas questões. (Trecho da narrativa da
Professora Sol, 2012).

São por estas questões, “vantagens”, anunciados pela Professora Sol que muitos
profissionais da educação, em especial no espaço da pesquisa (espaço rural), desejam atuar
na roça, pois essas representações sobre o espaço rural são muito fortes na narrativas de
muitos profissionais da educação, como também de seus moradores que residem neste
lugares. Esta consideração também foi presente em conversas informais com alguns outros
professores de outras áreas do conhecimento que lecionam também nesta mesma escola
pesquisada.
Em sua primeira experiência como professora da roça, Sol relata que:

Fui ensinar numa escola na zona rural, mas não era essa coisa apaixonante,
[...], mas eu estava ali, é meu emprego. Não me achava professora boa.
Depois veio a cobrança, começou a surgir que tinha que ter nível superior,
que tinha que fazer uma licenciatura. Mas eu achava faculdade uma coisa
grande demais para mim, eu pequena fazer faculdade! Meu marido
também começou a me questionar que tinha que ter faculdade? Ele me
perguntava, tu é professora de que? Tu é boa em quê? Meu marido foi o
grande mentor, contribuiu para minha formação, dizia que tinha que ter
faculdade. Mas eu me achava uma profissional de vendas e sempre ficava
na retaguarda. Minha irmã logo achou seu lugar, era professora de
Matemática e eu? Era professora de que? Aquilo começou a me incomodar
[...] tentei o vestibular da UNEB, mas não passei. Minha irmã logo achou
seu espaço e eu me perguntava: E eu? Sou professora de que? (Trecho da
entrevista narrativa da Professora Sol, 2012)

Percebe-se que Sol, demonstra certa dificuldade em aceitar-se, de fato, como uma
docente, como também a dificuldade de aceitar o outro/aluno, entretanto, como coloca
Oliveira (2006), é necessário que no processo de ensino/aprendizagem o professor tenha
consciência de sua participação na formação e salienta que, como educador, “o professor
deve “aceitar-se como pessoa e saber aceitar os outros” (p.15). Foi também neste período

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 40


que surgiram às exigências da profissão, formação acadêmica para o exercício da docente,
como também as cobranças de seu marido em relação à sua formação profissional.
Mesmo exercendo a profissão docente há 16 anos, a Professora Sol, como ela mesma
conta, ainda se achava uma profissional de vendas e não se sentia uma boa professora. O
excerto narrativo demonstra que a procura pela faculdade se deu por três motivos: (1) pelas
exigências da profissão docente naquele período; (2) pela cobrança de seu marido na busca
pela sua formação acadêmica e (3) pelo fato de sua irmã ter se firmado na profissão docente
como professora de Matemática. Esses motivos levaram a Professora Sol a pensar sobre sua
formação e atuação profissional e foram fundamentais para que ela buscasse a ampliação de
seus conhecimentos necessários para o exercício de sua profissão, uma vez que só tinha o
magistério em nível médio. As novas exigências no âmbito da Educação, sobretudo a partir
da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 9394/96 também exigiu da
Professora Sol que ela se adequasse a este novo contexto.
A partir das três questões apontadas pela narradora, a formação universitária passou
a ser uma prioridade para o exercício docente, um estímulo para dar continuidade à
formação inicial.
Para Veiga (2008), a formação de professores é o ato de educar o profissional que, ao
longo do tempo, se desenvolve em momentos individuais ou coletivos, no sentido de formar
saberes alcançados pelas experiências ou pelas aprendizagens nas quais muitos elementos
podem estar envolvidos.
Em 2008, a Professora Sol conclui o curso de Pedagogia em uma instituição de
educação superior privada, na modalidade EAD e, em 2010, conclui sua pós-graduação em
Psicopedagogia Clínica e Institucional em outra instituição privada na modalidade presencial.
Sobre esse processo formativo ela relata:

Eu sempre gostei e tive curiosidade nos assuntos que relacionavam as


dificuldades e os comportamentos das pessoas [...], gostava de ajudar,
sempre tive isso em mim. Tudo que relacionava com dificuldade me
interessava. Neste período vivi um momento muito difícil com meu filho,
que aliado a essas questões me aguçou ainda mais o desejo pela
Psicopedagogia, pois queria entender as dificuldades de aprendizagens de
meu filho [...] e vivia em função disso, não conseguia enxergar meus alunos
e chegava até a ser egoísta, tudo que eu fazia era pensando no meu filho,
não me importava com a dificuldade dos meus alunos[...]. Foi então que
comecei a me questionar sobre o que era a psicopedagogia. Então resolvi
juntamente com minha irmã, mais uma vez, fazer pós-graduação em
Psicopedagogia (Trecho da entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).

A Professora Sol deixa evidente as marcas vividas nesse processo de formação e fala
com carinho da relação com a Psicopedagogia Clínica, aliás, esta é a área em que esta
professora diz pretender atuar futuramente. Ela destaca questões pessoais neste fragmento
da sua narrativa, como o problema de aprendizagem escolar de seu filho que marcou muito
a sua vida pessoal e profissional e que, aliado a esta questão, o desejo e a curiosidade em
estudar o comportamento humano, despertou-lhe ainda mais o anseio em estudar
Psicopedagogia. Durante este período, esta docente fala da superação de suas dificuldades
pessoais e profissionais e da convivência amigável com sua professora e amiga Cristina do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 41


curso de Psicopedagogia em Feira de Santana, principalmente no período de estágio. Assim
rememora:

No curso tive a oportunidade de conhecer uma professora que marcou


muito minha vida, Cristina. O estágio com esta professora foi o período
mais marcante de minha vida e de minha formação como Psicopedagoga, a
convivência com ela me marcou muito, ela me fez entender tanta coisa, me
fez enxergar coisas que eu não via, me fez entender que eu posso tudo, que
todo mundo tem problema e foi aí que eu me encontrei. E percebi que
estava fazendo uma coisa que eu realmente gostava e já não me sentia
menor, insegura, coisa que carreguei durante muito tempo em minha vida.
Cristina me fez entender e me levou a resolver o problema de meu
filho[...]Hoje, eu sou uma pessoa que sei como orientar uma mãe a criar seu
filho. Entendi que a Psicopedagogia é para ajudar as pessoas a saírem do
lugar, a mostrarem que são bons, aprendi e fiquei sabida nisso (Trecho da
entrevista narrativa da Professora Sol, 2012).

Ao falar das aprendizagens e da importância do outro em nossa vida Fernández


(1990) coloca que, no processo de aprendizagem deve haver um vínculo de afetividade entre
o ensinante e o aprendente e acrescenta que a aprendizagem se materializa no corpo,
alimentado pelo desejo e o prazer de aprender, desejo este que ficou expresso na fala da
Professora Sol ao relatar suas dificuldades e seus anseios em relação ao problema cognitivo
de seu filho. Ainda segundo Fernández (1990) a maneira como aprendemos e como
educamos, “[...] não se herda, se aprende” (p. 51). Desta forma, a aprendizagem é um
processo que permite a aquisição de conhecimentos através da
sistematização/transformação das informações, mediados por uma pessoa/professor. A
relação entre Sol e sua professora Cristina no Curso de Pós-graduação em Psicopedagogia
explicita uma relação de confiança, de entrega ao outro, na condição de ensinante e
aprendente, como expõe Fernández (1990), aprendemos com o sujeito “[...] a quem
outorgamos confiança e direito de ensinar” (p. 52). Sol deixa explícita a relação de carinho
com esta área de conhecimento e as aprendizagens construídas ao longo deste processo, ao
contar que aprendeu muito durante e depois deste período formativo.
Para Josso (2004), as experiências adquiridas ao longo da vida se tornam formadora
quando falamos “sob o ângulo da aprendizagem” (p. 48). Desta forma, esta autora ainda
acrescenta que “a formação é experiencial ou então não é formação [...]” (p. 48). Partindo
desta premissa, compreendo que a formação é um processo de construção e reconstrução
da identidade pessoal e profissional, a qual “envolve saberes, experiências e práticas sobre a
cultura escolar e a docência” (SOUZA, 2004, p. 309), e ao recordar as experiências
vivenciadas, o sujeito reconstrói sua história, reflete sobre ela e cria espaço para a
compreensão de sua prática.
Sobre as aprendizagens durante no curso de Psicopedagogia Clínica e Institucional, a
Professora Sol ainda ressaltou:

Meu olhar se ampliou, deixei de ver só meu filho e me vi como professora


[...]. Eu vejo o aluno hoje com outro olhar, quero entender, quero zelar pela
aprendizagem que tá lá na criança. [...] Hoje, pra mim, a família é coisa
muito importante e a escola, a meu ver, tem que fazer diferente, só que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 42
não é coisa fácil e, enquanto professora e agente desse processo, estou
aqui para ajudar, tem hora que realmente a gente tem raiva dos meninos,
mas hoje a raiva que eu sinto passa logo porque na Psicopedagogia não
cabe olhar o sujeito em aprendizagem apenas como aluno e sim como um
amigo, um sujeito que tem família, como um filho, enfim, tudo aquilo que o
constitui e a Psicopedagogia vai me ajudando a ser professora. Às vezes até
me atrapalho e chego a um ponto que eu não quero ser professora, pois eu
já sei fazer outras coisas e ser professora me limita, porque a
Psicopedagogia não é você estudar para ser professora é outra profissão,
mas eu tô professora, aí eu vou pegando o gancho e a Psicopedagogia vai
me ajudando a melhorar como docente, já que a Psicopedagogia é também
pra ajudar o professor na sala de aula e hoje eu me vejo como uma
professora, mas com um olhar diferente de muitos, até por conta do que já
li, conheci e vivi. Chega um momento que me perco e não sei mais se eu
sou professora, ou sou psicopedagoga? (Trecho da narrativa da Professora
Sol, 2012).

Apesar da formação em Psicopedagogia Clínica e Institucional ter proporcionado a


Professora Sol muitas aprendizagens como ela ressalva, fica também evidente alguns
conflitos internos sobre a sua profissão. Na sua narrativa, esta docente reconhece a
importância dos conhecimentos adquiridos no curso de especialização em Psicopedagogia
no seu exercício profissional docente, mas, ao mesmo tempo, não se reconhece como
professora, ou não quer se assumir como docente, embora afirme que o curso lhe
proporcionou um outro olhar no processo de ensinar, ajudando-a na profissão que
escolhera.
Apesar de já ter uma formação inicial em Pedagogia, especialista em Psicopedagogia
Clínica e Institucional e ensinar Geografia há três anos na Escola Marlene Assis de Lima, no
Povoado de Isabel, espaço rural de Serrinha e encaminhada pela secretaria de educação
municipal para escola como desdobramento, a qual já trabalha há nove anos, a Professora
Sol cursa atualmente Letras Vernáculas no Programa da Plataforma Freire – PAFOR9, em
Serrinha, mas diz não pretender atuar nesta área como conta em sua narrativa, apesar deste
programa ter sido criado para graduar profissionais na área de educação nas respectivas
disciplinas em que os professores atuam. Assim, Sol relata:

Eu estou num curso de Letras, mas não vou ser professora de Língua
Portuguesa, mas de qualquer forma estou aprendendo. Aprendo um monte
de coisa que não necessariamente você tem que ir para a sala ensinar, mas
você aprende pra vida, pra outras áreas, é pra você fazer um texto, redigir,
é pra você ler, para você interpretar, saber falar com as pessoas, então eu
tô com este olhar, não tô para sair de lá e ser professora de Português. Para
o currículo é mais uma item, uma formação (Trecho da narrativa da
Professora Sol, 2012).

9
Este Programa de formação para professores da rede pública foi criada para assegurar a formação exigida na
LDB para todos os professores que atua na educação básica em diferentes municípios.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 43
A Professora Sol reconhece a importância da sua formação em Letras em sua
trajetória pessoal e profissional e, apesar de ter certa simpatia por Geografia, como foi
narrado anteriormente, e ter se inscrito no programa para esta área como 1ª opção, não
conseguiu ser aprovada, entretanto, afirma que a formação em Letras Vernáculas lhe
ajudará em outras áreas do conhecimento, além de ser um item a mais para enriquecer o
seu currículo, embora este não seja o objetivo do PARFOR que é formar professores para
atuarem nas áreas do conhecimento que lecionam nas unidades de ensino público.
Sobre sua atuação, a professora Sol deixa expresso no seu devir profissional um
modelo de organização escolar que pressupõe que os alunos da roça “[...] não sejam sujeitos
com/de conhecimento” e que, portanto, “há um vazio muito grande a ser preenchido pelo
saber escolar” (RIOS, 2011, p. 132) como expressos na narrativa da Professora Sol, ao colocar
que:

Eu diria que a aprendizagem, a construção de conhecimento dos alunos da


roça não deve ser limitado ao contexto deles, porque um dia ele vai sair da
zona rural e a zona rural não propicia uma vivência que o aluno possa
conhecer outras realidades. Eu sou da roça e, como aluna rural, eu tinha
esse olhar, de também querer evoluir [...] Enquanto professora, sempre
chamo a atenção deles para algumas questões como: eles são da zona rural,
mas são bons e tem que saber falar, saber adequar os termos, querer
evoluir, construir novos conhecimentos. Eu sempre friso essas questões
para estimular eles a querer sair do lugar seja um aluno da zona rural ou
não. Na zona rural eu friso muito porque é muito comum chegar à roça e
encontrar pessoas conformadas, acostumadas com sua realidade, coisa
muito natural destas pessoas que mora na roça e se não tiver ninguém para
ajudar, carrega isso para o resto da vida (Trecho da narrativa da Professora
Sol, 2012).

Para a Professora Sol, os saberes da roça são desnecessários para a formação dos
alunos da roça, uma vez que este lugar é passageiro na vida destes, como afirma no trecho
narrativo. Então, fica a pergunta: - Como usar destes conhecimentos, adquiridos com a
convivência num determinado espaço geográfico, se estes não são importantes na
aprendizagem destes alunos? Logo, os saberes sobre a roça, sobre o espaço vivido pelos
alunos, são silenciados ao negar o modo de viver da roça e a importância dos saberes
construídos com o local de vivência na vida destes alunos. Para Sol, a roça é um lugar sem
sentido e ser da roça é ser inferior, não-civilizado, atrasado, incapaz que precisa “evoluir”
sair deste lugar “pequeno”, “inferior”, incorporar aos valores urbanos, para ser
“considerados/as gente (“ser alguém”)” (SANTOS, 2006, p. 155).
Como coloca Santos (2003), historicamente esta descaracterização do rural é
resultado de um processo econômico, social, cultural e de políticas educacionais traçado em
nosso país que, considera como importante, no processo educativo os saberes urbanos,
permeados pelo mecanismo das práticas escolares docentes que descaracteriza a roça em
relação à cidade. Para Santos (2006), a “aprovação das Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas Rurais apesar de um avanço significativo, não representa a
superação de todo imaginário depreciativo sobre a roça, elaborado ao longo de séculos [...]”
(p. 145). Este autor ainda diz que:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 44


Os livros didáticos através de seus textos e gravuras desconsideram o
homem, a mulher e a criança da roça [...]. Há anos, nas raras vezes em que
apareciam, eram representados como seres sem cultura, marcados pelo
estereótipo de sujeitos “atrasados”, um verdadeiro “bicho do mato que
precisava ser civilizado”. Estas representações ainda persistem, mas, nos
últimos anos, tem-se visto o rural ser representado como um local
destinado às monoculturas de exportação, ao agronegócio, ou seja,
privilegia-se a perspectiva dos detentores da propriedade da terra, dos
empresários do setor agropecuário, preocupados com o estímulo à
tecnologia e com o espírito empreendedor. [...] nas raras vezes que a roça é
pautada nos livros didáticos é por coincidência e acontece de forma vazia
“aprisionada por uma visão reducionista” [...] (SANTOS, 2006, p. 142-177).

Ainda sobre sua atuação, a Professora Sol, reconhece que sua prática segue o modelo
de ensino tradicional, ao afirmar que:

A gente ensina ainda hoje no tradicional muito bem. A nossa formação nos
ensinou assim. Nós somos formados para ser esse tipo de professor,
mesmo que ultimamente tende a tomar outros rumos, ainda não
conseguimos sair do tradicional, e só dando uma biliscadinha no novo. É um
pé no tradicional que não sai e têm muitos pontos positivos. A gente ainda
ensina como a gente aprendeu, temos que melhorar, mas todo professor
tem ainda essas questões muito presente, não tem como não ter (Trecho
da narrativa da Professora Sol, 2012).

Segundo a narrativa da Professora Sol, o ensino tradicional ainda é reforçado na


prática de muitos professores, inclusive na sua, consequente da falta de uma formação
consistente desvinculadas das necessidades imediatas dos sujeitos em aprendizagem, uma
formação hegemônica pensada para atender a fins políticos, permeadas por um currículo
homogêneo, monocultural e urbanocêntrico. Deste modo, desenvolver atividades em sala
de aula considerando a escola como um lugar de cultura, de encontro de culturas é um
grande desafio para os professores que atuam em espaços rurais. Na perspectiva de Vlach
(2008), a Geografia Tradicional citado por Sol é aquela que:

Parte de uma concepção abstrata do homem e de sociedade, que não


considera as contradições (de classes entre outras) e a complementaridade,
isto é, que praticamente desconhece as relações e poder que permeiam o
tecido social e o Estado Nação enquanto a forma de organização política da
sociedade capitalista e moderna [...] (VLACH, 2008, p. 4).

Neste sentido, é necessário pensarmos numa formação adequada aos diversos


contextos sociais e culturais em que os indivíduos estão inseridos. É imprescindível investir
na formação destes profissionais que atuam em espaços rurais, pois a formação docente
inicial e continuada no ensino de Geografia para atuar nestes espaços de aprendizagem da
roça é necessária para auxiliar o docente em seu devir profissional, dando-lhe uma formação
mais adequada com a sua atuação, melhorando o seu desempenho docente nestes espaços.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 45


Diante destas considerações, afirmo também que, ao formar um profissional em
educação, é necessário que este professor, ao adentrar qualquer espaço de aprendizagem,
assuma o compromisso com a escola para alcançar êxito no processo de formação do sujeito
crítico e reflexivo, ao invés de puramente trazer para os alunos da roça uma atuação
docente desvinculada da realidade deste espaço.
Neste sentido, é importante refletir sobre a contribuição da Universidade no âmbito
da formação docente para o ensino de Geografia nas escolas localizadas em espaços rurais.
Seria viável, e necessário, que os cursos de Licenciatura, proporcionassem aos seus alunos-
professores, uma formação mais ampla, efetiva e direcionada também para este espaço.
Vale ressaltar também que é necessário e urgente que o Município de Serrinha dê às
escolas da roça uma maior atenção porque muito mais do que imaginamos, é comum
encontrarmos professores na escola rural atuando em disciplinas em que não possuem
formação específica, contribuindo ainda mais para a desvalorização do ensino nestes
espaços escolares localizados em espaços rurais.

Entre os caminhos trilhados, algumas considerações...

Os estudos (auto)biográficos trazidos pela memória, ressignificado pelo


imbricamento da história pessoal e profissional têm contribuído de forma categórica para as
pesquisas educacionais, nos oferecendo uma gama de elementos essenciais para
compreendermos as razões e origens pelas quais os professores em atuação tem se
constituído na profissão docente.
De tal modo, a (auto)biografia nos permitiu compreender algumas tessituras da
Professora Sol, ao tecer suas histórias, reviver os dilemas e as marcas que tiveram origem no
seu passado e que, de alguma forma, refletem no presente, na sua atuação docente
enquanto professora de Geografia numa escola da roça, localizada no Povoado de Isabel, na
zona rural de Serrinha-BA.
A Professora Sol traz em sua trajetória de vida e formação, algumas incertezas
quanto à sua profissão docente, docência esta constituída pela segurança de um concurso
público e não pelo desejo e/ou vocação de experienciar e estar na profissão docente, como
também pelas influências daquelas pessoas que já convivera/convivem com ela, os
problemas familiares, o conflito consigo próprio em relação sua profissão e formação. São
questões que de alguma forma, influencia na sua atuação profissional e que, são
compreendidas quando analisamos a tríade vida-formação-profissão desta professora.
Ao narrar uma história de vida-formação-profissão, neste trabalho, é importante
perceber que as experiências e aprendizagens vividas ao longo da trajetória pessoal e
profissional da Professora Sol tornaram-se processos constantes de formação, isto porque,
para Souza (2004), a formação integra a construção da identidade social, pessoal e
profissional que envolvem saberes, experiências e práticas. Desta forma, a formação é um
“movimento constante e contínuo de construção e reconstrução da aprendizagem pessoal e
profissional” (SOUZA, 2004, p. 55). Nesta perspectiva, as aprendizagens constituídas tornam-
se um processo contínuo de descobertas e/ou redescobertas, de permanente busca, de
outras aprendizagens e outras experiências que vão nos moldando, dando outras formas de
pensar e agir, pois muitas transformações acontecem ao longo de nossas vidas, como
salienta Josso (2004).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 46


Assim, ao rememorar suas experiências e refletir sobre elas, estas lembranças
permitiram à Professora Sol redimensionar as marcas deixadas pelas primeiras vivências
escolares e nos cursos da sua trajetória de formação profissional, expressando suas
dificuldades e as subjetividades implícitas nestes processos. De tal modo, os excertos
narrativos desta professora pesquisada/colaboradora nesta investigação têm possibilitado
entender como uma pessoa/profissional itinerante estabelece sentidos a sua história, as
suas experiências formadoras inscritas em suas identidades e subjetividades construídas ao
longo da vida, embora muito ainda esteja por entender e dizer, mas tem contribuído para
compreender a dinâmica de quem exerce a profissão docente numa escola inserida num
espaço rural.
É importante também frisar que é necessário pensar em uma escola em que o
professor também esteja consciente da sua participação neste processo de transformação
social, ao invés de puramente ser um professor com uma visão pouco aprofundada do
espaço rural e de seus alunos moradores deste lugar, rotulando-os como ser “ignorante”
sem “cultura”, “inferior” e que não pensa e para ser considerado “gente” precisa sair deste
lugar “atrasado”, “pequeno” que não tem nada a oferecer. Assim, não acreditamos que o
aluno da roça, por ser deste espaço, deve ali permanecer e não possa escolher o seu
caminho, a questão envolve uma gama de outras questões que não se esgotam aqui!

Referências: alimentando a prosa com...


BUENO, Belmira Oliveira. Histórias de vida de professores: a questão da subjetividade.
Universidade de São Paulo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 11-30, jan./jun.
2002.
CHAVES, Silvia Nogueira. Memória e auto-biografia: nos subterrâneos da formação docente.
In. SOUZA, Elizeu Clementino de. (Org.) Autobiografias, histórias de vida e formação:
pesquisa e ensino. Porto Alegre: EDIPUCRS; EDUNEB, Salvador, 2006, p. 161-176.
FERNÁNDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, p. 4-77.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
KHAOULE, Anna Maria Kovacs. O Estágio Supervisionado e suas contribuições na formação
do professor de Geografia. In: BENTO, Izabella Peracini, OLIVEIRA, Karla Annyelly Teixeira de
(Orgs.). Formação de professores. Pesquisa e Prática Pedagógica em Geografia. Goiânia:
PUC, 2012. p. 57-78.
OLIVEIRA, Marlene Macário de. A geografia escolar: reflexões sobre o processo Didático-
pedagógico do ensino. Revista Discente Expressões Geográficas. Florianópolis – SC, Nº02, p.
10-24, jun/2006.
RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. Entre a roça e a cidade: identidade, discursos e
saberes na escola. EDUFBA: Salvador: 2008.
RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. Professores da cidade, alunos da roça: Identidades
e discursos na escola. Educação e Ruralidades. Revista da FAEEBA –Educação e
Contemporaneidade, Salvador, v. 20, n. 36, p. 127-136, jul./dez. 2011.
SANTOS, Fábio Josué Souza. Por uma escola da Roça. In.: Revista FAEEBA – Educação e
Contemporaneidade, Salvador. V. 12, n. 19, p. 147-158. jan./jun. 2003.
SANTOS, Fábio Josué Souza. Nem “tabaréu/oa”, nem “doutor/a”: O/a aluno/a da roça na
escola da cidade – Um estudo identidade e escola. 2006. 220 f. Dissertação (Mestrado em
Educação e Contemporaneidade) – Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2006.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 47


SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: narrativas do itinerário escolar e
formação de professores. 349 p. Tese de doutorado (Programa de Pós- Graduação em
Educação da Faculdade de Educação) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
SOUZA, Elizeu Clementino de. A arte de contar e trocar experiências: reflexões teórico-
metodológicas sobre história de vida em formação. Revista Educação em Questão. Natal |
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metodológicas e formativas. In.: SOUZA, Elizeu Clementino de; ABRAHÃO, Maria Helena
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VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Docência como atividade profissional. In: VEIGA, Ilma Passos
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amanhã: notas para um debate. In: I Colóquio Brasileiro de História do Pensamento
Geográfico, 2008, Uberlândia. Anais... I Colóquio Brasileiro de História do Pensamento
Geográfico. Uberlândia: UFU/Instituto de Geografia, 2008.
JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin W. Entrevista narrativa. In: BAUER, M. W.;
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Tradução de Pedrinho Guareschi. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 90-113.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 48


Entre o ensino de Geografia e o cordel, a história de um geógrafo cordelista

Ailson Porcino de Araujo


UNEB/Campus XI
ailson.porcino@gmail.com
Simone Santos de Oliveira
UNEB/PPGEduC/GRAFHO
ssoliveira_valentec3@yahoo.com.br

Este artigo é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso–TCC, empreendido no âmbito do Curso de


Licenciatura em Geografia do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia-UNEB que tem
como objetivo discutir a literatura de cordel como uma diferente linguagem no processo de ensino de
Geografia na educação básica. Neste recorte específico, a intenção é socializar parte da trajetória formativa de
um professor de Geografia em formação que se constitui um cordelista e discutir as aproximações e
proposições metodológicas para o ensino de Geografia ancoradas no cordel, sobretudo sinalizar temas e
conceitos da Geografia escolar que podem ser evidenciados, discutidos e aprendidos a partir de textos
literários e xilogravuras de cordéis construídos pelo mesmo professor cordelista. Além da discussão que
envolve o ensino de Geografia e o cordel como uma linguagem para intermediar conceitos e temas da
Geografia escolar, este trabalho intenta também desvelar elementos que constituem a história de vida e de
formação do professor cordelista que se encontra em processo de formação docente e socializar algumas de
suas produções da literatura em cordel, de modo a evidenciar que é possível relacionar eventos da formação e
da profissão com os fatos e fenômenos (auto)biográficos.
Palavras-chave: Geografia; História de vida; Literatura em Cordel.

Iniciando a prosa: a história de um geógrafo cordelista

Este artigo é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso–TCC, empreendido no


âmbito do Curso de Licenciatura em Geografia do Departamento de Educação da
Universidade do Estado da Bahia-UNEB que tem como objetivo discutir a literatura de cordel
como uma diferente linguagem no processo de ensino de Geografia na educação básica.
Neste trabalho específico, a intenção é socializar parte da trajetória formativa de um
professor de Geografia em formação que se constitui um cordelista e discutir as
aproximações e proposições metodológicas para o ensino de Geografia ancoradas no cordel,
sobretudo sinalizar temas e conceitos da Geografia escolar que podem ser evidenciados,
discutidos e aprendidos a partir de textos literários e xilogravuras de cordéis construídos
pelo mesmo professor cordelista.
Além da discussão que envolve o ensino de Geografia e o cordel como uma
linguagem para intermediar conceitos e temas da Geografia escolar, este trabalho intenta
também desvelar elementos que constituem a história de vida e de formação do professor
cordelista que se encontra em processo de formação docente e socializar algumas de suas
produções da literatura em cordel, de modo a evidenciar que é possível relacionar eventos
da formação e da profissão com os fatos e fenômenos (auto)biográficos, uma vez que:

Sentir que somos Terra nos faz ter os pés no chão; sentir sua
força, às vezes, ameaçadora, às vezes, encantadora. Sentir a
Terra é sentir a chuva na pele, a brisa refrescante no rosto, o
sol escaldante dos trópicos em todo o corpo. Sentir a paixão
que queima o corpo e o coração. Sentir a Terra é explodir

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 49


sentimentos em versos, em poesia! (MARANDOLA JR, GRATÃO,
2010, p. 321).

Esta citação de Mandarola Jr. e Gratão (2010) retrata bem o potencial reflexivo que a
poesia e a literatura podem trazer para as nossas vidas, ao expor que ser Terra é, ao mesmo
tempo, sentir-se Terra e ao sentir a Terra no sabor da chuva, do sol, do vento, na leveza do
pensamento e na poesia falada, imaginada, sentida, vivida, damos sentido àquilo que está ao
nosso redor, uma vez que somos Terra e parte dela, pois Terra é aquarela, não só constituída
por cores, mas de sentidos, de sabores e de amores.
Para manter esse punhado de prosa, vou iniciar falando da minha infância e como se
delineou a minha relação com o Cordel e a Geografia e a tessitura de sentidos que
elencaram a minha história e assim ir de encontro aos fatores que meandraram a
justificativa pela escolha da temática deste trabalho. E, para tanto, recorro às minhas
trajetórias de vida e de formação que se imbricam com as possibilidades da utilização do
Cordel como um artefato em potencial para o ensino de Geografia na educação básica, a
partir das minhas produções de cordéis, consideradas como uma linguagem que podem
propiciar a intermediação de conceitos e temas da Geografia escolar.
Nasci em 23 de janeiro de 1987, fui criado na zona rural do município de Serrinha, em
uma localidade de nome Tabuleiro. Sou filho de lavradores e desde muito cedo foi se
estabelecendo uma necessidade de trabalhar na roça como meio de ajudar os meus pais nas
suas labutas. Assim, fui criado na lida árdua do trabalho familiar rural.
Com minhas limitações de infância, estava, muitas das vezes, mais voltado ao
trabalho como uma necessidade do que às diversões de direito à toda criança da minha
idade e, isso de certo modo, me incumbiu desde cedo noções de responsabilidade.
Lembro-me que sempre dividia o tempo entre os trabalhos na roça e a escola, pois
meus pais por terem pouca escolaridade, alegavam a falta de oportunidade que tiveram
para o estudo em suas épocas e, apesar das limitações culturais e econômicas, sempre
priorizaram a escola em nossas vidas. Era muito comum na minha infância os meus pais
relatarem que não queriam que nenhum dos seus quatro filhos tivessem a mesma vida que
eles e nos incentivavam. E, mesmo diante das condições financeiras limitadíssimas, não
deixavam de nos fornecer os materiais mais básicos para frequentarmos a escola, lembro-
me inclusive, que ao final do ano, em que coincidia com a safra da castanha do caju entre os
meses de novembro a início de janeiro, ficávamos na expectativa da coleta desses frutos e
com sua venda comprar os materiais escolares.
E, assim foi se dando o período de vivência da infância, “ao sabor” dos trabalhos
árduos, da escola e das brincadeiras que nos divertiam por essência, repletas de criatividade,
improviso e imaginação. Aos banhos nos riachos, as pescarias, “aos babas10” de final de
tarde em um terreno próximo ao açude da comunidade, as brincadeiras no pé de tamarindo
na casa da minha vó materna, os brinquedos criados manualmente, era tão intrínseca a
relação com a escola nos anos iniciais, ao ponto de sermos escalados pelas merendeiras da
época para providenciar lenha para fazer a merenda, pois dificilmente os responsáveis pelo
abastecimento da merenda forneciam também o botijão de gás e, como não aceitávamos a

10
Futebol com curto tempo, cujo objetivo é proporcionar o lazer entre amigos no espaço rural onde
morávamos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 50
ideia de ficar sem merenda, formávamos “equipes” que se responsabilizavam em
providenciar os feixes de lenha para o preparo da merenda escolar.
Estudei a terceira e a quarta séries em uma escola distante de casa, e as memórias
que me cercam são do trajeto percorrido até chegar lá, pois era distante e, às vezes,
percorríamos um atalho em que “cortávamos” pastos com inúmeros arames farpados com
variadas vegetações, passávamos por açudes onde pescávamos ou tomávamos banhos,
essas foram algumas das experiências que contribuíram para marcar o vivenciar a escola
naquele período. Lembro que a área da escola era grande e chamávamos de “terreiro”, onde
tínhamos oportunidade de descontrair e ali brincávamos, pelo menos, no meu caso, para
compensar os momentos em que estava centrado nas reponsabilidades do trabalho na roça
com meus pais. Era na escola que eu me refugiava e me sentia menino, lugar que marcou a
minha vida. Como a escola se situava distante de casa, me locomovia diariamente a pé e
depois de muito tempo, com muitos esforços do meu pai, ganhei uma bicicleta usada, que
por sinal não condizia com o meu tamanho na época, me obrigando a subir em barrancos
mais altos todas as vezes que necessitasse me equilibrar nela para prosseguir viagem.
Foram momentos que ficaram no recôndito das minhas lembranças.
Foi nesse período de escola que tive acesso aos livros de estudos sociais, um
compêndio histórico e geográfico da Bahia mesmo de forma muito simplista. Os conteúdos
de Geografia e de História que mais me chamava atenção naquela época eram os que
retratavam o sertão, abordagens frequentemente fiéis às paisagens secas, ao lugar
hostilizado, enfim em uma concepção muito naturalizada da seca e dos contrastes sociais.
Lembro também dos frequentes elementos folclóricos e culturais que também eram
abordados e das cantigas de roda presentes nestes livros em que lia para minha avó paterna
Ana, mais conhecida como “Anita”, e ela recitava poemas de cordel que conhecia e cantava
frequentemente as cantigas regionais e religiosas na nossa casa.
Presenciava frequentemente as praticas religiosas de um cristianismo primitivo tanto
da minha avó paterna como materna.

Minha avó Anita e o bê a bá do (ser) tão ABC dos cordéis

Quanto à minha avó paterna, a leitura era um requisito frequente que me fazia
devido as suas impossibilidades de exercer a pouca leitura que tinha, pois ela alegava que
não conseguia ler as letras “miúdas” (pequenas) como ela mesma costumava dizer por causa
das “vistas curtas”, esse ritual de leitura se dava sempre na varanda de casa, sob uma “cama
de vento” assim chamada por ser feita de cordas de sisal ou comumente de caroá sob
algumas madeiras entrecruzadas a qual minha avó se assentava para passar o dia a tecer
suas tranças de chapéu de palha, ou pindoba como é comumente conhecida. Era dali que
diariamente ouvíamos seus versos, poesias e benditos, ou quando chegava alguma visita em
casa ela demonstrava prazerosamente a sua sensibilidade poética sempre recitando um
verso e “arrancando” gestos espontâneos em sorrisos e elogios. Posso dizer que minha vó
era multimídia tamanha a sua habilidade com as palavras, com a poética e com a
imaginação.
Quando convidado a sentar na cama para ler para ela, naquele momento, virávamos
interlocutores, era comum ouvir dela a seguinte expressão: “é meu fio, meu estudo é pouco,
nasci e me criei sem saber o que é um banco de uma escola”. Minha avó sempre nos dizia

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 51


que nunca foi à escola, mas o pouco que aprendeu a ler foi com “os outros” à noite, sob a luz
do candeeiro, já que durante o dia trabalhava arduamente na roça e não tinha como dar
“ligança” a estas coisas, como ela mesma dizia. E, mesmo não ter frequentado a escola,
minha avó habilitou-se suficientemente bem na leitura, embora nada soubesse fazer de
escrito, pois era da gaveta da mesinha do antigo oratório, com cheiro de coisa antiga, onde
ficavam as imagens dos santos herdados da sua mãe, que eu encontrava seus velhos
livrinhos os quais lia curiosamente.
Sempre considerei minha avó um verdadeiro livro vivo, a história, a literatura e a
poesia em pessoa, lembro que uma das coisas que ela mais gostava de ouvir nas minhas
leituras eram alguns benditos desses livrinhos antigos que ela tinha, ou muito
frequentemente algumas histórias que os livros contavam do cangaço e de Lampião. Ainda
lembro quando ela pedia para que lesse versos que falavam de Lampião e um dos que ela
mais gostava de ouvir era o seguinte:

Lampião tava dormindo


Acordou com dor de dente
Deu um tiro no umbuzeiro
Pensando que era o tenente [...]

Ao término da minha leitura, era correspondido com alguns risos saudosos, ela de
prontidão retribuía com o que sabia, dentre eles lembro perfeitamente desses:

Ôlê Mulé rendêra


Ôlê mulé renda
Tu me ensina
a fazer renda
Que eu te ensino
a namorar [...]
Acorda Maria “Bunita”
Acorda pra fazer café
O dia já tá raiando
E a “puliça” já tá de pé [...]

Minha avó nasceu no dia 20 de julho de 1909, órfã aos quatro anos de idade,
vivenciou mesmo que indiretamente diversos períodos conturbados nesse meio tempo,
refere-se aqui às duas guerras mundiais, presenciou de certa forma diversos regimes
presidencialistas no país, distintos episódios políticos, revoluções, dentre eles o cangaço,
como ela mesma contava – que ainda criança quando a mãe dela ouvia rumores de Lampião
e seu bando estarem “dando para os lados de cá” como a mesma dizia, pegavam algumas
coisas, como um pouco de comida, umas cobertas e esteiras de pindoba para dormirem à
noite pelos matos, sempre debaixo de um pé de “laranjeira braba”, próxima a uma fonte de
agua refrescada pela sombra do arvoredo em suas bordas, nas terras de sua mãe, de nome
Fazenda Suçuarana, atribuído este nome por terem matado uma onça vermelha de nome
suçuarana que andava vagando aquelas redondezas.
Cresci ouvindo suas histórias, lendas, casos de assombrações ou visagens como ela
mesma falava, ou na frequente presença de seus vários amigos e amigas em idade
semelhante que a visitava, eu ficava a escutar os casos contados, e lembro perfeitamente
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 52
até hoje uma das histórias que um dos seus compadres de nome Rafael lhe contava,
segundo ele – quando menino, tinha visto uma galinha diferente com pintinhos em um local
remoto na serra denominada Serra de São Caetano11 que tem na nossa localidade e que essa
galinha e seus pintinhos sumiram do nada, alegando ele ser o “ouro” que se encantou e
apareceu para ele em forma de visagem. Sobre estas crenças populares em torno da serra
de São Caetano corrobora Oliveira12 (2004), ao dizer que; “Ainda hoje, quando se aproxima a
trovoada, nas tardes e noites de atmosfera carregada, uma luz mortiça percorre a serra. O
povo da região diz que é espírito do ouro encantado” (OLIVEIRA, 2004, p. 42).
Outra crença que ela nos contava era a respeito dos festejos da noite de São João,
quando dizia que quem ouvisse o galo cantar a meia noite, quando se comemora o
nascimento de João Batista, viveria mais de cem anos. Já cheguei a tentar por muitas vezes
quando criança resistir ao sono para ver o galo cantar de tão convicto a essas crenças.
Coloco aqui também a riqueza de alguns saberes populares que presenciei para
justificar a escolha deste objeto, em meio a tantas narrativas, como as profecias do tempo
ou “a ciênça dos mais velhos” como ouvia dizer, estes eram interpretados segundo os sinais
da natureza que definiriam se o ano seria bom ou não, se demonstravam se iria chover em
breve ou fazer sol, se o inverno seria bom, ou se as trovoadas não “iam negar”. Aqui refiro-
me a alguns como os doze punhados de sal em uma tábua na virada do ano no intuito de
verificar quais os meses do novo ano seriam de chuva ou não, de acordo àqueles punhados
que representavam cada mês do ano e se estes ao amanhecer permaneceriam secos ou
úmidos; a crença em torno da flor do mandacaru que ao desabrochar só cairia com a chuva,
os distintos comportamentos de alguns insetos que significariam que ia chover ou fazer sol;
as características e disposição das nuvens no céu indicaria se o dia seria de sol ou chuva;
alguns planetas visíveis no horizonte à noite e como estes se comportavam também eram
motivos para interpretação do tempo, como tantas outras crenças que cresci ouvindo.
Lembro-me das conversas das pessoas mais velhas sobre o período que compreendia
o “inverno”, quando sinalizavam que as chuvas iniciavam no final do mês de abril ou início
de maio e se estendia em torno do final de agosto ou início de setembro. Independente da
definição oficial do calendário das estações do ano, cresci ouvindo dos meus familiares a
definição do plantio e da colheita a partir de duas destas estações. O inverno sempre tido

11
A Serra de São Caetano é situada em meio a quatro localidades, que são elas; Tabuleiro (onde reside o
autor), Bela Vista, Praianos e Lage, esta serra além de ser um dos mais significativos redutos de peregrinação
religiosa no período da Semana Santa com a tradicional procissão do fogaréu na Quinta Feira Santa, tem a
celebração da Via Sacra e Oficio na madrugada da Sexta Feira da Paixão. Sendo um dos mais antigos e
tradicionais acontecimentos religiosos do município de Serrinha, pois a construção de um pequeno reduto de
orações denominado “Cruzeiro” data de 1913, porém há relatos de que estas práticas religiosas já aconteciam
muito antes. Foi palco de outro significativo acontecimento histórico para o município de Serrinha, ao lado sul
dessa Serra, entre as localidades de Praianos e Lage foi ambientado o cenário de refúgio de escravos evadidos
provenientes do Recôncavo Baiano e que se instalaram ali provavelmente por está as margens de uma estrada
de boiadeiro que seguia para outros estados do Nordeste, principalmente o Piauí, esta mesma estrada também
era rota para os exploradores de ouro de Jacobina, aonde viria a se denominar Quilombo da Flor Roxa, sendo
mais tarde dizimado os escravos que ali se instalaram pelo capitão do mato José Joaquim, outra figura que
ficou marcada por histórias lendárias.
12
Antonio José de Oliveira nascido em 27 de julho de 1943, no município de Riachão do Jacuípe Bahia, reside
no povoado vizinho de Bela Vista. Formado em Teologia, Pedagogia e Psicanálise Clínica. Estudioso da História
da serra de São Caetano e povoados circunvizinhos. Autor do livro em que foi extraída a referida citação:
Principais Raízes do Nosso Povo: O indígena, o africano e o português.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 53
como o período chuvoso, de plantio de culturas temporárias, como o milho, o feijão, a
batata, amendoim, etc. e o verão como uma estação de predominância do sol e tempo seco,
considerada a estação propícia às trovoadas.
Ah! O “inverno”! Tempo de expectativas para o plantio, tempo de chuva fina e frio,
de ventos litorâneos prenunciadores da sua chegada, com sua fina e constante chuva que a
terra deixa molhada. Ah! O vento! Vento que varria e empoeirava a estrada nas tardes
findadas, de brincadeiras inventadas.
Minhas vivências sempre foram movidas e ligadas às sazonalidades de cada época do
ano, as distintas frutas em seus períodos que davam um sabor singular a cada época, aos
plantios e safras de “inverno”, as rancas de mandioca e a labuta na casa de farinha.
Eram práticas frequentes das pessoas mais velhas na nossa localidade, destacando-se
as cantorias populares, samba de roda, bata de milho e feijão, rezas, geralmente composta
pelas mais variadas tradições populares e, embora eu não tivesse vivenciado algumas destas
coisas, reconheço que crescer em meio a estas narrativas foi algo que veio influenciar a
simpatia pela literatura popular. Inclusive atribuo muito a isso a minha relação com a
Literatura de Cordel, aos encantos da narrativa que presenciava nas histórias vivenciadas por
minha avó Anita, pois foi pela boca dela que ouvi muitos contos e histórias de cordéis, que
ela lia ou também ouvia quando criança e nos contava porque tinha uma memória vívida, os
folhetos de cordéis, como em vários outros cantos e com outras pessoas deste imenso
Nordeste, contribuíram para a inserção da minha avó Anita no mundo da leitura.
Com frequência ouvia clássicos da literatura de Cordel como A vida de Pedro Cem, e
aqui abro parênteses para dizer o quanto minha avó Anita se utilizava da mensagem dessa
clássica história para tirar exemplos de que não devíamos ser gananciosos, pois muito
frequente ouvia dela “Pedro cem também tinha de tudo e acabou sem nada”. Minha avó se
espelhava na educação que deu aos seus cinco filhos e relatava trechos de alguns temas do
Cordel para nos educar, como fragmentos de cordéis intitulados A vida de Canção de Fogo e
o seu testamento, O cavalo que defecava dinheiro do grande mestre Leandro Gomes de
Barros; A chegada de Lampião no inferno, Grande debate de Lampião com São Pedro, de
José Pacheco da Rocha; Piadas do Bocage, de Antônio Teodoro dos Santos; A guerra dos
pássaros de Manoel de Almeida Filho; Presepadas de Pedro Malasartes, de Francisco Sales
Arêda; No Tempo em que os Bichos Falavam, Elias e a Princesa Açucena, de Manoel Pereira
Sobrinho. Ouvia frequentemente, ora por meio de casos, histórias ou romances, estes
clássicos da Literatura de Cordel, tamanha era a importância do Cordel, muitas das vezes
chegava até a confundir realidade com ficção, para minha vó como para algumas outras
pessoas estes livretos eram mais conhecidos por ABC.
A nominação mais generalizada para estes folhetos é proveniente da forma com que
alguns folhetos do gênero tratavam de certos temas, por discorrerem determinados
assuntos obedecendo a ordenação do alfabeto, e assim ficou corriqueiro o nome no meio
popular, inclusive em se tratando de outras obras do Cordel que não eram no estilo ABC. Até
porque, quando algum assunto era digno de “render comentários” ouvia frequentemente
dela a seguinte expressão – Tá bom de fazer um ABC – Fazendo uma alusão aos
acontecimentos da cotidianidade e que subentendiam que de “tão inusitados” esses temas
se igualariam e ganhariam importância àqueles tratados em algumas narrativas dos folhetos
de cordel.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 54


Para exemplificar, podemos observar um exemplo do que seria a estrutura de um
ABC, na obra repercutida somente na narrativa oral, de José Farias, mais conhecido como
padrinho José (1918-2007), intitulada o ABC da Fazenda Formosa. O trecho diz:

A Fazenda da Formosa
É fazenda garantida.
Deu uma carreira no boi
E foi parar na bebida,
Morrendo de fome e frio,
Dando a viagem perdida.

Bons cavalos, bons cachorros


Os vaqueiros conduziam.
Nem que fosse como um veado
Com esse boi eles corriam,
Mas corriam o dia inteiro
Até cansavam e caíam.

Camilo de Augustinho
Com fama de bom vaqueiro,
Mas foi ele quem deixou
O boi ir embora primeiro.
Se fosse ele eu não ia em casa
Nem para ganhar dinheiro

Dava Francisco uma banda


Quem desse o boi amarrado,
Reuniu a vaqueirama,
Ficou tudo variado.
Cavalo com corredor,
Ficava entregue, cansado.13

Como se observa no exemplo acima, cada estrofe dessa narrativa em forma de


sextilhas segue os parâmetros do que se constitui uma modalidade de ABC, em que as
iniciais de cada estrofe são ordenadas pelas letras do alfabeto.
A literatura de cordel foi tão incorporada na cotidianidade das pessoas por meio da
diversidade de temas tratados e do potencial de informar divertir e entreter, e até de
convencer, que a exemplo da minha avó, que insistia convictamente na ideia de que houve
uma época “no início do mundo”, como ela mesma dizia, em que os bichos realmente
falavam esta crença atrelada ao cordel No Tempo em que os Bichos Falavam de Manoel
Pereira Sobrinho foi tida como verdade, como em inúmeros outros casos em que alguns
contos na literatura de Cordel eram tão levados a sério. A veracidade dada a estes mitos têm

13
Informações levantadas por Marco Haurélio no livro: Breve História da Literatura de Cordel (2010, p. 48), o
mesmo faz uma alusão a narrativa oral de seu conterrâneo, um poeta praticamente anônimo do interior da
Bahia, na cidade de Riacho de Santana, em que este “trata” do um fato verídico de um boi que despistou tudo
quanto que é vaqueiro na tentativa de sua captura, sendo que o único vaqueiro que conseguiu capturá-lo e
leva-lo ao mourão foi o vaqueiro Fulozino, e como de práxis após o ato de astúcia e coragem premiou-se o
vaqueiro com uma “parte” do boi como forma de recompensá-lo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 55
certa influência das crendices populares e nos vestígios também de uma religiosidade
primitiva, pois seguindo essa lógica iria de encontro às narrativas bíblicas da criação do
mundo em que estava em primeiro plano da criação divina a existência dos animais e, por
último, a espécie humana, e “nesse meio tempo os animais teriam sido protagonistas dessa
façanha”.

As bússolas que me direcionaram para a Licenciatura em Geografia

Viver em meio às narrativas orais foi uma constante para mim, diversos elementos
delineadores da construção do sentimento topofílico se entrecruzaram neste percurso. E daí,
explico em primeira instância a proximidade com a Geografia, mesmo que de forma
inconsciente, pois posteriormente fui reafirmando essa proximidade com as afinidades que
tinha com essa disciplina na escola ou com disciplinas afins.
Desde pequeno fui grande apreciador dos livros de ciências e daqueles que
continham histórias, versos e poesias, marcas da influencia interlocutora da minha avó
Anita. Lembro-me que geralmente só tinha acesso aos livros didáticos e refugiava a minha
timidez nestes poucos livros ou revistas, muitas das vezes recortadas da escola, para saciar
meu imaginário. Na escola, nos anos iniciais, a minha leitura era movida por visões
romancistas de assuntos que condiziam a Geografia, vinculada com a disciplina de Ciências,
quando eram expostas temáticas relacionadas à natureza e que descrevia ou fazia relação
com o semiárido. E, por já conviver tão intensamente no meu cotidiano com situações
evocadoras de um ideário de grandiosidade de natureza ambientada na nossa caatinga, e
refiro-me a “nossa caatinga” pelo vivenciar de forma tão próxima esse ideário, fica
encantado com essas questões regionais. E, isso, desde se embrenhar nas mais ásperas
vegetações para a coleta de lenha ou ração para os animais nas secas mais severas quando
menino, à satisfação de ver o cheiro que essa vegetação e a terra ganhavam quando caía a
chuva, pois o cheiro de mato molhado e terra são inconfundíveis como o aroma de um café
espumante (daqueles processados no pilão) em um final de tarde fria, memórias que me
veem das águas dos riachos em que brincávamos chuvas de trovoadas que mal se infiltravam
no solo e já estavam escorregando ligeiramente riacho abaixo, como a oportunidade de
acordar ao amanhecer com a alvorada dos pássaros.
Algo que me marcou bastante também foi o “ideário de cidade”, pois nestas épocas
de infância já cumpria a rigor a responsabilidade de auxiliar minha família nos diversos
trabalhos, como nas safras de manga que sazonalmente levava meu pai e alguns de nossos
familiares a se dirigir a duas cidades para comercializar mangas, eram elas: Serrinha, situada
à treze quilômetros de distância, e Candeal a quinze quilômetros aproximadamente, ou
como dizia meu pai, “pra mais de duas léguas”, quanto a Serrinha geralmente tinha um
ônibus que transportava as pessoas para a cidade e mercadorias que iam ser vendidas nela,
pois não tínhamos problemas com o transporte para levar as mercadorias para
comercializar na cidade.
Quanto a Candeal, lembro-me perfeitamente das caravanas de carroças que eram
formadas por meu pai e alguns tios pela madrugada para levar as mangas à feira. E, lá
vendíamos e ao final da tarde retornávamos, embora fosse uma cidade muito pequena
como de certa forma ainda se preserva atualmente, não me incumbia tanta expectativa
quanto “o ir a Serrinha”, já diferenciava ambas ao achar Serrinha uma cidade maior e mais

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 56


movimentada, e assim criava uma expectativa de “ideário de cidade” com apreensão, pois o
estar na cidade enquanto criança da zona rural era algo meio que vislumbrante. Nesse
período ainda tive a oportunidade de presenciar a feira quando esta ainda era realizada na
praça Luiz Nogueira nos inícios da década de noventa.
Embora beba na fonte de alguns geógrafos que defendem a não existência da
dicotomia campo cidade e sim das ruralidades e urbanidades que cada uma em suas
especificidades comportam e que atualmente se fazem mais presentes do que nunca, sendo
assim, os relatos anteriores são tentativas de descrever algo condizente com as minhas
vivências e memórias.
Ao chegar ao ginásio, no Colégio Estadual Aloysio Carneiro da Silva fui vivenciando
outras circunstâncias, pois a proximidade de algumas professoras e disciplinas me
direcionaram para minhas predileções e reconheço que a figura de algumas professoras
foram verdadeiras bússolas na orientação de algumas escolhas, inclusive para a Licenciatura
em Geografia.
Era na escola que encontrava a correspondência ao que me dedicava em um deleite
prazeroso, a escrita autônoma de diversos textos e versos, ora de adolescente vislumbrado
por suas primeiras paixões, às vezes nem correspondido, mas sentindo-se amparado
naquelas escritas, ora pelas mais variadas expressões de sentimentos de vivência da
cotidianidade, angustiosas, reflexivas, ansiosas e utópicas.
A escola era o único espaço possível para de algum modo me expressar, vivenciar e
estimular as minhas utopias, considerada um ambiente complementar a estes estímulos. Por
sinal, destaco como uma destas responsáveis as aulas de Biologia e Filosofia da professora
Marisane e da própria professora com suas provocações filosóficas que perpetuou o meu
desejo de ser não somente aluno, mas um curioso, um incessante investigador, alguém que
preza pelo conhecer. Reconheço que a disciplina de Geografia também cumpriu esse papel
impecavelmente e aqui também reconheço na professora Cássia, uma das minhas
motivações, suas discussões e abordagens nas aulas de Geografia tiveram grandes
significados na minha afinidade com esta ciência. O que mais gostava na disciplina era as
suas abordagens geopolíticas e interpretação da realidade social, o que achava uma
motivação para “o despertar” da consciência. Neste mesmo Colégio que estudei maior parte
da educação básica, nos anos finais da minha formação, fiz magistério e concluí no ano de
2006. No ano de 2008 tive uma experiência na docência nessa escola lecionando disciplinas,
como História, Ensino Religioso e Artes da 6° série ao terceiro ano, sendo crucial para
reafirmar minha escolha pela docência.
Inesquecivelmente estas professoras foram as responsáveis pelo meu ingresso na
universidade e torcedoras pela minha escolha em Geografia, e especialmente as professoras
Marisane e Conceição que, ao saberem da minha aprovação no vestibular, me levaram até o
passeio da escola, em uma daquelas manhãs de sol de agosto me parabenizaram pela
escolha em Licenciatura em Geografia e me motivaram a seguir adiante.

Universidade: o despertar para o fazer Geografia fazendo cordel

No segundo semestre do ano de 2009 ingressei na Universidade do Estado da Bahia –


UNEB, Campus XI de Serrinha, mas ainda em um início difícil, por dividir o estudo com as
obrigações de quem vive no espaço rural e pelas dificuldades advindas pelo ingresso na

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 57


academia. Logo em seguida no ano de 2010, realizei atividades como Educador Social em um
programa socioeducativo do município de Serrinha o Projovem Adolescente, vinculado pela
Secretaria de Ação Social, programa este, que me legou inúmeras outras experiências na
área da docência, pois tive a oportunidade de estar trabalhando oficinas temáticas
abordando inúmeros assuntos.
Contudo, o gosto pela Geografia e Literatura mesmo existindo, estava contido
interiormente, principalmente a simpatia pela Literatura de Cordel. E, aqui expresso melhor
como se deu minha aproximação com ambas, pois foi em um curso de férias em 2012, da
disciplina Educação Ambiental, na UNEB Campus XI, com o professor Marcos Paulo que
pensei mais seriamente na possibilidade vislumbrante da abordagem cultural entre a
Geografia e a Literatura de Cordel depois de ter recitado um memorial em forma de poesia
de Cordel, em uma das nossas aulas. Geralmente esse memorial era feito em trio, contudo,
estava se convertendo em simplesmente uma alusão descritiva das aulas anteriores e o
professor Marcos sempre alertava para estarmos apresentando aquela atividade de uma
forma mais lúdica e chamativa, pois achava que o memorial ainda estava muito descritivo e
quebrando a intenção primária da proposta que era dinamizar as aulas. Foi, então, de onde
surgiu a ideia, inclusive de contrariar o grupo ao qual fazia parte e elaborar por mim mesmo
um memorial em forma de poesia de cordel e, ao recitá-lo, percebi a aceitação positiva dos
colegas e do professor, inclusive com elogios e apoios pela iniciativa lúdica e diferenciada.
Esta poesia de Cordel apresentada na referida disciplina ofertada no curso de férias é
a que segue, embora se fosse alvo do julgo de um cordelista, este iria denominá-la como um
Cordel de “pé quebrado” por não apresentar a rítmica de uma estrofe de Cordel, ou não ser
em forma de sextilha ou setilha14. Aqui será colocada na integra com intuito de representar
fidedignamente sua finalidade inicial na aula de Educação Ambiental:

Memorial da aula Educação Ambiental


em Forma de Cordel

No dia vinte e oito de janeiro


as duas e quinze
começa a provocação
A colega Mariana
cobra a todos atenção
O professor em seguida
Faz uma recomendação

Para lermos uma matéria


Da Caros Amigos
Que trata da usurpação
Da nossa floresta querida

14
Termo utilizado na literatura de cordel e que retrata a sua estruturação. Para uma boa estruturação, o
cordel deve respeitar três requisitos básicos. Inicialmente, as rimas aproximam uma combinância sonora das
palavras, a oração em versos é que dá significado textual e a métrica seria a simetria precisamente. As estrofes
dos textos dos cordéis, além de obedecer estas determinações básicas para a sua construção, classificam-se em
sextilhas, que tem a maior utilização na literatura de cordel:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 58
Erroneamente entendida
Como do mundo pulmão.

Em seguida
Para o debate esquentar,
O professor passa um vídeo
Que da Educação Ambiental
Ao longo da História vem tratar

Nele alguém dizia


Que a causa ambiental
Desde 1800 já acontecia
Nessa época acredite,
Ia-se de encontro
Ao poder da autarquia
Pois a natureza degradada
Traz ao Homem melancolia.

As décadas de 40 e 50
O Pós-Guerra vem marcar
A recuperação econômica
Em que os países afetados
Começam se reestruturar
Mas essa recuperação
custou caro meu irmão
O custo dela foi a tal poluição.

No Brasil a indústria automobilística


acelera com JK,
Pois 50 em 5 anos
ele queria transformar

Na década de 60
os movimentos Libertários
começam a crescer
Nos EUA e Europa
A educação Ambiental
Começa a ferver

No Brasil se deu a ampliação


Do parque industrial
A natureza mais uma vez
Sob a lógica do capital

Na década de 70
Corre um cochicho mundial,
O mundo tá doente,
É a doença ambiental,
Assim surgem com força

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 59


Os levantes populares
É o povo se incomodando
Saindo de seus lugares

No Brasil uma árvore abraçada


É da ganancia poupada.
Nessa mesma década
Duas conferencias importantes
Na Geórgia e Suécia
Vão acontecer,
De lá saem leis importantes
Para o mundo proteger.

Na década de 80
O muro que separa cai
A Europa se redemocratiza
O Capitalismo cruel
O Socialismo pisa.

Em 86 na Ucrânia
Explode a usina nuclear
Ceifando muitas vidas
Pondo o mundo a se lamentar.

Na década de 90
Temos a Rio 92,
Muitas conferências
Vão se suceder
E o problema ambiental
Nada de resolver.
(Ailson de Araujo, 2013)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 60


A partir daí fui refletindo em torno da abordagem dessa temática em âmbito
acadêmico, o envolvimento mais acentuado com a ideia de trabalhar a literatura de Cordel
como artefato didático em sala de aula, até por perceber a ausência de abordagens desse
gênero literário e, principalmente, associados ao ensino de Geografia, pois sempre fui
movido por uma inquietação incessante, ao notar os poucos trabalhos relacionados à
Geografia Cultural e o quanto essa abordagem poderia trazer à tona discussões
extremamente relevantes, sobretudo na educação básica.
Nas experiências vivenciadas nos estágios supervisionados apareceram algumas
oportunidades para trabalhar o Cordel como artefato didático em sala de aula e exponho a
seguir o texto de Cordel que utilizei na Escola 30 de junho, na turma do terceiro ano B, do
ensino médio.

Tema: Energia e meio ambiente

Aqui estamos mais uma vez


Para da Geografia tratar,
Fazer uma grande viagem
Sem sair do nosso lugar,
Começaremos desse modo,
Para o tema não chatear.

O que foi antes discutido


Assim vamos relembrar
Energia e Meio Ambiente
Para a memória refrescar,
É esse tema interessante
Que iremos inculcar.

De antemão vou advertir


Que aprender Geografia
Não é o mesmo que decorar,
Para aqueles que têm mania
Desse modo interpretar,
Deve-se usá-la para
As “máscaras sociais elucidar”

O homem é responsável
Pelo espaço em construção
A sociedade modernizada
Se apresenta em contradição
Pois de tudo que é produzido,
É pouco que chega em muitas mãos

A exemplo da energia
Do mundo em produção
Onde amplia-se a riqueza
Gerando também exclusão

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 61


Pois no auge do acúmulo
Está a natureza em degradação.

Em torno disso
Há uma grande discussão
Certas fontes de energia
E sua utilização
São aquelas poluentes
Lenha, gás, petróleo e carvão.

Algumas estão no planeta


Em quase estado de extinção
Pois o seu uso intensivo
É causa dessa diminuição
Desde o mal ao ambiente
Pelo mal da poluição.

De energia limpa
Há também produção;
Hidrelétrica, eólica, geotérmica e solar
Apresentadas como prováveis soluções
Para alguns males ao ambiente amenizar
Servem até de discurso para o planeta salvar.
(Ailson Araujo, 2013)

E, assim, sucederam outros ensaios, como o da Feira Livre de Serrinha e As faces da


Região Nordeste que mesmo se constituindo de versos de “pés quebrados” são versos que
retratam temáticas da Geografia.
Sobre a questão de “pés quebrados”, alguns cordelistas afirmam que, em certos
casos como, por exemplo, os versos que criei durante o meu processo de formação inicial e
de atuação docente, como professor estagiário, “não se deve sacrificar uma ideia em favor
de uma rima”.

Feira livre de Serrinha

Numa quarta dia de feira,


Fomos à cidade observar,
A dinâmica espacial
Que configura a paisagem,
Demarca o território
E estabelece o lugar.

Na feira livre de Serrinha


Como no comércio formal
Foi possível perceber,
Que de modo integrado
O circuito inferior
Vem se estabelecer.

Uma grande característica


Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 62
No circuito inferior
São os pequenos lucros
De acordo ao volume de negócios,
Dinheiro, ligeiro
Como pólvora, tem que correr.

Para o acúmulo de capital


Em pouco tempo acontecer
Esse é o grande motivo,
Para o excedente se obter
O princípio da mais valia,
Aí se pode perceber.

Ao comprar mais mercadorias,


Para os negócios ampliar
Crescem os lucros no ato de vender.
Emprego não assalariado
E muitas vezes familiar,
Outra característica
Nesse circuito vem se revelar.

A visita à feira livre nos trouxe reflexão,


Que além de compra e venda
Aquilo tudo é uma interação.
No ato das relações sociais,
Está o espaço em construção,
Pois, além da sobrevivência,
Está a vivência do cidadão.
(Ailson Araujo, 2013)

As faces da Região Nordeste

Com muita atenção vamos tratar


do Nordeste querido
Bem representado por
Nove estados ‘unidos’,
Mas por uma parte do país
ainda despercebido

Pois além de região


Alguns consideram nação
Por sua grandeza e história
Sem falar da cultural composição
Da diversidade tremenda
Cantorias, rezas, e lendas
E da potencial disposição...

Recursos naturais,
Gente pra trabalhar
Tudo isso e muito mais
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 63
Se encontra por lá
Coisas que poderiam evitar
Aqueles que ali vivem
do seu lugar emigrar

Não se pode esquecer da caatinga


Um bioma espetacular
Com uma diversidade de espécies
Que não existe em outro lugar
Uma vegetação que aparenta está morta
Tem uma beleza singular
Cai umas gotas de chuva
E onde só tinha espinhos
Folhas e flores começam a brotar

E pra conversa continuar


Mais uma coisa vou lhe falar
Que a seca que ali existe
Não é só um fenômeno natural
é herança colonial
de uma elite perversa
e sua politica social

Gente faminta e tristonha


Que geralmente é passada
Construindo no imaginário coletivo
Que aquele povo vive um eterno castigo
De uma “sina que não acaba”

Dizem ser culpa de Deus


Por lá não chover
Desculpa criada
Pra verdade esconder,
Pois quem manda e decide
É a Oligarquia e o poder.
(Ailson de Araujo, 2013)

E, assim foram se constituindo as teias da minha história de vida, entre devaneios,


ardores da labuta na roça, palavras enrijecidas ou suaves, na sonoridade da vida, dos afetos
da família, do amor ao seio da terra, das memórias não esquecidas.

Para não concluir...

Destrinchando esse gênero


Da Literatura popular
Em textos e xilogravuras
A história a contar
Herança de grande riqueza
Que veio se perpetuar

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 64


Em forma de Cordel
Esse trabalho vou desfechar
Com uma pequena síntese
Do que se pode observar
Na narrativa (auto)biográfica
Fatos e fenômenos relacionar

Desse modo é possível


O que se sabe, em prática colocar
O Cordel como potencial
Para a Geografia ensinar
Valorizando-se a História de vida
E da vida o vivenciar
(Ailson de Araujo, 2014)

De fato, a Literatura de Cordel retrata elementos do cotidiano das pessoas, como os


modos de vida, tema explorado pela Geografia escolar que retrata fatos e vivências
populares em versos.
Penso que a Geografia, enquanto campo de ensino, possibilita abordagens
diversificadas em torno das suas temáticas, pois a escolha referente ao tema é uma tentativa
de tornar mais presente a discussão/sugestão em torno de alternativas que venham
contribuir e auxiliar o professor de Geografia no processo de mediação ensino-
aprendizagem, tendo a linguagem do Cordel como uma importante possibilidade para
ensinar e aprender temas e conceitos da Geografia escolar.
Por se constituir o Cordel, uma literatura que surge no meio popular, talvez ainda
exista alguma resistência a este enfoque cultural, não tão presente, tanto na escola, como
em trabalhos acadêmicos, pois é fundamental trazer à tona esta abordagem literária, não
somente para expor a relação desta literatura com a minha história de vida e de formação
profissional, mas, acima de tudo, ressaltar a significação que a mesma pode conferir à
prática docente, como algo que venha servir de interesse geral para a comunidade
acadêmica e pesquisadores da educação que, porventura, venham utilizar desse viés de
investigação.
E, assim, encerro esta prosa para poder continuar, valorizando a minha história de
vida e da vida o meu vivenciar.

Referências
Academia brasileira de Literatura de Cordel (ABLC). Disponível em: http://www.ablc.com.br.
Acesso em 27 set. 2013.
MARANDOLA JR. Eduardo; GRATÃO, Lucia Helena Batista Geografia e Literatura: ensaios
sobre geograficidade, poética e imaginação. Londrina: EDUEL, 2010.
OLIVEIRA, Antônio José de. Principais Raízes do Nosso Povo: O indígena, o africano e o
português. Serrinha/ Ba, 2004.
HAURÉLIO, Marco. Breve História da Literatura de Cordel. São Paulo/ SP: Claridade, 2010.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 65


Imagens docentes: um diálogo entre a improvisação teatral e a memória escolar

Alessandra Ancona de Faria


UNICAMP
leleancona@hotmail.com
Ana Angélica Medeiros Albano
UNICAMP
nanalbano@gmail.com

O trabalho aqui apresentado é parte de uma pesquisa de pós-doutorado, intitulada Imagens da docência:
histórias de vida e a escrita espetacular, que tem a intenção de investigar as semelhanças e diferenças da
imagem sobre o significado da profissão docente para estudantes de licenciatura e professores em exercício,
partindo da narrativa sobre as histórias de vida e da improvisação teatral sobre as mesmas. Tal improvisação
partiu dos elementos da cena e das memórias dos participantes sobre seus professores. Como processo de
reconstituição desta memória trabalhamos com situações de broncas e elogios recebidos, e este aspecto é o
que apresentaremos neste trabalho. A realização de cenas improvisadas, durante todo o percurso de
formação, partiu da concepção de que pelo processo criativo é possível dar-se conta de aspectos que somente
com a reflexão racional não ocorreria. Foi possível evidenciar diferentes aspectos da prática docente,
representações e concepções sobre o papel do professor nos momentos de criação das cenas. Poder refletir
sobre as criações e sobre seus significados, oportunizou aos grupos de alunos e professores o questionamento
da docência, tanto pelo sentimento de humilhação, presente em parte das cenas, como o de reconhecimento
quando o elogio permitiu a valorização de aspectos importantes para cada um. Investigamos se tornar o
professor(a) consciente, através do ato criativo, dos elementos da cena que compõe o cotidiano escolar, pode
possibilitar reflexões, revisão e recriação da sua imagem sobre a docência.
Palavras-chave: Formação de professores; Teatro; Memória.

Introdução

O trabalho aqui apresentado é parte de uma pesquisa de pós-doutorado, intitulada


Imagens da docência: histórias de vida e a escrita espetacular, que tem a intenção de
investigar as semelhanças e diferenças da imagem sobre o significado da profissão docente
para estudantes de licenciatura e professores em exercício, partindo da narrativa sobre as
histórias de vida e da improvisação teatral sobre as mesmas. Tal improvisação partiu dos
elementos da cena e das memórias dos participantes sobre seus professores. Como processo
de reconstituição desta memória trabalhamos com situações de broncas e elogios recebidos,
e este aspecto é o que apresentaremos neste trabalho.
Esta pesquisa é qualitativa e se configura como uma investigação-formação. Teve
como base a retomada de lembranças sobre os professores com os quais os participantes
conviveram, recriadas na exploração teatral. As propostas desenvolvidas tendo a história de
vida dos estudantes/professores como possibilidade de reflexão e formação do professor
são inúmeras e caminham por diferentes percursos, mas em todas elas temos a referência
das experiências vividas como fonte de reflexão.
A escolha pela improvisação sobre as narrativas de história de vida ocorre pelo
entendimento de que tal vivência permite uma nova percepção sobre o fato narrado,
estabelecendo diálogo com possibilidades de encenação do mesmo.

Ao narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas


experiências e, nesse percurso, constrói outra representação de si:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 66


reinventa-se. Como sugere Larrosa, na epígrafe15, somos a
narrativa aberta e contingente da história de nossas vidas, a história
de quem somos em relação ao que nos acontece. (PASSEGGI, 2011,
p. 147)

A possibilidade de falar sobre suas experiências, sobre as lembranças de seus


professores permite ao aluno/professor dar sentido ao vivido. Entendemos que ao se
recordar de situações passadas, como aluno, será possível perceber aspectos passados que
constituíram a imagem docente.
Como nos fala Passegi, a percepção desta história não é fixa, imutável, o que dá
sentido ao processo de revisitá-la. Entendemos que neste olhar para os professores com os
quais conviveu, este grupo de alunos/professores poderá fazer escolhas, repensar práticas,
reelaborar a maneira pela qual se vê professor.

A reflexão sobre seu processo de formação não permite apenas


situar-se numa história e numa continuidade temporal, ela conduz
progressivamente o sujeito a questionar-se sobre sua visão do
humano em sua dimensão terrestre (de que é feito o humano?) e em
sua dimensão cósmica (o que é a humanidade?). Essa dupla
dimensão tem o efeito de clarear a atitude do sujeito a respeito da
aprendizagem e das atividades educativas. (JOSSO, 2010, p. 190)

Investigamos a seguinte hipótese: tornar o professor(a) consciente, através do ato


criativo, dos elementos da cena que compõe o cotidiano escolar, pode possibilitar reflexões,
revisão e recriação da sua imagem sobre a docência?

O corpo

Acho que a minha mais sincera intenção é me sentir confortável, o


máximo que eu puder, estando na minha própria pele. Estarmos na
nossa própria pele não é fácil e essa percepção é capaz de nos
humanizar o bastante para nos aproximarmos, com o coração do
entendimento, do quanto também não seria fácil estarmos na pele
de nenhum outro. Por maiores que sejam as diferenças, as
singularidades de enredo, as particularidades de cenário, não nos
enganemos: toda gente é bem parecida com toda gente. Toda gente
é promessa de florescimento, anseia por amor, costuma ter um
medo absurdo e se atrapalhar à beça nessa vida sem ensaio.
(JÁCOMO, 2011)

Trabalharmos corporalmente buscando a possibilidade de perceber o próprio corpo e


de se relacionar com os demais corpos do grupo possibilitou uma aproximação, uma outra
maneira de que cada um conhecesse o outro, além da descobertas de coisas de si.

15
Lo que somos es la elaboración narrativa (particular, contingente, abierta, interminable) de la historia de
nuestras vidas, de quién somos en relación a lo que nos pasa (Jorge Larrosa).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 67
Esta proposta de formação de professores explora a linguagem teatral, que é uma
linguagem essencialmente corporal. É pelo gesto do ator que a cena se configura, e
acreditamos ser também no gesto do professor que a aula se elabora. A escolha por
trabalhar o corpo não se deve exclusivamente ao fato de ser um trabalho teatral, mas,
também, a razão de que uma melhor compreensão de seu corpo, dá ao professor, muitos
recursos expressivos.

A linguagem teatral, assim como a dança, possibilitam um


conhecimento do próprio corpo e uma ampliação das possibilidades
de vivência dele e com ele. Ao descobrir maneiras pelas quais
podemos nos expressar corporalmente, descobrimos novas formas
de nos movimentarmos, novas expressões e recursos que podemos
utilizar na relação com outros corpos, nas relações sociais. (FARIA,
2011, p. 127)

A descoberta das possibilidades de diálogo que o contato corporal traz, perpassou


todos os momentos desta formação. A dificuldade de entrar em contato com o próprio
corpo, assim como com os outros corpos também foi sentida, porém, aos poucos, a alegria
do jogo, do movimento e do se conhecer desta outra maneira permitiu que o
estranhamento abrisse espaço a esta descoberta, a esta nova forma de se relacionar.
Devido à escolha de trabalharmos com a improvisação teatral, em todo o processo
foi dada uma grande importância para a expressão do corpo. Para tanto, foram
estabelecidas propostas que exploravam o contato com o próprio corpo e com o corpo dos
colegas, permitindo um maior conhecimento e domínio das possibilidades expressivas
corporais.
A importância dada à percepção corporal é o que nos faz incluir neste texto o
percurso pelo qual este processo se constituiu.
Perceber que a maneira pela qual nos expressamos é uma, dentre as muitas
possibilidades, que nossos gestos podem ser ampliados, que podemos aumentar a
consciência sobre as formas de nos expressarmos corporalmente é a base para a percepção
de como eu, professor, me expresso e de como posso ler nos corpos dos meus alunos
aspectos que não são ditos por palavras.
O trabalho corporal esteve estruturado com três enfoques: o de conhecer melhor as
possibilidades expressivas individuais, o de se relacionar coletivamente pelo corpo e o de
expressar as memórias docentes corporalmente. Para tanto realizamos diversas propostas
no decorrer dos encontros, que serão relatadas nos capítulos, conforme o aspecto
abordado.

Pesquisa de Campo

A pesquisa de campo, que coletou os dados aqui analisados, aconteceu em dois


momentos. Neste texto serão apresentados apenas dados do primeiro momento, ocorrido
no segundo semestre de 2012, com dois grupos, tendo a duração de um semestre letivo. Um
dos grupos foi formado por alunos da Faculdade de Educação da UNICAMP – Universidade
de Campinas e o outro por professores da FAACG - Fundação Antônio e Antonieta Cintra
Gordinho.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 68
O grupo da UNICAMP foi composto por 35 mulheres e 1 homem, 85% do curso de
pedagogia, sendo que apenas 11% tinha experiência docente. 65% dos participantes não
tinha nenhuma formação em arte, 61% já havia feito teatro e 94% já havia lido peças
teatrais. Devido a escrita ter sido parte da pesquisa, foi questionado quem gostava ou não
de escrever e 64% afirmaram gostar, 23% disseram que um pouco e 13% não gostavam.16
O grupo da FAACG composto por 18 professores, estava dividido em 4 homens e 14
mulheres, sendo 41% de graduados, 53% de especialistas e 6% de mestres. 35% havia
cursado pedagogia e o restante diferentes graduações, como: moda, letras, sistema de
informação, física, matemática, química, artes visuais, artes cênicas, ciências sociais e
educação física. As disciplinas lecionadas estavam diretamente relacionadas às suas
formações especificas, o que possibilitou um grupo bastante diversificado. Com relação às
séries que lecionavam no momento da pesquisa, 12% no Educação Infantil, 28% no Ensino
Fundamental I, 28% no Ensino Fundamental II, 26% no Ensino Médio e 2% em Cursinho,
Curso Técnico e Curso Superior. 71% lecionava somente na instituição na qual a pesquisa se
realizou e o restante também lecionava em outras instituições. Com relação ao tempo
docência, 23% 1 a 2 anos, 18% de 3 a 5, 29% de 6 a 10, 24% de 11 a 15 e 6% de 16 a 20 anos.
Com relação à formação em arte, 76% não possuía nenhuma, 65% nunca havia feito teatro,
65% já havia lido peças teatrais e 71% gostava de escrever diferentes tipos de textos.

Broncas

O pinto, esse piava. Sobre a mesa envernizada ele não ousava um


passo, um movimento, ele piava para dentro. Eu não sabia sequer
onde cabia tanto terror numa coisa que era só penas. Penas
encobrindo o quê? meia dúzia de ossos que se haviam reunido
fracos para quê? para o piar de um terror. (LISPECTOR, 1998, p. 65)

A proposta de lembrar de broncas e elogios deveu-se ao fato de que estes momentos


costumam ser marcantes e trazem com maior força a imagem de um professor. Em minha
memória sobre professores que tive, os momentos de ser elogiada ou repreendida foram
significativos, embora muitos outros também tenham me deixado marcas sobre o que é ser
professor.
No decorrer de todo este trabalho foram recordados momentos ou professores que
eram extremamente severos, comentários doídos e que geraram insegurança sobre a
capacidade de aprender. Infelizmente as lembranças das broncas foram mais fortes e com
maior presença que dos elogios.
Porém os elogios relatados também foram constantes e a importância dos mesmos
para que muitos tivessem coragem e desejo de continuar a estudar é marcante. Nos relatos
apresentados é possível verificar a importância de comentários feitos por professores para
que a pessoa tivesse coragem de seguir um estudo, uma profissão ou realizar ações em
outros aspectos de sua vida.

16
Estes dados foram obtidos por meio de um questionário inicial para todos os grupos pesquisados,
apresentado como anexo. As características das participantes estão apresentadas desta maneira para que seja
possível saber um pouco de suas características. Não existe qualquer intensão de que esta pesquisa ganhe
delimitações de uma pesquisa quantitativa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 69
O encontro no qual exploramos as broncas levadas se iniciou com o grupo deitado
nos colchões. Pedi que fizessem movimentos próximos aos corpos e que depois
expandissem os movimentos, como se estivessem dentro de uma bolha e quisessem
estourá-la. Ficamos um tempo variando entre o expandir e o encolher, com movimentos que
iniciaram em um único lugar, mas ganharam espaço e se espalharam pela sala.
Passamos para o pega-pega com explosão17 que foi muito divertido. A alegria do
correr, de fugir, de tentar pegar e de explodir foi contagiante. Após este momento propus o
jogo da bola18, que manteve a alegria do pega-pega. As bolas se fizeram presentes e os
grupos se mantiveram envolvidos.
Estes três aquecimentos tinham como propósito trabalhar o corpo e a relação de
grupo, porém com enfoque em um tipo de movimento que se assemelha ao de uma bronca,
especificamente o pega-pega com explosão, já que em muitas broncas ocorre certa
explosão. Os movimentos de expansão e recolhimento também foram propostos levando
em conta o “encolhimento” resultante de levar uma bronca e a possível expansão ao dar
uma bronca.
Solicitei que cada um se recordasse de uma bronca levada e quando não se
recordasse de nenhuma, poderia escolher alguma que tivesse presenciado. Poucos
participantes do grupo da UNICAMP não se recordavam de nenhuma. No caso da FAACG, os
professores poderiam escolher broncas recebidas ou dadas. As broncas foram anotadas,
compartilhadas nos subgrupos e então cada um escolheu uma cena para apresentar,
partindo de uma sensação comum.
Antes das cenas serem apresentadas solicitei que escolhessem o lugar na sala onde a
cena seria feita, quais os objetos que deveriam fazer parte e qual a posição da plateia.

Cenas apresentadas na UNICAMP

As cenas estão relatadas tendo uma imagem da mesma para que a compreensão do
relato se torne maior. Após o relato do ocorrido apresento a sensação que motivou a cena e
as sensações e impressões comentadas opôs cada uma delas.

Primeira cena

UNICAMP: Primeira cena

17
Este jogo é semelhante ao jogo tradicional de pega-pega, porém quando a pessoa é pega ela deve agir como
se seu corpo explodisse, com movimentos e sons.
18
Neste jogo o grupo escolhe uma bola imaginária e deve jogar a bola de um para outro participante. A
coordenadora do jogo dá diferentes comandos de ações que levem o grupo a manter a bola presente.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 70
Optaram por fazer a cena na diagonal da sala.
Professora escrevendo na lousa, alunas escrevendo ou conversando. Professora se
vira e dá uma bronca na aluna que não estava conversando, dizendo: Quem você pensa que
eu sou?
Sensação comum escolhida pelo grupo: injustiça, indignação.
Sensações e impressões: broncas desnecessárias, descontrole do professor, bronca
desmedida. Nos comentários sobre a cena surge a referência de que é típico do professor se
descontrolar e perguntar “quem você pensa que eu sou”. A ideia de que as professoras se
descontrolam com facilidade, que tem ataques histéricos é presente. As alunas relataram
situações nas quais os alunos atuam para que a professora perca o controle.

Segunda cena

UNICAMP: Segunda cena

Fazem a cena em círculo e pedem que a plateia fique em volta, de tal maneira que a
plateia seja mais um circulo em volta da pessoa que está no meio, levando a bronca.
Na cena, uma pessoa no meio, pedindo que tenham paciência, que ele vai explicar,
que esperem, que está doendo. Em volta, sobre as cadeiras, acusam, fazem gestos de bater,
de incriminar. Para algumas alunas é difícil manter a concentração e a risada aparece, mas a
cena não perde a força.
Sensação comum escolhida pelo grupo: sentimento de inferioridade, situação de
exposição.
Sensações e impressões: Assusta o estar doendo, comentamos sobre a possível dor
física, mas também sobre a dor psíquica. Falta de paciência, não querer escutar nenhuma
explicação. Professor não acolher, quando surge o conflito dá a bronca sem perguntar o que
aconteceu. O grande sentido da bronca é fazer a pessoa passar vergonha, se sentir indefesa,
impotente. Uma aluna espanhola19 que fazia a cena chama a atenção por ficar em uma única

19
Esta aluna participou de toda a pesquisa por estar fazendo um intercâmbio entre a UNICAMP e a
universidade na qual estuda, em Barcelona.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 71
posição, congelada. Ao explicar a posição relata que estudou em uma escola religiosa e que
seus pais eram contra a ditadura franquista, mas as freiras em uma situação obrigaram que
os alunos cantassem o hino de Franco, em um momento de abertura política. Esta situação
de não poder se negar a fazer algo que ela era contra foi muito marcante. Outra aluna conta
que não teve coragem de defender um colega que estava levando uma bronca indevida e
que a sensação de impotência era muito ruim.
È interessante observar o quanto as cenas trazem emoções vividas em diferentes
situações. Nesta cena observamos a atitude da aluna em se negar a fazer o que ela não
acredita como correto, atuando hoje de uma forma que não pode quando criança, por estar
em um regime ditatorial e por ser uma criança obrigada pelos adultos. A segunda aluna
também relata uma situação na qual não teve coragem de agir da forma que acreditava ser
correta, pelo sentimento de impotência perante o professor.

Insistimos, em todo o corpo de nosso estudo, na integração e não


na acomodação, como atividade da órbita puramente humana. A
integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida
da de transformá-la a que se junta a de optar, cuja nota
fundamental é a criticidade. Na medida em que o homem perde a
capacidade de optar e vai sendo submetido a prescrições alheias
que o minimizam e as suas decisões já não são suas, porque
resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se.
Ajusta-se. O homem integrado é o homem Sujeito. A adaptação é
assim um conceito passivo – a integração ou comunhão, ativo.
(FREIRE, 2001, p. 50)

O sentimento de impotência trazido pela cena e também escolhido como sensação a


ser representada, inferioridade, exposição, são formas de gerar a adaptação, a inatividade, o
não questionamento, seja pelo autoritarismo de um governo, seja pelo de um professor. As
duas alunas se sentiram obrigadas a aquietar-se, a obedecer, mesmo que discordando. No
momento da cena puderam retomar este sentimento e encontrar outras soluções, soluções
que acolhiam a possibilidade de crítica, a possibilidade de se integrar.

Terceira cena

UNICAMP: Terceira cena

A plateia se mantém em circulo em volta da cena, porém todos sentados.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 72


Uma roda com uma pessoa no meio, que é a professora. Esta professora repreende
uma das pessoas da roda, que passa a ocupar o lugar do centro e repreender outra e assim
sucessivamente até que todas tenham ocupado o centro.
Sensação comum escolhida pelo grupo: autoritarismo.
Sensações e impressões: A aluna que foi reprimida se torna uma professora
repressora. O professor é o centro. Fez pensar no papel de aluna e professora ocupado por
elas. Uma das alunas relatou o fato de ter levado um beliscão de uma professora quando era
pequena e que foi tão forte que ficou roxo. Sua mãe foi à escola reclamar e a professora foi
afastada. Muito tempo depois ela foi fazer seu registro como professora e a pessoa que a
atendeu era a professora de então, pegou os papéis e não voltou para terminar o
atendimento. Relata nunca ter agido assim com seus alunos e manter as unhas curtas.
Comenta que a outra não era professora e que ela é.
A cena proposta retrata um dos aspectos centrais desta pesquisa, que é o
entendimento de que somente com a reflexão, e aqui também com a criação, sobre
situações vividas é que poderemos não repetir de maneira mecânica. A cena mostra esta
repetição, este moto-contínuo que mantém atitudes sem a opção, que agem pelo modelo,
porém sem terem escolhido por ele.

Quarta cena

UNICAMP: Quarta cena

A cena se passa em um lado da sala, com a plateia do outro.


Uma aluna é cutucada pela colega e a xinga. A professora se vira e repreende a aluna
que disse o palavrão, ignorando o ocorrido de antes, diz para a aluna que ela nem parece
filha do diretor do banco. Chama a coordenadora que além de dar uma bronca, leva as duas
para a diretoria e diz que elas devem ir de mãos dadas.
Sensação comum escolhida pelo grupo: comparação com os pais ou irmãos.
Sensações e impressões: Incomodo de ser comparado com os pais ou com os irmãos,
incomodo para todos os irmãos, os que são elogiados e os que são repreendidos. Absurdo da
situação de ter que dar as mãos ou abraçar um colega de quem você está com raiva,
brigando. Absurdo da ameaça da professora com a diretora, e que algumas vezes acontece
com outro professor. Uma aluna relatou a situação de ter um professor que era o mais
temido da escola e que quando alguém fazia algo errado ia ficar um tempo na sala de aula
dele. Também foi comentado que além dos professores, algumas salas são rotuladas e
muitas vezes se comportam conforme os rótulos. Na situação da cena as alunas recebem
como punição não fazer aula de Educação Física nunca mais, até a faculdade. Comentamos
sobre o absurdo das punições que não tem nenhuma relação com o que as motivou.
Sensação de injustiça. Uma aluna relatou uma situação na qual dois alunos são punidos por
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 73
assumirem um erro que estava sendo feito por quase todos da sala. Punição para o aluno
que tem coragem de assumir o erro. A obediência é mais importante que os valores morais.
Esta cena e seus comentários exploram diferentes aspectos da bronca. O primeiro
deles é da comparação entre parentes, ignorando a pessoa que está na sala de aula e
colocando-a como parte de um grupo, um grupo que possuí características que devem ser
seguidas por todos. Esta situação ocorre não apenas com irmãos ou pais, mas também entre
colegas de sala, tornando um o modelo a ser seguido e outro o exemplo do fracasso.
Evidentemente existem matizes e não são todas as escolas ou professores que dividem seus
alunos entre bons e ruins, porém a cena trata da dificuldade observada em educar cada um
com suas potencialidades e dificuldades, não necessitando de um modelo ideal a ser
seguido.
Outro aspecto explorado, que complementa o anterior, foi o da ameaça da diretora
ou do professor bravo. Novamente uma visão dicotomizada, na qual alguns ocupam o papel
do bravo e outros o do bonzinho. A professora se utiliza da diretora para ameaçar as alunas
e a diretora assume este papel da brava, da que castiga, de quem não poderá ser
questionada, obrigando inclusive que as duas alunas que brigavam fossem hipócritas, dando
as mãos enquanto caminham. Conciliação imposta.
Por fim, a cena apresenta um castigo que não tem qualquer relação com a causa.
Novamente neste momento vemos a escola separando entre dois polos, agora das
disciplinas importantes e das que não importam. Neste caso, a que não importa é a de
Educação Física. Agrada, mas não importa. Como professora de arte em diferentes escolas,
nunca vi um aluno ser castigado a perder a aula de matemática ou de português. As de
Artes, junto com as de Educação Física eram as que mais entravam como barganha.
Evidentemente pode-se supor que os alunos gostem mais destas, razão pela qual são
castigados perdendo-as, porém, ao propor que estas aulas possam ser perdidas, entende-se
que são dispensáveis.

Quinta cena20

A cena se passa em um lado da sala, com a plateia do outro.


Na cena vemos três alunas escrevendo quando entra a professora, representada por
uma aluna sobre os ombros da outra. A professora repreende as alunas, que gritam: eu
odeio a escola, eu odeio a escola, eu odeio você. A professora grita: Não pode!
Sensações e impressões: A cena lembrou o filme The Wall do Pink Floyd. A aluna que
fez este comentário diz que já havia se lembrado do filme em outras cenas, mas que nesta
foi igual. O professor mostra na voz e no gesto sua autoridade. Uma aluna relata o
comentário de um colega professor que a orientou para não entrar na sala de aula sorrindo
se quisesse ter o respeito dos alunos. A cena passa a sensação de não poder ir contra o que
já está estabelecido. Duas alunas relatam que o tamanho da professora aumentou milhares
de vezes quando levaram a bronca.
A escolha cênica de colocar uma pessoa sobre os ombros da outra foi bastante
impactante e este fato seguido aos gritos das alunas de odiarem a professora e da
professora de afirmar que não podem odiar, possibilitou que a sensação de opressão ficasse
muito marcante. É interessante pensar o quanto a diferença de altura pode ser opressora.

20
Não foi possível fotografar esta cena.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 74
Os professores que trabalham com crianças pequenas, mesmo em situações nas quais estão
conversando, devem buscar soluções para se colocarem mais próximos das crianças, com os
olhos em uma altura semelhante a de seus olhos. A opressão sentida por uma bronca pode
provocar a impressão de que a professora aumenta de tamanho, “vira um monstro”, mas
este fato somado a real diferença de altura pode agravar ainda mais a forma pela qual a
criança dialogará com seus professores.

Sexta cena

UNICAMP: Sexta cena

A cena é uma sequência de cenas. Uma narradora vai lendo os textos das lembranças
escritas pelas alunas dos grupos e estas leituras se misturam com as cenas apresentadas.
Uma das situações é o relato de um fato ocorrido na UNICAMP e faz parte da memória de
todas, o que gera muitos comentários no decorrer da apresentação.
As cenas apresentam uma grande intensidade devido às broncas escolhidas. O
sentimento de humilhação, de inferioridade, de injustiça, de exposição e de indignação
ficam fortes nos corpos da cada participante. São relatos doídos, mesmo com a distância do
tempo no qual ocorreu. Foi necessário fazer um relaxamento para que todos pudessem sair
da aula mais neutros.
Neste encontro foi possível observar as escolhas teatrais para a apresentação da
cana. O fato de que eu tenha solicitado uma elaboração prévia sobre a relação dos “atores”
e da plateia, indicando a possibilidade de que a plateia poderia estar em diferentes posturas,
além da convencional sentada em frente a cena, gerou soluções que deram dramaticidade à
situação e maior intensidade nos sentimentos apresentados.

Cenas apresentadas na FAACG


Na FAACG as orientações para as cenas foram as mesmas que na UNICAMP.

Primeira cena

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 75


FAACG: Primeira cena

A primeira cena mostrou um dia de prova na qual um dos alunos é mandado embora
da sala sem que a professora tivesse perguntado nada. Ele treme ao receber a bronca,
gagueja um pouco, mas obedece sem discutir ou questionar.
Ao comentarmos sobre a cena alguns professores disseram ter tido a impressão de
que o aluno estava muito aéreo, o que dava a impressão de querer colar. Embora esta
opinião não tenha sido de todos os professores participantes, fica evidente a intensão de
justificar atitudes, muitas vezes incompreensíveis, por parte dos professores. Nota-se um
intuito de protecionismo ao colega, ainda que estivéssemos em uma situação ficcional ou de
lembranças de algo que não havia ocorrido naquela escola.

Ao refletirmos sobre o caso do aluno maltratado, ficou evidente a


dificuldade de expor um colega que esteja com uma conduta
inadequada. Foram apresentados diversos argumentos, desde a
questão ética, até do protecionismo que observamos entre os
pares. Algumas professoras relataram casos nos quais elas
chegaram a conversar com alguma colega que teve uma atitude
inadequada, mas ficou evidente a dificuldade de apresentar a
queixa para outras instâncias. Julia argumentou da dificuldade de
falar sobre o trabalho do outro com receio de que ele faça o
mesmo. (FARIA, 2009)

O receio relatado por Faria surgiu em diferentes comentários das cenas


apresentadas. Nota-se uma busca por encontrar justificativas para diferentes atuações
docentes. Entretanto, o fato de que muitas destas situações partiram de lembranças dos
professores nos momentos em que se encontravam como alunos, surgiu claramente um
conflito entre estes dois papeis, podendo ampliar a visão sobre as situações relatadas e
encenadas.
O professor que foi autor da lembrança, ocorrida na terceira série do fundamental,
explicou que ele só estava pensando, mas teve a prova tomada e foi expulso da sala.
Relatou ter ficado muito nervoso, mas que era muito tímido para questionar a atitude da
professora.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 76


Segunda cena

FAACG: Segunda cena

A segunda cena mostra as alunas fazendo uma atividade quando a professora passa
perto do caderno de uma delas e dá um grito dizendo que estava errado, mostrando o
caderno para os outros alunos e dizendo para ninguém fazer como ela. No comentário sobre
a cena falamos sobre a humilhação pelo qual a aluna passou.

Terceira cena

FAACG: Terceira cena

A terceira cena mostra alguns alunos que entram atrasados na sala, conversando,
atrapalhando a aula quando um deles solta um pum e os dois resolvem colocar a culpa do
pum em uma colega que fica muito chateada. A professora depois de um tempo dá uma
bronca e leva um dos alunos para a diretoria. O autor do pum não é castigado.
No comentário sobre a cena uma professora disse que a professora da cena era
muito mole. Falamos sobre a frequência com que este tipo de situação ocorre, na qual os
alunos soltam puns e não é possível identificar o autor do mesmo, ocasionando confusão na
sala. Uma professora disse que nunca consegue identificar o autor e por isso todos levam
bronca, outro disse que apazigua a turma dizendo que cada um fique com sua cota de cheiro
e pronto. Esta sugestão foi bem aceita pelo grupo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 77


Quarta cena

FAACG: Quarta cena

Na quarta cena, novamente os alunos estão fazendo prova, depois de terem sido
alertados para guardarem anotações. Um dos alunos começa a fazer a prova com um
caderno debaixo da perna, olhando para suas anotações todo o tempo. O professor retira a
prova e rasga-a em pedaços, joga o caderno do aluno no chão. Quando a prova acaba ele vai
até o lixo e pega os pedaços rasgados e leva com ele, por receio do que poderia ocorrer com
sua atitude.
Após cada uma das cenas comentamos o que o grupo havia visto e quem fez
comentou sobre a lembrança que havia gerado a cena. De maneira geral surgiram sensações
e lembranças sobre esta situação vivida como aluno na qual o sentimento predominante era
de humilhação e de injustiça, mas este sentimento se contrabalanceava com outro de
compreensão sobre a atitude do professor ou de parte dos professores, gerado pela
condição atual de ser professor.
Em muitos momentos o grupo justificou uma ou outra atitude por se colocar na
posição do professor e afirmar que os alunos atuam de forma a tirar o professor do controle,
desafiar, provocar até que o professor perca o controle. Esta discussão surgiu em parte pela
atitude do professor que rasga a prova do aluno.
Surgiram diversos comentários sobre a falta de clareza e sobre a flexibilidade das
regras. O exemplo dado foi a situação de buscar-se ensinar o aluno a ir ao banheiro e beber
água no intervalo, porém quando o professor é rígido, cobrando o combinado e não
deixando que o aluno saia da sala, corre o risco de ser repreendido se o aluno faz xixi na
calça, da mesma forma quando o professor cede ao apelo do aluno, leva bronca por ter
deixado ele sair. A sensação passada foi de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Comentei que os professores retratados nas cenas, excetuando a professora que
observa a situação do pum antes de punir, pareciam descontrolados. O grupo concordou
com esta percepção. Questionei o comentário de que esta professora era mole e não ficou
muito clara qual era a posição do grupo sobre esta questão, mas existia certa concordância
de que ela havia sido mole com os alunos e ao mesmo tempo a percepção dela ter sido a
única professora que observou a situação antes de intervir. A professora que fez o papel da
professora na cena comentou que mesmo observando ela agiu de forma equivocada,
punindo somente um dos alunos. O fato dela punir apenas um dos alunos gerou o
comentário de que existem momentos onde é necessário punir um aluno para que seja um
exemplo para o grupo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 78
A reflexão sobre quando e como punir, sobre o sentido da bronca, da advertência
sobre atitudes inadequadas para o grupo, da orientação sobre as regras e os combinados
não se esgotou neste encontro e, certamente, poderíamos ter muitos outros momentos
para refletir sobre o sentido de atitudes como as que foram lembradas e representadas.
Um dos aspectos marcante em muitas das falas foi da falta de apoio da equipe de
educadores, resultando em muitas dúvidas sobre como agir, além da pouca coerência entre
o grupo de professores, que por vezes, atua concomitantemente com o mesmo grupo de
alunos.

Conversa sem fim

As cenas relatadas, seja por alunos, seja pelos professores demonstram diversas
questões sobre as quais professores e pesquisadores da educação refletem e, por vezes,
encontram caminhos para que não tenhamos que ser punidos ou punir, em uma roda-viva
de tristeza, angústia e uma permanente sensação de impotência.

Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o


discurso sobre sua existência, sobre si mesma. Não precisa perguntar
a ninguém, certa de sua legitimidade, se "sabe com quem está
falando?" Segura de si, ela é por que tem autoridade, porque a
exerce com indiscutível sabedoria. (FREIRE, 1996, p. 102)

Um dos saberes que parece ausente nos relatos sobre broncas é o da escuta, o do
olhar para o outro, o da quietude em se colocar disponível para compreender o que está
acontecendo em uma dada situação, antes de agir sobre ela, antes de punir.
As broncas levadas e dadas apresentam uma imagem de professor como alguém que
necessita estar em permanente ação, em permanente proposição de maneiras pelas quais o
grupo ou um determinado aluno deve agir. Os professores das cenas se mostram como
donos da verdade, como donos do poder, que não precisam ouvir as versões dos alunos para
tomarem a atitude certa. O diálogo não se mostra como possibilidade para a resolução dos
conflitos apresentados.
Os sentimentos apresentados são de injustiça, inferioridade, exposição, humilhação e
indignação. Observa-se em muitas das representações o autoritarismo imperando na forma
de relacionar-se com os alunos. Porém na fala dos professores da FAACG, embora suas
lembranças como alunos tenha sido marcada pelos mesmos sentimentos que dos alunos da
UNICAMP, surgem outros conflitos.
A impotência diante do não saber como solucionar momentos de conflitos é
constante. A falta de apoio da coordenação e direção e de regras claras sobre como lidar
com as situações apresentadas reforça a angústia por não saber como agir, levando a
atitudes de descontrole e de consequente receio das consequências deste descontrole,
como na cena onde o professor rasga a prova do aluno.
Este mesmo descontrole, que soa a um acesso de loucura, também é parte das
situações encenadas. Os professores e professoras se mostram como pessoas que não
respiram, que não conseguem dominar sua raiva junto aos alunos. A impressão deixada é de
que não respiram mesmo, que não dominam seus corpos perante os sentimentos que as

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 79


atitudes dos alunos provocam. Também os professores das cenas se sentem humilhados,
expostos e indignados.
Retomamos a necessidade do diálogo, da disponibilidade para perceber as
necessidades e conflitos do aluno, assim como poder mostrar as suas. Certamente será
também outra imagem de professor, de um professor que se emociona, se fragiliza, carrega
dúvidas junto a seus saberes.
Entendemos que olhar para estas lembranças doídas e torná-las cenas, podendo
refletir sobre os personagens e conflitos apresentados, possibilitou para cada participante
um momento de respiro, uma chance de descobrir outras soluções que não apenas a da
bronca, que traz em sua essência a perspectiva da dominação, que traz o desejo de silenciar
o aluno que incomoda. Não sem sofrimento, buscamos este caminho da conversa.

Referências
FARIA, Alessandra Ancona de. Teatro na formação de educadores: o jogo teatral e a escrita
dramatúrgica. Tese de doutorado apresentada na PUC-SP, São Paulo, 2009.
___________ Contar histórias com o jogo teatral. São Paulo: Perspectiva, 2011.
FREIRE, Paulo. A educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
_____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
JÁCOMO, Ana. Minha maior intenção. Publicado em 22/07/2011. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3111888>. Acesso em: 14 abr. 2014.
JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010
LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PASSEGGI, Maria da Conceição. A experiência em formação. Revista Educação Vol. 34, N°
2 (2011) Dossiê - Pesquisa (Auto)biográfica e Formação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 80


Professores iniciantes na alfabetização: identidades em formação

Andre Afonso Vilela


UEMS
andreafonsus@hotmail.com
Eliane Greice Davanço Nogueira
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UEMS
eg.nogueira@uol.com.br
Janine Cano Quintino
UEMS
janiteacher@hotmail.com

Este artigo é fruto das inquietações geradas durante os encontros Grupo de Estudo e Pesquisa em Narrativas
Formativas (GEPENAF). Tem como sujeitos de investigação professoras alfabetizadoras em fase inicial da
carreira docente, 0 a 5 anos de docência, e tem como objetivo principal apresentar e problematizar aspectos
referentes ao processo de construção da identidade profissional dessas docentes. Utiliza-se de uma abordagem
qualitativa com o método da narrativa oral, tendo como instrumento de coleta de dados entrevistas
semiestruturadas. Apoia-se nos estudos desenvolvidos acerca das temáticas: identidade docente, fases da
carreira docente e alfabetização. Participaram deste estudo 04 professoras alfabetizadoras cujo tempo de
docência as caracteriza como iniciantes na docência. O lócus da pesquisa foi a uma escola municipal de Campo
Grande/MS, por apresentar o maior número de professores em início de carreira. Ficou evidenciado neste
estudo o quanto as experiências escolares vivenciadas enquanto alunas e os modelos de professores e
métodos utilizados na alfabetização das professoras colaboradoras deste estudo interferem em suas práticas
pedagógicas e como consequência na formação da sua identidade profissional. No caso específico das
professoras em questão esses modelos foram ressignificados durante a graduação, a ponto de elegerem os
professores da academia como as mais significativas referências para a docência, além de estabelecerem o
domínio do conteúdo a ser ensinado e a afetividade como sendo os principais atributos de um professor
alfabetizador. Diante de todo o exposto, é válido destacar a relevância do envolvimento dos membros da
comunidade escolar no acompanhamento desses professores iniciantes a fim de minimizar o choque da
realidade, uma vez que nessa fase os docentes vivenciam uma transição de identidades. Além disso, é
fundamental a sistematização de programas de formação continuada que foquem a questão da identidade
docente.
Palavras-chave: Professores Iniciantes; Formação de Professores; Narrativas identitárias.

Introdução
A produção de conhecimento na área educacional tem ampliado significativamente o
olhar para a figura do docente a fim de alcançar avanços, solucionar problemas e elevar a
qualidade da educação brasileira. Nesse sentido, esta pesquisa busca dar sua contribuição
uma vez que tem como objetivo geral apresentar e problematizar aspectos referentes ao
processo de formação da identidade profissional de 04 professoras alfabetizadoras em início
de carreira. Os objetivos específicos estão centrados na identificação e análise das
concepções e saberes constituídos desde as primeiras experiências escolares, incluindo o
período de alfabetização, perpassando pelas vivências da graduação e culminando na prática
pedagógica dessas professoras.
Durante todo o processo de investigação e análise foram estabelecidas as seguintes
referências: Nóvoa (2009), Tardif (2012,), Pimenta (2009), Nono (2011) e Ferreiro (2011).
A pesquisa está fundamentada em uma metodologia qualitativa, realizada por meio
de entrevista semiestruturada e caracteriza-se como sendo de caráter exploratório,
descritivo, utilizando-se em sua operacionalização o método da história oral, uma vez que “o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 81
depoimento oral viabiliza os objetos em sujeitos, contribuindo para compor uma história
mais rica, mais envolvente, mas também mais verdadeira” (THOMPSON, 1992).
Sua relevância social deve-se ao fato de fornecer subsídios aos órgãos competentes a
fim de sistematizar e implementar programas de formação continuada voltados aos
professores alfabetizadores em fase inicial da carreira docente, contribuindo com a
minimização do choque da realidade e subsidiar a prática pedagógica desses profissionais.
Esse choque explica-se pelas discrepâncias entre os ideais educacionais e o cotidiano nas
escolas.

A docência e a construção da identidade profissional


O ponto de partida dessa pesquisa versa sobre o processo de construção da
identidade profissional de professores alfabetizadores em início de carreira21, levando em
consideração aspectos relacionados à formação inicial e continuada do professor
alfabetizador e à sua história de vida.
De acordo com Huberman (1993), o processo de formação do eu professor, ou seja,
sua identidade profissional, é marcado por fases, ciclos ou momentos. Antes de serem
apresentadas tais fases, faz-se necessário explicitar o conceito de identidade profissional ou
identidade docente, visto que o termo configura-se como objeto de investigação da
presente pesquisa:
É preciso entender o conceito de identidade docente como uma realidade que
evolui e se desenvolve tanto pessoal como coletivamente. A identidade não é algo
“dado” ou que se possua, ao contrário, é algo que se desenvolve ao longo da vida.
A identidade não é um atributo fixo para uma pessoa, mas sim um fenômeno
relacional. O desenvolvimento da identidade ocorre no terreno do intersubjetivo e
se caracteriza por ser um processo evolutivo, um processo de interpretação de si
mesmo como pessoa dentro de um determinado contexto (GARCIA, 2010, p. 19).

Pelo que se pode apreender acerca das colocações do autor, a identidade docente
além de ser formada pelas experiências vivenciadas no coletivo também depende da
maneira como o docente vai se percebendo enquanto educador.
Desta forma, a fim de complementação, apresenta-se a concepção de Nóvoa (1995) acerca
do termo em questão:

[...] uma construção que tem uma dimensão espaço-temporal, atravessa a vida
profissional desde a fase da opção pela profissão até a reforma, passando pelo
tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes espaços institucionais onde a
profissão se desenrola. [...] É uma construção que tem as marcas das experiências
feitas, das opções tomadas, das práticas desenvolvidas, das continuidades e
descontinuidades, quer ao nível das representações quer ao nível do trabalho
concreto (NÓVOA, 1995, p.115)

Evidencia-se, no entanto, a necessidade de investigação do processo de construção da


identidade docente, uma vez que esta se dá na relação com os discentes, com os demais
professores e consigo próprio. Tal identidade está atrelada também à maneira como o

21De acordo com Huberman(1993), é considerado professor iniciante aquele cujo tempo de atuação na
docência seja de 0 a 5 anos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 82
sujeito vai se percebendo enquanto professor, estabelecendo qual o seu papel, analisando e
refletindo acerca do seu fazer pedagógico e por consequência, expandindo sua consciência.
Como dissemos, a construção da identidade docente é marcada por fases, a saber: a)
fase da entrada na carreira; b) fase da estabilização; c) fase da experimentação ou
diversificação; d) fase da procura de uma situação profissional estável e, finalmente, e) fase
de preparação da jubilação (HUBERMAN, 1993).
De acordo com Huberman (1993 apud NONO, 2011, p. 16), os professores que estão
na primeira fase – no caso, os sujeitos de pesquisa deste trabalho –, estão no:

Período de sobrevivência e descoberta. O aspecto de sobrevivência tem a ver com


o “choque de realidade”, com o embate inicial com a complexidade e a
imprevisibilidade que caracterizam a sala de aula, com a discrepância entre os
ideais educacionais e a vida cotidiana nas classes de alunos e nas escolas, com a
fragmentação do trabalho, com a dificuldade em combinar ensino e gestão de sala
de aula, com a falta de materiais didáticos, etc. O elemento de descoberta tem a
ver com o entusiasmo do iniciante, com o orgulho de, finalmente, ter sua própria
classe, seus alunos, e fazer parte de um corpo profissional. Sobrevivência e
descoberta caminham lado a lado no período de entrada na carreira. Para alguns
professores, o entusiasmo inicial torna fácil o início na docência; para outros, as
dificuldades tornam o período muito difícil.

O termo “choque de realidade”, criado por Veenman e citado por Huberman, ou


“choque da transição”, citado por outros autores, é o momento inicial da carreira docente
de “medo e tacteamento” (SILVA, 1997), ou seja, os professores realizam uma série de
indagações e reflexões acerca da complexidade das relações existentes no cenário
educacional brasileiro, e que envolvem as condições materiais e institucionais, as questões
relacionadas à formação inicial e continuada e ao papel da escola e do professor na
sociedade contemporânea.
Muitas vezes as conclusões vão de encontro a valores e crenças construídas durante
toda uma trajetória pessoal, gerando sentimentos antagônicos como euforia e frustração.
Perrenoud (2002) pontua que os professores que estão na primeira fase encontram-se num
período de “transição de identidades”, ou seja, deixam de ser estudantes e passam a ser
profissionais responsáveis pela aprendizagem de um grupo de alunos. O referido autor
caracteriza os professores em fase inicial da carreira como aqueles que demonstram
sentimento de pânico, estresse, angústia e medo que com o tempo são levados a reajustar
suas expectativas e percepções anteriores.
Na fase de estabilização, considerada a mais positiva por Huberman (1993), os
professores adquirem o domínio das técnicas de ensino, desenvolvem uma certa
independência no que tange à seleção de métodos e materiais a serem utilizados em sua
prática.
A fase de experimentação ou diversificação (HUBERMANN, 1993) é marcada pelo
desejo que os docentes têm de ousar, resolver aspectos que dificultam a sua prática,
tornando-a mais eficaz. Muitas vezes vive-se o dilema de continuar ou abandonar a carreira.
Na fase de procura de uma situação profissional estável, ou seja, a fase do conservadorismo,
há a coexistência de dois grupos de docentes, ou seja, aqueles que evidenciam uma maior
serenidade e distanciamento afetivo dos discentes e aqueles que estagnam
profissionalmente, tornando-se amargurados.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 83


Finalmente, na fase de preparação da jubilação (HUBERMANN, 1993), muitos
docentes influenciam negativamente os jovens professores, visto que assumem uma posição
de desencanto. Porém existem aqueles que apesar de estarem prestes a atingir a etapa de
encerramento da carreira profissional, ainda demonstram uma atitude tida como positiva,
visto que evidenciam uma preocupação no que tange à qualidade dos processos de ensino e
de aprendizagem.
Diante disso, torna-se evidente a relevância e a singularidade do tratamento que
deve ser destinado a esses profissionais iniciantes por parte das instituições de ensino, visto
que as experiências dos primeiros anos da profissão interferem diretamente na decisão do
professor em permanecer ou não na carreira e definem o tipo de profissional que ele virá a
ser. Dessa forma, salienta-se a relevância social desse estudo, uma vez que o Brasil,
diferentemente da Argentina, Chile e França, ainda não dispõe de políticas voltadas aos
professores que vivenciam a fase inicial da carreira docente.

A formação do eu professor

O processo de formação do eu professor, ou seja, sua identidade profissional pode se


compreendido pela exposição e análise da história de vida do docente, das experiências
vivenciadas durante os momentos de formação inicial e continuada e os saberes
apreendidos nessa trajetória.
Surgidas a partir de 1980, as pesquisas envolvendo histórias de vidas de professores
postulam que a prática profissional do docente evidencia saberes constituídos a partir de
experiências/vivências que antecedem à preparação profissional formal para o ensino, ou
seja, na posição de aluno ele assume uma visão de educação difícil de ser modificada,
podendo assim ser reproduzida, muitas vezes inconscientemente, em sua prática em sala de
aula e na relação com os discentes.
Aos estudos que investigam o processo de formação da identidade profissional
docente, as histórias de vida configuram-se como uma categoria que possibilita aos
pesquisadores e aos próprios docentes a compreensão desses processos de internalização,
de aprendizagem e de socialização, uma vez que “a história de vida é tomada como memória
coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operatória para o futuro”
(FERRAROTTI, 1982 apud KRAMER, 2010, p. 155).
E ainda, no que se refere às histórias de vida, Tardif (2012) tece algumas
considerações que complementam e enriquecem este estudo:

Ao longo de sua história de vida pessoal e escolar, supõe-se que o futuro professor
interiorize um certo número de conhecimentos, de competências, de crenças, de
valores, etc,, os quais estruturam a sua personalidade e suas relações com os
outros (especialmente com as crianças) e são reatualizados e reutilizados, de
maneira não reflexiva mas com grande convicção, na prática de seu ofício. Nessa
perspectiva, os saberes experienciais do professor de profissão, longe de serem
baseados unicamente no trabalho em sala de aula, decorreriam em grande parte
de preconcepções do ensino e da aprendizagem herdadas da história escolar
(p.72).

Pensando nas histórias de vida, as “matrizes pedagógicas” surgem como categoria


para identificação e análise dos “nichos, nos quais são gestados e guardados os registros
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 84
sensoriais, emocionais, cognitivos e simbólicos vividos pelos sujeitos ao transitarem nos
espaços intersubjetivos, onde se constela o arquétipo do Mestre-Aprendiz” (FURLANETTO,
2011, p.32). As matrizes pedagógicas, na concepção de Furlanetto, seriam:

[...] As matrizes pedagógicas podem ser simbolicamente consideradas em espaços,


nos quais a prática dos professores é gestada. Conteúdos do mundo interno
encontram-se com os do mundo externo e são por eles fecundados, originando o
novo. A matriz, além de configurar-se como local de fecundação e gestação,
também se apresenta com possibilidade de retorno em busca da regeneração e da
transformação...... não começam a se constituir nos cursos de formação, mas estão
enraizadas em instâncias muito mais profundas de sua psique e vão ganhando
formas pessoais, conforme ele vivencia situações de aprendizagem nas quais foi
constelado o Arquétipo de Mestre-Aprendiz, o que ocorre desde o início de sua
vida (FURLANETTO, 2011, p. 19).

Uma vez investigadas, retomadas, desconfiguradas e ressignificadas pelos


professores, as matrizes pedagógicas possibilitam a regeneração e a transformação do fazer
pedagógico.
De acordo com Fusari (1988), os cursos de formação inicial pouco têm contribuído no
processo de construção de uma nova identidade do profissional docente, visto que são
estruturados de forma a contemplar um currículo que não toma por base a realidade das
escolas, ou seja, as contradições nelas presentes. Já, os de formação continuada, primam
apenas pela atualização dos conteúdos de ensino, não possibilitando aos docentes uma
alteração significativa da sua prática em sala de aula. A transformação da prática docente
configura-se no aparato das culturas colaborativas.
As “culturas colaborativas” (NÓVOA, 2009) pressupõem todo um aparato existente
no interior da instituição escolar a fim de que o docente iniciante não caia no isolamento, e
sim, seja acompanhado pela supervisão e pelos demais professores. O trabalho em equipe
possibilita que os membros da comunidade escolar compartilhem de objetivos comuns,
assim, ajudam-se mutuamente. A reflexibilidade lhe proporcionará a capacidade de analisar-
se enquanto docente, sua prática, quais as alterações necessárias a fim de que essa prática
possibilite a aprendizagem efetiva dos discentes.
Garcia (2010, p. 21), afirma que:

A professora no exercício da prática docente é portadora de uma teoria adquirida


em seu curso de formação inicial, teoria atualizada a cada dia, em sua relação com
as crianças na sala de aula e com as suas colegas professoras nas reuniões
pedagógicas, nas experiências que vive dentro e fora da escola, nas leituras que faz,
nos cursos de que participa, nas reflexões que produz.

Outra proposta valiosíssima de formação continuada de professores seria aquela que


“construísse uma teoria da pessoalidade no interior de uma teoria da profissionalidade”
(NÓVOA, 2009). Assim, seriam proporcionados ao professor momentos em que tivesse a
oportunidade de iniciar um processo de seleção e análise de ícones que lhe possibilitasse a
tomada de consciência da origem da sua própria prática. É no interior dessa proposta que
nasce a construção de narrativas sobre as suas próprias histórias de vida pessoal e
profissional.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 85
Dessa forma, é possível oferecer aos docentes instrumentos que lhes possibilitem
uma mudança em sua prática pedagógica – prática essa que requer uma urgente reforma
educacional.
O processo de formação continuada de professores é extremamente complexo.
Jackson (2009) descreve dois paradigmas presentes nesse tipo de formação: a perspectiva
do déficit e a perspectiva do crescimento. De acordo com o autor, as propostas de formação
continuada que visam ao desenvolvimento de saberes/competências específicas são
ineficazes, o que de fato deve ser pensado é o favorecimento de uma maior expansão
docente.

Para melhor explicitar o processo de análise dos dados obtidos na pesquisa, bem
como por questões éticas, e no intuito de preservar suas identidades, os sujeitos
selecionados foram identificados pela letra P: professora (P1, P2, P3 e P4):
P1: 31 anos e 3 anos de docência;
P2: 32 anos e 5 anos de docência;
P3: 24 anos e 09 meses de docência;
P4: 24 anos e 1 anos de docência.
Conforme dados coletados foi possível observar que:

- 75% (n=03) formaram-se em instituições privadas de ensino superior e 25% (n=01) em


instituição pública;
- 100% (n=04) dos sujeitos são convocados na Rede Municipal de Ensino, evidenciando
também uma certa instabilidade profissional;
- 75% (n=03) das docentes estão matriculadas em cursos de pós-graduação lato sensu e 25%
(n=01) ainda não o faz, porém manifesta interesse e reconhece a importância;
- 75% (n=03) das docentes que cursam pós-graduação lato sensu o fazem em instituições
privadas de ensino superior e 25% (n=01) em instituição pública.
Com o intuito facilitar o processo de análise dos dados da pesquisa, optou-se pelo
agrupamento das informações em 03 eixos: infância e experiências escolares anteriores à
graduação, período da formação inicial (Licenciatura em Pedagogia) e prática docente/
formação continuada.

1º Eixo: infância e experiências escolares anteriores à graduação.

O primeiro contato estabelecido entre pesquisadora e P1 foi marcado pela


insegurança e ansiedade por parte desta - “Não sei se vou dar conta, falar sobre a minha
história assim no improviso”(P1). Porém, após obter informações acerca do objetivo da
pesquisa, bem como da ética que a ela deve estar atrelada, P1 iniciou a narrativa de sua
história de vida. Ao ser questionada inicialmente acerca dos motivos que a levaram a optar
pelo curso de Pedagogia, a mesma, após um breve silêncio, fazendo uso de um tom de voz
firme, demonstrando ressentimento e tristeza, afima: “A não alfabetização do meu filho na
idade certa” (P1).
De acordo com P1, o filho cursava o 2º ano do Ensino Fundamental e não havia
desenvolvido habilidades de leitura e escrita. Suas colocações evidenciam que os fatores
considerados por ela como responsáveis pelo insucesso da aprendizagem de seu filho, foram
o método pelo qual seu filho foi alfabetizado, no caso o tradicional, e a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 86


formação/concepções da docente responsável. “Eu sabia que poderia fazer muito mais do
que aquelas meras xérox” (P1). “Hoje eu me considero uma professora adequada para a
alfabetização” (P1).
Ao discorrer sobre a sua infância no que se refere às suas experiências escolares, suas
referências de professores, destacando seus atributos, P1 mais uma vez demonstra mágoa e
tristeza, destacando a intolerância e a não afetividade por parte dos docentes que
participaram de sua formação e atribui que muitas dificuldades encontradas em sua prática
docente advêm desse período:

As minhas experiências escolares não foram muito agradáveis, principalmente


devido à intolerância dos professores e a falta de interesse em nos conhecer. Na
época, nós tínhamos que memorizar os textos e os professores não nos cobravam
interpretação e muito menos aceitavam a exposição de nossos pontos de vista.
Todos esses aspectos fragilizaram a nossa aprendizagem e os reflexos são sentidos
em nossa prática pedagógica nos momentos da produção de um artigo, por
exemplo. (P1: 32 anos e 03 anos de docência).

Em suas narrativas P1 salienta que os atributos indispensáveis a um docente são:


pontualidade, sensibilidade no que se refere à percepção dos alunos em sua totalidade,
considerando suas potencialidades e as dificuldades de cada discente:

“Eu apenas conheci um excelente professor na Educação de Jovens e Adultos, a


pontualidade no horário em sala de aula, o “Boa noite”, o interesse em saber como
estávamos psicologicamente. Ele tinha um caderninho onde registrava o histórico
de cada aluno. As atividades eram individuais, respeitando as dificuldades de cada
aluno, e exigiam reflexão (P1).

P2 entretanto, desde o início de sua narrativa, demonstrou tranquilidade e


serenidade, no entanto evidenciou por diversas vezes sua fragilidade no trabalho com a
alfabetização. “Eu sou novata na área..., mesmo sabendo da minha pouca experiência a
direção depositou muita confiança em mim e eu irei fazer jus a esse voto de confiança” (P2).
Ressalta que a opção pelo curso de Pedagogia se deu por influência da mãe que era
uma leitora apaixonada que acabou influenciando os filhos. “A minha mãe sempre foi a
minha fonte de inspiração, era uma apaixonada pela leitura e nos contagiou. Durante as
brincadeiras de escolinha eu buscava fazer o mesmo com os meus alunos imaginários” (P2).
Ao realizar o relato de sua infância, enfatiza que durante toda a sua vida escolar teve
muita dificuldade de aprendizagem, principalmente na área de exatas, cita o componente
curricular de Matemática - “Eu sempre tive muita dificuldade, nunca fui uma aluna modelo
no quesito nota”. Emociona-se ao falar de sua professora de Geografia, Sra. Bonfim, e
ressalta os atributos que lhe tornaram uma professora inesquecível:

Ela valorizava muito a leitura, propunha a leitura crítica de textos diversos a fim de
desenvolver habilidades de interpretação e análise crítica, ou seja, nos fazia pensar,
era disciplinada, pontual no cumprimento de seus deveres e obrigações e presente
na vida dos alunos. (P2: 35 anos e 05 anos de docência).

P3 possui apenas 09 meses de docência e demonstrou durante todo o seu relato


segurança, propriedade em suas colocações e muita vontade de fazer a diferença e marcar
positivamente a vida dos alunos. Afirma que a função social da profissão docente a motivou

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 87


quanto à escolha de seguir a carreira no magistério, mais especificamente na área da
alfabetização - “Não consegui me imaginar atuando em outra profissão”.
Da infância, destaca as experiências que vivenciou na primeira série com a professora
Zuleide. P3 condena a prática tradicional adotada pela referida professora, mas enfatiza que
apesar de tal prática era uma professora atenciosa - “A sua prática era a tradicional, porém
isso não me gerou traumas como alguns podem pensar... por mais que trouxesse atividades
tradicionais, estava sempre ali presente, tentando fazer com que aprendêssemos”.
Complementa seu relato pontuando: “Hoje, pensando sobre a prática dela, julgo não ser a
prática docente a geradora de traumas, porque as vezes o docente faz uso do método
tradicional, mas tem outra maneira de se relacionar com os alunos”.
P4 afirma que a sua opção por cursar Pedagogia foi fortemente influenciada pelos
aconselhamentos dos ex-sogros, que são pedagogos. Das memórias que tem da infância,
destaca o período em que cursou a primeira série, enfatizando práticas rígidas e tradicionais
dos docentes - “Eu me lembro de um professor que não deu muito certo por sua postura
rígida. Em uma determinada ocasião, eu precisei ir ao banheiro e não obtendo a autorização
por parte do professor fiz xixi na roupa”.
Quanto à metodologia, P4 destaca que a professora era tradicional e fazia uso das
cartilhas. Em seu discurso, percebe-se que prática tradicional também é tida como algo
negativo - “A professora era tradicional, mas a gente gostava muito dela”.
Antunes (2010, p. 191) salienta a relevância das experiências escolares na construção da
identidade docente:

A escola produz, nas histórias de vida das alfabetizadoras, significados sobre o


processo de construção da leitura e da escrita, bem como lembranças da maneira
como as primeiras professoras ensinaram a ler e a escrever, das relações
estabelecidas entre professor (a) e aluno (a) e também da relação do eu com o
outro. São memórias que atravessam o tempo e acompanham o fazer docente,
possibilitando ao professor refletir sobre elas.

Neste sentido, refletindo sobre as narrativas apresentadas por P1, P2, P3 e P4, apesar
da diferença de idade, com base em suas experiências escolares enquanto alunas,
apresentam concepções afins sobre da função da escola, do papel do professor e do aluno
tendo como base suas vivências como alunas e o método no qual foram alfabetizadas, no
caso o tradicional. Assim, evidenciaram que a escola era um espaço de disciplina, os
professores eram tidos como meros transmissores de conhecimento e o aluno um receptor
passivo desse conhecimento. O único saber necessário ao docente era o domínio do
conteúdo o qual iria lecionar.
Pela maneira como fazem suas colocações, os sujeitos da pesquisa, deixam
transparecer uma crítica severa ao método tradicional, além do reconhecimento de que um
dos atributos essenciais do professor alfabetizador deve ser a afetividade, característica não
identificada nos modelos de professores alfabetizadores que tiveram.

Eixo 2: período da formação inicial (graduação)


Quanto às contribuições da graduação para a identidade docente, P1 ressalta que
cursou Pedagogia no período noturno e evidencia em sua fala que possui algumas ressalvas
em relação aos cursos não-presenciais - “Eu fiz faculdade a noite e tive o prazer de ser
presencial graças a Deus”. Salienta que teve excelentes professores e considera que a obra
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 88
Didática Magna foi de grande relevância em sua formação e prática pedagógica a ponto de
considerar a referida obra “...a bíblia do professor”.
P1 dá continuidade às suas narrativas defendendo a sua concepção de criança:

A criança tem que ser ouvida, pois ela é uma caixa se surpresa. A todo momento
ela te oferece algo e não o contrário. A partir do que a criança evidenciou por meio
da fala, do olhar ou de suas ações, é possível identificar suas necessidades, sejam
afetivas, fisiológicas. A criança reproduz o que ela vivencia na escola, em casa, ou
seja, em todos os espaços sociais onde está inserida. Se todos os professores
tivessem um olhar sensível para perceber a infância, as crianças, conseguiriam
desenvolver um trabalho muito mais prazeroso e significativo.

No que tange aos saberes necessários à formação e atuação de um professor


alfabetizador, P1 julga que desse profissional é exigido que se tenha uma compreensão
acerca de como a criança aprende, uma vez que a aprendizagem é individual. Um trabalho
mal direcionado pode ocasionar bloqueios. Segundo P1 é preciso aliar teoria à prática.
P2 afirma que seu curso de graduação foi modalidade semipresencial e que a
aquisição do conhecimento durante esse período se deu muito pouco pelo contato direto
com o professor, muito mais em pesquisas na internet e pesquisa de campo - “As minhas
pesquisas fora do ambiente acadêmico foram muito mais significativas para a minha
formação do que as experiências vivenciadas na universidade”. Apresenta a sua concepção
de criança:

A criança deve vivenciar momentos da brincadeira, porém a ela deve ser atribuídos
deveres e obrigações, bem como deve haver a imposição de limites, pois a
sociedade atual assim exige. Como educadora, eu preciso objetivar a formação de
cidadãos. Criança tem que ser criança na hora certa, após a realização das
obrigações. (P2)

Ao discorrer sobre os saberes necessários à formação e atuação de um professor


alfabetizador, ressalta que um dos principais atributos é ser um pesquisador, deve ter como
prática a busca de informações e de métodos diferenciados a fim de possibilitar a
aprendizagem das crianças. “Hoje é muito difícil uma criança entender como antes”.
P3 se remete às contribuições da graduação para a sua identidade docente e expõe
que o que fez a diferença foi a professora Constantina, principalmente pelo seu
compromisso ético e temática de trabalho - “Direitos Humanos”. No que tange à sua
concepção de criança, P3 enfatiza que foi formada na graduação “... é um ser social que tem
voz e direitos. Assim, devem ser ouvidas e suas opiniões consideradas e valorizadas na
prática pedagógica.
Quanto aos saberes inerentes ao professor alfabetizador, ressalta a compreensão do
processo de aprendizagem da criança, ter clara a função social do professor e o tipo de ser
humano que quer formar e quais habilidades desenvolver.
Dentro desse eixo, apresenta-se finalmente as considerações de P4. Quanto à
graduação destaca as contribuições dos professores e do estágio supervisionado - “Foi no
estágio que eu descobri que estava me preparando para atuar na profissão certa”. Ao se
posicionar acerca da sua concepção de criança P4 defende que a infância está acabando e
que as crianças são miniadultos por questões que envolvem vestimenta e o comportamento
quanto ao manuseio precoce das tecnologias - “A gente tem que resgatar essa ideia de
infância que hoje está perdida”.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 89
Referindo-se aos saberes docentes, especificamente do professor alfabetizador, P4
enfatiza ser necessário o domínio dos conteúdos a serem ensinados, conhecer e conquistar
os alunos a fim de traçar o perfil da turma, manter a disciplina em sala de aula e ser capaz de
estruturar um bom planejamento.
Sendo assim, as narrativas apresentadas possibilitaram compreender que a entrada
das professoras na universidade possibilitou-lhes a realização de um contraponto entre esse
novo contexto, qual seja o meio acadêmico, e todas as experiências escolares, concepções e
saberes já constituídos. Sendo assim, ficou evidenciado que os vínculos de afetividade e de
confiança foram estabelecidos com os docentes da graduação, os quais constituíram-se
modelos para a prática docente dos sujeitos da pesquisa.

Eixo 3 – prática docente/formação continuada

Após as reflexões sobre das experiências escolares e a formação inicial, P1 descreve e


analisa sua identidade como professora alfabetizadora. Considera-se uma professora
pesquisadora uma vez que o sistema de escrita na alfabetização é complexo e exige
embasamento teórico do professor - “Eu me apoio na pesquisa a fim de possibilitar o
desenvolvimento de um bom trabalho e não me tornar uma professora de xérox”. Ressalta
que em sua prática procura não se remeter aos modelos de professores que teve na
infância/adolescência, mais uma vez a professora carrega o tom de voz e afirma: “Eu não
gosto nem de lembrar, prefiro pular essa parte”. Enfatiza que os impactos sofridos no início
da carreira foram inúmeros dentre os quais está o elevado quantitativo de alunos em sala de
aula - “Eu me assustei muito com o número de alunos por sala, eram 36 alunos na minha
turma de 2º ano e isso me causou muito medo e insegurança”. Outro aspecto mencionado
foi a discrepância existente entre o que é ensinado na graduação e a prática que envolve a
realidade de sala de aula.
P1 afirma que apesar dos impactos iniciais percebe-se professora a todo momento,
não apenas em sala de aula, mas em todos os espaços sociais que frequenta - “Ser professor
não é apenas sistematizar e executar bons planos de aula, é ir além da sala de aula e dos
demais espaços escolares. A busca por novos conhecimentos e estratégias eficazes para
possibilitar a aprendizagem dos alunos deve ser uma das principais ações do professor”.
“Tanto como os meus alunos eu já evoluí bastante”.
Salienta que a escola tem contribuído efetivamente para a construção da sua identidade
profissional, pois desde o início de sua prática tem “...carta branca da direção da escola...”
para realizar projetos e executar todas as ações que acredita que possam contribuir para a
aprendizagem dos alunos. Durante a realização desses projetos afirma: “Eu me sinto um
pouco criança juntamente com as minhas crianças. Por meio dos projetos eu consigo realizar
tudo aquilo que não foi possível realizar durante a minha infância”.
No que diz respeito aos recursos utilizados para promover a sua formação
continuada, P1 ressalta que participa do Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa –
PNAIC, oferecido pelo governo federal, além de participar de palestras e cursos oferecidos
pela Secretaria Municipal de Campo Grande/MS, dialogar com professores mais experientes
e realizar a leitura de teóricos da educação tanto nas aulas do curso de pós-graduação como
durante a sistematização dos planos de aula. De acordo com ela, para que a formação
continuada aconteça efetivamente faz-se necessário que o professor promova uma reflexão,
estabeleça uma paralelo entre as concepções já formadas com o que está sendo
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 90
apresentado como novo. Desse paralelo emergem novos conhecimentos, valores e novas
práticas docentes.
Ao apresentar a sua concepção acerca dos elementos que compõem a identidade
profissional do docente, P1 enfatiza questões de ordem teórica.
P2 tece algumas considerações sobre a sua identidade de professora alfabetizadora
enfatizando que se considera uma apaixonada pela educação e salienta que lhe falta
vivência na alfabetização, porém garante que carrega um desejo muito grande de superar os
obstáculos apresentados, principalmente a falta de embasamento teórico. Essa professora
também reconhece as influências dos modelos de professores que teve em sua prática
pedagógica. Porém ressalta que tenta unir as práticas docentes de sua infância com as atuais
a fim de aprimorar sua prática em sala de aula. Enfatiza que os impactos do início da carreira
foram muito grandes, uma vez que toda a sua experiência docente foi vivenciada em escolas
particulares e pela primeira vez leciona na rede pública na qual os alunos evidenciam uma
realidade totalmente divergente. Dessa forma, ela tenta suprir um pouco das carências dos
alunos, principalmente a afetiva - “Quero que eles me considerem futuramente e se
lembrem de mim assim como eu me lembrei dos meus professores anteriores”.
Afirma que se percebe professora tanto na vida profissional como pessoal, porém
confessa que - “Eu já pensei e tentei desistir da educação várias vezes, mas me convenci de
que ela é a minha paixão e busco a cada dia ser uma profissional melhor” (P2). Salienta que a
escola tem contribuído muito no processo de construção da sua identidade profissional -
“Mesmo sabendo que a minha experiência não era forte na alfabetização, eles depositaram
uma confiança em mim”. Afirma que o seu aperfeiçoamento profissional é alcançado por
meio das formações oferecidas pela secretaria de educação, pelo governo federal (PNAIC),
cursos gratuitos online, além das leituras na área da educação. Diz que todas as
oportunidades de se participar de momentos de formação continuada são válidas e tudo o
que for relevante é aplicado como ferramenta em sala de aula e na vida pessoal.
Quando questionada quanto os elementos que compõem a identidade profissional
do docente P2 sustenta que são as experiências compartilhadas com professores mais
antigos, os conhecimentos oriundos das pesquisas e da prática em sala de aula.
P3 trata de sua identidade de professora alfabetizadora como algo em construção e
evidencia insegurança e fragilidade teórica. Afirma que: “A universidade tenha contribuído
talvez para a quebra de alguns paradigmas, porém não forneceu uma carga de
conhecimento que me oportunizasse segurança ao alfabetizar uma criança”. Afirma que em
sua prática tenta romper com os modelos de professores que teve durante a sua fase de
alfabetização. Procura utilizar conhecimentos construídos durante a universidade. No início
da carreira afirma que o que a impactou foram a intensidade com que os problemas
externos influenciam em sala de aula “Muitas vezes a criança não tem modelos a seguir e se
apresenta totalmente apática e desinteressada em sala de aula” (P3).
Quanto a se perceber professora, P3 afirma, entre risos: “Eu acho que sim, quando
eu me importo com a aprendizagem e tento oportunizar vivências que talvez não fossem
possíveis em casa, motivá-los a fim de promover o resgate da autoestima”.
Ao fazer suas considerações sobre as contribuições da escola para a sua identidade
profissional, P3 indaga a pesquisadora, sorrindo - “A escola?” - o que evidencia dúvidas.
Posteriormente, responde positivamente e salienta que a escola possibilita que as teorias
apreendidas durante a graduação sejam postas em prática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 91


No tocante à sua formação continuada, P3 salienta que busca nas leituras e no curso
de pós-graduação e ressalta que a identidade profissional docente é constituída mais
amplamente pelo acervo teórico a que o professor teve acesso durante a graduação.
Finalmente, P4 apresenta suas considerações acerca de sua identidade como
alfabetizadora e afirma que está vivenciando uma crise de identidades, ou seja, está
tentando se desprender de modelos e de práticas dos professores da escola. Afirma que
procura remeter-se aos modelos de professores a que teve acesso durante a graduação:

“Eu busco os modelos de professores que eu tive na faculdade, eles eram


excelentes, além de atuarem no ensino superior vivenciavam e socializavam suas
experiências na educação infantil e no ensino fundamental (P4).

P4, pontua que o início da carreira foi muito difícil, pois há muitos contrastes entre a
realidade da escola e o que se visualiza na universidade. Além disso, as concepções acerca
do brincar, atividade tão importante na fase da alfabetização, verbalizados por diretores e
coordenadores das escolas, ou seja, muitas vezes é solicitado ao professor que foque na
alfabetização e reserve as brincadeiras para as aulas de Educação Física. Afirma que se
percebe professora, uma fez que a sua prática está dando resultados. Além disso, considera
que a escola tem contribuído na construção da sua identidade uma vez que: “É com as
pessoas que ali estão que eu busco referências diante das dificuldades”. Ressalta que a sua
formação continuada é realizada através da leitura de teóricos que tratam da educação em
sua totalidade e aborda aspectos relacionados à alfabetização. Está cursando o PNAIC.
No que tange aos aspectos que compõem a identidade profissional docente, P4
destaca as contribuições da graduação por meio da teoria a que os acadêmicos têm acesso.
Nesse processo de construção da identidade profissional, a influência dos modelos de
professores é fator de grande relevância. É gritante nas narrativas o quanto as experiências
escolares vivenciadas pelos sujeitos deste estudo, enquanto alunos foram negativas a ponto
de não serem revisitadas durante as suas práticas docentes. E, é válido salientar que a
maneira como esse docente é recepcionado pelos membros da comunidade escolar, o
relacionamento estabelecido com os professores mais experientes, bem como as
experiências vivenciadas em sala de aula são fatores que interferem diretamente na decisão
em permanecer ou desistir da docência e na construção da identidade profissional.
Diante do exposto torna-se relevante que sejam propostos modelos de formação
continuada, como o que é apresentado por Furlanetto (2007, p.26):

A descoberta desse “professor interno” multifacetado, ambíguo e complexo


possibilitou-nos das início à construção do conceito de Matriz Pedagógica, que
pareceu-nos fundamental para poder compreender os processos de formação
vividos pelos professores. Poderíamos, com base nessa ferramenta conceitual,
conhecer alguns núcleos de onde emergem as práticas dos professores.

Conclui-se que dentro de cada docente reside um “professor interno”. A partir do


momento em que o docente tem a consciência de suas matrizes pedagógicas, passa a
compreender todo o processo de construção de sua identidade profissional e assim terá a
oportunidade de ressignificá-la e redirecioná-la visando não somente a aprendizagem dos
discentes, mas um crescimento profissional.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 92


Considerações finais

Este estudo foi realizado a partir do reconhecimento e da relevância do


acompanhamento sistemático das professoras alfabetizadoras em fase inicial da carreira,
uma vez que é nesta etapa em que as concepções e saberes constituídos da infância à
graduação são testados e experienciados, gerando muitas vezes, segundo Silva (1997), um
período de “choque com a realidade”.
O foco da pesquisa centrou-se no processo de formação da identidade profissional de
quatro professoras alfabetizadoras na tentativa de identificar concepções e saberes. Assim,
por meio da metodologia qualitativa e das histórias de vida essas informações puderam ser
evidenciadas e analisadas em três eixos principais.
No primeiro eixo ficou explicitado que essas professoras foram alfabetizadas no
método tradicional de ensino e que de uma forma ou de outra as concepções e saberes
constituídos nesse período permearam todo o período de graduação e da prática docente,
uma vez que tiveram que ser ressignificados e continuam sendo - “É preciso entender o
conceito de identidade docente como uma realidade que evolui e se desenvolve tanto
pessoal como coletivamente” (GARCIA, 2010, p.19), ou seja, ela não é dada ou adquirida,
mas sim desenvolvida por meio das diversas experiências sociais vivenciadas pelos docentes
desde a infância.
No segundo eixo, as professoras apresentaram uma grande ênfase aos modelos de
professores que tiveram durante a graduação, salientando que são esses os modelos
referenciados durante a prática pedagógica. Cabe ressaltar a relevância da realização de
novos estudos a fim de averiguar se os professores universitários tem essa consciência no
que se refere a sua contribuição no processo de construção da identidade dos futuros
professores.
Apesar de todas as contribuições dessa etapa percebe-se por parte dos sujeitos da pesquisa
uma fragilidade teórica sobre a concepção de criança, já que nesta pesquisa estão em
questão aspectos relacionados à alfabetização. Além disso, percebe-se a utilização de
jargões teóricos adotados por essas professoras no processo de alfabetização.
No terceiro e último eixo, momento da prática pedagógica e formação continuada, as
professoras se reconhecem professoras em todos os momentos e lugares, porém quando
questionadas sobre a sua identidade profissional, as mesmas reforçam que estão em
construção e apesar de evidenciarem todo um mal estar gerado em suas primeiras
experiências escolares, as professores não identificam essas experiências como elementos
que compõem a sua identidade profissional, ou seja, os saberes experenciais, ou seja, a
maneira como se reconhecem enquanto educadoras.
A partir do exposto, pretendeu-se evidenciar neste estudo que todas essas vivências
estão presentes no cotidiano das professoras iniciantes em forma de concepções e saberes
estabelecidos. Esses saberes são postos a prova e ressignificados na prática docente o que
muitas vezes geram um choque com a realidade. Assim tornam-se necessárias a
sistematização e implementação de Programas de Formação em ambientes externos e
internos ao espaço escolar a fim de minimizar esse choque, uma vez que identificam as
experiências que vivenciaram durante o seu período de escolarização, principalmente na
fase da alfabetização, compreender-se-ão quanto à sua prática pedagógica, possibilitando
assim a efetivação de mudanças.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 93


Toda essa reflexão possibilitou-nos visitar e revisitar fatos, lugares e pessoas que
contribuíram para a construção da nossa identidade e na posição de pesquisadores nos
sensibilizou no tocante à percepção e às atitudes a serem tomadas com relação aos
professores iniciantes.

Referências
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SILVA, Maria Celeste Marques da Silva. O primeiro ano de docência: o choque com a
realidade. In: ESTRELA, Maria Teresa . (Org). Viver e construir a profissão docente. Portugal:
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pedagógica. Tradução de C. Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2002.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 13. ed. Petrópolis-RJ: Vozes,
2012.
THOMPSON, Paul. Avoz do passado:história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 94


“Cosme de Farias e sua contribuição para a formação da cidadania baiana”

Andrea Tourinho Pacheco de Miranda


FRB
andreatourinho@gmail.com

Este trabalho relata a história da vida de Cosme de Farias (1875-1972), advogado provisionado, nascido na
Bahia, que dedicou sua vida em defesa dos pobres e das causas sociais. Nossa pesquisa procura demonstrar sua
atuação como educador e sua importância na construção da cidadania, sobretudo a criação da Liga Baiana
contra o Analfabetismo, órgão fundado por ele em 1915 e a elaboração da Cartilha do ABC, manuscrito
distribuído por ele em diversas escolas baianas e em eventos públicos. A Cartilha do ABC, era uma pequena
cartilha, dedicada as crianças proletárias, elaborada e confeccionada por ele mesmo, e que foi distribuída
gratuitamente nas ruas e escolas públicas naquele período histórico. A Cartilha possuía sua própria
metodologia de ensino, onde constava na página 3, o hino da campanha do ABC, em seguida, havia o alfabeto
redondo maiúsculo, seguido do minúsculo, as consoantes minúsculas e maiúsculas respectivamente, frases
iniciais com os fonemas, lista de músicos notáveis, militares, oradores, jornalistas, poetas, estadistas,
magistrados, médicos populares, engenheiros distintos, homens de grande coração, marujos, professores
primários brilhantes, versos dele, hinos patrióticos, (hino nacional brasileiro, hino 2 de Julho, hino a bandeira
nacional, hino da proclamação da república, hino da independência do Brasil), e alguns escritos populares
denominados de “verdades engraçadas”. A Liga Baiana contra o Analfabetismo passou a ter existência em
1915, mas se manteve durante mais de sessenta anos, apoiada por duzentas escolas aproximadamente, onde
se alfabetizavam jovens e adultos, e, segundo consta em depoimentos, até hoje nenhum movimento teve
repercussão tão gigantesca como a Liga Baiana Contra o Analfabetismo, sendo um marco para a formação da
cidadania baiana.
Palavras-Chave: Cosme de Farias; Educador; Liga Baiana Contra o Analfabetismo; Cartilha do ABC; Cidadania.

Introdução

Cosme de Farias nasceu em São Tomé de Paripe, subúrbio de Salvador, na Bahia, em


02 de abril de 1875, filho de Paulino Manuel, um pequeno comerciante, e de Júlia Cândida
de Farias, dona de casa. Concluiu apenas o curso primário na Escola Benvindo Siqueira,
localizada nos arredores da Igreja da Conceição da Praia, em Salvador, em uma época em
que a educação era privilégio de alguns e os negros raramente frequentavam a escola.
Aos 13 anos de idade, Cosme de Farias vivenciou a abolição da escravatura que se
deu em 1888, tendo a oportunidade de discursar sobre o tema, em diversas comemorações .
Nesse período, a Bahia era constituída de muitas fazendas situadas no interior, com alto
índice de mão de obra escrava. Essa minoria nunca teve acesso à educação no Brasil, sendo
esta inatingível para a população negra.
Cosme de Farias, nasceu nesse período de desigualdades e, talvez por isso, teve a
importante função de protetor dos marginalizados, dedicando sua vida sempre a favor dos
excluídos, dos portadores de transtornos mentais, das prostitutas. Seu trabalho para a
erradicação do analfabetismo na Bahia, foi intenso, marcado pela criação da Liga Baiana
contra o Analfabetismo.
Mesmo sem titulação acadêmica, Cosme de Faria criou a Liga Baiana contra o
Analfabetismo, uma das principais referências do seu trabalho e a qual lutou até a morte, sendo
destaque na sua função como educador.
O entusiasmo pela educação, até como forma de ressocialização do detento, era constante
nas ideias de Cosme de Farias, cujo sentimento era perfeitamente expressado em seus textos,
cartilhas e poesias.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 95


Campanha do abc e a liga baiana contra o analfabetismo: uma luta incansável

Cosme de Farias criou a Campanha do ABC, e em 1915 a Liga Baiana contra o Analfabetismo
(LBA). O Major abraçou a causa, participando de uma grande mobilização para a alfabetização de
crianças, demonstrando a sua preocupação pelas causas sociais e pela democracia, que só é
alcançado através da implementação e investimento na educação. A Liga Baiana contra o
Analfabetismo tinha esse propósito.
O sentimento patriota do Major Cosme de Farias era também percebível por todos,
principalmente nos eventos cívicos, quando desfilava de terno branco, com fitinhas verdes e
amarelas pregadas em seu terno, discursando e distribuindo as Cartilhas do ABC.
Nas comemorações pela independência da Bahia, do Brasil, da Proclamação da República, o
Major, quando podia, aparecia com faixas onde se podia ler: “Abaixo o Analfabetismo! um ideal que
foi sempre por ele defendido.
O Major sempre discursava em defesa da cidadania e da alfabetização das crianças carentes.
A referida campanha foi oficializada pela “Liga Bahiana contra o Analfabetismo” (LBA). A cidadania e
a inclusão social eram fortemente difundidos em suas campanhas.

A carta de abc

Em 1970, o Major Cosme de Farias distribui a Carta de ABC, uma pequena cartilha, dedicada
as crianças proletárias, confeccionada por ele mesmo e que foi distribuída gratuitamente nas ruas e
escolas públicas.
A Cartilha possuía sua própria metodologia de ensino, onde constava na página 3, o hino da
campanha do ABC. Logo em seguida, havia o alfabeto redondo maiúsculo, seguido do minúsculo, as
consoantes minúsculas e maiúsculas respectivamente, frases inicias com os fonemas, lista de
músicos notáveis, militares, oradores , jornalistas, poetas, estadistas, magistrados, médicos
populares, engenheiros distintos, homens de grande coração, marujos, professores primários
brilhantes, versos dele, hinos patrióticos , ( hino nacional brasileiro, hino 2 de julho, hino a bandeira
nacional, hino da proclamação da república, hino da independência do Brasil), verdades
engraçadas.22
Na capa da cartilha, se estampava a seguinte frase: “A Cartilha do ABC é Chave da
Sabedoria”. Na contra- capa, o Major fazia um apelo, assinado de próprio punho:

Professor amigo:

Tenha paciência com a criança que apresentar esta CARTA, e ajude a


mesma a aprender depressa.
Será um relevante serviço prestado à nossa Pátria. Muito grato a JESUS que proteja e
abençoe a todos que protegem A Campanha do A B C.

Com muito empenho e carisma, o Major, conseguiu apoio de muitas pessoas que aderiam
aos seus apelos e com isso, se estimulou a educação, com seu jeito simples em promover o bem.
Dessa maneira, Cosme de Farias não só conseguiu apoio de professores leigos, mas também
de educadores capacitados que eram motivados por seus ideais e contribuíam com o movimento.
Essa atitude altruísta, fez com que os educadores que inaugurassem escolas, passassem a receber o
título de delegado da Liga Baiana contra o Analfabetismo.

22
Cf. FARIAS, Cosme de. Carta de ABC. (s.e) (s.d)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 96


Com a abertura de escolas, a Liga Baiana contra o Analfabetismo oferecia material e apoio
para seu regular funcionamento. Destacamos algumas escolas que foram abertas e apoiadas pela
LBA, como a Escola de São Roque, Escola Cosme de Farias, (no Centro da cidade), Escola Joviniano
dos Passos e Escola Antônio Viana. Milhares de Cartilhas do ABC foram editadas e distribuídas.
O Major fez dessa luta a sua vida. Pedia ajuda a conhecidos e autoridades, sem nunca deixar
de acreditar nesse ideal. Todos esses pedidos eram feitos, muitas vezes a autoridades, e quando
podia, o Major reiterava o pedido por meio da imprensa, como foi a solicitação feita ao Secretário de
Saúde, Manoel Artur Vilaboim, promessa que foi relembrada na sua coluna Linhas Ligeiras23:

Linhas Ligeiras

O Dr. Manoel Artur Vilaboim, ilustrado secretário de Saúde Pública deste grande Estado,
prestará um grande benefício à educação das crianças da Bahia mandando comprar duas mil
bandeiras do Brasil, tipo médio, para serem distribuídas gratuitamente pelas escolas
primárias, públicas e particulares de todo o nosso querido território, onde, infelizmente, em
dezenas de localidades o auriverde pendão ainda é desconhecido, conforme por diversas
vezes tenho dito.
Faço, pois, neste sentido, um sincero e forte apelo aos sentimentos cívicos de S. Exa. e espero
que desta feita o meu justíssimo reclamo seja, sem delongas, atendido. (Cosme de Farias)

Como se vê, o sentimento de cidadania e patriotismo constantes na vida e nos textos do


Major. Na Carta de ABC, por exemplo, em “Versos à Infância” (pag. 33), ele expressava seu
sentimento cívico com veemência, de uma maneira contagiante e entusiasta:

Versos a infância24

Crianças: - amai a Pátria,


A vossa Pátria gentil!
Trabalhai, quando crescerdes,
Pelas glórias do Brasil!

A terra de vosso berço,


Tem reverberos e flores,
Incalculáveis riquezas,
Maravilhas e primores!

Correi, portanto, às escolas,


Para o batismo da luz...
Palpita na voz dos mestres
A doce voz de JESUS! [...]

Respeitai vossos maiores


Os patriotas sinceros,
Derrubai as tiranias,
Os Bandoleiros e os Neros.

23
FARIAS, Cosme de. Carta de ABC. (s.e) (s.d).
24
FARIAS, Cosme de . Carta de ABC. (s.e) (s.d).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 97


Na mesma Cartilha, O Major escreve o Hino da campanha do ABC.25

Hino da Campanha do A B C:
Pelo bem de nossa Pátria,
Florão gentil do Civismo,
Moços e velhos erguei-vos
Contra o analfabetismo!

Desfruta muitos prazeres,


Uma alegria sem par,
Toda pessoa que sabe
Ler, escrever e contar!

O gérmen da Ignorância
Diversos males produz,
Mate-se, pois, este “bicho”
Dentro de um jorro de LUZ!

A ciência é um Tesouro.
Tesouro de alto valor,
Quem dedicar-se aos estudos
Pode dele ser senhor!

O Brasil será maior.


Oh! Que Nação respeitada!
Quando toda sua gente
For uma gente letrada!

Corações grandes e nobres,


Vinde, sorrindo ajudar
A meritória Campanha
Da Instrução Popular!.

A Liga Baiana contra o Analfabetismo, passou a ter existência em 1915, mas se manteve
durante mais de sessenta anos, apoiada por duzentas escolas aproximadamente, onde se
alfabetizavam jovens e adultos.
Segundo registro de jornais locais com declarações de contemporâneos, até hoje na Bahia,
nenhum movimento contra o analfabetismo teve repercussão tão gigantesca como a Liga Baiana
contra o Analfabetismo, que pode promover a inclusão e difusão da educação aos menos
privilegiados.

Conclusão

A história de vida do Major Cosme de Farias serve como um estímulo para as pessoas
resilientes. O Major reverteu o seu status, trabalhando pela inclusão social e defesa da
cidadania, num tempo de “homens de anel no dedo e de diploma de Direito”.
Cosme de Farias foi um rábula, defensor dos excluídos e da cidadania, trabalhando
para a população carente, os excluídos e marginalizados, tornando-se uma das figuras mais

25
Idem.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 98
importantes da Bahia antiga. Sua carreira foi marcada entre as defesas jurídicas, o
assistencialismo, a luta pela erradicação do analfabetismo, a contribuição para a formação
do jornalismo destemido e a militância política em favor das classes destituídas de
oportunidades.
O Major Cosme de Farias se dedicou as causas sociais e sua campanha contra o
analfabetismo, deve eternamente, a sua solidariedade e vontade de realização,
especialmente por suas ideias visionárias que colaboraram para a construção de um Brasil
democrático. Considerado como um homem “acima do seu tempo”, no que concerne ao
cumprimento dos direitos fundamentais e da construção de uma sociedade mais justa,
Cosme de Farias foi um guerreiro da cidadania.
Em suas últimas vontades, Cosme de Farias se despede do mundo, fazendo um apelo
altruísta, que foi atendido por todos aqueles que jamais o esquecerão:

(...) “Fiz do bem o meu pendão e do trabalho honesto o meu escudo” Caso o
governo do Estado, a Assembleia Legislativa da Bahia, a Prefeitura deste município
e a Câmera de Vereadores de Salvador queiram, num belo gesto de fidalguia
espiritual, fazer o meu enterro, dispenso essa delicada atitude. Quero ser sepultado
em cova rasa, na Quinta dos Lázaros, sendo meu caixão de 3ª classe, tendo por
cima, apenas umas florezinhas. Se algumas pessoas generosas quiserem oferecer-
me coroas, flores e capelas peço-lhes encarecidamente, que apliquem o dinheiro
destinado a compra das
mesmas, em favor das casas-pias, como por exemplo: a Vila Vicentina, Instituto
Alberto de Assis, antigo Instituto dos Cegos da Bahia.26

Referências
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Bastos. 27. ed. Rio de Janeiro: Record, 1977.
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198CARVALHO, Aloysio de. A Imprensa na Bahia em 100 Anos. In: TAVARES, Luis Guilherme
P. Apontamentos para a história da imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da
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HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil
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______________. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. Histórico do Asilo São João de Deus /Hospital Juliano Moreira
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SANTANA, Jussilene. Luta Contra o Analfabetismo. Correio da Bahia, Salvador, 07 abril 2003,
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DOCUMENTAÇÃO ESCRITA
Local: Arquivo Público do Estado da Bahia. (APEB).
Seção Republicana
Secretaria de Saúde. Grupo: Hospital Juliano Moreira – HJM.
1) APEB :220/184/2
2) APEB: Caixa n. 3195, of. 18, 28.01.1935).
3) APEB: Caixa nº 3190/ 216/ ano: 10.09.1922).
4) APEB: 3200/267/ ano: 23.12.41).
5) APEB: 220/184/26.

SEÇÃO JUDICIÁRIA
1) CAIXA nº 219. Habeas Corpus.
( 19/150/155/1/ 50 ). Bilhete de Sérgia Ribeiro. Documento.
2) CAIXA nº 220. Habeas Corpus (184/ 26).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 100


Por caminhos contados e estéticas narradas: elementos que compõem a professoralidade

Anthony Fábio Torres Santana


PUC-RS
afabiotorres@hotmail.com
Maria Emérita Jaqueira Fernandes
UESB
meljaqueira@gmail.com

Este texto apresenta um estudo acerca das estéticas que compõem os movimentos do ser professor.
Denominamos de estéticas docentes as experiências resultantes das ações dos alunos e professores, de seus
atravessamentos, das misturas dos corpos, quando do desenvolvimento dos processos de ensino-
aprendizagem. O campo de pesquisa em que atuamos foi o da formação do professor e o objeto em questão é
o docente da educação básica. O professor, nesse contexto, é entendido como aquele que aceita conduzir a
criação de espaços de convivência. Nossa problematização, ao trazer a formação em seu cerne, e esta,
concebida como movimentos de linhas e segmentaridades, dá mostras de conduzir a produção da
subjetividade que ensina e constitui o professor. A questão que nos mobilizou a caminhar por estas e outras
rotas, impulsionou inquietações e análises: como as experiências que compõem as estéticas dos professores,
os constituem docentes? A justificativa para a realização deste estudo, reside no fato de que tornar-se
professor, é uma jornada inconclusa. A prática docente, via de regra, se constitui em ações mediadoras entre
os diferentes mundos que se entrecruzam. Por isso, pelo fato de serem mundos vivos no tempoespaço, essa
mediação implica em permanentes tramas de estudo, aprendizagem, formação e proposição. Esta pesquisa, de
cunho qualitativo, numa abordagem (auto)biográfica desenvolveu-se no período de 18 meses, tendo como
partícipes três professoras do ensino básico da rede pública municipal, de uma cidade do interior de Sergipe.
Utilizamos para compor o campo metodológico, entrevistas semi-estruturadas, conversas informais e
narrativas. Nestas, as marcas das histórias de vida transparecem no processo formativo das docentes
estudadas, quando do resgate de suas práticas de formação. O resultado da pesquisa é um recorte da
produção subjetivada da vida profissional destas três professoras, a partir dos movimentos que as fazem
docentes e ao mesmo tempo criam seus desmanches.
Palavras-chave: Professor; Estética; Formação.

Iniciações...

Pretendemos com este texto, compreender como as experiências que compõem as


estéticas dos professores, os constituem docentes. Fizemos este percurso, através do olhar,
para o que chamamos de movimento estético do ensinar, percorrendo assim, caminhos a
pensar os conceitos de estética e professor, bem como seus entendimentos na educação.
Denominamos de movimento estético do ensinar, a ação desenvolvida entre a prática do
ensino, e a experiência estética apreendida nessa relação.
Nesse contexto, refletimos a estética enquanto materialidades que nos compõem, e
decompõem em movimentos simultâneos, no estabelecimento das relações cotidianas. E o
professor como aquele que aceita conduzir a criação de espaços de convivência. Dessa
forma, este trabalho vislumbra um olhar acerca das estéticas que estão compondo os
movimentos do ser professor, nas relações desses profissionais com seus alunos, na vida.
Vale ressaltar, que a ideia de estética aqui empregada não compõem com os lugares
comuns do que possamos achar ou não belo, mas sim, com as expressões artísticas, com a
ética, onde a vida possa ser vista através dos acontecimentos, por meio das ações em um
estado de constantes aprendências, como forma de perceber que a educação é sempre
abalos, respiração, transpiração, inspiração, suor, expressões, vozes, dores e principalmente
vida.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 101
Assim, a estética docente que estamos experimentando se revela pelas relações de
aprendências e ensinâncias, através das misturas dos corpos presentes nas tramas tecidas
entre professores e alunos, ou seja, nos movimentos dos docentes, quando do
desenvolvimento dos processos de ensino-aprendizagem. Essa estética vai se compondo nos
atravessamentos, quando da tecitura das experiências resultantes das ações do aprender e
do ensinar.
Pensamos ainda a estética docente como um infinito compor-se, uma constante
transmutação do ser professor. Tecituras em movimentos de desfeituras, um processo de
contínua desconstrução e reconstrução, do docente que por acaso achávamos que
tínhamosaprendido a ser nos bancos das universidades.
Não nos esqueçamos de que aprender é tornar-se desigual, acentuação das
diferenças que estão a nos percorrer, é perceber-nos indivíduos esteticamente singulares,
ainda quedentro dos territórios que aprisionam os saberes. Aprender requer que sejamos
não apenas professores, alunos, mas também decifradores de signos, que estejamos atentos
às nuances que nos envolvem quando tramamos nossas relações.
Ao falarmos em estética e docência, estamos pensando na produção das
subjetividades, nas materialidades que compõe os modos de existência a partir das relações
e experimentações com a vida. Assim, as tecituras que vão compondo as linhas da docência
se modificam a cada ação que propomos, ou mesmo que nos atinge dentro dessa ampla
“conjuntura” chamada educação. São encontros que nos mostram possibilidades para
refletirmos sobre nossos pensamentos e ações para com os outros, bem como acerca das
ações do pensar exteriores a nós, materialidades estas, também encontradas no professor
que estamos sendo.
A partir de agora, convidamos você que nos ler, a transitar conosco, através das
linhas acerca do ser professor, esclarecemos de antemão, que trata-se apenas, de algumas
possibilidades.

Linhas acerca do ser professor... pela possível composição do conceito

Diferente do que muitas pessoas pensavam, e outras ainda continuam pensando,


particularmente nunca enxergamos os professores, como aqueles que sabiam algo, e que do
alto do pedestal imaginário criado por alguns deles, buscavam somente transmitir
determinados conhecimentos aos seus alunos. Na contramão desse pensamento, desde
muito cedo passamos a compreender os professores por outro viés, a partir da possibilidade
de pensá-los artistas.
Artistas capazes de criar para si não uma identidade, um modelo de docência, mas
sim, de produzir diferenças no infinito percurso de tornar-se professor. Como nos mostra
Marcos Villela Pereira (2013):

[...] a professoralidade não é uma identidade que um sujeito constrói ou


assume ou incorporamos, de outro modo, é uma diferença que o sujeito
produz em si. Vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é
diferir de si mesmo. E, no caso de ser uma diferença, não é a recorrência a
um mesmo, a um modelo ou padrão. Por isso, a professoralidade não é, a
meu ver, uma identidade: ela é uma diferença produzida no sujeito. E,
como diferença, não pode ser um estado estável a que chegaria o sujeito. A
professoralidade é um estado em risco de desequilíbrio permanente. Se for
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 102
um estado estável, estagnado, redundaria numa identidade e o fluxo seria
prejudicado. (PEREIRA, 2013, p. 35)

Mas como conceituar o professor? Como fazer fluir as palavras que possam juntas
dizer o que é ser professor? Quem é o professor? O que pode um professor? Acontece que
este é um conceito o qual possivelmente as palavras não conseguem, nem dariam conta.
Penso que sempre faltarão termos, ou mesmo expressões que possam mostrar algo que
ainda ficou por ser dito em relação a ser professor.
Pensamos, que dentre as possibilidades do ser professor, a sua atuação em sala de
aula, mostra-se na maioria das vezes, como movimentos potentes e potencializantes, ao
passo que permite que os alunos tenham contato e experimentem a construção de novos
conhecimentos, apresentando ainda a esses, outras formas de acioná-los. A questão que
aqui está imbuída é a da possível afetação de diferentes vidas que o professor tem durante a
sua prática de ensino. Esta, comumente produz nomadismos no pensamento das pessoas,
alunos, que por sua vez em alguns casos, também já são professores.
São experiências... Composições de encontros em sala de aula. Como ensinar se não
há convite para experimentações em conjunto? Dessa maneira, o embasamento para as
mudanças do pensar, e consequentemente do ser aluno e professor, também passa pelas
desconstruções, pelos experimentos do cotidiano, na perspectiva da composição de novos
conhecimentos.
Perpassando tais ações encontramos o pulsar dos sentimentos que nos acompanham
às vezes alegres, por outras tristes, revoltosos, nunca saberemos de antemão. A nós caberá
sempre a coragem de percorrer os caminhos que através dos nossos alunos também nos
chegam.
Assim, o professor é responsável pela criação de espaços de convivência. A criação
desses espaços é vital para o transitar de múltiplas opiniões, onde as diferenças possam
dialogar harmoniosamente na construção de caminhos ainda não percorridos.
Possivelmente o professor apresente-se ainda, como encorajador dentro do processo de
condução dos alunos até a aprendizagem, já que por vezes “foge” a coragem do pensar, e
agir sozinhos a esses. Não nos esqueçamos de que igualmente, nessa “fuga”, o processo de
ensino se constrói em via mútua. Nenhum professor irá apenas ensinar em toda uma aula,
de forma que seus alunos não irão apenas aprender na mesma, são diálogos, conversas a
tecerem lugares desconhecidos, rotas a serem desbravadas.
Se possível, devemos estar sempre abertos a acolher as vozes, as falas, os diferentes
espaços de convivências criados, também através das ações dos nossos alunos, dessa forma
a construção mútua do conhecimento se fortalece, são tecituras do que os ecos dos
encontros estão a nos dizer, e assim, igualmente a nos ensinar.
Vejamos agora, o que o Deleuze nos fala em seu Abecedário (1988) na letra P de
professor:

É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do


qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar. É
preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que... É muito
divertido, é preciso encontrar [...] É como uma porta que não conseguimos
atravessar em qualquer posição. (Abecedário de Gilles Deleuze, Letra P de
Professor)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 103


Pensamos que o professor precisa estar impregnado de vida, para assim compor os
movimentos estéticos do ensinar. Quando o Gilles Deleuze nos diz que é preciso ensaiar,
pensemos em “tecer” conceitos, senti-los, utilizá-los em nosso cotidiano, pensemos em
lançar convites aos nossos alunos e juntos irmos todos ao encontro deles, talvez esta ação
propicie a nós, a sensação de estarmos vivos.
Tal ação implica em reconhecermos as multiplicidades que estão em sala de aula.
Salas essas, que podem nem sempre ser aquelas clássicas com cadeiras enfileiradas, e um
birô, ou tablado posicionado lá na frente. São os encontros das singularidades, que
acentuam as diferenças potencializantes da vida, que nos fazem conhecer outros caminhos,
e nos convidam a percorrê-los.

Estética... pensando possibilidades e relações

Quando pensamos em estética, buscamos deslocar-nos do lugar comum que é o


caminho curto e previsível do pensamento acerca de um estilo, ou modelo com
características mensuráveis e previsíveis. Algo posto, definido e acabado. Seguindo essa
linha do pensar procuramos ainda nos desapegar do tradicional dualismo que insiste em nos
perseguir e partir ao meio, quando da atribuição do conceito de belo ou feio ao que nos
propomos refletir.
Provavelmente, um dos primeiros passos que precisamos dar na busca por
entendimentos sobre a estética, seja não relacioná-la com perspectivas abstratas. É
imprescindível entender estética como materialidades que nos compõem, e decompõem em
movimentos simultâneos, no estabelecimento das relações cotidianas. “O importante é não
encarar o fenômeno estético de modo abstrato e distante”. (PERISSÉ, 2009, p. 45)
A estética que estamos pensando é antes um modo, a composição do que nos
tornamos, quando das ações que constituímos perante a vida. São dissonâncias a nos
compor, heterogeneidades que nos põem em movimentos de desconstruções e construções
acerca do que somos no agora, no presente que acabou de passar.
Dessa forma, ao nos propormos pensar o movimento estético do ensinar, sentimos a
necessidade de entender quais elementos estão transpassando e compondo a docência
cotidianamente. Mais ainda, se faz importante, percorrer junto os seus movimentos,
perceber quais as linhas e territórios estão produzindo as suas subjetividades, possibilitando
as transformações que vivemos no percurso que é tornar-se professor.
É importante atentarmos que não se trata de criar para si uma estética, mas sim, de
perceber quais as linhas que estão a compô-la através das experiências tecidas com os
outros, consigo mesmo e com a vida.
Possivelmente, a existência de algumas formas equivocadas de pensar a estética, se
deva ao entrelaçamento das fronteiras entre a vida e a arte na contemporaneidade. Somos
cotidianamente bombardeados por elementos inerentes ao campo artístico, são criações
que por vezes nos levam a refletir acerca da sociedade a qual estamos inseridos, das tramas
que temos tecido, mas que também são responsáveis pela propagação de uma acentuada
tendência de homogeneização entre as relações, produzindo portanto modelos de
existência, não contribuindo dessa forma, para o surgimento de outros possíveis estilos de
vida, que se mostrem singulares a partir das relações entre a vida e a arte.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 104


[...] a dissolução da arte na vida não tornou nossa existência propriamente
criadora. A estetização da existência na contemporaneidade parece não
significar um incremento da invenção de formas de vida. De fato, a
disseminação da arte na vida contrasta com uma tendência de
homogeneização das relações entre as subjetividades, de suas formas de
comunicação, de suas formas de entretenimento, de suas formas de
circulação de informação e cultura. A mescla arte e vida não trouxe como
efeitos a criação de novas formas de perceber e pensar [...]. (FARINA, 2009,
p. 5)

Portanto, buscamos refletir a estética, a partir das nossas próprias experiências,


daquelas que compusemos através das relações constituídas com outras pessoas... Com as
obras de arte, com a música, com a literatura, com os nossos professores, com os nossos
alunos, com a vida. Trazemos conosco possibilidades e marcas, um pouco de cada corpo que
nos afetou. Para tanto, não podemos pensar em unidade, essência, mas sim, em imanência,
campo fértil compondo movimentos, sendo sensíveis ao ponto de quando tocados compor-
nos outros.Dessa forma, diferimos do que estávamos a ser, não somos apenas nós, nem só
os corpos que nos afetaram, porém, outros. “Entendemos que experimentada é a pessoa
que, justamente por ter tido as experiências que teve, está aberta a novas e inéditas
experiências. Experimentado não é aquele que sabe, mas, ao contrário, aquele que está
aberto ao porvir, o que ainda não sabe”. (PEREIRA, 2010, p. 110)
Pensamos ser imprescindível estarmos, sempre que possível, abertos à composições
de processos experimentais, experimentar é tecer encontros, precisamos reconhecermo-nos
enquanto indivíduos transitórios. Mudamos constantemente... Formas de pensar, ações e
mudar é tornar-se outro.
Nessa perspectiva, pensamos ser importante refletir acerca da possibilidade de uma
vida de autoria de si. Pensar sua própria autoria, requer que estejamos cientes das ações e
forças que estão de alguma forma nos afetando. Esta ação sugere ainda, que nós, enquanto
indivíduos comprometidos com a nossa existência, possamos intervir na composição estética
do que estamos a nos tornar. Essa tomada de decisão implica possivelmente em assumirmos
os riscos de nos compor outros, ou na reafirmação de modelos que já estão a fazer de nós o
que somos.
Ressaltamosainda, que a vida de autoria de si, implica também em uma atitude
estética, no comprometimento e no cuidado quando das tecituras das nossas relações. Esse
possível modo nada tem a ver com esquemas ou conceitos pré-definidos, mas de outra
maneira com os encontros da vida. Antes de pensarmos na atitude, devemos estar no
mundo, atirando-se à vida.
A autora Nadja Hermann (2010), ao referir-se à criação de si, nos fala dessa
construção enquanto uma: “tarefa ética e estética, envolvendo o sensível e o racional, o
singular e o universal, enfatizando que a relação entre os domínios tão separados não é de
oposição ou exclusão, mas de complementação”. (p.22). Levando-nos a pensar a estética
como um possível espaço de refúgio à pluralidade.
Foi pensando na possibilidade de outro olhar acerca da tecitura que está a compor a
docência, que resolvemos nos instrumentalizar com os conceitos de professor, e estética.
Procurando dessa forma, nos colocarmos atentos e refletir sobre um tornar-se docente que
não acaba nunca, compondo assim, no percorrer dessas linhas, encontros possivelmente
não mensuráveis, já que, existem sempre ressonâncias de autores lidos, de pessoas com as
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 105
quais compusemos encontros, proporcionando desse modo, a abertura para o
reconhecimento da alteridade nessas relações, produzindo assim, sentido ao que nos chega
de fora, através do outro.

Aspectos metodológicos

Para entendermos o contexto em que se insere o presente estudo, achamos válidas


algumas considerações metodológicas.
O campo de pesquisa em que estamos atuando é a formação do professor, e o objeto
em questão é o docente da educação básica. A nossa problematização continua sendo a
formação, a qual pensamosenquanto movimentos de linhas e segmentaridades,
considerando a produção da subjetividade que ensina e constitui o professor. Assim, a
questão que nos mobilizou a caminhar por estas e outras rotas, e impulsionou inquietações
e análises, foi: como as experiências que compõem as estéticas dos professores, os
constituem docentes?
Na procura pela composição de um campo metodológico menos cartesiano, onde
possam transitar as vozes das docências para escrever conosco estas linhas, é que buscamos
mostrar os caminhos percorridos por essa pesquisa. Para tanto, se fez necessário nos
colocarmos atentos às histórias e experiências trazidas pelas professoras pesquisadas.
Esta pesquisa de cunho qualitativo, numa abordagem (auto)biográfica, desenvolveu-
se no período de 18 meses, tendo como partícipes três professoras do ensino básico da rede
pública municipal, de uma cidade do interior de Sergipe. Utilizamos para compor o campo
metodológico, entrevistas semi-estruturadas, conversas informais e narrativas.
Para a composição deste texto, optamos por trazer apenas o recorte do trabalho com
uma das professoras. O motivo, é que o material coletado com as entrevistas, é muito
extenso.
Ao pensar esta pesquisa, não foi nosso foco a busca por qualquer tipo de verdade, ou
sequer apontar modelos, mas sim, perceber o delineamento através das experiências
relatadas pelas professoras pesquisadas, acerca de como estas chegaram a ser as docentes
que estão sendo no presente, qual é a estética, ou quais são as estéticas que estão a
transpassá-las no agora.
Assim, a pesquisa teórica forneceu o aporte para o desenvolvimento e a
compreensão das análises dos conceitos utilizados no decorrer do estudo.Por outro lado, ao
optar-se por entrevistas semi-estruturadas, e conversas informais, a intenção foi poder
construir um diálogo fluido, mas ao mesmo tempo produtivo com os sujeitos da pesquisa.
Estes foram três professoras atuantes no ensino básico, sendo todas pedagogas, mas
algumas com várias formações, a exemplo de uma que também é formada em Letras e outra
que, igualmente, é Artista Plástica.
A escolha por trabalhar com essas docentes foi pautada no acesso que tínhamos a
elas, já que todas haviam sido professoras de um dos autores deste estudo, o que facilitou
bastante inclusive o diálogo acerca de determinados temas, como por exemplo: os aspectos
que envolviam as suas práticas de ensino; as relações tecidas entre essas professoras e os
seus alunos; as experimentações propostas por elas no dia a dia do ser professor.
As entrevistas foram desenvolvidas em blocos, para ser mais preciso, dez blocos com
cada professora. Não coube por diversos motivos, bem como não existia intenção da nossa
parte, que houvesse uma linearidade acerca da ordem em que entrevistaria cada professora.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 106
A maior parte das entrevistas foram realizadas nas casas das docentes, que preferiram
assim, pela comodidade e por se sentirem mais à vontade a falar.
A princípio pensamos em um roteiro simples, voltado a saber informações como:
quais as respectivas formações, o tempo de trabalho de cada uma, como havia sido a
experiência de dar aula pela primeira vez, o que da relação com seus alunos haviam
aprendido. Com o intuito de ir ganhando mais a confiança das docentes estudadas.
Uma grande surpresa que o campo de pesquisa nos proporcionou, interferindo
inclusive na composição da metodologia deste estudo, foi que mesmo trabalhando com
entrevistas semi-estruturadas e com conversas informais, quase que comumente, quando as
professoras iamnos responder alguma pergunta, elas recorriam a um caso, melhor dizendo a
uma história, e então, narravam aqueles episódios, chegando muitas vezes a se
emocionarem. Não podemos esquecer, que tratava-se de elementos constitutivos das suas
próprias vidas.
Neste sentido, trabalhamos ainda com narrativas, por pensarmos que estas
revelaram nuances nem sempre claras no percurso da pesquisa, principalmente, quando do
contato com as professoras pesquisadas na perspectiva da coleta dos dados. Dessa forma,
compomos com o conceito de narrativa desenvolvido por Walter Benjamin, no qual o autor
vai pensá-la, a partir das experiências tecidas pelo narrador. “A experiência que passa de
pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas
escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos
inúmeros narradores anônimos”. (BENJAMIN, 1994, p.199)
Narramos sempre histórias que revelam experiências vividas. Dessa maneira, a
experiência se relaciona diretamente com o que não apenas ocorreu com a gente, mas
também com o que de alguma forma nos toca ou tocou. O que nos toca produz sentidos em
nossas vidas, nos leva a percorrer caminhos antes ainda não habitados por nós.
Ao nos propormos pensar estéticas docentes, sentimos a necessidade de caminhar o
mais próximo possível das histórias narradas, quando das nossas idas ao campo de pesquisa,
pois elas mostram através das experiências contadas, muito das composições, das afecções
que estão a atravessar os corpos e as vidas das professoras estudadas. Ou seja, a compor o
que elas estão a ser no agora.
Assim, o processo de análise dos dados coletados nas entrevistas e conversas, exigiu
o retorno e aprofundamento das discussões teóricas anteriormente realizadas.
Desse modo, convidamos o leitor para nos acompanhar, ou melhor, percorrer
docências e estéticas, ao passo que apresentaremos o conteúdo empírico da nossa pesquisa.

As vozes do campo de pesquisa...a professora Shopia

A primeira entrevista que realizamos durante o percurso de pesquisa, foi com a


professora Sophia. Estávamos ansiosos, muitas perguntas nos percorriam, era uma situação
nova, pois não estávamos ali mais como alunos, mas sim, como pesquisadores, curiosos,
inquietos, querendo saber da docência que compunha aquela professora.
Mas como trazermos esses movimentos até este trabalho? Como lidarmos com os
ecos de uma trajetória infinita, tornar-se professor?
Talvez o melhor a fazer agora, seja ouvi-las.
As primeiras expressões da Sophia se referiam ao caminho que ela havia percorrido
até chegar a sua primeira ação enquanto docente. Vejamos o que ela nos conta:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 107
Sophia: O que me levou a me tornar professora foi a oportunidade do
emprego. E lá eu descobri que eu tinha toda a afinidade. Eu me descobri a
partir do momento em que comecei a ensinar, a ensinar, porque eu gosto.
Eu descobri que estava fazendo aquilo que eu gosto de fazer. O que me
deixa mais desmotivada é a falta de vontade dos alunos, a somação, porque
se eles se somassem comigo, a minha boa vontade que eu tenho porque
entendo que é pelo estudo que as pessoas melhoram suas vidas. É pelo
estudo, mas eles ainda não têm essa visão, e fica muito complicado eu
trabalhar [...] até hoje me recordo da primeira vez que entrei numa sala de
aula para ensinar, tô vendo agora (emoção). Uma primeira série. Só tinha
muitas crianças por causa da faixa etária e fui bem recebida, porque eu
também gosto de criança. Foi muito bom. Era uma escola estadual, e assim
as crianças com muita energia, mas algumas tímidas, eu ia lá cuidava,
porque eram meninos pobres e eu via que precisavam de muito carinho,
mas foi bom. Foi uma das experiências que mais me marcou, porque eu
trabalho assim, eu trabalho visando o futuro deles, a minha vontade é tão
grande e eu sei que eles precisam disso, ter essa consciência. Então eu fico
trabalhando assim, querendo superar tudo [...] porque a gente lutando
assim, a gente consegue, não se acomodando, porque mesmo que
cinquenta não consigam, mas têm cinco ali que conseguem, e até uma
colega minha me disse “olha Sophia um aluno seu disse que tem
professores que marcam e uma das pessoas que ele citou foi você”. Porque
eu não faço jogo mole dentro da sala de aula, eu sei que eles precisam
disso. Então é por conta disso, dessa minha consciência, já que são pessoas
que vêm de uma classe menos favorecida e o caminho é o estudo. Então eu
tenho que fazer qualquer negócio [...] eu sempre trabalhei e vou continuar
trabalhando visando um futuro melhor para os meus alunos27.

Algumas lembranças, lágrimas, sala de aula, uma jovem em busca de oportunidade


de emprego, muitas crianças do primeiroano numa escola pública da rede municipal
habitada pela alegria, e pelo vigor da infância, também pela perspectiva de uma melhoria de
vida da futura professora, timidez, ausência de carinho... Assim, nessa “atmosfera”, começa
a se compor a estética docente da professora Sophia.
Ao falar em estética, estamos pensando na produção das subjetividades, nas
materialidades que compõem os modos de existência a partir das relações e
experimentações com a vida. Dessa forma, ao ouvir o que nos contou a Sophia, nos pomos a
pensar acerca da estetização do ser professora que vem compondo a mesma desde aquele
momento em que entrou na sala do primeiroano para ensinar e aprender, e o quanto aquela
experiência se fez ou não importante para a constituição da professora que Sophia ainda é
nos dias atuais. Quais linhas foram cruzadas, que encontros foram suscitados naquele
ambiente.
As tecituras que vai compondo as linhas da docência se modificam a cada ação que
propomos, ou mesmo que nos atinge dentro dessa ampla “conjuntura” chamada educação.
São encontros que nos mostram possibilidades para refletirmos sobre nossos pensamentos
e ações para com os outros, bem como acerca das ações do pensar exteriores a nós,

27
Entrevista realizada com a professora Sophia no segundo semestre de 2010.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 108
materialidades estas, também encontradas no professor que estamos a ser. “Encontro
significa “entrelaçamento”, intercâmbio de possibilidades”. (PERRISÉ, 2009, p. 85)
A composição estética da docência apresenta-se enquanto um espaço de
possibilidades. Não podemos mensurar o início nem sequer o final do processo que é tornar-
se professor de qualquer que seja a pessoa, como também não podemos ousar prever com
quem, e quais encontros serão tecidos no percorrer dessa mesma trajetória.
Compor-se professor é igualmente encontrar-se em um permanente estado de
desfeitura do docente que somos, tornando-se nessa perspectiva outro a partir das
situações encontradas na constituição das relações com os alunos, com as escolas, com a
vida. Possivelmente são os acontecimentos presentes nas aulas, as misturas tecidas nesses
momentos, que nos constituem professores “desse ou daquele modo”, mostrando dessa
maneira os movimentos feitos por nós quando em contato com vozes e vidas desconhecidas
a docência que estamos a exercer. “[...] o acontecimento é a representação do não-corporal,
do entrelaçamento dos corpos [...]”.(DELEUZE, 2006, p.135-136).
À medida que íamos ao campo de pesquisa, éramos tomados por uma preocupação
constantemente traduzida na seguinte pergunta: mas como vamos conseguir traçar os
movimentos experimentados pelas docências das professoras na construção deste trabalho?
Confessamos que esse era o nosso maior receio. Continuávamos apenas perguntando,
tentando compreender os ambientes trazidos para nós e então, buscando aprender com
eles.

Aprender num campo de pesquisa é um exercício – ouvir sem ouvidos


duros, estar olhando uma professora informante como se olha algo ou
alguma coisa que se faz naquele instante – olhar sem os olhos. Não atrás,
não na frente, em nenhum lado; mas dentro das falas para dali poder sair –
sair das falas – des-falar, des-ver, habitar no não espaço, estando.
(FELDENS, 2008, p. 29)

Eis que a professora Sophia continua contando algumas histórias vividas em sala de
aula. Assim, podemos mais de perto acompanhar o traçado das linhas compositoras do ser
professora tão próprias a ela. Continuemos...

E também eu sempre faço assim, sempre após meu horário de... Meu
horário de trabalho, né? Eu cumpro meu horário e depois fico ainda uns
cinquenta minutos, dando aula de reforço aos alunos que queiram. Eu faço
isso... Eles querem... Perguntam-me, professora dá para ficar? E eu fico
porque eu estou vendo que aqueles dali, querem alguma coisa. E vejo que
alguns daqueles já conseguiram um emprego, não é um emprego assim,
mas pelo menos eles se empregaram, eu tive alunas aqui... Tive não, ainda
tenho alunos e alunas que conseguiram ingressar no mercado de trabalho,
e já podemos dizer que muitos têm uma vida bem melhor do que tinham
antes (pausa). Teve muitas situações, muitas, muitas marcantes. Eu tenho
uma redação de uma aluna que me contou a vida dela por escrito e que eu
guardei, porque eu disse não meu Deus, ali tem que ser editado (emoção).
E eu ficava, e assim, ela foi contar a vida dela porque já era uma pessoa,
assim, que tinha uma idade mais avançada em relação aos outros alunos, e
foi contar aquela vida que eu fiquei assim, eu chorei, todas as vezes que eu
leio a redação dela eu choro, porque eu disse: meu Deus, como é que se

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 109


cria uma pessoa desse jeito? O povo de antigamente era tão carrasco,
aquele povo tão atrasado, ignorante eu não vou dizer, da falta de
conhecimento, você entende? Que ela disse que a maior felicidade da vida
dela, foi quando ela foi pra escola (emoção). E uma coisa também, ela me
disse que quando chegou à escola a professora ao vê-la fez a maior alegria.
Bom dia fulana! E disse o nome dela, isso fez com que ela se sentisse
acolhida, e além disso, fez com que eu transformasse toda a minha ação em
sala de aula, depois desse fato, sou outra professora, em todos os meus
primeiros dias, de aula eu pego a relação, o caderno de chamadas, e fico
chamando. Aí, bom dia. Quem é fulano? Aí a pessoa se apresenta e eu bom
dia, boa tarde, que era pela tarde. Boa tarde, seja bem-vindo, era uma
alegria, eu vou até eles, os abraços, quer dizer por que a gente vai
aprendendo. Nós vamos lendo e vendo as experiências dos outros e a gente
aprende e vê que isso é muito importante na vida deles, passando a ser na
nossa também. Aí eu comecei a fazer isso. Esse foi sem dúvida, um dos
casos mais marcantes da minha trajetória como professora, que eu ia ler as
redações dos meninos e ficava chorando. Meu Deus olhe que situação,
quando eu chegava lá conversava, assim, fazer um apanhado geral e pra
melhorar essa situação, pra eles se sentirem mais seguros, mas essa
redação dessa minha aluna tá aqui até hoje guardada28.

No exercício da docência que nos constitui professor, constantemente estamos nos


tornando “outros”, a partir do contato com vidas desconhecidas a nós, que também nos
chegam através das salas de aula, passando dessa maneira a nos compor de alguma forma.
O professor muda e vai construindo a sua estética não apenas em contato com livros,
autores, pensamentos diversificados, mas igualmente, na mistura presente nos ambientes
escolares, nos pátios, nos corredores, nas salas, nas secretarias, nos refeitórios, ao ser
afectado, atravessado por linhas e subjetividades, estrangeiras as que estavam lhe
compondo.

A afecção é o estado de um corpo quando ele sofre a ação de outro corpo,


é uma “mistura de corpos” em que um corpo age sobre outro e este recebe
as relações características do primeiro. E, correlativamente, as ideias
afecção indicam o estado do corpo modificado, sua constituição presente.
[...] são signos indicativos [...]. (MACHADO, 2010, p. 74)

Ser professor é ainda percorrer os movimentos e as linhas da vida daqueles que estão
a tecer conosco outros caminhos e possibilidades. Assim nos misturamos, passamos também
a experimentar de alguma forma situações diversas, no amplo contexto social o qual
fazemos parte.
Nessa perspectiva tornar-se professor requer que percorramos infinitas trajetórias,
onde a cada passo, em contato com experimentações alheias às já vividas por nós,
vislumbremos as possibilidades de outros encontros e mudanças aos elementos que estão a
fazer de nós os docentes que somos.
Sophia nos relatou que só teve acesso à história de vida daquela sua aluna, porque
percebeu nas aulas de redação a dificuldade que os discentes tinham de se expressarem em

28
Entrevista realizada com a professora Sophia no segundo semestre de 2010.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 110
relação às temáticas sugeridas. Dessa maneira, passou a desenvolver algumas ações de
incentivo à leitura, pois ainda percebia a falta de interesse dos estudantes em fazê-la. Assim,
ela sorteava livros de contos, romances, com o intuito de vê-los melhorar nesses aspectos
que envolviam não só a prática da sua disciplina, mas também se refletia no cotidiano da
vida daqueles alunos.
Atenta a essas dificuldades, a professora Sophia resolveu então propor que eles
escrevessem sobre a própria vida. De tal modo, começaram a chegar até a mesma,
narrativas que traziam consigo marcas nada agradáveis de serem percebidas, mas que
compunham o que seus alunos estavam sendo naquele momento da vida. Esses escritos
mostraram à professora o que também estava a compor as estéticas dos seus discentes, e a
passagem é sutil no contar da história, mas como Sophia mesmo nos disse: “sou outra
professora”.
São essas mudanças, em algumas situações, radicais mudanças, já que estamos
falando da transformação do ser professora, que igualmente estão compondo a estética
docente da Sophia. Portanto, é importante entendermos o quanto, a partir das experiências
e aprendizados dos outros, nos fazemos diferentes, nos desconstruímos, entramos em ações
de tecituras em estado de desfeituras, assim como já anunciamos em partesanteriores deste
escrito, tecemos com o que era desconhecido em nós, desfazendo desse modo, impressões
que embasam, por exemplo, as práticas de ensino que desenvolvemos cotidianamente.

A experiência estética - na medida em que abala nossas convicções comuns


e suspende a normalidade das certezas justificadas – é reivindicada para
uma ampliação da compreensão ética de educação, um modo de trazer
novos elementos para o juízo moral, como alternativa à reflexão ética
exclusivamente racional. Tais experiências de liberação da subjetividade
cumprem um papel formativo do eu. (HERMANN, 2010, p. 17)

O contato com o que o outro tem a nos dizer e ensinar nos coloca em movimentos,
fazendo muitas vezes com que nos desloquemos para diferentes lugares que não seja
apenas o do ser professor. Esses movimentos nos levam a reflexão sobre a importância de
experienciar as possibilidades de mudarmos face o desconhecido, frente ao que ainda não
tivemos a oportunidade de viver.
Como nos contou da primeira vez que a entrevistamos, Sophia havia dito que já
atuou no ensino fundamental menor e maior, no ensino médio, e que chegou inclusive a
ensinar em cursos de formação de professores. Voltemos ao que ela tem a nos dizer:

Bom... Esses diferentes públicos me ajudaram a ser uma pessoa melhor, é


porque a gente que se relaciona com o ser humano tem que entender
todas as dificuldades deles. E eu como professora tenho que entender mais
ainda, e buscar mecanismos, até o que me ajudou muito mesmo é, eu acho,
que a minha maneira de ser uma pessoa assim, minha maneira de ser, de
entender as pessoas. A gente termina sendo até psicólogo. Eu me acho hoje
até uma psicóloga, porque às vezes eu olho pra uma pessoa, e essa pessoa
não precisa me dizer, mas eu já sei da dificuldade dela. Então eu buscava
junto com elas amenizar as dificuldades. Elas mostravam as dificuldades
delas e eu junto com elas tentava fazer diferente, ajudava assim a amenizar
as dificuldades, porque eu sempre trabalhei a minha assim... A maior parte
da minha vida eu trabalhei com pessoas menos favorecidas, por isso meu
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 111
desejo de querer que eles crescessem, porque esse é o caminho. Acho que
isso foi tudo de me somar, de me doar, de mergulhar mesmo e hoje graças
a Deus já tenho muitas alunas formadas na faculdade, muitas... Muitas... E
quando me encontram fazem a maior festa, porque sempre dizem, porque
eu reconheço que eu ajudei a abrir as portas. Eu sempre, quando ia aos
sábados, tinha os encontros de sábados sempre fazia alguma coisa, tirava
as dúvidas. Porque eu não sou daquelas que chegam e tiram a dúvida com
pressa, porque tô com pressa de sair, eu passava do horário. Eu não tenho
pressa. A minha pressa é deles aprenderem. Então eu fazia o passo a passo
até que quando eu estava dando as aulas de redação eu fazia o passo a
passo. Vamos gente! Então é assim, uma troca de experiências, uma troca
muito rica porque eu aprendi, tem gente que tem uma experiência...
(pausa). Olhe que eu tenho uma aluna, aquela devia sair nos livros do
MEC29. Uma aluna da zona rural, aquela devia, porque ela foi criada com os
avós e aprendeu muita coisa, muita coisa assim de, de sobrevivência, da
cultura deles, eles são indígenas, eu ficava encantada como é que ela
preparava uma pimenta, uma comida, como ensina as coisas às outras
pessoas. O ritual que envolve a questão de ensinar para ela. Tudo nessa
aluna minha é ritual, professora eu vou fazer isso e dizia como era que ia
fazer e, quer dizer que foi uma troca de experiências riquíssima, riquíssima
mesmo. Então foi muita troca de experiência. Eu com o conhecimento que
tenho, levava textos, dando a elas um conhecimento que elas precisavam
pra melhorar o estudo delas, pra passar em um concurso, pra fazer uma
faculdade, pra melhorar o nível de escrita, de leitura. Eu entrei com esses
conhecimentos e elas trouxeram outros, que me ajudaram a crescer, e me
ajudaram também nesse, e nesse meio e nesses caminhos nós fomos
aprendendo e eu mesma já sou uma pessoa assim, diferente, na verdade,
eu fui mesmo foi aprender com todas elas30.

Pensamos importante refletirmos acerca do caráter ético que atravessa não apenas
as ações dos professores, como também o percurso de formação das pessoas envolvidas nos
processos educacionais.
Esses “deslocamentos” possibilitam a existência da transmutação31 do ser docente, a
partir do contato com experimentações alheias aos seus círculos de convivência, através de
ensinamentos e aprendizados que vão se constituindo, nos espaços de diálogos gerados
pelas relações tecidas não apenas entre professores e alunos. Compor-se incessantemente
professor, requer não somente atenção aos elementos estéticos, mas também o cuidado
ético na composição de si.

[...] a constituição de modos de existência ou estilos de vida não é apenas


estética, é o que Foucault chama a ética, por oposição a moral. A diferença
é esta: a moral apresenta-se como um conjunto de regras que coagem,
regras de um tipo especial que consistem em julgar as ações e as intenções
a partir de valores transcendentais (está bem, está mal...); a ética é um

29
MEC - Ministério de Educação e Cultura.
30
Quinta entrevista realizada com Sophia no segundo semestre de 2012.
31
Conceito criado por Friedrich Nietzsche, presente em sua obra Assim falava Zaratustra .

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 112


conjunto de regras facultativas que fixam o valor do que fazemos, do que
dizemos, segundo o modo de existência que isso implica. [...] São os estilos
de vida, que estão sempre implicados nos gestos e nas palavras, que nos
constituem como este ou aquele. (DELEUZE, 1996, p. 79-80)

Por vezes, ainda vemos que nós professores pensamos as relações em uma única via,
ou seja, estou levando tais teorias e conhecimentos para ensinar a turma da disciplina “X”.
Sem perceber, que corriqueiramente, somos nós os surpreendidos ao entrarmos em contato
com as expressões daqueles indivíduos, com os saberes trazidos por eles ao espaço da sala
de aula.
Mesmo quando nos colocamos a pensar em uma possível previsão a partir das ações
que tecemos no cotidiano do exercício da docência, talvez nunca consigamos imaginar os
espaços e caminhos que criaremos com os nossos alunos, mais ainda, quais eles optarão por
trilhar.
Dessa maneira, ser professor também é estar munido de uma espécie de paciência
que nos acalenta, de modo que estamos a criar rotas, percursos, outras vezes labirintos.
Mas, se estes são os melhores, e o que de certo podemos fazer com eles, só a
experimentação nos levará a essa resposta, só os possíveis futuros encontros nos levarão, a
saber, o que, a partir das nossas escolhas, e do acaso, conseguimos ou não desencadear nas
vidas das outras pessoas.
Talvez o fascínio em ser professor, esteja na possibilidade de um aprendizado
constante, que a todo tempo insiste em tirar a terra firme que estamos pisando, e nos atira
na vida. Levando-nos a tornarmos apesar de professores, outros, eternos alunos na escola
que nem sempre tem muros, salas, mas é sempre vida.

Aprender está para o rato no labirinto, está para o cão que escava seu
buraco; está para alguém que procura, mesmo que não saiba o que e para
alguém que encontra, mesmo que seja algo que não tenha sido procurado.
E, neste aspecto, a aprendizagem coloca-se para além de qualquer controle.
(GALLO, 2003, p. 80)

Aprendemos ainda sem que de fato tenhamos nos colocado a procurar esse ou
aquele conhecimento. O aprendizado acontece também no acaso, no “inesperado”, não
somente quando toda ação que havíamos pensado na elaboração dos planos de aula
acontecem do jeito, e forma que planejamos.
Aprender requer que estejamos no mundo, experimentando os tons que a vida nos
traz. A experiência se constitui ainda, a partir do que nos toca e produz sentido em nossas
vidas. Dessa maneira, aprendemos também quando nos colocamos abertos a novas
experimentações, a aprender com os outros.
Ao nos falar da sua aluna da zona rural, a qual só depois fiquei sabendo que
igualmente era docente, e estava participando do Proformação, um projeto de formação de
professores, no qual Sophia ensinava, esta nos diz: “fui aprender”. E então mostra o quanto
foi potencializante para a sua vida o aprendizado com aquelas professoras-alunas, em
especial com a sua aluna índia, cujo aprender se deu através da prática de alguns rituais, das
trocas de experiências que estão compondo a sua estética docente, sendo sensível ainda, as
diferenças que atravessavam o espaço formativo que era a sua sala de aula.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 113


Ao entrar em contato com aquela forma até então desconhecida de ensinar, a
professora Sophia buscou integrar os conhecimentos que trazia gestados nas universidades
pelas quais havia passado, com os novos, trazidos pela sua aluna, e neste momento a
professora fez questão de destacar: “Eu [...] levava textos, dando a elas um conhecimento
que elas precisavam pra melhorar o estudo delas [...] e elas trouxeram outros [...] nesse
meio e nesses caminhos nós fomos aprendendo e eu mesma já sou uma pessoa assim,
diferente, fui aprender”.
Vejamos que as relações de ensinar e aprender estão permeadas de histórias e
encontros inusitados. Sophia nunca tinha imaginado que encontraria uma aluna índia na
aula que iria ministrar, sequer poderia prever que com ela aprenderia saberes ligados à
cultura indígena, seus rituais, modo de ensinar, de preparar seus alimentos.
Existem, nos acontecimentos que é o ensinar e o aprender, misturas entre corpos,
composição de experiências que se mostram além do caráter instrutivo que possa ser
pensado a esta ação. Aprender também é movimento.
Pensar o ser professor, o ensinar e o aprender... A partir das experiências relatadas
pela professora Sophia, nos pôs em contato com docências moventes, que se desfazem a
todo tempo, na perspectiva de estarem se compondo novamente ao colocar-se à disposição
dos alunos, dos saberes... Da vida.

Por um possível final...

Os encontros potentes da vida suscitam entrelaçamentos, nem sempre harmonia de


vozes, aspectos que compõe com o espectro do inusitado. Como ensinar sem lançar
convites? Como aprender sem que nos desloquemos, sem que passemos a habitar
territórios desconhecidos? Assim, na trama dessas relações, silenciosamente, sem que
percebamos, os tratados oficiais que possivelmente possam ser lançados à vida, vão se
desmanchando, tornando-se movediços.
Dessa forma, nunca saberemos como nós ou os outros aprenderão, quando das
nossas ações enquanto professores. Pensamosna não existênciade um único método que se
faça funcionar com todos os indivíduos, e que os levem ao exercício do aprender e do
ensinar.Acreditamos sim, nas tecituras, contato com diferenças e singularidades que
permitem movimentos, e descobertas, fluidez de novas experiências.
Possivelmente, as estratégias não resistem às forças e à potência que habitam os
encontros, são muitos corpos, vozes diversas tecendo junto, as regras e linhas que compõem
as metodologias rendem-se, fraquejam e então, acontece a mistura dos corpos, a mistura
das estéticas, essas são múltiplas, nesse momento tornar-se professor, é igualmente
aprender.
Percorrer essas linhas foi estar em contato com estéticas que apresentam-se
pertencentes a tempos, espaços e contextos sociais diferenciados, mas que ainda assim,
encontram-se em estado de tecituras, compondo, e decompondo o constante transmutar-se
dos professores, bem como dos seus alunos.
Portanto, podemos perceber em momentos distintos, os nossos conceitos fugirem ao
tecer opiniões e diálogos com as vozes que chegavam através das entrevistas, das histórias
narradas pela professora, que nunca estão sós, mas sempre povoadas por turmas, alunos,
escolas, sentimentos, famílias, ideias e especialmente, pelas forças que estão a mover a vida,
as forças que estão nos ensinando a importância de continuarmos sempre aprendendo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 114
Sentimos agora uma imensa dificuldade em abandonar este texto, temos conversado
com as professoras, estamos sendo atravessados por um querer compor... Caminhar, e
porque não dizer, viver o que a nós foi dito... Da composição e dos desmanches que é
tornar-se professor, ou seja, das suas múltiplas estéticas.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 116


Vida universitária: contextos históricos de vida, adaptação e superação

Bárbara do Carmo Passos


UFRB
passosbabi@yahoo.comm.br

Através de estudos realizados no âmbito do PET - UFRB e Recôncavo em Conexão (Programa de Educação
Tutorial – PET - Conexões de Saberes - MEC-SESu), sentiu- se a necessidade de tratar e pesquisar a respeito do
estudo e das experiências sobre os campos do currículo e da formação, que nos remete a valorização das
historias de vida de cada sujeito, o que nos fez compreender que as vivências nos propiciam conhecimento e
formação e dessa forma não podem ser ignoradas no âmbito da universidade. Inicialmente, as estratégias
consistiram na produção escrita de textos autobiográficos produzidos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo
PET, com identificação e análise dos sentidos de formação acadêmica, relatos de suas experiências de vida,
cultural e humana conforme narrativas de cada estudante, o qual á partir das autobiografias foi publicado um
livro intitulado “Currículo, Formação e Universidade: Autobiografias, permanência e êxito acadêmico de
estudantes de origem popular”, que tem como um dos objetivos propiciar aos estudantes e á comunidade,
reconhecimento da importância das vivências seja qual for o âmbito inserido. Como embasamentos da escrita
foram relatados: a vida estudantil da educação básica; o acesso à universidade, as escolhas dos cursos; as
estratégias de permanência em contraste com as vivências familiares, comunitárias e com as experiências,
saberes e fazeres relativos às populações tradicionais de origem popular, de onde advém a maioria dos
estudantes do Recôncavo da Bahia, entre outros tópicos que nos remetem a pensar sobre algumas
experiências de vida. Os relatos das vivências de cada estudante demonstraram para o grupo que alguns de
tantos problemas enfrentados na vida acadêmica e pessoal, podem ser comuns aos de outros sujeitos e que se
deve entender que essas dificuldades são momentâneas e formativas, ao visto que nos fazem aprender e
compreender a viver.
Palavras-chave: Conexões de Saberes; Estudantes universitário; Histórias de vida.

Introdução

A partir de estudos realizados no âmbito do Programa de Educação Tutorial - PET


Conexões de Saberes: UFRB e Recôncavo em Conexão (Ministério da Educação - MEC,
Secretaria de Educação Superior - SESu), sentiu-se a necessidade de pesquisar através de
narrativas autobiográficas, a respeito das experiências formativas e curriculares voltadas a
valorização das historias de vida de cada sujeito, pondo em questão o processo de
adaptação á universidade dos discentes e suas relações com o êxito acadêmico.
O PET é um projeto institucional, interdisciplinar de formação de estudantes
universitários de origem popular, mediante ações integradas de educação tutorial, pesquisa
e extensão, onde pesquisamos temas como: Currículo/Formação, Acesso e Permanência,
Pós-permanência e Desenvolvimento Local. Nosso trabalho consiste em colaborar com o
Programa, notadamente, com discussões a respeito das experiências curriculares e
formativas, contribuindo para uma formação exitosa, prioritariamente nos cursos de
Licenciatura da UFRB, onde existe uma grande fragilidade por parte dos estudantes em se
adaptar ao curso, aos métodos e as regras da instituição e posteriormente nos Bacharelados
interdisciplinares, porém os trabalhos já evoluem e os resultados obtidos podem ajudar não
só apenas os alunos da UFRB e alunos dos cursos de licenciatura, mas estudantes de todo o
Brasil.
No edital de seleção para novos integrantes do grupo são escolhidos estudantes,
exclusivamente de graduação, oriundos de comunidades populares urbanas periféricas,
conforme os critérios de renda familiar, escolaridade dos pais, proveniência de escolas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 117


pública, entre outros critérios, a exemplo do ingresso mediante reservas de vagas/cotas,
podendo ter no máximo no grupo, 12 estudantes bolsistas, alunos de graduação, que
trabalham com educação tutorial, por meio do professor tutor/orientador do grupo,
pesquisa e extensão.
As ações realizadas no âmbito do PET têm como foco contribuir para a qualidade de
formação dos estudantes de origem popular, e colaborar com a superação de problemas
ligados ao ambiente universitário, sejam a nível acadêmico e profissional, tal como também
propiciar a formação de cidadãos críticos com apropriação necessária de conhecimento e
dessa forma poderem cumprir o papel social da instituição e da futura/atual profissão. Dessa
forma podendo compreender que as vivências podem nos propiciar conhecimento e
formação, e dessa forma não podem ser ignoradas no âmbito da universidade.
Trabalhamos com ações que possam contribuir para o crescimento de relação dos
estudantes com a sua comunidade e assim, possam perceber suas potencialidades
formativas, cidadãs, tanto no âmbito institucional da UFRB, quanto nos cenários sociais e
culturais do Recôncavo Baiano, dessa forma contribuindo para que os estudantes encarem
alguns de tantos problemas enfrentados no campo universitário, visto que no inicio da vida
estudantil, os alunos passam por um processo/período de desconhecimento ou período de
estranhamento do ambiente universitário, onde para esta análise foram utilizadas as
abordagens de Alain Coulon (2008), que explica o processo como uma inadequação
universitária, onde se estranha à linguagem, a escrita, os diferentes e novos saberes que são
incorporados no dia a dia dos alunos e as regras gerais da instituição.
As estratégias utilizadas para a pesquisa consistiram na produção escrita de textos
autobiográficos produzidos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, com identificação e
análise de temas relevantes a formação acadêmica e a vida pessoal de cada sujeito, com o
objetivo de propiciar aos estudantes uma formação exitosa, onde não esteja voltada apenas
para a profissionalização, mas contudo contribuir para a concepção e relevância de sua
origem e historicidade.

Diante disso avaliamos o processo de adaptação, como sendo este uma das questões mais
importantes para proporcionar aos estudantes uma formação com êxito, visto que o tema
da adequação ao ambiente universitário deveria ser mais discutido, sendo que o
desconhecimento de tal questão por parte dos alunos dificulta a permanência dos
educandos na universidade, e dessa forma colabora para o aumento dos índices de evasão
universitária, que em muitos casos é explicado pela inadequação á universidade.
A pesquisa tem a intenção de abordar à problemática que gira em torno das
dificuldades de adaptação e permanência dos estudantes universitários, explanando para os
mesmos a naturalidade das dificuldades, bem como da sua superação por parte da vontade
pessoal e ajuda social que perpassa a adequação a este novo ambiente, visando também
entender e contribuir com a historicidade de cada individuo, tendo como maior ênfase o
entendimento e superação de fases da vida, onde muitas vezes nos parecem ser únicas de
cada sujeito. Tais ações são relevantes, ao ponto que perpassam e evidenciam a importância
de escrever e reescrever suas trajetórias de vida, dessa forma tornando o sujeito, ator/autor
da sua história e dessa forma o levando a entender que todos os problemas que já foram e
são enfrentados, não apenas no campo universitário, mas em sua vida em geral são
formativos e devem ser valorizados, pois contribui tanto para a formação acadêmica, quanto
para a vida pessoal, pondo em questão vários cenários de vida.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 118
Escritas autobiográficas e sua implicação na adaptação e superação ao ambiente
universitário

Inicialmente, as estratégias consistiram na produção escrita de textos autobiográficos


produzidos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, com identificação e análise dos
sentidos de formação acadêmica, relatos de suas experiências de vida, cultural e humana
conforme narrativas de cada estudante, depois houve um período de socialização dos
trabalhos com os colegas e o professor tutor do grupo, a partir de uma roda de saberes, com
o intuito de analisar e proceder com entendimento de que as etapas as quais seguimos são
formativas.
Como embasamentos da escrita foram relatados: a vida estudantil da educação
básica; o acesso à universidade, as escolhas dos cursos; as estratégias de permanência em
contraste com as vivências familiares, comunitárias e com as experiências, saberes e fazeres
relativos às populações tradicionais de origem popular, de onde advém a maioria dos
estudantes do Recôncavo da Bahia, entre outros tópicos que nos remetem a pensar sobre
algumas experiências de vida. Foram utilizadas na escrita as seguintes indagações:
1 - Identidade de origem popular (incluir também referenciais positivos coletivos e
individuais).
2 - A Vida Estudantil na educação Básica (infantil até ensino médio).
3 - O acesso à Universidade, e também o que a família, a comunidade e a
Universidade contribuíram para esse êxito?
4 - A construção da Permanência com êxito acadêmico: o que você faz? o que faz em
grupo? e a Universidade compreende e favorece sua condição de estudante de
origem popular? Como? Como poderia melhorar? Fale da s etapas/ciclos da sua vida
estudantil na universidade.
5 - Que sugestões você teria para os currículos, conhecimentos e saberes trabalhados
nos cursos e na sua Formação? Como a UFRB poderia estar em conexão com o
Recôncavo, tendo em vista a história, a cultura, o desenvolvimento local das cidades,
os saberes tradicionais, as tecnologias sociais. Escreva de forma mais geral e também
relacione com os estudos do seu Curso. Posicione-se também sobre os cursos e as
formações serem interdisciplinares.
6 - Descreva o que considera causas da Evasão e das Repetências (de quem? e por
quê? Quais os semestres que mais ocorre? O que pode ser feito para diminuir as
evasões e repetências?)
7 - Você defenderia que a UFRB fosse uma Universidade Popular? Como seria?
8 - É possível uma Educação Superior de Qualidade socialmente e culturalmente
referenciada? Como seria? Que conhecimentos, saberes, experiências sociais,
culturais, e que práticas do Recôncavo já estão incluídas e podem ser incluídos mais
ainda?

A partir das escritas autobiográficas foi confeccionado publicado um livro intitulado


“Currículo, Formação e Universidade: Autobiografias, permanência e êxito acadêmico de
estudantes de origem popular”, que tem como um dos objetivos propiciar aos estudantes e
á comunidade, reconhecimento da importância das vivências seja qual for o âmbito inserido
e conhecimento dos problemas e superações que são comuns á estudantes.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 119


Para Coulon (2008), a primeira tarefa de um estudante ao entrar em uma
universidade é aprender o oficio de estudante, que nem sempre é uma tarefa tão simples,
contudo isso pode notar que o currículo imposto pelos cursos dificulta a adequação dos
estudantes ao meio universitário, pois as disciplinas estabelecidas, principalmente nos
primeiros semestres, não contribuem e não colabora com a realidade desses novos alunos,
que desconhecem esse novo formato diferenciado de ensino encontrado nas universidades.
O processo de adaptação está diretamente ligado à superação do período de
estranhamento, onde há um total desconhecimento dos estudantes ao ambiente
universitário, onde a superação do estranhamento perpassa duas fases, o período da
aprendizagem que consiste numa fase lenta de adaptação, onde se é superada a agitação e
ansiedade, abrindo espaço para a acomodação e o período de afiliação, onde o estudante
passa a incorporar as práticas, regras e métodos de funcionamentos da Universidade, que
antes não faziam parte do seu conhecimento e da sua rotina.

Conclusão

A vida acadêmica caracteriza-se como um processo permanente de construção e


adaptação, e os estudantes precisam está preparados para enfrentar e superar este
contexto diferenciado de educação. Os relatos das vivências de cada estudante
demonstraram para o grupo alguns problemas comuns, como o de adaptação e superação
no ambiente acadêmico, onde foram utilizadas abordagens de Alain Coulon(2008).
Segundo Coulon (2008), o período de estranhamento, consiste como processo de
inadequação ao ambiente universitário, onde estranha-se a linguagem, os diferentes e novos
saberes, as regras e estruturas da instituição. A superação do estranhamento ao ingressar no
ambiente Universitário perpassa duas fases, o tempo da aprendizagem e o tempo da
afiliação, onde o período da aprendizagem consiste em uma etapa lenta de adaptação
progressiva, onde se é superada a inquietação, abrindo-se espaço para a acomodação. No
período de afiliação o estudante passa a incorporar as práticas, regras e métodos de
funcionamentos correntes na Universidade que antes não faziam parte da sua rotina.
Esse trabalho tem a intenção de abordar e colaborar com a superação dessas
dificuldades, colocando em discussões essa problemática que gira em torno das dificuldades
de adaptação e permanência dos estudantes universitários, explanando para os mesmos a
naturalidade das dificuldades, bem como da sua superação por parte da vontade pessoal e
ajuda social que perpassa a adequação a este novo ambiente, além de fazer com que os
estudantes entendam que tais problemas são comuns aos de outros sujeitos e que essas
dificuldades são momentâneas e formativas, ao visto que nos fazem aprender e
compreender a viver.
Esse estudo evidencia a necessidade dessa questão ser conhecida e incorporada pela
universidade, tanto no âmbito das ações afirmativas, quanto nos currículos e nas
metodologias docente.

Referências
COULON, Alain. A condição de Estudante: a entrada na vida universitária / Alain Coulon;
Tradução de: Georgina Gonçalves dos Santos, Sônia Maria Rocha Sampaio. – Salvador:
EDUFBA, 2008.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 120


JESUS. Rita de Cássia Dias P. de, NASCIMENTO. Cláudio O. C. Educação tutorial de
estudantes de origem popular: Universidade e Recôncavo em conexão. Cruz das Almas:
2012
NASCIMENTO, Cláudio Orlando C. e JESUS, Rita de Cássia D. Pereira. Currículo e Formação:
Diversidade e Educação das Relações Étnico-Raciais. Curitiba: Progressiva, 2010.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 121


Sobre os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na formação de
professores de língua portuguesa

Carla Sousa Ferreira


Escola Estadual Reunidas Castro Alves (EERCA)
carla_letrasuesb@hotmail.com
Lucília Santos da França Lopes
Universidade Norte do Paraná (UNOPAR)
lulibras@hotmail.com

Este trabalho apresenta uma pesquisa em estágio inicial, realizada na Escola Estadual Reunidas Castro Alves, no
município de Jiquiriçá/BA, com professoras de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II. Destaca-se, nesta
investigação, a relevância das narrativas (auto)biográficas elaboradas pelas docentes envolvidas na pesquisa,
no sentido de investigar como a subjetividade se faz presente na formação e na prática pedagógica dessas
profissionais. A primeira etapa da pesquisa encontra-se centrada em leituras sobre a formação docente na
perspectiva de compreender as relações entre o comportamento individual e o coletivo, de forma a
problematizar o viés social que tranversaliza os saberes tecidos no ambiente escolar. A partir de estudos
relacionados ao universo da linguagem, bem como da palavra, apostamos que a produção escrita suscita
desvelamentos essenciais para tomadas de consciência dos movimentos de professoralização que compõem a
professoralidade de cada professora. A abordagem (auto)biográfica permite que as ideologias e ações
experienciadas, nos espaços educativos, sejam fundamentadas, compreendidas e, por conseguinte,
ressignificadas neste processo de investigação-formação. Assim, os próximos direcionamentos da pesquisa
visam criar possibilidades de estudos referentes ao “como se chegou a ser o que se vem sendo” na condição de
professora de Língua Portuguesa. O agenciamento da palavra e a linguagem atuam, portanto, como fontes
potencializadoras de encontros formativos e, sobretudo, de interação com o outro e consigo à medida que
provoca (re)posicionamentos profissionais bastante significativos.
Palavras-chave: Auto)biografia; Movimentos de professoralização; Linguagem.

Notas Introdutórias

A educação contemporânea despontou significativas mudanças que atraíram,


naturalmente, os olhares de estudiosos, comunidade e esferas governamentais.
Concomitantemente, a Formação de Professores tem se revelado um fecundo campo
investigativo para pesquisadores interessados em conhecer os fluxos advindos deste novo
paradigma, posicionar-se diante dos estudos desenvolvidos e contribuir com a produção
acadêmica.
Postula-se que há uma carência significativa de retorno entre as pesquisas e
produções realizadas na academia e o que é chegado nas Escolas, nas salas de aula. O
linguista Kanavillil Rajagopalan afirma que o conhecimento acadêmico não atinge realidades
da educação básica, pois muitos pesquisadores vivem “enclausurados em seu “retiro
intelectual”. Assim, práticas e posturas tendenciadas ao distanciamento entre as Instituições
educacionais só reforçam a ideia de que professor e pesquisador são papeis distintos que
desempenham funções também distintas.
O interesse em investigar os modos como a linguagem (res)significa os movimentos
de professoralização de professores de Língua Portuguesa da educação básica para
compreender e refletir sobre a sua professoralidade justifica-se, portanto, pela relevância de
aproximar os eixos ensino, pesquisa e extensão entre a universidade e os demais espaços
educativos. A linguagem não só permitirá que os processos formativos das docentes sejam
narrados em textos (auto)biográficos, como propiciará possíveis análises de como a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 122
subjetividade encontra-se presente nas práticas pedagógicas e como as composições da vida
desarranjam-se e rearranjam-se, em desdobras complexas e elucidativas.
A pesquisa pretende explorar algumas considerações acerca da formação de
professores de Língua Portuguesa, de modo a entender como se dão as tessituras que
compõem e conduzem o ser e o agir dessas profissionais. Procuramos pensar a formação
como um processo de produção de subjetividades que atravessam as vidas de docentes que
formam os outros à medida que formam a si mesmas, em movimentos complexos e
interligados. Neste sentido, o foco nas professoras de Língua Portuguesa deve-se ao fato de
querer estudar os modos de conceber a linguagem e o ensino de língua materna, no
decorrer da docência.
Buscamos, com as narrativas (auto)biográficas, expandir o contato com os
movimentos de professoralização de cada profissional e, sobretudo, criar possibilidades de
(re)pensar concepções e ações da/na prática pedagógica. O trabalho encontra-se organizado
em uma composição de tópicos que contemplam as abordagens necessárias para apresentar
a pesquisa “Sobre os movimentos de professoralização e a subjetividade presentes na
formação de professoras de Língua Portuguesa”.
Inicialmente, fazemos uma explanação sobre alguns estudos que versam sobre a
Formação Docente e sua relação com a Subjetividade, pincelando sobre as marcas da
professoralidade, para que estas sejam entendidas como responsáveis pela consciência de
como se está sendo o que se é. Adentramos, em seguida, no universo do professor de Língua
Portuguesa (LP) e de como ocorrem os movimentos de professoralização. As narrativas
(auto)biográficas são trazidas para a discussão como fontes potencializadoras para este
processo de (res)significações, articulando o individual com o social. Por fim, temos os
direcionamentos futuros para a pesquisa.

Formação Docente e Subjetividade

Em resumo, crer e inventar, eis o que faz o sujeito como


sujeito. (Deleuze, 1953).

Muitos teóricos das ciências da educação debruçam-se acerca de variadas questões


relacionadas a temas e métodos que orientam as pesquisas. O historiador da educação,
António Nóvoa, é um ilustre exemplo. O pesquisador português aborda a formação docente
com vistas para a identidade profissional e para as maneiras de ser e estar na profissão.
Pereira, tem a formação de professores como seu objeto de pesquisa e é a partir de
processos de subjetivação e do entendimento estético que é colocada a necessidade de
pensar a formação docente pelo viés da problematização. Neste sentido, Pereira convida-
nos a refletir sobre como o sujeito se torna professor e como se chegou a ser o que é. O
interesse pelos aspectos subjetivos dos docentes no campo educacional fez com que Pereira
escrevesse o livro “Estética da Professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do
professor”, no qual traz parte de sua trajetória, refletindo algumas atitudes que compuseram
sua escolha de ser professor. Além disso, busca modos de apropriação e ativação de marcas
produzidas no sujeito, por acreditar que, nestas tramas, não há espaço para vocação,
identidade ou destino.
Ainda sobre questões concernentes ao processo formativo do professor, a professora
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Ester Souza (2011, p.27), afirma que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 123


“a questão da formação docente qualifica-se e revigora-se, exigindo o nascimento de um
professor-pesquisador, mobilizador de conhecimentos e saberes na escola”. Tendenciando
seus estudos para a relação entre o currículo, a linguagem e o ensino, a pesquisadora
desenvolve e instiga um olhar perspicaz para o (re)fazimento de ações pedagógicas que
contemplem as perspectivas de um fazer docente dialético e, sobretudo, humano.
A subjetividade está intimamente ligada aos processos formativos dos sujeitos. Além
de situações individuais de aprendizagem, situações nas quais não há nenhum tipo de
interação com o outro, os encontros de trocas, socializações e crescimento coletivo revelam
aspetos subjetivos que se manifestam nas diferenças. Deleuze (1953, p.76) “aí está o único
conteúdo que se pode dar à idéia de subjetividade: a mediação, a transcendência. Porém,
cabe observar que é duplo o movimento de desenvolver-se a si mesmo ou de devir outro: o
sujeito se ultrapassa, o sujeito se reflete”.
Este duplo movimento ao qual Deleuze se refere diz respeito aos fluxos complexos
que fazem das ressonâncias acionadas, verdadeiras potências de vir a ser-sendo.
Transcender os modos de como se vinha sendo, agindo e pensando significaabrir-se para
possibilidades de reflexão acerca de si, do outro e dos espaços pelos quais o sujeito passou,
compreendendo escolhas, direcionamentos e apostas. Significa ampliar o olhar para
(re)construções que ganham sentido após tomadas de consciência responsáveis por
transformações sociais e pedagógicas, por uma práxis significativa.
É nesse sentido que Guattari (1992) coloca-nos o seguinte:

No ponto em que nos encontramos, a definição provisória mais englobante que eu


proporia da subjetividade é: o conjunto das condições que torna possível que
instancias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como
território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação
com uma alteridade ela mesmo subjetiva. (GUATTARI, 1992, p. 19, grifo do autor)

A subjetividade faz com que o indivíduo exista, reflita essa existência e viva movimentos de
formação junto a outros indivíduos que, coletivamente, também manifestam suas
subjetividades. É nesta diferença, nas marcas produzidas no sujeito que Pereira (2013)
enuncia alguns conceitos ao relatar partes de sua trajetória.
O interesse não reside na identidade do professor, mas em investigar “modos de
produção de diferenças no percurso de constituição do professor” (2013, p. 22). Para o
autor, diversas atualizações de marcas e potencialidades realizam-se no campo da
subjetividade. Logo, importa-se pesquisar o como os movimentos aconteceram, como
ocorrem. Seguindo algumas linhas metodológicas de Foucault, Pereira problematiza a
formação docente com o como e o porquê.
Ao fazer considerações acerca da relação entre a formação e a subjetividade, Pereira
evidencia que a aquela é produtora desta em processos complexos e multifacetados, o que
significa que “o sujeito se professoraliza e se subjetiva ao mesmo tempo. E, ao se
professoralizar, contribui para a subjetivação de outros sujeitos” (PEREIRA, 2010, p. 61). As
dimensões conceituais apresentadas até aqui – Professoralidade e Movimentos de
Professoralização – são apresentadas na tese32 de doutoramento de Marcos Villela Pereira,
32
PEREIRA, Marcos Villela. A estética da professoralidade: um estudo interdisciplinar sobre a subjetividade do
professor. Tese de Doutorado em Supervisão e Currículo. 293 f. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo: PUCSP. Brasil. 1996.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 124


na perspectiva de propor um estudo voltado para uma investigação-formativa no qual é
entendida a professoralidade como “uma marca, um estado singular, um efeito produzido
no (e pelo) sujeito” (Ibidem).
Encaminhamos nossa investigação, de acordo com Pineau (2010, p. 99), na
perspectiva de que o sujeito forma-se a partir de três processos valiosos: autoformação,
heteroformação e ecoformação. A autoformação refere-se à formação do eu, torna o
decurso da vida mais complexo e cria um campo dialético de tensões. A heteroformação
volta-se para o movimento com o(s) outro(s), enquanto que a ecoformação dirige-se aos
fluxos formativos nos quais o ambiente, o meio interfere e forma o sujeito ali inserido.

Movimentos de Professoralização de Professoras de Língua Portuguesa

Numa palavra, o passado como passado não está dado;


ele é constituído por e numa síntese que dá ao sujeito
sua verdadeira origem, sua fonte. (Deleuze, 1953).

O profissional da linguagem ou o professor de Português, como é mais conhecido,


atravessou fases bastante representativas nas esferas sociais. As maneiras de ver o mundo,
de conceber a aula e a postura diante de um texto exemplificam mudanças gritantes que
podem ou não ter acontecido entre docentes. Entender como as singularidades de cada
professor aglutinam-se às marcas da coletividade para suscitar aprendizagens e
subjetivações é relevante, uma vez que identificar como as trajetórias são traçadas permite
momentos de reflexividade e, muitas vezes, práticas pedagógicas e olhares, eminentemente,
maleáveis e sujeitos a transformações.
Pretende-se investigar como a linguagem compõe e (des)vela os movimentos de
professoralização das docentes da área de Linguagem da Escola Estadual Reunidas Castro
Alves, localizada no município de Jiquiçá-BA, com um total de cinco professoras do Ensino
Fundamental II. Inclui-se nesta contagem uma das autoras deste texto, Carla Ferreira, por
acreditar que ao querer investigar o outro, acaba-se, consequentemente, e por que não,
intencionalmente, investigando a si mesma, como nos aponta Ferraço (2003):

[...] Somos, no final de tudo, pesquisadores de nós mesmos, somos nosso próprio
tema de investigação [...]. Assim, em nossos estudos ‘com’ os cotidianos, há
sempre uma busca por nós mesmos. Apesar de pretendermos, nesses estudos,
explicar os ‘outros’, no fundo estamos nos explicando. Buscamos nos entender
fazendo de conta que estamos entendendo os outros, mas nós somos também
esses outros e outros ‘outros’ (FERRAÇO, 2003, p. 160).

Compreender como o ensino de língua materna é visto e vivido pelas docentes e,


sobretudo, como se chegou a determinadas ideologias, concepções e práticas, atualmente,
concebidas, é o que nos interessa nesta pesquisa, afinal, nestas circunstâncias a linguagem –
objeto basilar de pesquisa – será elemento revelador de movimentos de professoralização
que definem questões intimamente ligadas à subjetivação do sujeito, às diferenças
produzidas ao longo dos seus percursos formativos. Assim, acreditamos que ao ter clareza
da função que desempenhamos nos espaços educativos, bem como a importância da língua
e da linguagem nas situações discursivas, de comunicação e interação.
A conscientização das teorias que embasam nossa prática favorecem maiores
possibilidades de (re)pensar o trabalho desenvolvido em sala de aula, refletir os andamentos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 125
dos projetos e transformá-los, em uma práxis renovada, como atesta Paulo Freire (1979).
Maria Lúcia Neder (1993) defende que a metodologia no trabalho docente “é um dos
determinantes no fracasso escolar, um dos maiores problemas hoje, sem dúvida, da
educação brasileira”. Afirma, ainda, que “o suporte teórico que tenha sobre a linguagem é
fundamental para o encaminhamento de seu ensino, mesmo que ele não tenha consciência
disso”.
De uma forma geral, “exige-se que sejam discriminados os conteúdos definidos para
a educação básica e as didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam”
(SOUZA, 2011, p. 16-17), além disso, espera-se que os licenciados nos cursos de Letras
saibam que a dicotomia estabelecida entre teoria e prática na educação não passa de uma
ideia equivocada, afinal, faz-se necessário que haja embasamento, fundamentação teórica
de um fazer. Defende-se, pois, uma indissociabilidade entre teoria e prática, de modo que o
ciclo seja representado em um holomovimento.
Com as discussões acerca dos novos rumos do ensino de Língua Portuguesa, muitos
profissionais ainda aproveitam o discurso de ensino inovador e negligenciam, por vezes,
conhecimentos relevantes, em uma interpretação simplista do que significa valorizar
competências diversas, como a interação do educando com a realidade extraclasse, a
interdisciplinaridade em sala de aula, a leitura e a escrita como práticas sociais ou o uso do
texto. Quando as mudanças são tomadas neste sentido, o professor nega ao sujeito
conhecimento necessário à sua formação.
De acordo com Possenti (1996, p. 16), “para que o ensino mude, não basta remendar
alguns aspectos. É necessário uma revolução. No caso específico do ensino de português,
nada será resolvido se não mudar a concepção de língua e de ensino de língua na escola
[...].” Contudo, precisamos estar atentos aos perigos da contradição (que pode ou não estar
carregada de hipocrisia) daqueles que proclamam discursos renovadores e reproduzem
práticas improdutivas.
Embasamos nossa prática docente na concepção de linguagem adotada por
Travaglia:

a linguagem é, pois, um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela


produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de
comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico (TRAVAGLIA, 2007,
p.84).

Marcuschi (2001, p.15) vai além, afirma que “mais do que uma simples mudança de
perspectiva, isso representa a construção de um novo objeto de análise e uma nova
concepção de língua e de texto, agora vistos como um conjunto de práticas sociais”. Os
princípios educativos que norteiam as concepções de letramento encontram-se ancorados
na colocação anterior, ou seja, práticas de escrita, leitura, interpretação, juntamente ao
exercício da oralidade em sala de aula, devem ser entendidas como práticas sociais.
Na perspectiva bakhtiniana, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação
verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo
individual dos falantes” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1986, p. 124). Visto isso, não se pode
pensar em uma aula de português sem texto, sem leituras, sem diálogo, sem interação. A
sala de aula deve ser um espaço para dar sentido àquilo que não está presente no cotidiano
do discente, para que este possa perceber a função social da língua.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 126


Igualmente preocupado com o distanciamento entre as Instituições, ocorrência já
abordada na introdução deste artigo, o professor Luciano Amaral (2010), motivado pela
“constatação da existência de uma grande distância entre, de um lado, as pesquisas
realizadas nas universidades e nos livros teóricos sobre o ensino de português e, de outro, os
professores de português do ensino fundamental e do ensino médio” (p. 140) tornou-se
autor do livro “Coisas que todo professor de Língua Portuguesa deveria saber: a teoria na
prática”. A pretensão é apresentar os principais estudos realizados acerca do ensino de
língua materna, a fim de promover imbricações entre pesquisas realizadas e as realidades
das escolas e provocar o devido entrosamento entre os docentes de espaços que são
distintos e igualmente interdependentes.
Produções acadêmicas que valorizam o que acontece no cotidiano das salas de aula,
o que se manifesta nas inquietações de docentes, bem como nas especificidades dos
processos de ensino-aprendizagem são valorizadas por nós no sentido de celebrar tentativas
de aproximar polos de aprendizagem que são essencialmente produtivos quando
trabalhados conjuntamente. O fato de pensar a linguagem como possibilitadora de reflexões
pertinentes sobre os saberes e os fazeres educativos será abordado com mais precisão
quando os próximos segmentos a pesquisa forem acontecendo. Por ora, fiquemos com
levantamentos temáticos e conceituais que provocam novos fluxos de devires.
Os objetivos da pesquisa “Os movimentos de professoralização e a subjetividade
presentes na formação de professoras de Língua Portuguesa” contemplam ora o estudo da
evolução das possíveis vertentes de se direcionar o ensino de língua materna, ora investiga
como a linguagem atua como potência (re)veladora de escolhas, posturas e apostas no que
tange à educação e à língua. A busca pelas trajetórias das docentes em narrativas
(auto)biográficas, sejam elas compartilhadas na modalidade oral ou escrita da língua,
remete-nos à experiência que, para Passeggi (2001, p. 149), “constitui-se nessa relação entre
o que nos acontece e a significação que atribuímos ao que nos afetou. Isso se faz mediante o
ato de dizer, de narrar, de (re)interpretar”.

Sobre as Narrativas (Auto)biográficas

Devemos chamar passado, não simplesmente aquilo que


foi, mas aquilo que determina, que atua, que compele,
que pesa de uma certa maneira. (Deleuze, 1953).

Por acreditar que ao contar as vivências no exercício de atribuir-lhes significados,


podemos transformá-las em experiências formativas, escolhemos o método (auto)biográfico
para o desenvolvimento da pesquisa, com a intenção de resgatar intencionalmente marcas
capazes de ecoar e reverberar quem fomos e quem estamos sendo, na condição de sujeitos
inacabados. Importa-nos perceber que o mais importante nestas evocações é suscitar os
porquês que nos conduziram às escolhas profissionais e pessoais que compõem as
diferenças de cada um, produzidas coletivamente e reconhecer o como tais movimentos
atravessaram-se.
As docentes que participação efetivamente da pesquisa – que tem um perfil
qualitativo e etnográfico – terão grandes possibilidades de ativar marcas singulares, em
movimentos de apropriação, constituindo-se professoras. A narrativa (auto)biográfica
“media a própria experiência e configura a construção social da realidade, o que também

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 127


inclui a subjetividade, sempre relacionada com o discurso comunicativo” (RABELO, 2011,
p.03). Os encontros33, previamente acordados entre os envolvidos, serão organizados em
formatos que propiciarão o envolvimento das docentes e as elaborações concretas à medida
que as ações forem se realizando.
Para Ferrarotti (2010, p. 46), “uma narrativa biográfica não é um relatório de
“acontecimentos”, mas uma ação social pela qual um indivíduo retotaliza sinteticamente a
sua vida (a biografia) e a interação social em curso (a entrevista), por meio de uma narrativa-
interação.” Podemos inferir, neste contexto, que as narrativas serão analisadas
considerando a situação enunciativa em que foram produzidas, as funções que
desempenham no grupo social em que, certamente, serão circuladas e as estratégias
textuais e enunciativo-discursivas utilizadas pelas professoras.
Os modos de contar e expressar parte de suas trajetórias serão entendidos por meio
de diferentes óticas interpretativas, justamente por reconhecermos a complexidade
presente nos discursos e nas construções de sentido, quando há um exercício de usar a
linguagem para narrar vivências e ou experiências com e sobre a linguagem, em um
movimento, por conseguinte, metalinguístico. Isso ocasiona uma conjuntura
excepcionalmente subjetiva, considerando os efeitos produzidos, reproduzidos e refletidos
no outro, mutuamente.
A pesquisa com narrativas (auto)biográficas traz a necessidade de contextualizar o
vivido, individualmente, com o que mais havia/há de parecido ou diferente em outros
espaços sociais, principalmente referentes à época na qual a história é narrada. Passeggi
(2001, p. 149) evidencia que “a narrativa autobiográfica [...] só se justifica se permitir à
pessoa que narra compreender a historicidade de suas aprendizagens e construir uma
imagem de si como sujeito histórico, situado em seu tempo”. Logo, há um elo entre o
individual e o social que se manifesta, concretiza e é documentado nos escritos
(auto)biográficos.
O método (auto)biográfico foi e ainda é muito questionado por grupos que não vêem
cientificidade ou rigor científico nas pesquisas desenvolvidas a partir de seus pressupostos.
Justamente para evitar situações de prováveis lacunas ou fragilidades no método, Delory-
Momberger (2005) alerta-nos para a devida colocação:

Os acentos pessoais que tem, forçosamente, toda narrativa autobiográfica não


devem ser caraterizados como da ordem do íntimo, mas integrados no espaço
público a partir do qual eles podem ser lidos. Eles são a coloração de uma escrita,
os traços estilísticos segundo os quais faz-se conhecer uma empreitada específica
de biografização.

Percebemos, claramente, o cuidado em estabelecer sempre relações entre as


individualidades e as coletividades, entre o individual e o social, de forma que a parte
represente o todo sem acarretar nenhum desconforto ou insegurança no trabalho que adota
como metodologia, narrativas (auto)biográficas, histórias de vida, escritas de si, memoriais,
cartografias e demais aportes epistemológicos que estudam as individuações e subjetivações
do sujeito em formação.

33
Por ora, não será discriminada aqui a estrutura de organização a ser utilizada para desenvolver os encontros
e os demais momentos de interação entre as docentes pelo motivo de a pesquisa estar, ainda, em estágio
inicial, o que dá margem para possíveis modificações e desvios de planejamentos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 128
Neste coletivo social, estamos prestes a vivenciar momentos ímpares e, com eles,
produzir renovadas composições de nós mesmas. Ao produzir novos devires, a partir das
leituras instigantes que estamos a realizar, nos desdobramos em potências provisórias e
maleáveis, nas quais há desfiguramentos e constituição de novas figuras, há desarranjos e
rearranjos, conjuntamente (re)contruídos. O objetivo é experienciar transcendências, nas
quais a linguagem é a principal responsável pela entrega e pelo comprometimento das
docentes pesquisadoras de si.

Considerações e Direcionamentos

Visto que a formação docente, a educação e a linguagem, juntamente às narrativas


(auto)biográficas, constituem um campo investigativo especial para a pesquisa, reforçamos o
interesse em contribuir para as necessárias aproximações entre pesquisas acadêmicas e
realidades da Educação Básica, mais especificamente, queremos ressaltar a importância das
pesquisas serem realizadas dentro das escolas, com os professores, com e sobre o cotidiano
escolar. Trata-se de um campo interminável de (trans)formações sociais que refletem o que
há de mais fantástico na natureza humana: a busca pela aprendizagem do mundo, do outro
e de si, em movimentos conscientizados e, sobretudo, (res)significados.
Para apresentar os direcionamentos da pesquisa, tomamos Deleuze (1953) para
elucidar como pretendemos dar seguimento às ações, considerando que esta fase inicial
encontra-se centrada em leituras referenciais, garimpagem de dimensões conceituais,
retroalimentação de textos variados e planejamentos. O referido autor enfatiza que “em
suma, a síntese consiste em colocar o passado como regrado porvir” (DELEUZE, 1953, p.
339). Assim, pretendemos criar possibilidades de estudos referentes ao “como se chegou a
ser o que se vem sendo”, na condição de professora de Língua Portuguesa. O agenciamento
da palavra e a linguagem atuarão como fontes potencializadoras de encontros formativos e
de interação à medida que provocam (re)posicionamentos profissionais bastante
significativos.
O agenciamento da palavra e os modos como a linguagem transversaliza a formação
humana, serão forças em potencial para que as professoras de Língua Portuguesa da Escola
Estadual Reunidas Castro Alves revelem, coletivamente e a cada etapa da pesquisa, o nosso
maior objetivo: compreender como a linguagem compõe e (des)vela seus movimentos de
professoralização.

Referências
DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. In: Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a
natureza humana segundo Hume. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. Coleção TRANS. 1953.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu caçador de mim. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Método:
pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 157-175.
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GUATTARI, F. Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
HESS, Remi. Produzir sua obra: o momento da tese. Apresentação de Delory-Momberger,
Tradução de Dr. Sérgio da Costa Borba e Dr. Davi Gonçalves. Brasília: Liber Livro Editora,
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 129
NÓVOA, A.; FINGER, M. (Org.) O método (auto)biográfico e a formação. São Paulo; Natal:
EDUFRN; Paulus, 2010
OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria
na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
PEREIRA, Marcos Villela. Pesquisa em Educação e Arte: a consolidação de um campo
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PINEAU, Gaston. A autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação. In:
NÓVOA, António; FINGER, Mathias. (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal:
EDURFN; São Paulo: Paulus, 2010, p. 97-118.
RABELO, Amanda Oliveira. A importância da investigação narrativa na educação. Educ. Soc.
Vol. 32 n. 114 Campinas Jan./Mar. 2011
SOUZA, Ester Maria de Figueiredo. Linguagem: currículo e formação docente. Vitória da
Conquista: Edições UESB, 2011.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 130


A pedagogia da cooperação na prática docente nas escolas

Claudia Almada Leite


FFP/UERJ
claudia.aleite2013@gmail.com
Helena Amaral da Fontoura
FFP/UERJ
helenaf@uerj.br

A Pedagogia da Cooperação é um conjunto de princípios, processos, procedimentos e práticas, que podem


orientar o profissional de educação que pretenda trabalhar na linha da aprendizagem cooperativa. Esta, por
sua vez, é aquela em que os objetivos são comuns, as ações compartilhadas, e os resultados benéficos para
todos, propiciando a formação do sujeito cooperativo, pois trabalha com metodologias que motivam e
desenvolvem a integração e cooperação. A presente pesquisa é parte integrante de uma dissertação de
Mestrado em Educação em uma instituição pública no estado do Rio de Janeiro em fase de trabalho de campo
com o objetivo de investigar as possibilidades da aplicação da Pedagogia da Cooperação na prática docente,
analisar esta pedagogia como instrumento de fortalecimento da capacidade argumentativa e discutir uma
sequência de processos para um aprendizado mais dinâmico e cooperativo em sala de aula. A metodologia será
realizada através de pesquisa exploratória visando avaliar o papel da Pedagogia da Cooperação na prática
docente, em parceria com os professores participantes da Residência Pedagógica na instituição. Focamos na
possibilidade do uso dos Jogos Cooperativos, do Diálogo, e da Comunicação não-violenta (CNV) que são
processos da Pedagogia da Cooperação que podem ser aplicados pelos educadores para desenvolver a
criatividade e a cooperação entre os educandos, visando às metas coletivas e não apenas individuais. A
pesquisa tem como referencial teórico as contribuições de Brotto com o conceito de Pedagogia da Cooperação;
Vigotski com os conceitos de vivência e Zona de Desenvolvimento Iminente, e García sobre Desenvolvimento
Profissional Docente. Buscamos contribuir para ampliar as concepções de ensino referenciadas em práticas
docentes cooperativas e participativas.
Palavras-chave: Pedagogia da Cooperação; Prática Docente; Desenvolvimento Profissional Docente.

Introdução

A profissão docente tem como elemento legitimador o saber, e cabe ao educador


ampliar, aprofundar, e melhorar a sua competência profissional e pessoal, transformando o
seu saber em aprendizagens relevantes para os seus alunos. Os educadores têm que ter a
capacidade de manter a curiosidade sobre a sua turma, identificar interesses significativos
nos processos de ensino e aprendizagem, e valorizar e procurar o diálogo em sala de aula,
pois sabemos que “são as conversações nas quais estamos imersos ao fazermos ciência que
determinam o curso da ciência” (MATURANA, 2001, p. 146), e também o despertar dos
alunos pelo interesse pela observação, pesquisa e ciência.
Dentro deste contexto, para os educadores terem êxito em sua profissão, devem
focar os seus esforços na atualização contínua, que integra saberes individuais, coletivos e
científicos de tal forma que estes se correlacionem harmoniosamente numa integração de
saberes com a finalidade de uma prática docente coerente, crítica e criativa. Este trabalho
pretende trazer contribuições de Brotto sobre Pedagogia da Cooperação, com seus
princípios, suas práticas e alguns de seus processos. Ressaltaremos a importância da
compreensão dos valores de cooperação e convivência, com os conceitos de
Desenvolvimento Profissional Docente de García, e de vivência e Zona de Desenvolvimento
Iminente de Vigotski, para o objetivo de contribuir para ampliar as concepções de ensino

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 131


referenciadas em práticas docentes cooperativas e participativas, e na possibilidade de
formação do sujeito cooperativo.
A Pedagogia da Cooperação é uma pedagogia viva, porque se renova
constantemente, na medida em que se articula e se incorpora às experiências vividas por
quem decide aplicá-la. Porém há um ponto de partida para a realização desta Pedagogia. São
quatro momentos, definidos como transdisciplinares, e orientados para o propósito final da
prática da cooperação: princípios, práticas, procedimentos e processos. Em uma visão mais
ampliada, pode ser entendida ainda, como “uma jornada de realização exterior para
promover a transformação interior da pessoa e do grupo” (BROTTO, 2013, p. 11).
No contexto da Pedagogia da Cooperação, as conversações baseadas na aceitação
mútua e na cooperação para um projeto comum, são possíveis, e durarão até que os
envolvidos no processo educacional saiam do espaço emocional estabelecido pela relação
de ensinagem. Uma “convivência democrática surge da aceitação mútua e não a gera, pois é
somente a partir da aceitação mútua que uma conspiração ontológica definidora de um
modo de convivência que não leve ao abuso pode ocorrer” (MATURANA, 2002, p. 81).
Na reflexão sobre Desenvolvimento Profissional Docente (GARCÍA, 2009b) é
fundamental pensar sobre as questões que atravessam a chamada crise dos modelos de
escolarização na contemporaneidade, com foco na massificação da escolaridade, nas
transformações no mundo do trabalho e sua relação com os processos de escolarização.
Propomos reflexões direcionadas à formação inicial e contínua dos professores, que se
vejam como educadores sempre atentos aos reais motivos e mecanismos que levam a esta
crise. E que tenham potencial de autorreflexão crítica sobre a sua prática docente, em prol
de uma aprendizagem democrática, mesmo diante de uma “ciência moderna que surgiu em
uma cultura que... trata o conhecimento como uma fonte de poder... que perdeu de vista a
sabedoria e não faz nada para cultivá-la” (MATURANA, 2001, p. 157).
Maturana (2001) destaca que esta “sabedoria desenvolve-se no respeito pelos
outros, no reconhecimento que o poder surge pela submissão e perda de dignidade, no
reconhecimento de que o amor é o sentimento que constitui a coexistência social, a
honestidade e a confiança” (p.157). Pretendemos com a utilização da Pedagogia da
Cooperação uma possibilidade de apoio ao educador no seu papel de mediador no processo
de ensino-aprendizagem, permitindo uma troca de saberes entre os indivíduos em prol do
desenvolvimento e aprendizagem contínuos num movimento de cooperação e respeito
mútuo.
É importante que o educador estimule um ambiente motivador e desafiador em sala
de aula, direcionado à pesquisa, argumentação, elaboração e cooperação, colocando como
meta a ser alcançada pelo aluno, o desafio científico de se tornar autor. Este movimento
possibilita ao aluno desenvolver a capacidade de produzir o seu próprio texto, utilizando a
linguagem científica e os devidos cuidados metodológicos.
Desta forma, pensando num ambiente escolar direcionado ao aprendizado, fazemos
uma reflexão sobre a importância da Pedagogia da Cooperação como instrumento de apoio
aos educadores, mas sempre mantendo relação direta com as outras dimensões do
planejamento pedagógico. A Pedagogia da Cooperação favorece o diálogo entre os alunos, e
entre professores e alunos, o desenvolvimento de uma dimensão relacional de cooperação,
com ética e responsabilidade na apropriação dos conteúdos aprendidos e apreendidos em
sala de aula, que possibilita a aquisição do conhecimento dentro de uma perspectiva de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 132


questionamentos, de vivências e convivências. Não somente de mecanicidade estrutural,
mas sim no despertar do prazer do educando pelo espírito investigador, criativo e crítico.

Pedagogia da cooperação, prática docente e desenvolvimento profissional docente

Neste estudo contamos com as contribuições de Brotto sobre Pedagogia da


Cooperação. A Pedagogia da Cooperação é um conjunto de princípios, processos,
procedimentos e práticas, que podem orientar o profissional de educação que pretenda
trabalhar na linha da aprendizagem cooperativa. Esta, por sua vez, é aquela em que os
objetivos são comuns, as ações compartilhadas, e os resultados benéficos para todos,
propiciando a formação do sujeito cooperativo, pois trabalha com processos que
desenvolvem a integração e cooperação (BROTTO, 2013).
A co-existência, a com-vivência, a cooperação e a comum-unidade34 são os princípios
da Pedagogia da Cooperação. A co-existência pressupõe a consciência de interdependência
humana, e por isso, é importante dedicar boa parte do que se faz na escola, no trabalho, na
comunidade e na família para recuperar a consciência da integração. Brotto (2013, p. 19,
grifo do autor) destaca que “é necessário saber cuidar do que está no centro de todo de
qualquer grupo: a liberdade para ser quem se é e, ao mesmo tempo, cooperar para o bem
comum.”
A com-vivência e o aprender a conviver não são apenas para facilitar a convivência
entre os diferentes, isto é, pessoas portadoras de necessidades especiais, sem uma visão
mais ampliada. “Propõe-se a inclusão de ideias, de sentimentos, de visões, de sensações, de
atitudes, de comportamentos, de valores das pessoas” (BROTTO, 2013, p. 14, grifo do autor).
O destaque é dado à inclusão, que possibilita a “com-vivência de todos que queiram fazer
parte do jogo de aprender a ven-ser quem se é” (BROTTO, 2013, p. 15, grifo do autor).
A cooperação, juntamente com a confiança e o respeito mútuo, é o exercício de um
novo modo de fazer, de olhar os outros e a si mesmo, que favorece o aparecimento de
novos modos de com-viver. Envolve habilidades de “co-operar consigo mesmo, com o outro,
com o ambiente e com toda a comum-unidade humana” (BROTTO, 2013, p. 17, grifo do
autor).
O sentido da comum-unidade é o reconhecimento de que pertencemos à comum-
unidade humana, e passa pelo desafio de promover e sustentar a melhoria da qualidade das
relações entre as pessoas e entre os grupos, fortalecendo “a promoção da autonomia
individual e do bem comum” (FUNDAÇÃO VALE, 2013, p. 9).
Brotto (2013b) esquematizou as práticas essenciais da Pedagogia da Cooperação
relacionando-as com os quatro princípios da educação da UNESCO, numa direção em que
seja vivenciado o “ser-e-estar em grupo de uma maneira integral e integrada” (BROTTO,
2013, p. 31). As práticas são: “fazer com-tato: aprender a ser e a conviver”; “estabelecer
com-trato: aprender a conviver”; “compartilhar in-quieta-ações: aprender a conhecer”;
“fortalecer alianças e parcerias: aprender a conviver”; “reunir soluções como-uns: aprender
a conhecer e a conviver”; e “praticar a transformação: aprender a fazer e a ser” (p. 31, grifos
do autor).

34
Brotto pretende enfatizar e resgatar o sentido que algumas palavras possuem na Pedagogia da Cooperação,
apresentando uma escrita diferenciada com a separação das sílabas.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 133
Brotto (2013) alerta que o conjunto de práticas colaborativas, destacadas pela
Pedagogia da Cooperação devem ser utilizadas pelo educador de acordo com a sua
percepção sobre as condições do grupo e do momento. Para ele, pedagogicamente no
esporte é recomendável combinar atividades específicas da disciplina com atividades
cooperativas, desse modo poderão ser aperfeiçoadas tanto as habilidades de rendimento
como as habilidades de relacionamento. Buscamos neste caminho fazer um paralelo para o
ensino das diversas disciplinas em sala de aula, e que essas práticas possam servir como base
para a condução de uma Pedagogia cooperativa em sala de aula, em prol da formação de um
sujeito colaborador e pesquisador.
Dentro deste contexto, é de suma importância os educadores estarem atentos “ao
planejamento de ensino [...] Decidir, prever, selecionar, escolher, organizar, refazer,
redimensionar, refletir sobre o processo antes, durante e depois da ação concluída”, pois “as
estratégias de um bom professor [...] acontece na conjuntura de diferentes processos de
significação [...] nos entrelaçamentos dos saberes que provém dos alunos e alunas, o que
possibilita a formação do pensamento reflexivo” (FONTOURA, PIERRO e CHAVES, 2011, p.
78). Outro fato importante para os educadores é estarem conscientes que “o valor da
ciência para a vida humana está nas possibilidades que ela abre para compreendermos esta
mesma vida, ao nos permitir entrar em reflexões recursivas sobre nosso domínio de
experiências” e “nossas operações cotidianas em nosso domínio de experiências”
(MATURANA, 2001, p. 157) num fluir de interações e comunicações.
Os procedimentos da Pedagogia da Cooperação destacados por Brotto (2013b, p.30)
indicam uma maneira de se conciliar no processo de ensino-aprendizagem “as habilidades
de rendimento (capacidades físicas, habilidades motoras e conhecimentos técnicos,
relacionados diretamente ao domínio cognitivo) com as habilidades de relacionamento
(atitudes,... envolvidos diretamente com o domínio não cognitivo).”
Brotto (2013b, p. 29, grifo do autor) elucida os “procedimentos” que podem nortear a
aplicação dos processos cooperativos visando promover a integração e a cooperação dos
participantes do Programa proposto pela Fundação Vale (2013) para o esporte. Buscamos
neste caminho fazer um paralelo para o ensino das diversas disciplinas no ambiente escolar,
e que estes procedimentos possam servir como base para a condução de uma Pedagogia
cooperativa em sala de aula.
Dentre esses procedimentos tem-se: o círculo e o centro; a ensinagem cooperativa;
do mais simples para o mais complexo; ser mestre-e-aprendiz; começar e terminar juntos; e
a roda de diálogo, que serão apresentados a seguir baseados nas definições apresentadas
por este educador. No “círculo... todos são vistos como iguais” e “reconhece-se a existência
de um centro, de algo que está entre-nós, ...e que deve ser cuidado por cada um, durante
todo tempo.” Devemos “sempre que possível, trabalhar em círculo, para começar e terminar
a aula, pelo menos”, e ter no centro do círculo um elemento representativo para o grupo
(BROTTO, 2013b, p.30, grifos do autor).
A “ensinagem cooperativa” (BROTTO, 2013b, p. 30) consiste na interdependência
entre consciência, compartilh-essência, e transcendência, que são os principais eixos dos
Jogos Cooperativos. Na prática docente no ensino das diversas disciplinas escolares esses
eixos podem ajudar os professores no incentivo aos alunos para uma reflexão sobre o
próprio aprendizado; o favorecimento do diálogo; e a possibilidade de experimentar as
mudanças nas vivências pessoais e coletivas (transcendência), e assim o desenvolvimento
das funções psíquicas superiores (VIGOTSKI, 1998a).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 134
Brotto (2013b, p.30) nos faz refletir que “toda evolução ocorre de dentro para fora,...
do mais simples para o mais complexo.” E que inicialmente deve-se propor atividades que
favoreçam a integração entre os colegas mais próximos, depois, aos poucos inserir
atividades com um grupo maior, até conseguir a integração e cooperação de todo o grupo.
Atentos em “ser mestre-e-aprendiz”, cientes que nesta dinâmica o educador deve estar
aberto para ensinar, “aprender com os próprios erros”, ouvir, estimular e aceitar sugestões
sobre “como aprender e praticar um determinado fundamento”. Como educadores,
podemos promover algumas atividades em sala de aula e “começar e terminar a atividade
reunindo todos no círculo, em torno do centro” para uma reflexão conjunta, e “aconteça o
que acontecer deve-se começar e terminar juntos” (p.31) essas atividades.
A “Roda do diálogo” (BROTTO, 2013b, p. 31) incentiva “conversas sobre as
experiências e os aprendizados” e cria um “continente de segurança e de confiança”,
facilitando a troca de vivências em busca de um aprendizado partilhado por todos podendo
ser utilizada na prática docente para mediar um conflito (WEIL, 2011) ou para desenvolver
um trabalho de CNV (ROSENBERG, 2006).
“Esse conjunto de procedimentos pode ser tomado como inspiração didática ou
pedagógica para fomentar a integração e a cooperação durante a ensinagem do esporte em
todas as suas três dimensões (BROTTO, 2013b, p. 31).” Na prática docente utilizar os
procedimentos propostos pela Pedagogia da Cooperação também podem estimular a
integração e cooperação, numa conjugação com os seus princípios e processos. Brotto
(2013b, p. 31) destaca que “quanto mais complexa é a prática do esporte, mais é preciso
cuidar da harmonia entre o desenvolvimento técnico-tático (elementos cognitivos) e o
aprimoramento das relações humanas presentes nela (elementos não cognitivos)”. Também
devemos considerar que quanto mais complexo o conteúdo, mais é preciso cuidar da
harmonia entre o desenvolvimento do aprendizado (elementos cognitivos) e o
desenvolvimento “das relações humanas presentes” nele (elementos não cognitivos). E por
isso a Pedagogia da Cooperação pode ser um caminho de possibilidades para que os
educadores construam saberes numa coexistência entre os conteúdos e valores humanos.
Desta forma, a Pedagogia da Cooperação pode possibilitar o desenvolvimento
profissional dos professores direcionado a um ensino cooperativo em prol da formação do
sujeito cooperativo, e sabemos que o educador exerce cooperação quando convive, explica
e compartilha os seus conhecimentos e vivências com os seus alunos. García (2009a) analisa
as transformações no conceito de Desenvolvimento Profissional Docente tendo como base
as definições, as características e as mudanças que ocorreram nos anos de 1990 e na última
década. E ressalta que este desenvolvimento é contínuo, é um campo vasto, que está
diretamente relacionado com a procura da identidade profissional do professor, e de como
as experiências, vivências, crenças e efetivamente o conhecimento do conteúdo influem
neste processo, que tem como foco principal garantir a qualidade da aprendizagem dos
alunos. Tardif (2012) indica que “o saber dos professores é plural e também temporal, uma
vez que, [...] é adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional”
(p. 19).
Dentro deste contexto, Vigotski (1998, p. 63) afirma que “a natureza do próprio
desenvolvimento se transforma do biológico para o sócio-histórico”, e Brotto (2013) nos faz
refletir sobre a abordagem dos processos da Pedagogia da Cooperação como facilitadores da
cooperação e do desenvolvimento humano, e que para o entendimento da condição
humana, é preciso entender o sujeito como ser histórico-cultural, que coexiste em
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 135
“conversações de aceitação mútua, de cooperação e de conspiração para um projeto
comum” (MATURANA, 2002, p. 81).
“A cultura, do ponto de vista de Vigotski, não é uma configuração rígida, pronta,
acabada, um sistema estático ao qual o indivíduo se adapta ou se submete”
(VASCONCELLOS, 2008, p.102), ela está num permanente fluxo contínuo. “As funções
psicológicas superiores, têm sua gênese nas interações sociais. Ou seja, para Vigotski, as
bases do funcionamento próprio do gênero humano são sociais, são históricas” (p.103), e a
cultura representa o que o sujeito internaliza nas suas relações sociais, “a cultura, como uma
rede de conversações, é um modo específico de entrelaçamento do linguajear e do
emocionar (MATURANA, 2004, p. 53).
De acordo com Vigotski (1988), “todas as funções psicointelectuais superiores
aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas
atividades coletivas, [...] a segunda nas atividades sociais, e a segunda, nas atividades
individuais. (p.114, grifos do autor) “Na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível
das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na
vivência” (VIGOTSKI, 1935/2010, p. 686 itálicos do autor). Para este autor, “nem o meio,
nem o professor ou a professora, e nem a criança considerados isoladamente, mas a
unidade indivisível da relação que se estabelece entre eles e que se constitui na vivência”
(MELLO, 2012, p.730) é que são protagonistas no processo educativo.
Prestes (2012) destaca que “a Zona de Desenvolvimento Iminente tem como
característica essencial a possibilidade de desenvolvimento, pois se a criança não puder
contar com o apoio de outra pessoa em determinados momentos de sua vida, “poderá não
amadurecer certas funções intelectuais e, mesmo tendo essa pessoa, isso não garante por si
só o seu amadurecimento” (p.205). Vigotski não fala de nível potencial de desenvolvimento,
pois entende que nada está predeterminado na criança, o que existe é um campo de
possibilidades para o seu desenvolvimento, em colaboração com os seus companheiros.
Então, é fundamental que os educadores percebam o quanto é importante o
incentivo às redes de comunicação colaborativas em sala de aula, baseadas “na aceitação
mútua e no compartilhamento, na cooperação, na participação, no auto-respeito e na
dignidade, numa convivência social que surge e se constitui no viver em respeito por si
mesmo e pelo outro” (MATURANA, 2004, p. 45).
Por tudo que foi dito, este trabalho tem o intuito de promover a reflexão dos
educadores sobre a aplicação alguns dos processos da Pedagogia da Cooperação, que são os
Jogos Cooperativos, o Diálogo e a Comunicação não-violenta (CNV). Vemos nessa proposta,
a possibilidade do desenvolvimento dos educandos de uma forma integral e integrada a
criação, a autonomia e o sentido de comum-unidade, visando às metas coletivas e não
individuais, com o intuito de desenvolver atitudes de empatia, cooperação e comunicação,
bem como o reconhecimento do valor das emoções que circulam no ambiente escolar e em
sociedade.
Os Jogos Cooperativos, o Diálogo, e a CNV são processos que podem ajudar a um
acordo de com-vivência em sala de aula em prol de uma aprendizagem de qualidade. O
professor aplicar esses processos na sua prática docente não significa promover a
transformação no educando, e sim viver a transformação com o educando, já que somente o
meio não transforma o indivíduo, e sim a unidade indivisível entre as particularidades do
educando, o educador e o meio é que gera uma vivência que pode criar possibilidades para
essa transformação (VIGOTSKI, 2010a/1935).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 136
O Jogo Cooperativo é um dos processos da Pedagogia da Cooperação, e sendo
processo, facilitam “o aprender a considerar o(s) outro(s), a ter consciência dos próprios
sentimentos e a agir objetivando interesses mútuos” (BROTTO, 2013b, p. 22). É importante
ressaltar que Brotto (2013b, p.21) apresenta “alguns jogos cooperativos, como sugestão de
atividades provocadoras de reflexões sobre a prática dos valores humanos por meio do
esporte.” E neste trabalho estamos inter-relacionando os estudos de Brotto como
possibilidade da utilização dos Jogos Cooperativos na prática docente para também provocar
reflexões nos educandos e educadores sobre a prática dos valores humanos por meio de um
ambiente em sala de aula, direcionado para o ensino das diversas disciplinas escolares.
Esse processo “apóia-se na interdependência das três dimensões” da Pedagogia
Cooperativa, a convivência, a consciência e a transcendência. A convivência como
incentivadora e que valoriza a inclusão de todos através da “vivência compartilhada”; a
consciência que estimula a cumplicidade entre os alunos, e incentiva-os a refletirem “sobre
as possibilidades de mudar comportamentos, relacionamentos e até o próprio jogo”, e a
transcendência que “ajuda a sustentar a abertura ao diálogo, decidir em consenso,
experimentar as mudanças propostas e integrar, no Jogo e na vida, as transformações
desejadas” (BROTTO, 2013a, p. 76).
Os Jogos Cooperativos podem funcionar como uma estratégia pedagógica, num fluxo
de conversações, necessários ao fazer científico através de desenvolvimento da auto-estima
e a alteronomia. A auto-estima desperta e desenvolvem talentos, vocações, dons e tons
pessoais, como peças singulares e fundamentais ao grande jogo de coexistência. A
alteronomia, habilidade do ser humano de viver em grupo de uma forma sinérgica, eficiente
e harmônica, age como crucial para a aproximação, entrelaçamento e arranjo harmonioso,
de cada uma das diferentes peças para recriar o todo (BROTTO, 2013).
O Jogo Cooperativo proporciona ao educando a possibilidade de manifestar-se com
as suas próprias características e individualidades, afirmando a importância de expressar o
próprio jeito de Ser e de fazer no mundo em sintonia com os outros, numa sincronia da co-
existência humana. O movimento dos Jogos Cooperativos contribui para o aperfeiçoamento
de um conjunto de habilidades denominadas de Habilidades de Com-Vivência e Cooperação
que incluem a Visão Compartilhada, o Propósito Como-Um, a Re-descoberta pessoal, a Co-
operação, a Comunicação, a Auto-mútua confiança e o Bom humor e descontração. “Com
isso, para um novo tempo, não é necessário um novo jogo. Precisa-se, sim, de uma nova
maneira de jogar” (BROTTO, 2013, p.12) num entrelaçamento dialógico entre os indivíduos.
Ressaltamos aqui com a ajuda da Pedagogia da Cooperação a importância dos
educadores e educandos perceberem o diálogo como processo, e que o seu “objetivo não é
analisar as coisas, ganhar discussões ou trocar opiniões”, em vez disso tentarmos seguir
numa direção que o diálogo norteie para a compreensão das nossas opiniões, e dos outros, e
assim “compartilharemos um conteúdo comum, mesmo se não concordarmos plenamente”,
e neste caminho “simplesmente compartilhar a apreciação dos resultados” num fluxo em
que “a verdade emerge sem anunciar, sem que a tenhamos escolhido”, em prol de despertar
a consciência participativa do grupo (BOHM, 2005, p. 65).
“A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de
saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos
significados” (FREIRE, 1987, p.66). O diálogo na dinâmica de ensino-aprendizagem possibilita
a escuta sem julgamentos, o ouvir empático que segundo Weil (2011, p. 170) é “um esforço
de cada um para se colocar no lugar do outro e de compreendê-lo”, num acordo de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 137
convivência de falar e ouvir através de uma comunicação aberta e colaborativa, sem
julgamentos e pressupostos que traz a possibilidade de desenvolvimento do educando
através das trocas vivenciais, que são reflexo da unidade educando-educador e o meio, e
educando-educando e o meio como bem nos elucida Vigotski (1935/2010a).
Algumas das dicas de Brotto (2013b, p. 31) para o processo de diálogo e que podem
servir como orientações dos professores aos seus alunos são sempre que for possível falar
na 1ª pessoa do singular para o centro do grupo, de modo que todos ouçam e após falar
“esperar até que pelo menos três ou quatro pessoas falem antes de voltar a fazer o uso da
palavra” escutando “o outro até o final sem interromper” e ouvindo “sem julgamentos e
pressupostos” numa compreensão que possibilita uma escuta ativa, empática e generosa.
Habilidades cooperativas de “agradecer, elogiar, pedir ajuda, dar ajuda, verificar se a
outra pessoa entendeu,... explorar idéias e discordar de forma cortês” possibilitam a
cooperação entre grupos e “ouvir atentamente também é uma habilidade importante para o
aprendizado cooperativo” (JACOBS e GOH, 2008, p. 35).
Outro processo da Pedagogia da Cooperação é a Comunicação não-violenta (CNV)
que “se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de
continuarmos humanos, mesmo em condições adversas” (ROSENBERG, 2006, p. 21), nos
expressando honestamente por meio dos seus “quatro componentes: observação,
sentimento, necessidades e pedido” (p. 25).
A CNV possibilita a percepção e reflexão sobre as ações concretas que estamos
observando e que afetam o nosso bem-estar; como nos sentimos em relação ao que
estamos observando; as necessidades, valores e desejos que estão gerando nossos
sentimentos; e as ações concretas que pedimos para enriquecer nossa vida. É primordial
compreender que esse processo “não consiste numa fórmula preestabelecida; antes, ela se
adapta a várias situações e estilos pessoais e culturais” (ROSENBERG, 2006, p. 27).
O primeiro componente da CNV é a observação. É necessário perceber que há um
distanciamento entre observação e avaliação, já que quando os combinamos, quem nos
ouve tende a receber isso como crítica e resistir ao que dizemos. Devemos evitar generalizar
os acontecimentos, e isso é justamente o que a CNV propõe, ela estimula que as
observações sejam feitas para um determinado tempo e contexto (ROSENBERG, 2006).
Rosenberg (2006) define como segundo componente da CNV, necessário para nos
expressarmos, os sentimentos. Afirma que “desenvolver um vocabulário de sentimentos que
nos permita nomear e identificar de forma clara e específica nossas emoções nos conecta
mais facilmente uns com os outros” (p. 76). A CNV permite distinguir a expressão de
sentimentos verdadeiros, de outros que descrevem pensamentos, avaliações e
interpretações. Dentre os exemplos citados por Rosenberg (p.76, grifos do autor), destaco
esse: “Quando você não me cumprimenta, sinto-me negligenciado”. Essa frase, de acordo
com o autor, não representa a expressão verbal de um sentimento, porque a palavra
negligenciado, não é um sentimento, e sim a expressão do que a pessoa pensa que a outra
está fazendo a ela. Para ele, uma expressão de sentimento poderia ser: “Quando você não
me cumprimenta à porta, sinto-me solitário”.
O terceiro componente da CNV é o reconhecimento das necessidades que
acompanham os nossos sentimentos. Temos que ficar atentos, porque “o que os outros
dizem e fazem pode ser o estímulo, mas nunca a causa de nossos sentimentos”
(ROSENBERG, 2006, p.95, grifo do autor), e quanto mais diretamente pudermos aliar nossos
sentimentos as nossas necessidades, e assumirmos a responsabilidade pelos nossos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 138
sentimentos, mais fácil e natural será para os outros reagirem compreensivamente ao que
dizemos.
Destacamos um exemplo citado por Rosenberg (2006, p. 100) para o reconhecimento
das necessidades: “Você me irrita quando deixa documentos da empresa no chão da sala de
conferências”. Segundo o autor esta afirmação implica que o comportamento da outra
pessoa é exclusivamente responsável pelos sentimentos de quem falou, e assim, não revela
as necessidades ou pensamentos que estão contribuindo para os sentimentos dessa pessoa.
Para tanto, o autor ressalta que a pessoa poderia ter dito: “Fico irritado quando você deixa
documentos da companhia no chão da sala de conferências, porque quero que nossos
documentos sejam guardados em segurança e fiquem acessíveis”. Assim podemos refletir
sobre o universo escolar. Se o educador diz: “Você me irrita quando não participa da
atividade proposta”, poderia dizer: “Fico irritado quando você não participa da atividade
proposta, porque ela é uma oportunidade de você perceber as suas dúvidas sobre a
disciplina, e discuti-las comigo”.
O quarto componente da CNV aborda a questão do que gostaríamos de pedir uns aos
outros para enriquecer nossa vida. Quando falamos, quanto mais claro formos a respeito do
que desejamos, mais provável será o que consigamos. Devemos evitar frases vagas, e nos
lembrarmos de usar uma linguagem de ações positivas e assertivas, ao declararmos o que
estamos pedindo, em vez de o que não estamos. É importante sabermos que pedidos
podem ser percebidos como exigências, quando as pessoas têm a impressão de que serão
culpadas ou punidas se não os atenderem. Podemos ajudar os outros a confiar em que
estamos fazendo um pedido, e não uma exigência, se sinalizarmos nosso desejo de que eles
nos atendam somente se quiserem ou puderem (ROSENBERG, 2006). Dessa forma, o
educador para o desenvolvimento do processo da CNV em sala de aula deve orientar cada
aluno do grupo a ter a sua vez de falar, e para isso precisa ter uma escuta ativa para
observar o argumento do outro, e saber expressar seus sentimentos, as suas necessidades, e
as suas opiniões ou pedidos, evitando que o outro entenda como uma exigência.
Rosenberg (2006) orienta que, ao nos dirigirmos a um grupo, sejamos claros a
respeito do tipo de entendimento que buscamos dele depois de nos expressarmos. E
salienta que o “objetivo da CNV não é mudar as pessoas e seu comportamento para
conseguir o que queremos, mas, sim, estabelecer relacionamentos baseados em
honestidade e empatia, que acabarão atendendo às necessidades de todos” (p. 127). Sendo
assim, fazendo um paralelo com a relação educador-educando, também quando nos
dirigirmos ao grupo de alunos, sejamos claros a respeito do tipo de compreensão que
pretendemos obter dela.
Terry Orlick (1989, p. 19) destaca que nosso sistema educacional é baseado na
competição, e que “não ensinamos nossas crianças a amarem o aprendizado, e sim
ensinamos a se esforçarem para conseguir notas altas”. Como educadores temos a
responsabilidade de caminhar numa direção de um ensino que esteja inserido numa
dinâmica da compreensão de que os seres humanos vivem e convivem num fluir do
“linguajar e emocionar” (MATURANA, 2001, p. 149), por isso destacamos aqui a
possibilidade da aplicação da Pedagogia da Cooperação em sala de aula, para que atitudes
de cooperação e respeito possam contribuir para a formação de um sujeito com uma maior
capacidade argumentativa e crítica, a partir do momento que é capaz de manter uma
convivência cooperativa no ambiente em que estuda, vive e convive.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 139


Brotto (2013) sugere a apresentação gradual e a inserção sem pressa da Pedagogia
da Cooperação no esporte, de forma a minimizar possíveis resistências ao novo e a ampliar a
disposição dos participantes para a transformação e desenvolvimento. E ele ainda nos indica
que, pequenas iniciativas, podem ser suficientes para proporcionar novas vivências,
motivando assim os educandos no caminho para o seu desenvolvimento. Nessa perspectiva,
podemos estabelecer um paralelo com o ensino das diversas disciplinas no ambiente de sala
de aula, iniciando “uma aula com todos em círculo”, abrindo “pequenos espaços para uma
roda de conversa e apresentar alternativas cooperativas para que todos exerçam o direito
de falar e escutar” (BROTTO, 2013, p. 35).

Algumas considerações

Este estudo, percorrendo e refletindo sobre as proposições de diversos autores da


área de Educação e Pedagogia da Cooperação, teve o objetivo de contribuir para ampliar as
concepções de ensino referenciadas em práticas docentes cooperativas e participativas.
Pretendeu ressaltar a importância do Desenvolvimento Profissional Docente e a
possibilidade do seu entrelaçamento com a Pedagogia da Cooperação aliadas aos conceitos
de vivência e de Zona de Desenvolvimento Iminente de Vigotski. Reafirmamos, por fim, que
a utilização da Pedagogia da Cooperação, pode contribuir com a prática docente, na medida
em que otimiza a integração, a socialização, a cooperação, e estimula a criatividade, a
criticidade, a argumentação, promovendo o desenvolvimento do educando na direção da
compreensão de si mesmo, dos outros, da realidade e do prazer pela pesquisa.
Vigotski (2003) convida os educadores a refletirem que se a intenção é “que os
alunos recordem melhor ou exercitem mais seu pensamento, devemos fazer com que essas
atividades sejam emocionalmente estimuladas” (p. 121), e assim, pensando na prática
docente “antes de comunicar algum conhecimento o professor tem de provocar a
correspondente emoção do aluno” (p.121), possibilitando “a formação de uma série de
outras conexões emocionais” (p. 120), e “se preocupar para que essa emoção esteja ligada
ao novo conhecimento” (p. 121).
De acordo com Maturana (2004, p. 135) “todo o fazer humano ocorre em
conversações, como coordenações de coordenações, consensuais do fazer e do emocionar”.
Brotto nos remete aos aspectos interdisciplinar, relacional e motivacional do ensino, e
propõe a Pedagogia da Cooperação na prática docente como um recurso pedagógico ou
didático complementar às aulas que pode ser utilizado conforme o discernimento e
criatividade do professor, e que cria possibilidades de cooperação e convivência nos grupos
(BROTTO, 2013), com o intuito do exercício do pensamento e desenvolvimento integral do
alunos.
O educador tem papel de facilitador na vivência dos princípios, processos,
procedimentos e práticas da Pedagogia da Cooperação em sala de aula, que estão
diretamente relacionadas com o processo de Desenvolvimento Profissional Docente. Para
que o educador trabalhe com a Pedagogia da Cooperação em sala de aula, tem que
vivenciar, aprender e apreender os conceitos e aplicações desta pedagogia, e entender que
ela se baseia no indivíduo tomar consciência de que a cooperação está dentro de si.
Desta forma, ao analisarmos as possibilidades da aplicação da Pedagogia da
Cooperação pelos educadores devemos estudar os processos de Desenvolvimento
Profissional Docente, que é um campo de conhecimento amplo e diverso. “Aprofundar
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 140
requer uma análise mais pormenorizada dos diferentes processos e conteúdos que levam os
docentes a aprender a ensinar. E não existe apenas uma resposta a esta questão” (GARCÍA,
2009a, p. 19).
Porém, seja qual for à orientação que se adote, deve-se compreender que a profissão
docente e seu desenvolvimento asseguram a qualidade da aprendizagem dos alunos. García
(2009b) ressalta que é importante salientar que a aprendizagem deve ser bem orientada, e
nesta ótica destacamos a importância do educador. À medida que o educador se
compromete como uma das peças importantes do processo de aprendizagem com o aluno
fica estabelecida uma interação aluno-professor, uma interação ensino-aprendizagem que
evolui para o maior interesse do aluno em aprender.

Referências
BROTTO, F. O; ARIMATÉA, D. J. Pedagogia da Cooperação. Brasília: Fundação Vale, UNESCO,
2013b (Cadernos de referência de esporte; 12).
FONTOURA, H. A.; PIERRO, G. S.; CHAVES, I. M. B. C. Didática: do ofício e da arte de ensinar.
Niterói: Intertexto, 2011.
GARCÍA, C. M. Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuro. Sísifo. Revista de
Ciências da Educação. Sevilha, Espanha: n.08, p. 7-22, Jan/Abr, 2009a.
______________. A identidade docente: constantes e desafios. Autêntica. Revista Brasileira
de Pesquisa sobre Formação Docente. Belo Horizonte: n.01, p. 109-131, Ago/Dez, 2009b.
MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
_____________. Emoções e linguagens na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG,
2002.
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democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MELLO, S. A. A Questão do meio na pedologia e as suas implicações pedagógicas.
Psicol.USP [on line], 21(4), pp. 727-739.
ORLICK, Terry. Vencendo a competição. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.
PRESTES, Z. Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no
Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.
VASCONCELLOS, T. (org.) Reflexões sobre a Infância e Cultura. 1. ed. Niterói: EdUFF, 2008.
VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.
Tradução Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone, Editora da Universidade de São Paulo,
1988.
____________. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores. Organizadores Michael Cole ... [et al]; tradução José Cipolla Neto, Luís Silveira
Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Psicologia e
Pedagogia).
VIGOTSKI, L. S. Psicologia Pedagógica. Tradução Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed,
2003.
_____________. Quarta: A questão do meio na pedologia (M. P. Vinha, trad.). Psicol.USP
[on line], 21(4), pp. 681-701, 2010 (Trabalho original publicado em 1935).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 141


(Im)passes subjetivos em educação: história de vida dos arte-educadores em formação de
Camaçari/BA

Claudia Bailão Opa


Universitè Paris 13 (UP13)
claudia.opa@camacari.ba.gov.br

A pesquisa é fruto dos estudos dos mestrado realizados na Université Paris 13, sob as orientações da Dra.
Izabel Galvao e Dra. Christine Delory-Momberger. O desejo por esse trabalho nasceu das minhas inquietações
cotidianas, enquanto professora e formadora de professores do Município de Camaçari/BA e o seu objeto de
estudo versa sobre os (Im)passes Subjetivos em Educação: história de vida dos arte-educadores em formação
de Camaçari/BA. A fim de impulsionar o refinar do conhecimento para além da mesmice, propõe uma análise
dos atos e afetos que se presentificam na escola e favorecem uma discussão acerca da história de vida em
formação de professores. Põe-se a pensar sobre a subjetividade e em particular sobre seus (im)passes,
desejando compreender: Quais dimensões da subjetividade do educador estão ligadas ao ato de educar? e
Como a relação de prazer e (des)prazer no ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano do arte-educador?
Entendendo a natureza qualitativa desse estudo, decide-se pela pertinência epistemológica do método da
biografização, pois o processo (auto)biográfico possibilita a experiência de si, revisitando suas origens o sujeito
pode resinificar suas relações consigo, com o outro e com o mundo. Dessa forma, a biografização remete à
construção da identidade e à utilização de processos identitarios. Tais processos são facilitadores da
aprendizagem, e porque não, da formação de professores. Segundo SOUZA (2006), os modelos biográficos
assentam-se na inserção individual e coletiva da memória e nas histórias de vida, os quais centram-se na
temporalidade, nos territórios, na individualização e individuação da existência e do sentido da vida. Nesse
contexto, propôs-se a investigar a história de vida em formação de cinco arte-educadores do sistema municipal
de ensino de Camaçari. Para tal, utiliza-se as entrevistas narrativas com a seguinte temática: - processo de
escolarização; - escolha da carreira profissional; - formação continuada; - relação com o trabalho cotidiano; -
perspectivas para o futuro. Sendo assim, este estudo se sustenta na crença de que o sujeito ao falar e ser
escutado é capaz de (re)configurar as suas matrizes icônicas, de ampliar os canais de comunicação e expressão,
auxiliando-o a (re)conhecer seus sentimentos e desejos, impulsionando-o a novas e distintas experiências.
Palavras-chave: Histórias de vida; Arte-educadores; Subjetividade; Formação docente.

Histórias de vida dos arte-educadores em formação: contexto inicial...

“Ouço mil tambores tocando dentro de mim. Sinto um rio gélido correndo
em minhas veias. Uma borboleta voando, atordoadamente, dentro de meu
estômago, foi difícil organizar meus pensamentos para começar a aula”.

Essas foram algumas palavras que resgatei do diário de bordo, sobre o meu primeiro
dia de trabalho como arte-educadora. Isso aconteceu no início de 2001, dois meses após de
ter concluído o curso de licenciatura em Artes Plásticas, havia sido contratada para dar aulas
nas turmas de ensino médio, numa escola privada, de Salvador/BA.
A aula começava às 7h30 da manhã, como na maioria das escolas brasileiras, e lá
estava eu, numa sala repleta de adolescentes pela primeira vez. Muitos pensamentos
percorriam a minha cabeça: sobre o conteúdo, a metodologia, a didática, afinal, aquele
momento trazia muita expectativa. Para minha surpresa, tudo aconteceu diferente do
esperado. Quando enfim, eu consegui ser notada, já haviam se passado quase 15 minutos,
os alunos, simplesmente, não percebiam a minha presença. Eu era um elemento estranho,
insignificante, não era escutada. Eles continuavam a conversar com seus pares, jogar ao
celular, correr e brincar, mesmo eu tendo tentado, por diversas vezes, me apresentar e dar
início a aula programada.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 142


Foi então, que por intuição, eu decidi que com um silvo iria interromper aquele caos.
E com um forte apito, feito com os dedos, consegui chamar a atenção e ao mesmo tempo
criar um vínculo com eles. O que para mim, pareceu extremamente violento, para eles soou
como moderno. Eles começaram a me olhar e rapidamente foram sentando-se, como se eu
tivesse acabado de entrar na sala, prontos para me ouvir. Parecia brincadeira, nem eu
mesma sabia o que tinha feito. Dessa forma, nós pudemos nos apresentar.
No ano seguinte, eu deixei a escola privada, pois fui aprovada no concurso da
Prefeitura Municipal de Camaçari/BA, nessa ocasião, me sentia mais segura, aquela primeira
experiência me dava mais confiança para trabalhar com os alunos.
Camaçari não era uma cidade estranha, eu como filha de bancários, vivi quando
criança em algumas cidades do interior da Bahia, entre elas Camaçari. A história do
município remonta aos primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil, ainda no século
XVI, quando em 1558, foi criada a Aldeia do Divino Espírito Santo pelos
padres jesuítas reunindo índios das várias aldeias tupinambás, ao redor de uma capela de
taipa sob o comando do padre João Gonçalves e do Irmão Antônio Rodrigues às margens
do Rio Joanes. O nome, que inicialmente se escrevia Camassary, tem origem tupi, e significa
leite e lágrimas, uma referência ao tronco de uma árvore da mata úmida, muito utilizada
para construção de embarcações; a sua seiva é usada como cicatrizante e também na
construção civil, sendo assim conhecida como “pau para toda obra”.
O município é situado a 41 quilômetros da capital Salvador, conhecido por Cidade
Industrial (já que abriga muitas empresas do Polo Industrial) e aquele que nele nasce é
chamado de camaçariense. Camaçari é a quarta cidade mais populosa do estado e segunda
maior cidade da Região Metropolitana de Salvador.
Possui uma área equivalente a 784,658 quilômetros, com uma população de 255,238
habitantes, tem o segundo maior PIB municipal do estado (depois de Salvador, sendo
também o 5º maior da Região Nordeste e o 38º maior do País), estimado em cerca de 14
bilhões de reais (dados do IBGE), em 2010. Faz parte dos 71 municípios brasileiros
integrados ao MERCOSUL. É sede da Ford Motor Company Brasil (inaugurada em 12 de
outubro de 2001, sendo a primeira fábrica de automóveis a se instalar na Região Nordeste
do Brasil) e do Polo Petroquímico, o maior polo industrial do estado, abrigando diversas
indústrias químicas e petroquímicas, mas com o passar dos anos, começou a abrigar outros
ramos da indústria como: celulose, borracha, metalurgia do cobre, têxtil, fertilizantes,
energia eólica, bebidas e serviços. É o primeiro complexo petroquímico planejado do País e o
maior complexo industrial integrado do Hemisfério Sul, com mais de 90 empresas instaladas.
O município tem uma multiplicidade de recursos naturais composta de: Bacias
Hidrográficas (rios Joanes, Jacuípe e Pojuca), de água subterrânea (aquífero São Sebastião),
Lagoas, Dunas, Manguezais, Restinga, Mata Ciliar e Mata Atlântica, além de ser banhado
pelo Oceano Atlântico.
No entanto, as riquezas naturais e econômicas não são capazes de produzir justiça
social no município. Existe uma grande quantidade de cidadãos vivendo em pobreza
extrema, alojados na periferia da cidade. E foi numa escola da periferia que eu fui trabalhar.
Claramente, o maior aprendizado da minha vida, lá além de lidar com as dificuldades
cotidianas da sala de aula, nós professores somos convocados ao enfrentamento de
questões como: violência doméstica, drogas, alcoolismo, abusos de toda ordem que fazem
eco na vida escolar.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 143


Neste período, tive dois grandes suportes, primeiro o programa de formação
continuada oferecido pelo município, que tem como objetivo incentivar a troca de
experiência entre os professores, promover a pesquisa e pensar diretrizes curriculares; e
segundo o curso de Pós-Graduação em Arteterapia - com ênfase em Educação, neste pude
não só perceber, mas vivenciar o arte-educador como mediador da aprendizagem, agente de
transformação. Este curso foi de base psicanalítica, portanto os conceitos eram discutidos a
luz da teoria freudiana. Até hoje não sei se fui formada ou (de)formada por essa experiência.
O fato é que, diante dessa perspectiva, o saber do professor se revela limitado e
faltante na prática educativa, pois, mesmo que o professor tenha refletido e construído, ao
longo do seu processo formativo, um conhecimento a respeito do saber-fazer na sala de
aula, a psicanálise vai dizer que o saber não diz respeito a algo que se repete, mas a um
saber em movimento. Um saber que não é tecido a partir do lugar do mestre, mas do saber
inconsciente, um saber descentrado que conduz o sujeito, antes de ser conduzido por ele
(MRECH, 2005).
Talvez, tenha sido este saber descentrado que impulsionou-me a uivar verazmente,
num momento em que o programado escapou. E talvez por isso, passei a compreender o
conceito de sujeito faltante. Pela ótica da psicanálise o sujeito da falta é o sujeito do
inconsciente, se configura sujeito do desejo, constituído pela linguagem que representa o
interdito da cultura. Não é por acaso que os professores se sentem tão angustiados e sem
saber o que fazer, muitas vezes sem conseguir verbalizar, ou mesmo colocar em movimento
o que pensam ou sentem, anulam-se e/ou revoltam-se frente à realidade.
Hoje, porém, penso que seria reducionista e ingênuo isolar os impasses subjetivos
docentes na questão do inconsciente, pois depois de alguns anos em sala de aula, fui
convidada pela Coordenadora Pedagógica do Município para assumir a formação dos
professores de Artes. Neste momento, tive contato com os meus colegas numa outra
dimensão. Passei a escutá-los e ter obrigação de pensar possibilidades de intervenção para
auxiliá-los.
Decidi então, buscar uma formação para também me auxiliar, foi quando comecei a
frequentar como aluna especial do mestrado em Educação e Contemporaneidade, da
Universidade do Estado da Bahia, a disciplina (Auto)Biografias e Histórias de Vida em
Formação de Professores.
As (Auto)Biografias e Histórias de Vida se apresentaram como uma base
epistemológica e metodológica que acolhiam a palavra e a expressão dos arte-educadores, a
partir de uma visão sócio-histórica, valorizando as suas narrativas, possibilitando a
experiência de si, revisitando suas origens, dessa forma o sujeito resinifica suas relações
consigo, com o outro e com o mundo. A biografização remete à novas e definitivas
configurações de si. Tais processos são facilitadores da aprendizagem, e porque não, da
formação de professores; as ideias de biografia, trabalho biográfico, biografização e
aprendizagem biográfica emergem e enraízam-se no curso da vida, como uma maneira que
representamos a nossa existência e como contamos para nós mesmos e para os outros, em
estreita relação com a história e a cultura.
É em meio a este contexto, que nasce este estudo. Inquietada pela minha prática
cotidiana, fui impelida à escuta sensível e à reflexão pragmática, pois o quadro que
começava tomar forma em minha frente figurava o mal estar dos professores através de um
discurso por vezes descompassado, entre as condições de trabalho dos professores deste

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 144


município (se comparado aos municípios vizinhos e ao panorama brasileiro) e a insatisfação
que demonstravam durante os momentos em formação.
Fato inusitado numa formação de professores de Artes, sempre marcada pela alegria
e satisfação. Estes sujeitos durante toda sua formação, seja inicial ou continuada, vivem uma
ambivalência de afetos, ora prazerosos, posto que o ensino da Arte traz em si a possibilidade
de expressão e reflexão, ora (des)prazerosos, enfrentando situações não previstas no
cotidiano da sala de aula, que fogem a ordem desejada.
Sendo assim, desejo compreender:
• Por que essa insatisfação permanente dos arte-educadores de Camaçari/BA?
• Como a relação de prazer e (des)prazer em ensinar pode repercutir no
trabalho cotidiano deste arte-educador?
• Quais dimensões subjetivas do arte-educador estão ligadas ao ato de ensinar?
Meus objetivos são:
• Investigar como a relação de prazer e (des)prazer do arte-educador, aliada as
suas histórias de vida em formação, podem fazer eco no cotidiano escolar;
• Discutir questões vinculadas as dimensões subjetivas do arte-educador e que
estão ligadas ao ato de ensinar.

Trabalho com as seguintes hipóteses de pesquisa:


• As relações com o ensinar não são somente determinadas por condições
objetivas, as dimensões subjetivas têm uma participação muito importante
neste exercício profissional;
• Os arte-educadores se sentem sujeitos não autorizados, não
apreciados e desrespeitados; por conseguinte, eles sofrem, e deixam de
oferecer oportunidades significativas de aprendizagem para seus alunos.
Para desenvolver esta temática, tratarei de alguns conceitos pertinentes a este
estudo, tais como: contemporaneidade, subjetividade, (im)passes, formação; bem como
explicitarei o método de pesquisa utilizado para coleta e interpretação dos dados coletados
nas entrevistas, sem com isso fazer juízo de valor ou por em suspenso o debate.
Por hora, escutar e falar com os arte-educadores teceu a teia de saber que
preencherá as próximas paginas, às vezes com cores vibrantes, outras vezes opacas, ora com
contornos figurativos, ora abstratos, e esse diálogo que se articula a cada momento de
forma diferente diz também “muito de mim”.

Os (im)passes em educação: revisitando conceitos

A contemporaneidade mostra-se muito complexa – as referências que tínhamos no


século XX já não servem mais para compreendermos o tempo atual. Transformações e
rupturas são exaustivamente assinaladas. O ponto de referência é o chamado projeto da
Modernidade (HENNIGEN, 2006). Um mundo idealizado em que a história é vista como o
caminho – linear e contínuo – em direção a um estágio mais evoluído da sociedade e do ser
humano; em que se espera que o sujeito – dotado de razão – seja capaz de desvendar os
mistérios da natureza e, através de procedimentos científicos objetivos, leve a humanidade
ao progresso.
Tanto em termos de vivência subjetiva quanto em relação à almejada busca da
verdade universal, a ‘promessa’ não se concretizou. A partir daí analistas da
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 145
contemporaneidade começaram a lançar mão de conceitos – como o da pós-modernidade35
– para compreender nosso tempo, nossos modos de ser e estar no mundo, nossa
possibilidade de produzir (algum) conhecimento.
Em diferentes campos das ciências humanas e sociais constituem-se perspectivas que
propõem uma outra forma de produzir ciência em que não se busca uma explicação –
externa – para os acontecimentos, para os modos de ser. As noções de cultura, de discurso,
de relações de poder e de subjetivação se enlaçam e questões até então tidas como ‘banais’
são problematizadas.
Para PEREIRA (2008), os professores « sentem-se ‘desvalorizados’, ‘desmoralizados’,
‘desrespeitados’ e, sobretudo, ‘desautorizados’ ». Não sendo difícil encontrar junto aos
teóricos da profissão docente quem respalde essa fala. No imaginário social, o professor
nostalgicamente idealizado cedeu lugar a um sujeito cansado, inseguro e despreparado,
incapaz de lidar com a diversidade que se impõem.
É neste contexto, que a contemporaneidade se abre para escutar os docentes, e suas
falas fortemente carregadas de afetos36. Os professores em sala de aula vão além da
transmissão de conteúdos, revestem-se de subjetividades, pois não são vistos apenas no
campo do prazer (alegria, realização, satisfação, etc.), mas também no campo do desprazer,
como luto, tristeza, desatenção, etc. O professor e o aluno são possuidores da sua cultura e
da sua história, desenvolvem relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo, e essas
dimensões estão (entre)laçadas na sala de aula.
A banalização deste problema não o faz menor, não é novidade que os professores
vem sofrendo com a falta de reconhecimento e valorização do seu ofício, com a sobrecarga
de trabalho e, com a maior de todas as queixas, o desinteresse dos alunos. A estes são
atribuídos o ônus da desautorização e desrespeito aos professores.
Tal contingência societal forja um docente que tende a desaparecer, não tanto
devido a sua permanência a priori fugaz, por ser uma consciência dividida que substitui o
que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo, mas devido a um
apagamento de si como índice de autoridade (PEREIRA, 2008).
O autor propõem que o professor não esteja preparado para lidar com, o que aqui eu
nomearei de, (im)passes subjetivos que se presentificam no cotidiano da sala de aula.
Se tomarmos como base a origem semântica da palavra impasse, ela nos revela uma
situação difícil para qual não parece haver saída favorável, no entanto, eu me proponho a
trabalhar com o construto (im)passe, entre parêntese, o que na dimensão polissêmica, nos
faz pensar que podem haver situações que passam e outras não. Sendo assim, chamo a
atenção dos atores (os arte-educadores), não apenas para as suas impossibilidades, mas
também para as portas que podem se abrir, neste caso o saber da subjetividade.
SUBJETIVIDADE do latim subjectivus (subicere: “colocar sob” + jacere: “atirar, jogar, lançar”)

35
O livro The postmodern condition, publicado por Lyotard, mais do que introduzir um novo conceito no
cenário das ciências sociais, teve o mérito de aquecer o debate sobre as transformações que se processavam
em nossa sociedade. Passado mais de 20 anos, não existe consenso quanto ao conceito de pós-modernidade,
que tem recebido significados distintos e gerado muita discussão: o que para alguns é pós-modernidade, para
outros é alta modernidade ou modernidade tardia (TASCHNER, 1999).
36
Tomo de empréstimo duas definições para o conceito de afeto, a primeira de SCHNEIDER (1976) «O afeto é,
antes de tudo, esta perturbação a ser reduzida para que o aparelho psíquico reencontre um equilíbrio
satisfatório», a segunda de FREUD (1920) que associa os afetos a ambivalência entre prazer e desprazer,
também entendida em termos de aumento (desprazer) e diminuição (prazer) da quantitativa de excitação, o
que influenciaria na qualidade da consciência.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 146
Inúmeros pesquisadores dedicaram-se ao estudo da subjetividade a partir das
inquietações do sujeito, para CIFALI (2004) não se trabalha a subjetividade a partir do eu
para se conduzir ao eu, mas a partir do « eu » para se conduzir ao nós, tratar o eu para não
ser o centro, mas poder ser tocado pelo meio. Nesse sentido, o sujeito busca experiências
que mise en place seus afetos na dimensão sócio-individual, ou seja promovendo ações
onde o sujeito se compreenda e se estruture em relação a si mesmo e ao mundo social.

Pesquisa biográfica: fundamentos epistêmicos e metodológicos

Em face da natureza qualitativa deste estudo, que tem como intenção revelar afetos,
pensamentos e comportamentos, categorias estas incomuns a métodos convencionais,
optou-se por desenvolver o trabalho com base na pesquisa biográfica, pois segundo
DELORY-MOMBERGER (2012):
O projeto fundador da pesquisa biográfica se inscreve na questão central da
antropologia social, que é a constituição individual: Como os indivíduos se
tornam indivíduos? Questão que convoca muitas outras complexas relações
entre indivíduos e suas inscrições e meios (históricos, sociais, culturais,
linguísticos, econômicos, políticos) entre o individuo e seus representantes,
entre o individuo e a dimensão temporal de sua experiencia e de sua
existência.

Dessa forma, o objetivo da pesquisa biográfica é o de inscrever o sujeito num espaço


social a partir de suas experiências, dando significado singular a situações de sua existência.
Para tal, a dimensão temporal se apresenta como a dimensão constitutiva da experiência
humana. Ela que intermediada pela linguagem produzirá escrituras, narrativas.

A narrativa « é significativa na medida em que desenha os traços da experiência


temporal » (RICOEUR, 1983, p. 17), pois ao criar um enredo, com começo, meio e fim, « a
narrativa transforma os acontecimentos, as ações e as pessoas do vivido em episódios, [...] a
narrativa é o lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e se
experimenta sob a forma de uma história » (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 39-40), por isso
ela é o meio e também o lugar onde acontecerá a operação de configuração37.

O ato de contar histórias

Advinda de uma grande tradição hermenêutica (Dilthey, Gadamer, Ricoeur) e


fenomenológica (Schapp, Schütz, Berger & Luckmann), a pesquisa biográfica como toda
pesquisa é orientada por aquilo que é pesquisado, não está dissociada de um projeto, nem
de uma problemática, constitui um eixo de reflexão ao mesmo tempo epistemológico e
metodológico, bem como um movimento de práticas sociais de pesquisa e formação. Dessa
forma, o ato de narrar a sua história de vida, possibilita ao sujeito organizar-se num
constante diálogo interior a partir dos momentos de reflexão e de formação; pois põe em
evidência as experiências que construiu ao longo da vida.

37 Termo descrito por Paul Ricoeur como mise en intrigue, realiza-se na e pela linguagem. É a narrativa,
enquanto gênero do discurso, que constitui não somente o meio, mas o lugar dessa operação: a vida tem
lugar na narrativa e tem lugar como história (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 40).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 147
Para MORIN (1980), a definição de história de vida mobiliza o indivíduo vivo, ao
mesmo tempo intensivamente, em seu lugar de origem, e extensivamente, em sua
totalidade de biosfera. É essa complexidade que devemos agora encarar de frente. Esse é
um processo que busca produzir por si mesmo sua própria identidade. PINEAU et LES
GRAND (2002, p. 15), afirmam que: “as histórias de vida, aqui definidas como busca e
construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais, envolve um processo de
expressão e experiência”, essa definição alarga o território das histórias de vida, aborda um
processo humano, um fenômeno antropológico.
Nesse contexto, cabe detalhar que fazer da vida uma história passa pelas três razões
descritas por PINEAU et LES GRAND (2002, p. 109-112):

Agir, compreender, mas também emancipar-se – essa trilogia de finalidades de ação,


de compreensão e de emancipação começa a se consolidar teoricamente, de modo
perfeitamente heurístico, na formação de adultos, com a distinção de Habermas
(1976) entre três tipos de interesse de conhecimento: o técnico, o prático e o
emancipador. O último deles, em particular, vai além da emancipação política no seu
sentido restrito, identificando-se com a libertação relativa operada pela tomada de
consciência crítica e reflexiva dos determinantes existenciais por meio de sua
expressão.
Adquirir sua historicidade – buscar compreender o significado da sua própria
história, à sua construção, e não apenas à história dos outros. É fazer jorrar a fonte,
num sentido temporal desde a origem.
Ter acesso a um presente histórico singular – o surgimento desse presente singular
estabelece, de modo sincronizado, um contato direto com os fatores determinantes
da existência.

A entrevista na pesquisa biografica: um momento singular


A entrevista na pesquisa biografica é entendida como um momento singular. Afinal, a
entrevistas é um dos instrumentos básicos nas ciências sociais e, de modo especial, na
educação. Os pesquisadores, por vezes, usam esse instrumento de forma abusiva, na medida
em que as perguntas são elaboradas de forma capciosa e respondidas conforme o desejo do
investigador. Um dos aspectos fundamentais da entrevista na pesquisa biografica é a
interação, a mediação, e deve haver um clima de reciprocidade entre quem pergunta e
quem responde. Faz-se necessário, portanto, que o pesquisador (ou estudante-pesquisador)
propicie um laço de acolhimento e diálogo a fim de captar a fala desejada e não desejada.
No meu trabalho, de forma mais especifica, elaborei um roteiro no qual se revestisse
de sentido o diálogo entre o entrevistador e entrevistado. Os temas abordados foram:
• Processo de escolarização;
• Escolha da carreira e formação inicial;
• Formação continuada;
• Relação com o trabalho cotidiano;
• Perspectiva para o futuro profissional.
De posse desse roteiro, busquei os arte-educadores para agendar o horário de cada
entrevistas, foram aplicadas individualmente, com duração aproximada de 1h, sempre no
espaço escolar. Este foi escolhido por propiciar maior conforto aos professores e oferecer

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 148


um ambiente que garantia a concentração e a privacidade. As entrevistas foram gravadas e
transcritas para posterior análise.
Foram cinco os arte-educadores que colaboraram com esta pesquisa, quatro do sexo
feminino e um do sexo masculino, eles pertencem ao ensino fundamental – Anos Finais.
Aqui serão caracterizados por nomes escolhidos de forma aleatória, guardando
especificidade de gênero.
A seleção desses professores deu-se após consulta ao cadastro de professores de
Artes do Município de Camaçari, em acordo com a Secretaria de Educação. Os critérios
estabelecidos pela SEDUC38 foram que, prioritariamente, poderiam participar os professores
que tivessem 40h de trabalho semanais no município e que as entrevistas não acarretassem
prejuízos para a dinâmica escolar. Sendo observado todos estes critérios, os cinco
professores foram contatados e aceitaram participar na condição de sujeitos da pesquisa
biográfica39.

Quadro 1: Apresentação dos Sujeitos

ALICE ELISA EDDY MANON MABEL

Idade 39 anos 50 anos 40 anos 53 anos 34 anos

Experiência 14 anos 16 anos 07 anos 17 anos 08 anos


profissional
Recebeu estimulo Sim Não Sim Não Sim
artísticos durante a
infância?

Estava certo no Não Não Não Não Não


momento da escolha
profissional?

Como se sente Contente Desconten Contente Contente Conten


quanto a sua
te te
formação inicial?
Interpretação das produções biográficas

Como define a
Em sentido amplo eTraumática
diversificado, oTranquila Tranquilo
conceito de ciência (do latimTranqui- Traumáti
scientia, traduzido
por "conhecimento")
primeira experiência se refere a um conhecimento ou prática sistemática. Em sentido
estrito,docente?
ciência refere-se ao sistema de adquirir conhecimento baseado la ca
no método
científico bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de pesquisa.

38
SEDUC – Secretaria de Educação de Camaçari.
39
Os formulários de consentimento estão arquivados, sob a responsabilidade do estudante-pesquisador.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 149


Pesquisar é procurar resposta para uma questão. Em se tratando de Ciência
(produção de conhecimento) a pesquisa é a busca de solução a um problema que alguém
queira saber a resposta. Não é conveniente, nesse caso, dizer que se faz ciência, mas que se
produz ciência através de uma pesquisa. Pesquisar é, portanto, o caminho para se chegar à
ciência, ao conhecimento.
A evolução do pensamento científico nos apresenta a expressão Ciência da Educação,
que pour MIALARET (2006) se constitue « por uma disciplina que estuda as condições de
existência, de funcionamento e de evolução da educação ». Trata-se de uma nova realidade,
no qual o estudo científico não pode ser realizado sem que se conheça o campo em que se
pretende intervir. A Ciência da Educação aparece, portanto, como um conjunto de
abordagens científicas de um real pedagógico, que marca a passagem do absoluto, ou seja,
da Pedagogia enquanto prática educativa conservadora, para o plural, onde a Ciência da
Educação se apresenta como um campo de conhecimento sobre a problemática educativa
na sua totalidade e historicidade e, ao mesmo tempo, uma diretriz orientadora da ação
educativa.
Assim, uma pesquisa é, antes de tudo, orientada por aquilo que é pesquisado; no
caso deste estudo a abordagem biográfica ao escutar os arte-educadores, põem em foco as
características singulares destes sujeitos. Isso me faz crer que esta perspectiva é a mais
apropriada para dar conta das dimensões subjetivas e produtivas da formação docente, pois
segundo SUÁREZ & DÁVILA (2012, p. 366)40 “toda narrativa biográfica supõem em si mesma
interpretação, construção e recriação de sentido, leituras de mundo e da própria vida”,
quando narram suas experiências, os professores descobrem sentidos parcialmente ocultos
ou ignorados.
Dessa forma, procurarei esboçar algumas interpretações, reflexões, inquietudes e
sensações a cerca das produções biográficas dos sujeitos pesquisados. Em outras palavras,
buscarei fazer uma leitura concisa, dentro do amplo campo da subjetividade docente,
tentando articular a problemática deste estudo e as experiências de formação dos arte-
educadores de Camaçari/Bahia.
Portanto, para que essa construção de saber e conhecimento sejam possíveis, eu
retomo o as questões que problematizaram este estudo:
Como a relação de prazer e (des)prazer em ensinar pode repercutir no trabalho cotidiano
deste arte-educador?
Quais dimensões subjetivas do arte-educador estão ligadas ao ato de ensinar?
Para começar a pensar essas questões eu apresento os conceitos de prazer e
desprazer que foram mais finamente elaborados na obra freudiana em 1911, e designam
dois princípios que regem o funcionamento do aparelho psíquico. O princípio de prazer é o
propósito dominante dos processos inconscientes (processos primários), isto é, busca
proporcionar prazer e evitar o desprazer. Eles foram a priori pensados, pois eu acreditava
que uma das questões que concretizavam o (im)passe subjetivo dos professores de artes era
o fato deles não conseguirem organizar seus sentimentos e desejos frente ao seu trabalho
cotidiano, ao ato de ensinar.
No entanto, os cinco professores que compuseram o corpo deste estudo, fizeram
emergir duas categorias interpretativas distintas, pois ao dar forma e nome aos seus

40
SUÁREZ, D. H.; DÁVILA, P. V. (2012). “Documentação narrativa de experiências pedagógicas”, dans SOUZA, E.
C. (dir.). Educação e ruralidade: memórias e narrativas (auto)biográficas. Salvador : EDUFBA, p. 353-376.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 150
pensamentos e sentimentos eles deixaram a dimensão inconsciente e passaram a dar
significado as suas experiências, ou seja, através de suas narrativas biográficas eles mise en
place seus percursos de vida singular, conscientemente. O quadro a seguir indica como
foram subdivididas e relacionadas às categorias.

Quadro 2: Categorias interpretativas


Categorias Interpretativas

Dimensão afetiva: vinculo com o aluno e


com a aprendizagem.
Ambivalência
Idealização do aluno e do ato de ensinar.

Condição de trabalho.

Desilusão

Imagem, prestigio, valorização da


disciplina.

Ambivalência

A ambivalência se caracteriza pela presença simultânea em relação ao mesmo objeto


de tendências, atitudes e sentimentos conflitantes. Em ORNELLAS (2005, p. 195), ela pode
ser sentida em três áreas: Voluntário - por exemplo, o sujeito não quer comer e comer;
Intelectual - o sujeito afirma simultaneamente uma proposição e o seu oposto; Afetiva - ama
e odeia na mesma circunstância a mesma pessoa. Para CHEMAMA (1995, p. 11), “É uma
disposição psíquica do sujeito, que se sente ou manifesta, sentimentalmente, dois
sentimentos; duas atividades opostas em relação a um mesmo objeto, a uma mesma
situação”.
Nesse sentido, os professores, durante as suas narrativas, fizeram notar sua postura
ambivalente ao descreverem o bom vinculo afetivo que têm com os seus alunos e com a
aprendizagem deles, e ao mesmo tempo o desencanto quando comparado à idealização do
aluno e do ato de ensinar. Para uma melhor compreensão eu subdividi esta categoria em
duas:
a) Dimensão afetiva: vinculo com o aluno e com a aprendizagem

Não é nova a discussão sobre a relevância da dimensão afetiva na constituição do


sujeito e na construção do conhecimento, tendo como pressupostos básicos as teorias de
WALLON41 e VYGOTSKY42, essas discussões, buscam identificar a presença de aspectos

41
Henri Paul Hyacinthe WALLON (França, 15/06/1879 – 1/12/1962) foi filósofo, médico e psicólogo. Sua teoria
pedagógica, afirma que o desenvolvimento intelectual envolve muito mais do que um simples cérebro. Wallon
foi o primeiro a levar não só o corpo da criança, mas também suas emoções, para dentro da sala de aula.
Baseou suas ideias em quatro elementos básicos que se comunicam o tempo todo: a afetividade, o movimento,
a inteligência e a formação do eu como pessoa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 151
afetivos na relação professor-aluno e as possíveis influências destes no processo de
aprendizagem.
Muitos autores (FERNANDEZ, 1991; DANTAS, 1992; GALVAO 1995, entre outros) vêm
defendendo que o afeto é indispensável na atividade de ensinar, entendendo que as
relações entre ensino e aprendizagem são movidas pelo desejo e pela paixão e que,
portanto, é possível identificar e prever condições afetivas favoráveis que facilitam a
aprendizagem.
Para GALVAO (1995) “a emoção causa impacto no outro e tende a se propagar no
meio social", sendo assim, não causa surpresa que o envolvimento entre professor-aluno
seja um detonador de estímulos mútuos, podendo ser confirmado nas palavras dos
professores:
ALICE – “Saber que o meu conhecimento atingiu o deles (os alunos), e que a Artes
atingiu-os fazendo-os olhar o mundo. Então isso pra mim é o meu ganho”.
ELISA – “Então o prazer de estar em sala de aula, é um prazer real, é um prazer de
mudança, um prazer de busca, uma prazer de chegar junto do aluno”.
EDDY – “Pensando em educação a relação de prazer é enorme, porque o trabalho de
arte-educador me da autonomia de pensar, me da à possibilidade de transformar, construir,
organizar e atuar com o material humano”.
MANON – “Alguns (alunos) têm que atravessar o rio para ir à escola, quando o rio
enche não vão, e esse alunos têm uma vontade, eles querem algo, eles têm esse diferencial.
Consegue-se trabalhar com eles”.
MABEL – “A relação professor X aluno, um aprendendo com o outro a decifrar a
mente humana, vínculos mais profundos podem levar certo tempo para se formar, porém
criar desde o primeiro instante um clima de aceitação e de naturalidade vai estimular o
crescimento da confiança e o desejo de participar”.

b) Idealização do aluno e do ato de ensinar

No entanto, muitos desses sentimentos vão se contradizer e até mesmo se opor,


quando os professores deixam de examinar a sua experiência docente e começam a divagar
por um ideal de aluno e de profissão. Vejamos43:
ALICE – “a minha frustração maior, é eles não conseguirem enxergar como eu
enxergo ou terem o prazer que eu tenho no mundo das linguagens artísticas”.
ALICE manifesta um estado de quem experimenta, ao mesmo tempo,
comportamentos conflitantes: o aluno “real” é afetado pelo conhecimento artístico, mas o
aluno “ideal” não. À análise do "real" e do "ideal" proposta nesta pesquisa, encontra na
discussão moscoviciana elementos que sustentam a possibilidade de que no "ato de
pensamento" pelo qual se representa, ocorrem simultaneamente o "real" (vivenciado nas
experiências práticas do cotidiano) e o "ideal" esperado ou "desejado". Para MOSCOVICI
(1978, p.59), "as representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja o que
pensamos que ele é ou deve ser". "Ser" ou "dever ser" mesclam-se nas percepções e

42
Lev Semenovitch VYGOTSKY (Orsha, 17/11/1896 - Moscou, 11/06/1934) foi um cientista humano bielo-
russo. Segundo Vygotsky, o desenvolvimento cognitivo do aluno se dá por meio da interação social, ou seja, de
sua interação com outros indivíduos e com o meio. A interação entre os indivíduos possibilita a geração de
novas experiências e conhecimento.
43
Para fins de interpretação, eu relaciono às citações dos professores de artes nos itens a) e b).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 152
conceitos. E a imagem "ideal" pode então interferir na percepção da imagem real do objeto.
Desse modo, pode-se afirmar que ALICE revela-se num estado de ambivalência na medida
em que verbaliza, numa determinada situação sentimentos opostos.
ELISA – “O prazer de estar em sala de aula pra mim é constante, o que acontece é o
cansaço. Eu acho que você tem muito trabalho, e é muito mal remunerado, e o tempo para
preparar essas aulas é muito curto”.
Neste caso ELISA, apresenta tendências opostas no contexto da profissão docente, ao
citar as dificuldades da carreira é possível observar o (im)passe de sentimentos por estar em
sala de aula: “um prazer constante” X “muito trabalho”. Para ORNELLAS (2005, p. 198):
“Constitui-se assim numa oposição do tipo sim-não, e esse movimento acontece de maneira
simultânea, o que possivelmente dificulta o processo de ensino-aprendizagem”.
EDDY – “as escola não sabem cuidar do bem intelectual que possuem”.
Em meio à autonomia de pensar e o não saber, há um hiato, uma lacuna que não está
clara. Nesse par ambivalente, EDDY em sua relação com o objeto flutua entre afirmação e
negação. LAPLANCHE & PONTALIS (1985) compreende aqui uma complexidade de
sentimentos e atitudes, em que a afirmação e negação são simultâneas e indissociáveis.
MANON – “mas quando você vai pra uma 5ª série que eles vêm com todo um
histórico social, a questão da diferença de idade, mesmo a relação deles com a escola, pois
antes eles tinham apenas um professor para todas as disciplinas, e veem com defasagem na
aprendizagem, quase analfabetos, é muito complicado de se fazer um trabalho. Eu não
tenho prazer nenhum”.
MANON relata o aspecto heterogêneo da escola, denuncia o desnível cultural dos
alunos oriundos de realidades marcadas pela diferença. Nesse sentido, ela apresenta
tendências opostas em relação ao contexto e mostra ambivalência para lidar com essa
realidade. Para CHEMAMA (1995), MANON evoca atitudes fundamentalmente ambivalentes
em relação ao objeto, que lhe surge qualitativamente clivado em “objeto bom” e “objeto
mau”. Ela fala como se quisesse uma classe homogênea, no entanto, a princípio era a
diferença que lhe agradava, sendo assim o objeto (heterogêneo) encontra-se adjetivado
como bom ou ruim.
MABEL – “para o sucesso é necessário à participação de todos [...] escola e
professores tem sua dose de responsabilidade, mas é preciso um exame de consciência antes
de tudo: Porque não fazemos a nossa parte?”.
A ambiguidade se manifesta aqui quando MABEL pergunta: “Porque não fazemos a
nossa parte?”, pois ao mesmo tempo em que ela expressa o que deve ser feito na “relação
professor X aluno”, a dúvida emerge, revelando sentimentos diferenciados para a questão
que antes tinha resposta. O (im)passe verificado, quando afirma e ao mesmo tempo
questiona, encontra-se com o desejo de buscar uma resposta para sua indagação.

Desilusão

A desilusão caracteriza-se como um estado em que o sujeito se acha


decepcionado/frustrado frente a suas idealizações. Para Florence GUIST-DESPRAIRIES (2003,
p. 73) é um « processo inerente e necessário a evolução psiquica, a desilusão é uma
renúncia de algum conteúdo idealizada que não cumprir sua função de apoio ». Na maioria
das vezes como uma decepção manifestada por uma interpretação persecutória de uma
exigência da realidade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 153
Em inúmeros momentos, os arte-educadores de Camaçari, concretizaram os
(im)passes subjetivos através do estado de desilusão. De maneira geral, os profissionais da
educação brasileira, vivem um momento de exigentes reflexões sobre a esfera das condições
de trabalho que os professores vêm enfrentando. A falta de reconhecimento e prestígio
social os tem colocado numa situação de compadecimento e sofrimento. A seguir, vejamos
as duas subcategorias descritas pelos sujeitos:

c) Condição de trabalho

A própria etimologia da palavra, segundo RIBEIRO (2000) guarda o sentido de tortura.


Trabalho tem origem no vocábulo latino tripalium, que significa aparelho de tortura
composto por três paus, que também servia para imobilizar animais difíceis de domar.
Seguindo esta compreensão, o termo sugere uma reflexão sobre o trabalho e o sentimento
de realização na esfera humana. Se julgarmos o trajeto da própria história, observamos que
a organização de qualquer sociedade confirma que o trabalho ocupa o centro da existência
humana.
No campo da Educação, devemos refletir sobre o desenvolvimento das relações
sociais e políticas que se estabelecem no ambiente da escola pelos sujeitos que nela
transitam - especificamente o professor - na condição de trabalhador, busca estabelecer
mediações com o saber, produto de seu trabalho e com a técnica, esta elaborada nas
relações mútuas dos produtores dos saberes.
Ainda nesta dimensão professor-trabalhador, o status ocupacional do professor
contemporâneo implica em pensá-lo como um trabalhador em descompasso entre o que
pensa e o que efetiva, concretamente, no cenário escolar. Dessa forma, ao ouvir os
professores de artes de Camaçari, observa-se o estado de desilusão atual em que se
encontram:
ALICE – “Gostaria de ter uma carga horária menor, porque Artes só tem duas aulas
por semana, então a gente precisa trabalhar em dois, três lugares ao mesmo tempo, pra ter
uma renda melhor, e isso prejudica o meu doar, na ultima aula eu já estou esgotada. Você já
esta carregada de energia pesada, e acaba não tendo o mesmo valor da primeira aula que
você deu no primeiro horário. Eu fico triste em relação a isso”.
ELISA – “Eu tenho um prazer enorme em estar na sala de aula, as vezes não tenho
prazer em estar em algumas instituições, as vezes não concordo com a engrenagem, não
concordo com a gestão, não concordo com os conceitos, mas também entendo que todo
mundo tem limitação. O gestor tem suas limitações. Quando você esta em sala de aula e tem
500 alunos do lado de fora fazendo barulho é uma limitação, porque não tem um pessoal de
apoio”.
EDDY – “O momento de desprazer que acontece quando estou atuando, é quando a
infraestrutura seja ela do ambiente escolar ou do próprio método de trabalho, não esta
adequada para atuar, ou para a ação, pois isso gera um conflito, uma tempestade mental
muito grande, a nossa desorganização parte daí”.
MANON – “a vida de educador é difícil, porque é muito trabalho [...] Eu gostaria de
envelhecer tranquila, eu não quero viver essa agonia que eu estou hoje, saindo de uma
escola pra ir para outra, dando conta de ser um bom profissional. Os alunos não tem nada
haver com isso, eles estão lá aguardando a gente, vão em baixo de chuva, enfim, como

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 154


profissional eu me sinto muito sobrecarregada, eu quero diminuir esse pique para ver se eu
consigo chegar pelo menos aos 70 anos bem”.
MABEL – “percebi que a escola tende a sistematizar, homogeneizar procedimentos e
quando não se faz isto, corre-se o risco de ter o trabalho mal visto... como se fosse contribuir
para a indisciplina dos alunos, a arte mexe com o ego das pessoas e se isso não for
trabalhado psicologicamente pode gerar alguns conflitos entre os alunos ou colegas de
trabalho, despertando sentimentos variados”.
O que constatamos é que os professores de artes sentem-se compelidos a intensificar
individualmente suas forças intelectuais e físicas para abastecer um sistema que os oprime.
Em “O capital”, Marx (1986, p. 546-47) assinala várias vezes a condição de precariedade do
trabalhador submetido à ordem capitalista em que todos “os métodos destinados a
intensificar a força produtiva social do trabalho se realizam as custas do operário individual
[...] mutilam transformando-o num homem fragmentário”. Assim, o professorado encontra-
se anestesiado diante das demandas políticas, que anulam no sujeito a sua singularidade,
bem como as suas experiências. A verbalização do cansaço, do desgaste e dos baixos
salários, entre outras queixas, revela a decepção com a profissão e a desilusão bordeja o
trabalho docente.

d) Imagem, prestígio, valorização da disciplina

GATTI & BARRETO (2009), informam que menos de 50% dos estudantes de
licenciatura, no Brasil, desejam se tornar, de fato, professores. Eles querem apenas o
diploma de educação superior. Na verdade, é só ler os jornais e ouvir os noticiários para que
qualquer jovem, que não seja um grande entusiasta pela educação desista de procurar a
carreira do magistério: baixos salários, infraestrutura deficiente, salas de aula mal cuidadas
ou bloqueadas por intermináveis reformas, agressões de alunos, desvalorização do saber e
omissão dos gestores, montam um panorama assustador e desanimador. Tal panorama
põem em evidencia a imagem, o prestígio e a valorização dos professores e de suas
disciplinas. Esse cenário pode ser confirmado na fala dos professores44:
ALICE – “Porque o mundo e o país, só vão ser desenvolvidos quando eles investirem
realmente na área de educação, e não é balela, chega a ser demagogo, todo mundo fala,
tem o mesmo discurso, mas falta a prática. Porque o que a gente encontra são colegas
doentes, colegas estressados, sem prazer nenhum de estar fazendo o que estão fazendo,
ficam reclamando o tempo todo”.
ELISA – “o desprazer é quando você percebe que é um pra dez, é desumano, começa
com os professores que não valorizam a disciplina. “A vocês vão pra aula de Artes porque lá é
como se fosse uma terapia!”, “E aquela loucura que vocês fazem a professora entende?”. [...]
Eles (os professores de outras disciplinas) desconstroem o trabalho”.
MANON – “Imagine, se o profissional tivesse 40h só naquele local, com dedicação
exclusiva, todo apoio pedagógico, cursos de formação, etc. Eu acho que seria maravilhoso,
pra mim e para a escola. Mas a situação não é essa, então você tem que está trabalhando,
geralmente em dois lugares diferentes, e ai complica”.

44
Exceto EDDY, que não apresentou estado de desilusão na subcategoria: Imagem, prestígio e valorização da
disciplina.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 155
MABEL – “pensei em desistir ao me deparar com o preconceito e desvalorização da
arte-educação, e dentre muitos diálogos, decidi por um objetivo explicito nos meus
questionamentos: “Que tipo de educadora eu quero ser nos tempos atuais?”.

Os professores têm características especiais de vulnerabilidade e importância,


provavelmente são essas ambiguidades não resolvidas a respeito de seu papel na sociedade,
que qualificam o estado de desilusão, pois sentem-se enevoados entre herói e subalterno, o
que, de certa forma, o fazem síntese das contradições do sistema social. Nesse discurso de
queixa, de mágoa, de ressentimento, e por que não, de dor, os professores apresentam-se
embaraçados e impedidos de concretizar seus ideais.

A importância das dimensões subjetivas da experiência

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que
fazia uma volta atrás da casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada./ Não era mais a imagem de uma
cobra de vidro que fazia a volta atrás da casa./ Era uma enseada./ Acho que o
nome empobreceu a imagem (BARROS, 2001, p. 25).

O presente estudo reflete sobre a fertilidade epistemológica que se enquadra numa


linha de investigação entre educação e biografização. Neste sentido, JOSSO acrescenta “o
imaginário biográfico em ação conquistou, então o seu lugar o que falta desenvolver uma
reflexão profunda sobre essa imensa produção com finalidades ‘educativas’ diversas”.
Desse modo, desafiei-me a pensar os (im)passes subjetivos no mundo
contemporâneo, entendendo que a subjetividade se dá a partir da capacidade de si situar a
si mesmo em relação ao outro. Assim o sujeito fala e interpreta a vida, pois segundo
PASSEGGI (2013) “não há vida humana sem narrativa, porque não há vida sem história”.
De acordo com Jean-Marie Barbier (2011, p. 74), "a formação é uma ação na qual o
sujeito se reconhece, a partir da sua experiência profissional e/ou social e se engaja". As
queixas cotidianas dos professores envolvem incertezas e são marcas registradas da
profissão docente. Elas nos dizem sobre a existência de outras dimensões que devem ser
levadas em conta, não só o que é objetivo, mas sobre o que esta para além do âmbito da
razão, onde a formação de professores é central. Afinal de contas, a formação é um
momento especial na construção do sentido e no desenvolvimento da reflexão entre os
professores.
Durante o tempo em que convivi com os arte-educadores de Camaçari, experimentei
angústias e aflições, encantos e desencantos, persistência e vontade de desistir da luta.
Percebi que sofrem, que em suas faces repousam as asperezas do trabalho docente, mas
que nesta mesma face estampam a graciosidade da esperança e o crédito que depositam em
sua profissão. Talvez por isso, outras questões tenham surgido durante o percurso e possam
se desdobrar num prolongamento dessa pesquisa: Como os professores podem dar forma as
suas experiências? Por que a maioria os dispositivos de formação não estimulam a dimensão
subjetiva do professor? É possível a formação de professores explorar as múltiplas
linguagem expressivas (oral, corporal, imagética, etc)?
Esta pesquisa não se esgota, ao contrário põe em movimento a interlocução de
saberes, dessa forma, espero ter permitido a reflexão nas dimensões subjetivas do exercício
da docência, a fim de promover um efetivo engrandecimento do professor e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 156
consequentemente do aluno, pois além de construir o conhecimento, este deve ser
preparado para produzir a sua própria consciência, que dialogará com um amplo horizonte
repleto de possibilidades.
Por fim, eu desejo dizer que diferente da cobra de vidro que se tornou enseada,
deixar o meu país e atravessar o oceano em buscar do saber, enriqueceu-me enormemente.
Eu penso que as trocas de experiência entre os colegas de diversas formações e a
possibilidade de acesso a uma vasta bibliografia marcam a minha produção. Sem falar que, o
que pra mim antes parecia irrelevante, hoje tem grande importância. Eu não compreendo
mais o trabalho da pesquisa sem o devido distanciamento do locus, segundo GALVAO (2012)
"A grande proximidade com o outro cria uma confusão entre o eu e o outro, o outro pode se
tornar refém de nossas emoções. Este estado de participação é desgastante e perigoso para
a nossa própria sobrevivência psíquica", guardar essa distância permitiu que eu vivenciasse
com amplitude o processo de reflexão, indispensável para o meu trabalho, fazendo de mim,
laboratório de mim mesma.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 158


PNAIC: narrativas de formação, (auto) biografia e alfabetização. O que dizem as
professoras

Cledineia Carvalho Santos


UNEB
keucarvalho@yahoo.com.br

Sendo o método autobiográfico o estudo de documentos pessoais narrados ou escritos que inclui biografias,
autobiografias, diários, memoriais e outros este trabalho tem como objetivo refletir sobre a formação de
professores no Programa Pnaic – Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, que visa à formação de
professores alfabetizadores que atuam nos primeiros anos da Educação Básica, partindo de revisão
bibliográfica, bem como das reflexões provenientes dos professores a partir de seus memoriais em que
expõem como veem as formações e as relações feitas entre sua vivência e práticas docentes enquanto
alfabetizadores. A partir desses pressupostos, objetivamos expor de forma crítica o que pensam as professoras
a fim de evidenciar a visão que este público de educadores tem a cerca do programa/ formações e da relação
com a alfabetização na idade certa relacionando com a sua autobiografia em que expõem suas próprias
experiências do vivido deslocando-a para as suas práticas alfabetizadoras, pois a escrita narrativa de si
propõem também uma tomada de consciência por emergir do conhecimento pessoal e das posições críticas a
serem tomadas por conta dos constantes desafios reflexivos em relação às suas experiências docentes.
Palavras-chaves: Formação; Pnaic; Memória; (Auto) Biografia; Alfabetização.

Introdução

A formação profissional de um Programa de Formação de Professores que atuam no


ciclo de alfabetização é uma oportunidade para refletir sobre as narrativas autobiográficas
registradas nos memoriais, uma vez que este método de pesquisa oportuniza analisar sobre
quem são e o que pensam as professoras sobre suas práticas docentes bem como observar a
forma em que apreendem a relação entre suas vivências e suas atividades docentes. Assim,
este trabalho situa-se na perspectiva da formação de professores alfabetizadores no
Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa – PNAIC do MEC. Programa que visa
alfabetizar todos os alunos no ciclo de alfabetização na idade regular e para tanto oferece
formação para os professores alfabetizadores a fim de que a partir de estudos em rede entre
professores, formadores e orientadores de estudo para que o aprofundem-se sobre os
embasamentos teóricos que orienta a alfabetização como também temas mais amplos como
Educação Inclusiva e Avaliação. O programa tem como estratégiasformativas potencializar a
autoestima e as habilidades sociais por meio de situações que necessitem o
desenvolvimento de cordialidades, gentilezas e solidariedades, favorecer a aprendizagem
coletiva, de troca de experiências, evidenciando a pertinência de estratégias formativas que
favoreçam a interação entre pares e desse modo refletir criticamente a respeito da prática
durante o andamento da formação de forma a compartilhar boas práticas sempre
valorizando as diferentes experiências.
Nesse sentido, os professores alfabetizadores ocupam lugar de destaque neste
processo, por isso é importante dar voz a estes personagens buscando compreender a forma
como eles veem estas formações enquanto agentes ativos, capazes de construir saberes
cotidianos, refletindo sobre sua trajetória e construindo novo saberes. Sobre isto afirma
Souza (2006) que as abordagens biográfica e autobiográfica das trajetórias de escolarização
e formação, tomadas como narrativas de formação inscrevem-se nesta abordagem
epistemológica e metodológica, por compreendê-la como processo formativo e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 159


autoformativo, através das experiências dos atores em formação. Para isso, é necessário
ouvirmos o que dizem essas professoras*. Entretanto, sabemos que a subjetividade ocupa
um lugar central como via do lugar do sujeito, do narrar de si e de que forma este sujeito
enxerga o que lhe é proposto. Nesta perspectiva, o professor encontra-se num cenário em
que é pertinente refletir sobre si, como profissional e como pessoa, dado que são dimensões
inseparáveis. Diante desse contexto, compreende-se que as autobiografias podem auxiliar
na identificação dos novos sentidos que os professores atribuem ao seu pensar, fazer e
sentir.
Analisar os memoriais desses professores, bem como suas historias de vida
relacionada à sua prática docente possibilita um olhar mais humano mesmo que subjetivo
sobre estes profissionais. Para tanto, é necessário compreendermos as pesquisas (auto)
Biográfica e as respectivas reflexões teórico-metodológicos uma vez que esta se centra na
compreensão sobre a vida cotidiana, tensões, contradições, medos, alegrias, ações, etc.
Souza, citando Ferraroti (1979), diz que suas reflexões pontuam aspectos sobe as
metamorfoses, especificidades do método biográfico e as mediações sociais do trabalho com
as biografias de grupos, na medida em que o homem no seu cotidiano universal pode ser
tomado para análise como referência da totalidade da experiência humana, reproduzindo-se
na sua singularidade. Por isso, os estudos (auto) biográficos têm como papel principal o
sujeito como sendo livre para narrar, dizer, negar, omitir, silenciar, organizar, selecionar o
que vai dizer. O professor não está fora da sociedade, ao contrário tudo muda o tempo todo
e é claro que isso exige desses profissionais conhecimentos mais especializados e mais
abrangentes, ao tempo em que precisam aliar os estudos teóricos com suas próprias
experiências uma vez que a reflexão deve fazer parte da prática do professor e assim ele
poder construir sua identidade profissional.

Memoriais, (auto) biografias – reflexões teórico-metodológicas

Nos últimos anos, pesquisas acadêmicas passaram a considerar as memoriais, relatos


de vida, biografias, autobiografias, narrativas, ensaios entre outros como instrumentos
importantes para a pesquisa científica nas áreas de humanas por considerar o sujeito de
todo lugar como produtor de conhecimento (...) nesse tipo de escrita oscila entre a
resistência À pressão institucional, que “obriga” o candidato a refletir sobre a história de sua
formação intelectual e profissional, e o fascínio da escrita autobiográfica, que desencadeia o
prazer de escrever sobre si mesmo. (Passeggi,2010, p.19)
Assim, tomar memoriais de formação de professores como objeto de investigação é
buscar compreender como estes profissionais compreendem as formações e as experiências
docentes à medida que relatam experiências e criticam o que está posto a partir de
processos culturais vivenciados. O método autobiográfico reconhece tanto os saberes
formais externos aos sujeitos, quanto os saberes subjetivos e não formalizados que as
pessoas transportam consigo, os quais são tecidos nas suas experiências de vida em
diferentes contextos socioculturais (Delory-Momberger, 2008). E nesta conjuntura o ser
professor alfabetizador é trazer para seu cotidiano suas histórias de vida, suas memórias e
sua socialização com os outros assim como salienta Bosi (1994, p.37) Na maior parte das
vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens de hoje, as
experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Considerando a afirmativa de
Bolívar (2002) de que (...) pesquisa biográfico-científica, no contexto de formação de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 160
professores, possibilita compreender os modos como estes profissionais dão sentido ao seu
trabalho e atuam em seu universo docente, é possível dizer que os professores trazem para
sua prática docente enquanto alfabetizadores as suas experiências vivida no seu cotidiano
particular.
Analisar memoriais de formação é uma estratégia metodológica que visa não
silenciar a memória pedagógica do professor, mas entender através de seus relatos as
experiências da sua ação pedagógica, analisando seu modo de ser e pensar e repensar
criticamente. Então é a documentação narrativa um arquivo produtor de saberes que
promove a liberdade crítica dos docentes no processo de formação de si mesmo uma vez
que sempre falamos de certo lugar configurando a construção histórica do sujeito histórico
que nós somos e da capacidade de reflexibilidade é (...) processo de aprendizagem e permite
a quem escreve retornos críticos sobre o desenrolar cotidiano de sua formação.
(Passeggi,2010, p.23)
É o memorial um mundo sem fim de possibilidades por compor um campo de
reflexão crítica sobre seu próprio percurso biográfico na área de sua atuação/ formação
profissional a partir de suas experiências que valem a pena contar. E mais, por meio da
escrita autobiográfica, as professoras inscrevem seus pequenos poderes na sala de aula, na
escola e na comunidade em que atuam. Reconstruindo o significado do magistério em suas
vidas (...) (MIGNOT, 2002,p. 145).
Nesse sentido, os memoriais de formação dos professores alfabetizados do PNAIC,
expressam a voz desses sujeitos aqui investigados, que expõem as reflexões de si, sua
relação com o outro nos seus processos formativos, nas trocas de experiências e suas
práticas alfabetizadoras.

Memorial de formação: instrumento de reflexão da formação profissional

O memorial é um mundo sem fim de possibilidades e com várias finalidades que


centra nas narrativas de formação na voz de professores no qual relata sobre suas
experiências na carreira no sentido de explorar aspectos da memória e do “ser” do professor
na relação com o outro e com a docência. Segundo Passeggi (2010) ele se encontra por
múltiplas designações entre os quais podemos citar: o memorial, memorial descritivo,
memorial reflexivo, memorial acadêmico, memorial de formação e o autobiográfico. Sendo
este último, uma escrita institucional em que o autor registra reflexões críticas de sobre seu
percurso biográfico na área de sua formação profissional conforme expõe Passeggi é uma
escrita institucional na qual a pessoa que escreve faz uma reflexão crítica sobre os fatos que
marcaram sua formação intelectual e/ou sua trajetória profissional, com o objetivo de situar-
se no momento atual de sua carreira e projetar-se em devir (2010, p. 21). Souza (2006)
salienta que as pesquisas pautadas nas narrativas de formação contribuem para a superação
da racionalidade técnica como princípio único e modelo de formação.
Historicamente o memorial só poderia ser escrito pelos catedráticos, porém, a mais
de setenta anos vem se construindo e se modificando de acordo com a própria
transformação do ensino superior no Brasil e hoje eles são mais democráticos. E sobre isto
Passeggi diz que A escrita autobiográfica já não se reserva a autores consagrados nem a
pessoas lustres. (2010, p. 23). Em consonância diz Ferraroti,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 161


O memorial tem seu uso intensificado na década de 80 do século XX, com o
objetivo derenovar, metodologicamente, a pesquisa em ciências humanas,
contrapondo-se ao paradigmadominante, que tem como pilares a objetividade e a
intencionalidade nomotética. (FERRAROTI, 1988, p. 19 apud OLINDA, 2008, p. 93).

Frente ao exposto, o memorial de formação dos professores alfabetizadores do


Pnaic, se configura como um instrumento que serve de termômetro para que possamos
entender como a partir de suas escritas reflexivas e críticas elas (as professoras)
compreendem e ou apropriam as formações e orientações e de como as suas experiências
cotidianas interferem na prática docente enquanto alfabetizadoras, pois estes constituem
registros do processo de aprendizagem e permite a quem escreve retornos críticos sobre o
desenrolar cotidiano de sua formação. (Passeggi, 2010, p. 23). Dessa forma, estas
professoras ao escrever seus memoriais, permitem-se refletir sobre si tanto no aspecto
pessoal como no profissional, uma vez que muitas vezes são dimensões inseparáveis. Isso
pode ser afirmado no relato de uma professora quando registra em seu memorial que

Ao se recordar de como foi alfabetizada, lembra que foi com muito esforço, pois
seus pais não tinham noção da importância da escola e que a escola por sua vez
utilizava métodos tradicionais, então quando decidiu ser professora sempre
preferiu atuar neste ciclo, pois queria ser uma professoradiferente. Onde seus
alunos não tivessem medo da professora. (...) que por isso busca sempre se
lembrar de como foi alfabetizada para não repetir com seus alunos.

Ao considerar este depoimento é possível dizer que está em um curso de formação


de professores onde eles possam expor suas experiências é notamos que estas professoras
falam de si associando suas experiências de vida com a profissional tornando-as quase que
indistintas. Neste sentido, a autobiografia, que se centra no passado profissional do
professor e no seu mundo pessoal, é fonte de compreensão das respostas e ações no
contexto presente. (Bolívar, 2002). Quanto as experiências com as formações com o PNAIC
as professoras afirmamque participar do PACTO e PNAIC proporcionou-lhes aperfeiçoar a
prática pedagógica, ao apresentar práticas com ênfase nas atividades de apropriação da
escrita alfabética, leitura e produção de textos e ressaltam que as trocas de experiências
durante o curso com colegas e orientadora se configuram como sendo de suma
importância, pois possibilitou reflexões e mudanças de suas práticas em Sala de aula.
Nesse sentido Nóvoa (1988) diz que [...] repensar as questões da formação,
acentuando a ideia que ninguém forma ninguém e que a formação é inevitavelmente um
trabalho de reflexão sobre os percursos da vida [...] Por fim, os professores, realizam o
ensino com um conjunto particular de habilidades e conhecimentos pessoais, obtidos ao
longo de sua história de vida particular.

Sobre a alfabetização na idade certa – o que dizem as professoras?

O Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa é um programa do MEC-


Ministério da Educação em parceria com os municípios que objetiva a alfabetização em
Língua Portuguesa e Matemática, até o 3º ano do Ensino Fundamental, de todas as crianças
das escolas municipais e estaduais, urbanas e rurais, brasileiras eu se caracteriza, sobretudo
pela integração e estruturação, a partir da Formação Continuada de Professores
Alfabetizadores, de diversas ações, materiais e referências curriculares e pedagógicas que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 162
contribuem para a alfabetização na perspectivada garantia os direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, aserem aferidos por avaliações anuais. E para que tais propósitos sejam
alcançados uma das estratégias é a Formação continuada, presencial, para os Professores
Alfabetizadores conforme diz o documento,

Na história do Brasil, temos vivenciado a dura realidade de identificar que muitas


crianças têm concluído sua escolarização sem estar plenamente alfabetizadas,
assim, este Pacto surge como uma luta para garantir o direito de alfabetização
plena a meninas e meninos, até o 3º ano do ciclo de alfabetização. Busca-se, para
tal, contribuir para o aperfeiçoamento da formação dos professores
alfabetizadores. (MÓDULO PNAIC, Caderno de apresentação, 2012. p, 5).

Frente ao exposto, salientamos que além dos alunos o professor alfabetizar é parte
importante deste processo, daí a importância de entendermos a visão que estes
profissionais têm a respeito da proposta ao mesmo tempo em que analisao que sentem a
cerca das formações e suas perspectivas de alfabetização através de seus memoriais
construídos ao longo das formações e sendo as escritas de si a arte do conhecimento estes
se configuram como um termômetro para entender o que é que as professoras dizem.
Sintetizando, o programa promove cursos voltados para os professores alfabetizadores que
pretendem entre outros refletirem sobre o currículo nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, definir os direitos de aprendizagem e desenvolvimento nas áreas da leitura,
escrita e matemática.
Os fragmentos aqui trazidos parecem indicar a ótica que estas professoras vão
construindo ao longo de seus relatóriosconstruindo as suas próprias concepções a respeito
do que julgam importantestanto ao que tange o programa de formação com também sobre
a alfabetização a partir da reflexão que vão tecendo à medida que registram suas memórias.
Mediante o supracitado, sobre o programa em si, uma professora diz ser o PNAIC O
maior programa de formação de professores da sua carreira e continuaafirmando que tem
surpreendido a todos e principalmente os docentes envolvidos “chacoalhando” a vida dos
alfabetizadores (PA1). Em conformidade com a professora anterior a PA2 diz que Participar
do PACTO proporciona momentos de reflexão, interação e diversos aprendizados a cada
encontro eram novas experiências que contribuíram para aperfeiçoar o trabalho em sala de
aula e a

PA3 diz: por muito tempo me senti insegura e ansiosa com o fato de ter alunos com
níveis muito diferenciados de conhecimento em uma mesma turma, com o Pnaic
descobrir a sequência didática. (...) É para nos amparar. Sempre houve muita teoria
e pouco amparo. As orientações de como fazer ficavam por nossa conta. Agora,
podemos trocar “figurinhas”.

Prosseguindo, em outras memórias, as professoras expõem que,

PA4:O Programa Pacto proporcionou-me um crescimento significativo com relação


a minha prática pedagógica e no convívio com o grupo de professores da escola em
que leciono, oportunizando a troca de experiências, o trabalho em equipe, a
reflexão e análise, referente à qualidade do ensino.
PA5: O PNAIC contribuiu positivamente e enriqueceu a minha prática pedagógica,
pois me possibilitou utilizar os conhecimentos teóricos adquiridos sobre os
processos de aprendizagem e situações desafiadoras de alfabetização, pautadas no
desenvolvimento escolar dos alunos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 163
Estes testemunhos nos fazem perceber que embora sejam construções individuais, a
memória coletiva se faz presente uma vez que as formações não existem sem o outro. Existe
na coo-formação citando Suárez, e como disse a PA4: contribuiu com a construção de um
espaço de partilha, troca de experiência, fortalecimento dos vínculos de amizade. Nesse
sentido, parece claro que oprocesso reflexivo envolve uma percepção dos momentos
partilhados tanto na formação como nas rodas de conversas constituídas ao longo do
processo, pois o sujeito ao lembrar-se de suas experiências passadas, no momento de
escrita, no presente, avalia o vivido tanto individual quanto o coletivo como registra esta
professora,
PA3: (...) o curso fortaleceu a nossa equipe de professores, uma vez que propôs
várias atividades que possibilitaram momentos de reflexão sobre a prática,
proporcionando conhecimento, integração, compreensão das diferenças, respeito
a opinião do outro,construção e reconstrução de ideias, ampliando a visão
particular de cada indivíduo.

Esta fala reforça a ideia de que por mais que o memorial seja particular, a memória
coletiva se se apresenta marcante no qual a professora expõe a aprendizagem constituída na
co-formação, como também demonstra como os memoriais conseguem transparecer a
auto-avaliação que estas professoras fazem de si mesmo na relação e aprendizagem com
outros no processo formativo como nos diz Delory-Momberger:

A partir da narrativa pessoal, a corrente das histórias de vida traduze transpõe no


domínio da formação um processo mais geral, que é aquele da maneira pela qual
os indivíduos se apropriam do mundo histórico, social, cultural no qual eles vivem.
[...] este processo que constitui a interface entre o individual e o social e que
designei pelo termo de processo de biografização. (2011, p. 49)

Ao continuar debruçando nas leituras dos memoriais das professoras alfabetizadoras


é possível traçar um perfil das suas histórias de vida e como isto influenciou na sua carreira
no magistério com podemos constatar nestes relatos;

PA1:Quando concluir o 2º grau estava sem expectativas em relação o que fazer


depois te ter feito magistério por não ter outra opção de curso, ainda não tinha
descoberto minha vocação profissional. Mas de uma coisa tinha certeza não queria
ser professora. Na minha cabeça fantasiava as mais belas profissões. Enfim fui
contratada para lecionar na zona rural em classes multisseriadas, porém sem saber
ainda da minha vocação foi os piores dias da minha vida, mas felizmente ou
infelizmente meu contrato acabou e não foi mais renovado vibrei com esta notícia.
Com a falta de opção (...) com o passar do tempo fui pegando gosto pela sala de
aula e percebi que a profissão de professor é bela então passei a valorizar meu
magistério. E foi por meios destes percalços que estou cursando
pedagogiaseguindo a carreira do magistério.
PA6:Embora eu tenha tido uma vida escolar relativamente agradável, um fato
negativo, interessante isso, me motivou a seguir sempre em frente. Tive uma
professora não me lembro de bem se foi na 3ª ou 4ª série que era bastante
carrasca. Tratava-nos de forma preconceituosa e me lembro que gostaria de ser a
Emília em uma encenação sobre Monteiro Lobato, mas ela me impediu de ser
“Emília” argumentando que este papel era de... (citando nome de outra colega)
porque tinha condição de fazer a roupa. Esse fato foi determinante para minha
postura enquanto professora. Sei que até aqui já errei e acertei, mas busca sempre
a reflexão e a retomada sempre no caminho do acerto.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 164
Neste sentido o memorial serve para que o educar reflita como se tornou professora
se colocando numa posição de retomada de consciência e desse modo pensar sobre sua
vocação ou não e tudo isso influencia sobre sua prática docente. Podemos então dizer que
os memoriais de formação potencializam a reflexão constituindo variadas dimensões seja de
vida, dos caminhos e descaminhos, dos processos formativos e do exercício na docência. É
possível ainda compreender como o professor, à medida que registra compreendem-se não
como mero expectador da história, mas como protagonista dela construída no cotidiano
pois, Las historias de vida Del profesorado se vinculanaldesarrolloprofesional,
identidadprofesional o al cambio educativo (Bolívar, 1999; 2005).
Analisando os memoriais passamos a compreender o quanto as histórias de vida de
cada professor são únicas e como tal irá influenciar na construção da sua identidade
profissional, pois cada professor tem uma história única e trazem consigo caminhos
particulares que as levaram a serem professoras. A esse respeito Dominicé (1998, p. 140) diz
que a história de vida “(...)é outra maneira de considerar a educação. (...) passa pela família.
É marcada pela escola. (...) a educação éassim (...) adquirem o seu sentido na história de
uma vida”.
Ao que tange a receptividade ao Pnaic, os fragmentos expostos nos memoriais de
formação das professoras cursista demonstram uma aceitação ao programa conforme expõe
a PA6 que já atua como professora da rede há 17 anos diz que participar desse curso, é uma
grande oportunidade, pontuando o seguinte,

O curso nos faz crescer, inovar a nossa dinâmica em planejar, repensar e conduzir
a nossa prática pedagógica. Cada encontro propicia momentos de reflexão, troca
de experiências que fortalecem nossas atividades pedagógicas e um novo olhar aos
alunos, principalmente ao que diz respeito a heterogeneidade, principalmente
sobre o tempo de cada um aprender.

A cursista, a PA2 que atua nos anos iniciais da educação básica há 20 anos, destaca,
De início achei que seria apenas mais um programa, mas com o Pnaic, percebo que
este está alicerçado e novos tempos nos esperam para a efetivação de uma
educação de qualidade garantido os direitos dos nossos alunos, que é aprender ler
e escrever com autonomia nos primeiros anos escolar.

Outra temática que foi analisada nos memoriais de formação das professoras do
Pnaic foram as suas concepções de Alfabetização sob a ótica de suas próprias experiências
de quando foram alfabetizadas e como isto influenciou na sua prática docente enquanto
alfabetizadoras como podemos perceber na fala de uma das professoras colaboradoras que
diz:
PA6: Como fui alfabetizada pelo método tradicional, caminhei por esse caminho
também. Com o tempo, com os cursos de formação, fui mudando minha postura e
assim tenho buscado outras metodologias para poder enriquecer minha prática
que tem como principal objetivo, fazer o aluno aprender.

Podemos então, perceber neste relato a importância que esta professora concebe a
formação continuada e de que forma atribui isto ao seu crescimento e podemos perceber
também que a escrever no seu memorial, a professora pensa no que vai dizer, pois tem
consciência que este memorial está a serviço de um programa e de que precisa demonstrar
de certa forma a contribuição do mesmo para o seu crescimento. Esta assertiva compactua
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 165
com os estudos (auto) biográficos que visa à liberdade do sujeito em narrar, podendo
inclusive, acrescentar, omitir, florear, enfim, selecionar o que dizer ou não.
Por meio dos relatos nos memoriais, as professores revivem suas próprias
experiências ao entrarem em contato com suas próprias histórias e com isto conscientizam-
se de suas responsabilidades à medida que compreendemseu trabalho enquanto
profissionais de alfabetização como podemos perceber nestes relatos:

PA2:Tive uma ótima professora na alfabetização. Ela ensinava de forma dinâmica e


com musiquinha e esta experiência me faz, relacionar com o PACTO que trabalha
com gêneros textuais de conhecimento dos alunos e me reporta a esta professora
que me alfabetizou.
PA6: Pensando sobre minha alfabetização, de como fui alfabetizada, concluir que
me alto alfabetizei, pois minha professora, não que ela tivesse essa consciência,
trabalhava só para quem já conhecia o sistema notacional. Eu e outros colegas
ficávamos à parte. Mas eu era muito curiosa e fui juntando as palavrinhas e um dia
descobrir que tinha aprendido a ler. Isso me marcou profundamente tanto que
busco da atenção a todos os meus alunos. Pelo menos tento.

De fato os professores, são pessoas, e como tal, transfere suas experiências pessoais
adquiridosao longo de suahistória de vida particular para a sua vida profissional e no caso do
professor alfabetizador pensar como foram alfabetizados é muita importância, pois sem
dúvida irá influenciar na sua maneira de agir enquanto alfabetizador. Assim, este
profissional, ao ver-se diante da escrita de um relatório que tem de registrar suas memórias
encontra-se numa posição em que é pertinente refletirsobre si, como profissional e como
pessoa, visto que são relações entrelaçadas. Por esta premissa, entende-se a escrita de si
como uma oportunidade para os professores alfabetizadores dar novos sentidos ao seu
modo de pensar e fazer o ensino nesta fase de ensino que o ato de alfabetizar. E assim, as
escritas de si permitem reconstruir, documentar experiências significativas do vivido
associando ao conhecimento pedagógico e consequentemente a sua pratica docente.

PA1: Recordo-me que comecei estudar com sete anos de idade onde estudei no
primeiro ano fraco, depois no primeiro ano forte (era assim que se dizia). Foi onde
aprendi ler sem muitos recursos. Busco não agir de forma tradicionale hoje vejo
que é muito mais fácil alfabetizar e com certeza os alfabetizandos são mais
inseridos no mundo letrado.

Os memoriais de formação se configuram com importante instrumento de


investigação da ação docente, pois neles estes profissionais oportunizam-se escrever sobre
sua vida cotidiana, suas experiências e assim criam possibilidades de construir sua
identidade profissional, pois nenhum professor se tornou profissional da educação pelos
mesmos motivos e por isso cada um constrói seus modos próprios de planejar e produzir
suas aulas e de posicionar-se frente os imprevistos.
A escrita de si é formação. No caso destes memoriais, é como se as professoras se
vissem frente a um espelho, no qual refletem sobre momentos que julgam mais importantes
ou também o que querem selecionar e mostrar, pois quem escreve tem esta autonomia em
sua escrita e no caso do memorial em formação serve para cumprir uma etapa da formação
em serviço, então não há como fugir desta “seleção”. Passeggi (2010, p. 27) destaca que O
memorial autobiográfico pode então ser definido como uma escrita acadêmica, pela qual o
ator faz uma reflexão crítica sobre seu percurso intelectual e profissional em função de um
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 166
demanda institucional. E mais, a escrita de si, a autobiografia, serve para oportunizar as
professoras, tornarem- se mais visíveis para si mesmas e assim poderem a partir deste
autoconhecimento possam modificar a si e suas práticas docentes cumprindo a proposta da
formação.
Sobre isto podemos dizer que os memoriais é instrumento de percepção de como os
profissionais relatam suas vivencias que em envolve também reavaliação de experiências
proporcionando-lhe outra forma de pensar e sentir sobre concepções cristalizadas
construindo outras e outras vezes colocando em jogo passado e presente em que numa
visão diacrônica desvalorizam totalmente o “velho” avaliando-se negativamente e tentando
em certos momentos se colocar em uma posição de que não age mais daquele modo. Soares
( 1991, p. 37) diz que Na lembrança, o passado se torna presente e se transfigura,
contaminado pelo aqui e o agora. (...) não posso separar o passado do presente, e o que
encontro é sempre o meu pensamento atual sobre o passado, é o presente projetado sobre o
passado. Enfim, analisar os memoriaisde formação é compreender o quanto as histórias de
vida de cada professora expõem um mosaico de entendimento de como estes educadores
constroem suas ações, pois de acordo o que explana Bolívar (2002, p. 175) a autobiografia,
que se centra no passadoprofissional do professor e no seu mundo pessoal, é fonte de
compreensão das respostas eações no contexto presente.

Tecendo algumas considerações

Narrar, refletindo sobre o que se fez, é uma prática humana. (Passeggi, 2010, p.37)
Diríamos mais, concretiza a verdade, mesmo que subjetiva. Verdade de quem vivenciou. E
nesta perspectiva, é que procuramosanalisar os memoriais de professoras alfabetizadoras
do PNAIC através da abordagem (auto) biográficao que possibilitou enxergar a humanização
que estas profissionais dão as suas práticas, pois à medida que escrevem, repensavam,
revisam, refletem sobre suas ações e assim mudam a si e a sua prática numa perspectiva
metarreflexiva como ressalta Souza (2006) ao dizer que esta leva o sujeito uma tomada de
consciência, por emergir do conhecimento de si (...) remetendo a constantes desafios em
relação às suasexperiências e às posições tomadas numa visão de emancipação do sujeito.
Assim, o memorial, as escritas de si medeiam à palavra reflexão no contexto dos relatórios
de professores em formação produzindo conhecimento da e para a vida profissional, abrindo
caminho para a transformação uma vez que compreende o professor sob a ótica da sua
globalidade uma vez que aborda tudo que foi vivido.
É verdade que na formação nos moldes tradicionais, a participação do professor de
modo geral é minimizada e por isso, os memoriais de formação oportuniza ao professor a
liberdade e a coragem de dizer o que sentem. Portanto, com o método (auto) biográfico
valoriza-se a superação do estrutural para a construção de um conhecimento que é
refletido. Josso (2010, p.195) ressalta que o sujeito que constrói sua narrativa e que reflete
sobre sua dinâmica é o mesmo que vive sua vida e se orienta em cada etapa. Dizer isso
equivale a colocar o sujeito no centro do processo de formação. É fazer dele o escultor de sua
existência.
Nesta pesquisa, foi possível compreender, a partir da narrativa de seus memoriais o
que pensam, o que sentem e o que dizem as professoras alfabetizadoras do Pnaic no
município de Jaguaquara Bahia, permitindo trazer para o campo da pesquisa seus anseios e
críticas e como relacionam suas histórias vida com a profissional ao tempo em que vai
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 167
conscientizando-se sobre o lugar que ocupa socialmente. Esta análise traz também a
percepção destas alfabetizadoras sobre o programa, sendo que este e outros são
implantados sem que suas vozes sejam ouvidas.
Nesse sentido, a partir das análises que aqui foram feitas, a questão central proposta
foi respondida, mas ressaltamos que não é uma analise conclusiva, pois o método (auto)
biográfico é subjetivo e dinâmico, portanto, outras leituras e outras escritas podem vir a
acrescentar o que aqui foi exposto tanto em concordância quanto ao contrário.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 168


Diário de bordo, prática de (auto)formação

Crystina Di Santo D’Andrea


UFSM
crysdandrea@ibest.com.br

Práticas de formação utilizando pesquisas com histórias de vida são comuns na academia universitária pela
contribuição à compreensão dos processos de formação de si que elucidam processos de formação pessoal e
social. Minhas reflexões surgem a partir da minha própria experiência como aluna do Doutorado em Educação
(UFSM), especialmente pelas disciplinas realizadas em 2013, que empregaram o Diário de Bordo como uma das
formas de construção do conhecimento. Percebi que já utilizava o Diário de Bordo nas minhas práticas
pedagógicas como Professora e como Formadora de Professores. Teorizei essa prática a partir da pesquisa nos
meus escritos e no das minhas alunas, pensando-a como uma estratégia que possibilita inverter a lógica da
avaliação linear, comportamentalista e conteudista, em prática de formação pessoal e conceitual, pelas
narrativas que vão compondo as histórias de vida dos sujeitos expressas em diferentes gêneros textuais
impregnados no Diário de Bordo. Dizer-se em Diário de Bordo potencializa a reflexão sobre aprendizagens
vivenciadas, sem engessar o aluno em objetivos externos e em resultados previsíveis às aprendizagens. Através
do Diário de Bordo, possibilitamos que nossos alunos sejam protagonistas dos seus conhecimentos pela
reflexão das suas vivências pedagógicas da forma como lhes são mais significativas. Os professores desejam o
inesperado e possibilitam inovações pedagógicas, abrindo e ampliando o campo existencial dos seus alunos no
tempo/movimento de suas aprendizagens, sem mensurá-las. Também conseguem perceber-se nas diferentes
formas narrativas gerando uma relação de autoavaliação para todos envolvidos no processo pedagógico.
Diários de Bordo são expressões das aprendizagens dos sujeitos, da sua história de vida em diferentes domínios
e perspectivas de socialização do conhecimento, experienciando o sujeito e sua vida como princípios fundantes
da formação, do conhecimento e da cultura.
Palavras-chave: Diários; Escritas de formação; (Auto)formação.

Introdução

Toda uma vida não é longa o bastante para a melhor coisa que fazemos
por nós mesmos, isto é, despertar o que na mente não se esgota,
que ela nunca teme e de que nunca se arrepende (...) o aprendizado.
Leonardo da Vinci

Escrever não é tarefa fácil, mas acredito que seja a melhor forma de refletirmos
sobre o que aprendemos no nosso cotidiano. No segundo semestre de 2013, participei de
duas disciplinas na UFSM, como Doutoranda, nas quartas feiras, pela manhã e pela tarde, o
que foi fundamental para o desenvolvimento da minha Tese. Entre outras coisas, associo o
trabalho desenvolvido com a escrita de si em Diários de Bordo, potencializando a reflexão
sobre as aprendizagens, o que foi fazendo com que também refletisse em relação a minha
própria formação e a sua compreensão.

(Re)escrever-se no cotidiano

Começo esse estudo falando (acredito que escrever também é falar, já que
propomos, ao escrevermos, uma interlocução com o leitor que vai estabelecendo relações
com o pensamento do escritor ao possibilitar suas próprias aprendizagens) sobre o
cotidiano. Para tanto, quero valer-me do pensamento de Certeau (2012) que afirma que
mais do que o lugar, são as relações entre os sujeitos e entre esse lugar que compõem uma
cultura inventiva do cotidiano.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 169


De um lado, a análise mostra antes que a relação (sempre social) determina seus
termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua uma
pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações
relacionais. De outro lado, e sobretudo, a questão tratada se refere a modos de
operação ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito que é seu autor ou
seu veículo.” (p. 37)

São as “maneiras de fazer” (CERTEAU, 2012) que vão transformando as coisas, as


pessoas e os lugares e vão inventando o cotidiano, o fazer-se a cada dia. Utilizo minha
própria experiência como acadêmica, para estabelecer relações com a minha pesquisa de
Tese e com meu trabalho como Formadora de Professores, e possibilitar o estranhamento
necessário que me distancie do discurso comum, formador do objeto e que o nomeia em
práticas naturalizadoras. Dei-me conta de que também pratico o Diário de Bordo com
minhas alunas nos cursos de formação permanente e que obtenho ótimos resultados.
Resolvi teorizar essa prática, que já fazia parte do meu cotidiano como formadora e
escrever-me nas reflexões do meu cotidiano, acabou por ser um exercício fundamental para
minha (auto)formação.
A formação acadêmica acaba por seguir a formação escolar, ainda muito centrada
na transmissão dos saberes e os próprios professores demonstram dificuldades em pensar e
agir de outra forma, o que pude comprovar nas diferentes disciplinas que cursei desde que
ingressei no Doutorado, em março de 2012. E também, pelos depoimentos das professoras
alfabetizadoras participantes do meu atual grupo de formação permanente, que dizem que
suas professoras até preocupam-se em acompanhar o método da moda, mas muitas
crianças ainda continuam sem alfabetizar-se, como se, simplesmente acompanhar as
propostas da moda sem saber o que se está fazendo e sem ter certeza da intenção pela qual
se faz alguma coisa, fosse resolver a questão das aprendizagens. Assim como os professores
de outros níveis de ensino esperam resultados previsíveis de seus alunos, estabelecendo
objetivos externos a eles, também muitos professores da Universidade estão preocupados
com o que deveriam ensinar, direcionando os conhecimentos dos seus alunos de uma forma
linear e transmissora. Sem inovações. Sem favorecer que os alunos protagonizem seus
conhecimentos. Ao contrário, nessas disciplinas de quartas-feiras, foi o inédito que
aconteceu: os professores conseguiram desejar o inesperado, abrindo e ampliando o campo
existencial dos seus alunos no tempo/movimento de aprendizagens sobre nossas teses.
Quer dizer, sobre nossas aprendizagens. Escrever-se também é uma forma de aprender-se.
Nesse semestre, descobri que a escola (a Academia por extensão), não me constitui
aquilo que sou, mas aquilo que me possibilita ser, redescobrindo o universo da pesquisa em
educação. Ambas as disciplinas, embora articuladas e realizadas de formas diferentes,
criaram um ambiente de aprendizagens favorável à nossa formação, tanto pessoal, como de
pesquisadores (acredito que elas estejam intrinsecamente relacionadas), visto que
objetivavam potencializar a discussão a cerca da prática de pesquisa no cenário
contemporâneo.
Propunham leituras de diferentes textos e a discussão de ideias e conceitos
objetivando articular questões de ordem teórico metodológicas ao campo da educação,
assim como outras disciplinas que já cursei. O diferencial, eu acredito que esteja na forma
como as aulas foram organizadas, propondo dialogicidade entre o pensar e o fazer; na forma
como os conceitos foram discutidos em sugestões de leituras, filmografias, análise de teses e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 170
na produção de Diários de Bordo, sempre discutidos em grupo, em clima de parceria e
compartilhamento, o que nos deixou extremamente à vontade para expor nossas ideias,
nossas angústias e nossos projetos. Embora todos soubéssemos que estávamos sendo
avaliados, percebíamos que a avaliação acontecia de uma forma natural, contribuindo com
nossas produções e não, mensurando nossas práticas.

Como (re)pensar práticas pedagógicas além das dimensões consensuais que


obliteram a alfabetização? Em quais rituais de incorporação e de investidura
(Bourdieu, 1994, p.3) realizaríamos de forma eficaz a troca dialógica, silenciosa,
invisível e talvez, indizível que nos levaria a transformar nossas práticas
pedagógicas em felizes movimentos de alfabetização e letramento? (Fragmento do
Diario de Bordo, 2013)

A efetivação do Diário de Bordo em ambas as disciplinas foi primordial para romper


com a comumente utilizada lógica da avaliação conteudista que trabalha com objetivos
externos aos sujeitos em coesões de universalização e homogeneização das coisas.
Cabe considerar que os Diários de Bordo têm origem na navegação e no fluxo do
tráfego rodoviário e aéreo, objetivando registrar os eventos mais importantes acontecidos a
cada dia de translado. No caso da Educação, sua prática originou-se a partir da necessidade
de uma avaliação contextualizada nos Cursos de Educação à Distância. Atualmente, mesmo
em cursos presenciais, é utilizado como uma estratégia pedagógica na qual o aluno resenha
e anexa suas produções e impressões sobre a temática que está sendo explorada,
apresentando seu entendimento e as relações que estabelece com e sobre o conhecimento
em questão. Dessa forma, fui teorizando minha própria prática e compreendendo essa
maneira diferente de fazer educação.
O Diário de Bordo apresenta um grande potencial interativo porque permite a
elaboração e a edição de suas informações em diferentes gêneros de textuais; e a inserção
de imagens, ou mesmo, objetos significantes e significativos. Dessa forma, promove a
interação e o compartilhamento, de conhecimentos, emoções, sensações e impressões. Em
fim, um Diário de Bordo anuncia em si, não apenas a identidade do aprendiz, mas as
maneiras de fazer cotidianas, que compõem o sujeito e estão expressas a partir da
elaboração cuidadosa do que se quer dizer. Não apresenta apenas os conceitos de um
objeto em estudo, mas dos significados do conhecimento elaborado a partir do que se sabe
e do que se vive, que vão sendo construídos nas e pelas consequentes relações com o
cotidiano.
É uma forma de mediação do processo reflexivo, das ações e sobre as ações em
determinados cenários ou contextos. Expõe as reflexões do autor a partir do diálogo interior,
oferecendo informações pertinentes aos processos de aprendizagens e de socialização no
ambiente escolar e fora dele. É a fundamentação de um instrumento de autoavaliação,
proporcionando ao autor a reflexão sobre as informações que ele mesmo produziu a partir
das relações com os saberes em questão.
O Diário de Bordo apresenta elementos referentes aos processos de aprendizagens,
mas também aponta para a qualidade desse processo e dos conhecimentos que estão sendo
construídos como constitutivos da formação pessoal. Evidencia o autor como um todo,
protagonista das próprias aprendizagens. Rompe com a ideia de linearidade hierárquica,
apresentando uma participação ativa do aluno nos processos de aprendizagens. Permite a
exploração de alternativas referentes ao ambiente e aos conhecimentos, ao tempo e ao
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 171
movimento favoráveis para a realização de inferências sobre as relações entre os diferentes
saberes, e os diferentes sujeitos, estabelecendo similaridades entre ideários, facilitando
descobertas de princípios, conceitos ou relações. Conforme os sujeitos escrevem sobre si e
suas relações com o conhecimento, os autores rompem com a lógica linear, conteudista e
estática do currículo tradicional, percebendo o conhecimento em diferentes vivências.
Quando trabalhamos com o Diário de Bordo, pressupomos a existência de um
currículo espiralado, que possibilita ao autor perceber o mesmo conhecimento sob
diferentes aspectos, níveis de aprofundamento e formas de representação. Rompe com as
ideias de estruturação, transversalidade e linearidade do currículo para percebê-lo vivo
dinâmico e relacional.
Penso no Diário de Bordo como uma estratégia de (auto)aprendizagem (o que
também pressupõe ensinagem) desafiadora, onde, a partir das suas percepções e narrativas,
bem como da perspectiva da forma de organizá-las, o autor aprende solucionando
problemas e desafiando a si mesmo a compreender o mundo e suas relações. Conforme o
autor vai elaborando o Diário de Bordo, vai atribuindo sentido ao que faz a partir da
compreensão de si em relação com o mundo (conhecimento). Constrói sua identidade ao
observar-se e narrar-se nessa relação com o mundo e que constitui as maneiras de fazer
inventivas do cotidiano. Uma forma de (re)avaliar-se em movimento (auto)reflexivo que
possibilita a criação de condições para que a aprendizagem se efetive.

Voltar-se sobre si, em movimentos de autoconhecimento é narrar o indizível, o


invisível aos outros que, imperceptível em um primeiro momento, transborda o
conhecimento construído pelo cotidiano nas relações das próprias histórias de vida.
Escrever uma Tese, é também (re)escrever-se, pensando-se, dizendo-se e
(re)inventando-se no cotidiano investigativo. (Fragmento do Diário de Bordo,
2013).

Escrevendo no Diário de Bordo narrativas de si, os sujeitos tornam-se protagonistas


da sua formação, o que muito me agradou na perspectiva da forma metodológica dessa
disciplina. O fato de poder lidar com as possibilidades dos sujeitos e a imprevisibilidade das
aprendizagens favorece a intenção pedagógica do professor.
Através dos diários de Bordo e da reflexão realizada para compô-los, fui elucidando
elementos pertinentes às minhas aprendizagens protagonizando-as em um tempo próprio e
singular, articulador do movimento histórico constitutivo do sujeito. A partir das narrativas
da turma, relacionadas com nossos estudos, fomos articulando diferentes momentos de
aprendizagens constitutivos dos sujeitos em formação. Nessa minha vivência, no/sobre o
Diário de Bordo, diretamente implicada no meu cotidiano, percebi indícios que podiam
apontar os caminhos para construir um novo paradigma sobre a avaliação.
Oliveira (2009), diz que ensinar não basta, é preciso proporcionar aos alunos, que
vivenciem diferentes estratégias de ensino aprendizagem em situações de vivência e
colaboração na construção dos conhecimentos que cada um busca para si. As aulas
começaram com a presença tímida dos alunos e a orientação afetuosa dos professores. Aos
poucos foi estabelecendo-se uma dialogicidade entre o lugar e entre os sujeitos, definindo
que relações seriam estruturadas e valorizadas. Criou-se um entrelugar de cultura de
aprendizagens que em linguagens, muitas vezes silenciosas, definiam-se pela prática
cotidiana de aprender e suas “maneiras de fazer” pesquisa em educação, registrando mais
do que anotações da aula, mas as reflexões sobre o que se está fazendo/aprendendo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 172
Falar sobre o cotidiano é dizer-se em diferentes “maneiras de fazer” com que as
possibilidades sejam inventadas pelo que se vai pensando e sobre o que se vai fazendo em
ações articuladas pela convivência afetuosa com os outros. Registrar as compreensões
dessas relações é (re)escrever-se, em ação presente, em (auto)formação.

(Auto)reflexão: memórias
Se é a própria vida e eu continuo a vivê-la,
Como, simplesmente, memória?
O que é memória?
O que é vida?
Saberia eu que o vivido tornar-se-ia memória?
E por que estas memórias e não aquelas?
Onde estarão escondidas as coisas vividas
Que hoje não lembro?

Memória é produção, conservação e evocação de informações e/ou conhecimentos


elaborados a partir da própria experiência pessoal. À produção de memória, também
podemos chamar por aprendizado. Memórias apenas adquirem sentido quando são
evocadas, isto é, acessadas para serem utilizadas em ações no presente. Memória é vida
fluída, é mundo vivido inventado no cotidiano.

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se
com as percepções atuais, desloca estas últimas, ocupando o espaço todo da
consciência. A memória aparece como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda
e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2004, p.09)

Nossa maneira de agir, pensar, planejar, de realizar e de sentir, relaciona-se,


estreitamente, com aquilo que lembramos, pois aquilo que lembramos, é aquilo que
sabemos. O que não aprendemos, ou o que, por algum motivo tenha ficado esquecido, não
faz mais parte de nós, não nos pertence mais, não nos é identitário. A identidade de cada um
vai se formando de jeitos e trajetos diferentes porque cada um tem sua própria história
construída pelo que é vivido cotidianamente e pela forma como é lembrado, ou esquecido,
pelos sujeitos. Somos aquilo de que nos lembramos porque também decidimos o que
queremos esquecer. Somos nossas memórias. Somos o que conseguimos aprender nas
diferentes formas que percebemos e nos relacionamos com o mundo, inventando e
reinventando nosso cotidiano.
Como diz Norberto Bobbio: “Somos aquilo de que nos lembramos” (1997, p. 30) Eu
diria: Somos o encontro daquilo que lembramos com o que decidimos esquecer.
Alguns pesquisadores (STERNBERG, 2008) acreditam que a memória deveria ser
estudada em ambientes reais, não apenas em laboratórios, enunciando como empregamos
a memória em situações cotidianas e para que, efetivamente, ela serve. A ideia é que a
pesquisa em memória deva aplicar-se a fenômenos naturais ocorrentes em ambientes
naturais, para que seja concebida como uma estratégia de interação com o mundo real e
possibilite a análise das aprendizagens cotidianas. O Diário de Bordo aparece como uma
pertinente forma de registro e (auto)reflexão. Dessa forma, é possível vislumbrar a memória
(auto)biográfica cumprindo um determinado propósito nas nossas interações com o mundo
e consequentes relações com os saberes estabelecendo-se como uma metodologia de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 173
pesquisa. Uma pesquisa sobre nós mesmos, investigando que possibilidades de
aprendizagens temos construído para nós e que significações o cotidiano e as relações
intrínsecas a ele, vão proporcionando a formação do sujeito. As reflexões sobre si, buscando
compreensão das dinâmicas e significações elaboradas pelas histórias de vida no cotidiano,
permitem a transformação das pessoas em atores biográficos (Josso, 2010).
A ideia de atores biográficos parte da concepção de que, embora as pessoas estejam
inseridas em um determinado contexto sociocultural, podem protagonizar suas histórias de
vida inventando-se no seu cotidiano. Caminhar para si (Josso, 2010) permite um duplo
movimento de consciência que relaciona e envolve o que é presente pelo que foi vivido no
passado e que projeta perspectivas de futuro por aquilo que virá a ser. “Esse olhar
retrospectivo e prospectivo estimula a reflexão sobre a responsabilidade do sujeito sobre seu
vir a ser e sobre as significações que ele cria.” (JOSSO, 2010, p. 189)
Através dos séculos, o relato oral sempre foi a maior fonte de dados para as Ciências,
em geral, através da transmissão da palavra, isto é “experiência indizível que se procura
traduzir em vocábulos”. (Queiroz, 1988, p.16) A invenção da escrita, nada mais é do que a
cristalização do relato oral em registros mnemônicos. A História Oral, como é chamado
agora o Relato Oral, em função de sua revalorização, é uma técnica de coleta de dados em
pesquisas qualitativas que contribui com o pensamento acadêmico com sua vivacidade e
fartura de detalhes que configuram os aspectos dos fatos sociais. É uma forma de registrar o
que ainda não está determinado em documentações escritas e que se não for registrado, em
uma sociedade contemporânea, dominadora, classista e essencialmente urbana, tenderá a
desaparecer. As histórias das pessoas comuns tendem a desaparecer engolfadas pelo mundo
urbano, soberano nos seus saberes, tirano nos seus fazeres, consumidas pelos desejos e
apelos da urbanidade. Construir um Diário de Bordo, é transformar vozes em palavras
escritas.
Entendida como uma metodologia que favorece as relações entre memória e
história, as Histórias de Vida interrelacionando-se com a história do tempo em tríade,
passado, presente e futuro, isto é, de um tempo que não é apenas recorte, mas movimento.
E por estar em movimento, elabora mais uma dimensão, a das relações entre os três
tempos, que conseguimos captar quando escrevemos. Possibilita aos pesquisadores captar o
que não está explícito, talvez mesmo, o indizível que, recolhido na memória e na
sensibilidade dos sujeitos expande possibilidades da compreensão do real. Vivenciar a
história do tempo/movimento permite que se perceba com clareza a articulação entre as
percepções e as representações dos atores biográficos e as determinações e
interdependências que tecem as relações sociais e as transformações culturais.

A experiência humana, pessoal/social, tem uma natureza temporal cujo caráter


apresenta-se articulado pela narrativa, em especial quando clarifica a dualidade
“tempo cronológico”/”tempo fenomenológico”. (...) A perspectiva tridimensional
do tempo narrado, também se apresenta no tempo pensado/vivenciado, com as
ambiguidades e, mesmo, contradições no seio dessas três instâncias, passado,
presente, futuro. (ABRAHÃO, 2006, p. 151)

Escrever essa história tempo/movimento através das narrativas de si em um Diário


de Bordo auxilia a compreender as transformações que vamos vivenciando a partir de
nossas formações, realizando uma autoformação. É preciso aguçar a percepção para
envolver-se em escritas de si, demonstrando que as diferentes maneiras de fazer o/no
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 174
cotidiano é sempre resultado de uma elaboração que compreende tempo/movimento, ou
seja, história sempre será uma contínua construção de nós mesmos e nós, seres inacabados.
Para Freire, as relações de ensino-aprendizagem estão relacionadas ao
inacabamento de homens e mulheres no mundo. Essa característica, reafirmada
por ele (1997), exige que o processo educativo escolar esteja permanentemente
aberto às questões emergentes na sociedade. Que seja dialogado com elas, sem,
contudo, abrir mão de suas origens, sua cultura, suas experiências, enfim, seus
saberes e fazeres. (BARCELOS, 2013, p. 78)

É importante ressaltar que Histórias de Vida, conforme Queiroz (1988), pesquisadora


da sociologia, diferenciam-se das autobiografias, biografias, depoimentos pessoais e das
entrevistas. No entanto, em pesquisas na Educação e na antropologia, existe uma visível
tendência a aproximar biografias e autobiografias das Histórias de Vida.
Nas (auto)biografias e Histórias de Vida, elementos presentes na cultura de um
determinado tempo-espaço desse sujeito, podem ser elucidadores ao objeto de pesquisa. É
preciso transformar o narrador em colaborador e relacionar suas histórias, saboreando-o na
construção de textos elucidadores do contexto.

No Magistério, lembro de algumas professoras perguntando se tínhamos certeza


que queríamos ser professoras e expunham os muitos problemas da profissão Mas
o brilho que elas traziam no olhar, o desafio que se impunha na entonação, o
orgulho, visível na postura ... Não tínhamos como desistir. Sim. Queríamos ser
professoras. Fiz meu Magistério nos anos finais da década de 70. Às vezes, ao
fundo da sala de aula de determinadas professoras, um homem de preto sentava-
se. Olhávamos enfileiradas, muitas vezes de revesgueio, como se nossas nucas
estivessem sendo perfuradas por um raio incisivo vindo de um olho superpoderoso.
Mas não éramos seu interesse prioritário. Hoje compreendo melhor essa tirania, o
que me fez diferente. (Fragmentos do Diário de Campo)

Apesar da História de Vida ser contada por um determinado personagem e girar em


torno deste, o que se busca como pesquisador/escritor são as particularidades que
singularizam os sujeitos e suas trajetórias envolvidas em teias de relações coletivas. É um
método que pode ser utilizado em pesquisas em Educação, que propicia analisar, esclarecer
e compreender as relações coletivas que se estabelecem entre os sujeitos de determinados
grupos e contextos, sendo o ponto de intersecção das relações entre o que é externo ao
sujeito e o que ele carrega em seu íntimo. Da mesma forma, (auto)biografias configuram-se,
cada vez mais, como férteis espaços de conhecimento da problemática em investigação.
Essa deve ser a fundamentação da avaliação: investigação para construir possibilidades.
Assim conseguimos romper com a lógica de uma avaliação que mensura, para construir uma
lógica formadora dos sujeitos e das suas possibilidades.
Diferentemente, no processo de interpretação das informações utilizamos uma
concepção em que as categorias de sujeitos são entendidas como espaço de
enunciação, em que os elementos pertinentes vão se desenhando na medida da
relação das narrativas com seus contextos. Esta compreensão privilegia, ao invés
da estrutura amostral de uma história segundo o sentido originário dos textos ou
dos elementos de profundidade de seus sentidos ocultos, o entendimento de que a
origem e o sentido profundo dos textos é algo que construímos pari passu,
diuturnamente. (Abrahão, 2006, p.155)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 175


O que faz possível utilizar a (auto)biografias como metodologia de avaliação, é a
fundamentação da sua análise. No caso do Diário de Bordo, as percepções dos seus autores
em relação aos seus saberes e fazeres pedagógicos e sua aprendizagem. É conseguir
transformá-los em texto (conhecimento) e, assim, promover com que o próprio autor se
perceba como potencial ator da dinamização das possibilidades de aprendizagens.

Recorte do Diário de Bordo de uma professora alfabetizadora (2013)

Professores, independentemente do nível de ensino em que atuem, esperam, na


maioria das vezes, resultados previsíveis de seus alunos, estabelecendo objetivos externos a
eles. Preocupados com o que deveriam ensinar, e não com as possibilidades de
aprendizagens de seus alunos, direcionam o currículo de uma forma linear e reprodutora.
Realizam avaliações que mensuram o conhecimento de cada um em relação ao que é
pretendido pelo professor. Embora pensem em como o aluno aprende, preocupam-se com o
que querem que o aluno aprenda. E, às vezes, inventar se torna impossível. Não há
inovações, apenas permitem-se retocar seu fazer pedagógico com as nuances das propostas
e metodologias da época, sem favorecer com que os alunos protagonizem seus
conhecimentos e sua própria formação. Sem criatividade. Sem saberes e sem sabores
inovadores. Buscar novos métodos e novas teorias, não se tem mostrado suficiente, muito
menos eficiente, para alterar a prática da sala de aula, seja ela em qualquer nível ou
modalidade de ensino.

(Auto)Avaliação: processos de aprendizagens

Avaliação é um termo muito amplo, inerente ao nosso cotidiano e que traz


diferentes implicações. Inicialmente, para pensarmos avaliação, é imprescindível considerar
os princípios e quais critérios são seus balizadores.
Nossas práticas são imbuídas de concepções, representações e sentidos que
expressam nossa forma de ver, ser e de estar no mundo. A cultura escolar ainda está
impregnada pela lógica seletiva e classificatória pertinentes à cultura da meritocracia
responsável pelo êxito de uns e o fracasso de muitos, nos diferentes tempos de
escolarização , inclusive, na formação superior.
Nesse semestre, descobri que a escola (a Academia por extensão), não me constitui
aquilo que sou, mas aquilo que me possibilita ser, redescobrindo o universo da pesquisa em
educação e, consequentemente, a compreensão das maneiras de fazer no meu cotidiano de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 176
professora/formadora. Descobri que um trabalho articulado e realizado de diferentes formas
metodológicas e narrativas, possibilita a criação de um ambiente de aprendizagens favorável
à nossa (auto)formação. Compreendi-me também em processo de formação
intrinsecamente relacionado à formação das minhas alunas, colocando-me no lugar de aluna
e aprendendo com as narrativas delas.
Fui registrando minhas considerações e emoções no meu Diário de Bordo e nele
encontrei um potente instrumento de (auto)formação. Meus professores deste semestre e
minha orientadora propunham leituras de diferentes textos e a discussão de ideias e
conceitos a partir de diferentes estratégias pedagógicas, objetivando articular questões de
ordem teórico metodológicas ao campo da educação, assim como outras disciplinas que já
cursei e como em cursos que já ministrei.
O diferencial, eu acredito que esteja na forma como as aulas foram organizadas,
propondo dialogicidade entre o pensar e o fazer; na forma como os conceitos foram
discutidos em sugestões de leituras, filmografias, análise de teses e na produção dos Diários
de Campo, sempre discutidos em grupo, em clima de parceria e compartilhamento, o que
nos deixou extremamente à vontade para expor nossas ideias, nossas angústias e nossos
projetos. Embora soubéssemos que estávamos sendo avaliados, percebíamos que a
avaliação acontecia de uma forma natural, contribuindo com nossas produções e não,
mensurando nossas práticas. E percebi que também no meu Grupo de Trabalho (GT14) do
Pacto Nacional pela Afabetização na Idade Cesta (PNAIC), era essa a essência da nossa
formação.

Como (re)pensar práticas pedagógicas além das dimensões consensuais que


obliteram a alfabetização? Em quais rituais de incorporação e de investidura
(Bourdieu, 1994, p.3) realizaríamos de forma eficaz a troca dialógica, silenciosa,
invisível e talvez, indizível que nos levaria a transformar nossas práticas
pedagógicas em felizes movimentos de alfabetização e letramento? (Fragmento do
Diario de Campo, 2013)

É preciso lembrar que (auto)avaliação e (auto)formação têm um espaço reduzido nas


práticas pedagógicas cotidianas. A efetivação do Diário de Campo nessas disciplinas foi
primordial para romper com a comumente utilizada lógica da avaliação conteudista que
trabalha com objetivos externos aos sujeitos em coesões de universalização e
homogeneização das coisas. Com a minha Orientadora, nos estudos realizados, o enfoque
era a memória. Também no GT14 trabalhamos com Diários de Campo e com Memórias,
objetivando a (auto)formação das professoras participantes desse grupo de trabalho. Mas
foi apenas quando realizei esse trabalho comigo e construi meu próprio Diário de Bordo,
com a intenção de redescobrir-me em conhecimentos potencializadores da minha formação,
foi que compreendi que essa seria uma estratégia perfeita para a (auto)formação, que pode
ser empregada em qualquer nível de ensino, inclusive na formação de Professores,
justamente porque trabalha diretamente com a autoavaliação e, consequentemente, com a
(auto)formação.
Penso que temos aqui, uma estratégia narrativa eficiente para a (auto)avaliação e
consequente, (auto)formação. Já a pratico há alguns anos, mas apenas agora, que a vivi no
papel de aluna, é que entendi sua essência e todo o seu potencial formador, assim como
compreendi que é nas nossas maneiras de fazer, incorporando a necessidade de aprender e
de sempre ser aluna no nosso cotidiano, que vamos nos redescobrindo, autoavaliando e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 177


(auto)formando. Além disso, quando realizamos as socializações dos Diários de Bordo,
vamos compreendendo a visão do outro sobre si, sobre nós e sobre o cotidiano.
Proponho a ruptura com o senso comum naturalizado nos espaços e tempos
escolares, de uma avaliação pautada em aptidões, bem como com o princípio de uma
avaliação como sinônimo de mensuração, isto é, de atribuição de algum valor para os
saberes que nos são próprios. O pior, a escola ainda estende essa valoração às pessoas,
ignorando seus processos de aprendizagem e desmerecendo o papel do professor. E, indo
além, as práticas comuns compreendem a avaliação do processo de aprendizagem
desvinculada dos processos de ensinagem. Dificilmente, quando realiza a avaliação dos seus
alunos, o professor avalia ao seu trabalho. Pensa-se em processos, mas se esquecem de que
processos são efetivados a partir de relações que acontecem no presente e que constroem
possibilidades, não agindo de forma processual.

4 De qual avaliação estou falando: avaliação (auto)formadora

Uma Avaliação (Auto)Formadora pressupõe estratégias de registro de


aprendizagem (e de ensinagem) que sejam essencialmente narrativas, assim como o Diário
de Bordo. A partir de estudos realizados com a orientação da professora Helenise Sangoi
Antunes e baseados em teóricos como Perrenoud (1999) que apresenta a necessidade de
uma avaliação formadora e reguladora do aprender e do ensinar; Abrahão (2009, 2010,
2011), Passeggi (2009, 2010) e Souza (2010, 2011), que apresentam a importância das
narrativas pessoais para a autoformação e consequente formação humana; e Arroyo (2004),
que prioriza a superação dos paradigmas escolares a partir das trajetórias pessoais de alunos
e mestres e por todas as informações aqui expostas; minha proposta é conceber a avaliação
escolar como (auto)formadora, pois entendo que essa dimensão possibilita-se a partir do
princípio da narrativa em ações criativas do dizer-se. O Diário de Bordo inclui essa dimensão
facilitando a aprendizagem tanto do aluno, quanto do professor.
Expondo em diferentes formas narrativas as reflexões do autor/escritor, oferece
informações pertinentes aos processos de aprendizagens e de socialização no ambiente
escolar, tanto para o aluno,como para o professor. É a base de um instrumento de auto-
avaliação proporcionando ao autor, a reflexão sobre as informações que ele mesmo
produziu, tanto referente aos processos de aprendizagens, como da qualidade desse
processo e dos conhecimentos que estão sendo construídos como elementos de formação
pessoal. Evidencia o autor/escritor como um todo, protagonista das próprias aprendizagens.
Rompe com a ideia de linearidade hierárquica, apresentando uma participação ativa do
aluno/escritor e do professor nos processos de aprendizagens. Permite a exploração de
alternativas (ambiente e conhecimentos) favoráveis para a realização de inferências sobre as
relações entre os diferentes saberes, e de estabelecer similaridades entre ideários,
facilitando descobertas de princípios, conceitos ou relações. Conforme escrevem sobre si e
suas relações com o conhecimento, os autores rompem com a lógica linear, conteudista e
estática do currículo tradicional, percebendo o conhecimento em diferentes vivências.
Pressupõe um currículo espiralado, que possibilita aos envolvidos no processo
educativo, perceber o mesmo conhecimento sob diferentes aspectos, níveis de
aprofundamento e formas de representação. Rompe com as ideias de estruturação,
transversalidade e linearidade do currículo para percebê-lo vivo, dinâmico e relacional.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 178


Assim como rompe com a ideia de separar a aprendizagem e a ensinagem, amalgamando os
dois processos nas narrativas que se fazem formadoras dos sujeitos e dos saberes.

Não penso mais nas letras, mas em dizer-me, pois sou fruto do meu desassossego
que me delineia em experiências de amizades expressas em linguagens e
corporeidades. Como assim? Se nesse movimento o outro sou eu? (Fragmentos, do
Diário de Bordo, 2013)

O Diário de Bordo é uma estratégia de (auto)aprendizagem (o que também


pressupõe ensinagem) desafiadora, onde, a partir das suas percepções e narrativas, bem
como da perspectiva da forma de organizá-las, o autor/escritor e o professor, aprendem
solucionando problemas e desafiando a si mesmos a compreender o mundo e suas relações.

Voltar-se sobre si, em movimentos de autoconhecimento é narrar o indizível, o


invisível aos outros que, imperceptível em um primeiro momento, transborda o
conhecimento construído pelo cotidiano nas relações das próprias histórias de vida.
Escrever uma Tese, é também (re)escrever-se, pensando-se, dizendo-se e
(re)inventando-se no cotidiano investigativo. (Fragmento do Diário de Campo,
2013).

Escrevendo, no Diário de Bordo, narrativas de si, os sujeitos tornam-se protagonistas


da sua formação, seja ela em que nível, ou modalidade de ensino for. Conforme o
autor/escritor vai elaborando o Diário de Bordo, vai atribuindo sentido ao que faz a partir da
compreensão de si. Constrói sua identidade ao observar-se e narrar-se em relação com o
mundo. Escrever-se em diferentes gêneros narrativos é uma forma de (re)avaliar-se em
movimento autorreflexivo e contínuo que possibilita a criação de condições para que as
aprendizagens se efetivem.

Referenciais
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títulos. Coedição EDUFRN e EDIPUC, 2008, 2009, 2010, 2011.
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EDIPUCRS, PoA. 2006.
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profissional. Editora UFSM. Santa Maria/RS, 2011
ARROYO, Miguel. Imagens Quebradas. Trajetórias e tempos de alunos e mestres. 3ª Ed.,
Vozes, Petrópolis, 2004.
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Brasileira. VOZES, Petrópolis, 2012.
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6ª ed. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
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19ª edição. 2012
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existenciais da formação e do conhecimento: destinos sócio-culturais e projetos de vida
programados na invenção de si. In: SOUZA, Elizeu Clementino e ABRAHÃO, Maria Helena

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 179


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Alegre,Salvador; EDIPUCRS, EDUNEB, 2006, p. 21-40.
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conocimiento como epigénesis, La emocionalidad y El lenguajear como coordinación de
interacciones. In: NOGUEIRA, Adriano S. Ambiência. Diálogos Freirianos e Formação
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visuais. In: Educação na cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa.MARTINS, Raimundo
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Experimentos com Histórias de Vida: Itália-Brasil. São Paulo: Vértice, 1988.
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STERNBERG, Robert. Psicologia cognitiva. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 180


A história de vida do Maestro Levino Ferreira de Alcântara: uma fonte autobiográfica da
área de Educação Musical do Distrito Federal

Delmary Vasconcelos de Abreu


UnB
delmaryabreu@gmail.com

Este trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa em andamento desenvolvida no grupo de estudos e
pesquisa Educação Musical Escolar e Autobiografia – EMAB que tem como objetivo desenvolver pesquisas
autobiográficas relacionadas a construção da educação musical escolar no Distrito Federal – DF. O campo
empírico desta pesquisa consiste na História de Vida do educador musical Levino Alcântara, percussor do
movimento musical e músico-educacional no DF. Trago, portanto, os elementos teórico-metodológicos que
fundamentam a pesquisa autobiográfica com destaque para as dimensões que tratam das Histórias de Vida. O
procedimento metodológico das histórias de vida é uma busca de sentido a partir de acontecimentos vividos.
Ele cria a memória entre passado e futuro, entre o fazer e o dizer. É uma prática de produção de si mesmo que
contribui para que cada um tome em mãos a própria vida, tornando-a formadora. Essa dimensão da pesquisa
autobiográfica nos permite compreender a narrativa como um processo do qual o narrador é sujeito e objeto
da pesquisa, uma vez que ele desenvolve um conhecimento mais apurado de si, num movimento constante de
construção/reconstrução do contexto histórico, social, cultural e educacional. A pesquisa autobiográfica em
educação musical se inscreve na condição humana de um sujeito que conta, por meio da sua relação com
música, o que ele é, ou, poderá vir a ser. Essa visão integrada da experiência estruturada pelos contextos
permite uma interpretação dos sentimentos, comportamentos e pensamentos que ocorrem com as pessoas
que se relacionam com música, bem como o cenário estudado. Assim, acredito que ao descrever os caminhos
construídos pelo informante da pesquisa será possível capturar particularidades que, talvez, possam explicar as
dimensões que envolvem a educação musical escolar construída no DF.
Palavras-chave: Educação Musical; Histórias de vida; Fonte autobiográfica.

Introdução

O projeto “Construção da Educação Musical do Distrito Federal” desenvolve-se no âmbito


do Grupo de Pesquisa: Educação Musical Escolar e Autobiografia – EMAB e integra a Linha de
Pesquisa Educação Musical e pesquisa autobiográfica, inserido no Programa de Pós-Graduação em
“Música em Contexto”, da Universidade de Brasília. As características deste projeto são voltadas para
o ensino e a aprendizagem da música em escolas de educação básica, como um processo amplo
implicado no desenvolvimento, formação e autoformação da pessoa, destacando seus
entrelaçamentos com as histórias de vida. Acolhe estudos e pesquisas em educação musical que
potencializam a dimensão pedagógica da experiência humana em suas interações com os aspectos
educacionais, sociais, biográficos, culturais dos sujeitos e das subjetividades na sociedade
contemporânea.
A pesquisa que se ocupa com a música nas escolas de educação básica (Vertente I) trabalha,
também, com construção de Histórias de Vida de destacados educadores musicais do Distrito Federal
e do Brasil (Vertente II) em Seminários Investigativos e Fóruns de Pesquisa em Educação Musical
Escolar.
Em relação à Vertente I, estamos trabalhando no sentido de expandir pesquisas que
agreguem objetivos que visam estudar construções da educação musical escolar, por meio de
trabalhos autobiográficos de alunos de PIBIC e mestrado.
No que se refere à Vertente II, que tem como objeto as Histórias de Vida de destacados
educadores musicais e sua representatividade na História da Educação Musical do Brasil, em especial
do Distrito Federal, no que tange à construção do vir a ser educador musical e à profissionalização
docente, procuraremos avançar no conhecimento de nosso objeto de estudo para o qual as Histórias
de Vida têm grande representatividade. Nesse sentido, procuramos afinar mais o aporte teórico-

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 181


metodológico da pesquisa que emprega as narrativas e outras fontes para construir as Histórias de
Vida de educadores musicais.
Essa vertente da pesquisa está inserida, em forma de subprojeto, na pesquisa em
rede desenvolvida pela pesquisadora Maria Helena Menna Barreto Abrahão da PUC/RS. A
pesquisadora desenvolve o projeto “O sujeito singular-plural – narrativas de vida,
identidade, docência e educação continuada do professor”, que tem a abrangência de “um
guarda-chuva” que acolhe diversos projetos até o ano de 2016. Portanto, esse projeto que é
da área de educação musical faz parte de uma rede de projetos interdisciplinares de diversas
áreas que desenvolvem pesquisas autobiográficas. Nesse sentido, acreditamos estar
ampliando o campo da educação musical dialogando com diversas áreas do conhecimento.
Para este trabalho trago um recorte metodológico de uma pesquisa em andamento
relacionada à Vertente II – Histórias de Vida de Educadores Musicais. O objetivo da pesquisa consiste
em investigar como as Histórias de Vida de Educadores Musicais do Distrito Federal podem contribuir
na compreensão de como a Educação Musical Escolar vem sendo construída no Distrito Federal.
A primeira História de Vida que nos propomos a investigar foi a do maestro e educador
musical Levino Ferreira de Alcântara, fundador da Escola de Música de Brasília – EMB. A escolha pelo
maestro Levino se deu pelo fato deste ser um dos percussores do movimento da música em Brasília.
De acordo com Matos e Pinheiro (2007),

O movimento de música que resultou na fundação da EMB iniciou-se cerca


de 1960 em Taguatinga, uma cidade satélite de Brasília, quando o maestro
Levino de Alcântara ingressa na antiga FEDF, fundação Educacional do
Distrito Federal e começa no CEMAB, Centro de Ensino Médio Asa Branca,
atividades de canto coral junto com um pequeno núcleo de instrumentos
de orquestra [...] Em 1964 o maestro Levino assume no CEMEB, Centro de
Ensino Médio Elefante Branco, também pertencente a FEDF, na quadra 908
Sul do Plano Piloto [...] as atividades do coral de Brasília. (MATOS e
PINHEIRO, 2007, p. 214-215)

A história de vida de educadores musicais, e pesquisas autobiográficas tem possibilitado


ampliar questões teórico-metodológicas relacionadas a produção da área de educação musical no
Brasil (cf. (GAULKE, 2013; LIMA, 2013; ABREU, 2011; LIMA e GARBOSA, 2012; GARBOSA et.al., 2012;
ANEZI, GARBOSA e WEBER, 2012; MACHADO, 2012; LOURO, 2004; BOZZETTO, 2004; TORRES, 2003).
De acordo com Souza (2007, p. 19), as pesquisas como fontes autobiográficas conferem um
estatuto teórico-metodológico para uma compreensão das práticas educativas e escolares. Assim, as
narrativas do educador e maestro Levino Alcântara, se inscreve, numa perspectiva da história da
educação musical no Distrito Federal, marcando a construção de uma área no espaço escolar. Como
salienta Catani (2005, p. 32) “as escritas das obras autobiográficas que testemunham as relações
pessoais com a escola pode ser útil como fonte para a elaboração da história da educação” musical
escolar.
Como pesquisadores, é imprescindível, portanto, pensarmos em algumas questões de opção
teórica quando nos vemos imbricados no processo de ouvintes sensíveis das experiências de quem
olha, retrospectivamente, para sua vida procurando os sentidos de suas opções. Por isso, “é
pertinente a problematização metodológica, que se inicia pela reflexão sobre as formas de ouvir,
registrar e interpretar as narrativas” (SOUZA, 2007, p. 66). Para tanto, apresentamos, a seguir, a
concepção de história de vida com a qual estamos trabalhando nesta pesquisa.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 182


Construindo caminhos teórico-metodológicos para a História de vida

A entrada das Histórias de Vida no campo das Ciências Sociais se deu no início do século
passado, na Escola de Chicago, por sociólogos que experimentaram um estudo da sociedade pelo
viés das narrativas de vida de imigrantes poloneses. Pela primeira vez, a palavra dos atores sobre
suas vivências era solicitada para acender à compreensão de fenômenos sociais estudados em
grande escala. Atualmente, pesquisadores de diversas áreas, principalmente historiadores utilizam e
coletam depoimentos de vida das pessoas locais para construir a grande História. A história de vida,
que teve seu reconhecimento epistemológico no âmbito do movimento etnometodológico, defende
a importância da experiência direta com os atores sociais para a compreensão de sua realidade
(MINAYO, 2004).
Segundo Pineau (1984), esse procedimento metodológico das histórias de vida é uma busca
de sentido a partir de acontecimentos pessoais vividos. Ele cria a memória entre passado e futuro,
entre o fazer e o dizer. É uma prática de produção de si mesmo que contribui para que cada um
“tome em mãos” a própria vida, tornando-a formadora. Esse procedimento narrativo permite aos
sujeitos, “tomar em conjunto” os acontecimentos, os encontros que marcaram sua história,
integrando-os, pela narrativa, num contexto sócio-histórico, cabendo a cada um deslindar sua parte
pessoal daquela que emana do coletivo (PINEAU, 1984, p. 23).
No trabalho de coleta de dados de história de vida, quem decide ou não o que deve ser
contado é o ator, a partir da narrativa de sua vida, não exercendo papel importante à cronologia dos
acontecimentos e sim o percurso vivido pelo sujeito. Ainda que o pesquisador dirija a conversa de
forma sutil, é o informante que determina o “dizível” da sua história, da sua subjetividade e dos
percursos de sua vida. Nesse sentido, o papel do pesquisador, no processo de recolha das fontes e
elaboração do conhecimento, consiste em perceber os componentes e dimensões relevantes na vida
dos sujeitos que lancem luz sobre as problemáticas construídas.
Esta pesquisa foi organizada com base na história de vida do maestro Levino Alcântara, na
cidade de Brasília. Optou-se por essa abordagem pela potencialidade de diálogo entre o individual e
o sociocultural, pois como afirma Moita (1995), “só uma história de vida põe em evidencia o modo
como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias para ir dando
forma à sua identidade, num diálogo com seus contextos” (In Nóvoa, 1995, p. 113).
A entrevista com o maestro Levino Alcântara ocorreu no dia 07 de agosto de 2013 na sala
do Grupo de Pesquisa EMAB, no Departamento de Música da Universidade de Brasília. Elaborei um
documento solicitando a autorização do maestro Levino, que prontamente autorizou o uso das
imagens e dos dados contidos nas narrativas para publicação. Esclareci ao entrevistado o motivo da
entrevista e iniciei esse processo com uma pergunta geradora, em que pedia ao entrevistado para
que narrasse a sua história com a educação musical no Distrito Federal. A entrevista durou três horas
e quarenta e três minutos. Jovchelovitch e Bauer (2002) dizem que um bom indicador de duração de
uma entrevista narrativa consiste no cerne da ação das histórias contadas. Por isso, é importante o
papel do pesquisador de formular um tópico inicial adequado para que o entrevistado possa engajar
uma história.
Trago neste trabalho, uma breve descrição reflexiva dos primeiros achados, a partir
das narrativas do entrevistado, e que farão parte do processo de construção das dimensões
que emergirão das narrativas. Segundo Abraão (2004) “As Histórias de Vida constituem-se
de narrativas produzidas, por solicitação de um pesquisador, com a intencionalidade de
construir uma memória pessoal ou coletiva em um determinado período histórico”. Nessa
ótica o pesquisador participa da “elaboração de uma memória que quer transmitir-se a
partir da demanda de um investigador” (ibid, p. 17) Portanto, a História de Vida é uma
construção da qual participa o próprio investigador. É, nas palavras da autora, “a forma
máxima de implicação entre quem entrevista e a pessoa entrevistada” (ABRAÃO, 2004, p.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 183


16-17).
Ao fazer uso da pesquisa autobiográfica, com opção metodológica de história de vida,
trazemos à tona um movimento de investigação sobre os processos de construção/reconstrução da
Educação Musical Escolar no Distrito Federal.

Interpretação das informações coletadas

A partir da pergunta geradora: “Conte-me como a sua história está imbricada no


processo de construção da educação musical no Distrito Federal”, o entrevistado disse: “O
seu campo [a educação musical] é muito mais importante do que a minha própria história,
mas eu vou lhe contar algumas de minhas histórias, posso?”. Indagou-me Levino, parecendo
pedir permissão para fazer narrativas de si, e prosseguiu contando: “Foi uma luta... Em 1962
me mudei para Brasília. Fui convidado pelo pai do Ataíde, o atual diretor da Escola de Música
de Brasília. A Secretaria de Educação queria que eu ensinasse música na escola, fizesse coral
nas escolas”.
Embora conhecido como maestro, Levino contou que para assumir o ensino de música nas
escolas foi “nomeado como professor” em uma escola da rede pública de ensino de Brasília. Levino
lembrou que “foi um amigo do Rio de Janeiro, da escola do Vila Lobos que fez o convite pra ficar na
escola elefante branco. Ele estava indo embora de Brasília e ele me chamou pra trabalhar com a
educação musical nas escolas”. Em seguida disse com expressão firme: “A educação musical não é
nova na escola, só tiraram do currículo. E isso é um problema... É uma luta”.
Das memórias de sua juventude são trazidas algumas cenas de estudo, trabalho e amizades
construídas ao longo da sua vida: “Fui para o Rio de Janeiro. Eu lia muito, estudei no Rio e fiz
vestibular. Fiz curso de educação musical com Vila Lobos”. O maestro lembrou ainda de cenas de
trabalho com Vila Lobos, e disse: “Guardo lembranças de grandes professores como Vila Lobos. Ele
participou de minha história, da minha vida. Ele tinha coral de mil vozes. Criei um coral que cantava
em todo canto do Rio de Janeiro. Regi o Brasil todo, São Paulo, Belo Horizonte, Bahia...”.
Além de sua formação e profissionalização na área de regência coral, o maestro Levino
contou que também se especializou em regência de orquestra: “Dirigi a orquestra sinfônica. Eleazar
me chamou e minha vida mudou. Fui ensinar a quem precisava. Na orquestra que criei, tinha um
menino que tocava trompa, João Jerônimo que hoje mora na suíça”.
Regendo coros de mil vozes pelo Brasil, Levino passou também pelo Estado de Goiás, sua
última parada antes de se mudar para o Distrito Federal e lá construir uma nova história. O maestro
contou que “viajava o Brasil de trem levando o coro e juntando pessoas nos lugares que chegava
para fazer coral de mil vozes. Imagine a cena de tantas pessoas viajando juntas sob minha
responsabilidade?”, indagou Levino expressando na face sua autoconfiança. Uma pessoa que pela
experiência e trajetória de vida sabia como fazer para que a música se tornasse de fato um
acontecimento pelos lugares que passava. Mas, como narrou Levino, foi em Goiânia que sua vida
tomou novos rumos: “Fiz concurso em Goiânia para poder ensinar coral nas escolas. Tornei-me
professor de música do colégio estadual de Anápolis. Eu era regente de coral nessa escola”.
Uma vez conhecido no Brasil e no Estado de Goiás, divisa com o Distrito Federal, foi
inevitável surgirem convites para que o maestro Levino viesse atuar em Brasília. Na efervescência da
criação e inauguração da capital federal em 1960, o movimento musical que estava apenas
começando insere em seu rol de músicos e educadores musicais de destaque o maestro Levino
Ferreira de Alcântara como um dos protagonistas da história da educação musical de Brasília.
Das narrativas que elucidam acontecimentos relacionados a maneira como a educação
musical escolar tem sido construída no Distrito Federal Levino narrou o seguinte: “Veja bem, um
amigo do Rio de Janeiro, que dava aula na escola pública Elefante Branco me convidou para ficar em
Brasília. Ele ia embora e me chamou pra ficar aqui. Ele foi meu colega na escola do Vila Lobos”.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 184


Levino deixou-se contar como foi o processo de sua inserção como professor de música na rede
pública de ensino do Distrito Federal:

A Secretaria de Educação queria que eu ensinasse música nas


escolas. Fiz concurso e passei. Eu hoje sou aposentado com salário
de professor. Fui nomeado professor de música em uma escola
pública de Brasília, na escola Elefante Branco, mas eu não quis o
plano piloto. Eu quis Taguatinga porque lá não tinha nada especial
nas escolas. Comecei a fazer meu trabalho de base. Criei o coro
madrigal com professores, alunos e serventes da escola. Chamava-se
coral de candangos. Esse trabalho nas escolas foi chamado de
programa de educação musical nas escolas.

O programa de educação musical nas escolas de Brasília consistia, segundo Levino, do ensino
e aprendizagem musical de canto coral. Ele disse que “formava coral nas escolas e juntava-os em
apresentações na torre de TV. Eram mais de quatro mil crianças cantando, fora o madrigal”. Ao
refletir sobre essa experiência o maestro disse o seguinte: “Todo domingo tinha concerto. Eu
apresentava toda semana que era para o povo ouvir. Se o povo não pode ouvir como vai gostar de
ajudar as escolas, me diga?”. O maestro disse que esse programa “durou oito anos”, e narrou como
fez para manter o programa educação musical nas escolas durante esse tempo:

Em cada colégio e em cada cidade satélite eu coloquei um piano e


dois professores. Eu não deixava Brasília sem coral cantando em
todo o canto. Os que cantavam em outros corais passaram para o
meu coral, porque o coral dos candangos cantava tão bem que todos
queriam entrar. Eu tinha de trabalhar um nível entre eles. Criou-se
até um constrangimento, mas o meu era bom. Fiquei oito anos nesse
programa. Esse grupo foi aperfeiçoando. Fiz com o coral madrigal
toda a historia da música e de Brasília. Passou por mim a Vanda
Odicica, o Ermelindo Castelo Branco, tenor e pianista, o Nei
Matogrosso. Recebi o papa há 30 anos com coral de 300 vozes
cantando em uma missa. Trabalhei demais. Foi uma luta de crédito.

O maestro Levino Alcântara, que finalizou a narração desse episódio com as palavras “foi
uma luta de credito”, retomou-a depois de uma pequena pausa, e esclareceu: “Foi um luta de
crédito, mas também de algumas perdas. O tempo da revolução botou abaixo o projeto. Se tivessem
continuado aquele programa, teria menos assaltantes hoje”, ponderou de forma reflexiva. Em
seguida, acrescentou com certa altivez: “Mas esse programa também me levou a pensar em criar
uma escola de música para formar professores para ensinar nas escolas. Criei a Escola de Música de
Brasília”.

“Criei a Escola de Música de Brasília para ser um centro de formação de professores de música para
ensinar nas escolas”

O melhor termo para definir Levino Ferreira de Alcântara poderia ser o que Ferrarotti (1988)
chama de “universal singular, tendo sido totalizado, e assim universalizado pela sua época”, um
homem que pela singularidade universalizante dos seus projetos se tornou a própria história da
educação musical escolar do Distrito Federal. Levino totalizou por meio de seu contexto social os
pequenos grupos dos quais fez parte. A esse respeito Levino disse: “Consegui enquadrar todos os
grupos do Distrito Federal e criei a Escola de Música de Brasília. Invadi um terreno do governo e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 185


coloquei uma placa com o nome da escola. Criei a Fundação Escola de Música de Brasília. E
começamos com um núcleo instrumental”.
O maestro procurava chamar a atenção das autoridades para o seu trabalho “sempre
tocando e cantando, até que o governador vendo aquilo aprovou a construção do teatro da escola.
Da ferradura nasceu um concreto, uma concha acústica, um teatro. Comprei livros e obras de arte
em Buenos Aires. Fiz viagens internacionais para falar do meu trabalho”.
Para iniciar as atividades da escola, Levino contou que buscou trabalhar em parceria com as
“embaixadas dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha”. Ele disse: “iniciei com professores que a
embaixada nos ajudava. Coloquei o primeiro grau e o curso profissionalizante. Todo ano eu mandava
meninos para estudar lá fora”. Embora essa parceria com as embaixadas tenha trazido bons
resultados, Levino contou com certo pesar que enfrentou alguns problemas com relação à
contratação de músicos-professores: “Dei emprego para músicos internacionais. Arrumei empregos
para músicos que fugiam da guerra, mas haviam muitos aproveitadores. Por que não trabalhar
junto? Planejar junto? Esse foi o problema que enfrentei”.
A criação da Escola de Música de Brasília foi para Levino “uma maneira de formar professores
pra trabalhar nas escolas. Era muito trabalho. Com o tempo passei a orientar os professores em um
programa de ensino. Isso acontecia toda quarta-feira”.
A formação desses profissionais para atuar como docentes em música ocorria na própria
Escola de Música de Brasília, tida pelo maestro Levino como “centro de formação de professores”. A
esse respeito ele narrou o seguinte: “Nunca botei o cara pra ser professor por que tinha título, mas
pelo o que ele era. Eu não queria que repetissem o que faz a universidade. Eu queria o conhecimento
e a experiência deles”.
Para Levino a formação musical nasce da experiência dos indivíduos. Ele acredita que “a
universidade não considera a experiência da pessoa e isso é um problema”. Isso remete as palavras
de Delory-Momberger (2008) que acredita ser necessário que as instituições formadoras
desenvolvam uma concepção global da formação, de forma que, ao lado dos saberes formais e
externos ao sujeito, aos quais visa a instituição universitária, devam estar os saberes subjetivos e não
formalizados que os indivíduos utilizam na experiência de sua vida, nas suas relações sociais e na sua
atividade profissional (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.90-91).
O maestro Levino acredita que formar pessoas “é estar ali junto, cara a cara estudando de
verdade, preparando para lutar por esse país”. Para aclarar essa ideia, Levino contou a seguinte
história:

Quando Dom João chegou ao Brasil, encontrou um mulato chamado


José Mauricio, filho de escravo, criado no orfanato. Ele começou a
estudar e escrever música. Estudou para padre para enfrentar os
problemas da época porque era negro. Assim, tinha como se inserir
socialmente e lutar. Ele tinha uma causa.

O fio condutor da história de vida de Levino é tramado pelas suas lutas espelhadas na de
outras pessoas. Sua história expressa às tessituras que conferem legibilidade e visibilidade às suas
causas. Para ele, a formação de pessoas deve estar embrenhada de causas. Disse ele: “Devemos lutar
muito para salvar esse país, pois Prefeitos que entram sem formação. É preciso aumentar o número
de cursos com qualidade. É um pena um país com tanta inteligência e capacidade, e ninguém estuda
direito. É tudo mais ou menos”, finalizou movimentando a cabeça sinalizando certo
descontentamento. Desse descontentamento brotaram as seguintes palavras: “Os jovens precisam
acreditar em si mesmo para saber que vão influenciar outras pessoas”. A crença em formar pessoas
“para pensar um mundo melhor deve-se iniciar pelas crianças”, afirmou de forma veemente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 186


Em tom de desabafo, o maestro trouxe lembranças relacionadas à política e seu trabalho
com crianças. Ele disse: “a política da época era da ditadura militar. Eu não tinha nada com política.
Eu trabalhava com as crianças. Ajudei, sugeri, lutei, mas fui traído”, pontuou de forma conclusiva.
Ao falar da sua visão atual sobre a Escola de Música de Brasília e Secretaria de Educação,
Levino disse: “Hoje a minha relação com a Escola de Música é só a de dar conselhos. Se me pedirem
conselho eu dou, porque acho que tinha de ser diferente. Pensar na criança, e não ficar fechado”.
Com relação a Secretaria de Educação, Levino acredita que “se a secretaria tivesse concordado... Eu
queria criar o ensino de música de tempo integral... Se tivesse deixado... Nem vou falar....” ponderou
reticencioso. Em seguida falou sobre suas justificativas, ou seja, os motivos que o levaram a querer
implementar um projeto de música para crianças em tempo integral. Assim narrou sobre o assunto:
“Eu tinha um sistema para atender aos finais de semana. Eu queria uma orquestra para educar
crianças. Orquestra sinfônica? Não! Meu foco era educação musical. Minha preocupação era a
criança. Ou nos preocupamos com eles ou não salvaremos esse país”.
Para Levino a formação começa por “preparar professores para atender as crianças e suas
necessidades. Eu tinha uma menina que nasceu com problema na mão, tinha problema de ritmo,
mas tinha vontade. Isso é fabuloso, extraordinário!”, exclamou com orgulho ao falar dos resultados
alcançados no ensino e na aprendizagem da música de alunos que passaram por suas mãos. “Hoje”,
disse ele, “tenho alunos concursados como músicos e professores. Isso é fabuloso. Outros que são
médicos e têm me ajudado no tratamento desse câncer”.
Expressando otimismo, persistência e determinação, Levino disse: “Hoje venho a Brasília por
causa do meu tratamento de câncer e do CIVEBRA45. Que seria se não tivesse descoberto, heim?
Nunca senti nada, to sentindo agora. O remédio é forte pra burro. Estou tomando providencias pra
ficar bom”. Essas providencias, tomadas por Levino, explicitam a vontade em dar continuidade ao
seu projeto de vida.

“Não posso perder tempo, o meu projeto é continuar educando crianças”

A história de vida contada por ele mesmo mostra o quanto Levino tem consciência de si, de
sua formação e autoformação como pessoa e músico experiente. O projeto de si tem sido construído
desde a mais tenra idade, mas foi em 1974, por ocasião da inauguração da Escola de Música de
Brasília, que o maestro projetou o seu futuro narrando o seguinte episódio:
Parei de dar aulas. Coisas ruins aconteceram. Aposentei como
funcionário público. Aposentei e deveria ir embora. Em 74 inaugurei
a escola e comprei uma fazendinha, um lugar para ficar depois de
aposentado. Fiz a fazenda para viver a vida lá. Plantei árvores, fiz um
pomar para os passarinhos terem o que comer. Fiz um açude de
peixes na fazenda. Na construção da Escola de Música de Brasília eu
construí tanques de peixes para os pais levarem seus filhos para ver
os peixinhos e poder ouvir as músicas tocadas na escola. Os peixes
continuam... Eles estão no açude não para pescar, mas para viver.
Como protagonista de sua própria história, o maestro Levino se coloca não como ator, mas
autor de uma vida projetada. Ter um projeto de si consiste em tornar-se autor de uma vida vivida
com consciência. Isso significa dizer que o mundo necessita de autores de si para tornar-se um bom
lugar para se conviver. Construir um pomar para os passarinhos, açude para os peixes e uma escola
de música para crianças no sul do Estado do Pará pode-se dizer que Levino constrói a sua história
integrada à vida.
Depois de reger “o Brasil todo” e fazer história no Distrito Federal, Levino conclui: “Estou
começando agora”. Com espírito de um visionário, o maestro contou que desenvolve um projeto no

45O Curso Internacional de Verão de Brasília – CIVEBRA, criado por Levino Ferreira de Alcântara, é
realizado pela Escola de Música de Brasília há 35 anos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 187
sul do Pará com a finalidade de atender um grande número de crianças no fazer musical: “trabalho
pelos 15 municípios porque o Pará vai ser o estado do futuro”, afirmou Levino.
O “estado do futuro”, supramencionado pelo maestro, pode ser comparado ao seu jeito de
enxergar o mundo. Levino define o lugar em que está como um espaço de possibilidades, cujas ações
são produzidas de acordo com o potencial que cada situação se apresenta. Schaller (2008, p. 70)
afirma que, esses espaços que não se fecham, mas tornam possíveis que a inteligência individual e
coletiva caminhe com a mobilidade que o próprio espaço permite.
As narrativas mostram que os lugares por onde Levino passou deixaram rastros. Sendo
assim, é preciso assumir-se imbricado ao lugar para construir o seu vir a ser. O maestro Levino
Ferreira de Alcântara deixou-se dizer que o seu projeto de vida consiste em trabalhar com as
crianças. Ele disse: “Quero acordar as crianças com concertos de Haydn. A criança precisa aprender a
ser e não a ter. Ter é consequência do ser. Ela também precisa estudar uma língua estrangeira”.
“No futuro”, disse Levino: “o sonho é trabalhar com as crianças de Conceição. Montando a
história do Pedro e o Lobo para despertar o gosto pela orquestra. Quero levar cursos de uma semana
com professores convidados para ampliar o conhecimento dos alunos de Conceição”. Em tom
conclusivo, Levino disse ainda que vai “recorrer aos antigos amigos para ajudar as crianças. Vou fazer
um concerto no dia das crianças, um concerto para crianças”. Por fim, disse com voz firme: “Eu não
posso perder tempo”.

“Gosto de contar minhas histórias, por causa das crianças”

Muitos foram os fios que se tramaram na construção deste trabalho, porém a altivez de
Levino mostra uma história de vida entrelaçada de lutas, determinação e uma concepção de
educação musical integrada a vida. O maestro acredita que um país se torna melhor quando o seu
projeto está calcado na educação de suas crianças. É por isso que Levino ao fazer narrativas de si
produz uma história de luta. Um homem que desafia lugares, tempos e espaços, convocando pessoas
a construírem uma educação musical de qualidade e para todos.
A narrativa produzida por Levino Alcântara exprime pontos de vista sobre o que e qual
educação musical ele acredita. Para ele a natureza da educação musical escolar consiste na tradição
herdada pelo modelo construído por Vila Lobos, isto é, promover o ensino de música através de
coros e orquestras escolares com o objetivo de levar música para o povo. O maestro acredita que
essa retroalimentação poderá sensibilizar os ouvintes a defender o ensino de música na escola de
forma mais consistente e permanente.
Muito embora, como afirma Arendt (1997), o problema da educação contemporânea reside
no caminhar em um mundo não estruturado nem tampouco mantido coeso pela tradição, para
Levino a falta de tradição parece ser “um problema [...] As universidades estão muito modernas [...]
Ninguém estuda de verdade, é tudo mais ou menos [...] Na Escola de Música de Brasília o estudo está
muito misturado, é o popular com o erudito...”. Para o maestro o estudo da música deve ser
estruturado por níveis de conhecimento, mas sem perder de vista as experiências adquiridas ao
longo da vida.
A história de vida musical de Levino Alcântara caracteriza-se por uma narrativa pessoal,
entretanto, os acontecimentos vividos, principalmente no Distrito Federal deixam entrever a
passagem de um sujeito singular para um relato plural. É nessa pluralidade que se apresenta a
experiência de uma coletividade, especificamente, a construção de uma educação musical escolar
centrada no ensino de instrumento, ou, pelo menos, na ideia de preparar a criança para tocar um
instrumento musical.
Muitos personagens secundários a história de vida de Levino Alcântara como Vila Lobos,
Eleazar de Carvalho contribuíram para a sua formação em educação musical com vistas a inserir
todas as pessoas em igualdade de oportunidade para que aprendam música.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 188


Da sua autoformação em educação musical evidencia-se a história de um protagonista cujos
princípios filosóficos influenciaram e continuam influenciando pessoas e instituições de ensino no
Distrito Federal a promoverem uma educação musical escolar cujos princípios pedagógico-musicais
consistem no ensino e aprendizagem de instrumentos para formação de grupos orquestrais.
Uma vez concluída a entrevista narrativa com Levino Alcântara, Jerusa, sua secretária,
apanhou o chapéu azul preto e entregou-o à Levino, que parecia querer começar um novo episódio.
Ele disse: “Encontrei Jerusa há muitos anos atrás. Uma menina magra, trabalhando num cartório. Era
uma menina religiosa. Estudou música comigo”. Jerusa respondeu docemente: “Não foi o senhor que
me encontrou, fui quem encontrei o maestro”. Parafraseando as palavras de Jerusa, dirigidas ao
maestro Levino Alcântara, é possível afirmar que, não foi Levino que encontrou uma educação
musical no Distrito Federal, mas foi a Educação Musical do Distrito Federal que encontrou em Levino
um modo de se constituir. A gênese da Educação Musical do Distrito Federal está imbricada a
História de Vida de Levino Ferreira de Alcântara.

Considerações Finais

Nesta pesquisa tive como objetivo apresentar o método investigativo – Histórias de


Vida como conceito teórico-metodológicos utilizados na investigação como a educação
musical escolar está sendo construída no DF. O campo empírico desta pesquisa é constituído
pelo maestro e educador musical Levino Ferreira de Alcântara, um dos percussores do
movimento musical e músico-educacional nas escolas do DF.
Nossa contribuição, neste momento da pesquisa, consiste em sintetizar os elementos
teórico-metodológicos que fundamentam a pesquisa autobiográfica com destaque para as
dimensões que tratam das Histórias de Vida de educadores musicais. Essa dimensão da
pesquisa autobiográfica nos permite compreender a narrativa como um processo do qual o
narrador é sujeito e objeto da pesquisa, uma vez que ele desenvolve um conhecimento mais
apurado de si, num movimento constante de construção/reconstrução do contexto
histórico, social, cultural e educacional.
Como investigação a história de vida contribui para retratar um recorte histórico, ou
uma época vivenciada pelo investigado. Os recursos das histórias sobre suas trajetórias de
formação e atuação favorece analisar as situações vividas, compreendendo as suas
influências. Isso pode ampliar o campo da educação musical e possíveis implementações de
políticas de formação do sujeito com ênfase na história de vida em formação, envolvendo a
capacidade de lidar com diferentes saberes de diferentes grupos presentes no contexto em
que o sujeito está inserido. No sentido epistemológico, podemos dizer que é ressaltando a
relevância da subjetividade, da tomada de consciência do sujeito, dos saberes construído
pela pessoa no seu fazer pedagógico-musical diário, que vamos ampliando o nosso objeto de
estudo, isto é, a área de educação musical.
Os resultados apontam, na experiência de vida de Levino Alcântara, princípios de
ação em educação musical. Esses princípios sugerem caminhos para aprofundamentos de
pesquisas na área de educação musical que, por meio das pesquisas autobiográficas, possam
contribuir na ampliação do seu objeto de estudo. Assim, acredito que ao descrever os
caminhos construídos pelo informante da pesquisa na área de educação musical escolar,
será possível capturar particularidades que, talvez, possam explicar as dimensões que
envolvem a educação musical escolar construída no DF.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 189


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 191


Subjetivação nas dobras da produção de si: como se vem a ser professor de filosofia

Elenilda Alves Brandão


UESB/Campus Jequié
elenilda.farias@yahoo.com.br

Esta investigação transcorre o percurso das questões reflexivas sobre como se vem a ser professor de Filosofia:
contribuições, dobras, processos de subjetivação que produziram/produzem este ser/sendo educador em sua
prática. A formação nas vielas da singularização e agenciamentos na produção de si, isto é, constituição do ser
enquanto professor de Filosofia. Esta vinculada ao Curso de Pós Graduação em Filosofia Contemporânea da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia –UESB. As memórias dos sujeito em estudo, como profisional da
educação, graduados e atuantes na área de Filosofia da rede estadual e municipal de Ibitrapitanga-BA;
coprotagonistas de aulas da disciplina para alunos de escola pública do ensino fundamental II e médio. Cercos,
redomas, experimentações articulados às historias de vida destes educadores, identificando marcas e
momentos "charneiras", onde se encontraram resonâncias capazes de fazerem emergir demolições/edificações
nas trajetórias/ações pedagógicas exercidas por estes educadores, cujas práticas fizeram e fazem emergir o
professor/sustentador de voôs dos seus educandos. As fontes (auto) biográficas reveladas nos processos de
narrativas de si: memoriais, história de vida, entrevista semi estruturada, espelhos do sujeito/educador, objeto
vasculhado em seus processos de subjetivação, produziu-se professor instigador, motivador, sacudidor,
intrigueiro, capaz de despertar em seus educandos a curiosidade e inquietação necessária ao estudo de
Filosofia, vôos portanto. Calçada sob a ousadia da hermenêutica nos pressupostos teórico metodológicos nas
linhas da autopoiética esta mergulhada no campo das práticas educacionais, vislumbradora de uma análise
mais aprofundada na relexão/ação estruturada nos processos da memória projetiva, instigadoras de devires na
constituição do ser que se escolhe professor de Filosofia.
Palavras-chave: Subjetivação; (Auto) biografia; Professor de Filosofia; Autopoiética.

Nas entrelinhas da subjetividade: a proposta

“O caminhar para si se faz e refaz informado pela reflexividade, resultante de um


movimento autopiético.” ABRAHÃO (2013, p. 10)
A tradição filosófica ocidental abriga o sujeito dotado de "natureza humana",
bastando existir para ser-lhe atribuída uma essência, contudo, este sujeito tomado na
concepção deleuzeana, DELEUZE, (2001, p. 113) “O sujeito se constitui no dado”, desta
forma, o contexto vivenciado, experienciado, na realidade sociocultural onde as escolas e os
sujeitos da educação (alunos, educadores, pais, comunidade), estão inseridos é o que o
constitui como seres plurais e não homogêneos.
Nestes termos é que a análise desses sujeitos é tomada. A partir das realidades
vivenciadas em seus processos formativos e constitutivos de si. Um resgate das experiências
edificadoras, demolidoras. Negando toda concepção de inteireza onde o sujeito é objeto
pronto e imutável. Rastrear processos de subjetivação onde a formação acontece num fluxo
ininterrupto.
E o que é dado ao professor de Filosofia como fim de constituir-se? Um sistema
educacional intrujado em vias de regras rígidas, não deslizantes, embreadas num poderio
constituinte que produz alienação e produção homogênea dos sujeitos. PEREIRA (2013, p.41)
"O sujeito é produto construído a partir do engendramento dessas zonas de subjetivação,
espécie de bolsas de forças entrelaçadas que se estabelecem no diagrama geral no sentido
de transfigurar uma forma visível". Compreender tais engendramento e posicionar-se como
ser de ação torna-se então um desafio dado.
Uma realidade social onde até mesmo a produção da subjetividade é vigiada e ditada

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 192


a fim de que o poderio constituinte capitalístico continue a manifestar-se nas formas de ser
e viver dos sujeitos. Uma varredura às formas de subjetivação onde o sujeito percorre as
suas próprias trilhas e ainda que projetado num campo de forças coesivas como os modelos
educacionais vigentes, projeta-se como se capaz de escolher-se professor de Filosofia.
Desta forma, um breve olhar sobre o processo formador deste grupo de professores
de Filosofia de uma Escola pública do interior da Bahia- Brasil efetiva-se na busca por
processos de subjetivação instauradores e não homogêneos capazes de fazerem emergir o
ser individuando-se na realidade social dada nos processos de produção de subjetivação.
ROLNIK (1997, p. 4) “A subjetividade tende então a ser tomada por uma inquietude que a
impele a tornar-se outra, de modo a dar consistência existencial para sua nova realidade
sensível.”
Neste contexto, ampliado nas lentes de Rolnik (2007), pairamos sobre os processos de
subjetivação onde se produzem subjetividades capazes de impulsionar o sujeito a
desorganizar-se como ser concreto e pronto para ajustar-se à sua forma atualizada na
realidade existencial sensível. Neste ínterim, o sujeito vai compondo-se no processo de
individuação, concepção que tem na constituição do sujeito seu foco principal de
sustentação.
Conforme descrita por JUNG (2007, p. 61) "A individuação é um processo central no
qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior
diferenciação e ampliação da consciência". Diante de uma formação acadêmica, muitas
vezes totalmente distante da realidade observada na sala de aula, o professor de Filosofia
cria outras perspectivas para o ensino, mesmo que de maneira solitária, mergulhada numa
realidade onde nem sempre os alunos estão solícitos às reflexões filosóficas. Assim, o
indivíduo se identificaria menos com as regras do meio em que vive e mais com as
orientações emanadas de sua essência.
Neste contexto o indivíduo vasculha-se a si mesmo e projeta para o exterior formas
de compreensão do mundo pautadas nas regras e modelos capitalísticos. Passa a compor
seu próprio fluxo de reflexão-compreensão-ação, ousando induviduar-se na realidade dada
na sala de aula. Não tem mais a preocupação de reproduzir modelos e movimentos
propostos, ousa ser quem é e ao assumir-se como tal, cria e evolui dentro do seu próprio
modo de produção de si.
Neste caminho não há verdades incontestáveis, uma vez que o ser ao escolher-se
professor de Filosofia participa de modo não opcional do processo apresentado por
SIMONDON (2007) De forma geral, individuação é o nome dado a processos pelos quais os
“indiferenciados” se tornam “individuais” ou a processos em que componentes
“diferenciados” se tornam “indivisíveis” como um todo. Através desse processo, o ser/sendo
professor de Filosofia passa a identifica-se menos com as condutas e valores encorajados
pelo meio no qual se encontra e mais com as orientações emanadas do Si mesmo.
Ao invés de relações previsíveis, imóveis e dependentes, como as das máquinas na
fábrica, o professor de Filosofia cria-se, edifica-se, demoliza-se, reconstrói-se, driblando o
lugar comum do currículo proposto. DELEUZE (1996, p 94) "Participa de um processo de
demolição constante, movimento permanente de individuação". Em sua formação
permanente, na realidade dada das salas de aula, vai experienciando, modificando,
evoluindo com o outro em direção a Si mesmo.
O ser individuado não é um recorte do ser, mas, uma fase dele. Como compartilha
DELEUZE (1996, p. 44) "O devir é o modo de ser do ser". O colapso ou resolução imediata
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 193
produz individuação. Cada fase ou patamar atinge um equilíbrio metaestático e possui um
potencial de criação de novas formas ou de invenção de novas soluções sem, no entanto,
eliminar as antigas, SIMONDON (2007, p. 55 “O indivíduo é individual e continua a se in-
dividuar”. Desta forma, ao escolher-se professor de Filosofia abriga no ser um devir
permanente.
Devir então, é o estado de ser próprio do sujeito que se escolhe professor de
Filosofia, no processo de individuação que o projeta no fluxo da modificação de si, depara-se
constantemente com a defasagem com relação à sua própria constituição e o caminho para
a atualização permanente é por vez carregada de tropeços idas e voltas, retornos,
reviravoltas, tomadas e retomadas, organização e desorganização constante. Nem melhor,
nem pior, diferenciando-se, segue.
O estado metaestático instituído por Simondon vem da própria constituição do ser
enquanto sujeito que se individua e traz da sua realidade pré-individual a condição
permanente de individuar-se. Pode-se então compreender o estado metaestável do ser a
partir de SIMONDON (2007, p. 67) “O regime da metaestabilidade, fronteira entre o estável
e o instável, não só é mantida pelo indivíduo como também carregada com ele, de maneira
que o indivíduo constituído transporta consigo certa carga associada de realidade pré-
individual (reservatório de possíveis).”
Tomado pelo devir permanente o sujeito segue o seu processo de subjetivação em
sua composição do ser professor de Filosofia, em sua prática, sustenta os processos de
subjetivações também experimentadas pelo outro, (educando) e neste viés de composição
de individuações de si e do outro as aulas acontecem no tecido da realidade dada as
edificações e os desmanchamentos galgam passos lentos, muito embora firmes.
As ideias de DELEUZE & GUATTARI (1997, p. 31) "Subjetividade não é passível de
totalização ou de centralização no indivíduo”. Não implica uma posse mas, uma produção
incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com o outro. Nas dobras que
se estendem e voltam a se dobrar, do lado de dentro, interior, desdobramentos que fazem e
desfazem o ser em estados transmutáveis de invenção e reinvenção permanente.
As dobras aqui devem ser compreendidas segundo as concepções rolnikeanas que
acontece na extensão de toda pele, (realidade dada), a escola, a família, o trabalho, a
convivência humana, o fluxo da vida. Os acontecimentos que chegam involuntariamente
produzem movimentos de ressonâncias no sujeito que produzem dobras e extensões
continuamente em consonância com o devir que lhe é próprio.
A dobra, enunciada por DELEUZE (1996, p. 34), constitui-se com quatro interfaces,
tomando aqui a terceira delas como: “É a dobra do saber ou a dobra da verdade: constitui
uma ligação do que é verdadeiro com o nosso ser, e de nosso ser com a verdade." No âmbito
da produção de si, o professor de Filosofia depara-se com os desdobramentos do lado de
fora, exterior. DELEUZE (1996, p. 104) “O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria
móvel, animada de movimentos peristálticos, de pregas e de dobras que constituem um lado
de dentro: nada além do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado de fora”.
Neste contexto dentro/fora o professor de Filosofia enfrenta fluxos de forças capazes
de refletir em sua formação/ação. Das dobras de fora, realidade, refletidas nas dobras de
dentro num fazer e desfazer de dobras reflete inquietação constante. Para ROLNIK (1997, p.
6) O dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora, cristalizadas
temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu
microcosmo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 194
seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile.
A formação permanente, marcada pelas dobras de fora, compreendida por PEREIRA
(2013 p. 35) "Processo de transformação em que as relações que o sujeito estabelece com o
mundo/outros/consigo são afetadas de modo proposital e consciente". A formação
(processo) pessoal e coletiva, não se recebe: a formação se faz em um processo ativo que
requer a aproximação de, o envolvimento com, a mediação de outros.
Neste sentido, o professor de Filosofia, ao relatar a sua história de vida, vai (re)
significando elementos constitutivos inseridos na realidade social e cultural vivenciada,
observando as marcas que processos, pessoas, situações definiram m sua formação, no
âmbito das relações estabelecidas consigo mesmo, no contexto sociocultural onde forma-se
continuamente.
Podemos compreender esse outro como todas as pessoas e situações que de
maneira involuntária ou não provocam movimentos que intensificam mudanças no modo de
como esse professor de Filosofia vinha sendo em sua prática, demolindo ações, edificando
outras, restaurando significados e compreensões, ou seja, em pleno exercício do devir.

Nas dobras do tecido estampado no real: o constituir-se

“Obra de si na dobra do outro. Um espanto! Passagem livre para o


aberto do ser na superfície lisa do seu aparecer. Também beleza
vivente!” PIMENTEL, GALEFFI, MACEDO (2012, p. 9)

Neste movimento de dobras, o lado de fora se torna intrínseco ao lado de dentro e a


muitas mãos vive o seu fazer e desfazer constante para formar-se e (des)formar-se em sua
prática. ROLNIK (1994, p. 6) enfatiza que “Não se trata de alucinar um dentro para sempre
feliz, mas sim de criar as condições para realizar a conquista de uma certa serenidade no
sempre devir outro.” Nas marcas das histórias de vida, vasculhamos os modos de
subjetivação presentes na realidade dada ao professor de Filosofia.
A constituição deste processo formação no fluxo do tecido social onde a
subjetividade aflora à pele em meio a dobras que ora se produzem e voltam a se estender,
pairaremos nas experiências que foram/são formadoras cabendo a instigação tecida por
PEREIRA (2013 p. 21) "Como se vem a ser professor?" Amparado na trajetória da pesquisa
qualitativa, estreitado nas narrativas das histórias de vida, presente na concepção do
método (auto) biográfico, seguindo a trilha da perspectiva aberta crescente no campo da
educação.
Nos elementos que vai deixando cair de si, constitui espaços de subjetivação onde
encontra a si mesmo, o modo com que fora e continua sendo produzido, como nos fala
BAKHTIN (2003, p 115) “Os indivíduos se produzem, evoluem e assumem sua subjetividade e
historicidade à medida que interagem com as esferas comunicativas nas quais circulam,
reconhecem-se, são reconhecidos por elas e nelas se (re) inventam.”
Segundo NÓVOA, FINGER (2003, p. 88) "A abordagem (auto) biográfica proporciona
refletir sobre o seu próprio processo de formação e tomar consciência dos espaços e dos
momentos que para ele (o professor), foi formador ao longo de sua vida". Uma varredura,
portanto nas formas com que a sua vida fora arquitetada, escrita, experienciada, narrada. O
professor em estado de contemplação vendo a sua existência sendo encenada no palco da
vida, diante do seu próprio olhar.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 195
Entre as várias possibilidades de utilização do método (auto) biográfico, tomemos a
sua direção na produção subjetiva dos sujeitos, como corrobora PASSEGI, VICENTINI SOUZA
(2013, p. 18) “As narrativas de si como práticas de formação e autoformação, procurando
investigar a reflexividade autobiográfica e suas repercussões nos processos de constituição
da subjetividade e da inserção social do sujeito.” Neste sentido os professores de Filosofia
que aqui se narram, se refletem no exercício da reinvenção de si em pleno movimento
autopoiético.
A opção em aprofundar o estudo teórico e metodológico de/com histórias de vida e
(auto) biografias, está vinculada ao como refere-se NÓVOA (2003, p. 74) “O caráter
formativo do método” onde o sujeito ao reconstruir seu itinerário de vida realiza uma
reflexão quando rememora o seu passado e a partir disso toma consciência de si. Portanto, o
caráter formativo do método, reside nessa tomada de consciência de suas experiências
sejam elas negativas ou positivas, as quais possibilitam rever sua trajetória de vida
observando as marcas que o constituíram como ser humano e como educador.
Remontando trajetórias, no cerco das rodas de conversas, consigo mesmo e com os
colegas de caminhada, pé no chão, peito aberto, o olhar no passado, mais precisamente
ajoelhado ao lado do baú das memórias que trazem histórias edificantes, agulhas e linhas
construtoras de tracejos e alinhavos que ora se desmancham, ora de apertam, numa trama
reveladora da trajetória desta figura que vem sendo professor de Filosofia individuando-se e
deleitando-se sobre os movimentos que produzem dobras relevantes, traços contrários,
organizadores e desorganizadores deste palco da existência.
Na fala de NÓVOA & FINGER (2003, p. 75) expressa "O método autobiográfico é um
instrumento cuja utilização depende sempre do objetivo visado pela pesquisa. Ao pedir aos
adultos para percorrer sua trajetória educativa, para dela extrair os elementos formadores,
eu solicito uma informação muito pessoal, que eles fornecerão de acordo com o modo que
lhes convier. Neste sentido, tornam-se explícitas informações que nem mesmo o professor
de Filosofia havia se dado conta da importância e fundamentação.
São nestas ruas, vilas e avenidas da existência que o exercício de reflexão sobre si
mesmo e seu percurso formativo se dão. O reencontro com suas experiências, cujas
transitoriedades se tornaram vivências edificadoras de um profissional da educação, um
processo de singularizar-se no tecido educacional onde, este sujeito que se escolhe
professor de Filosofia, produz-se em devir-outro, continuamente.
A história de vida no campo da pesquisa em educação principalmente os relatos de
pesquisas, apontam-no como um método que possibilita uma reflexão sobre o próprio
processo de formação e subjetivação do ser. JOSSO (apud BUENO 2002, p. 81) afirma que “A
educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma
vida”. A mesma autora atenta para os "momentos charneiras", aqueles onde foram
produzidas fortes marcas no ser e provocaram um desabamento no professor que vinha
sendo, edificando outras práticas e modos se subjetivação. Movimentos de desdobramentos
permanentes.
Compartilhando desta ideias, JOSSO (2004, p.25) "As histórias de vida são
importantes porque nos ajudam a pensar a formação do professor para atuar frente aos
novos papéis que vem sendo solicitado pela escola" Nesta perspectiva situando o professor
de Filosofia, seu modo de subjetivação e produção de si, frente às exigências ao educador
que tem como fator primordial da sua área de ensino/estudo o pensamento reflexivo na
complexidade do mundo contemporâneo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 196
Neste sentido, a relação com a Filosofia inaugurada desde os tempos de estudantes, se
constitui em tornar a realidade cognoscível, objeto de reflexão e problematização no palco
da sala de aula, desta forma, não se trata apenas de corresponder às exigências do “mundo
contemporâneo”, mas torná-lo objeto de refletividade dinâmica, face à realidade dada aos
sujeitos educacionais.
A evolução dos papéis, das funções, das concepções, dos lugares que afetam todas as
profissões, transforma a responsabilidade individual do sujeito em responsabilidade cívica
coletiva. Do professor de Filosofia é esperado mais do que a postura de um como indica
PEREIRA (2013, p. 128) "dador de aulas"; também já não cabe mais a concepção pronta
daquele que pretende "ensinar a pensar". A subjetividade deve estar presentes em sua
prática, junto à desconstrução das verdades prontas, alças num currículo que anula a
diversidade e a própria subjetivação do sujeito como ser pleno e autônomo.
Atores profissionais e socioculturais que se efetua todos os dias sob o olhar de
homens e mulheres sedentos de existência plena, como nos fala JOSSO (2004, p. 41) "Mais
do que nunca, o ato de aprender solicita uma consciência aguda das questões, dos
problemas e mesmo dos impasses que, alternadamente, são a manchete dos jornais, e que
estão em jogo no exercício dos nossos direitos políticos". É neste cenário desafiador que o
professor de Filosofia é convidado a incentivar a atuação dos educandos como sujeitos de
pensamento reflexivo.
Ao professor de Filosofia, a tão corajosa, inacabada e irreverente Filosofia, cabe uma
missão mais do que instrumentalizar o ensino da Filosofia, esta uma conquista histórica de
acordo com HORN (2000, p 16) em “A presença da filosofia no currículo do Ensino Médio
brasileiro: uma perspectiva histórica” acompanhada dos pressupostos teóricos
metodológicos explícitos nos Parâmetros Curriculares Nacionais, para o ensino médio, PCNs
(1999, p. 295) com: “Leitura de textos filosóficos, debates, discussões dialéticas.” A tarefa é
ainda mais ampla, redonda e profunda; e, como diz letra da música Gita, de Raul Seixas
(1970), "Raso, largo, profundo".
Uma das propostas desafiadora não tão fácil de ser concretizada da Filosofia e seu
ensino é a postura crítica conquistada após um longo e contínuo processo de reflexão, como
corrobora CORBISIER (1972, p. 20) “Da ironia socrática à dúvida cartesiana e o niilismo
nietzschianco observar a filosofia como crítica radical.” e isso, indica um processo de
superação da alienação por meio de uma consciência do processo alienador perfeitamente
alcançável por qualquer sujeito que esteja determinado a desenvolver o pensamento
filosófico e isso inclui também obviamente os sujeitos da educação.
Cabe subjetivação em teias de liberdade e autonomia. Aproximemos das falas de
FREIRE (2002, p. 31) É preciso, porém que tenhamos na resistência que nos preserva vivos,
na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da
natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não
para a nossa (re) significação em face das ofensas que nos destroem o ser. Resistir e viver,
eis uma tarefa que deve ser confundida com o próprio ato de educar filosoficamente. E isso
só é dado a partir da crítica reflexiva.
Resistência é a palavra viva que rege a prática reflexiva do professor de Filosofia, para que
venha à tona o ser educando em toda a sua extensão e subjetividade, inclusive, nas
propostas curriculares, sobre isso, nos fala FERRAÇO (2005, p. 34): "No âmbito das histórias
de vida, ainda que de no cotidiano, os currículos são realizados nas redes de sabererfazeres
dos sujeitos e, desse modo, misturam-se com elas, tornando-se impossível sua identificação
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 197
objetiva".
Desta forma, a vida é o grande palco dos saberfazeres da prática reflexiva do
professor de Filosofia, dela se extrai os conteúdos atrelados aos conceitos filosóficos na
magnífica correlação entre o conteúdo estudado e o vivenciado; instituindo a vida dos
próprios sujeitos como objeto de estudo, neste termo, enfatiza o currículo proposto, como
nos fala ARROYO (1999, p. 43) “Território de disputa”, como forma ampliada de
compreender os conhecimentos escolares sugeridos pelo sistema educacional (co)
relacionadas com a própria vida.
As negociações, atravessamentos, usos, traduções e o que é praticado pelos sujeitos
que ha-bitam os cotidianos é o que interessa ao professor de Filosofia, e isto traduzido na
prática educacional, denota em compreender como os sujeitos das práticas tecem os seus
conhecimentos; elaboram as suas ideias e interferem na realidade existencial. Um passo
significativo para a ocupação do território curricular pelos sujeitos produtores de
conhecimentos.
Estes processos surgem num constante trançar/destrançar entre os conhecimentos
instituídos pelos agentes educacionais governamentais e os enredados nos espaço/tempo
das escolas, como indica FERRAÇO (2005, p. 103) “E por efeito, da vida.” Os
desdobramentos da própria vida do sujeito que ao mesmo tempo em que apreende,
também produz conhecimentos. Uma disputa, portanto, por espaços e visibilidade na
realidade escolar.
Tais práticas que envolvem fios das diferenças culturais, das invenções, dos
deslocamentos, das múltiplas singularidades acontecem com os sujeitos da escola que
ajudam a produzir políticas de currículo e de formação dos sujeitos. Desta forma, os
processos de subjetivação do sujeito que vem sendo professor de Filosofia, no terreno da
autopoiéses tornam-se objetos que configuram uma proposta de educar para o pensar e
pensar a própria educação e seus processos constitutivos.
A questão curricular diz Oliveira, ao discutir os currículos praticados no cotidiano,
OLIVEIRA (2003, p. 68) observa: “É com Certeau que vamos, mais uma vez, buscar a
compreensão das formas de criação de alternativas curriculares, tentando evidenciar as
“artes de fazer” daqueles a quem foi reservado o lugar da reprodução.” O cotidiano aparece
como espaço privilegiado de produção curricular, para além do previsto nas propostas
oficiais, substituindo o ato de reprodução pelo de produção.
Assim, nas dobras das suas vivências o professor de Filosofia imprime em suas aulas
sua postura , cultura, visão de mundo em pleno devir e faz da produção curricular,
transparecido nos conteúdos das suas aulas; um saber fazer instituído na própria vida. Segue
individuando-se no espaço/tempo, educacional na constituição da Autopoiéses,
compreendida na concepção de MATURANA; REZEPKA (1998, p. 205) como: "Arte da
construção de si, produz continuamente a si mesmo. Poiesis é um termo grego que significa
produção". Autopoiese então, autoprodução. No tecido da existência, compreende-se como
ser que vem si formando professor de Filosofia, ao mesmo tempo em que serve-se desta
prática educacional, distribui aos seus alunos, enfim, produz subjetividades.
O passado à sua frente, reconstói pedaços do caminho trilhado, rememora, revive,
consome-se na fogueira da memória projetiva, riscos e mascas de si mesmo. Deixa vir à tona,
resquícios agora tão próximos, reinterpretados bem verdade, pois, o devir não alimenta a
ser estáticos, ainda assim, recortes moldam, refazem e tecem no agora o tecido do ontem.
Numa conversação bastante descontraída, surge alguns questonamentos que conduzem a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 198
outros tantos sinteticamente relatados a seguir.

No movimento autopoiético: os sujeitos

“Toda história individual humana é a transformação de uma


estrutura inicial hominídea fundadora, de maneira contingente com
uma história particular de interações que se dá constitutivamente no
espaço humano” (MATURANA; REZEPKA, 1998, p. 28)

O que levou à escolha do curso de Filosofia? Como você vem sendo professor de
Filosofia? Quais atitudes pessoais motivaram tais escolhas? Como você se posiciona em suas
aulas? O que foi realmente formador em sua trajetória como professor (a) de Filosofia?
Quais práticas foram adotadas inicialmente e quais foram somadas ou subtraídas? Bastou
tais indagações e uma sucessão de outras questinamentos interreacionadas para que
brotasse uma leve discussão sobre a atuaçao do professor.
De modo geral, quatro dos sete professores apresentaram como motivação pela
escolha foi o encantamento devido à postura de ex professores de Filosofia, os demais
apresentaram a proximidade com a política e a religião. Apenas um dos sete professores
tiveram incentivo dos familiares. Todos confessaram já terem se envolvido com atividades
ligadas ao teatro e artes literárias.
Seis dos sete ouvidos revelaram em suas falas adotarem uma postura democrática em sala
de aula. Apenas um disse não se sentir à vontade em adotar tal prática, porém, não se
estendeu sobre os motivos. A educação dos sujeitos para a liberdade sujerida por Freire e
tantos outros estudiosos do campo educacional, parece ser uma prática que ainda atravessa
percalços e resistências que vão desde a própria estrutura educacional vigente, até mesmo
o cotidiano das salas de aula.
Cinco indicaram mudança ou vontade de mudar as suas aulas e driblam
constantemente os conteúdos curriculares por outros atrelados à realidade dos estudantes e
o fazem por motivação pessoal ou desejo de instaurar reflexões e debates na classe. Neste
ponto, os saberesfazeres da pespectiva curricular se implantam continuamente na prática
destes educadores e as disputas pelo território do conhecimento se projeta de modo
intencional.
Os problemas relacionados ao desinteresse dos alunos pelas aulas de Filosofia que
vão desde a indisciplina até ao indiferentismo, foi o que fez todos eles reestruturarem e
ressignificarem as suas posturas e práticas em sala de aula e confessaram observar
melhorias significativas nos rendimento dos alunos aproveitamento das aulas além da
satisfação profissional a partir deste feito.
Uma observação bastante pertinente implica em expor a discrepância existente entre a
formação acadêmica e á realidade das salas de aulas, ambiente de trabalho dos professores
de Filosofia, uma qustão discutida por MURCHO (2002, p. 9) “Uma das primeiras coisas que
o professor recém- formado descobre com espanto é que o que estudou e aprendeu na
faculdade é praticamente irrelevante na sua prática letiva.” De algum modo, tem de se
aprender outra coisa quando começa a dar aulas”. Um aprendizado que se projeta para além
da formação recebida na universidade.
Neste momento, a história de vida deste educador e as marcas que o vem
constituindo fazem emergir intensicadamente o ser em processo de individuação, passando
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 199
a criar um ser-outro, exigente, criativo e isto em muitas circunstâncias passa a ser uma
exigência para a própria sobrevivência como profissional da educação. O professor de
Filosofia busca em sua habilidade metaestável a capacidade de instalar-se como ser
incitador da relexão que produz o debate e consequentemente o estado de crítica
consciente em seus educandos.
Cinco destes educadores sentem-se contentes com seus desempenhos e valorizados
pela maioria dos alunos e professores. Dois deles ainda se encontram “inseguros e
desvalorizados” diante de colegas que lecionam outras disciplinas. Um ponto que sem
dúvida, digno de discussões mais aprofundadas.
Todos abrem espaços nas aulas para o envolvimento de recursos tecnológicos e atividades
relacionadas as artes, um indício da produção subjetiva do professor de Filosofia rebuscadas
em suas memórias e reavivadas em suas práticas. Houve total receptividade à ideia de
mudanças nas aulas de Filosofia e desejam buscar instrumentos na formação continuada de
iniciativas pessoais, vez que esta é raramente oferecida pelos orgãos educacionais
responsáveis.
O quadro traçado deixa evidente a autopoética na vida destes educadores, inclusive,
como fator contíuo no envolvimento das artes, religião e polítca. Muito embora não
tomando como regra geral, ficou evidente que a ligação com esse agentes da cultura na
adolescência, juventude e até na vida adulta, os tornaram mais próximos da Filosofia.
A postura democrática e o drible ao currículo inside no fato pertinente à provocação
aos estudantes, com o propósito de envolvê-los numa abordagem reflexiva própria da
Filosofia como afirma LANGON; SIDEKUM (2003, p. 95), provocar uma sacudidela nos jovens,
fa- zê-los ‘quebrar a cabeça’, derrubar suas certezas e provocar dúvidas, violar suas
virgindades, fazê-los perder irrecuperavelmente inocências e canduras. Toda aula de filosofia
exerce a violência para provocar no outro um movimento.
Em seus processos de formação foram as dificuldades, o não resolvido, a recusa, a
apatia dos jovens que coausaram uma descontinuidade em suas práticas para que outras
viessem ser adotadas e um novo processo de subjetivação se instalasse. retomando, JOSSO
(2004, p. 14) "Momentos charneiras". Apontam a descontinuidade no processo de formação,
o atropelo ao ser que vinha sendo, retomadas a outras formas de fazer aula. O espetáculo da
passagem do "dador de aulas" ao professor de Filosofia.
Descontinuidades, angútias, microrrevoluções aparecerm continuamente nas falas
dos professores de Filosofia e e até mesmo o descontentamento de alguns com o estado
atual, revelam anseios por mudanças no sistema educacional e até mesmo na forma como
a disciplina é organizada e tratada, isso indica a construção de uma postura de educador,
professor de Filosofia, a isso refere-se KASTRUP (1995, p. 97), “Para ser mestre não basta
transmitir informações novas e igualmente descartáveis, mas produzir experiência nova que
não envelhece, que conserva sua força disruptiva e se mantém sempre nova”.
A subjetividade presente, acontece nos movimentos do exercício do que se vem
sendo e como se vem sendo nas práticas em sala de aula e isso lhe é servido das mais
diferenciadas formas no contexto educacional. Netse sentido, a produção da subjetividade
esta instalada sob os eixos das disputas curriculares e da própria postura do educador como
instigador reflexivo da relidade social dada, ainda que alguns alunos apresentem desiteresse
sobre tais questões; forma visível de alienação, produzida pelos aparelhos ideológicos
exclusivistas e disciplinatórios.
Quando observada pelo ângulo que verifica o indiferentismo de alguns alunos com
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 200
relação à realidade social, a estrutura subjetiva do trabalho do professor de Filosofia ganha
ainda mais destaque, uma vez que a sua própria história de vida acarreta elementos de
participação social, posicionamentos, questionamentos, ligação com a cultura e as artes;
propostas que no campo da profissão tornam-se instrumentos potencializadores para a
realização de aulas que despertem o interesse, posicionamentos e a discussão à cerca da
realidade vivenciada.

Entre achados e anunciando continuidades necessárias: algumas considerações

“Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na


busca, não aprendo nem ensino.” FREIRE (2000, p. 40)

Ao que tudo indica esta breve abordagem, o ser individuado, professor de Filosofia
em seu processo permanente de individuação esta em processo permanente de formação e
constituição de si, sofrendo influencia da dobra de fora, reiventa-se em sua prática em
ressonãncia com as doras de dentro num processo de permanente devir. Sofre , porém cria.
A formação universitária que para muitos aparece como instrumento de formação
constitutiva dos seres que por suas salas de aulas transitam por anos e anos a fio não é o
suficiente para que o professor de Filosofia lecione com sucesso, os procesos de
subjetivação produzidos em sua existência do indivíduo têm importância fundamental na
constituição do sujeito como professor de Filosofia.
Confere-se uma subjetivação presente nas constituição deste sujeitos compreendendo como
nos diz TOURAINE (2006, p. 119) Os indivíduos passam a repensar sua relação com o
mundo, seus papéis, e assumir uma postura criativa frente à realidade social, atribuindo um
sentido para suas vidas. Essa formação se dá na vontade de escapar às forças, às regras, aos
poderes que nos impedem de sermos nós mesmos”.
Inventa a si mesmo, revoluciona a sua prática num seio de microrrevoluções
silenciosas que acontece todos os deias no exterior e interior da sala de aula. Movido por
moldes de subjetividade plural, observa na sua história de vida momentos de rompimentos,
demolições e recostruções que o fizeram ser quem é e percebe o quanto vem se
modificando, porém, o quanto ainda necessita modificar-se, no seio da sua individuação,
produz-se lugar de subjetivação e reconhece-se ser-em-devir-permanente.
O grupo de professores que contribuiram com este trabalho bebem da própria
Filosofia como parâmetro de autopoiése e servem-se da postura questionadora e inquieta
desta área de conhecimento para constituirem a partir de suas aulas um campo de
reflexividade que podem desencadear autopoiése no sujeito educando, num fluxo de
estendimento/dobra, demolição/reconstrução, na exensão de toda pele/teia social.
As obserações feitas a partir deste breve estudo conferem com a teorização o
pensamento freireano, pois, inscreve-se na moldura da educação libertadora. Nessa
concepção estão implicados os conceitos sujeridos por FREIRE (2000, p. 16) “Politicidade da
educação, democracia, justiça social, poder, liberdade, utopia e ética.” O que confere a esse
trabalho uma legitimidade própria do ato de filosofar sobre os processos de subjetivação e
autopoiéses que constituem o professor de Filosofia como ser pensante, autocrítico e crítico.
Os indícios de disputas curriculares são evidentes nas narrativas dos professores de
Filosofia quando classificam a sua prática como democrática e isto implicam em
“dribles/adaptações” estratégicos dos conteúdos sugeridos por outros mais atrelados à
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 201
realidade dos educandos, favorecendo assim a reflexão crítica dos educandos e a produção
das suas próprias subjetividades, neste sentido, o professor de Filosofia ao mesmo tempo
em que bebe da fonte subjetiva faz emergir outras nascentes da autopoiéses em seus
alunos.
Conclamando com as ressignificações no território curricular analisa SILVA (2004, p. 17)
Contrapontos aos temas geradores, os contra-temas se dão a partir da discussão das
possíveis situações e falas significativas, considerando tanto os limites explicativos que a
comunidade possui para tais situações, quanto à visão e análise que os educadores
coletivamente fazem sobre as mesmas durante o processo de redução temática.
Essa construção curricular expressa o início de uma ação educativa que estará em
constante revisão. Pressupõe diálogo tanto em relação à escolha do objeto de estudo,
quanto no processo de ensino-aprendizagem efetivado na prática pedagógica cotidiana.
Quando os limites do currículo instituído passam a ser derrubados é sinal de que a crítica,
tarefa primeira do ensino da Filosofia, passa a ter representatividade da sala de aula, ainda
que de maneira sutil, os sujeitos do conhecimento, vão produzindo outros espaços e
subjetividades.
As literaturas, as artes, a poesia, a política, o teatro, atividades culturais, portanto; a
postura irreverente, a atividade de escuta, a inquietação a busca por justificativas
construções de posturas religiosas, entre outros aspectos, são representatividades
imprescindíveis na constituição dos professores de Filosofia que contribuíram com suas falas
e narrativas de suas histórias de vidas. Neste trabalho a produção da subjetividade não é
coagulada diante dos impasses educacionais, ao contrário, contribuem para a permanente
individuação e singularização dos sujeitos.
A teorização deste estudo não cessa, induz a uma série de outras investigações no campo da
individuação dos sujeitos; subjetividades; marcas na formação de professores; história de
vida, currículo; ensino de Filosofia; o professor de Filosofia; a próprio pensamento filosófico
nas linhas da concepção crítica e da ética, da subjetivação e dos processos educacionais
entre outros.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 203


Memórias de alfabetização: experiências de vida e de profissão.

Fabiane Santana Oliveira


UNEB
unebia@hotmail.com

Este trabalho tem o objetivo de analisar registros (auto) biográficos, memórias de alfabetização de professores
do ciclo da alfabetização do município de Tucano-Bahia, sujeitos em formação pelo programa do governo
federal Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, e pelo Grupo de Estudos em Educação,
Metodologia de Pesquisa e Ação – GEEMPA, de modo a conhecer alguns dos processos escolares vivenciados
por estes, buscando perceber como suas trajetórias de escolarização trazem implicações em suas práticas
pedagógicas, bem como, perceber se as trajetórias de alfabetização dos professores envolveram ou não
práticas docentes pautadas num currículo inclusivo e na perspectiva do letramento. Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica pautada numa abordagem qualitativa, a partir da qual é possível visualizar dispositivos (auto)
biográficos e ampliá-los por via do memorialismo, percebendo como os registros narrativos possibilitam aos
sujeitos, por meio da memória, entrarem em contato com suas histórias de vida e de profissão, permitindo-
lhes uma compreensão de seus percursos e suas práticas, ampliando a percepção de si enquanto profissionais
de alfabetização e a consciência de suas responsabilidades, além do conhecimento da história particular de
uma sociedade, mais especificamente a respeito da corrente teórico-metodológica predominante no processo
de alfabetização que vivenciaram e da que experienciam, atualmente, em suas atividades pedagógicas.
Palavras-chave: Autobiografia; Memória; Alfabetização; Experiências de vida e profissão.

Introdução

O artigo propõe-se a analisar registros de memórias de alfabetização de professores


alfabetizadores do município de Tucano-Bahia, de modo a conhecer os processos escolares
vivenciados por estes, buscando perceber como suas trajetórias de escolarização trazem
implicações em suas práticas pedagógicas.
Esta produção decorre de estudos realizados como aluna especial da disciplina
Abordagem (auto) biográfica e formação de professores-leitores do Programa de Pós-
graduação em Educação e Contemporaneidade, da Universidade Estadual da Bahia–UNEB
Campus I, bem como do trabalho desenvolvido ao longo do ano letivo de 2013, na
orientação de estudos dos professores do ciclo da alfabetização no programa de formação
continuada do governo federal - Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC,
juntamente ao Grupo de Estudos sobre Educação Metodologia de Pesquisa e Ação –
GEEMPA, responsável pela metodologia de alfabetização no município.
No início da formação do PNAIC/GEEMPA os professores foram provocados a
produzir o registro de suas memórias de alfabetização, identificando experiências na
perspectiva do currículo inclusivo/ letramento, revisitando, desta forma, suas experiências
de vida e observando de que maneira estas influenciam positivamente e/ou negativamente
na atividade profissional que escolheram.
Considerando a relevância dessa investigação para o avanço da compreensão sobre a
abordagem autobiográfica, bem como das práticas docentes, o desenvolvimento deste
artigo deu-se por meio de pesquisa bibliográfica pautada numa abordagem qualitativa.
A pesquisa qualitativa representa uma atividade situada que localiza o
observador/pesquisador no mundo (DENZIN, 2005; LINCOLN, 2005), sua inserção no campo
de estudo, suas práticas e matérias interpretativas dão visibilidade ao mundo, transformam-
no em uma série de representações e significações realizadas pelos próprios sujeitos da
ação. Neste sentido, a pesquisa qualitativa envolve uma abordagem interpretativa do
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 204
mundo circundante, tentando entender ou interpretar os fenômenos em termos dos
significados que as pessoas a eles conferem. Ela abarca, ainda segundo Denzin e Lincoln
(2005), o estudo do uso e a coleta de uma diversidade de matérias empíricas como: estudo
de caso; experiência pessoal; introspecção; história de vida; entrevista; artefatos; textos e
produção culturais; textos observacionais, históricos, interativos e visuais; práticas que
garantem uma visibilidade diferente ao mundo.
Nesta perspectiva, se configura o entendimento de que a pesquisa qualitativa vai
além dos dados quantitativos, abordando uma variedade de técnicas com a finalidade de
apreender e interpretar os significados existentes no ambiente da investigação, neste caso,
as memórias de alfabetização de seis docentes do município de Tucano.
Dessa forma, a análise da proposta de escrita, que fora lançada aos professores em
2013, permite articular o estudo sobre os registros autobiográficos (memórias de
alfabetização), as dimensões experienciais de vida e da formação dos professores
alfabetizadores, estabelecendo diálogos com os autores e conceitos estudados ao longo da
disciplina Abordagem (auto) biográfica e formação de professores-leitores.

Autobiografia e memorialismo

Os textos autobiográficos se constituem como um espaço no qual o escritor registra


sua própria experiência de vida, sua personalidade, valores e crenças, podendo-se
configurar, ainda, na oralidade. São narrativas que, segundo Chiara (2001, p. 15-16) “não são
a vida, mas neles podemos ler a ‘vida’ no seu essencial: a paixão”. Entende-se por paixão,
portanto, a própria singularidade do sujeito, sua relação com a subjetividade e com a
“verdade”.
A escrita autobiográfica tem o poder de eternizar aquilo que foi vivido, dando vazão
ao desejo de imortalidade das experiências, de maneira que, para que essa escrita se
materialize os sujeitos necessitam recorrer ao campo das lembranças. Por meio do trabalho
da memória, que pode ser situada como um dos gêneros autobiográficos, é que o sujeito
sairá em busca de sua verdade singular, expondo e demarcando os limites de sua
personalidade inscrevendo-se numa história, seja ela familiar, social, profissional, dentre
tantas outras.
De acordo com Lejeune (2008) autobiografia e memorialismo apresentam
determinadas distinções no que se refere ao assunto tratado por elas. Enquanto na
autobiografia o enfoque dado privilegia a vida individual, no memorialismo o “relato do eu”
se estende para questões mais coletivas, incluído aspectos históricos e sociais de uma época.
Conforme reforça Coutinho (2012):

A poética memorialística forja-se na intersecção de dois planos: o histórico, onde


geralmente se dá a incidência do tempo passado, evocando-se certa realidade
dentro de uma configuração espaço-temporal, e o plano do eu pessoal, onde
prevalece a subjetividade do poeta, que se diz a si mesmo enquanto sustenta uma
conexão com o real, submetendo-se à injunção histórica. (COUTINHO, 2012, p. 95).

Neste sentido, as memórias de alfabetização podem ser lidas pelas vias dos dois
conceitos, uma vez que elas tornam-se interlocutoras das experiências individuais de cada
docente e, ao mesmo tempo, permitem conhecer a história particular de uma sociedade,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 205


mais especificamente a respeito da corrente teórico-metodológica predominante no
processo de alfabetização em determinada época.

Memórias de alfabetização revelando práticas docentes

A abordagem autobiográfica, tomada no contexto das narrativas docentes de suas


trajetórias de alfabetização, constitui-se como um dispositivo fértil permitindo “ao professor
tomar consciência de suas responsabilidades [...] através da apropriação retrospectiva de
seus percursos de vida” (SOUZA, 2006, p.262). Nessa perspectiva, permite que cada
professor compreenda “melhor suas razões de ser e de estar na profissão se constituindo
[...] um instrumento valoroso para o pesquisador melhor compreender como os professores
aprendem a ser professor” (PASSEGI et al, 2008, p.258).
As narrativas dos professores, com ênfase em de seus percursos alfabetizadores,
revelam não “só a vida interior dos sujeitos e suas ações, mas também os contextos
interpessoais e sociais que ele/ela atravessou” (BERTAUX, 2010, p.47). Assim sendo, “o
sujeito que lança, solitário, um olhar retrospectivo sobre sua vida passada, a considera na
totalidade e como uma totalidade” (BERTAUX, 2010, p.49 ). Tais narrativas se constituem,
portanto, como um dispositivo importante para melhor compreender os sujeitos, tomando
como referência seus percursos e suas práticas.
Os docentes, em suas escritas, compreendem esses registros autobiográficos como
instrumentos que lhes possibilitam, através do rememorar de seus percursos, reconstruir
experiências, reavivar sentimentos, como revela a professora de 2º ano, Cleonice
Guilherme46:

Recordações, lembranças, acontecimentos que ocorrem em nossas vidas, fatos que


fazem parte da nossa identidade. Sendo que todo indivíduo tem sua própria
história. Relembrar de como ocorreu a alfabetização em minha vida, me faz reviver
acontecimentos que possibilita sentir emoções como: pavor, imaginação e
conhecimento. (Cleonice, Memória de Alfabetização, 2013).

A professora, em sua narrativa, chama atenção para o ato de recordar, característica


primordial da escrita memorialística que, segundo Coutinho (2012, p. 95) “exige o transcurso
do tempo, o distanciamento dos eventos, o esquecimento, a lembrança”, cumprindo
efetivamente sua função de revelar o eu pessoal, o que foi vivido.
Na esteira dessas reflexões é que é examinada a escrita memorialística de docentes
do ciclo de alfabetização, na qual, o passado é tido como matéria prima para o
entendimento de processos históricos, sociais, pessoais e profissionais desses sujeitos, bem
como para melhor compreensão do presente.
Quando se fala em educação, especialmente do segmento da alfabetização,
pressupõe-se que cada escola firme compromissos que garantam a aprendizagem dos
estudantes, pensando num currículo construído na prática diária dos professores. Assim,
cada escola deveria eleger, conforme afirma Murta apud Leal e Guedes-Pinto (2012, p.6),
“(...) um conjunto de intenções educativas e um conjunto de diretrizes pedagógicas que se
articulem para orientar a organização e o desenvolvimento da sua prática educativa.
Referenciais mais amplos- de natureza político-filosófica, epistemológica e didático-
46
Os nomes das professoras, participantes da pesquisa, foram mantidos mediante autorização através de carta
de cessão.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 206
pedagógica”, referenciais estes que sirvam de base para a análise da realidade escolar e
possibilitem, tanto ao corpo docente quanto aos gestores escolares, o planejamento de
intervenções sobre ela.
É com base no reconhecimento da necessidade desses referenciais que se pode falar
da construção de situações favoráveis à aprendizagem em uma perspectiva inclusiva. De
acordo com Leal e Guedes-Pinto (2012), a busca por um currículo inclusivo rompe com os
valores relativos à competitividade, ao individualismo e à busca de vantagens individuais.
Seus princípios supõem a definição de alguns conhecimentos a serem apropriados por todos
os estudantes e o favorecimento de condições de aprendizagem coletivas, respeitando-se as
singularidades dos sujeitos e grupos sociais.
A Educação Básica é um direito que deve ser garantido a todos os brasileiros e,
segundo prevê a Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, “tem
por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável
para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos
posteriores” (Art. 22). Assim, para atender às exigências previstas nas diretrizes, tornou-se
necessário delimitar os diferentes conhecimentos e as capacidades básicas que devem
permear toda ação pedagógica, os chamados “Direitos de aprendizagem”, que definem as
capacidades específicas a serem desenvolvidas pelos estudantes, e que estão organizados
por eixos nas diversas disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia,
Ciência e Artes.
Diante disso, a organização de um currículo inclusivo de alfabetização parte também
dessa definição de “Direitos de Aprendizagem”, enquanto conhecimentos apropriados que
precisam ser garantidos a todos os estudantes até o final do 3º ano do ciclo da alfabetização,
respeitando-se as singularidades e diferenças individuais e dos grupos sociais. Essa busca
pela garantia dos Direitos de Aprendizagem a todos os estudantes é denominada
“perspectiva inclusiva”.
Além do respeito às singularidades dos sujeitos, a perspectiva inclusiva tem como um
de seus princípios a valorização dos conhecimentos prévios dos educandos. Em seu registro
autobiográfico, a professora Cleonice evidencia como as práticas educativas vivenciadas em
sua alfabetização deixaram à margem o princípio citado.

(...) os métodos que nossos professores utilizavam eram ultrapassados, as práticas


autoritária, descontextualizada, um currículo excludente, onde as informações
eram oferecidas para o aluno como verdade absoluta sem dar oportunidade do
educando mostrar o conhecimento prévio sobre o conteúdo, construir e
compartilhar conhecimento, bem como desenvolver suas habilidades. (Cleonice,
Memória de Alfabetização, 2013).

A professora vem em defesa de um trabalho a favor da inclusão de todos no processo


de ensino-aprendizagem, o que requer do professor a ação de mediador da aprendizagem,
permitindo a construção do aluno, sua participação ativa nesse processo.
A mesma professora revela, ainda, que sua prática procura ser diferenciada daquela
que vivenciou, enfatizando a mudança didática decorrente de um novo contexto escolar e
das atividades formativas que lhe conferiram a capacidade de inovar em sala de aula.

(...) estamos inseridos em um contexto diferenciado dos tempos passados e como


consequência, várias são as mudanças que ocorreram no âmbito escolar, entre
tantas podemos destacar nossas posturas em sala de aula, atualmente buscamos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 207
usar mais autoridade e menos autoritarismo, tentamos ouvir e valorizar o
conhecimento prévio do educando, afinal os tempos mudaram e são os processos
formativos que nos colocam a frente das inovações e a nossa função enquanto
educador é assumir com dedicação, compromisso e responsabilidade aquilo que
almejamos alcançar. (Cleonice, Memória de Alfabetização, 2013).

Dessa forma, a professora procura demonstrar consciência acerca dos princípios que
regem sua prática, enfatizando a importância dos processos formativos que vivencia,
atribuindo-lhe maior autonomia no planejamento e realização da ação didática, uma vez que
o professor necessita estar cada vez mais preparado para acompanhar as inúmeras
transformações da sociedade contemporânea, exigindo do professor conhecimentos mais
especializados e abrangentes. Vale ressaltar, ainda, que os princípios apresentados acima,
pela docente, dizem respeito não especificamente ao tipo de atividade planejada, mas às
novas posturas, aos modos de mediação, à capacidade de explicar e dialogar com as
crianças.
Além da perspectiva inclusiva, é importante ressaltar o trabalho de apropriação da
linguagem nos primeiros anos escolares que, segundo Araújo (1998, p. 94) deve “possibilitar
vivências com a leitura e escrita que tenham relevância e significado para a vida da criança,
algo que se torne uma necessidade para ela e que lhe permita refletir sobre sua realidade e
compreendê-la”, atentando, dessa maneira, para a importância de se interrogar sobre os
usos sociais da leitura e da escrita bem como sobre a própria lógica de seu funcionamento.
Conforme afirma a professora do 3º ano do ciclo da alfabetização, Anaildes:

De alguns anos pra cá é consensual entre os educadores a necessidade de formar


crianças capazes de ler e produzir, com qualidade, textos de uso social dentro de
uma diversidade de gêneros linguísticos. Para isso os educadores precisam estar
atentos, pedir ajuda e estudar para compreender como a criança aprende.
(Anaildes, Memória de Alfabetização, 2013).

Neste sentido, a educadora evidencia a necessidade de a escola garantir situações


favoráveis de aproximação entre a cultura escolar e a cultura própria de outras esferas
sociais. Revela diferentes demandas de ensino que devem abranger diversas dimensões:
domínio do Sistema de Escrita Alfabética, a inserção das crianças nas práticas sociais em que
a escrita se faz presente e a ampliação dos usos da oralidade. Tais dimensões se articulam na
defesa da alfabetização na perspectiva do Letramento que, segundo Leal e Guedes-Pinto
(2012, p.16) trata-se de “um processo em que as crianças possam aprender como é o
funcionamento do sistema de escrita (...) de modo articulado e simultâneo às aprendizagens
relativas aos usos sociais da escrita e da oralidade”.
Segundo a professora Anaildes, essa perspectiva de alfabetizar letrando não se
efetivou em suas vivências particulares, acarretando em dificuldades pessoais e profissionais
que ela apresenta até hoje:

Acredito que meu processo de alfabetização deixou muito a desejar. Pra começar
entrei na escola aos 7 anos, idade permitida na época, e o ensino era voltado para
o pronto e acabado, cada um em seu canto, agindo somente como receptores.
Aprendi muita coisa e o que realmente me entristece até hoje é a falta de
comunicação, falar em público é a minha maior dificuldade. (Anaildes, Memória de
Alfabetização, 2013).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 208


De certo modo, fica subtendido, na memória escrita da professora, o sentimento de
passividade diante da aprendizagem, quando ela assume a posição dos estudantes da época
como meros “receptores”. As experiências escolares vivenciadas provavelmente não se
constituíram como espaços de provocação para o uso da oralidade numa diversidade de
situações sócio comunicativas, acarretando implicações no exercício docente da professora
Anaildes.
Em sua Narrativa, a professora Anaildes, situa a falta de formação dos professores do
período de sua alfabetização como o fator primordial para o ensino alheio à perspectiva do
Letramento e do Currículo Inclusivo. Segundo Anaildes, a grande diferença da atualidade é
“a existência de vários projetos e programas que auxiliam os professores nesse tão almejado
processo de alfabetização”, considerando a formação continuada docente como espaço de
reflexão e construção sobre como e o que se deve ensinar às crianças.
Vale ressaltar que, a princípio, a formação para o exercício da docência acontecia
somente antes da atuação profissional, através do curso de Magistério, formação similar, ou
do Curso Superior em Pedagogia. Posteriormente à sua conclusão, acreditava-se que todos
já estariam preparados para atuar na atividade docente por toda a vida. Hoje, essa forma de
pensar foi sendo substituída pela concepção de uma formação ao longo da vida, “formação
continuada”, diante de mudanças decorridas na sociedade nos âmbitos político, econômico
e cultural. De acordo com Ferreira (2012), a formação continuada de professores aparece
dentro dessa nova realidade social, como um caminho para reverter os indicadores de
desempenho dos alunos, como uma das principais vias de acesso à melhoria da qualidade do
ensino, o que implica numa mudança de mentalidade na vida profissional docente.
As professoras Lucineide, de 2º ano do ciclo da alfabetização, e Ana Paula, de classe
multisseriadas, em seus registros memorialísticos, abordam a respeito da importância da
continuidade de seus estudos para o alcance de resultados exitosos em suas turmas de
alfabetização, relatando sobre suas experiências no Grupo de Estudos sobre Educação,
Metodologia de Pesquisa e Ação - GEEMPA, bem como do Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa, PNAIC.

Com o passar do tempo fui adquirindo experiência, fazendo pesquisas em livros,


obtendo informações, facilitando minha forma de ensinar. No ano passado, tive a
chance e o prazer de fazer o Curso do GEEMPA, trazendo novas dramáticas 47 em
forma de ensino. Tive sucesso na aprendizagem dos alunos fazendo o 100% 48.
O curso do PNAIC está sendo fabuloso, pois temos a chance de trocar ideias e
informações para por em prática esses conhecimentos e ajudando na
aprendizagem de cada aluno. (Lucineide, Memória de Alfabetização, 2013)

Depois da formação, comecei a aplicar em minha classe o que havia aprendido, as


novas metodologias e é claro que muita coisa mudou, percebo um grande avanço

47
Na proposta teórico-metodológica apresentada pelo GEEMPA, é percebida uma nova concepção de ensino,
embebida na lógica e na dramática, isto é, numa alfabetização baseada não somente na lógica pura dos
conteúdos vinculados à leitura e escrita, mas com uma contextualização dramática. Dramática refere-se àquilo
que faz sentido (PAIN apud GROSSI, 2010), que produz desejo e gera energias para pensar e agir.
48
100% refere-se à visão geempiana de que não há dificuldades de aprendizagem insuperáveis, de modo que
“Todos podem aprender” (GROSSI, 2010).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 209
nos meus alunos e fico radiante quando realizo a aula entrevista 49 e vejo que meu
trabalho está sendo proveitoso. (Ana Paula, Memória de Alfabetização, 2013)

É importante destacar que a maioria das experiências de alfabetização, descritas nas


memórias dos professores de 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental e também de classes
multisseriadas de alfabetização, remonta ao Tradicionalismo como corrente teórica
prevalente nas práticas docentes da época em que foram alfabetizados, um ensino
geralmente baseado na perspectiva da repetição e memorização, cujo recurso pedagógico
principal era a cartilha, conforme afirma ter sido alfabetizada, a professora de 2º ano
Jucicleide (2013), numa “época em que a escola trabalhava com conceitos bem metódicos e
sistematizados, onde só era possível avançar de lição na cartilha quando íamos bem no
ditado de palavras e na leitura individual da cartilha”.
Para muitos, essa corrente teórica, os métodos e posturas docentes da época
acarretaram em dificuldades pessoais e/ou profissionais ao longo da vida: “Hoje sinto muita
dificuldade em produzir texto, pois percebo que a professora não estava utilizando um bom
método para alfabetização” (Cristiane, Memória de Alfabetização, 2013), enquanto outros
afirmam ter vivido experiências positivas, a exemplo da professora Jucicleide:

O ponto positivo nesse contexto marcante foi o fato de estar na sala da professora
mais requisitada da escola. (...) Chamava-se Maria da Glória. Antes não entendia
como ela conseguia dividir sua atenção e carinho com todas as crianças sem
distinção de cor ou classe social. Hoje compreendo bem! Essa professora era tão
especial por trabalhar com o coração, a afetividade era sua proposta de ensino. (...)
Sempre que essas memórias da minha infância voltam, faço uma reflexão acerca da
postura dessa professora, em especial comparada a outros tantos que passaram
por minha fase escolar. Muitos com certeza, a maioria deixou más recordações, no
entanto também serviram terminantemente para a formação dos conceitos de
aprendizagem que busco. Tais fatos me acompanharam por todo o meu processo
de ensino aprendizagem até hoje e com certeza serve de reflexão e estudos para
que eu possa determinar meu trabalho como professora alfabetizadora. (Jucicleide,
Memória de Alfabetização, 2013)

Dessa maneira, percebe-se que, através do registro memorialístico é possível


apreender percursos alfabetizadores percorridos pelos docentes, percebendo, ainda, como
estas trajetórias e as posturas observadas em seus professores trouxeram implicações
diretas na escolha profissional daqueles sujeitos, na reprodução de práticas e/ou mudança
das mesmas.

Considerações finais

A leitura e análise das memórias de alfabetização das professoras do ciclo de


alfabetização possibilitou visualizar dispositivos autobiográficos e ampliá-los por via do
memorialismo, uma vez que seus registros se estenderam para além do “relato do eu”
(CHIARA, 2001), incluindo também a história particular da sociedade na qual vivenciaram

49
A aula-entrevista é uma atividade de avaliação individual que o professor faz com seus alunos. Constituída de
dez tarefas que possibilitam ao professor perceber a construção do conhecimento de cada um de seus alunos,
identificando os níveis de leitura e escrita em que se encontram.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 210
seus processos alfabetizadores e daquela em que experienciam suas atividades pedagógicas,
hoje.
Segundo Benjamin (1994, p. 197), “a arte de narrar está em vias de extinção”, no
entanto, o exercício da produção narrativa, em Tucano, sobretudo nos programas de
formação docente PNAIC/GEEMPA, tem representado uma tarefa contínua, mediante a
escrita das memórias docentes que se configuram para os educadores na possibilidade de
ampliar a percepção de si enquanto profissionais.
Através dos relatos de si e de suas práticas que são sociais e que, por isso, incluem o
outro, o espaço e as relações estabelecidas com estes, os professores podem visualizar
pontos positivos, negativos e apontar encaminhamentos no tocante às suas ações didáticas.
Nestas memórias, os sujeitos que narram suas histórias de vida e de profissão, fazem uso do
recurso das imagens do “eu” que à luz do passado, podem perceber-se no presente, imagens
a partir das quais se evidenciam suas identidades e singularidades, proporcionando o diálogo
que é estabelecido entre o ser individual, que narra sua vida, e o ser sociocultural que fala de
uma realidade social vivida.
A análise dos registros autobiográficos permitiu perceber como os docentes
“adotam, além da temporalidade e reflexividade, outros aspectos e questões relativas à
subjetividade” (CORDEIRO; SOUZA, 2010, p. 218), configurando, ainda, a “importância de se
ouvir a voz do professor ou compreender o sentido da investigação-formação, centrada na
abordagem experiencial, cujo sujeito aprende a partir da sua própria história.” (p.218). A
proposta de escrita narrativa, portanto, conferiu aos sujeitos entrarem em contato com suas
histórias, lembranças e, ainda, suas vivências e discursos pedagógicos, permitindo-lhes se
reconhecerem como os profissionais que são.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 212


Entre narrações e memórias: a docência como espaço de vida-formação

Fulvia de Aquino Rocha


UNEB
fulviarocha@yahoo.com.br
Sara Menezes Reis de Azevedo
UNEB
saramre@hotmail.com

O presente trabalho apresenta resultados de duas pesquisas empreendidas pelas autoras durante o mestrado
em Educação e Contemporaneidade do Programa de Pós- Graduação em Educação e Contemporaneidade da
Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB). As duas entradas de pesquisa tomaram as histórias de vida
enquanto abordagem teórico-metodológica, por esta possibilitar o desvelamento necessário à elucidação dos
percursos de formação de professores. Assim sendo, o lastro metodológico clarifica a trajetória formativa,
revelam as referências e influências de cada itinerância, a escolha pela docência e como cada professora se
torna o que é. Para tanto, a entrevista narrativa e a escrita do memorial foram utilizados como dispositivos de
formação e autoformação: a primeira foi realizada com uma professora que atua na educação básica em uma
escola municipal de Salvador e o segundo foi escrito por uma professora de uma instituição de ensino superior
privada da cidade de Feira de Santana. O diálogo teórico das pesquisas foi realizado com os trabalhos
consolidados por Josso (2008), Souza (2006), Passegi (2011), Rios (2007), Nóvoa (2010), Nóvoa e Finger (2010),
Ferrarotti (2010), Pineau (2006), Pineau e Le Grand (2012), dentre outros que serão explicitados no decorrer do
texto. As singulares histórias de vida das professoras retratam suas trajetórias e os percursos formativos
experienciados no viver da docência e revelam que a possibilidade de narrar e escrever suas histórias, de
participar do movimento de formação/autoformação proporcionou reflexões e ressignificações para à prática
docente. Bem como, o agregar de outros significados a própria formação e a conscientização de que essa
formação se dá no entrelaçamento de suas vivências nas diversas dimensões que compõe a vida de um sujeito.
Palavras-chave: Histórias de vida; Escritas de si; Formação.

Introdução

O presente trabalho apresenta o diálogo entre duas pesquisas empreendidas pelas


autoras durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB). As duas entradas
de pesquisa, inseridas no movimento investigativo-formativo da pesquisa (auto)biográfica,
tomaram as histórias de vida enquanto abordagem teórico-epistemológica-metodológica,
por esta possibilitar o desvelamento necessário à elucidação dos percursos de formação e os
modos como nos constituímos.
O processo de formação pelas histórias de vida apresenta-se enquanto movimento
de reivindicação, reconhecendo os saberes subjetivos, não formais, e adquiridos nas
experiências e nas relações sociais. Pineau e Le Grand (2012, p. 15) define a história de vida
como “busca e construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais”, que “envolve um
processo de expressão da experiência”.
Experiência essa que, segundo Larrosa (2002), em suas construções sobre a Educação
e suas articulações entre experiência/sentido, é algo raro de se viver, pois, mesmo que
vivamos muitos acontecimentos em nossa trajetória de vida, poucas coisas nos tocam
significativamente. E não nos tocam, por estarmos imersos num movimento de constante
busca por informações, para que saibamos e possamos opinar sobre todas as coisas;
encharcados de saberes advindos da facilidade de acesso as tantas informações; porque nos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 213


excedemos no trabalho, numa rotina atribulada de compromissos que nos impedem de
parar, silenciar e rememorar.
Sendo estes elementos “inimigos mortais da experiência”, realmente nada pode nos
passar, tampouco nos acontecer.
É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao
nos passar, nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação. Se a experiência é o que nos
acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a
experiência é uma paixão. [...] O sujeito da experiência seria algo como um
território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece
afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos. [...] O sujeito da experiência é, sobretudo um espaço onde
têm lugar os acontecimentos. [...] tem algo desse ser fascinante que se expõe
atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e
buscando nele sua oportunidade, sua ocasião (LARROSA, 2002, p. 24-25).

A compreensão de que, estamos imersos em contextos que nos impede de viver a


experiência numa dimensão complexa, é que torna imperativo que vivamos em nosso
percurso, outro movimento que seja de resistência e que nos permita, na dimensão
formativa, viver a experiência em sua plenitude, a partir do momento em que possibilita que
paremos, silenciemos, lembremos e narremos nossa história.
Que sejamos capazes de nos modificar e transformar as outras dimensões de nossas
vidas através do ato de narrar. “Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo
como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo
como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece” (Idem, p. 27). Em busca da
potência em torno desse conhecimento outro, é que, o mergulho nas histórias de vida dos
sujeitos enquanto movimento de formação, se torna premente.
Segundo Delory-Momberger (2011, p.47), “no momento em que os indivíduos têm
cada vez mais dificuldades de encontrar seu lugar na história coletiva”, a corrente de
investigação-ação-formação das histórias de vida se desenvolve. Numa lógica de se repensar
a educação de adultos, se relaciona a processos de auto/hetero/transformação significativos
e emancipadores e remete os sujeitos a si mesmos, tendo em cada narrativa da história de
vida, a própria história de formação de cada sujeito.
“Para além das definições literárias ou disciplinares, a história de vida é, desse modo,
tratada como prática autopoiética, ou seja, aquela que trabalha para produzir por si mesma
sua própria identidade e agir em conformidade com seu propósito” (PINEAU; LE GRAND,
2012, p. 16). Assim, o trabalho com as histórias de vida necessita ser pensado como um
projeto de conhecimento, na interface entre pesquisa e formação e como prática de
formação. E nesse sentido é que as pesquisas aqui apresentadas, com sujeitos professoras,
visam contribuir.

Entre o narrado e o escrito: dispositivos de formação.

Para Maria da Conceição Passeggi (2010), narrar é um ato eminentemente humano. É


próprio da nossa natureza evidenciar percursos e lugares, pessoas e momentos que foram

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 214


significativos no processo formativo, por meio de diferentes formas de narrar (contar,
escrever, dentre outras).
Para textualizar a vida: narrada e escrita, e suas implicações sobre a docência de duas
professoras baianas, admitimos que a reflexividade autobiográfica é "mediadora da
consciência histórica das aprendizagens e promotora de inflexões enriquecedoras para o
sujeito no mundo da vida" (PASSEGGI, 2010, p.126). Sendo o trabalho com as histórias de
vida capaz de propiciar um processo de pesquisa-ação-formação, como vimos acentuando, a
autora lembra que para que esse movimento se torne visível aos olhos do seu autor, ele
necessita "da mediação de instrumentos semióticos, para tomar corpo e se objetivar" (Idem,
p. 123).
Portanto, para mediar esse processo, nos utilizamos de dois dispositivos de formação
e autoformação: a entrevista narrativa e a escrita do memorial. A primeira foi realizada com
uma professora que atua na educação básica em uma escola municipal de Salvador, no
âmbito da pesquisa "Histórias de Vida de Professoras Alfabetizadoras: espaços de vida-
formação" (ROCHA, 2013). E o segundo foi escrito por uma professora de uma instituição de
ensino superior privada da cidade de Feira de Santana, para fins da pesquisa "E assim nos
fizemos leitoras: histórias de vida e de leitora de estudantes do PPGEduc entre 2005 e 2010"
(REIS, 2014).
A narrativa é uma maneira de produzir conhecimento individual e coletivo;
provocar/promover a reflexão do sujeito sobre seus próprios percursos, experiências, o que
gera a conscientização sobre seu próprio ser e fazer. Dessa forma, as entrevistas narrativas
(JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002) individuais, “considerada uma forma de entrevista não
estruturada”, proporciona aos sujeitos, sem a interrupção imediata do
pesquisador/entrevistador, um movimento de livre expressão dos seus sentimentos e de sua
história.
Quem narra constrói o enredo de sua história, com seus tempos, personagens,
escolhe o que deseja revelar e o que deseja ocultar sobre suas itinerâncias de vida-
formação-profissão, cronologicamente ou não. A entrevista provoca o sujeito a revelar
sentimentos, concepções, percursos formativos e suas projeções, também através dos
gestos, olhares e silêncios.
A técnica exige do pesquisador escuta atenta durante a narrativa central, para que ao
perceber o final da narrativa, faça questionamentos pertinentes em busca do
aprofundamento das questões de pesquisa, “este é o momento em que a escuta atenta do
entrevistador produz seus frutos” (2002, p. 99).
Vale ainda a ressalva de que a realidade da narrativa se associa ao que é real para
quem narra; propõem representações/interpretações particulares do mundo; não estão
abertas para serem julgadas como verdadeiras ou falsas e estão inseridas no contexto sócio-
histórico (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002).
A utilização dos Memoriais como dispositivo formativo se inscreve em uma
perspectiva de escrita pautada no ato de auto-bio-grafar (escrever sobre a própria vida),
configurando-se como um elemento que possibilita “o acesso à vida e à docência através da
voz e da letra de quem é professor (a)” (PASSEGGI, 2010, p.1). Por meio do memorial, o
sujeito-autor “[...] narra sua história de vida intelectual e profissional, analisa o que foi
significativo para a sua formação [...] sendo também, um modo de cada autor modificar-se”
(PASSEGGI e CAMARA, 2008, p.15).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 215


Segundo Passegi (2011), o memorial pode ser de dois tipos: acadêmico e de
formação. O acadêmico é escrito com vistas ao ingresso ou progressão funcional em
instituições de ensino superior. O memorial de formação é produzido durante a formação
inicial ou continuada, sendo geralmente acompanhado por um orientador. Neles, o autor
assume, simultaneamente, os papéis de narrador e de candidato e se inscreve em um
movimento de tecer uma imagem pública de si.
Nesse tipo de escrita autobiográfica, as trajetórias profissionais e de formação são
analisadas pelos autores, com o objetivo de inserir suas histórias na da instituição que serve
de cenário para a concepção da escrita. Assim o memorial configura-se como "um espaço-
tempo de tensões contraditórias: o da injunção de falar de si, e o de sedução de se inventar
pela narrativa" (PASSEGGI, 2011, p.20).
Os excertos que aparecerão no próximo espaço desse texto são de um memorial
acadêmico, escrito para fins de ingresso no doutorado e de uma entrevista narrativa.
Passamos a expor, assim, impressões, memórias e singularidades que emergiram do
entrecruzamento dos dois dispositivos e que revelam parte das Histórias de Vida das
educadoras: Lícia e Maria Flor50.

Das histórias cruzadas: experiências comuns e singulares

A leitura de autores como Pineau (2006), Nóvoa (2010), Nóvoa e Finger (2010)
Passeggi (2008; 2011), Souza (2006), dentre outros, serviu como fonte inspiradora para
revelar os perfis, trajetos e itinerâncias formativas das colaboradoras que conosco
partilharam suas singulares memórias, registradas em relatos (oral e escrito) que mesclaram
elementos diversos.
As professoras tem entre 34 e 50 anos. Lícia é solteira e não tem filhos; é mestre e
doutoranda em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), com oito anos de experiência no ensino superior (privado). Maria Flor é casada, mãe
de um filho; formada em pedagogia, fez o curso de especialização Arte em Educação e atua
há 10 anos na Educação Básica.
As acepções sobre o ser/constituir-se/reconhecer-se enquanto professoras estão, nos
relatos partilhados, ligados às memórias desveladas desde os anos iniciais da infância e as
trajetórias retrospectivas da trilha docente. Assim,

Uma autobiografia busca sempre “manter coesas” as representações de uma


prática cultural eminentemente polimorfa, visto que se propõe nela escrever o que
constitui a unidade de uma vida, a história de uma personalidade. Mas, nem por
isso, ela deixa de ter um significado social. (POMPOUGNAC, 1997, p. 49)

E essa prática cultural eminentemente polimorfa, parafraseando Pompougnac (1997)


é encarnada em gestos, hábitos, tempos e espaços. Compreendendo que os caminhos da
profissão docente não são apenas diversos, mas também podem ser contraditórios,
buscamos nas histórias narrada e escrita compreender: Que marcas da docência são
percebidas nas vidas das professoras? E qual a implicação dessas marcas nos seus percursos
(formativos e de atuação profissional)?

50
Pseudônimos escolhidos pelas professoras que colaboraram com as pesquisas. A utilização de pseudônimos
respeita o que preconiza o Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, por meio da portaria 196/96,
que delimita os marcos dos trabalhos realizados com pessoas.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 216
Na tentativa de compreender esses elementos para com eles estabelecer diálogos,
leituras e releituras foram realizadas, ao passo que ao entrecruzarmos as informações do
memorial e da entrevista narrativa, emergiram algumas unidades de análise: o lugar que a
família ocupa em suas trajetórias; considerações sobre a escola, a universidade e a forte presença de
outro espaço formativo; e a escolha, os caminhos e o compromisso com a docência. Passamos a
explicitar considerações em torno dessas unidades.

O lugar da família

Para Lícia, as experiências vivenciadas no contexto familiar, lugar que possibilitou


momentos de dor e superação, fornecem as primeiras pistas/marcas sobre sua formação
docente. Segundo ela, seus caminhos trilhados dentro do lar, foram mais significativos que
os vivenciados na escola. Rejeitada pelos pais biológicos, ela foi acolhida como filha na casa
de parentes, cuja preocupação com os estudos ocupava boa parte do tempo e das
conversações. A lembrança dos genitores é acompanhada pela reflexão de que “pais de
verdade são os que criam e se dedicam a assumir responsabilidades em prol de outro ser”, o
que a faz afirmar que os laços se constroem na convivência, no compartilhamento de
valores.

Tal desprendimento por parte de meus pais biológicos fez com que aos
dezesseis dias de nascida fosse levada para viver no interior e ser criada por
outra família. As marcas da vivencia em família estão para mim na
compreensão de que os verdadeiros laços não são necessariamente os da
consanguinidade, mas os da afinidade e comunhão de ideias, na casa
espaçosa e cheia de gente, nos almoços de domingo, na comemoração dos
meus aniversários que sempre reuniam boa parte da família e amigos (Lícia
– Memorial, 2006).

Na vida interiorana que levava junto aos familiares que a acolheram, a oralidade
teve um papel fundante nas primeiras impressões da professora. “As rodas de conversa no
fim da tarde, as brincadeiras na rua com meus pares, as histórias narradas pelos mais velhos
e canções aprendidas e cantadas” (Lícia – Memorial, 2006) são descritas como as primeiras
aproximações com o universo letrado, vivenciadas na infância.
Por conta de um tratamento médico, teve que afastar-se da escola logo no primeiro
ano de estudos, sendo este o único ambiente que, a priori, fornecia os suportes textuais
mais conhecidos por ela (os livros didáticos). As leituras dos livros de receita da mãe servem
como “distração”. Essa é uma leitura que acontece nos cantos da casa e, principalmente, na
cozinha. A rememoração da casa é um movimento que cruza reminiscências infanto-juvenis
e do período da graduação.
Na trajetória familiar de Maria Flor a figura que se destaca é a materna, marcada por
embates, distanciamentos e presença definidora na continuidade de seus estudos. A mãe é
lembrada tanto como aquela que a acompanhou até a alfabetização, no sentido de ser quem
a levava para escola, quanto como aquela que não a acompanhava na trajetória escolar, no
sentido de cobrar um bom desempenho na escola e de orientar nas necessidades. Sentiu
essa ausência durante o percurso escolar.
A presença e o incentivo materno surgem como peça fundamental quando Maria
Flor, já casada, passa no vestibular e sua ajuda contribui para que ela conclua os estudos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 217
Eu sou a mais velha e ainda tinha que tomar conta do meu irmão, eu que
fazia as tarefas com ele, cuidava dele porque minha mãe tinha que sair para
trabalhar. No meu percurso solitário fui me dedicando, me esforçando, fiz o
ginásio na escola pública, não sei se minha mãe olhava pra mim e achava
que eu não precisava, porque eu sempre fui responsável. Então, depois do
meu 2º grau, foi na época que meu pai faleceu e eu tive que trabalhar, aí eu
parei de estudar. [...] E foi o momento (quando passa no vestibular) em
que, a ausência de minha mãe sentida durante toda a minha adolescência,
minha pré-adolescência, ela esteve muito presente comigo nesse momento
da faculdade. (Excerto da entrevista narrativa de Maria Flor, 2012).

Diante das adversidades, é possível perceber nos trechos narrados, que Maria Flor
venceu os possíveis determinismos, como a falta de acompanhamento dos pais na sua vida
escolar. Ela poderia ter se “desvirtuado”, e faz esse destaque em várias passagens de sua
narrativa, trazendo a forte influência espiritual para que isso não acontecesse. A doença do
pai fez com que a professora passasse por um intenso e precoce movimento de
amadurecimento.
É relevante destacar o pensamento do pesquisador Henri Bergson (1941) que, em
seu livro Matéria e Memória, denomina o trabalho da memória como um trabalho do
espírito: “[...] Às vezes, ela implicará um trabalho do espírito que buscará no passado, para
dirigi-las sobre o presente, as representações mais capazes de serem inseridas na situação
atual” (BERGSON, 1941, p.82). Ainda sobre memória, Mário Osório Marques lembra que não
é ela "[...] uma simples armazenagem, mas estruturação e organicidade. Não só guarda e
evoca, mas seleciona e prioriza o que guardar e evocar" (MARQUES, 1999, p.10).
Lícia e Maria Flor buscaram nas reminiscências, tempos, momentos e pessoas que
fizeram parte dessa trajetória. Isso as levou também a relatar a presença de outros espaços
que foram igualmente formativos e marcantes em seus caminhos rumo à docência.

A escola; O espaço para além dela e a Universidade: espaços de (trans)formação

As discussões em torno da fertilidade da utilização das Histórias de Vida como


metodologia de formação impulsiona a reflexão sobre os lugares de aprendizagem da
docência, uma vez que o pressuposto é de que a aprendizagem docente se dá à escala da
vida, o que obviamente inclui os espaços formais e os tempos sequenciados de formação,
mas certamente transcende-os.
Nessa escala, os caminhos e descaminhos trilhados bem como as trilhas futuras se
constituem em peças que podem se articular no tabuleiro da vida, em que aprender é,
sobretudo, como afirma Josso (2004), aprender consigo a aprender, e para Pineau (2006),
aprender é viver e viver é aprender.
Isso gera a necessidade de compreender que as professoras buscaram superar as
dificuldades, e nessa busca outro espaço formativo surge como fundamental: o espaço
religioso.
Interessante ressaltar na escrita de Lícia que o espaço “escola” é demarcado como
lugar do não prazer; onde se cumpre obrigatoriedades e onde há presenta de conteúdos
sem significado.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 218


Apesar dos diversos amigos/afeições conquistados no espaço escolar, não
tinha a escola como um ambiente prazeroso, sentia-me obrigada a dar
conta de atividades, conteúdos que não apresentavam sentido para mim.
Na fase da adolescência, especialmente aos dezesseis anos, despertei para
a importância do estudo. Entretanto, o meu reconhecimento e valor não
surgiram na própria instituição escolar, mas em um ambiente religioso.[...]
A minha adolescência foi marcada pela contestação, pela curiosidade e pela
transgressão do que era imposto pela escola para dar lugar as preferências
e os gostos que iam sendo revelados na interação com professores, amigos
e colegas, principalmente, fora da escola (Lícia – Memorial, 2006).

É no seio de um grupo religioso que ela tem despertada a compreensão acerca da


importância dos estudos, o que amplia seus conhecimentos, permite vivenciar um processo
de amadurecimento e contribui para que ela mude de postura e atinja a aprovação no
vestibular, cuja opção é feita pela Pedagogia. O grupo inspirava leituras diversas para refletir
sobre si e sobre o mundo; a professora diz que depois daí, aos dezesseis anos, atenta para a
importância do ato de ler e faz desse um ato de aceitação perante os outros e de construção
de posicionamentos políticos: “[...] Não era interessante só frequentar, mas ler, se posicionar
e interagir com o grupo” (Lícia – Memorial, 2006).
O espaço da Universidade na escrita da professora é o que possibilita a ampliação de
visão, de horizontes, de possibilidades. Representação de Liberdade, autonomia, vínculos,
formação intelectual, ampliação dos horizontes culturais, aprendizados políticos,
aprendizados para além das salas de aula (pesquisa), o que a levou a ampliar os estudos em
nível de mestrado.
Ao mesmo tempo em que considera vaga suas lembranças acerca da escola até o
ensino fundamental, Maria Flor não deixa de ressaltar a importância de sua professora de
alfabetização, pela afetividade a ela dirigida, bem como a figura de uma professora de
geografia do ginásio, por ter validado o seu esforço e compromisso. A turma polêmica da
qual fez parte na faculdade, deixou para Maria Flor a certeza de que na universidade
aprendeu, sobretudo, a se defender, a se expressar e vencer um pouco sua timidez,
ressaltando a contribuição da Pedagogia nesse processo.
Tais recordações acentuam o que nos diz Nóvoa (2010, p.55): “a maneira como a
pessoa define as situações com que se viu confrontada desempenha um papel primordial na
explicação do que se passou”. Assim, os relacionamentos estabelecidos com os professores
no processo inicial de escolarização, bem como aqueles com os quais se aprende o ofício
docente, revelam as influências que constituem o ser profissional e as opções feitas em
torno dessa constituição.
Na história de Maria Flor o grupo de estudos de base espiritualista é o espaço que lhe
dá uma direção; permite enxergar a Educação em sua completude e a leva ao conhecimento
de si.

Depois de casada e com filhos resolvi retomar meus estudos. [...] Até então
eu fazia vestibular, mas fazia assim, sem nenhum ideal, aí surgiu esse grupo
de estudo e apareceu Jair, que foi esse grande mentor na minha vida, falou
assim “faz pedagogia”, isso porque tinha todo um trabalho metodológico
no grupo, eu participava de seminários ligados à educação, a educação
verdadeira e o homem integral, onde o ser humano começa a se permitir
ter consciência, autoconfiança, autoestima e foi por aí que me criei, pela
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 219
pedagogia e foi aí que descobri que é a pedagogia fazia muito significado na
minha vida. [...] Foi aí que comecei a entender a verdadeira e genuína
importância da Educação na vida individual, social, ou seja, educação como
um todo (Excerto da entrevista narrativa de Maria Flor, 2012).

Esses outros espaços formativos configuraram-se como lócus de amadurecimento e


certificação do caminho que trilhariam as professoras: a docência. A partir da convivência
com esses grupos, ambas as colaboradoras certificam-se que a profissão professora seria
realmente a opção escolhida. Isso as implica e provoca, cotidianamente, a serem mais
comprometidas com essa escolha.

A escolha, os caminhos e o compromisso com a docência

Segundo Pineau (2006), a formação docente se dá por três modos diferentes, porém
interdependentes. Para este autor, o professor forma-se a si próprio, através de uma
reflexão sobre os seus percursos pessoais e profissionais (autoformação), forma-se na
relação com os outros, numa aprendizagem conjunta que faz apelo à consciência, aos
sentimentos e às emoções (heteroformação) e forma-se através das coisas (saberes,
técnicas, culturas, artes, tecnologias) e da sua compreensão crítica (eco-formação).
Para Lícia, a docência foi um caminho de encontro consigo mesma, ressignificando a
sua identidade pessoal e profissional. Assim, com leituras que proporcionaram uma visão
mais politizada do contexto em que estava inserida, dentro do grupo religioso frequentado,
ela ingressa na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) no Curso de Pedagogia. Foi
preciso deslocar-se da casa dos pais, em Alagoinhas, para a cidade de Feira de Santana para
cursar a graduação.
Os estudos, as discussões e reflexões incessantes sobre a vida e a formação na
universidade marcaram a construção da sua identidade profissional e da prática docente:
A leitura proporcionou-lhe o movimento de caminhar para si, descobrindo-se nos
percursos da docência. A pesquisadora Michele Petit (2009, p. 112) constata que, a
revisitação das nossas histórias de vida e marcas da docência também podem ser o ponto de
partida para a reconstrução da identidade dos sujeitos em diferentes momentos: “Do
nascimento à velhice, estamos sempre em busca de ecos do que vivemos de forma obscura,
confusa, e que às vezes se revela, se explicita de forma luminosa e se transforma, graças a
uma história, um fragmento, ou uma simples frase”.
Nesta busca dos ecos vividos nas memórias das professoras emerge um aspecto
importante: o comprometimento que possuem com a escolha que fizeram. O compromisso
com a docência é evidenciado em vários momentos por elas, narrados e escritos. Maria Flor
relata que possui um "profundo respeito" pelos educandos, considerando suas histórias e
saberes advindos de outros espaços formativos, que não os da escola, sempre politizando e
refletindo sobre sua prática pedagógica. Assim, se descreve como uma educadora que:

[...] a cada dia descobre, busca métodos para trabalhar, sendo inspirada por
meus alunos, porque apesar da contextualização de vida deles, são crianças
que tem potencial, pena que não são explorados de forma significativa. Sou
uma educadora, como também sou educanda porque eu aprendo muito
com meus educandos e busco a cada dia melhorar não só como
profissional, mas como ser humano porque isso passa, essas crianças são

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 220


muito perceptivas, elas sentem, os alunos tem muito a cara da professora.
Então, o trabalho de educação não é só ensinar e aprender tem muita coisa
por trás disso. (Excerto da entrevista narrativa de Maria Flor, 2012).

Lícia afirma que a partir do exercício profissional ela compreende que a docência
configura-se como uma atividade imprevista, por ser desenvolvida entre seres humanos,
mas que não dispensa planejamento, flexibilidade, fundamentação teórica e respeito com os
alunos, sujeitos cujo conhecimento será mediado e não direcionado pelo docente que assim
se compromete.
A verdade é que a partir do exercício profissional vamos
compreendendo que a docência configura-se como uma atividade
imprevista, por ser desenvolvidas entre seres humanos, mas que
requer planejamento, flexibilidade, fundamentação teórica explicita e
respeito ao sujeito ao qual iremos mediar o conhecimento (Lícia –
Memorial, 2006).

O que podemos apreender ao revisitar as narrativas das professoras é que não se


pode prescindir da ideia de que o sujeito que aprende está implicado em seus processos de
aprender, de “que ele existe na sua humanidade e complexidade, e, ainda, de que a
aprendizagem se dá em uma escala de vida” (RIBEIRO e SOUZA, 2011, p. 134). Nesse
movimento de caminhar para si encontramos o que Dominicé (2010, p.89) ressalta: “[...] as
relações familiares influenciam de forma importante as opções tomadas no curso escolar ou
a construção da escolha da profissão”, o que valida a importância de darmos espaço para
que as influências reveladas nas narrativas sejam evidenciadas enquanto parte do processo
de formação e autonomização dos sujeitos.

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos...

Essa é uma frase que compõe parte da escrita de Guimarães Rosa em “Grande Sertão
Veredas (1986)”, com a qual Lícia finaliza a escrita de seu memorial. As singulares histórias
de vida das professoras retratam suas trajetórias e os percursos formativos experienciados
no viver da docência, e revelam que a possibilidade de narrar e escrever suas histórias, de
participar do movimento de formação/autoformação proporcionou reflexões e
ressignificações para à prática docente. Bem como, o agregar de outros significados a
própria formação e a conscientização de que essa formação se dá no entrelaçamento de
suas vivências nas diversas dimensões que compõe a vida de um sujeito.
Entre o tecer das narrativas, as referências e influências que tiveram em cada
momento de sua itinerância formativa desvelam tanto o processo de escolha pela docência,
quanto como cada professora se torna o que é, conforme nos diz Nóvoa (1992). Ambas
reconhecem que o movimento de narrar/escrever potencializa a reflexão e a (re)invenção de
si, como diria Guimaraes Rosa: “De cada vivimento real que eu tive, de alegria ou pesar, cada
vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa”(1986, p.82).
As professoras demonstraram tamanha capacidade de resiliência, de sobreviver às
situações adversas, ao passo que criaram alternativas para controlar os desafios e responder
às dificuldades, atitude comum a quem se propõe viver a docência no contexto brasileiro.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 221


Suas recordações-referência (JOSSO, 2004) contam o que aprenderam
experiencialmente, nas circunstâncias da vida. Sendo assim, a história de vida possibilita
aqueles que desse movimento participa, sujeitos e também nós pesquisadoras, tomar
consciência dos diferentes registros que atravessam a formação, que orientam e operam
escolhas; reinventam o vivido e recupera a intensidade das experiências.
Reler as nossas memórias, a partir da revisitação das nossas histórias de vida, e
encontrar nelas marcas docentes, nos permite vivenciar e rememorar nosso próprio
percurso formativo. Isso nos implica e provoca, na medida em que percebemos sua
influência em nossa prática docente cotidiana.
Portanto, entre narrações e memórias, a docência se desvela como espaço de vida-
formação. Espaço que promove associações geradoras de aprendizados individuais e
coletivos, singulares e plurais, somente possível no curso real das vidas.

Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória. 1941. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CHARTIER, Roger (Org.). A história cultural – entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Editora Bertrand Brasil S. A., 1990.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Os desafios da pesquisa biográfica em educação. In:
SOUZA, Elizeu Clementino (org.). Memória, (auto)biografia e diversidade: questões de
método e trabalho docente. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 43-58.
DOMINICÉ, Pierre. O que a vida lhes ensinou. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (org.). O método
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 223


A formação político-pedagógica dos Monitores das Escolas Famílias Agrícolas do Médio
Jequitinhonha-Minas Gerais

Gilmar Vieira Freitas


UFRB
gilvifreitas@hotmail.com

O trabalho em questão apresenta dados parciais de uma pesquisa em desenvolvimento desde março de 2013
no curso de Mestrado Profissional em Educação do Campo do Centro de Formação de Professores (CFP) da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Campus Amargosa, com vista a construir minha
dissertação. Na pesquisa busco investigar os saberes e o processo formativo dos Monitores/educadores das
Escolas Famílias Agrícola (EFAs) do Médio Jequitinhonha, estado de Minas Gerais, tendo em vista a escassez de
estudos sobre estes profissionais no âmbito das pesquisas sobre formação de professores no Brasil, bem como
a complexidade do trabalho docente no contexto das EFA´s. Especificamente, objetivo nesta comunicação
apresentar algumas discussões e reflexões sobre o percurso teórico-metodológico da pesquisa, que se
desenvolve a partir de uma abordagem qualitativa e emprega o método (auto)biográfico, apoiando-se nas
contribuições de autores como Antônio Nóvoa (2007), Antônio Nóvoa e Matthias Finger (2010), Carlos Marcelo
García (1999), Elizeu Clementino de Souza (2007; 2008), dentre outros.
Palavras-chave: Educação do Campo; Formação de educadores; Escola Família Agrícola; Pedagogia da
Alternância; Monitor.

Introdução

A Educação do Campo emerge como processo de luta e conquistas para os povos do


campo, na perspectiva de uma educação que atenda às suas necessidades e expectativas de
uma melhor qualidade de vida. O movimento da Educação do Campo contrapõe-se ao
histórico abandono do Estado brasileiro em relação à educação dos povos do campo e,
também, a perspectiva conservadora que marcou a Educação Rural, que se caracterizou pela
oferta de uma escolarização inconstante, precária e urbanocêntrica que pretendia
incorporar os camponeses como forças produtivas do capitalismo em expansão no campo.
Embora as iniciativas da Educação do Campo tenham se concentrado nas últimas
duas décadas, quando se multiplicaram experiências alternativas tocadas pelos Movimentos
Sociais do Campo para superar o abandono do Estado e, por outro lado, a ação mais
coordenada dos movimentos sociais do campo, fizeram exigir políticas públicas específicas
para superar o quadro de exclusão educacional que marca a população do campo, podemos
encontrar a gênese destas iniciativas em décadas anteriores.
É o caso das Escolas Famílias Agrícolas que começaram a ser criadas no Brasil em
1969, expandindo-se nas décadas seguintes. Até 2009, existiam no Brasil 263 Centros
Familiares de Formação por Alternância – CEFFAS, novos estudos estão sendo feitos para
atualizar este número. Estas escolas se configuram como uma experiência pedagógica
exitosa, pois tem atendido filhos e filhas de pequenos agricultores e trabalhadores rurais,
oferecendo-lhes uma formação articulada ao desenvolvimento do campo em uma
perspectiva emancipatória.
Entretanto, as EFA’s têm enfrentado uma série de desafios, entre os quais podemos
citar o seu financiamento, a permanência e formação do quadro de educadores das EFAs,
que são designados de Monitores.
Segundo Araújo (2010), a formação dos educadores que atuam nas escolas do campo
ainda se encontra num contexto em que “Os educadores do campo, em sua grande maioria,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 224


enfrentam sobrecarga de trabalho, alta rotatividade [...], dificuldade de acesso a
determinadas comunidades, salários inferiores, baixa qualificação profissional, revelando a
inexistência de políticas públicas voltadas para os educadores [...]” (ARAÚJO, 2010, p. 132).
Há uma problemática extensa na realidade deste educador, em meio a qual se situa a sua
formação.
Neste cenário, este texto problematiza sobre a formação do educador desta escola
que se pretende ser diferenciada. Se a escola é diferenciada, assim também o educador
dever ser? Propomos então uma discussão deste no campo da sua preparação, da sua
formação para que dê conta de atuar e ao mesmo tempo potencializar o processo,
respeitando as especificidades do campo e ajudando os sujeitos em formação a se
descobrirem e valorizarem suas raízes.
De forma mais específica, o nosso alvo principal é discutir a formação do educador da
Escola Família Agrícola (EFA) do Médio Jequitinhonha, no estado de Minas Gerais, Brasil,
trazendo resultados parciais de nosso projeto de trabalho final do curso de Mestrado
Profissional em Educação do Campo, que vem sendo realizada na UFRB. Nosso trabalho
pretende uma aproximação com o método autobiográfico, portanto será um dos nossos
objetivos dialogar com esta perspectiva com base em autores de destaque nesta temática.
Nosso artigo está estruturado em três partes: primeiro traremos discussões sobre o
campo da formação de professores (incluindo no campo), abordando a perspectiva
autobiográfica; depois trataremos da experiência das Escolas Famílias Agrícolas com ênfase
no trabalho do monitor e por fim, nossas reflexões tendo como base a pesquisa de mestrado
em andamento.

O campo da formação de professores: desafios no contexto da educação do campo e a


perspectiva da autobiografia

A formação docente, seja inicial ou continuada, tem se constituído em elemento de


grande preocupação no contexto das políticas e da produção acadêmica na atualidade
(GATTI, 2009). A importância atribuída ao educador está inclusive respaldada na
Constituição Federal da República Federativa do Brasil (promulgada em 1988), que em seu
Artigo 206, item V, estabelece a “valorização dos profissionais da educação escolar,
garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso
público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 53, de 2006)”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), considerada a lei
maior da educação nacional institui no seu Título VI, Arts. 61 a 67, a formação docente como
elemento importante para o exercício do magistério, configurando-o, inclusive como um
direito dos professores. Araújo (2010, p. 132), ao analisar o que a LDB propõe em termos de
formação docente no marco legal da educação brasileira afirma que para a LDB, a formação
de professores, levando em consideração as etapas de ensino, modalidades e
especificidades, baseia-se em dois fundamentos: “I - a associação entre teorias e práticas,
inclusive mediante a capacitação em serviço; II - aproveitamento da formação e experiências
anteriores em instituições de ensino e outras atividades” (BRASIL, 1996).
É importante salientar que mais que um direito legal, a formação docente é uma
necessidade que de uma forma ou de outra se manifesta no cotidiano da escola, nas
atividades pedagógicas e administrativas, no planejamento, condução e avaliação das

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 225


temáticas trabalhadas nas aulas, na relação com o estudante, sua família e comunidade,
enfim, para intervir na realidade complexa que é ensinar e aprender. Neste sentido,
entendemos que a preparação prévia e durante o processo é imprescindível para que tal
projeto educativo cumpra com seus objetivos.
Para Gimonet (2007, p. 150), a Formação Pedagógica Inicial constitui uma obrigação
do educador que começa seu trabalho. Já a formação continuada dará o direcionamento
para “ampliar o campo do conhecimento e das competências” já adquiridas. Dessa forma,
percebemos a formação do educador aquela que acompanha o mesmo na entrada e,
posteriormente, na caminhada profissional, juntando a prática à sua teorização.
Garcia (2005, p. 26) define a formação de professores como um campo “de
conhecimentos, investigação e de propostas teóricas e práticas, no âmbito da Didáctica e da
Organização Escolar”.
Ao tratar da formação dos professores, seja inicial ou continuada, é importante trazer
outras preocupações que acabam influenciando as partes. Há uma realidade de desencanto
em relação ao trabalho docente. Lapo e Bueno em estudo sobre este tema discutem os
conflitos que cercam esta realidade na caminhada profissional dos professores, o que muitas
das vezes contribui para a sua evasão desta profissão. Seus estudos trazem constatações de
motivações para a desistência da profissão docente, tais como: condições inadequadas de
trabalho; baixos salários; não permanência regular dos docentes nas escolas (rotatividade);
regulação excessiva do professor (burocracia); recursos materiais insuficientes; apoio
técnico-pedagógico insatisfatório; tempo insuficiente para formação (LAPO e BUENO, 2003).
Lelis (2012) também aponta problemáticas no que se refere à prática docente e
indica ainda “a sobrecarga de trabalho, o esgotamento crescente que vem acometendo os
professores e as dificuldades que enfrentam de atualização profissional”.
Em artigo sobre os dez anos de pesquisas sobre a formação de professores51, Marli
André trata da importância desta temática como destaque na área educacional.

Nos últimos cinco anos, periódicos de reconhecida importância para a área


apresentaram dossiês ou números temáticos que focalizam o tema da
formação docente. Nos principais encontros científicos da área, o número
de trabalhos sobre essa temática cresce a cada ano. Nos discursos políticos
e na mídia, o tema também vem sendo recorrentemente mencionado
(2006, p. 605).

Por outro lado a autora questiona tamanho interesse pela formação dos professores:
“quais aspectos tem sido privilegiados nos estudos sobre formação de professores? Quais os
temas emergentes e quais os silenciados? Que metodologias vêm sendo utilizadas nesses
estudos? Que resultados vêm sendo apontados nos trabalhos?”52 (ANDRÉ, 2006, p. 605).
Tardif (2012, p. 240-242) propõe mudanças substantivas na formação de professores
tendo como base as atitudes de pesquisa já apontadas anteriormente. Primeiro, é preciso
admitir que os professores são sujeitos portadores e construtores de conhecimentos e estes
deveriam ser reconhecidos e ouvidos como direito sobre sua própria formação, seja nas
Instituições de Ensino Superior (IES) ou não. Segundo, a formação docente deveria se basear

51O artigo Dez anos de pesquisas sobre formação de professores de André (2006) objetivou comparar dados
da situação de 1992 com a de 2002, averiguando os acontecimentos nesse espaço de tempo.
52 Para aprofundar nas questões colocadas, favor consultar André (2006).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 226


nos conhecimentos dos professores, tendo em vista a sua especificidade. O currículo da
formação dos professores é na sua maioria de conteúdos disciplinares e não trazem os
saberes relacionados à profissão, ao trabalho docente em si. Há uma distância entre a teoria
e a prática da formação e as condições de trabalho dos professores.

Na formação de professores ensinam-se teorias sociológicas [...],


psicológicas, didáticas, filosóficas, históricas, pedagógicas, etc., que foram
concebidas, [...] sem nenhum tipo de relação com o ensino nem com as
realidades cotidianas do ofício do professor. Além do mais, essas teorias
são muitas vezes pregadas por professores que nunca colocaram os pés
numa escola ou, o que ainda é pior, que não demonstram interesse pelas
realidades escolares e pedagógicas [...]. Assim, é normal que as teorias e
aqueles que a professam não tenham, para os futuros professores e para os
professores de profissão, nenhuma eficácia nem valor simbólico e prático
(TARDIF, 2012, p. 241).

Em terceiro, de acordo com Tardif, o ensino atual tem sua organização na lógica
disciplinar, ou seja, de forma fragmentada onde os estudantes recebem aulas que sequer
tem qualquer relação entre si. Para o autor, a proposta não é excluir ou esvaziar a “lógica
disciplinar dos programas de formação para o ensino, mas pelo menos abrir um espaço
maior para a lógica de formação profissional que reconheça os alunos como sujeitos do
conhecimento [...]” Tardif (2012, p. 242).
Uma outra metodologia desponta no cenário mundial e nacional de formação de
professores, profissão docente e pesquisa: as histórias de vida e autobiografias. Em análise
do texto de Bueno et al (2006), onde pretendeu revisar os trabalhos educacionais que
usaram estes temas como “como metodologia de investigação científica no Brasil”, no
período de 1985 a 2003, podemos perceber o avanço desta metodologia, principalmente
nos anos 90, ganhando “visível impulso no Brasil nos últimos quinze anos” (p. 385-387).
Afirma o autor português Nóvoa, referência na pesquisa destas abordagens, que “os
métodos biográficos [...] e as biografias educativas assumem, desde o final dos anos 70, uma
importância crescente no universo educacional” (p. 18).
Segundo Nóvoa, o uso “das abordagens (auto) biográficas é fruto da insatisfação das
ciências sociais em relação ao tipo de saber produzido e da necessidade de renovação dos
modos de conhecimento científico”, “nasceu no universo pedagógico, numa amálgama de
vontades de produzir um outro tipo de conhecimento, mais próximo das realidades
educativas e do quotidiano dos professores”. Este movimento tem como fato marcante o
livro publicado por Ada Abraham em 1984, intitulado O professor é uma pessoa. A partir daí,
surgiram muitos estudos sobre “a vida dos professores, as carreiras e os percursos
profissionais, as biografias e autobiografias docentes ou o desenvolvimento pessoal dos
professores”, recolocando os professores de forma central nos debates e pesquisas
educacionais (NÓVOA, 2007, p. 15-19).
É importante questionar: “Como é que cada um se tornou no professor que é hoje? E
por quê? De que forma a acção pedagógica é influenciada pelas características pessoais e
pelo percurso de vida profissional de cada professor?” Para responder a estas perguntas,
Nóvoa (2007) apresenta três AAAs que sustentam aquilo que para ele identifica um
professor:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 227


__ A de Adesão, porque ser professor implica sempre a adesão a princípios
e a valores, a adopção de projectos [...].
__ A de Acção, porque também aqui, na escolha das melhores maneiras de
agir, se jogam decisões do foro profissional e do foro pessoal. Todos
sabemos que certas técnicas e métodos “colam” melhor com a nossa
maneira de ser do que outros. Todos sabemos que o sucesso ou o insucesso
de certas experiências “marcam” a nossa postura pedagógica, fazendo-nos
sentir bem ou mal com esta ou com aquela maneira de trabalhar [...].
__ A de Autoconsciência, porque em última análise tudo se decide no
processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre a sua própria acção.
É uma dimensão decisiva da profissão docente, na medida em que a
mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes deste
pensamento reflexivo (NÓVOA, 2007, p. 16).

As autoras Bueno et al indicam a diversidade de nomes usados por vários autores:

memória(s), lembranças, relatos de vida (récit de vie), depoimentos,


biografias, biografias educativas, memória educativa, histórias de vida,
história oral de vida, história oral temática, narrativas, narrativas
memorialísticas, método biográfico, método autobiográfico, método
psicobiográfico, perspectiva autobiográfica. Vale ressaltar que muitos
trabalhos usam mais de uma denominação, deixando implícita a idéia de
que são tomadas como sinônimos (2006, p. 388).

Para Souza (2008):

Trabalhar com narrativa [...] como perspectiva de formação possibilita ao


sujeito aprender pela experiência, através de recordações-referências
circunscritas no percurso da vida e permite entrar em contato com
sentimentos, lembranças e subjetividades marcadas nas aprendizagens
experienciais [...] com base em experiências e aprendizagens construídas ao
longo da vida.

A década de 90 é marcante para o avanço do método autobiográfico no Brasil através


de textos acessados em nosso país, publicados em Portugal, “reunindo colaborações de
autores portugueses, franceses, suíços, italianos, com teorias e investigações sobre o
método autobiográfico como recurso metodológico e como fonte de pesquisa, foi um dos
aspectos definidores do cenário que se desenha nos anos de 1990”. Um fato marcante para
tal expansão é “A publicação em Portugal, em 1992, de Vida de professores e Profissão
professor, duas coletâneas organizadas por António Nóvoa (1995a; 1995b)”, sendo muito
repercutido em nosso país (BUENO et al, 2006, p. 391).
Nóvoa ressalta que este método tem sido alvo de críticas e aponta duas
predominantes em correntes da psicologia e sociologia:

“no primeiro caso, centrada na frágil consistência metodológica, na


ausência de validade científica ou nas dimensões analíticas implícitas nas
abordagens (auto)biográficas; no segundo caso, baseadas no esvaziamento
das lógicas sociais, numa excessiva referência aos campos individuais e na

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 228


incapacidade de apreender as dinâmicas colectivas de mudança social”
(2007, p. 19).

Por outro lado Bueno et al (2006) conclui que a recorrência das metodologias citadas
em nosso país, “contribuiu para renovar a pesquisa educacional sob vários aspectos,
notadamente no que diz respeito à pesquisa e à formação de professores”, motivando
olhares para novos temas e questões, como “profissão, profissionalização e identidades
docentes” (p. 402).
Discutindo a relação da pesquisa com a temática da formação dos professores,
chama-nos à atenção os temas mais silenciados na pesquisa da formação de professores.
Com poucas pesquisas ou quase nenhuma, identificamos a formação dos professores que
trabalham em movimentos sociais e no meio rural (André e Romanowski, 2002). A nossa
pesquisa trata de um tema insistentemente pesquisado de forma geral, a formação de
professores, mas de forma irrisória no campo em que pisamos, o chão das Escolas Famílias
Agrícolas (EFAs), o chão da Educação do Campo.

A formação de professores do campo no contexto da Educação do Campo

A formação dos educadores é uma das várias pautas nas lutas dos movimentos
sociais organizados em prol de uma Educação do Campo e no Campo, conforme
evidenciamos no texto de Caldart, Elementos para Construção do Projeto Político e
Pedagógico da Educação do Campo, vemos a análise das demandas apresentadas pela
Articulação por uma Educação do Campo ao Governo como pauta de política pública para a
Educação do Campo (2004). Entre essas, podemos ressaltar a “reivindicação por políticas
públicas de formação de educadores, quando as pesquisas educacionais informam que
existe uma enorme quantidade de professores atuando nas escolas do campo sem uma
formação específica” (SILVA e GOMES, 2010).
Para tanto, Caldart (2004) afirma que “Construir a Educação do Campo significa
educadores e educadoras do e a partir do povo que vive no campo como sujeitos destas
políticas públicas [...], do projeto educativo que nos identifica”. Neste bojo, a formação dos
educadores do campo é um elemento essencial para a realização do projeto que almeja os
povos do campo, “Por isso defendemos com tanta insistência a necessidade de políticas e
projetos de formação das educadoras e dos educadores do campo” (p. 158).
Arroyo (2007) discute situações e condições necessárias para se ter uma educação do
campo e no campo e neste sentido, o corpo docente é peça essencial para que este projeto
seja construído e implementado com coerência aos princípios que requer esta educação,
entretanto, discute o currículo da escola e da formação dos educadores, mas enfatiza que
antes e ao mesmo tempo, é preciso que a formação dos educadores esteja num projeto de
desenvolvimento do campo como um todo, e isso inclui pensar nas próprias condições de
trabalho de forma geral para o trabalho do professor. No seu entender, os parâmetros para
um projeto educativo não deve ser o urbano, mas sim as práticas vivenciadas nas
experiências dos movimentos sociais e no campo.
É consenso nas pesquisas realizadas sobre educação que a qualidade do ensino está
diretamente relacionada com a formação de qualidade dos profissionais da educação.
Infelizmente, os dados demonstram que o nível de escolaridade dos professores que atuam
nas escolas da zona rural é de carência total (SILVA e GOMES, 2010, p. 09)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 229


Os princípios que sustentam a escola família agrícola e as especificidades do trabalho dos
monitores

As Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) são Centros de Formação de escolarização que


atuam na Educação do campo, especialmente a filhos e filhas de agricultores e agricultoras
familiares53, através da Pedagogia da Alternância (PA). Estas escolas fazem parte dos Centros
Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs) que constituem uma articulação de redes
de escolas que utilizam a PA. Em 2008, existiam 1.325 CEFFAs54 distribuídos nos cinco
continentes do mundo. Na América eram encontradas 593 CEFFAs distribuídos em 17 países,
onde o Brasil representa 44% desse total (CALVÓ, 2010, p. 110-117). As EFAs de Minas
Gerais contam (desde 1993) com a Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas
(AMEFA) que agrega em 2014 vinte EFAs em funcionamento, abrangendo várias regiões do
estado.
Embora, este tipo de escola tenha se adequado bem à realidade dos/as
agricultores/as brasileiros/as, esta experiência nasce na França, em 21 de novembro de
1935. As primeiras EFAs brasileiras foram implantadas no estado Espírito Santo no final da
década de 60. O estado da Bahia foi o segundo a implantar esta experiência (em 1975),
chegando em Minas em 1984 com a primeira experiência de Alternância no município de
Muriaé, região da Zona da Mata Mineira.55

Escola Família Agrícola: conceitos e princípios

As EFAs surgem no seio da agricultura familiar. Os agricultores e agricultoras têm um


papel fundamental na gestão das escolas como protagonistas, no volante de uma escola
camponesa do campo e no campo, dando a direção para os objetivos a serem alcançados
para a educação de seus filhos.
As EFAs funcionam com base em 4 princípios fundamentais, os pilares que sustentam
e caracterizam uma Escola Família Agrícola e que a diferencia de outras escolas
convencionais. “Estes pilares constituem as invariáveis do movimento mundial dos CEFFAs”
e são apresentados de forma generalizada (GIMONET, 2007). Como tal, são resultados da
sua construção histórica, sendo as bases de funcionamento e de identidade destas escolas
no Movimento mundial, com seus meios e objetivos (CALVÓ, 1999).
A Figura a seguir nos mostra o esquema dos referidos princípios ou pilares.

53
Em muitas efas do Brasil, encontra-se também indígenas e quilombolas, inclusive em Minas Gerais.
54
Para a contabilização do número de ceffas foi utilizado o critério da garantia mínima do trabalho com os
quatro princípios: Associação de pais, Pedagogia da Alternância, Formação Integral e Desenvolvimento do meio
(CALVÓ, 2010).
55
Para aprofundar no processo histórico das efas desde sua origem, consultar autores como Nosella (2013),
Zamberlan (2003), Begnami (2003).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 230
Figura 01 – Os quatro pilares dos CEFFAs56

Fonte: Calvo (2005, p.29)

Os princípios meios são aqueles que na sua implementação devem levar o projeto
educativo a alcançar suas finalidades: uma formação integral e o desenvolvimento do meio
onde vive o estudante e sua família. Neste quadro, destacamos a Pedagogia da Alternância57
que cumpre um papel fundamental na estruturação pedagógica da EFA e é onde mais se dá
a atuação profissional dos monitores, mas reforçamos a importância dos quatro pilares para
que uma EFA de fato cumpra seu papel.

O educador da Escola Família Agrícola: “um ator em complexidade”

Na pedagogia tradicional, o professor é considerado o mestre, aquele que detém o


saber, que possui mais conhecimentos; ao aluno resta se adaptar à lógica do professor e da
escola. Admitindo uma nova Pedagogia, segundo Gimonet, é o programa e o professor que
devem se adaptar ao aluno. “O professor neste caso não é mais aquele que tem mais
conhecimentos, mas aquele que acompanha, guia, orienta em direção às fontes do
conhecimento, ajuda na construção destes, facilita as aprendizagens, ensina quando
necessário” (1999, p. 24).
Begnami entende que os monitores “são fundamentais como catalisadores de todo o
processo educativo” (2003, p. 47). Já Gimonet define-o como um “ator em complexidade”,
“um componente essencial do sistema de formação alternada. É sobre ele que se apóia, no
dia a dia, o funcionamento pedagógico, educativo e material do CEFFA”. A complexidade
referida por Gimonet se dá quando este educador se compromete numa diversidade de
“encontros e confrontos” com os estudantes adolescentes, jovens e adultos, com “as
realidades da vida profissional”, “com os parceiros co-formadores”, “com os diferentes tipos
de saber”, com a animação da vida de grupo e com a vida da EFA e sua associação de pais
(2007, p. 145-147).
Seguindo a abordagem do autor, o monitor tem um lugar na interseção do sistema da
EFA, onde se vê dentro de conjuntos variados e o compara a um “clínico geral”.

56
Além das EFAs, estes pilares sustentam também a proposta das CFRs e ECORs.
57
Faz parte desta pedagogia um conjunto de instrumentos pedagógicos que disciplinam, direcionam e
permitem a alternância dos tempos escola e comunidade de forma integrativa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 231
Ele não pode ser um professor centrado em sua disciplina. Ele passa a ser,
pela própria estrutura e o projeto educativo, um agente de relação e de
comunicação entre diferentes instâncias do sistema. Ele tem uma função
mediadora nas relações da pessoa alternante com ela mesma, com o saber,
com o outro, com o grupo, com os adultos de seu ambiente” (GIMONET,
1999, p. 125).

Ainda tratando da função de “clínico geral”, Gimonet classifica o trabalho polivalente


do monitor em pelo menos 4 tipos diferentes:

- de relação e de animação das estruturas dentro das quais ele age:


- A Associação do CEFFA a qual precisa dar vida [...];
- A rede dos parceiros co-formadores [...];
- A vida interna do CEFFA como estrutura material e estrutura educativa;
- Os diferentes grupos [...] da vida residencial no CEFFA.
- de educação com relação aos jovens [...] permitir ao alternante encontrar-
se, construir sua identidade, crescer, e conquistar a sua autonomia [...].
- técnicas em termos de competências e de conhecimentos dentro dos
campos profissionais com os quais os jovens em formação são confrontados
[...].
- pedagógicas para colocar em prática as metodologias, os instrumentos, o
saber-fazer apropriado a fim de articular os tempos e os lugares da
formação, associar e colocar sinergia os conhecimentos profissionais e
gerais, otimizar as aprendizagens (GIMONET, 1999, p. 127-128).

Inquietações de uma pesquisa em curso

Considerando as questões acima apontadas, pretendemos apresentar a seguir


inquietações que tem motivado nossa pesquisa de conclusão do curso de Mestrado
Profissional em Educação do Campo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB.
As motivações que nos levaram a esta investigação partem da experiência como
monitor e assessor das EFAs da região do Médio Vale do Jequitinhonha, estado de Minas
Gerais-Brasil.
Várias inquietações nos motivam a persistir neste estudo, bem como: Até que ponto
as formações implementadas pela Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas –
AMEFA, nos últimos anos dão conta de formar os monitores das EFAs do Médio
Jequitinhonha para interferir na realidade atual? Quais passos podem ser dados para que os
monitores tenham uma formação inicial e contínua de forma mais efetiva? Que outros tipos
ou modelos das formações em alternância são possíveis e necessários, além da Formação
Inicial e Continuada proposta e da Formação Emergencial Pedagógica? Além das formações
promovidas pela AMEFA, quais outras formações foram importantes para o trabalho na
Educação do Campo? A EFA também busca formação para seus monitores? Os monitores
praticam a auto-formação? Os monitores buscam formação em Alternância e Educação do
Campo por iniciativa própria?
Neste sentido, temos como objetivo investigar e analisar os saberes destes
educadores, entender como estes saberes são construídos e praticados, no intuito de
contribuir para a melhoria da formação dos educandos e da prática dos tipos de formação,
de modo que possamos ter subsídios para repensar e reformular os processos formativos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 232
construídos pelo Movimento EFA, especialmente pela AMEFA, entidade que coordena o
processo de formação dos monitores das EFAs de MG e desta região.
De forma específica, a nossa pesquisa visa a compreender como se processa a
formação de monitores das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil, enquanto sujeitos da própria
história, especialmente nas EFAs do Médio Vale do Jequitinhonha, tanto nos aspectos
formais, quanto informais e contribuir para formulações de processos formativos; analisar
como se dá o engajamento desses monitores no projeto EFA, tomando consciência de que
para pertencer a esta instituição, exige militância, além de competência; descrever, analisar
e refletir sobre os significados das experiências de formação vivenciadas pelos monitores no
trabalho da EFA.
Nossa pesquisa tem como contexto o espaço da educação, e de forma mais especial,
a Educação do Campo, que se destina “a sujeitos históricos, culturais e sociais”, sendo assim,
estamos estudando as opções metodológicas com direção à “abordagem qualitativa”
(ARAÚJO, 2010, p. 140). O método autobiográfico se apresenta como opção principal,
enquanto caminho investigativo.
Segundo Ferrarotti (1988), a autobiografia está dentro se caracteriza como uma
abordagem qualitativa, quando se ocupa dos sentidos que as pessoas colocam nas várias
experiências vivenciadas.
Este método se identifica com aquilo que queremos: temos a preocupação com os
acontecimentos, com os resultados, mas com o percurso até chegar lá, o processo é mais
importante, pois pode revelar muito mais do que os próprios resultados.
Este método, assim como outros possíveis, está sendo analisado, estudado e no
caminhar da pesquisa, iremos moldando e lapidando-o de forma a definir os melhores
instrumentos e ferramentas a serem utilizadas para colher e qualificar os dados, de forma
que sejam importantes para a compreensão pretendida.

Considerações finais

O que se pretendeu com este texto foi socializar as reflexões e impressões iniciais de
uma pesquisa iniciada no curso de Mestrado citado. Portanto, permitiu-nos trazer à tona as
discussões sobre a formação de educadores de forma geral, no campo e, de maneira
especial, nas Escolas Famílias Agrícolas.
Foi importante perceber a Educação do Campo como projeto com questões
diferenciadas para as escolas do campo, o que exige tamanha percepção, disponibilidade,
interesse e capacidade do educador para não se submeter mais uma vez à imitação da
escola urbana. Para tanto, a sensibilidade e flexibilidade fazem parte do perfil deste
educador, mas é imprescindível se pensar a formação destes também de forma diferenciada
e efetiva.
No que tange ao educador da EFA, esta complexidade aumenta ainda mais, visto que
a Alternância, como metodologia própria e apropriada, exige um olhar múltiplo sobre o
processo, e como tal, uma formação inicial e continuada que dê conta de preparar o monitor
a ser um mediador das várias relações existentes no contexto de uma EFA.
Para tanto, esse aprofundamento teórico pode ser importante para ajudar os
próprios educadores a refletirem sobre seus processos de formação, entendendo ou
problematizando as contradições do seu trabalho.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 233


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 235


Desafios do trabalho docente em classes multisseriadas: analisando interfaces nas
narrativas dos profesores

Geângelo de Matos Rosa


IFBAIANO/Campus Bom Jesus da Lapa/UNEB
genagelo.roasa@lapa.ifbaiano.edu.br
Edna Souza Moreira
UNEB/Campus XVII
esmoreira@uneb.br

O presente trabalho é resultado da análise de depoimentos coletados durante cursos de formação de


professores ministrados em alguns municípios do interior da Bahia. Aqui serão apresentados alguns elementos
que caracterizam as escolas multisseriadas e a reflexão sobre a implicação dos mesmos no desenvolvimento da
prática pedagógica na tentativa de contribuir com o processo de desconstrução do mito que envolve as classes
dessa natureza e as culpabilizam pela má qualidade do processo de ensino aprendizagem desenvolvido nas
escolas do campo. Para tanto, traremos um pouco do contexto histórico da educação do campo e,
especialmente, do ensino em escolas multisseriadas. Faremos uma rápida discussão sobre o trabalho docente
nesses espaços e, por fim falaremos, dos desafios enfrentados pelos docentes que trabalham nessas classes a
partir da análise de depoimentos de um professor que trabalhou de 1996 a 2000 e de uma professora que
ainda atua em classes unidocentes. Essa discussão tem como objetivo mostrar que, apesar das dificuldades que
envolvem o trabalho em classes dessa natureza, é preciso considerar a importância que elas têm para as
comunidades nas quais estão inseridas. As reflexões tecidas no referido artigo estão fundamentadas em Farias
(2008), Hage (2006, 2010, 2011), Santos, (2012), Tardif (2002), Arroyo (1999, 2004, 2006). Soma à contribuição
desses autores o Nº 6.755, DE 29 de janeiro de 2009 e o Decreto 7352 de 04 de novembro 2010. Os
depoimentos apresentados nesse trabalho, em sua maioria revelam uma quantidade enorme de problemas
que dificultam, em alguns casos até impedem, o trabalho nessas escolas isoladas e unidocentes. Mostra
também, que apesar de todas as dificuldades é possível perceber aspectos positivos, sobretudo, se analisarmos
sob a ótica dos estudantes e da comunidade onde se encontram tais escolas.
Palavras-chave: Educação do Campo; Classe Multisseriada; Trabalho Docente.

Introdução

O presente trabalho é resultado da análise de depoimentos coletados durante


cursos de formação de professores ministrados em alguns municípios do interior da Bahia.
Apesar de saber da relevância de caracterizar tais municípios não o faremos em função do
número de páginas destinadas à construção desse artigo e considerarmos existir elementos
mais importantes que não poderiam deixar de serem tratados.
Aqui queremos apresentar alguns elementos que caracterizam as escolas
multisseriadas e refletir sobre a implicação dos mesmos no desenvolvimento da prática
pedagógica na tentativa de contribuir com o processo de desconstrução do mito que
envolve as classes dessa natureza e as culpabilizam pela má qualidade do processo de ensino
aprendizagem desenvolvido nas escolas do campo.
Para tanto traremos um pouco do contexto histórico da educação do campo e,
especialmente, do ensino em escolas multisseriadas. Faremos uma rápida discussão sobre o
trabalho docente nesses espaços e por fim falaremos dos desafios enfrentados pelos
docentes que trabalham nessas classes a partir da análise de depoimentos de um professor
que trabalhou de 1996 a 2000 e de uma professora que ainda atua em classes unidocentes.
Essa discussão tem como objetivo mostrar que, apesar das dificuldades que envolvem o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 236


trabalho em classes dessa natureza, é preciso considerar a importância que elas têm para as
comunidades nas quais estão inseridas.

Refletindo sobre a Educação do Campo a Partir do Contexto das Classes Multisseriadas

As discussões sobre Educação do Campo são recentes e datam segundo alguns


estudiosos (Caldart, Cerioli e Fernandes) dos anos 90 do século XX, porém a questão da
educação do meio rural é tão antiga quanto o processo de colonização brasileira embora só
venha aparecer referência específica sobre esta na Constituição de 1934. Embora segundo
Souza (2010 p. 132 Apud Santos, 2012 p. 38) seu surgimento data de 1889, com a
Proclamação da república quando foi instituída a pasta de Agricultura, Comércio e Indústria,
que dentre suas atribuições devia atender aos estudantes do campo.
Nos anos 90 do século XX, os segmentos sociais do campo, preocupados com o
descaso com que as autoridades governamentais vinham tratando o campo e, sobretudo, a
educação destinada à população camponesa, passaram a incluir nas suas pautas de
reivindicações dentre outras coisas uma educação de qualidade que aqui é entendida como
aquela que possibilita às crianças, jovens e adultos do campo habilidades que, como Diz
Nozella, deem a eles condições de viverem dignamente tanto no campo quanto na cidade.
Ao recorrermos ao histórico da educação brasileira e percebermos que ela se inicia
no meio rural, com o trabalho dos Jesuítas, só em 1934 aparecerá pela primeira vez na
Constituição Federal uma referência clara sobre a educação para o meio rural inclusive
vinculando recursos destinados à sua manutenção. É preciso lembrar que nossas primeiras
instituições escolares eram marcadas pela presença de pessoas de idades diferentes e com
níveis de saberes também diferentes, o que poderíamos dizer que essas classes eram um
tipo particular de classes multisseriadas.
Santos (2012, p. 57), fazendo referência à Lei de 15 de outubro de 1827, diz que as
Classes Multisseriasdas também chamada de “escolas de primeiras letras” surgiram de modo
institucionalizado durante o Império a partir da Lei de 15 de outubro de 1827 que dizia no
artigo 1º que “ em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverão as escolas de
primeiras letras que forem necessárias” (BRASIL, 1827 Apud Santos 2012 p. 57).
Temos presenciado um movimento crescente que defende o fechamento das classes
multisseriadas e propõem a nucleação escolar. Em 2010 ouvimos uma secretária de
educação de um município baiano se vangloriar por ter conseguido nuclear todas as classes
unidocentes do município em questão. Apesar das pressões dos movimentos sociais do
campo e demais segmentos sociais do campo para evitar o fechamento dessas classes no
Brasil inteiro, e da Resolução nº 2, de 28 de abril de 2008 que cria as Diretrizes
Complementares para a Educação do Campo trazerem uma série de critérios a serem
considerados no processo de nucleação escolar, recentemente, fevereiro de 2014, um
secretário de educação de outro município baiano disse em seu depoimento que estava
empenhado em fechar as classes multisseriadas do município uma vez que estas se
encontravam funcionando em quartos de casas de pessoas da comunidade ou em casas
alugadas sem infraestrutura mínima necessária.
A Resolução acima mencionada traz pela primeira vez as normas que orientam o
processo de nucleação das escolas do campo. O artigo 4º, parágrafo único, dessa Resolução
estabelece que:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 237


Quando os anos iniciais do Ensino Fundamental não puderem ser
oferecidos nas próprias comunidades das crianças, a nucleação rural levará
em conta a participação das comunidades interessadas na definição do
local, bem como as possibilidades de percurso a pé pelos alunos na menor
distância a ser percorrida”, e; “quando se fizer necessária a adoção do
transporte escolar, devem ser considerados o menor tempo possível no
percurso residência-escola e a garantia de transporte das crianças do
campo para o campo” (BRASIL, 2008, p. 1).

Apesar do que propõe a Resolução nº 02 de abril de 2008, no que diz respeito às


condições em que devem acontecer o processo de nucleação, esse processo tem sido
realizado levando em consideração apenas os aspectos que fragilizam o trabalho das escolas
multisseriadas, sobretudo a questão econômica. Nesse sentido Haje (2011 p. 03), diz que
[...] são muitos os fatores que evidenciam as condições existenciais
inadequadas dessas escolas, que estimulam os professores e os estudantes
a nelas permanecerem ou sentirem orgulho de estudar em sua própria
comunidade, fortalecendo ainda mais o estigma da escolarização
empobrecida e abandonada que tem sido ofertada no meio rural e
forçando as populações do campo a se deslocarem para estudar na cidade,
como solução para essa problemática.

A partir dos relatos anteriormente apresentados cabe- nos questionar até que ponto
o fechamento das escolas dessa natureza diminuirá os problemas da Educação do Campo?
Em alguns momentos essas autoridades se perguntaram qual significado daquela classe na
comunidade? Esses questionamentos se deparam com outros relacionados às condições
oferecidas para os docentes realizarem seus trabalhos, questões de ordem econômica, haja
vista que lema do Capitalismo Neoliberal é fazer muito gastando o mínimo possível de
recursos.
Não podemos desconsiderar a particularidade que é o contexto das classes
multisseriadas, entretanto, também é preciso refletir sobre o que escolas dessa modalidade
representam para a comunidade, pois conforme depoimento de um professor “ela (a classe
multisseriada) na maioria das vezes é a única possibilidade de contato com o conhecimento
sistematizado para as crianças de algumas comunidades”.
Nesse sentido Haje, (2006 p.05), destaca que, “as escolas multisseriadas oportunizam aos
sujeitos acesso à escolarização em sua própria comunidade, fator que poderia contribuir
significativamente para a permanência dos sujeitos no campo, com o fortalecimento dos
laços de pertencimento e a afirmação de suas identidades culturais [...]”.
As classes multsseriadas em sua maioria estão localizadas no meio rural, segundo o
censo escolar 2011 (www.educaao.uol.com.br) ainda existem no Brasil 45.716 escolas com
turmas multisseriadas, das quais 42.711 ficam no campo e 3.005 ficam localizadas no meio
urbano. A Bahia conta com 6518 classes multisseriadas das quais 6.092 estão localizadas no
meio rural.

Trabalho Docente em Classes Multisseriadas: Desafios e Interface com a Comunidade

Falar sobre trabalho docente na contemporaneidade é uma situação complexa, pois


evolve a ética, a formação, a valorização, dentre outros pontos. Quando precisamos falar do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 238


trabalho docente em classes multisseriadas, a questão torna ainda mais delicada, uma vez
que precisamos considerar os pontos citados no período anterior e ainda considerar a
complexidade do contexto das classes multisseriadas.
Segundo Souza e Santos (2007. P 05), são vários os problemas que envolvem o ensino
no meio rural dentre os quais destacam a questão do transporte, das chuvas, a falta de
manutenção das estradas, consequentemente a dificuldade de acesso dos estudantes e
professores às salas de aulas. Destaca ainda o fato de o currículo adotado e desenvolvido
pelas escolas do campo terem como parâmetro o meio urbano. Em si tratando das classes
multisseriadas, podemos acrescentar a heterogeneidade, que leva autores como Arroyo
(2006), dizer que deveríamos falar em classes multiidade, considerando a particularidade
das classes dessa natureza, inclusive para evitar a visão estereotipada que acompanham
essas classes.
Embora já tenhamos alcançados alguns avanços na melhoria do trabalho em escolas
do campo, como concursos específicos para trabalhar em escolas do meio rural, um
aumento no número de professores com o diploma de licenciatura em diversas áreas, no
que diz respeito ao trabalho em classes unidocentes esses avanços ainda não chegaram. O
professor para trabalhar nesses espaços, em sua maioria, vai através de indicações políticas
de alguma pessoa com influência na comunidade, como mostra o depoimento abaixo:
“Logo que terminei de cursar o antigo magistério no Instituto de Educação
Anísio Teixeira, no ano de 1995, fui convidado por uma amiga professora,
para substituí – la em sua classe durante o seu período de licença
maternidade. Dessa forma assumo a função de professor do ensino
fundamental, em uma escola multisseriada localizada a 45 km da sede do
município de Caetité, em 1996. Ao retornar, a professora que havia me
convidado para substituí – la foi removida para a secretaria municipal de
educação deste município e fui mantido na função de regente da Escola
Napoleão Bonaparte, na fazenda Passagem de Areia, Caetité – Ba, até o
ano de 1999”. (professor de uma escola multisseriada no período de 1996 a
2000)

O depoimento acima nos chama a atenção para uma das fragilidades que envolve o
trabalho em classes multisseriadas que é questão da falta de concurso específico para os
docentes. Essa situação termina gerando uma série de transtornos, primeiro para a
comunidade, pois termina recebendo docentes que não queriam estar trabalhando naquele
espaço e que, em sua maioria nada conhece sobre a dinâmica da educação do campo,
menos ainda da dinâmica do trabalho em classes com tamanha diversidade.
Outra situação que marca o trabalho em classes unidocentes é falta de uma
infraestrutura adequada, bem como formação inicial e continuada para os docentes dessa
modalidade. Nesse sentido os professores dizem que:

“A Escola Napoleão Bonaparte funcionava num prédio constituído de dois


cômodos, sendo uma sala ampla e um banheiro que nunca era utilizado,
pois necessitava de que seu abastecimento d’água fosse feito manualmente
e isso era tarefa por demais desgastante, haja vista que não existia
nenhuma fonte de água próxima à escola. No que se refere ás condições em
que se encontrava o prédio, estas se aproximavam do abandono total, pois
a estrutura física, já ultrapassada, sofria, profundamente, do desgaste do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 239


tempo, servindo em bom grado como abrigo, principalmente, para pássaros
e os mais diversos animais. A cobertura estava quase que completamente
desfalcada de telhas, impossibilitando as aulas no período chuvoso. O
quadro – negro apresentava deficiências que dificultava a sua utilização
como um todo. As carteiras, que há muito não eram substituídas, já não se
apresentavam em número suficiente para todos os alunos, mesmo
utilizando aquelas que já apresentavam algum tipo de defeito”. (Professor A
atuou em classe multisseriada de 1996 a 2000)
“Chegando lá (zona rural em que foi trabalhar) foi o senhor da casa que me
recebeu, o mesmo tinha um carro de boi que guardava no espaço que ele
cedia para que as aulas acontecessem, dava aula para três turmas de
manhã e 3 turmas a tarde” (professora B atuou em classe multisseriada de
2000 até 2013)

Os depoimentos acima ressaltam a falta de prédio próprio, ou falta de manutenção


dos prédios existentes.
De fato, estudar nessas condições desfavoráveis, não estimula os
professores e os estudantes a permanecer na escola, ou sentir orgulho de
estudar em sua própria comunidade, fortalecendo ainda mais o estigma da
escolarização empobrecida que tem sido ofertada no meio rural, e
incentivando as populações do campo a buscar alternativas de estudar na
cidade, como solução dos problemas enfrentados. (HAGE, s.d p 02)

Normalmente as escolas com classes comportando alunos de várias séries estão


localizadas em áreas isoladas distantes dos centros urbanos, sem água potável, energia
elétrica. Além disso, essas escolas não contam, em sua maioria, com funcionário para fazer a
limpeza ou preparar a merenda escolar como podemos perceber na fala de um professor

“A merenda, que muitas vezes não passava de um mingau de milho, era


preparada pelo professor com a ajuda de uma senhora que recebia uma
espécie de ajuda de custo da prefeitura para realizar tal tarefa”. (professor
A, atuou em classe multisseriada de 1996 a 2000)

A multisseriação não foge da lógica de seriação quanto à organização dos


conteúdos, o planejamento, e entre outros. No que se refere à espacialidade, ter
estudantes de diferentes idades e séries num mesmo espaço é bastante complexo para
um profissional de educação que, não se sente estar preparado para enfrentar tamanho
desafio.
Desse modo, faz-se necessário repensarmos a questão da formação docente para
professores de escolas multisseriadas, pois segundo os relatos dos professores é nítida a
falta de formação que contemple as especificidades do trabalho em classes com várias
séries. É preciso destacar a necessidade dos cursos de formação do educador do campo
cuidar para não cair na negação da cultura e da identidade camponesa como nos lembra
Arroyo (1999).
O depoimento abaixo mostra a necessidade de as autoridades gestoras, sobretudo as
municipais, investirem nos cursos de formação inicial e continuada para os docentes das
classes multisseriadas:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 240
“Em todo o período em que estive como regente (1996 a 2000) não houve
nenhum curso ofertado pela secretaria municipal de educação com intuito
de capacitar os docentes que atuavam no meio rural em turmas
multisseriadas. Qualquer tipo de formação, quando acontecia, era a partir
da iniciativa dos docentes, através de estudos contínuos. Vale ressaltar que
os cursos que buscávamos e eram acessíveis a nós não contemplavam as
especificidades do ensino em escolas multisseriadas, como o meu caso, que
fiz o curso de Licenciatura em História cursado com muita dificuldade, uma
vez que tinha que deslocar 28 Km de bicicleta diariamente para a sede do
município” (Professor A).

Considerando que as classes multisseriadas estão institucionalizadas desde 1827, e


que em pleno século XXI ainda existam mais de 45 mil classes com várias séries no mesmo
espaço, era de esperar um número considerável de políticas públicas voltadas para atender
essas escolas, sobretudo, políticas voltadas para a formação e acompanhamento
pedagógico. Entretanto, só em 1997 temos a primeira política voltada para atender as
especificidades das classes mutisséries- o Programa Escola Ativa, o qual tinha como objetivo
oferecer formação inicialmente aos educadores, posteriormente, passou a oferecer
formação apenas para os sujeitos denominados de multiplicadores, ou seja, para as pessoas
de cada secretaria municipal encarregada de coordenar as classes multisséries. Além da
formação esse programa busca também levar “kites” pedagógicos para cada escola. Apesar
das inúmeras críticas que esse programa tem recebido, ele ainda é uma das poucas, senão,
a única forma de ação voltada diretamente para essas escolas.
Nesse sentido o trabalho nesses espaços torna ainda mais desafiador, uma vez que o
professor precisa aprender a partir da experiência qual a melhor maneira de organizar
pedagogicamente o seu trabalho. Segundo alguns autores a exemplo de Imbrnón (2011),
Schon (1992 e 2000) a formação do educador se dá no só nos bancos das Universidades, e
desse modo classifica os saberes docentes em: saberes da experiência, saberes curriculares e
saberes acadêmicos. Não é objetivo desse trabalho explicar o que significa cada um desses
saberes, mas é preciso destacar que como diz Tardif (2002), não podemos considerar que
um seja mais importante que o outro, eles se completam.
Neste trabalho daremos destaque para o saber da experiência, haja vista a
singularidade do professor que atua em classes multisseriadas, que descobre durante o
desenvolvimento do seu trabalho qual a melhor forma de fazê-lo. Não estamos querendo
dizer que o professor que atuam em classes com essa especificidade não precise de
formação acadêmica, ao contrário queremos mostrar o quanto o professor dessas classes
precisa ser respeitado e valorizado, uma vez que conta com um desafio maior que qualquer
docente, já que esse professor não precisa apenas dominar os saberes de cada componente
curricular. Ele precisa organizar sua aula considerando os princípios da educação do campo,
previstos no Decreto 7352 de 2010, e ainda contemplar a heterogeneidade marcante nessas
turmas, que contam com estudantes de diferentes culturas, diferentes idades e diferentes
séries.
Na maioria das vezes esses professores contam apenas como apoio da comunidade
para desenvolver seu trabalho, pois a secretaria se faz ausente como podemos perceber na
fala abaixo:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 241


“Em se tratando do desenvolvimento das atividades pedagógicas, estas
ocorriam sem nenhum tipo de acompanhamento por parte da secretaria
municipal de Educação, quando muito disponibiliza – se, na sede do
município, um servidor para operar um mimeógrafo em que deveriam ser
preparadas todas as “atividades” das escolas rurais, óbvio que na grande
maioria das vezes essa alternativa não supria a demanda, além do fato de
que o tipo de apoio que necessitávamos estava muito além disso. Na
prática, as atividades desenvolvidas em sala de aula, eram aplicadas
conforme o interesse de cada professor sem nenhum tipo de
acompanhamento por parte da secretaria municipal de educação municipal,
o único tipo de exigência para com os professores se resumia à entrega da
folha de freqüência, mensalmente na secretaria acima mencionada.
Portanto, o acompanhamento pedagógico era inexistente e esse fato
inquietava – me, pois a minha formação ( Magistério) em momento algum
havia, ao menos, me apresentado aquele tipo de realidade, ou seja, turmas
em que se misturavam estudantes das mais variadas séries, situação em
que o professor precisa decidir qual série iria ser atendida inicialmente, em
qual parte do quadro negro seriam expostas as atividades de tal série, quais
estudantes teriam que auxiliar os demais, enfim, tudo aquilo que estava
posto era assustador e por conta disso, fortalecia a idéia de que a Educação
caminhava a passos lentos para ofertar àquelas pessoas a mínima condição
de alcançar ao menos sua alfabetização” (Professor A atuou em classes
multisseriadas de 1996 a 2000).

A situação apresentada no depoimento acima pouco mudou com o tempo, como


mostra a fala de uma docente que atuou de 2000 a 2013.

Hoje temos alguns cursos oferecidos pela secretaria municipal de educação,


porém poucos deles tratam de questões específicas das escolas
multisseriadas. Eu mesma só participei de um curso de dois dias, realizado
por um professor que foi contratado para trabalhar com a gente a
metodologia de trabalho nas classes multisseriadas e depois uns dois
encontros com o multiplicador da escola ativa. (Professora B atuou de 2000
a 2013).

Esses depoimentos mostram alguns dos desafios enfrentados pelos docentes que,
por livre escolha, ou por pressionados pelos prefeitos e secretários de educação por algum
motivo, estão trabalhando em classes dessa especificidade. Soma-se a essa questão a falta
de material pedagógico, a ausência de um espaço adequado.
É preciso destacar que a legislação que orienta a organização de nosso sistema de
Ensino Básico em suas diversas modalidades, diz que para estar em sala de aula dos anos
finais do ensino fundamental é preciso ter licenciatura nas áreas específicas e para atuar nos
anos iniciais precisa ter no mínimo licenciatura em Pedagogia, mas não diz nada sobre a
formação dos docentes no Ensino Fundamental do Campo.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394 de 1996, em seu artigo 62 diz que

A formação de docentes para atuar na Educação Básica far-se-á em nível


superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e
institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 242
exercício do magistério na educação infantil e nos cinco primeiros anos do
ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal.
(BRASIL, 1996).
Apesar de a referida lei não falar nada sobre a formação necessária para atender as
diferentes modalidades da Educação Básica, exige em seu artigo 28 que, na oferta do ensino
básico à população do campo, seja contemplada as especificidades da vida rural de cada
região.
Já o Decreto 7352 de 2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e
sobre o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, no que diz respeito à formação
do educador do campo, traz que,

Art. 5º A formação de professores para a educação do campo observará os


princípios e objetivos da Política Nacional de Formação de profissionais do
Magistério da Educação Básica, conforme o disposto no Decreto nº 6755 de
29 de janeiro de 2009, e será orientada no que couber, pelas Diretrizes
estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação.
...
§3º As instituições públicas de ensino superior deverão incorporar nos
projetos políticos pedagógicos de seus cursos de licenciatura os processos
de interação entre o campo e a cidade e a organização dos espaços e
tempos da formação, em consonância com diretrizes estabelecidas pelo
Conselho Nacional de Educação. (BRASIL, 2010).

Por fim, o Decreto de nº 6755 de 2009, que institui a Política Nacional de Formação
dos Profissionais do Magistério da Educação básica, não traz nada de específico sobre a
formação dos professores do campo, menos ainda sobre os professores de classes
multisseriadas. Fala apenas no artigo 3º inciso X que é objetivo desse Plano, dentre outras
coisas, “promover a integração da Educação básica com a formação inicial docente, assim
como reforçar a formação continuada como prática escolar regular que responda às
características culturais e sociais regionais” (BRASIL, 2009).
Como tentativa de atender as especificidades das modalidades da Educação Básica,
os cursos de licenciaturas começaram a introduzir alguns componentes curriculares, a
exemplo do curso de pedagogia que inclui a disciplina Educação do Campo. Entretanto essa
disciplina é insuficiente para preparar os docentes para trabalharem dentro da concepção
de educação do campo. No sentido de atender a necessidade de oferecer uma formação
específica para o educador do campo surgiram algumas iniciativas a exemplo do curso de
Pedagogia da Terra, realizado em vários estados brasileiros, na Bahia foi oferecido pela
Universidade do Estado da Bahia – UNEB em parceria com o Ministério do Desenvolvimento
Agrário- MDA, Instituto Nacional de Colonização e reforma Agrária- Incra e com os
Movimentos Sociais do Campo. Temos também o exemplo do curso de Licenciatura em
Educação do Campo- ProCampo que na Bahia foi oferecida duas turmas uma na
Universidade Federal da Bahia- UFBA e outra pela Universidade do Estado da Bahia- UNEB.
Mesmo esses cursos que foram pensados com a participação direta de segmentos sociais do
campo não trataram da especificidade das classes multisseriadas.
Todos os elementos apontados até aqui apontados mostram o lado frágil das classes
multisséries, entretanto, é preciso considerar que, na verdade o que torna difícil o trabalho
em classes com essa especificidade não é o fato de ter várias séries no mesmo espaço,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 243


embora esse seja o complicador, mas a quantidade de desafios acima apresentados das
mais variadas ordens, que não vamos aqui repetir.

O Outro Lado do Discurso Sobre Classes Multisseriadas

Apesar desse artigo até agora ter mostrado as características que estigmatizam as
classes multisseriadas, é preciso destacar alguns aspectos que tornam extremamente
importantes a presença dessas escolas nas comunidades. O professor e pesquisador
Salomão Hage, em entrevista concedida ao Jornal do Professor ao ser questionado sobre as
vantagens desse tipo de ensino para os alunos, responde dizendo:

Quando a escola está presente na comunidade, os estudantes podem


acessá-la com mais tranqüilidade e a comunidade pode interagir com ela de
forma mais efetiva. Em grande parte das pequenas comunidades rurais, a
escola é o único espaço em que o Estado se faz presente junto à
população, atendendo as direitos de cidadania já assegurados nos
dispositivos legais em vigência. A existência da escola na comunidade
possibilita à população local acessar os conhecimentos acumulados pela
sociedade em seu próprio lugar de origem, contribuindo para a afirmação
das identidades culturais locais, para a permanência da população no meio
rural e para o desenvolvimento da própria comunidade. (HAGE, 2010)

No que diz respeito ao trabalho docente, apesar das dificuldades geradas, dentre
outros fatores, pela heterogeneidade da classe, é possível observar, através de
depoimentos, que os docentes percebem pontos positivos, como mostra os depoimentos
abaixo:
“Se existe um lado positivo nessa situação, este se refere ao respeito que a
grande maioria dos cidadãos, que compunham a Comunidade de Passagem
de Areia, dedicavam à escola em questão. Apesar das deficiências, da
estrutura vergonhosa daquela escola, a comunidade acreditava que ela
reunia todas as condições de tornar suas crianças capazes de ler, contar e
escrever, fato que superava a melhor das expectativas da grande maioria
daquela população que ainda não dominava o significado das letras”.
(Professor A, atuou em classe multisseriada de 1996 a 2000)
“A relação escola e comunidade é muito boa, pois nas datas
comemorativas a comunidade participa muito, nos dia das mães, por
exemplo, fazemos um almoço aqui na escola e toda comunidade participa
assim como o dia da consciência negra, dia das crianças. e aqui sempre
estamos trazendo outras comunidades para mostrar sua cultura e trocar
conhecimentos”. (Professora B atuou em classe multisseriada de 2000 a
2013)

Esses depoimentos mostram outra versão dos discursos que envolvem as classes
unidocentes, destacam também a necessidades de pensar a preservação dessas escolas
levando em consideração os estudantes e os pais que depositam muitas expectativas no
trabalho nelas desenvolvidos. Sabemos que do ponto de vista cognitivo, as possibilidades em
uma classe seriada são maiores, entretanto, quando consideramos a distância que os
estudantes terão de percorrer em muitos dos casos para chegar a uma escola núcleo, bem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 244


como as condições desse percurso, perceberemos a importância de preservar e manter
essas classes multisseriadas em boas condições de funcionamento.

Considerações Iniciais: o que podemos concluir dos depoimentos?

Falar das classes multisseriadas nos remete a pensar primeiro sobre a Educação do
Campo. Em quais condições ela vem sendo oferecida? Tem sido de fato direito de todos?
Todos têm tido acesso a uma escola pública de qualidade? Àqueles lugares mais isolados do
nosso Brasil tem sido assegurado o direito de todos à educação? Tem garantido as
condições mínimas de trabalho aos educadores do campo?
Como podemos perceber são muitas as questões que precisam ser respondidas,
muitas delas já estão parcialmente respondidas e as respostas até agora encontradas não
são muito animadoras apesar das pressões exercidas pela sociedade e pelos segmentos
sociais do campo. No tocante às classes multisseriadas, a situação pouco mudou de 1827 até
os dias atuais. O único programa voltado para essas escolas era a Escola Ativa iniciado em
1997 importado da Colômbia e sem as devidas adequações ao nosso contexto, que foi
interrompido em 2013, para dar lugar à Escola da Terra que faz parte do Programa
Pronacampo. Em pouquíssimos lugares esse programa já foi iniciado, o que tem deixado, na
Bahia, por exemplo, os professores dessas escolas sem um acompanhamento regular.
Isso nos leva a concluir que para superar as dificuldades existentes nas escolas do
campo, o processo de nucleação e fechamento das escolas unidocentes, não é a solução
mais adequada à situação. É preciso enfrentar esse problema começando por elaborar
políticas públicas que contemple as classes multisseriadas, começando pelo investimento
em formação para os educadores que trabalham em classes dessa natureza e melhorando as
condições físicas, estruturais e de acessos a essas escolas.
Os depoimentos apresentados nesse trabalho, em sua maioria revelam uma
quantidade enorme de problemas que dificultam, em alguns casos até impedem, o trabalho
nessas escolas isoladas e unidocentes. Mostra também, que apesar de todas as dificuldades
é possível perceber aspectos positivos, sobretudo, se analisarmos sob a ótica dos estudantes
e da comunidade onde se encontram tais escolas.
Os dados também revelam que é preciso levar a sério essa questão, investir em
infraestrutura que vai desde a construção de prédios escolares, até a aquisição de materiais
pedagógicos, passando por melhorias no acesso às comunidades onde estão as escolas e
valorização do professor que inclui investir na formação que contemple as especificidades
dessas turmas. Nesse sentido, é preciso analisar criteriosamente cada caso, antes de decidir
pela nucleação e fechamento dessas escolas. A Resolução nº 02 de abril de 2008 diz que
para fazer a nucleação quando necessário é preciso ouvir a comunidade e garantir condições
de transporte escolar para os estudantes.

Referências
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Sociedade, Campinas, n. 68, p. 143-162, 1999.
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 245


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 246


Arquiteturas de si: (auto)biografia, ruralidades e docência na educação profissional técnica

Graziela Ninck Dias Menezes


PPGEduC/UNEB)/IFBA
ninckgdm@gmail.com
Jane Adriana Pacheco Vasconcelos Rios
PPGEduC/UNEB
jhanrios1@yahoo.com.br

Este artigo tem como objetivo analisar as dinâmicas que atravessam a constituição da docência de um
professor da Educação Profissional Técnica, graduado em Arquitetura, que tem experiências de vida em espaço
rural e vivencia sua docência na cidade. A pesquisa fundamenta-se teórica e metodologicamente na
abordagem (auto)biográfica e utiliza-se como dispositivo de pesquisa a entrevista narrativa dialogando com
Nóvoa (1991), Souza (2003), Ferraroti (1998), Arfuch (2010) Delory-Momberger (2012) entre outros que
convergem para a compreensão de que as experiências vividas em contextos pessoais, profissionais e
educacionais integram os movimentos e práticas docentes, pois este processo não se desvincula do sentido
que o sujeito atribuí ao mundo e ao seu fazer nele. Também dialoga com Moreira (2005) Rios (2011), Hall
(1997), Carneiro (2005) Souza (2011), pois discutem a questão das identidades dos sujeitos que se
reconfiguram no contexto da contemporaneidade, e, em especial, daqueles que tem suas origens em contextos
rurais. A pesquisa indica a relevância da entrevista narrativa como movimento de autoformação, a partir do
processo de reflexividade e da compreensão de profissionalização da docência, pois exerce um papel formativo
quando os indivíduos compreendem a si próprios e se reestruturam na relação consigo mesmo e com o
mundo. O trabalho ainda aponta os reflexos que a experiência identitária do sujeito produz nos projetos
profissionais docentes.
Palavras-chave: (Auto)biografia; Docência; Ruralidade; Educação Profissional Técnica.

Contextualizando o trabalho: narrativas e ruralidades na Educação Profissional Técnica

O presente artigo nasce das discussões sobre as ruralidades contemporâneas no


contexto educacional, a partir de um olhar sensível58 sobre os itinerários e os processos
identitários de docentes que vivem ou viveram em diversos espaços rurais. As reflexões
produzidas nesse artigo emergiram das discussões produzidas no contexto da pesquisa que
desenvolvemos, sobre a produção da docência na Educação Profissional Técnica no Instituto
Federal da Bahia – IFBA/Campus Ilhéus, vinculada à Linha II no DIVERSO – Grupo de
Pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade, do Programa de Pós-Graduação em Educação
e Contemporaneidade – PPGEduC, da Universidade do Estado da Bahia – Uneb.
A pesquisa busca desvelar os significados que os sujeitos atribuem à docência e como
a compreensão de trabalho e técnica dos professores atravessa seus modos de produzir sua
prática pedagógica na Educação Profissional Técnica – EPT. Abordamos esta temática
considerando os processos formativos, experiências profissionais e histórias de vida como
tecido constitutivo da docência no contexto atual da EPT. Nesse sentido buscamos
encontrar trajetórias docentes de professores que fizeram o movimento rural - cidade e
analisar como esse processo implica na produção da sua docência.
Considerando as questões apresentadas o presente texto toma a narrativa de um
professor da EPT, que tem origem em um contexto de ruralidade, definido pelo próprio

58
Usamos a palavra sensível para caracterizar a postura teórico-epistemológica adotada nesse trabalho que
defende a produção do conhecimento voltada para os benefícios que contemple e desenvolva a pessoa
humana em sua individualidade, bem como as sociedades.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 247
narrador como “sertão”, afirmando-se como tal “porque eu me vejo como sertanejo”. No
percurso de vida-profissão narrado, João-de-Barro59 desloca-se do interior para a capital do
estado, forma-se em Arquitetura e migra para a docência, expressa como desejo latente e
implicado com sua própria história de vida.
Na itinerância profissional, atua e vive em contextos culturais diferentes, o que ao
mesmo tempo lhe promove deslocamentos físicos e identitários, também lhe promove
conforto por considerar que tem na sua constituição pessoal uma transversalidade. Assim
diz: “Eu sou um sujeito de discussão transversal por natureza”. João-de-Barro afirma, após
um breve silêncio, ao falar de sua condição de ser de outra cidade e ter ido atuar num
campus em outra região do estado.

eu transito confortavelmente independente de quem olhe para mim, de


onde eu esteja, né é... Isso ai é uma, não sei, uma construção emocional
minha de ter alguma ousadia de ter, ou de ter uma vivência meio
migratória, né que me impôs a necessidade de viver dessa forma porque
eu tento me relacionar bem aqui, né. (João-de-Barro, 2013)

Nesse sentido, compreendemos ruralidades como um espaço dinâmico, marcado por


elementos identitários que não são essencialistas. Migram, dissolvem-se e se reconstroem
num contexto de fronteiras cruzadas. Segundo Rios (2011, p. 77) reportar-se ao rural é
reportar-se “às relações que são desenvolvias ali a partir de vários elementos, como
pertencimentos, deslocamentos, posicionamentos, subjetividades”, é ainda tratar “dos
discursos que o constituem como um espaço de sentidos e significados” (RIOS, 2011, p. 80).
Ao ouvir a narrativa de João-de-Barro defrontamo-nos com os processos identitários
que vão se produzindo no acontecer da docência e, em especial, na Educação Profissional
Técnica, dentro do cenário atual de sua historicidade.
Tal historicidade remete aos processos e lutas políticas e sociais da EPT. Ela carrega
em si a trajetória de docentes que foram constituindo-se e instituindo uma profissão nos
encontros, disputas e movimentos dessa modalidade educacional, sobretudo, pela
construção de uma política de formação, como caminho para sua profissionalização e de
modos de atuação que em si denunciam o olhar destinado ao docente da Educação
Profissional.
Atualmente a EPT constitui-se como uma política pública de educação e na última
década ganhou destaque após o Decreto nº 5.154/04 que reacendeu a “necessária utopia”
(MOURA, 2013, p. 151) para mobilizar educadores na luta histórica por uma educação
profissional integrada ao Ensino Médio e, consequentemente, um novo status para a
docência na EPT, reconhecendo que a profissionalização é um processo endógeno. Essa
integração veio com sentido de formar cidadãos capazes de compreender a realidade social,
econômica, política e cultural, interpretando-a sob princípios éticos e sendo capaz de
articular saberes da ciência, trabalho, cultura e tecnologia.
Nesse processo observa-se um ritmo acelerado de expansão da Rede Federal de
Educação Profissional Tecnológica – RFEPT. O Instituto Federal da Bahia, após a sua
organização, vem em crescente expansão ampliando sua estrutura multicampi e
pluricurricular, de sete campi até 2010 para dezesseis campi e cinco núcleos avançados em
2012, oferecendo cursos de nível médio, nas modalidades integrada, subsequente, e Proeja,

59
Usamos o nome fictício de João-de-Barro para o entrevistado desse trabalho para preservar sua identidade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 248
além de cursos superiores (bacharelados, engenharias, licenciaturas, formações
tecnológicas) e pós-graduações.
É nesse processo de expansão que surge a implantação do campus de Ilhéus, lócus da
pesquisa, inaugurado em 2011, mas com início de atividades acadêmicas em 2012. Em
processo de implantação, o campus vem recebendo novos professores com experiências
docentes diversas, advindos de outros lugares, como é o exemplo do Professor João-de-
Barro, ou ter uma história de vida na cidade ou cidades circunvizinhas, mas com experiência
anterior em outros campi da instituição. João-de-Barro, vivendo esse processo descreve

nosso campus tendo menos de dois anos de funcionamento ele tem


professores que vieram, né de vários outros campi por transferências, né
voltando muito possivelmente pra sua terra natal, né porque daqui
trabalharam numa...numa é ... (silêncio) faixa aqui periférica, né Valença
ou Porto Seguro, Eunápolis. (João-de-Barro, 2013)

Assim, é evidente que a docência abarca marcas históricas, incorpora marcas de um


ofício com perícias e diálogos próprios da história do trabalho docente. Essa historicidade
constitui-se numa herança social e cultural que também é parte das imagens produzidas da
docência e lhe dão formas pelas relações estruturadas, inclusive das escolas e dos sistemas
educacionais.
Nesse sentido as pesquisas assentadas em um movimento epistemológico, teórico e
metodológico, voltados à superação da radical dualidade sujeito-objeto, são relevantes para
o universo educacional, sobretudo, para pesquisas onde o olhar para o sujeito/professor
reside em uma escuta das subjetividades e processo identitários que constituem a docência.
Considerando a especificidade epistemológica, metodológica e técnica adotamos o
método autobiográfico nesse trabalho, pois reconhecemos a subjetividade como
conhecimento produzido. Tal questão se materializa já na definição das narrativas
autobiográficas como materiais primários da pesquisa com a sua possibilidade de
comunicação interpessoal complexa e recíproca entre narrador e observador (FERRAROTTI,
1998).
Nesse movimento, as narrativas de vida, formação e profissão possibilitam a emersão
das relações que se produzem entre subjetividades e práticas, cruzamentos entre discursos,
por expressarem a complexidade da docência com suas tensões, contradições e afirmações.
Segundo Souza (2003, p. 21) “Através da narrativa (auto)biográfica, torna-se possível
desvendar modelos e princípios que estruturam discursos pedagógicos que compõem o agir
e o pensar do professor”. Assim possibilita compreender como os docentes da Educação
Profissional Técnica vem lidando com as tensões provocadas no movimento de rupturas,
anúncios e permanências e como ordenam sentidos existenciais para sua vida-profissão.
As narrativas constituem-se em espaços biográficos (ARFUCH, 2010), pois permitem a
interação discursiva entre sujeitos, a partir de uma existência real e uma leitura analítica
transversal atenta as tecituras da trama interdiscursiva que produz a construção da
subjetividade. Enquanto espaço biográfico, as narrativas exercem um papel quando os
indivíduos compreendem a si próprios e se reestruturam na relação consigo mesmo e com o
mundo, porque há uma relação entre o espaço-tempo individual e o espaço-tempo social
(DELORY-MOMBERGER, 2012) o que indica um conhecimento por parte do indivíduo sobre
as instituições e os contextos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 249


O texto foi organizado nessa primeira parte onde abordamos o contexto do trabalho
e seus objetivos, além de tratarmos do caminho metodológico da pesquisa. No segundo
tópico abordamos a questão da docência como um movimento que transversaliza a vida e
constitui-se enquanto profissão na luta por sua profissionalização. No terceiro tópico
tratamos, a partir da discussão das ruralidades, os processos identitários, os conflitos, e as
ressonâncias disso na produção da docência e na cotidianidade do professor. Por fim,
fazemos uma conclusão considerando a experiência da entrevista como processo de
reflexividade e movimento formativo, os silêncios como pronunciamentos da outridade de
nós mesmos e da alteridade estabelecida com o outro, além do rebate do processo
identitário sobre os projetos profissionais de João-de-Barro.

Da docência que transversaliza a vida à busca pela profissionalização

Abordar a docência sob o prisma da subjetividade implica em considerar os docentes


como sujeitos de sua história e produtores de sua práxis pedagógica. É frente aos encontros,
desafios e superações de cada professor no seu fazer pedagógico e na sua própria vida que a
docência se realiza, resultando do encontro com a atividade educativa e com outras tantas
atividades que os constituem professores.
Como todo sujeito no mundo, o professor carrega e atribuí sentidos produzidos na
relação com o outro. Nesses encontros, produz-se como sujeito de pertença a uma cultura.
Assim, a reflexão sobre a docência exige compreender a articulação do eu pessoal com o eu
profissional, (NÓVOA, 2007), as interfaces entre os percursos formativos de vida, formação e
profissão, entendendo a docência como resultante da própria subjetividade da pessoa-
professor.
Na entrevista realizada ao falar de como a docência surge em sua vida João-de-Barro
revela que as influências familiares e a imagem positiva do exercício da docência produziram
um desejo pela profissão. Ainda criança demonstra que, na condição de observador, essa
experiência familiar lhe era muito próxima

isso tá relacionado com a observação de uma situação familiar que era o


primeiro convívio com a presença de livros, né já que eu observava meu pai
lecionando, ele era professor de inglês, ele tinha um curso, né e tinha uma
escola, né e na família havia outras pessoas também ligadas ao ensino da
língua inglesa. (...) por conta dessa desse gosto pelo pelo aprendizado pelo
ensino do inglês né e.. eu era muito próximo tá em casa ver meu pai sair
pra dar aula de inglês e voltar. (João-de-Barro, 2013)

Ainda nesse sentido revela que experiências de vida em contextos onde fez “ao
acaso” o papel de docente foram construindo um desejo e “um gosto” pela docência.
Marcas e vivências revelam como as experiências ligadas à família, aos grupos sociais mais
próximos, com quem se estabelece uma relação afetiva são singulares. Dominicé (1988, p.
152) afirma que “a escolha profissional aparece como resultante das experiências afetivas
mais fortes”. Assim, João-de-Barro narra

Acho que ai tem uma coisa muito legal que foi antes de qualquer é...
vínculo profissional com a docência eu ter tido o oportunidade na
participação de uma é... de um de um grupo é...religioso numa comunidade
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 250
de fé, numa igreja, né. (...) em alguns momentos dessas experiências de de
é... reflexão sobre a fé está é... lecionando, ministrando diante desses
grupos, né. (...) eu era o... ao mesmo tempo o provocador e a pessoa que
tinha que oferecer respostas quando quando esta dada, né. Então é a
situação análoga à docência ou tão legitimamente docente quanto essa,
embora não tivesse ligação profissional com isso, né. (João-de-Barro, 2013)

Além das marcas na infância e adolescência positivas com a docência, a vida


acadêmica enquanto aluno de graduação também reforçou a formação do desejo pela
profissão, apesar de graduar-se em Arquitetura, área da sua formação inicial. Sua
experiência formativa num curso de mestrado na área o implicou na sua escolha, revelando
um compromisso ético e afetivo com a profissão.

a possibilidade de tá é exercitando o... o... a... (silêncio) que palavra eu


posso dizer pra pra esse sentido que tô procurando?... (silêncio) o sentido
comum da ideia de mestrado e de mestre ,né. Então pra que que serve um
sujeito que... que se propõe a maestria se não voltar para sala de aula, né?
(João-de-Barro, 2013)

Fica evidente que a docência é um devir, uma teia constituída de experiências visíveis
e invisíveis, de movimentos fluídos, constantes, permanentes que desestabilizam as
subjetividades e exige a ressignificação da própria existência.
Tal processo acaba sendo um desafio, pois mesmo considerando que outras
experiências são importantes e constitutivas da formação, não se pode negar a relevância de
uma construção acadêmica que promova aproximações e reflexões sobre a profissão. Isso
implica em considerar que os saberes desenvolvidos na prática educativa são importantes e
determinantes para o exercício da docência, entretanto, não pode representar um lugar
ausente de um investimento teórico e metodológico necessários ao ofício de professor.
Diante de toda essa influência, mesmo com oportunidades profissionais na sua área,
frente ao primeiro convite, fruto do reconhecimento de seu desempenho acadêmico ele
posicionou-se em favor de assumir a docência como profissão.

eu trabalhava na época numa, numa empresa que realizava construções,


projetos e construções, a proposta da minha formação seria arquitetura e
urbanismo, né.
E... E ele se identificou, ele disse: olha você não me conhece e seu nome foi
indicado pela professora é... Lisiê e o propósito da minha consulta é que
você é... verificar sua disponibilidade para lecionar no curso de arquitetura
e a gente precisa compor esse quadro para começar o semestre já.
E eu disse: quanto tempo eu preciso, quanto tempo você me dá para eu
pensar no assunto?
Ele me disse: decida e me diga amanhã.
E eu já desci pra sala do chefe perguntando, você me demite ou eu vou ter
que me demitir? Então foi uma coisa que parece que já era latente, um
desejo de tá trabalhando com sala de aula eu já tinha feito dois cursos de
de especialização, né , estava recém ingressado num mestrado que eu tive
que trancar e... a vivência acadêmica apontava para algo que... eu ia
experimentar nesse momento ser, ser parte do meu futuro ou não. (João-
de-Barro, 2013)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 251
Nesse sentido a docência como um acontecimento profissional, como um arranjo,
como outra possibilidade de profissão, impõe ao sujeito desafios muito específicos de quem
adentra um campo sem conhecer bem o território, as nuances e os embates do processo
educacional. Isso é muito evidente em educadores que tem sua formação inicial como
bacharéis e, portanto, não articulam a docência no seu horizonte de formação acadêmica.
Ao narrar sobre o início de sua atividade docente João-de-Barro explicita.

de certo modo me sentia no desespero do despreparo de não ter tido a


formação em licenciatura, né. Eu era bacharel, né. Eu estava lidando com
problemas práticos para os quais eu não havia sido preparado, né e ainda
por cima eu tava lidando com um é, um curso que tinha no seu, nos seus
componentes curriculares discussões que eu não tinha tido na minha época
de graduação, então eu tinha disciplinas novas que eu tinha que lecionar,
né e que eu não, eu não havia sido aluno daquelas disciplinas é ou de
discussões que tivessem sido formuladas, né. Da maneira como aquele
pacote tava sendo é...é...apresentado para mim é e eu tive que me
apropriar dessas discussões de uma maneira quase que é..., como prepara
o miojo. (João-de-Barro, 2013)

Tal processo ainda pode ser mais agudo associado à condição de inexperiência
docente. No contexto em que muitos professores são recém-chegados cabe pensar como
assinala Cavaco (1999) que professores jovens são muito suscetíveis aos poderes já
arraigados dentro da escola. Aparecem como um incômodo a uma estrutura e grupos sociais
existentes dentro do espaço escolar. O seu reconhecimento como inexperiente o coloca em
situações de hesitação, receios e descrença diante dos alunos na sala de aula. Isso possibilita
uma reatualização das experiências vividas enquanto aluno como suporte para decisão
diante situações conflituosas levando-o a manter posturas mais tradicionais e bloqueando a
ação de atitudes mais criativas e inovadoras. Assim, João-de-Barro conta

O começo foi, foi uma coisa que provocou em mim exatamente isso
desespero e angústia, principalmente por causa das disciplinas que eu tinha
é...recebido na minha graduação e nem nas pós-graduações. Então era algo
que eu tinha que estudar é... freneticamente e na semana seguinte, né (...)
e toda aquela é...aquela... desconfiança que pairava sobre os alunos ou que
eu não é... ou que eu acreditava que os alunos tinham de que chegou um
professor que a gente vai poder fritar se ele demonstrar insegurança, né.
(João-de-Barro, 2013)

Além disso, o professor novo é suscetível às mudanças estruturais de lugar, fazendo


com que rompa em frequência seus laços, seus projetos, exigindo deslocamentos não
apenas físicos, mas também afetivos pelo enfrentamento de situações e arranjos novos que
vão se produzindo em ambientes diferenciados

Bom, é...eu tive que me deslocar, eu morava em Salvador então foi uma
mudança de vida radical, né. Eu fui para Aracajú de mala e cuia é... e a
loucura é que na época estava saindo dois professores para o doutorado e
eu recém ingressado no mestrado tinha que substituir os dois doutorandos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 252


Então foi uma proposta do tipo a empresa quer economizar, era uma
instituição privada, né e eu fui me dar conta disso depois, a frigideira que
eu me meti era, você vai entrar com cinco disciplinas e eu fui ter a
dimensão do problema em que eu tava me metendo, né uns dois meses
depois quando eu não conseguia dar conta do que eu consegui. (Risos)
(João-de-Barro, 2013)

Assim, a docência é um caminho a percorrer. Sem dispositivos formativos


específicos, os docentes bacharéis são entregues a sua própria realização e tem sua
experiência formativa como principal legado para produzir sua prática educativa.
Entretanto, permanecer na docência é processo que se revela como movimento de
superação e compromisso. A produção da docência requer uma capacidade de atuar frente
aos contextos históricos e sociais produzidos. Nesse sentido, requer análise da própria
prática, das razões que sustentam a posições; uma tomada de decisão diante a função real
do ensino, das condições e condicionantes da prática educativa, dos próprios pensamentos e
das demandas sociais. Essa reflexividade é fundamental para a constituição de uma
profissionalização que perpassa pela construção de um saber,
Assim, o professor relata seu movimento permanente em busca de uma formação,
produzido num movimento de consciência de suas condições e necessidades formativas. Isso
fica marcado em diversos momentos de sua narrativa quando relata a busca por aquisição
de livros e participação em cursos.

uma experiência muito interessante foi ter caçado (enfâse) um curso que
não ia acontecer num ano e eu ficava colocando meu nome na lista de
espera, “não mas esse é para o ano ainda essa lista nem foi aberta”, mas
eu quero fazer (enfâse) que era um curso sobre é... avaliação e ensinagem
pra professores, né da própria universidade, né então é.. aquilo foi uma
coisa muito importante pra mim porque era um desejo que eu tinha de, de
poder é... colocar, me colocar atrás da do carro de boi não ficar mais
puxando essa história mas ficar nas é... rédeas do processo. (João-de-Barro,
2013)

O modelo profissional deve ser encarado a partir de objetivos expressos em


competências, habilidades e saberes a serem produzidos na formação. Nesse sentido, o
primeiro passo nesse processo é a construção subjetiva do problema como uma questão
ético-política e não apenas técnica, ou seja, precisa compreender o que pensa e como se
posiciona diante de uma situação-problema, que são circunstâncias instáveis, incertezas,
singulares e conflituosas. É preciso que o profissional saiba mobilizar saberes e atitudes
profissionais para enfrentá-las, estabelecendo uma conexão dos estudos pontuais com o
conhecimento científico da comunidade acadêmica. (RAMALHO, NUÑES e GAUTHIER, 2004).
No seu percurso de vida-profissão, João-de-Barro ao ingressar no IFBA encontra-se
mais uma vez em situação de (re)constituição de sua profissão. Apesar de sua experiência
revela que o processo de implantação tem gerado também um encontro com elementos de
desprofissionalização, de isolamento e de limitação. Como os campi iniciam suas atividades
com algumas turmas, por vezes, existe um professor para cada disciplina o que limita a
interlocução, a troca entre pares. Assim narra João-de-Barro sobre sua docência no campus
Ilhéus do IFBA.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 253


eu identifico como dificuldade maior minha nem tanto essa novidade que
oferece coisas muito desgostosas também pra mim da da descoberta, mas o
fato de não ter interlocutores da área numa escola pequena onde
praticamente cada professor ensina a sua uma ou duas materiais, né. Então
eu não tenho pessoas com quem conversar sobre arquitetura. E isso é
ex...ex-tre-ma-men-te é... limitador! eu me sinto atado (ênfase) nesse
universo. (João-de-Barro, 2013)

A cotidianidade exige ações muito específicas, abordagens únicas ligadas ao contexto


no qual se aplica e o enfretamento da incerteza sobre os resultados da ação. Assim, uma
postura que promove o diálogo e recriação junto aos alunos e aos pares possibilita outras
esferas de ação e realização de práticas educativas. Quanto mais imersos nos seus processos
de ensino, nas suas ações, mais os professores são capazes de responder com criatividade,
com inovações as situações complexas, incertas e conflituosas. A capacidade de responder
as questões cotidianas amplia o nível de satisfação, confiança e autoestima dos docentes.
Tal consciência revela-se no entendimento de que para além da vocação é
necessária uma formação, uma profissionalização do trabalho que permita profissionais
diversos que atendem a Educação Profissional Técnica construir uma docência. Nesse
sentido ainda afirma

eu acredito que a docência pode ser desenvolvida pode ser exercida com
competência mesmo por pessoas que é... participem é... que tenham na
numa na sua agenda a participação de outras atividades profissionais, né
é... caso contrário não poderia haver é... por exemplo engenheiros bons
professores por que eles não foram orientados vocacionalmente a uma
licenciatura, né ou médicos bons professores. (João-de-Barro, 2013)

Nesse processo de situar-se em um novo contexto, que é social e político, João-de-


Barro vive outros aspectos cotidianos que perpassam sua condição de sujeito-político. Em
um ambiente de disputa, de demarcação de território, vivido no campus, os docentes são
chamados ao conflito, à definição de lados e, portanto, de posicionar-se, o que gera
fragmentação e dissolução de relações profissionais com os pares. Para sujeitos que vivem
processo de mudança geográfica e física isso pode criar ainda mais um afastamento e
isolamento social no espaço da instituição

o momento de construção dessa escola, né impôs as pessoas que entraram


na minha leva, né é... se posicionarem politicamente diante de grupos que
tentaram estabelecer é...uma posição de controle sobre a escola, um campus
novo uma situação é de minoritária de apoio à posição da reitoria e uma
situação de crítica extremamente severa a escola, né a direção da escola e
quem (enfâse) entrava era imediatamente (enfâse) cotado a se posicionar de
maneira uma ou outra, (silêncio) eu...por índole (ênfase), sou o colaborar
dos processos que fazem as coisas funcionarem (silêncio) e dessa forma
comecei a ser visto como uma pessoa de é... é.. de é... ligação com a direção
da escola e oposição natural dos críticos à direção da escola, “tô nem aí, tô
nem aí” (canto e risos). (João-de-Barro, 2013)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 254


Ao escutar o processo atual vivido por João-de-Barro no campus, percebemos a
importância de se pensar a cultura organizacional das instituições de educação. Nesse
sentido é preciso superar a lógica de um modelo de profissionalização docente que despreza
o desenvolvimento pessoal do professor, a anulação da cotidianidade e dos dilemas vitais e
comuns nas dinâmicas escolares. Cada campus é um mecanismo vivo, repleto de
representações, lutas, contradições, afetos, valores que marcam os modos se sentir-pensar-
viver dos professores. Essa pungência de elementos produz a escola. Portanto, os processos
que institui a docência precisam pensar numa nova profissionalidade docente que estimule
uma cultura solidária e formativa no seio da instituição produzindo uma escola reflexiva
(ALARCÃO, 2001) e integra nos seus modos de acolher os dilemas e as experiências
subjetivadas pelos docentes.
Mas, também é fundamental que o professor experiencie a escola em sua
cotidianidade, para ampliar o processo de identificação com as demandas da comunidade
escolar. Isso potencializa a atividade de pensar o trabalho escolar, sua concepção, análise,
possibilidades e limites.

Estrangeiro, sim senhor! Porque há um sertão em mim!

eu não perdi essa identidade ligada ao sertão (ênfase), né. Eu tô agora numa
outra região do estado da Bahia e é... (silêncio) não articulo muito bem no
meu imaginário a... a ausência da roça de mandioca, do vaqueiro da... , né da
criação de bode, né. Então, é isso é algo que faz parte de mim, nesse
particular se reforça a ideia de que eu continuo me sentindo um estrangeiro
(silêncio) na terra e, por consequência, por ligação indireta, na escola. (João-
de-Barro, 2013)

A narrativa do professor leva a pensar que ser docente em outro contexto


institucional, geográfico e cultural promove um movimento de deslocamento e ao mesmo
tempo de afirmação de pertencer a um certo lugar, e, como tal, ser carregado de relações,
histórias e memórias, que vão dialogando com novos territórios e novas experiências. Isso
revela a tensão entre o global e o local, afastando uma visão de identidades essencialistas e
unificadas (Hall, 1997)
Nesse sentido, “ser do sertão”, constitui para João-de-Barro reconhecer-se como ser
de um certo lugar, ainda que já não mais fisicamente localizado, mas que culturalmente
marca um modo de ser-pensar e de imaginar o mundo e sua própria vida. Segundo Carneiro
(2005, p. 10) “os indivíduos podem expressar o seu vínculo com um determinado território
(sua identidade territorial) mesmo estando fora de sua referência espacial” o que se aplica à
João-de-Barro quando manifesta suas práticas culturais entendidas como rurais em espaços
percebidos como urbanos.
Apesar de ter sua infância ligada diretamente à cidade de Feira de Santana, na Bahia,
João-de-Barro demarca sua ruralidade sertaneja como um processo constituído por
experiências, memórias e pela formação de um imaginário que o coloca nessa condição.

minha família em duas oportunidades do ano aproveitava o recesso junino e


as férias de fim de ano pra, não pra ir a praia, né, mas sempre pra ir à roça.
Isso acabou criando em mim um imaginário muito forte que o gostoso, de
que a diversão era estar no sertão. Então, passar o ano todo sem ir numa

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 255


casa de farinha, passar o ano todo sem tomar leite no curral no pé da vaca,
passar o ano todo sem ver a.. o cenário dos animais na zona rural, isso pra
mim era cortar o barato do ano, né. As minhas férias estavam ligadas com a
presença desse elemento rural dessa dessa coisa muito forte ligada com a
paisagem do sertão. (João-de-Barro, 2013)

Assim, João-de-Barro aponta uma compreensão de ruralidade como um


espaço diversificado, tecido e elaborado, a partir de construtos de suas relações sociais. Um
lugar “de realização, uma produção, uma criação coletiva, um projeto refundador do laço
social e recriador do imaginário social” (SOUZA et al, 2011, p. 155). Segundo Rios (2011) as
novas ruralidades supõem compreender os contornos, as representações desse lugar rural
como espaço físico, lugar onde se vive e lugar de onde se vê e se vive o mundo.
O rural imaginário seria reconstruído e mesmo criado como tradições do e no
presente. Comporiam simulacros da própria cultura e das identidades contemporâneas;
desenraízamento do tempo e do espaço, fazendo desaparecer o passado, atribuindo
sentidos ao presente.
Considerando essas definições a narrativa de João-de-Barro demonstra como esse
processo marca a subjetividade de uma pessoa e o desloca e o re-coloca em posição
identitária definida por ele de estrangeiro. Seu isolamento na área de trabalho, já que é o
único professor das disciplinas que leciona, o coloca em posição de convidado para
participar de coletivos por área dos docentes na escola nas atividades cotidianas. Sente-se e
apresenta-se como sujeito transversal e gosta do diálogo com diversas áreas, mas visto
como de fora do grupo percebe-se como estrangeiro. Assim relata em três passagens de sua
narrativa

a área de humanas, né começou a... abrir pra participação minha nas


discussões próprias de humanas. É muito interessante porque é... eu estando
lotado aqui do curso de é.. da área de tecnologia que é o curso de
edificações e tendo é... feito por um curso para uma disciplina que não é
propedêutica faz com que eu seja visto por esses professores como professor
engenheiro (...) (João-de-Barro, 2013)

... essa janela de transito (silêncio) transversal é uma coisa que me animou
(ênfase), trouxe um fôlego (ênfase), mas ainda sou visto como estrangeiro.
(...) (João-de-Barro, 2013)

bom, como convidado, participo. É enriquecedor para mim né, mas é...
participo na oportunidade que a porta é aberta e alguém me diz vem. E um
espaço que me é dado, né na... nessas situações é gostoso, é bacana, mas até
então não passa disso. (João-de-Barro, 2013)

Essa situação cria um sentimento de não-pertencimento, já que as identidades e


subjetividades se fazem na relação com o outro, produzidas em imersão na sociedade e nos
dilemas e desafios constituintes desta. Segundo Rios (2011, p. 44) “a identidade é um
construção multirreferencial, definida por processos complexos de significação socialmente
determinados. (...) não é um absoluto que se encerra em si mesmo, é uma relação”.
Tal questão leva a reconfiguração das identidades docentes. Nesse sentido, ser
professor submete-se há um novo jogo identitário, em que o sujeito está lançado a uma
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 256
fluidez das identidades que abrem campos para as polarizações ou para as negociações, para
o exercício de poder e de domínio de espaços ou de construção de redes colaborativas e de
espaços plurais. Nesse sentido João-de-Barro ainda expressa preocupação.

os que tinham direito sobre o território chegam antes e estabelecem


nitidamente uma uma situação de é... (silêncio) que eu percebo, pode não
ser nada disso, né como é... um conforto hierárquico colocado, né então os
que vem depois tem que chegar num território que não é deles, né e de fato
não é meu, né, é... ah! me sinto ainda como alguém de fora, né e (silêncio)
não sei se em qualquer tempo vou me sentir diferente. (João-de-Barro, 2013)

Portanto, a produção das identidades docentes é simultaneamente um jogo entre o


ser humano da razão e do afeto. É nesse jogo de contradições que a vida cotidiana e a
profissão é tecida por complementariedade ou contradição numa ação contínua entre vida
pessoal e profissional.

Uma docência reflexiva e implicada com a identidade sertaneja.

O percurso da entrevista foi marcado por alguns elementos identificadores de um


processo de reflexividade muito eminente em João-de-Barro. Isso é notado tanto na sua
consciência da necessidade formativa e da busca por meios de compreender os processos
constituintes da relação de mediação pedagógica.
No decorrer da entrevista, por vezes buscou-se que ele falasse de suas práticas. No
fim do primeiro encontro, ao ser abordado mais uma vez essa questão ele diz

Professora eu acho que eu tangenciei eu fui periférico a esse tema (...) eu


acho que pra isso eu tinha que pensar ter outro encontro (...) porque isso
me impõe ao trabalho de comparação modo de comparação, né com o
modo como outros professores trabalham no seu exercício docente. Então
é uma leitura autocritica a que eu não havia me imposto, né. (...). já é
oportuno pelo tempo de estrada que eu tenho nisso, praticamente 10 anos,
né que eu inverta essa situação, já me senti é é...compelido a ta é...,
fazendo um vestibular para pedagogia, né porque que eu gostaria de ver
isso por outro lado, né. (João-de-Barro, 2013).

Esse processo nos faz compreender o caráter formativo da narrativa, pois diante de
sua própria experiência a pessoa tem a oportunidade de olhar para o vivido e pensar nos
sentidos que isso tem para si.
A narrativa é uma oportunidade de re-atualizar o que a experiência oferece; o espaço
para uma tomada de consciência do caráter subjetivo e intencional de qualquer
acontecimento e do caráter cultural dos conteúdos dessa subjetividade. As experiências de
transformação da identidade e da subjetividade são tão variadas que só podemos tratá-las a
partir dos contextos vividos.
Esse processo vai evocar a reflexividade, o olhar para si e a necessidade de se re-
construir e de re-compor a própria docência. Ao apropriar-se das experiências vividas fica
mais clara a consciência e as necessidades de conhecimento, possibilitando que João-de-
Barro busque o que é mais importante para ele e institua seu saber. O saber de experiência

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 257


se dá na relação entre conhecimento e vida humana. Por isso, é finito, individual, particular,
contingente. Não se separa do indivíduo que o encarna e só faz sentido nele e com ele.
Nesse contexto evoca-se a capacidade de reflexividade do professor. Ser um
professor reflexivo é ter a capacidade de repensar os processos de aprendizagem dos alunos
e de ensino de si mesmo. Antes de classificar em certo ou errado é compreender que toda
ação é fruto de hipóteses de conhecimento e, portanto, analisar estas hipóteses, implicam
em tomar a prática educativa como campo de observação, mediação e análises
permanentes.
Outro elemento marcante da narrativa de João-de-Barro são as pausas e
silenciamentos por toda a narrativa, interrompidos pela palavra pensada60, resultante da
própria reflexão de quem fala de um outro de si mesmo. Arfuch (2010) afirma que ao narrar
já é a voz de alguém em outra instância do próprio acontecimento. São vozes da mesma voz
que se inscreve no decurso da mesma. O silêncio também carrega a alteridade, o outro que
passou por nós, pois “os silêncios se produzem, restituindo aquilo que não foi dito, que não
teve lugar, que não teve tempo de se produzir” (RIOS, 2011, p. 140).
Ainda marco nesse processo de reflexão como o movimento identitário ecoa forte
sobre os sujeitos, sobre seus projetos profissionais. Ao se reportar sobre a profissão de
arquiteto mostra que a compreende enquanto um ato pedagógico e político ele diz

a... ideia que tem me passado a mente seria estudar a implantação de um


curso de arquitetura que é traga em si uma um modo de é... comprometer
esse estudante com sua terra natal porque a cidade do interior do estado,
as cidades do sertão são altamente desestruturadas do ponto de vista de
é... presença de esgotos é... redes de de infraestrutura, organização do
crescimento urbano que naturalmente tem se dado por uma periferização
é.. sem sem uma ordem aparente sem um cuidado com de integração com
o centro da cidade, né. Então esse profissional é extremamente necessário
nos seus sertões de origem que são as áreas onde menos se encontra
densidade de profissionais de projeto. Então eu acho realmente que a
cidade já tá saturada de pessoas que se preocupem da cosmética das
construções. O arquiteto tem se descomprometido com a tecnologia, né e
ele deve voltar a abraçar isso de preferência dando a oportunidade a
cidades que não há profissionais é... com esse oficio e muitas vezes as
próprias cidades de origens desse estudante que acaba migrando pra
capital. (João-de-Barro, 2013).

Compreendo que o rural marcado no imaginário de João-de-Barro suplanta uma


dimensão romantizada e trafega por um sentido onde a urbanidade e ruralidade trocam
saberes, modos de ser e estar no mundo e os sujeitos vão se ressignificando a partir de sua
matriz uma nova identidade na conversão do eu com o mundo. Assim, potencializa por meio
de sua profissão o sertão como lugar de sociabilidades mais complexa que aciona novas
redes sociais e regionais, variadas e de revalorização do mundo rural, envolvendo a
diversificação produtiva, tecnológica, democratização das relações produtivas, das festas

60Identificamos assim um movimento constante na narrativa do professor entrevistado que se constituía


de uma fala pausada, com palavras que se repetiam como se desse um tempo para pensar qual seria a
próxima palavra a ser dita.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 258
associadas à produção de artefatos e modos de ser e existir, (MOREIRA, 2005) consolidando
o interior também como espaço político de dignidade e bem-estar da vida humana.

Referências
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Trad.Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
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DELORY-MOMBERGER, Christine A Condição Biográfica- ensaios sobre a narrativa de si na
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DOMINICÉ, Pierre. O que a vida lhes ensinou. In: FINGER, M. e NÓVOA, A. O método (auto)
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método (auto) biográfico e a formação Lisboa, Ministério da Saúde, 1988.
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MOREIRA, Roberto José Identidades sociais: ruralidades no Braasil contemporâneo Rio de
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movimentos contraditórios In: MOURA, Dante Henrique (org.) Produção de Conhecimento,
Políticas Públicas e Formação Docente em Educação Profissional. 1ªed. Campinas, São
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NÓVOA, Antônio. Os professores e as Histórias da sua Vida In: NÓVOA, Antônio(Org). Vidas
de Professores 2ªed. Porto-Portugal. Porto: 2007.
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Educação I – Salvador: UNEB.v.01, n.01, jan./jun.2003.
SOUZA, Elizeu Clementino de; SANTOS, Fábio Josué dos; PINHO, Ana Sueli Teixeira; ARAÚJO,
Sandra Regina Magalhães de. Sujeitos, instituições e práticas pedagógicas: tecendo múltiplas
redes da educação rural na Bahia. Revista FAEEBA, v.20, n. 36, jul/dez, 2011, p. 151-164.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 259


Narrativa sobre a própria formação e a formação de pedagogos: contribuições para a
construção do currículo no contexto da disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena

Heldina Pereira Pinto Fagundes


UNEB
dinap6@hotmail.com

Este trabalho apresenta uma narrativa sobre nossa ação de professora, e o processo formativo de pedagogos,
refletindo sobre a interpenetração entre o currículo formal e o currículo real no desenvolvimento da disciplina
História e Cultura afro-brasileira e indígena. Trata-se de uma pesquisa que utiliza uma epistemologia
qualitativa, por meio do método autobiográfico. Utilizamos como instrumentos de coleta de dados: narrativa,
análise de documento, entrevistas e grupo focal, entre outros. Pretende-se refletir sobre o currículo formal e o
currículo real, a partir do olhar da professora da disciplina e dos alunos/as. O cenário é o Campus XII, Uneb,
tendo como sujeitos/as 10 alunos/as e a professora. Como principais resultados, busca-se uma vinculação
maior entre teoria e prática, para que as discussões acadêmicas se articulem com a realidade da educação
básica, no processo de formação docente, haja vista a consolidação de uma educação antirracista proposto
pelas Leis 10.639/3003 e 11645/2008, que produziram alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Mas para que elas tenham repercussão, é preciso que perpassem os cursos de formação docente.
Para que os objetivos da Lei sejam alcançados são necessárias ações de reflexão e avaliação sobre a condução e
os desdobramentos de sua implementação no sistema educativo. Percebemos que, no currículo em ação do
curso de pedagogia, o próprio encontro dos graduandos com conhecimentos relativos às populações afro e
indígena já possibilita uma quebra de paradigmas, no sentido de apresentar informações capazes de
desconstruir preconceitos e construir uma nova visão sobre a contribuição dessas populações para o processo
civilizatório da humanidade.
Palavras-chave: Lei 10.639/2003; Currículo; Formação de professores; autobiografia.

Introdução

A partir da vigência da Lei 10639/2003, que institui as Diretrizes Curriculares para o


Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, as propostas curriculares da educação
básica e dos cursos de formação de professores se veem às voltas com a necessidade de
reestruturação. Da Educação Infantil à Universidade, muitas instituições vêm procurando
trabalhar os conteúdos propostos pelas Diretrizes e desenvolvendo diversas ações no
contexto escolar, indo além da formalidade curricular, principalmente nos cursos de
licenciatura.
A Universidade do Estado da Bahia (Uneb) tem procurado se adequar a essas
determinações e oferecido, em algumas licenciaturas, uma disciplina que atenda as
exigências legais. Especificamente, no curso de Pedagogia, do Campus XII, a partir do
semestre 2006.2, introduziu-se a disciplina Educação e Cultura afro-brasileira, no quinto
período, ministrada por professores diferentes até o semestre 2009.1. Cada professor/a
desenvolveu sua proposta ou programa, conforme a ementa e tendo como base suas
leituras, concepções, saberes e perspectivas.
A partir do semestre 2007.2, ao reassumir minhas funções, após afastamento para
curso de Pós-Graduação, assumi a disciplina, já que minha formação em nível de mestrado e
doutorado se volta para o campo das relações raciais. Mas, em 2009.1, com a vigência da Lei
11.645/2008, novas alterações foram feitas, ampliando-se a discussão para a História e
Cultura Indígena, numa disciplina oferecida no 3º semestre.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 260


Após mais de dois anos de trabalho com a disciplina, percebi a necessidade de um
repensar sobre o recorte que tem sido dado na elaboração do planejamento, na seleção do
conteúdo e na metodologia. Senti necessidade de realizar uma reflexão sobre o como e o
quê é essencial a ser abordado para que os futuros professores tenham melhores condições
de atuar na Educação Infantil e Séries Iniciais bem como na pesquisa sobre essa discussão.
Tais questionamentos surgiram a partir da observação do Estágio Curricular
obrigatório61, no qual foram realizadas oficinas em escolas municipais, abordando essa
temática. Tais oficinas tiveram minha orientação e supervisão, sendo feitas por alunos/as do
sexto e sétimo semestres, em conjunto com as professoras de estágio.
Observei, que mesmo tendo domínio teórico de conceitos básicos, conforme
apresentados nas aulas de História e cultura Afro-brasileira e indígena, muitos tiveram
dificuldades e mostraram que a forma e o conteúdo a serem desenvolvidos, como prática
curricular, nas escolas de Ensino Fundamental podem se constituir em uma “faca de dois
gumes”, oferecendo mais munição para que se perpetue o racismo, o preconceito e a
discriminação entre crianças dos 6 aos 13 anos. Isto porque se um conteúdo for trabalhado
de forma superficial e o professor não tiver convicção do que está fazendo corre o risco de
difundir uma visão superficial, podendo atiçar ainda mais o preconceito e a discriminação.
Atualmente, há cursos de licenciatura na Universidade do Estado da Bahia, como os
de Educação Física entre outros, que ainda não promoveram a inclusão dessa disciplina, sob
a perspectiva das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Mesmo com a
obrigatoriedade prevista para os cursos de licenciatura, essa questão ainda não se encontra
totalmente elucidada62.
Diante disso, desejo realizar uma análise sobre minha ação enquanto professora,
num processo de autoformação, refletindo sobre o que fazemos, sobre como o currículo
prescrito (ementa) e o currículo experienciado (olhar dos alunos) pelos estudantes se
articulam. Para tanto, tenho percebido que a disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena a ser trabalhada no curso de graduação em Pedagogia, com carga horária de,
apenas, 60 horas deve levar em consideração o tipo de profissional que está sendo formado
bem como seu futuro campo de atuação, sem se preocupar em abordar conteúdos numa
perspectiva que interessa mais aos professores de História. Isto não significa negligenciar
esses conteúdos, mas usá-los didaticamente a partir do ponto de vista das relações raciais.
Nesse sentido, não há como trabalhar todos os conteúdos desta disciplina, sob a
perspectiva da história africana, afro-brasileira e indígena com carga horária tão restrita. Tal
constatação é o que me impulsiona a pensar numa proposta, que ao mesmo tempo em que

61
O grupo de professores do 5º período de Pedagogia organizou um projeto, coordenado pelas professoras de
Estágio, para levar os graduandos para a escola básica, iniciando o estágio curricular obrigatório. Os docentes
se prepararam anteriormente, juntamente com os estudantes. Assim, foram montadas oficinas, realizados
planejamentos de atividades para crianças de séries iniciais. O meu grupo preparou atividades baseadas no que
foi desenvolvido na disciplina de Educação e Cultura Afro-Brasileira. Todavia, os sujeitos desta pesquisa não são
os mesmo que realizaram estágio em 2009.
62
Na Universidade do Estado da Bahia - Uneb, a oferta da disciplina História e Cultura Afrobrasileira e Indígena
não vem ocorrendo de forma homogênea para todos os cursos de licenciatura. Até abril de 2014 ainda não
existe uma regulamentação do Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (CONSEPE), por meio de resolução. Por
isso alguns cursos funcionam sem a oferta da disciplina. Todavia, em 2010, o Conselho Estadual de Educação
solicitou à Universidade que realizasse as alterações nos currículos que se encontravam em processo de
reconhecimento.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 261
atende a sugestão da ementa, busca fazer adaptações, conforme as necessidades dos
sujeitos para os quais se volta. Ou seja, os conhecimentos que podemos organizar e
trabalhar nessa disciplina devem ter como horizonte as necessidades formativas de
professores de Educação Infantil e séries iniciais, considerando suas especificidades.
Imaginando a possibilidade de atuar como professora-pesquisadora-em-ação,
conforme discutido por Moreira (1998), desenvolvendo uma prática reflexiva,
transformando-me em pesquisador de minha própria prática, considero o que este autor
sugere: a) realizar a reflexão-em-ação – parar e pensar em meio à ação; b) realizar a
conversa-reflexiva-com-a-situação – envolve o processo de colaboração dialógica entre
professores e alunos na investigação do material disponível e na propositura de possíveis
soluções.
Formar o professor para atuar em contextos culturalmente específicos envolve
muitos desafios, já que é muito difícil mudar representações, condicionamentos e
preconceitos profundamente arraigados. Não basta oferecer conteúdos e trabalhar apenas a
dimensão racional, é preciso mudar atitudes. Essa é uma constatação, após mais de oito
anos lecionando a disciplina em questão.
Diante disso, organizei um projeto de pesquisa, ainda em fase de conclusão, que
busca responder algumas questões básicas:
✓ Que conhecimentos e saberes podem ser trabalhados de modo a
instrumentalizar o/a Pedagogo/a para lidar com as situações de racismo e
preconceito na sala de aula?
✓ Que conteúdos seriam mais apropriados para trabalhar, na formação desses
profissionais, na disciplina em questão?
✓ O que priorizar na organização do programa do curso?
✓ Será que o acesso às informações sobre África e sobre os povos indígenas
garante a formação do sujeito voltado para a promoção de posturas
antirracistas?
✓ O que mais pode ser incluído nesse contexto?
✓ Que concepções de currículo e de multiculturalismo fundamentam a
elaboração do planejamento e a seleção de temáticas sobre a história e
cultura africana, afro-brasileira e indígena para serem desenvolvidas no
curso de Pedagogia?
Diante dessas inquietações apresentamos a seguinte problemática:
Quais inovações e repercussões decorrem da introdução da disciplina História e
Cultura Afrobrasileira e Indígena no currículo do curso de Pedagogia: da formação à
intervenção?
Nesse sentido, estabeleci como objetivo geral analisar a ocorrência ou não de
inovações a partir da introdução da disciplina História e Cultura Afrobrasileira e Indígena no
currículo do curso de Pedagogia e quais suas repercussões na intervenção do Pedagogo/a.

Metodologia

O escopo da pesquisa volta-se para uma reflexão sobre o trabalho desenvolvido em


um semestre letivo, durante a oferta da disciplina História e Cultura Afro-brasileira e
Indígena e posteriormente o acompanhamento da ação das alunas durante o período de
estágio curricular.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 262
Recorremos à epistemologia qualitativa, com destaque para o método
autobiográfico, para pensar nossa ação enquanto docente num curso de formação de
professores. Segundo Moreira (1996) trabalhar com autobiografias e narrativa pessoal na
criação de contextos favoráveis ao engajamento multicultural (JACKSON, 1995, apud
MOREIRA 2001: 29) envolve diversos aspectos. Assim, “a autobiografia tem sido combinada
com uma orientação fenomenológica para enfatizar os aspectos formativos do currículo,
entendido, de forma ampla, como experiência vivida” (SILVA, 1999, p. 43). Este método tem
sido empregado como instrumento de formação.

[...] o fato biográfico é esse viés que acompanha tudo o que percebemos e
compreendemos ao longo de nossa vida. Trata-se de um espaço-tempo interior,
que preexiste à escrita efetiva, mas que encontra na narrativa sua forma de
expressão, a ponto de confundir-se com ela Na narrativa de si, como ato
autopoiético, o autor vai construindo uma figura de si, no exato momento em que
se anuncia como sujeito e se enuncia como autor de sua história. (PASSEGGI;
SOUZA; VICENTINI,p. 381, grifo dos autores)

Empregamos diversos instrumentos de coleta de dados, como a memória das aulas,


análise documental, entrevistas e portfólios. Neste momento, também são realizados os
registros do cotidiano das atividades do currículo em ação, ou seja, das nossas práticas. Os
documentos referem-se aos projetos das oficinas montadas pelas alunas para serem
trabalhadas nas turmas do Ensino Fundamental e os meus próprios planos de curso e de
aula. As entrevistas abertas possibilitaram captar a perspectiva dos sujeitos pesquisados
sobre o modo como vivenciaram o currículo e posteriormente sua prática na escola. Foram
selecionados e analisados 10 portfólios de dez alunas. Mas, neste texto, não serão
apresentados os dados das entrevistas, pois esta pesquisa ainda não foi concluída.
Na primeira fase, concomitantemente com o desenvolvimento das aulas, busquei
conhecer publicações sobre a pesquisa autobiográfica. E, assim, tento caminhar por essas
novas veredas da pesquisa, tomando ciência dos pesquisadores que vêm fortalecendo esse
campo que se consolida atualmente, alguns desses citados nas referências. Acreditamos ser
este o melhor caminho no qual uma professora e seus alunos, presos nas teias do currículo,
buscam desvendar os fios e tramas para enxergar o objeto sobre o qual falam.
Os sujeitos pesquisados incluem, além da professora da disciplina, os graduandos do
terceiro período de Pedagogia, do Campus XII, matriculados em História e Cultura Afro-
brasileira e Indígena, no semestre 2009.1. Não pretendemos realizar observação nas escolas
de ensino fundamental, mas pesquisar suas falas e suas reflexões sobre a atuação.
A coleta de dados e a revisão bibliográfica tiveram início juntamente com a oferta
da disciplina, em julho de 2009. A análise dos dados parte de uma perspectiva
hermenêutico-fenomenológica e interpretativa.

Currículo e formação: duas faces de um mesmo processo

Para transitar nessas veredas da pesquisa autobiográfica, ainda novas para mim,
busco apoio numa concepção de formação me permita compreender a minha trajetória
docente, descobrindo o sentido e o significado de minhas ações e decisões.

A reflexão sobre a ação envolve um distanciamento da situação vivida, uma


reconstrução mental da experiência, no sentido de analisá-la retrospectivamente.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 263
Tem-se como finalidade descrever e analisar um conhecimento que está implícito
na ação. (SANTOS, 2008, p. 208, grifo do autor).

O docente, tendo o entendimento crítico acerca de suas práticas curriculares, pode


utilizar a reflexão sobre o seu conhecimento e sua experiência para a proliferação da
criticidade. Assim é que me vejo tentando um caminho novo, voltando meu olhar para os
produtos que coloco no mundo, refletindo sobre o meu processo criativo, pois é como vejo a
atividade de professor, como uma ação criativa.

[...] como os indivíduos dão forma à suas experiências e sentido ao que antes não
tinha, como constroem a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos
territórios que habitam e são por eles habitados, mediante o processos de
biografização (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 371).

Nesse sentido, é importante compreender a importância do currículo na formação


profissional, pois em todas as ações da prática pedagógica, estão subjacentes suas
concepções. Isto é válido para avaliar, para planejar, para adotar determinada metodologia,
para se relacionar com os alunos, enfim, para organizar o trabalho docente. Trata-se de um
dos saberes sobre os quais Tardiff (1991), apud Gallego, (2013, p. 48) aponta como aquele
“exigido para que os conteúdos sejam ensinados dentro do que é previsto, devendo-se
estabelecer os objetivos, forma de ensinar e avaliar, por exemplo”.
Compreendo que currículo e formação de professores são duas faces de um mesmo
processo. A prática pedagógica é permeada pelo currículo e, nós professores, estamos
sempre trabalhando dentro desse espaço, o que garante que o currículo se concretize por
meio de nossa ação. Assim, somos também aprendizes do currículo.
Por isso, é necessário que nos eduquemos enquanto professores, como intelectuais
críticos, para que possamos produzir os conhecimentos de si, utilizando os conhecimentos
proporcionados tanto pela prática quanto pelas teorias do currículo, no exercício da
docência, como instrumento para o fortalecimento de nosso poder intelectual, visando uma
educação de qualidade e produtora de sentido tanto para nós quanto para nossos alunos.
A organização do programa dessa disciplina está permeada pelas minhas concepções,
por isso, busco numa produção anterior sintetizar o que é currículo:

[...] o currículo pode se constituir em campo de lutas e conflitos, um território no


qual estão presentes relações de poder vividas na sociedade. Nesse sentido, pode
se constituir tanto num instrumento que legitima valores, autorizando discursos,
linguagem, como também ser em um meio de garantir a afirmação de vozes
historicamente silenciadas, instituindo o diálogo entre as diferenças. O currículo
corresponde a uma forma de política cultural (PINTO, 2005, p. 87).

Essa perspectiva é o que me estimula a assumir tarefas, cada vez mais voltadas para a
reversão das condições de subjugação às quais se encontram negras e índios e, ainda, da
revisão crítica da narrativa colonialista de educação e cultura que herdamos da
modernidade. Nesse sentido, currículo também é uma narrativa que pode ser contada em
prol dos grupos marginalizados culturalmente, a partir de categorias que expressem sua
visão de mundo e modo de vida.
Tenho me aproximado, também, da perspectiva defendida por Goodson (2007, p.
242) de que é “precisamos mudar de um currículo prescritivo para um currículo como

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 264


identidade narrativa; de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem
narrativa de gerenciamento da vida”.
Convivo com colegas, alunos e outros sujeitos pertencentes a classes, etnias,
gêneros, sexualidades, religiosidades diferentes, os quais têm compreensões diversas do
mundo, da vida, das relações sociais, com símbolos, rituais, crenças, valores diferenciados.
Nesse contexto, eu e meus alunos/as entrelaçamos as mãos para caminharmos juntos,
mesmo sabendo-nos sujeitos possuidores de um modo de vida próprio, costumes,
conhecimentos, etc., ainda assim, capazes de atuar juntos como protagonistas na construção
coletiva dos conhecimentos e sentidos que tecem os fios da trama do currículo. A categoria
sujeito unifica, mas, também, preserva as diferenças, o que possibilita o diálogo que
consubstancia em mediação formadora.
A proposta curricular do curso de Pedagogia, Uneb, Campus XII, que os sujeitos dessa
pesquisa cursaram, data de abril de 2004, mas, sofreu reformulações a partir da Resolução
CNE/CP, Nº 1 de 15 de maio de 2006, quando foram instituídas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia e Licenciatura e, em 2008, quando
foram feitas novas adaptações a algumas resoluções do Conselho Superior da Universidade e
à Lei 11.645/2008.
Os alunos que cursaram a disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no
terceiro semestre de pedagogia têm sua trajetória curricular delineada a partir de uma
perspectiva interdisciplinar, conforme definido na Proposta Curricular. Na justificativa do
documento, faz-se uma opção “pelo uso da expressão ‘matriz curricular’ que “aponta para o
conceito de currículo para além da listagem de conteúdos, do saber ‘atrás das grades’”.
(UNEB, 2004, p. 29).
O documento é intitulado “Proposta de redimensionamento dos cursos de formação
de professores – licenciatura plena em Pedagogia: docência e gestão de processos
educativos”. A matriz é organizada em eixos de conhecimentos, sendo que cada período
aborda uma temática. Esses eixos devem ser trabalhados de modo a construir novos objetos
do conhecimento a partir da ação interdisciplinar proposta no documento. Isto significa que
além das disciplinas de cada período letivo, há um espaço designado de eixo interdisciplinar,
que deve ser articulado às outras atividades desenvolvidas naquele contexto – o chamado
“Trabalho do Eixo Interdiciplinar”.
No semestre em que teve início essa pesquisa, o “Trabalho do Eixo” voltou-se para as
discussões das relações raciais. Foi elaborado e executado um projeto no qual todas as
disciplinas se articularam em torno desse assunto.
Em 2007 foi introduzida a disciplina Educação e Cultura Afro brasileira, atendendo à
necessidade de formação dos professores da educação básica, conforme exigências da Lei
10.639/2003. A ementa dessa disciplina foi organizada assim:

Educação anti-racista: contexto escolar e prática docente. Discriminação


racial/educação: (re) pensando a identidade étnico-racial do/a educador/a
e dos/as educandos/as. Políticas de Ação Afirmativa e a Lei 10.639/03.
Material didático: valorização e resgate da história e cultura afro-brasileira,
desconstruindo estereótipos.
Posteriormente, com a vigência da Lei 11645/2008, foi feita uma nova adaptação,
apresentando outra disciplina, que incluía a questão indígena e excluíndo a anterior, mas
mantendo-se a carga horária.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 265
Discriminação étnico-racial/educação: (re)pensando a identidade étnico-
racial do(a) educador(a) e dos(as) educandos(as). Educação anti-racista:
contexto escolar e prática docente. Políticas de Ação Afirmativa e
Legislação específica. Análise e produção de material didático. Valorização e
resgate da história e cultura afro-brasileira e indígena: desconstruindo
estereótipos.
A ementa é uma síntese do programa da disciplina a ser desenvolvido durante o
curso. Juntamente com ela é apresentada uma bibliografia como sugestão ao trabalho do
professor. Assim, ao analisar o plano de curso da primeira turma que cursou a disciplina que
hora analiso, percebi que o mesmo enfocava predominantemente a história e que a
professora ministrante era licenciada em história. Obviamente o curso fora muito bem
planejado e apresentava temáticas extremamente relevantes.
Todavia, quando assumi a disciplina, realizei uma pesquisa bibliográfica para dar um
recorte que tivesse o foco voltado para as questões mais comuns do cotidiano da sala de
aula da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim, elaborei um
esboço de Plano de Curso, para ser desenvolvido no semestre letivo, após ser apresentado e
discutido com os alunos, incluindo questões que lhes interessavam ou que fossem polêmicas
e que pudessem ajudá-los no fazer docente.
Minhas análises, minhas sínteses e perspectivas têm sido um espaço no qual alinhavo
minha vida às diversas vidas com as quais tenho estado unida dentro do curso do currículo.
Nesse sentido, eu também tenho procurado me formar dentro da organização na qual atuo
para além dos conhecimentos dos livros e dos diversos cursos realizados. Esse movimento é
diferente, na medida em que ocorre em espaços administrativos, colegiados, entre colegas,
entre alunos, na coordenação de projetos de pesquisa e extensão, representações dentro e
fora da universidade, a partir da leitura de documentos como a própria proposta curricular
do curso, entre outras ações nas quais atuo como protagonista ou como participante,
apenas.
Assim é que me venho autoformando enquanto professora da disciplina, juntamente
com a própria reformulação do currículo e com as mudanças na sociedade. Sinto essa
evolução e procuro fluir junto com esse movimento, que tende a ganhar mais força, à
medida que realizo reflexões pessoais que se somam às de outros sujeitos que atuam nesse
campo do conhecimento.
No contexto da discussão da reorientação curricular de São Paulo, Freire (1991, p. 41)
afirmou: “todo projeto pedagógico é político e se acha molhado de ideologia”. Tenho
pensado muito nessa afirmação, uma vez que a lógica natural é compreender o currículo
como uma narrativa. Isto significa que meu percurso profissional como professora no ensino
superior também faz de mim alguém que passou e passa longo tempo costurando narrativas
e textos.

A disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena na sala de aula

Tenho procurado desenvolver a disciplina abordando conteúdos relativos ao sentido


e ao significado de educação e cultura, na perspectiva dos estudos culturais (SILVA, 2001),
destacando o conceito de cultura como prática de significação. Com apoio teórico de
Moreira (2001), discuti, com a turma, quais conteúdos trabalhar, questionando sobre qual
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 266
perspectiva abordar os conteúdos sobre África, refletindo sobre qual África deve ser
conhecida. Analisamos o que são as africanidades brasileiras, a história de luta dos
quilombolas (Carvalho, 1993), a infância afrodescendente (Santos, 2006) e a questão dos
mitos, na perspectiva da cosmovisão religiosa africana, o Candomblé, os Orixás, etc.
Apresentei à turma, também, quais são os conteúdos relevantes para a compreensão
dos conceitos de racismo, preconceito e discriminação, em publicação organizada por
Munanga e Ana Célia Silva (2001). Apresentamos vídeos, literatura infantil e infanto-juvenil,
abordando o cotidiano das escolas de Educação Infantil e Séries Iniciais, sugeridos nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Diversos materiais foram trabalhados, destacando algumas personagens negras e
protagonistas de feitos históricos, culturais. Explorei bastante o uso de imagens, filmes,
entre outros. Todo esse trabalho foi acompanhado pela turma que registrou tudo nos
portfólios. Além, disso, alguns fizeram também levantamentos bibliográficos, dentre outras
buscas e reuniram muito material relacionado à disciplina. Diante disso, acabamos
acrescentando parte desse material ao planejamento das aulas.
No início do curso, as ações afirmativas, ou discriminação positiva também têm sido
conteúdos básicos, os quais têm gerado muita polêmica no que tange à questão das cotas.
Ao final do curso, a maioria compreende e até passa a defender a necessidade das ações
afirmativas.
Tendo situado essas questões, retomo uma reflexão sobre minha ação e sua
influência na formação do pedagogo do Campus XII da Uneb, com o sentimento e o desejo
de encontrar respostas, mas também produzir conhecimentos que me conduzam à melhor
direção no trato da educação anti-racista. Tomo como pressupostos fundamentais a união
entre teoria e prática. Nessa perspectiva, a prática não significa simplesmente a aplicação de
teoria, mas “são dois componentes indissolúveis da ‘práxis’ definida como teórico-prática,
ou seja, têm um lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente prático” (VASQUEZ,
1977, p. 241, apud CANDAU, 1993, p. 55).
Assim é que percebo que nossa ação – da turma e minha – pode ser definidora de
uma proposta que mesmo procurando atender ao que está no currículo prescrito vai além
dele. Nesse sentido apresento, primeiramente, um flash das atividades de sala de aula, por
meio das memórias das aulas, tentando refletir sobre o que emerge da interação com a
turma.

Construindo o planejamento

Tenho como principio básico iniciar o ano letivo apresentando um esboço de plano
de curso à classe, discutindo o porquê das minhas escolhas, destacando os critérios usados
para a seleção dos conteúdos, além de apresentar os objetivos a serem atingidos. Quando a
turma realiza questionamentos ou sugere a inclusão de algumas temáticas, discutimos até
chegarmos a um consenso sobre a pertinência ou não dessa inclusão. Em alguns casos a
turma não se motiva muito a participar, deixando toda a decisão sob minha
responsabilidade. Mas, isso pode mudar no decurso de nossos trabalhos, onde as mudanças
são bem vindas ao longo do semestre. Todavia, tudo tem que ser organizado no
planejamento, que é sempre provisório, mesmo que seja registrado num documento
burocrático, que é o plano a ser submetido ao colegiado de curso.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 267
No caso dessa turma, registrei na memória do primeiro dia de aula:

Apresentei o plano, lendo cada item, de estudos até as referências


bibliográficas. Os alunos participaram de forma limitada, pois não se
dispuseram a falar muito. Mesmo os graduandos que já haviam trabalhado
como professores nas escolas particulares ou em projetos como o Peti63 e
outros. Afirmam que não trabalham com a questão afro-brasileira,
conforme disposto nas Leis 10639/03 e 11645/08 e Diretrizes próprias.
As professoras/graduandas do município afirmam que também não
trabalham “adequadamente”, mas, apenas, nas datas comemorativas.
(Memória da 1ª Aula dia 16/07/2009)

Percebo que mesmo após seis anos de vigência das leis que alteraram a principal lei
da educação, a Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB) n. 9394/96, estabelecendo a
obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas
públicas e privadas do ensino fundamental e médio, garantindo o acesso ao conhecimento
sobre as relações raciais e a história e cultura dos povos negros e indígenas, essa discussão
ainda não é muito bem conhecida nem por muitos educadores nem pela sociedade civil.
Mas, a constatação da lentidão desse processo de implementação da lei não me
desmotiva a continuar a fazer esse trabalho semelhante ao da formiguinha que carrega sua
folha em direção ao formigueiro. O que não devo é perder de vista um horizonte maior, que
é o fato de estar atuando numa classe de futuros pedagogos, que poderão seguir a carreira
de professores, podendo desempenhar importante papel na educação básica, formando
sujeitos mais democráticos e respeitadores da diversidade etnicorracial.

Atividades de aula

Geralmente, na primeira unidade, prefiro levar informações e materiais que causem


certo impacto, de modo a despertar o interesse sobre os conteúdos mais densos de forma
agradável. Assim, utilizo textos de revistas de curiosidades científicas e culturais mais leves,
voltadas para o público jovem e adulto. Vamos abrindo caminhos nessa seara e
conquistando territórios (no currículo) com prazer.

Dialoguei com a turma sobre o encaminhamento dos trabalhos de hoje [...]. Assim
explico os objetivos da aula e apresento o material - questões sobre o
filme/documentário “A origem do homem”, do Discovery Channel 64 e os textos –
1); “Viemos todos da África”, da Revista Planeta abril, 2008, pág. 18 – 23, 3) e 2);
“As filhas de Eva” da Revista Super Interessante, junho 2000, p. 83 – 87.
Os grupos se organizaram em 4 e 5 pessoas para ler o dois textos e responder às
questões levantadas.

63
“O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) é um Programa do Governo Federal que tem como
objetivo retirar as crianças e adolescentes, de 07 a 14 anos, do trabalho considerado perigoso, penoso,
insalubre ou degradante, ou seja, aquele trabalho que coloca em risco a saúde e segurança das crianças e
adolescentes”.
Cf. http://portal.mte.gov.br/delegacias/sp/peti-programa-de-erradicacao-ao-trabalho-infantil/. Acesso em
10/02/2012.
64
Cf.<http://discoveryblog-documentarios.blogspot.com.br/2009/05/documentarios-discovery-channel-
africa.html>. Acesso em: 28/02/2014.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 268
[...] Os grupos responderam as questões sobre o documentário, já temos sugestões
para aprofundar melhor algumas categorias e conceitos como: raça, racismo,
preconceito e discriminação, além de explicar sobre assuntos do documentário
como, por exemplo, a melanina e a Lei da seleção natural, para melhor
compreender, o que foi abordado sobre as alterações ocorridas no corpo do
homem moderno (características fenotípicas), conforme se adaptava nas diversas
regiões do planeta.
Os grupos foram para os diversos espaços, como sala de leitura, corredor, ficaram
na sala (maioria) para realizar as atividades propostas.
Utilizaremos 2 encontros – 4 aulas para trabalhar essas questões, já que na
próxima aula faremos as discussões em um painel (grande grupo), além da minha
própria abordagem, explicando algumas teorias. (Memorial do dia 23/07 –
segunda aula).

O trabalho com esse documentário foi muito rico, pois além de criar oportunidades para
discutir teorias sobre a formação do homem moderno, permitiu que fossem travadas discussões
sobre raça, etnia, racismo, preconceito, discriminação. Além disso, recorremos ao uso de mapas,
para conhecer a África, sob diversos ângulos, com apoio de representações cartográficas voltadas
para a desconstrução de imagens e conceitos estereotipados, os quais têm sido historicamente
narrados sob a perspectiva colonizadora e ocidental, conforme mostrado por Said (2007), que nos
revela o modo como o ocidente inventa um conceito de oriente permeado por representações que o
coloca como incapaz e inferior.
Um fato ocorrido nesse período, que merece ser lembrado refere-se à ausência de mapas da
África na Biblioteca do Campus. Busquei esse tipo de material para preparar a aula, mas só havia um
globo terrestre, o qual foi utilizado juntamente com os mapas e imagens que reuni. Isso é revelador
do quanto ainda é necessário criar as condições e a estrutura para trabalhar esses novos conteúdos,
como a produção de materiais curriculares, dentre outras necessidades.
Sem perder o foco da formação de professores para atender as crianças dos anos iniciais do
Ensino Fundamental e a Educação Infantil, aproveitamos essa oportunidade para analisar os
materiais didáticos, principalmente os livros adotados na rede municipal e estadual da cidade de
Guanambi, fazendo relações com o que discutimos nessas aulas. É o que mostra a memória do
terceiro encontro.

Após a conclusão dessas discussões, passamos a analisar alguns mapas de livros


didáticos da 4ª serie do Ensino Fundamental (5º ano) 65. Estes já trazem conteúdos
sobre os povos indígenas. Analisamos, também, informações relevantes e críticas,
mostrando a África como um continente, com diferentes regiões geográficas,
climáticas, políticas e culturais, destacando seus diversos países. Observamos que o
livro já continha textos, imagens e conteúdos que possibilitavam localizar em
diversos mapas do Brasil a distribuição dos povos indígenas e outros
conhecimentos significativos sobre seu trabalho, estratégias de sobrevivência,
alimentação, mitos indígenas, etc.
Mesmo as graduandas que eram professoras desconheciam que já se trabalhavam
esses conteúdos nos livros didáticos e dizem que não sabem como abordar essas
questões. Isso permitiu que levantássemos questionamentos sobre a necessidade
do professor em formação inicial, se situar diante dessas discussões que emergem
em sala de aula.
Diante disso, constatou-se a importância de se conhecer não apenas as discussões
acadêmicas, mas também o que se anuncia nos materiais curriculares e livros a
partir das leis 10639/03 e Lei 11645/08. (Memória do dia 22/07)

65
História Série Brasil. 4ª Série. A presença Indígena e Negra no Brasil, de Maria Aparecida Lima Dias. Editora
Ática.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 269
Alguns alunos me procuraram anteriormente para fazer importantes colocações,
apresentando informações que obtiveram das leituras de outras fontes não indicadas nas
minhas referências e de cursos e encontros dos quais participaram, motivados pela
disciplina. Uma aluna referiu-se a um evento que ocorre anualmente numa cidade próxima,
sobre o “negro” e sobre o material do palestrante, um professor que fez sua tese de
doutorado, tendo realizado pesquisas na África por dois anos. Alguns dados do
documentário coincidiram com aquelas que foram apresentadas pela aluna sobre o trabalho
desse professor da Uneb nesse evento. Além disso, diversos alunos acrescentaram outros
fatos e detalhes importantes para a compreensão da história antiga da África e para sua
contribuição ao processo civilizatório de humanidade.
O interessante é que em cada aula, abríamos espaço66 para quem desejasse
acrescentar outras fontes pesquisadas e sugerir textos, vídeos e filmes. E, assim, foi feito,
com ampla participação da maioria. Mas, houve, ainda, alunos que contribuíram muito com
as aulas e com sua própria formação, juntando muito material interessante no Portfólio.
A retomada das memórias das aulas se constitui numa atividade muito agradável,
entretanto passarei a mostrar um pouco do que os portfólios apresentam. Os
procedimentos da análise envolveram: a) uma leitura exploratória do conjunto dos textos
produzidos a cada aula e do material juntado pelas autoras; b) releitura dos portfólios,
procurando identificar a interface entre o currículo proposto e o currículo experienciado
pelos graduandos.

No portfólio, os estudantes deixam registrado de maneira concreta o seu caminho


ao longo da escolaridade. Funciona como “um baú de memórias”. Ao final do ano
ou ciclo, o estudante terá um dossiê de sua trajetória e poderá ter um acervo de
material rico para lhe auxiliar nas suas próximas etapas. (FERNANDES E FREITAS,
2007, p. 32).

Nesse sentido o portfólio serviu como instrumento de avaliação, “dossiê” e como


“acervo de material”, conforme destacado pelos autores acima. A cada aula, o estudante
deveria escrever sobre aquele momento e juntar o material trabalhado, além de acrescentar
outras coisas que considerasse pertinentes. Em relação ao trabalho sobre o documentário “A
origem do homem”, foram distribuídos textos e questões para reflexão e discussão nos
grupos. Esse material foi incluído nos portfólios, com a seguinte interpretação:

O 1º conteúdo explicado pela professora foi sobre a “origem do homem”. Passando


um documentário, que conta a história de uma mulher, denominada Eva
(mitocondrial), que viva na África há 140.000 anos. Mas, também é a história de
todos os seres humanos que vivem na terra hoje. Conta como todos fazem parte de
uma pequena família, como descendentes de um grupo de pessoas que deixaram a
África há 80.000 anos, e pouco a pouco, chegou à América. (Aluna A).

São vários os indícios que nos revelam que mesmo havendo misturas de genes,
formando uma só raça [...]. Que a origem do homem moderno está na África.
(ALUNA B).

66
Para cada aula era destinado um tempo de 15 minutos para que fossem apresentadas informações, materiais
e outras contribuições que os graduandos desejassem fazer. Esse tempo sempre foi utilizado de forma muito
eficiente e agradável.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 270
Mais adiante, a aluna B escreve sobre se há motivos e argumentos que justifiquem as
práticas de racismo, preconceito e discriminação baseados na ideia de raça:

Não há motivos e argumentos para estas práticas racistas [...]. Sinais de diversidade
como a cor da pele, religião, hábitos e lugares de origem continuam a causar
problemas para milhões de pessoas.
No dia 30/07 houve continuação da discussão sobre o documentário, fazendo uma
relação com o texto “Viemos todos da África”, no qual retrata o surgimento dos
povos e para onde foram.
Aconteceu também uma breve reflexão sobre a evolução da espécie humana, onde
a discussão se pautou no surgimento dos Neandertais. . (ALUNA B).

É importante, mostrar mais um excerto de Portfólio, que revela como o trabalho foi
abraçado pelo grupo de alunos/sujeitos da pesquisa. Percebo que há entusiasmo nas
descrições e interpretações da Aluna C quanto a essa mesma discussão:

30/07/2009. Término das discussões dos textos: “todos nós viemos da África” e “As
filhas de Eva” e do documentário: “A origem do homem” para conclusão das
perguntas /análise de mapas da África, do deserto do Saara e Egito/Pontos
Cardeais e Rosa dos ventos e análise da questão indígena e Negra no Brasil,
verificando em livros didáticos do Ensino Fundamental como é trabalhada essa
temática nas escolas (livro: História Série Brasil – 4ª Série – “A presença Indígena e
Negra no Brasil”- Maria Aparecida Lima Dias – Editora Ática.
O documentário ajuda-nos a entender que todos tivemos a mesma origem! E
também, a compreender a importância de aceitar as pessoas como são,
respeitando suas diferenças. As práticas de racismo, preconceito e discriminação
são abomináveis em todas as suas formas e devem ser combatidas. É inadmissível
que o ser humano dotado de faculdades de raciocinar, pensar e sentir seja
intolerante e cruel com os seus semelhantes. Apesar de diferentes, todos nós
temos a mesma origem e pertencemos a uma única raça e como tal, precisamos ser
considerados e respeitados!

A aluna acima acrescentou diversos outros textos ao seu material e elaborou um


glossário e listas de conceitos para cada temática estudada. Nesse sentido, o Portfólio se
caracteriza como um instrumento que contribui para “o processo de construção pessoal do
conhecimento” (SILVA, 2006, p. 36), além de ser uma “estratégia muito útil para a formação,
constituindo um modelo de avaliação alternativo às formas tradicionais” (SILVA, 2006, p. 36).
É o que percebo também nos textos escritos por algumas alunas em seus Portfólios na
introdução, desenvolvimento e na conclusão:

Os índios querem que os brancos respeitem suas terras. Os Ashaninka tiveram que
procurar ajuda para se instalarem em suas reservas, proibiram entradas e fecharam
portões, mostrando para todos que os índios são capazes de sobreviver e se
fortalecerem politicamente, conhecer suas leis, ter uma organização para defender
seus direitos. [...]. (ALUNA A).

No caso acima, trata-se da reflexão da aluna sobre um texto que discute a situação
dos índios no Brasil que discutimos após assistir também ao documentário67: Índios no

67
Pluralidade Cultural. Índios no Brasil, quem são eles?
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do>. Acesso em: jun 2009.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 271


Brasil: quem são eles? Além do que foi descrito acima, a turma fez a leitura do texto e uma
produção escrita sobre o mesmo. Outros fizeram reflexões mais críticas, conforme pode ser
visto a seguir.

Essa disciplina está sendo muito importante na minha formação profissional,


enquanto professora crítica e consciente das práticas racistas, preconceituosas e
discriminatórias inegáveis na área da educação. É um desafio à nossa prática
pedagógica desenvolver um currículo inclusivo e democrático que respeite a
diversidade e a diferença, apresentando aos alunos a verdadeira história dos povos
que compõem a nossa nação. Negros e indígenas: povos que formam a base da
cultura e da história de todo o povo brasileiro e configurando o eixo central na
estrutura de nossas origens. (ALUNA C).

As reflexões dessa aluna sinalizam que a inserção da temática das relações raciais na
formação de professores dos anos iniciais da Educação Básica pode realmente contribuir
para forjar identidades profissionais mais comprometidas com a construção de uma
sociedade mais democrática e igualitária. Isso é fundamental na preparação de profissionais
que vão trabalhar com crianças pequenas.
Em outro Portfólio, outra graduanda apresenta o conteúdo do que desenvolvemos na
aula e do que ela acrescentou, a partir de outros materiais que ela mesma associou àquilo
que fazíamos, como “ilustrações, acrósticos, poemas e reportagens” (ALUNA C).

Este portfólio, realizado por mim, baseado nas informações obtidas através de
pesquisas em livros, sites educativos, slides e discussões em sala de aula. Constam
relatos ocorridos nas aulas da disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena
durante o período de dezesseis de julho de dois mil e nove a doze de novembro do
mesmo ano, bem como descrições das aulas expositivas, discussões, textos,
trabalhos, avaliações, sinopses de filmes, ilustrações, acrósticos, poemas e
reportagens, em anexo. (ALUNA D).

Uma das indagações levantadas nesta pesquisa refere-se ao que é essencial a ser abordado
nessa disciplina. Mas, os conteúdos que emergem das produções dos alunos são reveladores
de que é muito importante a construção de uma consciência crítica sobre a situação em que
vivemos no Brasil, onde é difundido o discurso da democracia racial, mas que no fundo
impera a marginalização cultural e racial a ponto de ser preciso criar políticas, programas e
projetos que nos façam perceber a necessidade de mudanças profundas nas formas como
nos relacionamos.

Em 29/10/2009 foi passado um documentário com o tema “Educação Infantil e


relações raciais”, enfatizando como as escolas devem estabelecer, no currículo, a
cultura afro-brasileira, desde a educação infantil [...]. (ALUNA F)

Do que foi analisado até aqui, neste artigo, sobre o currículo prescrito e o vivido, o
que não inclui os dados das entrevistas, pode-se antever que os conceitos de preconceito,
estereótipo, racismo e discriminação são conteúdos essenciais, na formação do pedagogo. O
mais interessante é que atualmente há diversos materiais que podem ser trabalhados68, de
modo a enriquecer as aulas e travar diálogos fecundos bem como construir argumentos

68
O filme “Vista Minha Pele”, por exemplo, foi importante nesse contexto. Mas, há, ainda, documentários,
textos, oficinas pedagógicas, músicas, livros infantis, entre outras coisas.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 272
sólidos para a construção de uma pedagogia reversiva das relações de inferiorização de
índios e negros.
Mas, além disso, é necessário adentrar também em conteúdos históricos e dados
mais pontuais sobre a situação dos povos indígenas e da população negra no Brasil, por isso,
não é possível dispensar alguns livros de História da África69 e do Brasil. Mas, também é
fundamental analisar criticamente os livros didáticos de História dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, recorrer aos livros de literatura infantil e infanto-juvenil, que podem ser
explorados de diversas formas, como a contação de histórias e preparação de atividades a
partir delas. Em nosso caso, pedimos também aos grupos para elaborarem planos de aulas
para turmas de Educação Infantil, os quais foram apresentados e avaliados por toda a turma,
quando foram feitas considerações sobre a pertinência ou não das temáticas selecionadas e
as metodologias propostas.
Também é relevante lembrar que não pode ficar de fora do programa dessa disciplina
a discussão sobre as religiões africanas e afro-brasileiras. Para trabalhar esse conteúdo,
todavia, é preciso estar bastante fundamentado, uma vez que, ainda hoje, a depender da
forma de abordagem, pode se tornar um assunto polêmico, mas que pode ser trabalhado de
forma muito agradável tanto na formação de professores quanto nas atividades com as
crianças, usando músicas, livros de literatura, documentários, imagens, ente outros.

Considerações finais

Captar a experiência do sujeito só é possível por meio de suas produções, tais como
relatos e entrevistas ou outros dispositivos que lhe permitam expressar o modo como
interpreta a realidade. Assim, até o momento, foi possível perceber que tanto eu, na
condição de professora, quanto meus alunos, nos tornamos centrais no contexto da reflexão
sobre as ações que desempenho como docente. Tudo isso, porque acreditamos que as
aprendizagens resultantes de um percurso curricular específico podem ser compartilhadas,
tendo em vista a compreensão desse processo formativo.
Percebe-se que a maioria dos portfolios analisados registram atividades que
procuramos desenvolver e que se encontram no programa da disciplina. Além disso, a
qualidade com que os trabalhos foram apresentados esteticamente, bem como os
conteúdos que transcenderam o que foi planejado revela que todos se uniram em torno do
projeto proposto por mim e, melhor do que isso, avançaram além do que planejei. Ademais,
percebo que os conteúdos que considero essenciais foram trabalhados, permitindo que os
futuros pedagogos possam se conscientizar da necessidade de atuar como profissionais
éticos e substancialmente democráticos, a partir de pressupostos epistemológicos e políticos
baseados no respeito aos direitos humanos, na valorização da diversidade e na construção
de uma educação descolonizadora.

69
Ver por exemplo M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII). Salvador,
Edufba, 2009, além de obras desse nível que abordam a questão indígena. Há materiais produzidos pela
SECAD, como o livro de LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os
povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 273


A luta empreendida por militantes, ativistas, pensadores, profissionais da educação
e membros do movimento negro e indígena entre outros, que culminou com a aprovação de
leis que garantem a inserção da História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e indígena na
Educação Básica, tem como objetivo assegurar o direito à igualdade de condições de vida e
de cidadania aos brasileiros. Nesse sentido, os cursos de formação de professores são postos
diante de novos desafios que os levam a reestruturar e reorganizar seus currículos para
atender às exigências da formação docente.
A implementação de políticas voltadas para a construção de uma educação
antirracista visando o cumprimento dos objetivos das Leis 10.639/2003 e 11. 645/2008 exige
que se realizem ações, reflexões e avaliação sobre a condução e os desdobramentos desse
processo no sistema educativo brasileiro. Percebemos que a decisão de oferecer a disciplina
nos cursos de formação de professores, por exemplo, é uma necessidade, porém não é
suficiente. A consolidação dessas ações ainda deve demorar um pouco mais. Mas, é preciso
continuar a investir em não apenas na formação, mas na gestão do sistema educativo, na
produção de material didático e paradidático, além de acompanhar a atuação dos Conselhos
Municipais na fiscalização e observância da Lei, conforme assevera Gomes (2010).

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 275


Os fios da matemática nas narrativas de pedagogas

Isabela Benevides de Melo


UESB
belinhativa@yahoo.com.br
Jussara Midlej
UESB
jumidlej@hotmail.com

Este texto apresenta o recorte de uma pesquisa, ora em andamento, vinculada ao Programa de Pesquisa e Pós-
Graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Atrela-se a perspectivas
epistemológicas e metodológicas (auto)biográficas na expectativa de que a ativação memorialística de
trajetórias pessoais e profissionais possa contribuir para ampliar produções de conhecimento acerca do agir e
do pensar humanos, especificamente articulados à docência de pedagogos na disciplina Matemática a partir da
questão de pesquisa: Como as experiências vividas com a Matemática, nos percursos de formação, se
expressam na professoralidade de pedagogos/professores? A mobilização para este estudo deu-se a partir de
inquietações com o ensino e a aprendizagem da Matemática, desde que adentrei à escola e posteriormente
através de contatos com colegas pedagogos, docentes em classes dos anos iniciais do ensino fundamental, os
quais apontavam para dificuldades na organização e desenvolvimento de situações de ensino e aprendizagem
relacionadas ao citado componente curricular. A sua realização acontece com a participação de 4 pedagogas
que atuam em classes dos anos iniciais do ensino fundamental. Seus objetivos: Analisar experiências e
percursos de formação de pedagogos/professores e as possibilidades destas terem resvalado para os modos de
composição da professoralidade; compreender como se evidenciam, na professoralidade de
pedagogos/professores, seus movimentos de professoralização, em especial na lida com a Matemática;
identificar como foram estabelecidas as relações de pedagogas/professores com a Matemática no interior de
uma licenciatura em Pedagogia. Há expectativas de que esta investigação ganhe um cunho formativo e acione
renovados movimentos de professoralização de pedagogos/professores a partir de ações vitais de
(re)construção de si mesmos.
Palavras-chave: Pedagogos/professores. Educação básica. Anos iniciais. Matemática.

Os primeiros fios

“A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriarmo-nos de
nossa própria vida”. (LARROSA, 2002, p. 25)

Na composição deste texto nos convocamos a pensar acerca da tessitura da vida


humana propondo o entrelaçamento dos seguintes fios: vida, experiência e formação num
processo de costura do ser-sendo. Tal intento decorre da percepção sobre a necessidade da
construção de diálogos cujas direções apontem para perspectivas de formação que
vislumbrem a ruptura com modelos preestabelecidos e fixos cujas finalidades consistem no
enclausuramento dos homens a fim de adaptá-los às exigências do capitalismo como sistema
vigente em nossa sociedade que interfere nas instâncias formativas a fim de garantir o
controle da sua manutenção (PARO,2007; 2011). Assim, as marcas deste escrito se ancoram
na subjetividade humana como cerne para pensar a formação, uma vez que nos propomos a
pensá-la como percurso de constituição de si, ou seja, colocamos neste trabalho a formação
docente vinculada à imbricação do professor pessoa e profissional, por concebermos que
são dimensões do ser e por isso é essencial não separá-las ou dicotimizá-las (NÓVOA, 1995;
PEREIRA, 1996; 2001; 2010).
A estreita relação entre os fios da vida, da experiência e da formação que sinalizamos
como alicerce da nossa pesquisa se explicita nos acontecimentos aos quais atribuímos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 276
sentidos no movimento de desfazimento-refazimento do eu pela individuação em que o
sujeito vai alcançando fases de si no processo de invenção, dando lugar à diferença no lugar
da repetição. Nessa via ocorre a abertura para que o ser permita se abalar e produza as
marcas da ruptura com o que vinha sendo, o que resulta na produção de novas
configurações de si (DELEUZE e GUATTARI, 1995; SIMONDON, 1989).
Desse modo, inscrevemos aqui uma visão de formação como processo de
autoformação em que os sujeitos vão construindo as escritas de si através da
heteroformação e da ecoformação que se configuram como as forças dos outros e do meio
interferindo nos abalos do eu como indivíduo, o que proporciona as afetações e as
elaborações que produzimos para responder a essa provocações (PINEAU, 2010). Nessa
perspectiva, a educaçãoformação está inserida no projeto do devir (DELEUZE e GUATTARI,
1995), num movimento permanente que se processa ao longo da existência, constituindo a
infinitude na finitude (FREIRE, 1987). Nessa ótica, a educação corresponde a um
empreendimento de superação pelas vias da transformação eu-mundo em oposição ao
modelo de permanência do estabelecido que propõe um estado de conformismo nas
pessoas. Há, com isso, o interesse na análise de experiências escolares e suas possibilidades
de resvalar-se para os modos de composição de uma denominada professoralidade;
conceito que traduz a constituição do ser professor como produção que ultrapassa uma
identidade fixa, rompe com estereótipos e se vincula ao modo como o indivíduo vai se
constituindo no mundo vivido (PEREIRA, 2010).
Queremos, portanto, aprofundar a compreensão das experiências vividas durante os
percursos formativos, em especial as experiências com a Matemática, o que tem implicado
buscar na reflexão biográfica marcas de historicidade para além do tempo de agora. Tais
intenções acontecem no entendimento de que “é investigando como me tornei o professor
que sou, por que me tornei o professor que estou sendo é que investigo a professoralidade”
(PEREIRA, 2010, p. 67).
Justificamos a intencionalidade deste estudo a partir de inquietações pessoais, além
de contatos e vivências pontuais com colegas pedagogos, docentes dos anos iniciais do
ensino fundamental, que amiúde, apontavam (apontam) para dificuldades na organização de
situações de ensino e aprendizagem atrelados ao citado componente curricular. Nossa
mobilização reside assim na atribuição de sentidos ao que aconteceu e ao que está
acontecendo; às interpretações e significações que se atribuem às próprias experiências
formativas, aos citados movimentos de professoralização (PEREIRA, 1996; 2010; 2013). Esses
movimentos são as mobilizações empregadas pelos docentes na escolha da profissão, nas
formas produzidas para a permanência como professor; nas linhas com as quais a pessoa
tece o percurso profissional como uma costura que vai sendo produzida fio a fio,
desmanchada, refeita e jamais acabada porque está sempre a sofrer atualizações.
Partindo de tais premissas, enunciamos caminhos de investigação conectados a uma
alternativa teórico-metodológica colocada a serviço da pessoa que se interroga a si própria e
cuja tematização passa pelas próprias experiências de vida como percurso formativo no qual
o indivíduo vai constituindo-se de modo evolutivo numa definição de si mesmo (JOSSO,
2007, p. 416). Desse modo, numa vinculação entre a abordagem autobiográfica e o campo
educativo, formulamos a questão norteadora deste estudo: Como as experiências vividas
com a Matemática, nos percursos de formação, se expressam na professoralidade de
pedagogos/ professores?

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 277


No fomento dessa indagação, estamos discutindo acerca das práticas como
produções humanas de homens e mulheres comuns que nas suas labutas cotidianas
produzem seus fazeres e dizeres (CERTEAU, 2012) como possibilidades de irmos além da
manutenção do que é prescrito e encontrarmos outros caminhos em meio às ressonâncias
do vivido na constituição subjetiva dos saberes e quefazeres docentes. Escolhemos a
escuta das vozes que geralmente são silenciadas, por entendermos que há verdades
fabricadas no intuito de manter o sistema dos privilegiados pela exploração humana. E
acreditamos que os sujeitos podem romper com a conformação que lhes é proposta na
medida em que” saem de si mesmos e se abrem para as interrogações acerca do que se é, e
realizam assim a ruptura com a reiteração rotineira” (LARROSA, 2000, p. 39-40). Atrelamo-
nos, portanto ao potencial investigativo e formativo das narrativas, apontando para “o
capital narrativo como uma nova forma de capital cultural produtor de um novo modo de
reprodução social” (GOODSON, 2007, p. 80). Modo esse que permite escapar da
prorrogação e produzir a diferença no ainda não sido. Assim podemos ir para além do que
temos sido num caminho sempre provisório.
Inscrevemos aqui a perspectiva da produção de sentidos como possibilidade de
formação através da capacidade de escutar e dizer como constituição de si rompendo com o
utilitarismo e o pragmatismo (BENJAMIN, 1987; LARROSA, 2000; PASSEGGI, 2008). É tecendo
esses fios da vida que nos lançamos nesta pesquisa carregando as marcas da nossa
implicação, vista por nós como força mobilizadora. Pois pelo nosso entendimento, o
empreendimento da investigação consiste em experiência e não em experimento. Assim
este trabalho também atinge nosso percurso formativo, e nos atravessa vigorosamente, nos
toca com as cores e texturas de cada fio dessa trama.
Abarcando a experiência como o que marca cada pessoa de maneira singular, pois
nisso reside à elaboração da subjetividade como campo de potencialidades e incertezas no
qual o eu está prenhe de devires, entre as escolhas, pressões e deslocamentos como
movimentos de atualizações do ser que vamos sendo, contemplamos o professor como estar
sendo professor em superação ao determinismo fixo do que é ser professor. Na direção
escolhida, nos debruçamos a fim de apurar o olhar para compreender lidas e
acontecimentos da docência de pedagogos, atuantes nos anos iniciais do ensino
fundamental, particularmente atrelados ao trabalho com a Matemática.
Nesse sentido, os objetivos da investigação são: analisar experiências e percursos de
formação de pedagogos/professores e as possibilidades destas terem resvalado para os
modos de composição da professoralidade; compreender como se evidenciam, na
professoralidade de pedagogos/professores, seus movimentos de professoralização, em
especial na lida com a Matemática; identificar como foram estabelecidas as relações de
pedagogas/professores com a Matemática no interior de uma licenciatura em Pedagogia. E
nas trilhas dos objetivos que delineamos ecoam questões acerca do currículo que nos fazem
refletir sobre sua organização e as formas de ensinar, dirigindo nosso foco para os interesses
e as disputas presentes nos currículos, o que nos desperta para o interesse de olhar a
produção nessa teia de relações entre o currículo escrito e o currículo em ação (GOODSON,
1995).
Desse modo, percebemos que nas narrativas produzidas pelos professores se
entrelaçam os fios de suas histórias que contam sobre seus percursos formativos e
sensibilizamo-nos em relação à relevância desse material narrativo como potencializadores
do processo de reflexão sobre as práticas e os saberes docentes, implicando na perspectiva
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 278
de movimentos desses profissionais no sentido de empreenderem os desvelamentos do eu,
do tu e do mundo através do encontro com suas próprias vozes e com as outras vozes que
ecoam nos relatos produzidos por cada um deles.

Nos fios a busca do caminho

“[...] que podemos cada um de nós fazer, sem transformar nossa inquietude em
uma história? [...] cada um tenta dar sentido a si mesmo como um ser de palavras a
partir das palavras e dos vínculos narrativos que recebeu”. (LARROSA, 2000, p. 22)

Através do nosso envolvimento com a educação, desde os caminhos da escola até a


trajetória profissional que nos permitiram percorrer os espaços da universidade e da escola
novamente, notamos um lugar de status ocupado pela Matemática numa visão
hierarquizada dos componentes curriculares de nossas instituições escolares, o que também
ocorre com a Língua Portuguesa. Ao mesmo tempo, acontece um afastamento da
Matemática no delineamento de um cenário no qual prevalece o fracasso, conforme
apontam, por exemplo, dados das últimas avaliações do Ministério da Educação (MEC), pois
apesar do indicativo de resultados melhores, há uma distância entre o alcançado e o
almejado como apresentamos a seguir.
De acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) que é uma
avaliação feita pelo MEC, nas turmas de 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e 3º ano do
Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras, para avaliar o domínio de conhecimento da
leitura, em Língua Portuguesa e da resolução de problemas, em Matemática. Segundo os
resultados, no 5º ano do Ensino Fundamental o IDEB passou de 4,6 em 2009 para 5,0 em
2011. Já no 9º ano esse crescimento foi menor: de 4,0 para apenas 4,1. O mesmo ocorreu no
3º ano do Ensino Médio, que passou de 3,6 para 3,7. O município de Jequié, onde trabalham
os sujeitos envolvidos neste estudo, alcançou os seguintes resultados: 3,1 em 2007; 3,2 em
2009 e 3,5 no ano de 201170.
No que se refere ao distanciamento da Matemática, Grando e Toricelli (2012)
afirmam “que muitos alunos escolhem o curso superior de Pedagogia ou o antigo magistério
para não esbarrarem com a Matemática, esquecendo-se de que a ensinarão a seus alunos.”
Tal afirmação me faz pensar acerca das marcas elaboradas pelos pedagogos durante o
percurso formativo que se dá desde a escola básica e depois na licenciatura. Trago as
palavras de Curi (2005) “ao apontar que os professores passam uma grande parte de seu
tempo de formação na escola, local em que irão exercer sua profissão. Isto significa que a
formação do professor se inicia muito antes de frequentar o curso específico destinado a
formá-lo profissionalmente”.
A partir da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), de 24 de
dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), a preparação dos professores da educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental deve acontecer nos cursos de licenciatura em Pedagogia, o
que destina ao referido curso o lugar de licenciatura responsável pela formação dos
docentes que trabalharão de maneira polivalente, como já ocorria com o curso de
magistério, formação exigida anteriormente. A atuação dos pedagogos envolve então o

70
Dados obtidos no site: www.mec.gov.br.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 279
ensino de todas as disciplinas a serem oferecidas aos alunos nos segmentos educacionais já
mencionados, conforme dispõe a Resolução CNE/CP Nº 1, de 15 de maio de 2006:

Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores


para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de
Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas
quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. (BRASIL, 2006, p .2).

Os pedagogos têm, portanto no exercício da docência a responsabilidade do ensino


de todas as disciplinas, por isso empregamos o termo polivalente. E sobre a relação de
pedagogos com a Matemática, Ortega e Santos (2012, p. 27) comentam que “é comum nos
depararmos com alunos de Pedagogia que afirmam ter encontrado muitas dificuldades em
relação aos conceitos matemáticos durante a Educação básica, e se mostram inseguros ao
trabalhar com tais conceitos enquanto professores”.
Como revelamos inicialmente, o presente estudo aponta para o que emerge da
labuta tecida nas peregrinações pelos espaços escolares, onde encontramos os dilemas e
desafios, que nesse caso direcionaram nossos olhares para a relação dos pedagogos com a
Matemática durante o processo formativo de suas vidas como pessoas e profissionais. A
partir disso, surge o entrelaçamento do currículo da educação básica e do currículo da
Pedagogia. O entrelaçamento a ser perscrutado entre o currículo prescrito e o currículo
vivido, ou seja, como e o que se materializa no cotidiano das pessoas na perspectiva do
cotidiano como lugar da criação e da transformação invisível e silenciosa das relações de
poder (CERTEAU, 2012).
Ademais, enfatizamos a necessidade de considerar os docentes como sujeitos que
constroem a história e possuem uma história, não sendo admissível, portanto, tratá-los
como repetidores a quem se diz o que fazer e se espera que a tarefa solicitada seja
rigorosamente cumprida. Para os professores é necessário um projeto de valorização que
compreenda a importância de investimento em formação adequada à especificidade da
profissão, bem como condições dignas de trabalho. Isso inclui estrutura da escola, tempo
para estudo e planejamento do trabalho, como também a questão salarial, a fim de garantir
ao professor o exercício da docência como profissão e não como mais uma atividade em
meio a outras tantas para a garantia do sustento. No entanto, sabemos que a maioria desses
trabalhadores experimentam condições precárias (FREIRE, 1997; NÓVOA, 1995).

Os fios das narrativas

“A educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história


de uma vida”. (JOSSO, 2010)

Para o desenvolvimento desta ação investigativa que se pretende também formativa,


escolhemos um caminho metodológico subsidiado na abordagem qualitativa da pesquisa,
pela concepção de mundo, de homem e de conhecimento que a mesma traz, viabilizando a
elaboração de um trabalho comprometido com o desenvolvimento da realidade em que a
pesquisa tem caráter político e ético, imprescindível à prática cidadã, a qual compreende os
envolvidos como sujeitos. Em tal dimensão, dialogamos com Macedo (2004) quando diz que:
“realidades sociais são constituídas por pessoas”, o que exige deste estudo um

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 280


direcionamento que ultrapasse o reducionismo do quantitativo em prol de adentrar na
complexidade do humano para ir além da mera descrição.
Buscamos apoio nesse viés em Bodgan e Biklen (1994), para os quais a realidade é
construída pelas pessoas, à medida que vão vivendo as suas vidas. As pessoas podem ser
ativas na construção e modificação do mundo real. Nesse trajeto investigativo, estamos
explorando as experiências numa relação compartilhada de caráter processual que visa
apreender os sentidos do vivido (MASINI, 1994).
Pelo aporte do método autobiográfico em Nóvoa e Finger (2010), visamos
contemplar a valorização das experiências através das histórias de vida dos
pedagogos/professores como elementos formativos, uma vez que o trabalho com as
memórias demonstram oferecer aos sujeitos a possibilidade do movimento da reflexão
crítica; as narrativas, nesse sentido, dão mostras de funcionar como dispositivos e pontes
para os desvelamentos de si como pessoa e profissional; isto nos interessa particularmente.
Reafirmamos, portanto, a utilização dos caminhos da autobiografia para a investigação. E,
nesse sentido, conduzimos este estudo para a compreensão da formação conforme os
horizontes da epistemologia da formação (NÓVOA; FINGER, 2010). Tal abordagem põe em
cena as vozes antes silenciadas dos professores na expectativa de que estas vozes possam
emanar dos contextos do eu e do mundo como forças reveladoras e ativadoras do
pensamento crítico; quiçá revelem as relações tecidas na vida afora e promovam
desvelamentos em cada instância do vivido. Finalmente, que possuam a força de abrir
fronteiras viabilizadoras de engendramentos permeados de outras experiências e possíveis
construções do ainda não vivido. Alicerçamos nossa caminhada pelas vias da (auto)biografia
por considerarmos a natureza emancipatória das histórias de vida, uma vez que essas
narrativas possibilitam o acesso ao vivido e a elaboração de reflexão crítica acerca do
conteúdo explicitado no ato de rememorar, movimento que permite o defrontar-se com o
próprio eu, caminho para oportunizar a transformação de si e de suas práticas nos caminhos
do vir a ser (JOSSO, 2007).
A pesquisa está acontecendo com a participação de quatro professoras de uma
escola pública da rede municipal de Jequié, cuja escolha tem caráter aleatório, tendo o
critério da cidade relação com os baixos índices apontados pela avaliação do MEC. Trata-se
de uma unidade escolar que atende a 120 alunos dos anos iniciais do ensino fundamental,
distribuídos em quatro turmas nos turnos matutino e vespertino. Em relação aos sujeitos
da pesquisa, há a exigência de serem licenciados em pedagogia e atuarem em salas de aula
dos anos iniciais do ensino fundamental, sendo, portanto responsáveis pelo ensino da
disciplina Matemática. Em virtude desse critério dos sujeitos serem licenciados em
Pedagogia e atuarem na docência, criamos a expressão pedagogos/professores.
Obtivemos a adesão de todos os docentes que atuam na referida instituição, sendo
cinco sujeitos do sexo feminino. E dessas professoras, uma é licenciada em Biologia e,
portanto não atende aos critérios que estabelecemos. Iniciamos com a apresentação da
proposta da pesquisa e em seguida realizamos uma entrevista na qual colocamos a
vinculação aos sentidos das conversas em Certeau (2012). Tivemos uma conversa com a
diretora cujo objetivo consistiu na produção de dados acerca do cenário da investigação.
Identificamos então que a escola funciona em prédio próprio e foi fundada em 1965. A
construção necessita de reforma que já foi solicitada à secretaria de educação pela dirigente
conforme nos informou. Observamos que a estrutura física da escola requer um
planejamento técnico. Além das salas de aula, há os seguintes espaços: quadra esportiva,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 281
área livre, salas de leitura, teatro e dança, mas as construções apresentam inadequações. Há
equipamentos como computadores, impressora e projetor, entretanto existe dificuldade
para a manutenção e o acesso a materiais, a exemplo da ausência de livros para os alunos do
terceiro ano. Tais informações nos comunicam sobre as condições da educação básica em
nosso país a indicar a distância existente entre os discursos das políticas e as condições de
funcionamento das instituições.
Na conversa que realizamos com as pedagogas/professoras, falamos do
planejamento para o desenvolvimento do trabalho proposto, e consideramos importante
informar que tanto elas como a diretora declararam que a perspectiva da pesquisa, para
essas mulheres algo diferente e até estranho em virtude da constatação do interesse pela
vida de professoras que são pessoas comuns, pessoas anônimas foi o que motivou a adesão
delas. E diante dessa exposição, pensamos em discursos que afirmam serem os professores
da educação básica desinteressados na participação de atividades de formação; ao contrário
há vontade de sentir-se participando de um processo formativo e recusa por um tratamento
de alienação que separa sujeito e objeto.
Nesse momento de conversa com as professoras, elas nos falaram de suas vidas
marcadas pela opção da docência e de como têm sido essa itinerância vida-profissão. Foi um
encontro entre o eu e o tu na fala de cada uma e na escuta da narrativa alheia. Houve a
emoção ao lembrar acontecimentos ligados à discência e à docência, lágrimas correram dos
olhos e também saltou dali um olhar de criança ao descobrir uma brincadeira nova ao
perceberem os entremeamentos dos fios das experiências de estudante e de professora.
Por ora, estamos vivendo a produção das narrativas nos Ateliês (auto)biográficos
(DELORY-MOMBERGER, 2006) com a participação das 4 professoras anteriormente
mencionas. Duas tem mais de seis anos na docência e as outras duas mais de quatorze anos.
E até o presente momento, conseguimos realizar dois ateliês.
Nos ateliês citados estão ocorrendo procedimentos de narrativas e socialização
destas, a partir da produção de memoriais como fontes de pesquisa, em registros de
histórias de vida particularmente relacionadas a trajetos escolares na condição de discentes
e docentes. Através da utilização de dispositivos pensados como instrumentos de ativação
da ligação entre o passado, o presente e o futuro dos sujeitos em vias de fazer emergir
formações existenciais, projetos pessoais, trajetórias escolares e experiências que
constituem elementos do percurso formativo dessas pessoas num espaço que consideramos
de reencontro com a vidaprofissão por meio da fala, da escuta, da escrita e da leitura. Para
subsidiar a nossa opção de trabalho dialogamos com Delory – Momberger (2008) que nos
diz:

O que dá forma ao vivido e à experiência dos homens são as suas narrativas, como
lugar no qual o indivíduo toma forma, no qual elabora e experimenta a história de
sua vida. (DELORY- MOMBERGER, 2008, p. 97).

Na proposição desta investigação de caráter formativo, partimos de premissas


epistemológicas que informam de que, nas narrativas, a pessoa tem a oportunidade de
organizar determinada realidade e pensar sobre os acontecimentos, suas ações e das outras
pessoas, pelos movimentos das construções das narrativas em que produz e organiza os
arranjos dos fios da trama que chamamos: VIDA! Parece haver, nesse caminho, um sujeito a
alcançar mais compreensão acerca de si, o que indica possibilidades de autoformação. Este
viés empresta a esta proposição um pretendido caráter investigativo-formativo. A exemplo
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 282
de Moita (1992), empregamos como pressuposto a formação não como uma atividade de
aprendizagem isolada, situada no tempo e no espaço, mas como ação vital de produção de si
mesmo. Nesse sentido, as narrativas de si têm colocado as pessoas em contato com suas
experiências formadoras, permeadas por simbolizações e subjetivações construídas ao longo
da vida. A esse respeito nos referendamos em Passeggi (2008) ao mencionar o seguinte:

Auto-bio-grafar é aparar a si mesmo com suas próprias mãos. Aparar é ajudar aqui
utilizado em suas múltiplas acepções: segurar, aperfeiçoar, resistir ao sofrimento,
cortar o que é excessivo e, particularmente, como se diz no Nordeste do Brasil,
aparar é ajudar a nascer. Esse verbo rico de significado permite operar a síntese do
sentido de bio-grafar-se, aqui entendido, ao mesmo tempo, como a ação de cuidar
de si e de renascer de outra maneira pela mediação da escrita (PASSEGGI, 2008, p.
27).

Colocamos assim os caminhos das produções narrativas como aberturas para a


compreensão das próprias práticas e elaboração de possíveis ressignificações. Nessa ótica,
as narrativas de si são contempladas como atividades formadoras (SOUZA, 2006) as quais
atendem a perspectiva que já anunciamos na abertura deste texto, de formação produzida
não para os professores e sim com os professores, e, portanto de percurso formativo cujo
cerne consiste na subjetividade humana, uma vez que não há ruptura entre vida e profissão.
A formação então é elaborada na via da autoformação. Ao atingir essas linhas do escrito,
nos damos conta novamente da relevância da dimensão processual desta pesquisa a nos
apresentar o desafio do vir a ser como percurso a ser trilhado, diante do que se apresenta
como a incerteza do que não conhecemos e a angústia da ausência que se instala em meio
ao nó da complexidade (MORIN, 1984; 1986; 1996). Há diante disso, apenas uma certeza,
que reside no esforço para a produção das compreensões como empreendimentos vivos
oriundos de leituras/escutas densas do material que está sendo produzido.

Os fios de uma costura inacabada

[...] é também nas dobras do cotidiano que a história se realiza. Benjamin (1987)

Em virtude da situação da pesquisa em andamento, registramos neste texto somente


algumas impressões baseadas no percurso já trilhado, ou seja, neste momento nos
questionamos acerca dos fios presentes na composição do empreendimento da pesquisa
considerando a produção de um espaço para a compreensão da composição das práticas dos
pedagogos/professores no ensino da Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental
por meio do que as narrativas dizem das suas experiências, o contexto social das histórias, e
resvalando as análises para as questões que permeiam o currículo e a formação docente.
Buscamos aporte em Goodson (1995) ao explicar a existência de um contexto social no qual
o conhecimento é concebido e produzido e da formação que traduz esse conhecimento para
uso nas salas de aula.
Desse modo, visamos depreender a concepção de Matemática desses docentes, bem
como, revelar possíveis dilemas e conflitos presentes no percurso formativo dos sujeitos da
pesquisa no que se refere à relação destes com o conhecimento matemático e possíveis
desdobramentos de tal processo em suas práticas educativas com a referida disciplina.
Produzimos através das questões iniciais e das pistas encontradas no meio do caminho,
possibilidades para pensar a educação como formação e não semiformação (ADORNO,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 283
2003), e diante das pedras e das luzes do caminho, como peregrinos, seguimos em busca da
abertura de uma formação que considere como princípio a compreensão de como o sujeito
se produz, se constrói dentro das práticas e de como elabora seus conhecimentos e suas
ações no tempo e no mundo (PEREIRA, 2010). Na produção do primeiro Ateliê, a provocação
ocorreu com um bolo e um livro de receitas que fizeram surgir palavras como: cozinha, avó,
mãe, lanche e cantina. Houve então a narrativa de cada participante e depois a escrita e a
leitura com base no tema: Sabores na Família e na Escola.
Nesse Ateliê encontramos os fios que contam dos primeiros contatos com a escola
que no caso de todas elas houve a dificuldade do acesso pelas questões sociais e
econômicas. Uma delas ficou marcada por uma queda no caminho para a escola, o que fez
com que seu pai interrompesse por algum tempo esse percurso e se organizasse para passar
a residir na cidade, e nesse sentido percebemos o valor atribuído à escolarização e os
esforços em prol dos estudos dos filhos para pais que não tiveram essa possibilidade.
Relacionamos ainda a figura do mestre como alguém com poderes de decisão sobre as vidas
de seus alunos, uma vez que conforme as escritas elaboradas, os professores interferiam nas
vidas dentro e fora da escola, e o que era feito ou dito por eles tinha o apoio da família e
daquela comunidade, assim os professores tinham um prestígio na sociedade, pois sua figura
estava imbricada à relação saber-poder.
No segundo Ateliê, utilizamos como dispositivo para acionar as memórias a música:
Ao mestre com Carinho. Entregamos a letra digitada a cada professora e colocamos a canção
gravada nas vozes de um grupo de crianças. Ouvimos e cantamos ao mesmo tempo, todas
juntas e com expressões que indicavam alegria e entusiasmo. Em seguida, as professoras
começaram a sinalizar algumas lembranças referentes a professores que tiveram, e duas
delas narraram acontecimentos que estavam nítidos naquele instante, mas não lembravam
os nomes das professoras, as memórias produziram cenas de violência que elas
presenciaram. A primeira disse que a professora havia utilizado uma régua para bater numa
colega e a outra narrou acerca de uma professora que colocava todos da turma de castigo
ajoelhados no milho; e que agora ela ficava pensando que nunca foi castigada e queria saber
como era; acha que não ficava no tal castigo por ser muito obediente, afinal seu pai era o
zelador da escola e sua mãe era uma das docentes. Segundo essa professora, sempre era
advertida pelos pais de que tinha que ser um exemplo de aluna! Essas narrativas
provocaram um comentário de outra professora que mencionou a normalidade desses
acontecimentos naquela época, e todas confirmaram que de algum modo tiveram
experiências relacionas a comportamentos autoritários de seus professores, inclusive três
professoram apresentaram a seguinte indagação: Por que os professores que ensinavam
Matemática eram os mais rígidos?
No ecoar da questão mencionada, houve a mobilização para a escrita com vistas a
buscar nas memórias os fios das experiências com os mestres, o que eles faziam que eu
também faço e/ou o que não faço e como tem sido então ser a professora que venho
sendo...As vozes das pedagogas/professoras têm demonstrado as possibilidades de
aprendizagens fragilizadas, as cicatrizes do autoritarismo, a figura do medo na fuga da
Matemática e o desespero do reencontro com a “temida disciplina”. Disso ecoa um
chamamento para que prossigamos juntos nessa empreitada que remexe com a vida de
cada um e de todos nós. Em meio ao desenvolvimento da investigação, vamos vivendo nela
a condição de experiência como relação de escuta que nos faz olhar para nós e para o
mundo de olhos limpos como a criança. Esses são olhares que lutam contra o conformismo
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 284
dos estereótipos e ousam um itinerário de desfazimento do eu e de aberturas para a
formação como autoformação (BENJAMIN, 1987; LARROSA, 2000).
Diante do exposto, pontuamos a composição de uma pesquisa comprometida em
aproximar a produção acadêmica através de seus estudos do que ocorre nas salas de aula,
entendendo o espaço da escola como local de materialização das práticas. Essa postura
coloca em evidência uma compreensão de currículo que vai além dos documentos. Por isso,
nossa pesquisa envereda por trajetos que contemplam a escuta dos sujeitos nas condições
de discentes e docentes a fim de considerar o currículo em movimento para o entendimento
desse jogo social em que o ser humano é produzido e se faz também produtor.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 286


Nos movimentos de professoralização, as forças vivas da professoralidade

Ivana Conceição de Deus Nogueira


UESB
ivanadedeus@hotmail.com
Rosane Alves Rodrigues
UESB
rosane_alves90@hotmail.com

Na condição de coordenadora pedagógica do Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol - creche que atende
aos filhos de professores, alunos e funcionários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/campus de
Jequié, Bahia – iniciei, no ano letivo de 2013, uma experiência pesquisadora fenomenológica, baseada nas
histórias de vida como método de investigação qualitativa e prática de formação, com a participação de oito
professoras de educação infantil atuantes nesta Instituição. A proposta de construção de biografias educativas
conecta-se à concepção de pesquisa em que seus objetivos imbricam-se com a formação. A questão-base
relaciona-se à compreensão de narrativas (auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de
ser professor. Seus objetivos: recolher informações acerca dos movimentos de professoralização; compreender
se os conhecimentos produzidos pelos atos de narrar-se e às práticas cotidianas produzem novos traços na
professoralidade; analisar de que modo as experiências pedagógicas, desde a condição de discentes, se
expressam nos citados movimentos; por último, analisar se as interrogações acerca do que se vem sendo,
proporcionam uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das situações pedagógicas
vivenciadas. As análises parciais revelam que as escritas (auto)biográficas vêm enriquecendo e reforçando o
(auto)conhecimento e promovendo, de algum modo, transformações na professoralidade. Observamos que, na
explicitação dos enredos de suas histórias, as narradoras se reapropriam de suas experiências de formação em
delineamentos dinâmicos e que os movimentos de professoralização, ao transparecerem, parecem incitá-las à
reorganização da professoralidade no cotidiano pedagógico.
Palavras–Chave: Educação infantil; (Auto)biografia; Formação Docente.

Palavras Iniciais

Quando os mestres relatam suas lembranças, estas são um tecido


de práticas. É nas práticas que se reconhecem sujeitos, onde se
refletem como espelho. Onde reconstroem sua identidade.
(Miguel Arroyo)

As histórias de vida e os estudos autobiográficos como metodologias de investigação


científica na área da Educação ganharam visível impulso no Brasil nos últimos quinze anos
(NÓVOA, 1995). A partir das memórias docentes resgatadas por meio dos relatos
biográficos, observamos ações e reações que nos impulsionam a reafirmar o caráter
formativo desta modalidade de estudo. Quanto mais nos lembramos da experiência vivida,
escrevemos ou falamos sobre ela, melhor podemos ressignificá-la.
Ao narrar e escrever suas experiências, enfrentamentos, dificuldades e superações,
enquanto discente, os professores passam a perceber que tais memórias são importantes
para a compreensão da cultura escolar, tendo em vista que as práticas vivenciadas, quando
rememoradas e refletidas contribuem para a construção e reconstrução do percurso de
formação docente.
A prática do trabalho com as narrativas de formação ganha outro estatuto, a partir da
compreensão que foi sendo construída a partir das contribuições advindas dos trabalhos de
Nóvoa (1995, 2010), de Catani et al. (2003) e de Josso (2004, 2010), uma vez que tais autores

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 287


vêm aprofundando e sistematizando diferentes aspectos epistemológicos e metodológicos
sobre as pesquisas com histórias de vida, autobiografias docentes e processos de formação.
A pesquisa (auto)biográfica amplia e produz conhecimentos sobre a pessoa em
processo de formação, as suas relações com territórios, grupos e tempos de aprendizagem e
seus modos de ser, de experienciar conflitos e expressar posicionamentos frente ao vivido. A
memória, resgatada sob a forma de lembrança narrada, permite ao sujeito tomar
consciência de elementos que definem como ele se relaciona hoje a partir das percepções
do ontem.
A motivação inicial para o desenvolvimento desse trabalho surgiu do interesse nos
estudos sobre o processo de formação do professor e se estendeu na perspectiva de
interpretação do cotidiano da sala de aula, especificamente, na tentativa de compreender os
processos de apreensão e apropriação dos movimentos de professoralização (PEREIRA,
2001) em profissionais que atuam na Educação Infantil. Assim, a presente investigação-
formação, ora em andamento tem origem em nossas reflexões enquanto docente em cursos
de formação inicial e continuada de professores e como coordenadora pedagógica do Centro
de Convivência Infantil Casinha do Sol. Essa experiência aguçou o nosso interesse em pensar
as implicações das trajetórias pessoais, que demarcam escolhas que podem estar vinculadas
as experiências da profissão e o cotidiano dos profissionais que exercem a docência na
Educação Infantil.
Nessa perspectiva, diversos questionamentos sinalizaram a preocupação em
compreender os sentidos e as representações dos professores acerca do seu fazer
pedagógico, sendo necessário conhecer os saberes/fazeres construídos pelos profissionais
de Educação Infantil ao longo de suas trajetórias formativas, para assim entender os
processos engendrados na constituição dos seus movimentos de professoralização.
Assim sendo, esse estudo intenciona conhecer os sentimentos e saberes acerca das
experiências vivenciadas pelos professores em suas trajetórias formativas, como forma de
melhor compreender como estes se expressam no cotidiano das práticas desenvolvidas com
crianças pequenas.
As ideias nele contidas são fruto das nossas inquietações enquanto pesquisadora que
lida com a problemática “formação, saberes, profissionalização e movimentos de
professoralidade” de professoras de Educação Infantil, especialmente, estudos que
focalizam o interesse pela narrativa (auto)biográfica como instrumento metodológico para a
apropriação do percurso de formação docente. Nesse sentido, acreditamos que os
conhecimentos produzidos pelos atos de narrar-se e às práticas cotidianas, proporcionariam,
nas professoras, uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das
situações vivenciadas.
Diante do exposto, os objetivos deste estudo conectam-se à averiguação de
narrativas (auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor;
nesse sentido, buscou-se recolher informações acerca dos movimentos de professoralização;
compreender se os conhecimentos produzidos pelos atos de narrar-se e às práticas
cotidianas produzem novos traços na professoralidade; analisar de que modo as
experiências pedagógicas, desde a condição de discentes, se expressam nos citados
movimentos; e por último, analisar se as interrogações acerca do que se vem sendo,
proporcionam uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das
situações pedagógicas vivenciadas na Educação Infantil.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 288


Portanto, com base nos objetivos acima delineados, este artigo busca desvelar
imagens tecidas e evocadas pelas professoras, através do resgate da memória acerca das
práticas pedagógicas vivenciadas desde a discência, tendo em vista o olhar das mesmas
acerca de seu saber/fazer cotidiano junto às crianças, bem como conhecer como estas
interpretam seus percursos e lhes dão sentidos e significados.

Caminhos Percorridos na Educação Infantil... desafios formadores

A formação dos profissionais de educação deve estar voltada para


a aprendizagem – e não mais apenas para o ensino.
(Marly Weber)

As contínuas transformações que têm afetado a sociedade fazem emergir novas


demandas para a escola e para todos que nela convivem em seu cotidiano. Decorrentes das
inovações tecnológicas e científicas, dos processos de globalização, das novas configurações
do mundo do trabalho e das relações sociais, tais demandas passam a exigir modos
diferenciados de formação, atuação e interação dos sujeitos sociais. Assim, a escola,
enquanto instância responsável pelo aprendizado/formação de crianças e jovens acaba por
se integrar às novas configurações organizativas da sociedade.
Nessa nova dinâmica social, o mercado é colocado na posição de árbitro
fundamental das regulações que se estabelecem nos campos econômico, social, cultural e
educacional (FRIGOTTO, 2001). Destarte, evidencia-se as relações de determinação
existentes entre a educação e sociedade e a estreita vinculação entre a forma de
organização da sociedade, os objetivos da educação e a forma como a escola se organiza.
Nas últimas décadas, a Educação Infantil vem sendo reconhecida mundialmente como
um segmento importante do processo educativo. A aprovação da Lei 9394/96- LDB,
oportuniza importantes perspectivas ao avanço de propostas que reconheçam as
necessidades específicas das crianças de 0 a 5 anos, superando o caráter assistencialista da
maioria dos programas destinados à faixa etária.
Entretanto, fator importante a ser considerado é a formação dos profissionais que
atuam nesse âmbito da Educação Básica, uma vez que em seu processo formativo os
mesmos devem se apropriar de diversos conhecimentos que lhes possibilitem exercer uma
prática educativa crítica e reflexiva.
Os estudos de Sanches (2003), apontam que a formação dos docentes de Educação
Infantil não ocorre somente pelo acúmulo de cursos, palestras e técnicas, mas por “trabalho
de reflexão crítica sobre as práticas e (re) construção permanente de uma identidade
pessoal. Por isso, é tão importante investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da
experiência” (NÓVOA, 1995, apud, SANCHES, 2003, p. 27).
Assim, embora muitos professores saiam dos cursos de formação buscando fazer a
diferença em seus espaços de atuação, as dificuldades vivenciadas no exercício da profissão
acabam sendo decisivas quanto ao posicionamento do professor perante o enfrentamento
ou desistência da carreira. Tais dificuldades vão desde as condições estruturais oferecidas
pela escola, até mesmo ao menosprezo pelo saber experiencial, elaborado a partir das
situações diárias com as quais este profissional se depara.
Nesta perspectiva, André (2005), reafirma:

[...] é preciso explicitar, também, que falar em processo de reconstrução do


Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 289
saber docente significa considerar questões relativas tanto aos estudos
sobre o processo de ensino e a formação do professor, quanto aos estudos
sobre o saber que o professor desenvolve sobre a sua prática docente. (p.
10).

Assim, a ideia de ser ou vir a ser professor vai se constituindo a partir das experiências
vivenciadas, desde o momento inicial, da infância propriamente dita. Conta a história das
relações daquele sujeito com a escola e com os processos de aprendizagem pelos quais
passou e, principalmente, da produção de sentido e significados sobre estas experiências,
das marcas produzidas pelas mesmas. Larrosa (2002) assinala que “experiência é o que nos
passa, o que nos acontece, o que nos toca e não simplesmente o que passa, o que acontece,
ou o que toca”. Assim frente à ideia de tornar-se professor vão também se articulando uma
gama de maneiras de vir a ser e estar no mundo, de valores e posturas que vão se
constituindo num entrelaçamento entre o social e o individual, mas que ao acontecer
modifica o que se é e consequentemente, o que se vem sendo.
Assim, trabalhar com a formação de professores de Educação Infantil seja ela inicial ou
contínua, nos impulsiona a refletir sobre os processos de construção e apropriação dos
saberes pessoais e profissionais, desenvolvidos a partir das experiências no cotidiano
infantil. Nesse sentido, o acesso às trajetórias de vida, formação e (auto)formação
percorridas pelos educadores de crianças pequenas, a partir do processo de narrativa
(auto)biográfica, possibilita apropriação e ressignificação das práticas pedagógicas que
foram construídas ao longo das histórias desses sujeitos.
Nesta direção, faz-se necessário pensar a aprendizagem da docência enquanto
processo que se realiza a partir das dimensões internas e externas ao sujeito, constituindo-
se como um movimento estabelecido entre as potencialidades do sujeito e as exigências
estabelecidas pelas condições reais de enfrentamento da profissão. As interações com
colegas, alunos e demais companheiros de profissão, em meio ao lócus escolar, assumem
uma importância fundamental, na medida em que se constituem como elementos
fomentadores da aprendizagem docente, num movimento de vir a ser professor.
Tal perspectiva nos aproxima das discussões propostas por Pereira (2001) ao indicar
que vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, uma diferença que o sujeito
produz em si, um estado de desequilíbrio, um processo marcado por rupturas e conflitos,
entre o buscado e o encontrado, entre exigências pessoais e profissionais que se dá no
decorrer da trajetória formativa do professor. Nesta direção, o mesmo autor, ao cunhar o
termo professoralidade enfatiza o movimento processual de produção de diferenças que o
sujeito professor realiza ao longo de seu percurso formativo.
A proposta de construção de biografias educativas conecta-se à concepção de pesquisa
em que seus objetivos imbricam-se com a formação. Compreendemos as narrativas
(auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor.
Acreditamos, que através das mesmas possamos recolher informações acerca dos
movimentos de professoralização, e assim compreender se os conhecimentos produzidos
pelos atos de narrar-se e às práticas cotidianas produzem novos traços na professoralidade,
analisar se as interrogações acerca do que se vem sendo proporcionam ao professor de
Educação Infantil uma percepção mais acurada de si e um aprofundamento acerca das
situações pedagógicas vivenciadas no contexto escolar.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 290


Alguns Achados...

“[...] Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas


nuvens a mesma história que eu leio, comovido”.
(Ferreira Gullar, 1975).

O percurso trilhado nessa pesquisa teve por base uma experiência pesquisadora
fenomenológica, baseada nas histórias de vida como método de investigação qualitativa e
prática de formação, com a participação de oito professoras de Educação Infantil, atuantes
no Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol/UESB - Jequié. A proposta de construção de
biografias educativas conecta-se à concepção de pesquisa em que seus objetivos imbricam-
se com a formação. A questão-base relaciona-se à compreensão de narrativas
(auto)biográficas como um processo de reconstituição da gênese de ser professor.
Escolhemos esse dispositivo, visto que, para Alarcão (2004), o ato de escrita é um encontro
conosco e com o mundo que nos cerca. “As narrativas serão tanto mais ricas quanto mais
significativas se registrarem. Para serem mais compreensíveis, é importante registrarem-se
não apenas os fatos, mas também o contexto físico, social e emocional do momento.” (p.53).
Não há uma única forma de se expressar, assim como são múltiplas as possibilidades de se
registrar o vivido.
Utilizar a autobiografia é dar espaço para o professor se auto-revelar, possibilitando a
tomada de consciência sobre si mesmo e sobre o seu fazer. Nesse sentido, buscamos
analisar os escritos produzidos a partir das narrativas (auto)biográficas (NÓVOA, 1995) das
professoras que atuam no Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol / Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – Campus Jequié. Essas professoras trabalham em turmas de
Berçário, Maternal I e II, com crianças na faixa etária de um ano a quatro anos de idade.
A participação foi voluntária, mas optamos pelo anonimato da amostra de oito
professoras participantes da pesquisa. O grupo está constituído por quatro professoras que
já concluíram o ensino superior e quatro profissionais em formação nos Cursos de
Licenciatura em Pedagogia e Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.
As informações recolhidas foram analisadas e processadas com vista a apropriação de
sentidos e significados expressos pelos participantes em momentos de narrativas das
memórias evocadas a partir do vivido.
A partir de nossa inserção no cotidiano do Centro de Convivência Infantil Casinha do
Sol, enquanto coordenadora pedagógica, surgiu à possibilidade de construção de um roteiro
(auto) biográfico que estimulasse a reflexão das professoras / parceiras da pesquisa acerca
das suas trajetórias de vida e das implicações na prática docente.
Acreditamos na potencialidade do trabalho com professoras enquanto narradoras de suas
experiências de vida, pois as mesmas desvendam perspectivas sobre a dimensão pessoal,
visto que é a pessoa que se forma, em diversos contextos cotidianos, e se constitui por meio
da compreensão que elabora do seu próprio percurso de vida.
Ao ler as biografias educativas com as memórias das professoras / participantes da
pesquisa, pudemos compartilhar vários sentimentos como: alegria, amor, encantamento,
medo e incertezas, sobre as experiências no trabalho com as crianças. Com essas imagens,
portanto, narramos aqui um pouco dos segredos e mistérios dos caminhos pelos quais as
professoras pesquisadas vêm se apropriando do seu percurso profissional. Nesse sentido,
buscamos focar o significado e a fertilidade da construção das narrativas de formação em

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 291


seus movimentos de professoralização, que evidenciam as relações que os profissionais de
Educação Infantil estabelecem com os espaços, tempos, rituais e aprendizagens da prática
docente.
Inicialmente buscamos fazer emergir a partir de recurso metodológico evocativo, as
lembranças de como se deu a escolha da docência como profissão, objetivando identificar os
percursos e as motivações que encaminharam as professoras para a carreira da docência.
Através da análise das narrativas das professoras participantes da pesquisa foi
possível perceber que a opção pela docência surgiu muito antes da escolha profissional
propriamente dita, esta se consolidou a partir de uma série de fatores que foram se
constituindo em elementos condutores a assunção da docência, como nos revela as
narrativas das professoras Esmeralda e Jade:

PE- Meu sonho sempre foi trabalhar com crianças, e contribuir para
sua formação individual e social. Quando criança, lembro que tive
uma professora que era muito carinhosa, mas tradicional, porque a
gente nem podia levantar e nem olhar para os lados. Então, ao
brincar de escolinha, eu fazia desse jeito também. .(Profª Esmeralda).

PJ- [...] tenho boas lembranças da escola, minha professora de Língua


Portuguesa, pessoa que procurou extrair o melhor de mim.
Incentivadora de minhas leituras, compartilhava seus livros. Essa
professora me fez acreditar em meu potencial acadêmico e
pessoal.(Profª Jade).

A percepção das implicações pessoais e das marcas que foram sendo impressas na
trajetória individual de cada participante, por meio do movimento de narrativas biográficas
sobre o processo de construção da aprendizagem pessoal e coletiva da profissão, tendo por
base a experiência e vivência no cotidiano escolar, revela-se como um fértil exercício de
formação e de pesquisa, na medida em que possibilita ao sujeito em formação
compreender-se como autor e ator do seu percurso formativo, bem como, ressignificar o seu
fazer a partir do enfrentamento de dificuldades, escolhas e superações.
Quando mobilizadas a evocar os sentidos e significados de ser professora de
Educação Infantil, as professoras expressaram sentimentos variados, como orgulho e
contentamento, em poder contribuir para o desenvolvimento de um ser integral, em uma
etapa de vida tão importante. As narrativas abaixo são bastante significativas e reveladoras.

PP- É recompensador saber que você colaborou na formação de um


ser, em sua constituição social afetiva e intelectual.(Profª Pérola).

PC- Por acreditar que a educação infantil é o alicerce da formação


educacional, vejo que o sentido de ser professor se baseia em
considerar a criança como alguém curioso, ativo e com direitos.
Alguém que necessita de um espaço escolar que busque aproximar
cultura, cognição, linguagem e afetividade ao seu desenvolvimento.
(Profª Cristal).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 292


A escrita narrativa impulsiona o sujeito a um movimento de auto-escuta, como se
estivesse contando para si próprio as experiências e aprendizagens que construiu ao longo
do seu percurso de vida, através da apropriação do conhecimento de si. Nessa perspectiva a
biografia educativa se instaura como um recurso de investigação-formação. No momento
que focaliza o processo de construção de conhecimento e de formação que se vincula a
partir do exercício de tomada de consciência, por parte do sujeito, das itinerâncias e das
aprendizagens ao longo da vida, as quais são expressas através do ato de narrar-se, dizer-se
de si para si mesmo como uma evocação dos conhecimentos construídos nas suas
experiências formadoras.
Outro aspecto evidenciado nas narrativas refere-se a apropriação dos saberes
necessários ao desenvolvimento do ato educativo na Educação Infantil:

PT- Em minha opinião, em primeiro vem o conhecimento prático que


vai sendo construído e adquirido no dia a dia do professor, depois
alguns conhecimentos teóricos relacionados a algumas teorias do
conhecimento, ou melhor, da aquisição do conhecimento e de alguns
saberes relacionados a teorias sobre o desenvolvimento cognitivo,
social e psicológico na infância. (Profª Turmalina).

PS- Alguns saberes são necessários para o trabalho com educação


infantil, entre eles que o professor não dissocie o cuidar, o ensinar e o
brincar, que juntos são indispensáveis na construção da rotina, no
planejamento de atividades e principalmente na prática pedagógica.
(Profª Safira).

As professoras Turmalina e Safira evidenciam em suas falas uma concepção


pragmática sobre o exercício da docência na Educação Infantil, tendo como premissa
primordial para o bom desempenho docente, o domínio da rotina e planejamento de
atividades diárias, como também o conhecimento de teorias sobre o desenvolvimento
cognitivo, social e psicológico da criança.
Logo, é possível indicar que tais experiências se configuram como elementos
estruturantes do habitus docente destas professoras, servindo como um dos aspectos
orientadores do desencadeamento da docência exercida junto a crianças pequenas. Tardif
(2002) afirma que os saberes adquiridos durante a socialização primária e escolar possuem
um peso extremamente importante na compreensão da natureza dos saberes, do saber–
fazer e do saber- ser que serão mobilizados e utilizados no decorrer da formação inicial do
professor e até mesmo no próprio exercício da profissão. Para este autor, o que foi retido
das experiências familiares ou escolares poderá dimensionar, ou pelo menos orientar os
futuros investimentos e ações voltadas à docência.
Uma das possibilidades de aproximação entre o professor e uma concepção mais
integral do processo educativo poderia ser a utilização de estratégias de problematização, a
partir de situações reais de ensino em que, mesmo partindo de lugares diferentes,
pudessem contribuir para a formação do educador, em que seja considerada a perspectiva
crítica com a formação do cidadão autônomo, ativo, político e socialmente comprometido
com a transformação social. Estas indagações deveriam partir de inquietações reais, que
fossem importantes para as tomadas de decisão, de modo que se poderia buscar o que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 293


tanto a Educação têm a dizer sobre os problemas encontrados.
As narrativas (auto) biográficas impulsionam a reflexão / ação, transformando-as em
apropriação da experiência vivida, num movimento permanente do professor pensar sobre
sua prática, desmembramento de escolhas e posicionamentos em sua trajetória de
construção do conhecimento. Acreditamos que o conhecimento é um processo de
descoberta coletiva, mediatizada pelo diálogo entre educadores e educandos (Romão,
1999). Nesse sentido, a presente investigação-formação, ora em andamento, buscou ouvir
as vozes das professoras acerca de seus sentidos, significados e sentimentos sobre as
práticas educativas experienciadas ao longo de seus processos formativos, em meio ao lócus
de um Centro de Convivência Infantil.

Considerações em aberto

Apesar da pesquisa apresentar-se em desenvolvimento, já é possível, mediante a


análise de trechos das escritas (auto)biográficas que estão sendo realizadas, identificarmos
algumas impressões dos professores do Centro de Convivência Infantil Casinha do Sol acerca
do processo de construção da gênese do ser professor e os desafios enfrentados com as
diversidades culturais na Educação Infantil.
Assim, atentar para a forma como o professor de Educação Infantil reflete sobre o
seu trabalho, como o elabora e o realiza, parece ser um recurso interessante para
compreender os percursos formativos vivenciados por estes no meio educacional que se
fazem presentes na prática pedagógica. É certo que o profissional de educação que atua
junto às crianças pequenas se depara com questões que precisam ser resolvidas e que
envolvem a criança, a compreensão que ele próprio tem da vida, seus valores e do papel que
estes desempenham na formação do psiquismo infantil.
As narrativas apontam que a grande maioria das professoras envolvidas no processo
de pesquisa-formação, se sentiram mobilizadas a evocar suas memórias, entendendo esse
movimento de rememoração do fazer cotidiano, tomada de decisões necessárias e
enfrentamentos diante das dificuldades postas ao exercício da docência, especialmente
junto á crianças pequenas, vai além dos processos educativos desenvolvidos em sala de aula.
As análises parciais revelam que as escritas (auto)biográficas vêm enriquecendo e
reforçando o (auto)conhecimento e promovendo, de algum modo, transformações na
professoralidade. Consideramos, ainda que na explicitação dos enredos de suas histórias, as
narradoras se reapropriam de suas experiências de formação em delineamentos dinâmicos;
assim, os movimentos de professoralização, ao transparecerem, parecem incitá-las à
reorganização da professoralidade no cotidiano pedagógico.
Neste sentido, as narrativas biográficas trabalhadas no estudo presente, apresentam-
se como uma ação complementar, que enriquece e reforça as transformações
desencadeadas na interação social. Consideramos ainda que na busca de um enredo, para
suas histórias, as narradoras selecionam, estabelecem relações, organizam os fatos,
encontram justificativas, clarificam suas imagens de docência e de criança. Nesse processo,
re-conhecem, re-descobrem suas relações com os saberes de suas práticas com a educação
infantil, com o grupo, mas, principalmente, com sua criança.
Nessa perspectiva, há fortes indícios de que a construção da professoralidade
acontece imbricada ao processo de desenvolvimento permanente da pessoa e que a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 294


formação docente tem início muito antes de a pessoa ingressar nos cursos de preparação
para o magistério e prossegue no decorrer de sua prática profissional.
Assim, trabalhar com professores de Educação Infantil, nos leva a valorizar suas
histórias de vida, suas narrativas biográficas, para a partir destas, refletir sobre os saberes
construídos por esses profissionais, em suas itinerâncias, seus percursos formativos. Saberes
que vão desde a experiência sobre o lúdico, o corpo, a linguagem, a estética em sua
formação, seja ela inicial ou contínua. Esta pode ser uma possibilidade de ressignificar as
práticas pedagógicas que foram construídas ao longo das histórias desses sujeitos.
Conforme D’Ávila (2007) “Os saberes profissionais são, pois, saberes da ação. Essa
hipótese reforça a ideia de que os saberes profissionais são trabalhados e ressignificados no
contexto do próprio trabalho”. Em outras palavras, os saberes profissionais dos docentes são
temporais, isto é, são adquiridos através do tempo, visto que boa parte do que sabem sobre
a própria profissão provêm de suas próprias histórias de vida e, sobretudo, de suas
trajetórias educativas.
As narrativas (auto)biográficas proporcionam aos educadores o autoconhecimento,
permitindo assumir-se como sujeitos que pensam e falam de acordo com sua subjetividade,
com direito de se transcenderem no tempo, no espaço e nos desejos. A subjetividade é
impossível de ser ignorada, uma vez que cada um interpreta o mundo e cria uma fantasia
única conforme a incorporação daquilo que vivenciou e, isso transforma cada sujeito em um
enigma a ser decifrado. Deste modo, o professor se abre para uma visão real das limitações
de cada individuo frente às diferentes situações culturais em que vive, adquirindo preparo
para ter uma postura de escuta em relação ao outro sujeito, melhorando assim sua
compreensão e seu relacionamento com este.
Os resultados da investigação, ora em desenvolvimento, levaram -nos a concluir que
há uma crescente preocupação das professoras com relação aos seus processos de
formação, bem como ao exercício do seu trabalho, no entanto, as mesmas ainda enfrentam
o desafio de superação de uma formação inicial e continuada sem grandes alicerces para
abordar as temáticas diversas que emergem cotidianamente nas salas de aulas de Educação
Infantil, algumas delas sobre as diferenças, principalmente, envolvendo questões como
preconceitos raciais, sexuais e de gênero. Além disso, o trabalho docente repercute nas
diversidades culturais das quais as crianças se originam, o que acaba por limitá-las em ações
pontuais e esporádicas realizadas em projetos especiais desenvolvidos a partir de
necessidades específicas identificadas junto a clientela do Centro de Convivência Infantil
Casinha do Sol.
Finalmente, ao tomar os primeiros movimentos desencadeados rumo a percepção da
construção da professoralidade dos profissionais de Educação Infantil, oo presente
contexto investigativo compreende que a valorização e a qualificação da profissão docente
passam por instâncias que auxiliem esses profissionais a desvelar e analisar os contextos
histórico/sociais/políticos/culturais/organizacionais nos quais se dá sua atividade docente.
De nossa parte posso antever que, por esses vieses, é possível percorrer renovados
caminhos investigativos relacionados à subjetivação, ampliando perspectivas de relacionar-
se, com novos olhares, com a pesquisa na educação.
Portanto, o que propomos nessa perspectiva é levantar questões sobre a dimensão
da docência na Educação Infantil, que se entrelacem no contexto da formação pessoal e
profissional, investindo na valorização de seus saberes, suas experiências e seus valores,
através de suas histórias de vidas e possibilitando, quem sabe, práticas inovadoras.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 295
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 297


Narrativas de professoras-estudantes no contexto da formação no PARFOR

Ivonete Barreto de Amorim


UCSal /UNEB
ivoneteeducadora@hotmail.com

Na contemporaneidade, devido à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n.º 9.394/96, os
docentes brasileiros precisam voltar às Universidades para regular o déficit na formação de professores que
atuam na Educação Básica. A pesquisa de que trata o presente artigo objetivou explicitar as narrativas de
professoras-estudantes que participam da formação no Plano Nacional de Formação de Professores da
Educação Básica (PARFOR). Propôs-se investigar como as colaboradoras da pesquisa dialogam com as
demandas endógenas e exógenas, concernentes às dimensões do público e do privado, diante da formação em
primeira Licenciatura do Curso de Pedagogia no PARFOR no município de Serrinha-Bahia. As participantes do
estudo, em número de dez colaboradoras, são professoras da rede pública municipal. A investigação encontra-
se ancorada no referencial teórico-metodológico do self dialógico de Hermans et al (1992); Hermans e
Hermans Konopka (2010); Bakhtin (2010); Salgado et al (2007); Valsiner (2012). Constitui-se em uma pesquisa
qualitativa do tipo estudo de casos múltiplos. A discussão dos resultados indica que as políticas públicas do
PARFOR promovem o acesso de professores à formação específica de qualidade, mas é imprescindível que a
proposta curricular seja contextualizada e considere as condições reais dos sujeitos professores que se
disponibilizam para esta formação. Conclui-se que marcas foram impressas nos selves das professoras-
estudantes gerando a percepção de incompletude, a busca por novos saberes, e o necessário investimento em
novas formações com vistas a dar conta da metamorfose que envolve o conhecimento na trajetória de vida das
colaboradoras da pesquisa.
Palavras-chave: PARFOR; Narrativas docentes; Formação de profesores.

Introdução

Desde que foi sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n.o
9.394/96 (BRASIL, 1996) e entraram em vigor as prerrogativas do Plano Nacional de
Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), surgiram, nos diversos estados
brasileiros, ações articuladas entre o governo municipal, estadual e federal, tendo como foco
viabilizar a concretização de formações emergenciais de professores da rede pública que não
possuem formação adequada. Para participar desta formação, o docente deve ser professor
da rede pública de ensino.
Reconhece-se que a ação prática docente exige atitudes de envolvimento com a
pesquisa, com o estudo e com a autonomia diante do conhecimento. Contudo, essas
iniciativas advêm de um querer, de um desejo e de uma necessidade concernente ao
investimento na profissão. Vale salientar que ainda é grande o déficit da formação de
professor para a educação básica e que esses profissionais atuam na rede pública sem deter
formação inicial adequada.
Com efeito, o objetivo deste estudo é explicitar as narrativas de professoras-
estudantes que fazem parte da formação promovida pelo Plano Nacional de Formação de
Professores da Educação Básica (PARFOR) através de mapas do self. Ademais, a metodologia
utilizada neste artigo consiste em uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de casos
múltiplos, vinculada às narrativas de formação, tendo como universo dez professoras-
estudantes, mas neste artigo são explicitadas as narrativas de duas colaboradoras.
Ressalta-se que este estudo encontra-se ancorado na pesquisa de doutoramento
intitulada “Entre Casulo e Asa: Diálogos e Movimentos do Selves de Professoras-Estudantes
no Contexto da Formação no PARFOR” vincada ao programa de Pós-Graduação em Família
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 298
na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador. Neste artigo, o olhar
migra sobre esse contexto formativo de docentes para a educação básica, destacando que o
PARFOR consiste em uma experiência atrelada à coordenação efetivada pela Universidade
do Estado da Bahia (UNEB), que é acompanhada e avaliada pela Coordenação
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
O artigo está estruturado em quatro seções: introdução, teoria do self dialógico
algumas reflexões sobre o PARFOR, narrativas de formação e as considerações finais.

Teoria do self dialógico

Ao considerar que este estudo lida diretamente com os olhares de professores que
são estudantes na formação do PARFOR, a teoria do self dialógico constitui-se em um marco
teórico indispensável para viabilizar a compreensão e análise do objeto de pesquisa e as
contribuições epistemológicas da referida teoria.
Esta teoria encontra-se fundamentada em um conjunto de estudos sobre self e
narrativa, efetivados por Hermans e colaboradores os quais estão ancorados na teoria do
self de William James e na noção de romance polifônico de Bakhtin, pelo fato desse gênero
textual apresentar no seu bojo muitos pontos de vista, muitas vozes, cada qual recebendo
do narrador o que lhe é devido (HERMANS; KEMPEN, 1992).
Os estudos de James produziram uma primeira estrutura divisória do self para a
psicologia, a qual apresenta a seguinte descrição em quatro partes: o self material, o self
social, o self espiritual e o ego puro – os três primeiros diretamente relacionados à vida
empírica (HERMANS; KEMPEN, 1992).
O self material envolve desde a estrutura corpórea do indivíduo até os seus bens
materiais. O self social corresponde às imagens que são atribuídas ao indivíduo por outros
sujeitos, revelando o reconhecimento que ele tem pelos seus pares na sociedade. É
importante ressaltar que a valorização ou a diminuição da percepção social dos outros sobre
o sujeito tem um impacto emocional na sua percepção interna. Já o self espiritual é
composto pelas capacidades ou disposições psíquicas concernentes ao indivíduo. Por fim, o
ego puro refere-se ao senso de “mesmidade” (sameness), ou seja, o senso da identidade
pessoal. Dessa forma, o ego puro corresponde ao “eu”, que conhece, enquanto as três
primeiras visões estão relacionadas ao “mim”, que é conhecido. Os estudos de James
indicam que o self apresenta uma distinção entre “eu” e “mim”, destacando o princípio da
continuidade que circunda a experiência do self.
Bakhtin constitui-se em outra importante contribuição à teoria do self, pois a sua
percepção dialógica desencadeou a compreensão de que não existe um único autor em cada
pessoa e que o centro da personalidade humana não reside num ‘cogito’ central e monodal,
mas na tessitura de uma estrutura dialógica entre “autor” e “ator”. Essa percepção é
reverberada nos romances polifônicos oriundos de estudos da obra literária de Dostoiévski.
Para Bakhtin, as personagens possuem características conflitantes dotadas de vozes
independentes, incorporadas em relações dialógicas. Não obstante, a polifonia consiste no
emergir de diferentes vozes, cada qual emanando sua relação e compromisso com a vida e
com o social (HERMANS; HERMANS-JESSEN, 2003).
Essa compreensão é destacada por Hermans e Hermans-Jessen (2003) como
descontinuidade que é relacionada à multiplicidade de vozes. Com base nessa direção, é
importante ressaltar alguns princípios axiológicos acerca do dialogismo bakhtiniano, sendo
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 299
eles: o princípio relacional, o princípio da dialogicalidade, o princípio da alteridade, o
princípio contextual e o princípio dinâmico.
O princípio relacional está ancorado no poder comunicacional e significativo na
relação entre indivíduos. Esse princípio não se constitui apenas na origem, mas na base
teórica que sustenta a leitura de fenômenos.
O princípio da dialogicidade constitui-se em uma base nas relações humanas, pois
permeará as atribuições de significados entre um Eu e um Outro. Contudo, é salientado
pelos autores supracitados que essa compreensão não invalida algumas tentativas de
superação e supressão da referida condição dialógica, sobretudo no que se refere aos
discursos monológicos.
A distinção entre relações monológicas e dialógicas perpassa pelo princípio de que a
tentativa da relação monológica é estabelecida pela negação da possibilidade de resposta do
interlocutor com seu interveniente. Todavia, esse aspecto não consiste em um definidor da
relação monolítica, mas a uma troca ou negociação semiótica, a qual pode ser concretizada
em uma relação permeada pela autoridade e pelo poder. Já na relação dialógica se
concretiza através da possibilidade de trocas comunicacionais que acontecem em um
emaranhado de significados.
Fica evidente nesses estudos que, embora haja distinção entre a relação monológica
e dialógica, uma não contradiz a outra pelo fato de se estar permanentemente em uma
relação de negociação, na qual tentativas de silenciar o outro são possíveis, ou seja, a
condição da relação dialógica permite o trajeto de sua erradicação.
O princípio da alteridade considera que todo conhecimento ocorre inevitavelmente
através de processo dialógico com o outro. Dessa forma, esse olhar de alteridade comunica
que a relação humana é estabelecida mediante uma atividade de interlocução com o outro
ou, no dizer de Bakhtin (1984, p. 287), “ser é comunicar”. Assim, em qualquer situação que
envolva pessoas, comunidade ou sociedade, é criada uma condição comunicacional e
destinada ao outro. Para Marková (2003, p. 257), alteridade implica em uma tensão díade
entre Eu-Outro e para essa “[...] o self não está a tentar fundir-se com o outro, mas, pelo
contrário, a tentar definir a sua posição e assimilar a estranheza”. Ou, no dizer de C. Cunha
(2007, p. 19):

[...] a alteridade surge pela relação específica com um endereçado concreto a quem
me dirijo (alteridade relacional ou outridade), mas também pelo envolvimento com
um “supra-endereçado” (uma alteridade abstracta), que ultrapassa a tirania do
aqui e agora e que cria um contraste possibilitador do sentido (re)criado no
presente.

Essa assertiva imprime uma marca da complexidade que está envolta nos princípios
bakhtinianos – contextual, dinâmico –, nos quais a relação Eu-Outro tem uma dupla
dimensão, abstrata e concretizada, às quais são endereçadas durante o diálogo.
O princípio contextual está diretamente relacionado à possibilidade de adaptação da
existência pessoal a um determinado contexto social e histórico, o qual reverbera nas
relações comunicacionais, pois a cultura vivenciada pelos sujeitos é relevante nas relações
com o outro. Essa narrativa é um convite a pensar-se que muitos aspectos do diálogo estão
ancorados nas experiências vivenciadas no contexto cultural.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 300


O princípio dinâmico remete a uma lógica de movimento nas relações com o outro,
em que a organização e a reorganização dialógica apresentam-se como uma constante. Com
efeito, o princípio dinâmico institui a possibilidade de transformação entre o ser e o estar no
mundo, consigo e com o outro, e vivenciar diariamente a necessária trajetória de conflitos
que inauguram um campo semântico de possibilidades do diálogo. Essa afirmação ratifica o
olhar de Hermans (2001), de que as posições do EU são, respectivamente, posições pessoais
e posições culturais.
Para Hermans, Kempen e Van Loon (1992, p. 28) o self dialógico constitui-se em “[...]
uma multiplicidade dinâmica de posições do 'eu' relativamente autônomas em uma
paisagem imaginária”. Nessa perspectiva, o self é multivocal e dialógico, estando relacionado
a um processo de construção e reconstrução das narrativas vivenciadas pelo sujeito em
diferentes momentos.

Algumas reflexões sobre o PARFOR

O PARFOR consiste em um programa brasileiro implantado pela CAPES em regime de


colaboração com as Secretarias de Educação dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios e com as Instituições de Ensino Superior (IES). Seu principal objetivo é garantir
que os professores em exercício na rede pública de educação básica obtenham a formação
exigida pela LDB n.o 9.394/96, por meio da implantação de turmas especiais, exclusivas para
os professores em exercício. Vale ressaltar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional deixa clara essa necessidade de formação nos artigos 62 e 63:

Art. 62 – A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível


superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidade e
institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para o
exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino
fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.
Art. 63 – Os Institutos Superiores de Educação manterão:
I. cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o curso
normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para
as primeiras séries do ensino fundamental;
II. programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação
superior que queiram se dedicar à educação básica;
III. programas de educação continuada para os profissionais de educação dos
diversos níveis. (BRASIL, 1996).

A legislação indica como deverá ser conduzida a formação de docentes, reorientando


que as redes de ensino devem colocar-se a tarefa de investir na formação e atualização
permanente de seus profissionais, aproveitando as práticas e os conhecimentos já
acumulados daqueles que já trabalham com crianças há mais tempo. As ações colaborativas
desenvolvem-se com universidades públicas federais e estaduais, sobretudo para dar conta
do fosso na formação docente da educação básica, destacando o curso de Licenciatura em
Pedagogia, o qual tem como foco a docência na Educação Infantil e Ensino Fundamental I.
A formação dos professores no PARFOR acontece em universidades públicas
estaduais e federais e por institutos federais de educação, ciência e tecnologia, que
oferecem graduação. Na Bahia, a UNEB constitui-se em uma das representantes oficiais para
assumir a operacionalização dos cursos de graduação integrantes do PARFOR – primeira

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 301


Licenciatura, nas áreas de Artes Visuais, Ciências Biológicas, Computação, Educação Física,
Física, Geografia, História, Letras, Matemática, Pedagogia, Química e Sociologia, a serem
oferecidos nos 29 Departamentos dos seus 24 campi, no formato modular ou semestral,
com duração de 3 anos.
Os docentes têm livre arbítrio na escolha da licenciatura que reverbera na
especificidade da prática pedagógica que ministra na escola que atua.
Os cursos foram estruturados em três tipos:

1. Primeira licenciatura – para docentes em exercício na rede pública da educação


básica que não tenham formação superior;
2. Segunda licenciatura – para docentes em exercício na rede pública da educação
básica, há pelo menos três anos, em área distinta da sua formação inicial; e
3. Formação pedagógica – para docentes graduados não licenciados que se
encontram em exercício na rede pública da educação básica.

Nesta estrutura, uma das licenciaturas é do interesse deste estudo: aquela


concernente à primeira licenciatura em Pedagogia no formato modular, mais
especificamente, a localizada no município de Serrinha no Estado da Bahia.

Narrativa sobre a formação do PARFOR

Ao considerar que este estudo lida diretamente com os olhares de professoras que
são estudantes na formação do PARFOR, a escolha da pesquisa qualitativa ocorre devido à
natureza do objeto que demanda a interlocução com as subjetividades das entrevistadas,
através do mapa do self dialógico.
O mapa do self dialógico consiste em um método baseado na Family Circles Method
(FCM), que permite aos participantes da pesquisa produzir uma representação das suas
vidas pessoais, os limites e espaço, parentes próximos e a distância dos relacionamentos
(CHAUDHARY; SHARMA, 2008). Sua efetivação corresponde a duas partes: na primeira, o
sujeito é convidado a desenhar um círculo que representa o seu self; em seguida, desenham-
se outros círculos correspondentes às representações de outras pessoas, domínios e áreas
consideradas significantes. Vale ressaltar que a disposição dos círculos na folha de papel é
formatada de acordo com o desejo do pesquisado.
Esse esboço registrado na folha é utilizado a posteriori como gerador de diálogo
sobre as escolhas das dinâmicas entre o self-outro e, em seguida, as colaboradoras da
pesquisa são convidados a desenhar outros mapeamentos similares do seu self passado
(cinco anos atrás) e do seu self futuro (cinco anos à frente). Essa dinâmica, de acordo com os
estudos de Chaudhary; Sharma (2008) tem possibilitado aos pesquisadores várias pistas da
organização do self.
No contexto dessa pesquisa, o mapeamento do self dialógico representa uma forma
de compreender o percurso de formação identitária revelado pelas colaboradoras sobre as
dimensões da práxis educativa, na condição de mulher, mãe, estudante e professora,
percebendo o olhar para o posicionamento do “eu” no caráter processual da formação
docente e da vida. Neste contexto, os diálogos, evidenciados com cada participante, foram
de extrema importância para avaliarmos as influências internas e externas da formação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 302


Deste modo, a análise e discussão dos resultados estão ancoradas, inicialmente, na
descrição individual dos selves das dez estudantes-professoras, os quais são explicitados em
três figuras interligadas. A primeira consiste no mapa do self presente, no qual as
colaboradoras da pesquisa representaram, através de desenhos, suas percepções do Eu na
relação com os outros significativos, atribuindo posições dialógicas com os seus selves.
A segunda representa uma retrospectiva das mesmas relações explicitadas no desenho
anterior, revelando as implicações há cinco anos. No terceiro desenho, as professoras-
estudantes estabelecem uma relação prospectiva referentes à cinco anos futuros sobre as
mesmas relações representadas anteriormente. Importante ressaltar que o registro desses
desenhos fora efetivado através das narrativas reveladas pelas participantes, após a feitura
de cada desenho.
Vale ressaltar que neste artigo estaremos evidenciando os registros de mapas,
digitalizados, de duas professoras-estudantes, designadas por nomes fictícios, das dez
colaboradoras da pesquisa ora apresentada, com vistas a evidenciar o procedimento de
análise utilizando este instrumento.

Caso 1 professora-estudante Patrícia

Figura 1- Mapas do self presente, passado, futuro – Professora-estudante Patrícia, Serrinha


Fonte: Dados da Pesquisa (2012)

O primeiro caso é o da professora-estudante Patrícia, 37 anos, professora, docente


há quatro anos com carga horária de quarenta horas, casada e mãe de quatro filhos.
Solicitada a falar sobre os desenhos do seu self no presente, a professora-estudante, aqui
denominada com o nome fictício de Patrícia, ressalta que, nesse período histórico de sua
vida, sente-se muito triste, pois o marido é uma pessoa muito ausente tanto na vida da
família, quanto em todo movimento de conquista na profissão e de estudo por que ela vem
passando. Nesse instante, salienta que, recentemente, recebeu uma premiação no trabalho
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 303
(na escola), o qual foi efetivado pelo secretário da Educação do Município. Na oportunidade,
vestiu-se bem, estava feliz em receber o reconhecimento pelo trabalho efetivado com
crianças com necessidades especiais. O marido, no dia do evento, por conta de ciúmes,
acompanhou-a com má vontade, ficou de “cara amarrada” e, assim que acabou a cerimônia,
saiu de pronto, sem esperar pela comemoração, ou seja, fugiu da festa. Neste instante,
Patrícia revela ter sido tomada por uma profunda tristeza por não ter aproveitado um
momento tão especial para ela e seu grupo de trabalho.
Nesse momento, a professora Patrícia se emociona, fica pensativa e, depois de alguns
segundos, acrescenta: “Mesmo assim não consigo deixar de amá-lo e tomar uma atitude
mais rígida”. Não obstante, é oportuno observar que, no mapa desenhado pela professora
Patrícia, o seu esposo apresenta-se no desenho como uma pessoa entre o trabalho e a
formação e, ao mesmo tempo, representa certo afastamento dos filhos e de seus familiares
mais próximos (pai, mãe, tia, prima e professora da formação). Fica nitidamente explícita a
sua ligação com os filhos, os quais são considerados parte fundamental de sua vida.
A professora reitera que os seus filhos são muito importantes para que ela continue
com a Formação no PARFOR. Mas, destaca a filha mais velha, que faz faculdade de
Engenharia em uma Universidade Federal em outro Estado. Essa filha representa uma
grande força para ela continuar a formação no PARFOR, pois, diante das dificuldades de
convivência com o esposo, devido aos ciúmes e à condição de desempregado (vive de seguro
desemprego), pensa muitas vezes em desistir. Contudo, com os incentivos das duas filhas
mais velhas, da prima e de uma professora do curso que a acolheu e aconselhou diante
desse momento difícil, tem conseguido perseverar até agora e não pretende desistir nunca!
Além disso, deixa claro que os pais, a avó paterna, os irmãos representam sustentação e
porto seguro, mas ela não consegue continuar levando os seus problemas para eles, então
procura se calar e sofrer sozinha essa dor desencadeada pela postura ciumenta do esposo.
Nesse momento, a professora-estudante Patrícia recebe uma mensagem no celular,
pede licença e liga para o esposo, quando este reclama, pois afirma que ligou e ela não
atendeu. Logo ela explicou que estava participando de uma pesquisa e ele não entendeu... A
professora Patrícia deixou transparecer a sua indignação diante da situação e desabafou: “Eu
não aguento mais esses ciúmes, que checa o tempo todo onde estou, quando não atendo
logo o telefone, fica irritado...! Mas, tenho os meus filhos... Por isso ainda estou com ele”.
Em seguida, a professora-estudante explicitou as mesmas relações explicitadas no
desenho do self no presente com o tempo histórico de cinco anos atrás. Patrícia inicia suas
declarações sobre o mapa denominado de momento difícil; a palavra difícil é mais uma vez
citada como no momento presente. Só que agora é referendado há cinco anos quando ela
relata que estava em outro Estado do nordeste, longe da família (pai, mãe, avó, tia, prima e
irmãos) que tanto preza e de quem tem apoio. Como se não bastasse essa distância, teve de
conviver com a dificuldade de desemprego do marido e as consequências financeiras
oriundas dessa situação.
Relata, ainda, que não sabe como sobreviveu durante os seis anos que passou nesse
estado, sem trabalhar fora de casa, exercendo a função de dona de casa, sobrevivendo com
a ajuda dos parentes dela e dele que enviavam suprimentos e algum dinheiro para
complementar os “biscates” que ele conseguia fazer. Além disso, explicita que o esposo de
fato estava muito doente, recebeu o diagnóstico de depressão e foi detectado que tinha
problemas de coração. A sobrevivência, então, só foi possível com a ajuda da família.
Importante destacar que, nesse momento, Patrícia salienta que “a distância da família causa
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 304
um vazio muito grande, pois o porto seguro estava bem distante. Eu chorava muito!” Afirma,
ainda, que o ciúme do marido já existia, mas era ameno.
Fica evidente na organização do mapa do self a presença da narrativa da professora-
estudante, sobretudo no que concerne ao distanciamento da família (a saudade), a qual
parece unida para enviar recursos para sua sobrevivência, de seu esposo e seus filhos.
Ademais, embora no desenho o marido esteja ao seu lado, é evidente o afastamento dele
dos filhos e da própria esposa, talvez a depressão tendo causado esse afastamento...
As crianças aparecem ligadas à mãe e bem afastadas do pai, assim como a condição
de desemprego do pai aparece paralela à condição situacional que é estar em outro Estado,
com dificuldades no casamento e sem trabalho. Quando Patrícia narrou essas passagens
explicitadas no mapa do self, demonstrou, também, certa fragilidade, pois nesse instante
estava presa ao serviço doméstico, diante da necessidade de cuidar das crianças e do marido
doente, não podia contribuir financeiramente com o sustento da família. E isso causava
muita dor, pois não foi fácil viver da ajuda de outrem sem puder tomar atitudes mais
concretas sobre a situação.
Dando prosseguimento aos diálogos efetivados após os desenhos do mapa do self do
presente, há cinco anos, foi solicitada a professora-estudante Patrícia que explicitasse uma
visão prospectiva dos elementos vivenciados para uma visão daqui a futuros cinco anos.
Nesse contexto futuro, Patrícia indica que a sua pretensão consiste primeiramente
em ver a família feliz, esperando ver filhas encaminhadas: a primeira formada em
Engenharia; a segunda formada em técnica de mineração; quanto aos dois menores, deseja
que estejam bem na escola e psicologicamente. A questão psicológica é referida, pois a
docente declara que “minha terceira filha no presente toma calmante e espero que daqui a
cinco anos ela não esteja mais com essa necessidade”.
Outro desejo que é externado por Patrícia consiste no crescimento profissional na
escola onde trabalha. Ela ressalta que pretende assumir a coordenação pedagógica da escola
e que, paralelamente, deve fazer uma especialização em educação especial, modalidade de
ensino em que trabalha.
Reitera, ainda, que pretende se aproximar mais da família (pai, mãe, irmãos), pois,
diante da situação vivenciada no seu casamento, tem se afastado da família. Todos ficam
muito preocupados e ela não quer atribuir mais problemas aos pais, que têm certa idade,
assim como sofrer julgamento do porquê ela suporta essa situação.
É ressaltado que, nesse período (cinco anos futuros), deseja estar separada do
marido (separação de corpos), mas unidos em virtude da necessária convivência harmoniosa
como pais dos seus filhos. Essa atitude é salientada por ela, durante o diálogo, como motivo
de libertação do sofrimento, pois acredita que não suportará mais a situação desgastante
vivenciada no âmbito da relação a dois. Paralelo a essa afirmativa, o seu trabalho aparece
como deslumbramento de conquistas e possibilidades para mudança de vida. Importante
destacar que seus olhos iam se enchendo de alegria à medida que projetava a feitura de um
curso de especialização, assim como ao entrever a possibilidade de assumir a coordenação
da Escola, possibilidade que já é suscitada por colegas e direção da escola, em virtude da sua
implicação com o fazer pedagógico, da criatividade na relação com as crianças e da
responsabilidade com tudo a que se propõe fazer na sua práxis docente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 305


Caso 2 professora-estudante Ivonilde
Figura 2 - Mapas do self presente, passado, futuro- Professora-estudante Ivonilde, Serrinha

Fonte: Dados da Pesquisa (2012)

O segundo caso é o da professora-estudante Ivonilde, 40 anos, professora há vinte e


um anos com carga horária de quarenta horas, casada e mãe de três filhos. O desenho do
mapa do self da professora-estudante, aqui denominada de Ivonilde, revela uma certa
harmonia em volta da família, em face da disposição que os filhos gêmios, o filho mais velho,
os seus pais e esposo assumem ao redor do seu eu. Ivonilde ressalta que vive tranquila ao
lado dos seus filhos, esposo e pela importante convivência com seus pais, seis irmãs e um
irmão.
Em seguida, fica evidente a sequência de importância das demais atividades na sua
vida. Ela traz a Secretaria de Educação do Município, a escola, contextos que representam
seu trabalho, depois o PARFOR que representa a sua formação docente na UNEB e as
relações provinientes desses lugares como colegas das escola, colegas do PARFOR e colegas
de infância.
Importante destacar que Ivonilde explicita durante o diálogo que não tem
dificuldades em aticular a posição de técnica na Secretaria da Educação do Município, de
professora em outro período e de ser mãe, esposa. Deixa claro que seu esposo é parceiro
ativo na educação dos filhos e na ajuda do lar, pois as tarefas domésticas são efetivadas por
uma empregada doméstica e isso facilita muito a sua vida, no que concerne a administração
da vida familiar, profissional e estudante, além do incentivo da família para com o seu
crescimento profissional. Nesse instante, ela afirma que não consegue crescer mais pelo fato
de não gostar muito de ficar planejando as coisas, gosta que essas aconteçam no seu tempo,
sem busca excessiva.
Durante o diálogo sobre os desenhos a professora –estudante Ivonilde afirma que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 306


eu tenho seis irmãs, sete comigo e um irmão que é mais distante, pois mora em
São Paulo. Minhas irmãs são minhas amigas. Quanto ao trabalho na escola, estou
muito ligada à educação, adoro ensinar desde quando fiz o magistério, pois logo
consegui ensinar, mesmo com pouco estudo consegui conhecer e aprender na
prática, assim como sempre participei de cursos em Feira de Santana para
melhorar a minha prática . Sempre quis fazer ensino superior, mas sempre tive
medo. Então fiz Letras à distância e sei que não é a mesma coisa. Até que surgiu a
oportunidade do PARFOR e mergulhei de cabeça. No início foi difícil devido ao
curso acontecer nos finais de semanas, mas depois me acostumei e, com o apoio
do esposo e da família, tudo caminha bem. Não tenho dificuldades.

Ivonilde ressalta a importância de ter amigos, sobretudo os de infância, pessoas


“especiais” na sua vida, ainda diz que tanto no trabalho quanto na formação é preciosa a
convivência com os colegas e afirma que se sente querida entre estes.
O mapa do self concernente aos movimentos vivenciados no passado expressa uma
posição central de Ivonilde diante dos filhos gêmeos com cinco anos, do filho mais velho,
com quatorze anos, o esposo aparece na mesma direção dos filhos, seguido por seus pais,
seis imãs e um irmão compondo o cenário dialógico com a sua família nuclear que tanto
ressalta (ela, os filhos e o marido). Um pouco afastado desse quadro focal aparece em
destaque o sobrinho, a doença de um cunhado, a chateação com uma cunhada e logo acima,
afastado da família, mas com uma representação de elevada importância, são destacados os
alunos do segundo ano do Ensino Fundamental, a escola pública, a escola particular que
lecionava. Mais uma vez, ressalta os estudantes dos segundo ano e, em uma camada
superior envolvendo essa primeira, aparece um misto de atividades, os quais são
representados pelos colegas de infância, frustração com escola pública e formação inicial no
Curso de Letras à distância.
No desenho do mapa do self projetado para cinco anos futuro, a professora-
estudante Ivonilde mantém a posição central nas relações familiares tanto da família nuclear
quanto da extensão da família. Projeta a idade dos filhos, os gêmeos com dezesseis anos, o
mais velho com vinte e quatro anos, assim como presença do marido, além disso, há o
desejo da cura e saúde para os pais, os quais são atribuídos a uma fé em Deus, aparenta uma
importante ligação com um sobrinho e os irmãos, assim como aparece um investimento na
profissão, através da efetivação do mestrado, acompanhado de uma possível aposentadoria,
realização de projetos, cura de cunhado e jogar as mágoas no lixo.
Dialogando sobre essas atividades que pretende realizar, Ivonilde reafirma que não
gosta muito de planejar a sua vida para o futuro, mas pensa que a maior felicidade é ver
seus filhos crescidos, seu esposo e familiares com saúde, além de libertar de uma mágoa
deixada por uma cunhada, a qual até o momento atual não conseguiu se desvencilhar.
Afirma, ainda, pensar em fazer um mestrado com vista a uma valorização acadêmica e
profissional, além de investir mais na sua profissão. No entanto, é curioso que, paralelo a
esse investimento, a aposentadoria apareça mais acima desta posição. Ivonilde declara que
trabalha desde cedo, pois daqui a cinco anos completará vinte seis anos de docência,
condição legal para se aposentar.

Considerações Finais

As itinerâncias, as aprendizagens e o desejo do conhecimento, como uma das


possibilidades do desenvolvimento pessoal e profissional é o caminho que busco
para reafirmar a minha identidade profissional, bem como, cada vez mais, melhor
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 307
compreender o fenômeno educativo, especificamente no que tange ao processo de
formação e desenvolvimento pessoal e profissional do educador. Um educador em
construção expressa uma reflexão sobre tempos e espaços de formação. Tempos
marcados na memória e nas histórias sobre o sentido da vida e da profissão
(SOUZA, 2006).

Depreende-se com Souza (2006) quão relevante consiste o processo de formação, o


qual reafirma identidades marcadas no tempo e espaço, tecidos e sentidos na vida e na
profissão. As discussões acerca da formação de professores, sobretudo daqueles que atuam
no âmbito das séries iniciais da educação básica, tem mobilizado pesquisadores e estudiosos
da área da educação, com vistas a conhecer os caminhos, trajetórias sobre esse processo
formativo, o qual é defendido pelas políticas públicas de formação como importante
indicador para a qualidade de ensino.
As reflexões aqui desenvolvidas indicam alguns olhares sobre a formação docente,
com vistas a conhecer a formação promovida pelo Plano Nacional de Formação de
Professores da Educação Básica (PARFOR) e a teoria do self dialógico.
Ficou evidenciado que as políticas públicas decorrentes do PARFOR têm o mérito de
promover o acesso de professores à formação específica, validando a sua trajetória no
exercício da docência, pois a experiência prática é considerada. Essa iniciativa representa um
benefício tanto para a qualidade do ensino, quanto para a qualidade da formação. No
entanto, é oportuno sair do olhar apenas cognitivo que está imerso no modelo de formação,
pois a matriz curricular do curso de licenciatura em pedagogia está pautada na aquisição de
saberes, conhecimentos e teorias importantes, fazendo sempre uma relação com a prática
de sala de aula. Os docentes que participam dessa formação precisam ser vistos a partir de
olhares dialógicos, os quais ultrapassam as implicações da formação exposta pelo PARFOR,
pois são desconhecidas as condições objetivas dos sujeitos que estão nos bancos escolares
das universidades, como, por exemplo, trabalhar 40 horas semanais, estar há anos sem
estudar, ter obrigações familiares e se disponibilizar nos finais de semana para a formação
no PARFOR.
O estudo permitiu concluir que os docentes que participam dessa formação, ao
mesmo tempo docentes, estudantes, mães, pais, esposos e esposas, devem ser
compreendidos a partir de olhares dialógicos, os quais ultrapassam as implicações da
formação exposta pelo PARFOR. Com efeito, a teoria do self dialógico consistiu em
importante referencial que visou descortinar as condições objetivas que envolvem o
cotidiano das professores-estudantes e da formação.
Nas narrativas das professoras-estudantes expressas através dos desenhos dos
mapas dos selves (presente, passado e futuro) revelam que a formação vivenciada no
contexto do PARFOR vislumbra novas possibilidades profissionais, sobretudo, no que se
refere a dar continuidade aos estudos em pós-graduação, com vistas a conquistar novas
funções no contexto da escola, assim como essa formação representa um exemplo para os
filhos a ponto de estimulá-los a frequentar uma universidade.
Além disso, indica o quanto essa formação moveu as suas vidas, pois modificou
rotinas, interferiu nas relações com os esposos, exigindo posicionamentos de rebelião,
enfrentamento e solicitação de ajuda no cuidado com os filhos, envolvendo, nestes
momentos, a necessária consulta do self, com vistas a questionar-se acerca da continuidade
na formação. Esta, de forma unânime, é revelada pelas professoras-estudantes como um
caminho necessário e imprescindível à realização de um sonho.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 308
Diante dessas revelações tecidas pelas professoras-estudantes no âmbito da
formação, percebe-se que não são fáceis as posições dialógicas tecidas por elas para
permanecer no processo formativo, sobretudo aquelas professoras-estudantes oriundas da
zona rural (quatro no universo de dez), as quais descreveram as dificuldades enfrentadas
durante o trajeto até a faculdade, devido à ausência de transportes regulares, situação que
as obriga a acordar às quatro horas da manhã para dar conta do cuidado com os filhos,
afazeres domésticos e na produção do próprio alimento que é levado junto aos livros e
cadernos para a formação. Nesse instante, as suas narrativas explicitam um misto de dor e
coragem, atitudes que são retroalimentadas no apoio das vozes externas, provenientes de
uma rede de apoio constituída por familiares, colegas, fé e esposos, as quais são
internalizadas e geram uma mobilização interna capaz de sustentar atitudes resilientes
diante das dificuldades.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 309


Narrativas autobiográficas: análise crítico-reflexiva da qualificação formativa de
estudantes universitários

Jessica Santana Bruno


UFRB
jessicabruno2@hotmail.com
Valterci Ribeiro
UFRB
val.rib@hotmail.com
Claudio Orlando Costa do Nascimento
UFRB
clauorlando@uol.com.br

Esta pesquisa é resultado da experiência de construção e compartilhamento de narrativas autobiográficas


realizada no âmbito do Programa de Educação Tutorial - PET Conexões de Saberes-UFRB e Recôncavo em
Conexão. Nas autobiografias foram narrados pelos estudantes bolsistas às histórias de vida, suas experiências
sociais em comunidade, suas vivências familiares, a experiência de iniciação educacional e a experiência de
entrada e permanência na Universidade. A experiência da escrita autobiográfica estabeleceu um vínculo entre
os saberes socioculturais e individuais e os saberes acadêmicos dos estudantes. Com base em estudos
contemporâneos no campo da educação e das teorias críticas de currículo e formação, pode-se ressaltar a
maior eficiência da formação quando existe o dialogo entre os conhecimentos, vivências, percepções e
interpretações dos sujeitos na formação acadêmica. A experiência evidenciou que a valorização das historias de
vida, das trajetórias formativas dos sujeitos em seus contextos e territórios de referência proporcionam uma
formação mais critico reflexiva e promove maior auto identificação do estudante com a formação universitária,
pois esta passa a não ser mais algo distante da realidade vivenciada. A incorporação dos aspectos da realidade
dos indivíduos favorece a adaptação universitária propiciando assim maior qualificação, êxito acadêmico e
sócio profissional. As Histórias de vida e da condição estudantil quando compartilhada ganham relevância
política e curricular. As experiências demonstraram a eficiência da formação quando associa-se as itinerâncias
de formação pessoal, profissional e acadêmica. Nesse sentido faz-se necessário que se propicie vivências
democráticas que valorizem as experiências e saberes dos estudantes e seus protagonismos socioculturais.
Para socialização e compartilhamento dos resultados da pesquisa com a comunidade acadêmica, as produções
autobiográficas foram publicadas no livro “CURRÍCULO, FORMAÇÃO E UNIVERSIDADE: Autobiografias,
Permanência e Êxito Acadêmico de Estudantes de Origem Popular”.
Palavras-chave: Autobiografia; Currículo; Êxito Acadêmico.

Introdução

Os campos do currículo e da formação a partir dos enfoques na interação dos saberes


socioculturais e pessoais dos sujeitos e os saberes acadêmicos, suas implicações, mediações
e experiências vêm sendo pesquisados no âmbito do PET -UFRB e Recôncavo em Conexão
(Programa de Educação Tutorial - PET conexões de saberes - MEC-SESU) com interesse de
analisar aspectos do processo formativo, no intuito de transmitir uma maior compreensão
da importância da valorização das relações entre os saberes extra-acadêmicos adquiridos no
âmbito social, cultural e pessoal do indivíduo, as políticas curriculares e a formação
acadêmica dos estudantes, para um maior e mais completo desempenho acadêmico-
formativo. O estudo baseia-se nas teorias emancipatórias dos campos do currículo e da
formação, que demonstram a pertinência de se conceber as trajetórias curriculares através
das práticas sociais, culturais e pessoais, mediante a valorização das historias de vida, dos
percursos formativos dos sujeitos em seus contextos e territórios de referência.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 310


Com base em múltiplos estudos no âmbito do currículo e da formação compreende-se
a importância de se vivenciar uma experiência curricular pautada na construção de
conhecimentos a partir das práticas sociais, culturais e pessoais, com a valorização da
historia de vida e formação. Tal compreensão evidencia que as variadas etapas da vida são
também processos de formação. E por caracterizarem-se como tal, não podem ser ignoradas
e devem ser valorizados.
Foi utilizado como aparato teórico metodológico, variada gama de estudos
contemporâneos no campo da educação e das teorias críticas de currículo e formação, que
apontam que existe uma maior eficiência na formação quando existe o dialogo entre os
conhecimentos, vivências, percepções e interpretações dos sujeitos na formação acadêmica,
foi utilizada também, narrativas autobiográficos que foram produzidos individualmente
pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, onde estes relatam as suas experiências de vida
e formação. Constituiu-se um processo de análise da bibliografia selecionada e da
experiência da escrita autobiográfica e sua socialização. De acordo com as análises, podem
ser sinalizados alguns fatores que contribuíram a princípio, para a sustentação do argumento
que defende a valorização dos saberes sociais, culturais e pessoais do indivíduo garantidos
pelo currículo para uma formação exitosa. Esses referenciais epistemológicos desmistificam
a ideia de currículo como ‘grade’, nesse sentido, o currículo assume o definição de artefato
sócio educacional produzido através dos atos que implicam em conceber / selecionar /
produzir, organizar, institucionalizar, implementar / dinamizar saberes, conhecimentos,
atividades, competências e valores visando uma “dada” formação, configurada por
processos e construções constituídos na relação com o conhecimento eleito como
educativo. (MACEDO, 2008, p. 24).
É inegável o elevado grau de interferência do currículo na construção das práticas
pedagógicas, uma vez que este é constituído a partir de mecanismos que selecionam o que é
prioridade para a formação desejada. Para a construção de um currículo que proporcione
uma formação mais abrangente, deve-se priorizar a participação de múltiplos atores/autores
com o propósito de inclusão sociocultural dos sujeitos, pois o currículo deve estruturar-se
em um referencial formativo capaz de agregar os sujeitos socioculturais existentes. A
experiência de produção das autobiografias proporcionou uma compreensão real,
vivenciada com as próprias experiências, de que os conhecimentos e experiências
vivenciadas na trajetória cotidiana dos indivíduos são também formativos.
O currículo pensado apenas para a formação de sujeitos singulares segrega os atores
sociais, ao negligenciar a importância das práticas sociais, culturais e pessoais do indivíduo
para a formação. Faz com que o sujeito assimile conteúdos distantes da sua realidade de
vida, tornando suas pretensões de trabalho também distantes dessa realidade. (MACEDO;
2012) afirma que a formação do sujeito pedagógico se relaciona de maneira intrínseca com o
existencial e com o sociocultural. Diante de tais reflexões, pode-se desconstruir o imaginário
que coloca a formação como algo unitário, sem a participação de outros sujeitos e vivências
particulares de cada indivíduo. Tal estudo e diagnostico é importante, pois, a formação
construída através de diálogos com as diferentes esferas que compõe as experiências de
vida e formação fomenta a autoidentificação do sujeito com a formação universitária,
favorece a adaptação universitária e implicam diretamente na formação social, cultural e
política, como condição de formação profissional, crítica e de exercício de cidadania.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 311


Desenvolvimento

A interação entre os saberes intrínsecas do indivíduo e os saberes acadêmicos deve ser


valorizada e garantida através das políticas curriculares, Essa interação é fundamental para
que o processo de formação garanta a autoidentificação do indivíduo com o processo
formativo e consequentemente uma elevação da qualidade e êxito da formação, através de
uma experiência pautada na construção de conhecimentos, a partir das práticas sociais,
culturais e pessoais do indivíduo, possibilita-se uma postura crítica e atuante no exercício da
sua cidadania.
Para isso, torna-se necessária a compreensão dos conceitos de currículo e do seu papel
na formação. As políticas e práticas curriculares não comportam em sua interpretação
reduções, pulverizações e concepções acríticas. É importante que se compreenda o que se
configura como Currículo, e que se saiba lidar com suas complexas e interessadas dinâmicas,
dinâmicas estas que definem de forma pujante a qualidade e a natureza das opções
formativas. É necessário reconhecer e debater a polissemia do termo currículo, sem ofertar-
lhe conceitos reducionistas. Em Currículo: Campo, Conceito e Pesquisa, Sidnei Macedo
rejeita a visão simplista e reducionista do currículo, que limita-o a transmissor de
informações no processo de ensino aprendizagem. Ressalta a importância de conceituar
Currículo, e perceber sua dinâmica e implicação político-pedagógica própria. Para Macedo,
essa visão pulverizada de Currículo distancia-o da sua especificidade no que concerne a
configuração social da educação e o poder que este exerce.
O Currículo é definidor dos processos formativos, em termo de concepção e construção
da formação, define em muito a qualidade e a natureza das opções formativas, indo além de
um legislador e regulador educacional. É importante compreender e levar em consideração
todo um campo político, ideológico, histórico, social, cultural e econômico no qual se insere
o currículo. Para não cair na armadilha de reduzi-lo a um documento que contém
componentes para serem rigorosamente atendidos para consolidação de um processo
formativo. O campo curricular está carregado de intenções, de valores, de conteúdos, de
atitudes, de experiências, de conflitos. Para Rossi (2005), esse campo comporta várias visões
de mundo, crenças, afetos e significados, conflitos de interesse, dada a diversidade de atores
envolvidos.
O Currículo não pode ser compreendido apenas como um mero organizador de
conteúdos, ou uma especificação de documentos que apresenta todos os objetivos,
disciplinas, temas a serem tratados/executados para dada formação. O currículo é resultado
de escolhas que deve levar em conta não apenas o que e como deve ser ensinado, mas,
principalmente as razões para determinados conhecimentos serem eleitos em detrimento
de outros. Deve-se compreender os interesses que estão por trás das opções eleitas no
currículo como formativas. O Currículo precisa ser compreendido como um processo de
construções social, atravessado por relações de poder, que faz com que tenhamos uma dada
definição de Currículo e não outra, que fizeram e fazem com que o Currículo inclua em um
processo de formação um determinado tipo de conhecimento e não outro. (Silva 2002,
p.135)
O Currículo pode ser compreendido como macroconceito, complexo e poderoso
artefato educacional, organizador das formações. Pacheco (1996) apud Macedo traz o
conceito de currículo, com sua origem do latim "correre" que significa caminho, jornada,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 312


trajetória, percurso, e a palavra "curriculum" carrega em si o significado de carreira e
organização das experiências vividas no campo profissional e educacional.
Baseados nos estudos de Goodson (1998), Macedo elabora um conceito dilatado de
currículo. Sendo assim, em alguns de seus significados o Currículo é um artefato
socioeducacional que se configura nas ações de conceber/selecionar/produzir, organizar,
institucionalizar, programar/dinamizar saberes, conhecimentos, atividades, competências e
valores visando uma “dada” formação, configurada por processos e construções constituídos
na relação com o conhecimento eleito como educativo.

O currículo é um espaço de poder e não é estático, pois é através das reivindicações que
ele se transforma, principalmente em um espaço de construção de conhecimento que é a
universidade, onde a homogeneidade não existe. De acordo com Macedo (2013):
A afirmação da heterogeneidade nas experiências curriculares abriram portas para
que segmentos sociais e culturais, secularmente ausentes da concepção,
organização e implementação de currículos, entrassem no mérito e se implicassem
no protagonismo do conhecimento eleito como formativo isto é: o currículo.
(Macedo 2013).

Quando entendemos o caráter político, social e de relações de poder do currículo,


observamos mais uma vez que a educação não é neutra, e por si só, não tem a capacidade
de encarar os problemas sociais existentes, sem a tomada de uma posição positiva e
afirmativa por parte dos construtores desse currículo.
Existe uma importância inegável no contorno social do indivíduo para a formação, este
contorno social condiciona a visão de mundo que o indivíduo possui. Por esta razão torna-se
necessário a interação das experiências de vida, de formação pessoal e profissional, as
vivências culturais e humanas em consonância com a formação acadêmica no processo de
ensino-aprendizagem, para uma formação qualificada. Os saberes e experiências de vida no
âmbito social e cultural são formativos e devem ser valorizadas.
Mesmo diante dos estudos que apontam uma maior qualificação acadêmico-formativa
quando se tem a interação entre os saberes socioculturais e pessoais dos sujeitos, ainda é
comum a utilização desses saberes apenas como atividade extracurricular, o conhecimento
eleito como formativo nos cursos ainda é apenas os de aplicação teórica, tradicionais. Nesse
cenário, as experiências socioculturais são utilizadas como hábito apenas como um acessório
de exemplaridade, adereço, uma ponte para o conhecimento científico tradicional valorado.
Nesse sentido, compreendemos que a formação é um processo que nos constitui,
processo que se inicia em nossos primeiros contatos como mundo e suas diferentes esferas
e que se desenvolve nos âmbitos da vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais (BRASIL. Lei n. 9.394, 1996), assim define a lei maior da
educação brasileira, a LDB promulgada em 1996. Demonstrando desse modo a abrangência
da formação. É de fundamental importância a articulação de saberes construídos na
convivência em espaços educativos, os mais diversos, na constituição de percursos
formativos nos mais variados âmbitos da vida humana. os saberes mobilizados nos diversos
espaços de aprendizagem, com os quais convivemos se articulam para a constituição de
percursos formativos nos mais variados âmbitos da vida humana, os sujeitos constroem e
dão sentido a suas experiências socioculturais.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 313


O processo formativo deve ser trabalhadas sob perspectivas que abranjam esferas
culturais, sociais, profissionais, pedagógicas, de forma a ressaltar condição de ser/estar no
mundo abrangendo tanto os espaços pedagógicos das instituições educacionais, tendo o
currículo como um “dispositivo de formação”, como os espaços socioculturais e pessoais. As
experiências de vida devem ser tratadas como um componente fundamental para a
formação, não apenas como adorno. Dada à eficiência assumida pela experiência na
possibilidade de atualizações constantes desses saberes que são mobilizados nos diversos
espaços educativos.
Os saberes socioculturais construídos em diversos contextos podem se articular em
situações de formação profissional. Existe uma indissociabilidade entre a experiência
sociocultural, pessoal e os espaços formativos e profissionais nos quais os saberes são
mobilizados e reconstruídos. Estes estão presentes nos círculos acadêmicos, mas também e
principalmente nos diversos espaços formativos que constituem o espaço cultural, social,
histórico com o qual convivemos em nossa vida diária e nos quais nos tornamos pessoas
humanas.

Dispositivos metodológicos

O embasamento teórico-metodológico decorre da escrita, análise e compartilhamento


de narrativas autobiográficas, bem como estudos contemporâneos em educação, de
maneira especial, das teorias críticas e pós-críticas de currículo e formação. Optamos por
construir conhecimento conforme as percepções e interpretações dos sujeitos implicados
com suas vivências de formação. Nesse sentido, foram produzidos e compartilhados textos
autobiográficos pelos bolsistas/pesquisadores do grupo PET, constando experiências de vida,
de formação pessoal e profissional, as vivências culturais e humanas.
A utilização das narrativas autobiográficas como metodologia, não é recente, é uma
tradição bastante antiga, que se originou com os primeiros gregos, especialmente com a
Poética de Aristóteles. Em seu livro Confissões, Santo Agostinho, que viveu na transição da
Idade Antiga para a Idade Média, narra em relatos e diários sua conversão ao cristianismo.
(RICOUER, 1997). Séculos depois, na Idade Moderna, outro livro, chamado Confissões, de
Rousseau, dedica-se às escritas sobre si. Nele, o filósofo narra suas experiências e vivências,
além de descrever sua personalidade e seus hábitos. Na contemporaneidade, a Sociologia, a
História, a Filosofia, a Psicologia e a Antropologia foram às primeiras ciências a utilizarem as
narrativas em seus campos de estudo. Na área da educação, em especial na formação de
educadores, as pesquisas com narrativas vêm crescendo. No Brasil destaca-se a partir de
meados dos anos 1990 do século passado (SOUSA, 2006).
Variados estudos defendem o uso da abordagem autobiográfica ou história de vida na
pesquisa socioeducacional como uma alternativa capaz de resgatar a riqueza e a importância
das histórias narradas por pessoas anônimas ou desconhecidas, devolvendo às mesmas o
seu lugar fundamental de fazedores da história, mediado por suas palavras. Com base nas
concepções de (NÓVOA, 1988, p.116), as histórias de vida e o método autobiográfico agrega-
se no movimento atual que procura repensar as questões da formação, dessa forma,
aguçando a ideia que nenhum ser é capaz de formar outro ser, e que a formação é
inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida. Segundo (SOUZA,
2008), os modelos autobiográficos e, mais especificamente, as memoriais de formação ou
acadêmicas revelam modos discursivos construídos pelos sujeitos em suas dimensões sócio-

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 314


históricas e culturais numa interconexão entre memória e discursos de si. Os modelos
autobiográficos assentam-se na inserção individual e coletiva da memória e nas histórias de
Vida.
A pesquisa com histórias de vida registra neste espaço onde o ator parte da
experiência de si, os sentidos de suas vivências e aprendizagens. Desse modo, como atores
tornam-se construtores e consequentemente autores de episódios das próprias histórias no
momento em que passamos a relata-las, transcrevê-las e socializa-las.
Através da abordagem autobiográfica o sujeito produz um conhecimento sobre si
mesmo, sobre os outros e o habitual, revelando-se através da subjetividade, da
singularidade, das experiências e dos saberes. A centralidade do sujeito no processo de
pesquisa e formação sublinha a importância da abordagem compreensiva e das apropriações
da experiência vivida, das relações entre subjetividade e narrativa como princípios, que
concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria história.
Os registros autobiográficos não são tão valorizados como os registros científicos,
principalmente no meio acadêmico, porém ao narrar e registrar o vivido compreendemos
como o individuo construiu sua história e de que forma sua convivência influenciou na sua
formação e na construção de sua identidade pessoal. Nos registros autobiográficos
percebemos a formação pessoal do sujeito, como este compreende e narra à visão de si
próprio. As informações que estão guardadas na memória são resgatadas de acordo com
estímulos, pois somos seres inteligentes e constituídos de experiências (JESUS e
NASCIMENTO, 2010).
Não se trata apenas de entrar em contato com o que a vida ensina, mas como o
aprendizado que se adquire através das experiências que são vivenciadas e/ou
desperdiçadas, considerando que elas têm uma maior possibilidade de terem sido geradas,
escolhidas ou desprezadas, para ser contado pelos próprios indivíduos em formação, o que
potencializa o seu poder de formação. São estudos que permitem captar as dimensões em
que as histórias individuais se conectam a processos históricos e sociais, onde processos nos
planos micro e macro, objetivos e subjetivos podem ser examinados (JESUS e NASCIMENTO,
2010).
Nas autobiografias foram narrados pelos estudantes bolsistas às histórias de vida, suas
experiências sociais em comunidade, suas vivências familiares, a experiência de iniciação
educacional e a experiência de entrada e permanência na Universidade. Em síntese, o
processo foi pautado na produção de história de vida, socialização das narrativas
autobiográficas, análise dos referenciais de currículo e formação.
As autobiografias tratam de eixos que direcionaram posicionamentos críticos relativos
à: 1- Identidade de origem popular (incluindo referenciais positivos coletivos e individuais);
2- A Vida Estudantil na Educação Básica (infantil até ensino médio); 3- O acesso a
universidade, e também o que a família, a comunidade e a Universidade contribuíram para
esse êxito? 4- A construção da Permanência com êxito acadêmico: o que você faz? O que faz
em grupo? 5 a Universidade compreende e favorece sua condição de estudante de origem
popular? Como? Como poderia melhorar? Fale das etapas/ ciclos da sua vida estudantil na
universidade; 6 -Que sugestões você teria para os currículos, conhecimentos e saberes
trabalhados nos cursos e na sua Formação? Como a UFRB poderia estar em conexão com o
Recôncavo, tendo em vista a história, a cultura, o desenvolvimento local das cidades, os
saberes tradicionais, as tecnologias sociais; 7 - As causas da evasão e das repetências ( de
quem? E por quê? Quais os semestres em que mais ocorre? O que pode ser feito para
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 315
diminuir as evasões e repetências?); 8 - A defesa da universidade popular? Como seria? 9 -
Aspectos da Educação Superior de qualidade socialmente e culturalmente referenciada.
Como seria? Que conhecimentos, saberes, experiências sociais, culturas e práticas do
recôncavo já estão incluídos e podem ser incluídos mais ainda? 10- Posicionamento sobre os
cursos e as formações interdisciplinares.

Resultados

O trabalho evidencia que as políticas e práticas curriculares de cunho emancipatório


podem garantir a interação entre os saberes intrínsecos dos indivíduos, as suas vivências
socioculturais e os saberes acadêmicos, proporcionando assim uma formação abrangente e
qualificada. Evidencia que a formação quando construídas através do diálogo, fomenta a
autoidentificação do sujeito como indivíduo e coletividade com a formação universitária.
Implicam na formação social, cultural e política, como condição de formação profissional,
crítica e de exercício de cidadania. Favorece a adaptação universitária dos estudantes em
geral, em específico, dos estudantes de origem popular, propiciando ascensão, êxito
acadêmico e sócio profissional. O processo de adaptação a Universidade, de acordo com o
teórico Francês Alain Coulon (2008) perpassa a superação do período de estranhamento,
aprendizagem e afiliação. O período de estranhamento é caracterizado pela inadequação ao
ambiente universitário, onde se estranham as linguagens, as estruturas, as regras, os
diferentes e novos saberes acadêmicos. O período de Aprendizagem consiste em uma etapa
lenta de adaptação progressiva, onde se é superada a inquietação, abrindo espaço para a
acomodação. E por fim, o período da afiliação, que consiste na incorporação da nova rotina,
novas práticas, regras e métodos de funciona mentos correntes na universidade. É
importante que os estudantes conheçam e compreendam tais processos, para saber lidar e
superar os conflitos do mundo em que inicia-se. Esses saberes internos possuem um papel
primordial na maneira como os sujeitos investem nos espaços de aprendizagem, e sua
conscientização permite definir novas relações com o saber e com a formação.
Essa importância dada à experiência individual está inserida em um movimento global
que associa intimamente os universitários aos processos formativos e os considera como os
atores responsáveis por sua própria formação. As experiências demonstraram a eficiência da
formação quando associa-se as itinerâncias de formação pessoal, profissional e acadêmica.
Nesse sentido faz-se necessário que se propicie vivências democráticas que valorizem as
experiências e saberes dos estudantes e seus protagonismos socioculturais.

Conclusão

As conclusões demonstram compreensões complexas de currículo e formação, e


implicam em ações articuladas nos planos sócio-político e institucional acadêmico, no que
tange à superação das visões simplistas e parciais de ‘experiência’, ‘saber’, ‘conhecimento’,
tidos como curriculares e formativos. O estudo defende que o sujeito assuma sua
intinerância de formação pessoal, profissional e cidadã. Para isso faz-se necessário que se
propicie vivências democráticas que valorizem as experiências e saberes dos estudantes,
seus protagonismos socioculturais. A formação pautada nos aspectos individuais dos
sujeitos, nas suas experiências e vivências contribuirá para a construção e fortalecimento da
própria identidade do profissional envolvido. Sendo assim, as instituições de ensino devem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 316


proporcionar para seus estudantes, durante a graduação, acesso às discussões e disciplinas
que retratem a realidade sociocultural dos indivíduos, seus aspectos identitários, suas
experiências, seus territórios de identidade para que desse modo a educação possa
promover a democratização das diferenças, assim como o respeito entre todos. A
valorização das historias de vida, das trajetórias formativas dos sujeitos em seus contextos e
territórios de referência proporcionam uma formação mais critico reflexiva e promove maior
autoidentificação do estudante com a formação universitária, desse modo, o processo de
formação passa a não ser mais algo distante da realidade vivenciada.
Diante da relevância da valorização das relações entre os saberes extra-acadêmicos
adquiridos no âmbito social, cultural e pessoal do indivíduo, as políticas curriculares e a
formação acadêmica dos estudantes, para um maior e mais completo desempenho
acadêmico-formativo, assim também como forma de compartilhamento dos resultados da
pesquisa com a comunidade acadêmica, bem como forma de contribuir na formação com
qualidade sociocultural, para a socialização dos resultados as produções autobiográficas
resultaram no lançamento de um livro intitulado CURRÍCULO, FORMAÇÃO E UNIVERSIDADE:
Autobiografias, permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular. Este livro
traz para seus leitores o resultado de um trabalho de abrangência formativa. Os textos que
compõem os livros favoreceram a discussão sobre alguns referenciais que orientam as
políticas e práticas curriculares em relação aos estudos multiculturais, ao tempo em que
propiciaram aos estudantes, através da releitura de suas histórias de vida, a reflexão sobre
os seus processos identitários.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 318


Nas desdobras dos movimentos de professoralização, os acordes da professoralidade

Jussara Midlej
UESB
jumidlej@hotmail.com
Isabela Benevides de Melo
UESB
belinhativa@yahoo.com.br

Ao expor o contexto e as ponderações de uma investigação-formação em andamento “Nas composições da


vida, as sinfonias da professoralidade” apresentamo-la inserida num campo subjetivo de formação humana a
processar-se vinculada a um estágio pós-doutoral junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Centrada na abordagem biográfica, sua primeira fase foi operacionalizada na Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB), através de ateliês (auto)biográficos com 17 professores, alunos de um curso de
Pedagogia modular (Plataforma Freire). A biografia educativa, ao enfatizar a narrativa de vida como a
passagem de uma tomada de consciência das trajetórias de escolarização e formação, atrela-se à produção de
conhecimentos experienciais dos sujeitos adultos na condição de aprendentes, de suas relações com os
saberes em dimensões (auto)formativas. Em curso, há uma abertura a espaços de pronunciamentos do
poético, do lógico e do filosófico no sentido de alargar a compreensão da subjetividade e desvelar movimentos
de professoralização. Processa-se na direção de ampliar probabilidades de apreensão de percursos pessoais e
profissionais – de como se chegou a ser o que se vem sendo no exercício da profissão docente, de como vem se
constituindo tais movimentos de professoralização, de que modos os desvelamentos de cenas virtuais do estar
sendo professores poderão criar condições de acionamento de novas composições de si e da professoralidade.
O polo epistemológico/metodológico ao trazer entrecruzamentos de fatos e itinerários de vida e docência em
dimensões cartográficas, fenomenológicas e hermenêuticas apresenta indícios de que a produção de
memoriais e suas socializações favorecem a heteroformação, a mobilização de estruturas tácitas de
pensamento e apontam tramas de forças entre as trajetórias humanas e profissionais. Quiçá possam não
apenas desvelar, mas criar possíveis potências e ressonâncias, marcas novas de vir a ser outro(s) de si.
Palavras-chave: (Auto)biografia; Movimentos de professoralização; Professoralidade.

Marcas ressonantes

“Quando se faz uma experiência isto quer dizer


que a possuímos. Desde esse momento, o que era
antes inesperado é agora previsto.”
Gadamer, 1997.

Na presente investigação-formação, ora em andamento, inter-relacionam-se


horizontes epistemológicos e metodológicos acerca da formação de professores vinculados a
um polo de estudos que envolvem um entrecruzamento das histórias de vida com os
denominados movimentos de professoralização. (PEREIRA, 2010a, b). Na mencionada ação
importam-nos a aproximação de tramas de vida em tríplice dimensão - do presente a
convocar o passado e o futuro em perspectivas simultâneas (RICOEUR, 1995) advindas de
conjunturas de professoralidade - da compreensão de como os sujeitos vão se constituindo
professores, de como se chegou a ser o que se vem sendo no exercício da profissão docente,
de como vem se constituindo essa professoralidade que se professoraliza nas composições
de si. (PEREIRA, 1996; 2010a, b; 2013; MIDLEJ, 2009). E ainda: há um sentido de ampliar
possibilidades de compreensões de itinerâncias formativas “que acompanham e se faz ao
mesmo tempo em que o desmanchamento de certos mundos [... ] e a formação de outros.”
(ROLNIK, 1989, p. 15).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 319
Atos narrativos individuais, estribados na memória e nos acontecimentos subjacentes
a estas e, no interior de realidades mutáveis e conflituosas nas quais os docentes se formam
e atuam, foram planejados para ocorrer em delineamentos dinâmicos de enunciações
biográficas e seus registros de paisagens psicossociais. Interessam-nos os fios condutores de
tramas de vida, as conexões entre eles, através de memórias existidas, confrontadas e
reconstruídas a relacionarem-se com as forças vivas do presente. Importam-nos analisar
possíveis sentidos, intersubjetivos, retroalimentadores de potenciais de diferenciação a
partir de processos autopoiético e em ambientes coletivos.
O eu pessoal e o eu social - como cenas da realidade humana - há muito nos instigam
a estudos mais aprofundados; a calhar, lançamo-nos na lida acadêmica na proximidade com
temáticas relacionadas ao percurso epistemológico da história de vida, numa abordagem
biográfica e aos movimentos de pesquisa enredados na processualidade do ser e no
delineamento dinâmico da prática docente. O método (auto)biográfico71, enredado no
âmago de construções históricas individuais, rememorações, saberes experienciados e
sentidos particulares de acontecimentos, trouxe-nos perspectivas de narrações e de
formações/atuações no magistério revigorando-se a partir e dentro de realidades plurais.
Em tais sentidos, o citado processo ocorre na sintonia com Pereira (2001, p. 32) para o qual
“[...] a escolha de ser professor passa, necessariamente, pela reconstituição de alguns fatos
que antecedem a essa decisão.” Em tais bases, ao problematizar, o citado autor pesquisa
“como se é professor?” “Por que se é professor?” ao invés de inquirir simplesmente “O que
é ser professor?” e desvela que, ao se alinhar com essas inquietações não se está em busca
da identidade do professor e sim de marcas e efeitos produzidos no (e pelo) sujeito em
processos de individuação, de sequências de acessos de singularidades de ser-sendo numa
realidade que ultrapassa o preestabelecido, o estável. No reconhecimento de que “a
consciência histórica é uma forma de autoconhecimento” (GADAMER, 1997, p. 316) guiam-
nos a busca de compreensões de tramas de vidas e interpretações interativas a envolver
certas fases do sujeito - ora na condição de discentes, ora em processos docentes – enfim,
em dimensões formativas eivadas de historicidade e recapturadas em dobras
espaciotemporais. Os procedimentos metodológicos relacionam-se às histórias de vida,
numa abordagem (auto)biográfica e operacionalizam-se, na presente
investigação/formação, na bibliografia de formação docente e da pesquisa que se
fundamenta nos princípios das Histórias de Vida, da Autobiografia. Tais aportes
epistemológicos operacionalizam-se aqui no sentido de estudar a individuação do ser
humano não como algo fechado e, sim em sequências de acessos subjetivos que se fazem
em devires; inserem-se ainda na perspectiva de encaminharem-nos na direção de
compreender as práticas de si na práxis social, a (re)constituição da memória nos fluxos
vitais do mundo.
As esferas investigativas educacionais ganharam em múltiplas proposições e
contribuições ao unir-se às narrativas (auto)biográficas e à (auto)formação humana
atravessadas pelas forças vivas dos acontecimentos e vivificadas pela memória numa
perspectiva de diferenciação de si mesmo, num processo de individuação permanente
(SIMONDON, 1989), de decomposição de subjetividades em potências expansivas. As
ressonâncias cartográficas, em especial com base nas histórias de vida em formação,
articulam narrativas numa visão autopoiética, de um retorno reflexivo sobre si e expressam

71
No Brasil, relacionada à área da Educação, convencionou-se grafar desse modo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 320
a defasagem do ser em relação a si próprio como um movimento de Bildung72, como uma
prática de educação de si (DUMONT, 1985, 1991), como um processo de formação do ser
por intermédio das experiências que ele atravessa, como um percurso, uma gênese de uma
vida em devir. A experiência, a evidenciar incompletude, abre-se para a consciência da
finitude do ser e é sempre algo que surpreende. Em tais perspectivas conceituais situa-se
essa biografização – que se faz num exercício de arranjo, desarranjo e rearranjo de forças
em ondas existenciais no fluxo efervescente. Tais potências complexas produzem rupturas,
lacunas, novas potências de ser-sendo – elas “não dizem o que somos, mas aquilo que
estamos em vias de diferir.” (DELEUZE, 1992, p.35).
Foucault (2002) ao analisar temas como a loucura, a sexualidade e o poder, examina-
os por meio de um olhar crítico em torno da razão, do tempo vivido; alerta para o fato de
que as práticas culturais nos fazem aquilo que somos e assevera que, para conhecermos tais
práticas, necessitamos de permanentes confrontos com a história do presente. Segundo este
autor (1987) o saber envolve o espaço que a pessoa pode tomar para falar dos objetos de
que se vale em seu discurso num processo dialógico com o passado, através do qual a
pessoa entra em contato com a tradição, as concepções de outras épocas num sentido de
potência expansiva. Tais expressões filosóficas ajudam-nos a ampliar as perspectivas dos
diálogos epistemológicos em estudos já realizados e mais nos instigam a prosseguir em
busca da processualidade que compõe os fluxos existenciais, do tornar-se, em especial os
relacionados à formação docente em movimentos de professoralização (PEREIRA, 2010a, b)
como modos de compreensão da professoralidade (PEREIRA, 1996, 2001; 2010a; b; MIDLEJ,
2008; 2009).
Os citados aportes conceituais, ao diferirem de estados de estabilidade e cristalização
identitária abrem-se, neste polo investigativo, para espaços de pronunciamentos de leituras
plurais que dialogam, de vieses fenomenológicos com aberturas para o poético, o lógico e o
filosófico, sem hierarquização de saberes e exclusão de modos de produção de
conhecimento em fluxos que, ao se desdobrarem, aproximam-se e problematizam os
vínculos entre (auto)biografia e educação e ajudam a ampliar as margens de reflexividade
propostas por Elliott (1990). A ação reflexiva, como algo que envolve mais do que processos
lógicos e racionais de solução de problemas, envolve aqui intuição e paixão e não pode ser
empacotada num embrulho de técnicas para serem usadas pelos professores. Ao se darem
em situações complexas, incertas, conflitivas e singulares as citadas dimensões
epistemológicas e metodológicas alargam-se e subvertem perspectivas lineares em aspectos
concernentes à denominada identidade profissional; antes contribuem para revelar a
formação profissional inseparável da produção de subjetividade. A adoção de tais princípios,
na especificidade do campo educacional, vem significando uma ampliação de possibilidades
de alavancar elementos significativos para “[...] uma formação mais humanizadora, crítica e
transformadora” (MÜHL; ESQUISANI, 2004, p. 47) a abranger, concomitantemente, um
sistema tenso de (auto)conhecimento a expressar-se no tempo presente como um sistema
tenso - uma substância metaestável rica em potenciais ontogenéticos, em fluxos de
(trans)formação.

72
Este termo pertence à cultura alemã e é difícil de traduzi-lo. Dumont (1985, 1991) fez uma tentativa nesse
sentido e num equivalente, trata-o como uma prática de educação de si.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 321
A riqueza dos potenciais na caracterização das tramas
“Todo ato de conhecer traz um mundo às mãos, [...] todo fazer é
conhecer, todo conhecer é fazer.”
Maturana e Varela, 1990.

“De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse


apenas a aquisição de conhecimentos e não, de certa maneira, e
tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?”
Foucault, 1993.

A dar continuidade a um estudo que se iniciou em 2011, encontra-se em curso a


presente investigação acerca da constituição da profissão docente como um continuum, com
vistas a um desvelamento de movimentos de professoralização no intuito de compreender a
professoralidade (PEREIRA, 1996, 2001). Para operacionalizá-la, vinculamo-nos às Ciências
Humanas, a um campo híbrido de formação humana numa perspectiva
multirreferencializada de “[...] óticas e sistemas de referência diferentes (entre si) aceitos
como definitivamente irredutíveis uns aos outros e traduzidos por linguagens distintas.”
(FRÓES BURNHAM, 1993, p. 7).
Com um enfoque nas histórias de vida, numa abordagem (auto)biográfica mais
especificamente conectada à cartografia, esta investigação traz, em si, a perspectiva de
reconstrução da experiência numa dimensão processual da realidade - como artifício de
criação, como poiesis e desvelamento de tramas (in)visíveis de forças humanas interagentes.
Seu campo empírico é composto por professores que, desde 2010 se encontram na condição
de acadêmicos num curso de Pedagogia, com ênfase em Educação Infantil e Anos Iniciais do
Ensino Fundamental; são profissionais que possuíam, a esta época, apenas um nível médio
de escolaridade e se encontravam em efetivo exercício docente em redes públicas de ensino
da microrregião sudoeste da Bahia. Presencial e modular, o referido curso integra-se ao
Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) e foi implantado
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em regime de
colaboração com a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB); acontece no campus
acadêmico de Jequié. É um grupo formado por 34 professores/alunos, dos quais 24
participaram, entre 2011 e 2012, de um processo investigativo relacionado a ações
acadêmicas. O estudo relacionou-se à pesquisa (auto)biográfica e foi utilizado como prática
de formação, método de investigação e intervenção social (PINEAU, 2004; SOUZA; PASSEGI,
2008) no qual os memoriais funcionaram como dispositivos de pesquisa de si-para-si-
mesmos (RICOUER, 1995, 2007) e constituíram-se como um corpo de explicitações em redes
interativas; denominados diários de aula (ZABALZA, 1994) funcionaram, à época, como cenas
de docência que, registradas processualmente, trouxeram à tona a riqueza da duplicidade de
papéis: a experiência a dialogar com a professoralidade (PEREIRA, 1996, 2001, 2013) deu
indícios de produzir um estado de consciência que fez brotar, através das ações de
linguagem, aprendizados. As narrativas de si e da profissão, em processo, deram mostras de
implicitar horizontes de possibilidades e favoreceram a mobilização de estruturas tácitas de
pensamento, com indícios de criar condições crescentes de revigoramento de informações
acerca das questões de pesquisa. Entretanto, com a duração de apenas dois semestres e, no
cerne de um processo acadêmico, ficou a sensação de havia mais possibilidades a serem
exploradas com este grupo. As incompletudes sentidas não foram de ordem intelectual,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 322


apenas: passaram por vias de perplexidade e constrangimento pessoal com a teoria/prática
que transpareceram nos relatos de aulas, nos fluxos existenciais, nos labirintos dos sistemas
escolares, nos movimentos de professoralização em planos estratificados no interior das
instituições e nas práticas. Surgiu daí a decisão de investir em atos de renegociação a fim de
compor um novo contexto investigativo com o mesmo grupo. A sensação é que o avesso dos
dados produzidos precisavam ser revisitados, revigorados sob outras nuanças, mais
linguagens precisavam ser pronunciadas, sem perder de vista que “toda insatisfação que
convoca à pesquisa costuma ser dolorosa.” (CORAZZA, 2002, p. 112).
Transcorrido algum tempo, a partir de aspirações por ampliar o já sabido, definimos a
realização de um novo estudo pensado no intuito de perscrutar significados novos nas
(auto)biografias individuais ao retomar e ampliar os registros reveladores da
professoralidade do professor, especialmente nos memoriais e revigorá-los, distendê-los, no
intuito de desvelamento e compreensão de forças e acontecimentos, de “regiões de
visibilidade e campos de legibilidade, de conteúdos e expressões.” (DELEUZE, 1991, p. 57).
Ao reaver o citado grupo de 24 professores/alunos em seu ambiente acadêmico,
demonstramos intencionalidades de voltar a habitar aquele território coletivo e compor, de
outros jeitos, uma rede de articulação para além das dicotomias e formas hegemônicas
instauradas nos módulos de estudos acadêmicos e, assim, investir em novas estratégias de
investigação e aprofundar meios de apreender e compreender os registros de si e da
profissão, acompanhar processos e operar sobre um coletivo de forças situadas em
paisagens existenciais. Implicar-nos, dessa vez, com os “[...] espaços-tempos singulares que
cada um configura a partir da conjugação de sua experiência (e da historicidade de sua
experiência) e dos mundos-de-vida, dos mundos de pensar e agir comuns de que participa.”
(DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 526).
Em tais direções, firmamos como objetivos a serem alcançados: analisar narrativas
(auto)biográficas como um processo de reconstituição dos modos de ser professor em
contextos de produção e uso de saberes; averiguar as relações singulares que as pessoas
mantêm com as suas experiências, com o mundo histórico e social de sua profissão;
examinar a natureza de espaços profissionais atrelados aos citados movimentos; verificar de
que modos as pessoas atribuem sentidos aos acontecimentos de sua existência, às situações
relacionadas à professoralidade; enfim, analisar aspectos da dimensão pessoal e as inter-
relações destes com os fundamentos epistemológicos da prática docente. Para este novo
percurso investigativo todos os que participaram do citado estudo pregresso foram
convidados, indistintamente. Provocados por novos sentidos, já nos contatos preliminares
explicitamos a intencionalidade de retomar dados produzidos anteriormente e aprofundá-
los em novas dimensões investigativas. Havia uma consciência de que esta parceria se
principiava a partir de uma denominada colegialidade artificial (HARGREAVES, 1998) na qual
as situações de reciprocidade, no geral, ao não evoluírem espontaneamente, necessitariam
de atos de persuasão e negociações como parte integrante do processo.
Enunciamos, com o convite, uma intencionalidade de que esta ação investigativa
evoluísse para um processo de coprodução, de engajamento e participação daqueles que
desejassem se engajar voluntariamente. Nos contatos iniciais ficou explicitado, da parte dos
professores-alunos que, embora os vínculos afetivos criados anteriormente no movimento
de docência-pesquisa, as condições precárias de vida e profissão, as inúmeras demandas
relacionadas à elaboração dos trabalhos de conclusão de curso (TCC) e mais os estágios
obrigatórios desanimavam-nos a enveredar por uma nova tarefa acadêmica. Sem nos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 323
desesperançarmos, teimamos “em manter ao revés e contra tudo, a força de uma deriva e
de uma espera” (BARTHES, 2008): acatamos a decisão inicial do grupo e buscamos a
coordenação do curso, no intuito de verificar se haveria pendências quanto à
obrigatoriedade do cumprimento das Atividades Acadêmico-Científico-Culturais (AACC)73.
Constatada “a necessidade da prática de estudos e atividades independentes, transversais,
opcionais, de interdisciplinaridade, especialmente nas relações com o mundo do trabalho”
(MEC/CNE/CES, 2005) para a maioria do grupo, propusemos a realização de ateliês
autobiográficos (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 99), também denominados de ateliês de
escrita (auto)biográfica por Passegi (2008, p. 45) como atividades certificadas. Estes,
sugeridos como lugares sócio-históricos de desvelamentos e experimentações das histórias
de vida deveriam acontecer em momentos presenciais e não-presenciais em sentidos de
criação de outros fluxos narrativos individuais com repercussões no coletivo, em encontros
mensais.
O citado processo foi iniciado com um grupo de 17 professores-alunos. Num novo
contato relatamos minunciosamente nossas intenções de realizar uma pesquisa com tais
características tendo no seu cerne os citados ateliês. Reiteramos a pretensão de uma
partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005) como um “sistema de evidências sensíveis que revela,
ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e
partes respectivas, exclusivas” (ibidem, p. 15) e delineamos a criação de condições para
entradas no seio deste conjunto heterogêneo - a produzir tensionamentos que pudessem
conduzir às mais nítidas compreensões de movimentos de professoralização. Desde então,
suas linhas de composição encontram-se inseridos num campo de formação humana com
focos nas histórias de vida e na prática profissional e se constituem em movimentos
simultâneos de individuação e subjetivação com o objetivo de aproximação da subjetividade.
Processam-se em contínuos ciclos de experimentação reflexiva, buscando criar condições de
diálogos com dimensões pessoais e situações pedagógicas.

Operacionalização

“Todas as manhãs é preciso atravessar de novo o cascalho


inerte, de modo a atingir a semente viva e quente.”
Wittgenstein, 1996.

O grupo de professores/alunos, como sujeitos-em-prática, foram trazendo, para o


coletivo dos ateliês, suas narrativas e, com estas, prenúncios de forças interagentes
tensionadas nos modos como vêm exercendo a vida e a docência. O caráter participativo
desta ação conferiu-lhe, desde o início uma perspectiva cartográfica e encaminhou-a para
uma construção coletiva de conhecimentos, para uma ampliação do grau de abertura
comunicacional, potencialmente aberta a um protagonismo compartilhado, a uma
experimentação individual e pública da condição humana conectada a experiências vividas
na instituição escolar e na profissão docente. O trabalho com memoriais aconteceu no
sentido de que estes se constituíssem como planos de referência e desvelamentos das

73
Conforme exigência do Ministério da Educação (MEC/CNE/CES), de acordo com o Parecer 05/2005 -
Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia no Artigo 8º § III.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 324


dimensionalidades do ser em perspectivas de aumento da entropia – de um ser que, a
individuar-se, desdobra-se e se defasa em relação a si próprio.
Em tais dimensões, a estratégia central deste estudo foi a realização de ateliês
(auto)biográficos planejados para acontecer uma vez a cada mês. Neles foram utilizados
recursos evocativos diversificados entre textos, poemas, composições musicais, filmes e
documentários numa abordagem memorialística e ocorreram de agosto a dezembro de 2013
no campus da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB, de Jequié. Suas linhas de
composição, polifasadas, foram inseridas numa perspectiva de formação humana com focos
nas histórias de vida e na prática profissional e se constituírem em movimentos simultâneos
de individuação e subjetivação com o objetivo de aproximação da subjetividade.
Processaram-se em contínuos ciclos de experimentação reflexiva, buscando criar condições
de diálogos com dimensões pessoais e acontecimentos pedagógicos. E, assim,
como sinfonias de vida, os ateliês ocorreram como concertos de partilhas a instaurarem
diferentes jeitos de comunidade, se aprofundando e se enriquecendo estas orquestrações.
Suas possibilidades se corporificaram na linguagem, em complexas relações entre palavras e
cenários de múltiplos propósitos a ativarem, individual e coletivamente, a compreensão de
como os sujeitos vêm se constituindo professores, de como se tornam o que se vêm sendo
no exercício da profissão e de que modos os desvelamentos de cenas virtuais do estar sendo
o que são, poderão indicar possibilidades de acionamento de outras significações de
docência, de novos movimentos de professoralização. (MIDLEJ, 2007; 2009).
Houve, nestes encontros, uma transversalização produzida pelas práticas de
participação em tramas históricas pessoais e coletivas que vieram à tona na condição de
problematização dos vividos, em especial no campo da docência; as coisas ditas como
acontecimentos transpareceram, nas partilhas, como nuanças de processos pedagógicos e,
estes, a irromperem em tempos e espaços bem específicos, demonstraram múltiplas
constituições da experiência como produtora de efeitos de individuação e subjetivação. A
referência ao comum, no ato coletivo, chegou eivada de conhecimento que se enraíza na
referida experiência, nos sentidos de valorização da individualidade, da singularidade, de
interpretação das configurações subjetivas pelas quais pessoalmente os sujeitos assumem e
produzem seus saberes, emprestam significados ao que relatam e vivenciam. Os caminhos74
investigativos, neste estudo, ao se processarem, criaram um plano de discussão comum que
esgarçaram frestas e possibilidades de produção de subjetividade, de acionamento de
aspectos da realidade sentida, pensada, interpretada como sentidos de abertura da
experiência. (GADAMER, 1997; NÓVOA, 2012).
Finda a primeira etapa desse processo podemos constatar que muito valioso tem
sido o alargamento da compreensão de enunciados transformados, de algum modo, em
senso comum no campo da educação. Transpareceram, nos planos discursivos, como os
sujeitos reagem frente às funções inerentes ao papel social de ser-sendo professores. Seus
desdobramentos metodológicos, ao vincularem-se à pesquisa (auto)biográfica estão a trazer,
em si, a necessidade de uma variedade de recolha de materiais empíricos que nos ajudem a
perscrutar momentos tanto rotineiros, quanto excepcionais em registros de significados,
através de atos narrativos orais e escritos, com explorações personalizadas destes. Nesse
sentido, estamos a criar renovadas condições de recolhas de informações e de análises de
trajetórias pessoais e profissionais em circunstâncias de elevada variabilidade, de instâncias

74
O grego methodo: caminhos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 325
de subjetivação e reativação de percursos em acepções (auto)formativas, evolutivas,
inacabáveis, a fim de, crescentemente, nos aproximar da constituição da individuação, do
caráter do devir do ser relacionado à profissão docente.
Nesse processo, um ciclo de entrevistas com abordagem cartográfica vem se
processando individualmente, após a realização dos ateliês, na expectativa de que os
sujeitos explicitem os rumos de trajetórias que se constituíram na experiência, a imbricação
entre as dimensões pessoais e as profissionais, os desvelamentos de dados factuais e
variados fenômenos de origem familiar, meio social, escolaridade, itinerâncias profissionais
em ações de verbalização tanto coletivas, quanto individuais. Em tais dimensões a sociologia
fenomenológica de Schütz (1979, 1987) e a teoria da ação comunicativa de Habermas (1987;
1989) estão a perpassar este estudo em possibilidades de nos auxiliar na tarefa de dar conta
"[...] da vida cotidiana, vivida por pessoas que não têm interesses teóricos, a priori, pela
constituição do mundo [...] (no âmago de um) mundo social intersubjetivo, mundo de
rotinas, em que a maioria dos atos da vida cotidiana são em geral realizados
maquinalmente." (COULON, 1995, p. 11-12).
As dimensões interpretativas dos acontecimentos do mundo cultural e social
encontram-se, assim imersas em todo este processo a assumirem um caráter não linear -
antes de circularidade entre discursos variados. Isto não significa abrir mão do rigor nas
ações de transcrição, codificação, análise de conteúdos e triangulação das informações
coletadas; este, crescentemente válido, é condição de pesquisa. Entretanto não se trata de
impô-lo ao fenômeno, cuja compreensão o falante supõe no ouvinte. (HABERMAS, 1989). O
nosso desafio, nas compreensões das tramas discursivas, será “o de, sem abandonar a
objetividade, ressignificá-la como visibilidade [...]” (SPINK; MEDRADO, 2000) e perscrutar,
destacar outras redes de significações (CORAZZA, 2002) a fim de chegar o mais próximo
possível das várias práticas discursivas e não-discursivas em jogo. As citadas características,
ao aproximarem a presente experiência investigativa-participativa de uma experiência
ontológica - prosseguem a dar ênfase sobre o vivido e acerca das experiências subjetivas
descritas, informadas, confrontadas e reconstruídas (HUSSERL, 1990); ocorrem em vieses de
esclarecimento das condições sob as quais surge a compreensão dos fatos (GADAMER,
1997), daquilo que os discursos produzem historicamente na vida das sociedades, do
pensamento, dos sujeitos. (FOUCAULT, 1987). Para este último autor (1987, p. 146) “[...] o
discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história.” Com base nisso, a
exposição de práticas discursivas e não-discursivas envolve um trabalho dedicado e
pormenorizado no sentido de descrever e explicitar espaços não-óbvios, uns vazios – aquilo
que vai além do óbvio, do já-dito, do pretensamente conhecido e nomeado.
Conferem a este processo, eventos favoráveis para as análises, a abertura sensível
para a explicitação de tramas, articulações e validação entre as trajetórias humanas e as
profissionais, a ocorrência de momentos de entrecruzamentos de construções históricas em
interfaces do individual com o social e no interior de dinâmicas intersubjetivas realizadas no
coletivo. A tradução deste processo vivido, por ora, é a de uma grande e valiosa aventura
que traz no seu cerne um complexo de forças que ao se afetarem umas às outras, parece
tornar obsoletas figuras existentes e apelar pela produção de novas configurações. (PEREIRA,
2013). Em tais vieses, a transversalidade que perpassa as contexturas desta investigação
multirreferencializada vem produzindo encontros de forças que agem sobre forças
(DELEUZE, 1991) a pôr em relevo pressupostos epistemológicos e metodológicos que
seguem a subverter restritos modos de olhar a realidade. Em nós, a pressão das
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 326
multiplicidades históricas e dos acontecimentos segue a instaurar rugosidades e
sinuosidades em nossos próprios movimentos de professoralização, incitando-nos a
potências de devires - de desfiguração e reconfiguração da professoralidade em perspectivas
simultaneamente coletivas, individuais, autopoiéticas.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 329


“Vamos contar outra vez?” um relato de experiencia

Luciene Freitas Mota


FTC
lucieneaec@gmail.com
Luciene Souza Santos
UEFS
lucienesantoz@gmail.com

A comunicação objetiva apresentar um relato de experiência vivenciada na disciplina EDC C60 Oficina de
Contação de Histórias: Vamos Contar Outra Vez?, que frequentei na condição de observadora participante por
dois semestres consecutivos, 2013.1 e 2013.2, na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. A
disciplina ministrada pelas professorasDra. Mary de Andrade Arapiraca e Dra. Luciene Souza Santos era
destinada aos estudantes de licenciatura e arte que se interessassem pela arte de narrar. A questão que
norteou minhas observações nas aulas e em conseqüência neste artigo foi: Como acontece o processo de
formação dentro da academia de artistas de uma arte milenar tradicionalmente da cultura popular, na qual
muitos dos que nela se destacavam não era nem alfabetizados? Com o estudo de teóricos, a exemplo de
Hampaté Bâ, Luís da Câmara Cascudo e Gislaine Matos, que discutem: Tradição Oral, Conto Tradicional e
Contador de Histórias atrelado as observações e vivências nas aulas de contação de historia foi possível inferir
que o processo de formação de novos contadores de história, no espaço acadêmico, se dá através da devida
pesquisa e referência à tradição oral as quais se iniciam com a autonarrativa e acionamento da memória
afetiva de cada contador em formação. Participar desta disciplina me proporcionou uma experiência
enriquecedora tanto na construção do meu caminhar como contadora de história como na minha vida pessoal,
ambas indissociáveis.
Palavras-chave: Narrativas; Experiências; Contação de histórias.

As histórias lá de casa

Peixe Vivo
Como pode o peixe vivo
Viver fora da água fria
Como pode o peixe vivo
Viver fora da água fria

Como poderei viver


Como poderei viver
Sem a tua, sem a tua
Sem a tua companhia
(Domínio público)

As histórias entraram na minha vida desde cedo, tive ainda a sorte de ser criada
numa comunidade do interior dentro de uma cultura na qual as pessoas ainda sentavam nas
calçadas a noite para ouvir as histórias contadas pelos mais velhos. Nas noites de verão
depois do jantar meus irmãos e eu sentávamos na calçada para ouvirmos os “causos”; os
principais contadores eram minha mãe e uma senhora bem velhinha. As histórias mais
contadas eram as de visagem, histórias com um pouco de terror e de cunho religioso que
falavam de “almas penadas” e da vida após a morte. Um fato interessante nestas contações
era o poder dos contadores de torná-las reais, eles não começavam com o típico “era uma
vez...”, as histórias se iniciavam com “uma amiga me contou...”, “um dia minha bisavó...”, ou

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 330


simplesmente “eu estava caminhado e daí...”. A naturalidade e a segurança com que eles
contavam nos deixavam de ouvidos atentos e imaginação aguçada.
Estes momentos encantaram minha infância e me despertaram a curiosidade pelas
histórias que estavam nos livros. Na escola me tornei uma assídua visitante da biblioteca
improvisada e dessa forma meu universo das ficções foi acrescido pelas leituras. Era a irmã
mais velha e muitas vezes ficava na incumbência de cuidar dos meus irmãos mais novos e
neste cuidar contava para eles as histórias que ouvia e lia na escola.
Como voluntária na Associação Educativa Tarcilía Evangelista de Andradre, AEC-TEA,
ainda como professora primária, participei como contadora e coordenadora do Projeto
Valores, que trabalhava os valores da família por meio de contação de história e de
atividades didáticas com alunos do ensino fundamental I nas escolas públicas do município
de Capim Grosso. O Projeto era aplicado por uma semana numa escola eleita pela equipe do
projeto. O Projeto Valores possuía como objetivo trabalhar com temas como família,
respeito e convivência. Para a abertura de cada tema se contava uma história e em algumas
usávamos ferramentas como fantoches ou tapetes ilustrando o cenário, elementos que se
mostravam importantes para ajudar a captar a atenção das crianças pelo visual. Depois da
contação coletiva cada turma seguia para sua sala acompanhada de pelo menos dois
voluntários que iriam trabalhar atividades relacionadas. Os contos neste projeto serviam
como elemento desencadeador dos temas propostos, mas conseguiam ir além deste
objetivo, eles encantavam as crianças. Era no momento da contação que tínhamos, sem
muito pedir, a atenção delas.
Em 2012, ano de conclusão do meu curso de Letras com Espanhol na Universidade
Estadual de Feira de Santana, tive como professora de Metodologia de Língua Portuguesa e
de Estágio Supervisionado a contadora de história Luciene Sousa Santos. Sob a orientação da
mesma produzi um projeto de intervenção com base nos contos tradicionais. A aplicação do
projeto serviu como campo de pesquisa para minha monografia de final de curso intitulada:
“Os contos tradicionais como elemento desencadeador da leitura e da escrita dos alunos do
6º ano do ensino fundamental II.”
Na aplicação deste projeto as atividades com os contos serviram como um elemento
instigador para a escrita e a leitura dos alunos. Com os contos foi possível envolvê-los nos
momentos de contação de história com total concentração por parte deles. Motivá-los a ler
textos sem reclamar, a criar e recontar, de forma oral e escrita, histórias dando vazão a sua
imaginação.
O desejo de aprender mais sobre as histórias e como contá-las me motivou a buscar
espaços de formação de contadores de histórias. Desde 2012 tenho participado de oficinas e
encontros de contadores. Em 2013 descobri que Universidade Federal da Bahia oferecia a
disciplina intitulada: “oficina de contação de histórias” em contato com as professores desta
consegui participar como observadora participante e desde forma presenciar num espaço
formal de educação o ensino da arte que conheci na infância.

“Vamos contar outra vez?”

E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei!...
(Luís da Câmara Cascudo)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 331
“Vamos contar outra vez? Oficina de contação de história” este é o nome da
disciplina que frequentei na condição de observadora participante por dois semestres
consecutivos, 2013.1 e 2013.2, na Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação.
Disciplina ministrada pelas professoras Mary de Andrade Arapiraca e Luciene Souza Santos.
O que me motivou a estar nesta disciplina foi o desejo de entender como acontece o
processo de formação dentro da academia de artistas de uma arte milenar tradicionalmente
da cultura popular, na qual muitos dos que nela se destacavam não era nem alfabetizados.
As aulas com as Professoras Mary de Andrade Arapiraca e Luciene Souza Santos,
possuíam um tema semanal envolvendo a contação de histórias e os textos da tradição oral.
A metodologia sempre mesclava teoria e prática dando maior ênfase a segunda, já que um
dos objetivos principais da disciplina era formar contadores de histórias.
As aulas eram divididas em momentos. No primeiro se praticavam atividades para
acordar o corpo com exercícios variados de corpo, voz e concentração. Como por exemplo, o
alongamento de membros inferiores contando sempre de 10 a 1 e o exercício de
concentração Zip-Zap , em roda deveríamos falar Zip para quem estava do nosso lado e Zap
para quem se encontrava mais distante.Quem recebia escolhia outro colega e o devolvia
para mesmo. Com tempo se foi inserindo outros elementos além do Zip- Zap... Todas essas
dinâmicas realizadas em sala, trazidas da tradição oral, serviam de modelo para a prática
docente e de contação de histórias. Havia na aula o momento da discussão dos teóricos e
neste estudamos autores como: Walter Benjamin, Cléo Busatto, Amadou Hampatê Bá,
Gislayne Matos entre outros. E Claro havia o momento da prática que permitia os
estudantes o contato minucioso com os contos da tradição oral desde a sua leitura à sua
incorporação na fala do contador em formação.
Participar desses dois semestres de aulas, ou melhor, de laboratório artístico de
contadores de histórias, me permitiu acompanhar sentimentos e expressões diversos dos
dois grupos distintos ao receberem o conteúdo de cada aula, que mudavam, variavam e se
adaptavam de acordo a cada turma. As aulas começavam às 9 horas da manhã de terça-
feira, os contadores em formação iam chegando aos poucos, mas sempre com um olhar de
esperança, de esperar que naquelas três horas de encontros fossem encontrar palavras de
acalentar a alma.

Uma viagem pela tradição oral

Belém, Belém, Belém


Belém, buquê de flor
Meu bem deu uma risada
Hahaha
Foi ele quem namorou.
(Domínio público)

A Tradição Oral foi tema recorrente nas aulas, dado a sua importância e
impossibilidade de dissociá-la com a arte de narrar. A tradição oral é fonte de saber para
todas as áreas da vida como esclarece A Hampaté Bâ.

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos


os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 332
segredo de desconectar a mentalidade cartesiana acostumada a separar
tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral na verdade, o
espiritual e o material não estão dissociados (...). Ela é ao mesmo tempo
religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação (...) ( 2005. p183)

A tradição oral é responsável pela transmissão do conhecimento de um povo pela via


da oralidade, o “boca em boca”. Este conhecimento ou sabedoria popular são os costumes
de um povo como a música e a dança, os contos populares, as lendas, os mitos e demais
textos guardados na memória das gerações “Também são conhecidos como patrimônio oral
ou patrimônio imaterial. Através deles cada povo marca sua diferença e encontra-se com as
suas raízes, isto é, revela e assume a sua identidade cultural.” (PARAFITA 2005, p.30). É com
esta tradição oral que sugiram os contos. Tais eram recitados com o objetivo de educar ou
simplesmente entreter.
Acalantos, cantigas, parlendas, versos e contos, textos da tradição oral, não faltaram
nas aulas de Mary e Luciene. Estes estão bem guardados no caderno de registro das aulas
feitas semanalmente por uma dupla de estudantes diferentes. Os registros foram feitos de
forma livre, assim se pode encontrar as impressões da turma sobre as aulas em forma de
poesia, prosa, contos e versos, por exemplo.

As oficinas de contação de histórias são verdadeiras vivências de trocas e de


legitimidade de conhecimentos que vão além dos muros da universidade.
Nos levando para lugares de diversos sabores,cheiros,formas e sons. Elas
são construídas por muitas mãos, fazendo com que cada oficina seja única,
mas contínua, passando de oficina em oficina um fio condutor que tece sem
parar. ( relato do caderno da turma de oficina de contação de história ,
2013.2).

O conto da tradição oral

A oralidade permitiu que os contos se espalhassem por todo o mundo numa época
em que nem se sonhava com o advento da imprensa. “Como aves migratórias, e de tanto
viajar na ‘palavra’ dos contadores de histórias, os contos populares vão construindo seus
ninhos também no imaginário das gentes de terras distantes.” (MATOS; SORSY 2009, p. 60).
Os contos tradicionais conseguem migrar de um povo para outro por causa da sua
cultura oral, mas também por possuir uma essência universal. Esta essência permite que os
contos viajem por diversas culturas sem perder “os fios”.
Os motivos dos contos tradicionais são cinco, oito, dez mil, para todo
mundo. As centenas de milhares que conhecemos e sabemos existir são
combinações indefinidas, desses motivos essenciais, ambientes,
pormenores típicos, situações psicológicas. Os contos variam infinitamente,
mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai dispondo-os
diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade.
(CASCUDO, 2004, p. 22)

Os Contos Tradicionais fazem parte do imaginário e da cultura popular em todos os


cantos do nosso planeta.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 333


A unidade de repertório principal do contador de histórias, portanto, são os
contos tradicionais, “obras de arte de tempos imemoriais, transmitidas ao
longo dos séculos e das diferentes culturas, oralmente, de geração a
geração” (MACHADO, 2004, p.13).

Os Contos Tradicionais conseguem migrar de um povo para outro por causa da sua
cultura oral, mas também por possuir uma essência universal. Essa essência permite que os
contos viajem por diversas culturas sem perder “os fios”.

Os motivos dos contos tradicionais são cinco, oito, dez mil, para todo
mundo. As centenas de milhares que conhecemos e sabemos existir são
combinações indefinidas, desses motivos essenciais, ambientes,
pormenores típicos, situações psicológicas. Os contos variam infinitamente,
mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai dispondo-os
diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade
(CASCUDO, 2004, p. 22)

A tradição de contar oralmente histórias ultrapassa séculos e gerações sendo difícil


definir com precisão dados como data e autoria de tais contos. Entretanto isso não significa
que os contos não possuem uma estrutura e uma razão social, ao contrário, os contos tem
se mostrado ser uma importante ferramenta social e cultural ao disseminar valores e
costumes dos povos a qual pertencem.

A literatura oral não é como pareciam acreditar os românticos, uma


emanação espontânea do povo, considerado como um vasto corpo
indiferente. Ela está firmemente baseada em um contexto social e cultural
preciso, e somente existe e se difunde em um sistema de instituições mais
ou menos complexas. (SIMONSEN 1987, p. 25)

Cascudo (2004. pg. 12) comunga do mesmo pensamento de Simonsen ao dizer que
“o conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica e social. É um
documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões e julgamentos”.
Ainda de acordo com Cascudo (2004) as características do conto popular são:
Antiguidade; anonimato; divulgação; e persistência. A antiguidade se prova no fato de
nenhum estudioso conseguir datar com exatidão a origem de um conto tradicional, o conto
não possui um lugar único na linha do tempo. O anonimato é intrínseco da cultura de
tradição oral, não se sabe quem começou a contar, parece que sempre existiu. A divulgação
está na viagem do “boca em boca” que atravessa fronteiras e viajam pelas gerações. A
persistência está no poder de sobrevivência dos contos apesar das mudanças sociais,
culturais, políticas e tecnológicas. Assim pode-se dizer que o conto tradicional, há muito
tempo atrás foi dito por alguém, alguma vez, em algum lugar, mas não se sabe quem,
quando e onde, só se sabe que é divulgado pela a oralidade e persiste na memória do povo.
Apesar dos contos pertencerem ao anonimato isso não significa que não possuam
uma estrutura e uma razão social, ao contrário, os contos tem se mostrado como uma
importante ferramenta social e cultural ao disseminar valores e costumes dos povos a qual
pertencem. (SIMONSEN, 1987). Cascudo comunga do mesmo pensamento de Simonsen ao
dizer que “o conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 334


social. É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e
julgamentos”. (2004. p. 12)

O repertório do contador de histórias

Esse menino não é meu,


Me deram para criar,
O consolo de quem cria
É saber acalentar...
(Domínio público)

Montar um repertório de cada contador de histórias em potencial presente nas aulas


era um dos objetivos principais da disciplina. As perguntas que poderiam nortear este
objetivo são: Como escolher os textos para este seleção? Por onde começar? As duas
ministrantes afirmaram algumas vezes que “não escolhemos as histórias, são eles que nos
escolhem”. Assim o grupo foi orientado a permitir a escolha, lembrando dos contos, mitos e
fábulas que fizeram e fazem parte da sua memória afetiva, daqueles que lhes recordam bons
momentos ou simplesmente lhes emocionam ao ouvi-los. Também foi proporcionado nas
aulas o contato dos estudantes com obras de escritores que compilaram ou recontaram
histórias da tradição oral. Meu repertório foi contemplado pelas mais diversas histórias,
contos de fadas, religiosos, lendas africanas e indígenas, mas minha preferência foi pelas as
histórias que mais se assemelha aos “causos” abaixo trago três exemplos desse tipo de
texto:

VIVA DEUS E NINGUÉM MAIS


Era uma vez um velho pescador que vivia cantando:
- Viva Deus e ninguém mais / Quando Deus não quer / ninguém nada faz.
Mesmo quando sua pesca não era boa, ele cantava com muita fé e alegria a sua
cantiga.
- Viva Deus e ninguém mais / Quando Deus não quer / ninguém nada faz.
Um dia, o rei daquele lugar soube da existência do pescador e quis que ele fosse à
sua presença, por não admitir que Deus podia mais que tudo no mundo... Esse rei
era tão poderoso e orgulhoso, que achava que podia até mais que o próprio Deus!
E lá foi o pescador, subindo as escadas de tapete vermelho do palácio, cantando:
Viva Deus...
Diante do rei, o pescador não mostrou medo algum, e ainda reafirmou sua fé,
cantando a mesma cantiga.
Então o rei disse:
- Vamos verse Deus pode mais que eu, pescador!
- Eis aqui o meu anel. Vou entregá-lo aos seus cuidados! Se dentro de 15 dias você
me devolver o anel, intacto, você ganhará um enorme tesouro, e não precisará
mais trabalhar para viver.
- Porém, se no 15° dia você não voltar com o anel, mando cortar a sua cabeça!
Agora vá embora...
O pescador foi embora e na volta pra casa, cantava: Viva Deus...
Quando chegou em casa entregou o anel para a mulher que prometeu guardá-lo a
sete chaves. Deixe estar que isso não passava de um plano do rei, que logo mandou
um criado disfarçado de mercador, bater na casa do pescador, quando esteja havia
saído para pescar.
- Ó de casa!

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 335


A velha senhora abriu a porta.
- Minha senhora, sou mercador. Vendo e compro anéis. A senhora não teria aí
pelas gavetas um anelzinho para me vender? Pago bem!
E mostrou muito dinheiro.
- Não tenho não senhor. Aqui é casa de pobre. Não tem anel nenhum não.
Mas a velha ficou surpresa com tanto que o homem mostrava.
Acabou caindo na tentação, e vendeu o anel!
No fim do dia, o pescador voltou pra casa cantando: Viva Deus...
...Quando chegou em casa, soube do que havia acontecido e ficou desesperado.
- Mulher! Você não vendeu o anel não; você vendeu minha cabeça!
E foram correndo procurar o mercador pela floresta, pela estrada, pela praia, pela
aldeia e nada...
Claro! À essa altura, o criado disfarçado de mercador já estava longe, e havia
jogado o anel em alto mar, a mando do rei, para que nunca mais ninguém pudesse
encontrá-lo.
E o tempo foi passando...
Décimo dia...
O pescador, triste continuava cantando: (mais lento) Viva Deus...
Décimo primeiro dia...
E o pescador cantando e pescando...
- (ainda mais lento) Viva Deus...
Até que no penúltimo dia, o pescador chamou a mulher e disse:
- Mulher, eu vou morrer... Amanhã, minha cabeça vai rolar. Vamos nos despedir,
com uma última refeição. Farei uma boa pescaria. E lá foi o pescador, tristemente,
cantando sem parar sua cantiga.
- Viva Deus... (muito triste)
Pescou 50 peixes, 49 ele vendeu no mercado, e 1 levou para mulher preparar.
Ela caprichou no tempero e fez no fogão de lenha, aquele peixe que seria sua
última ceia junto com o marido depois de tantos anos. Mastiga daqui, chora dali,
pensa de lá, e de repente...
- (Se engasgando) O que é isso? Mulher (cospe o anel).
- Eu não disse que Deus pode mais que todo o mundo?
- (bem animado): Viva Deus...
O pescador limpou o anel, e correu em direção ao palácio. Subiu a escadas de
tapete vermelho cantando, fez uma reverência para rei, que perguntou todo
poderoso:
- E então, pescador? Aonde está o meu anel?
E o pescador, vitorioso:
- Está aqui, meu rei!
O rei ficou boquiaberto! Não conseguia acreditar... Teve de entregar o tesouro para
o pescador. E até o rei teve que cantar:
- Viva Deus e ninguém mais / Quando Deus não quer / Ninguém nada faz.
(CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.P.248)

A FILHA DO PESCADOR

Há muito tempo atrás, num reino distante, um pescador fazia sua pescaria diária,
quando encontrou no fundo do mar uma jóia. Um anel de ouro cravejado de
diamantes raros.
“Uma jóia digna de um Rei”, pensou o pescador. E resolveu dar a belíssima jóia de
presente ao jovem monarca de seu reino. Voltou para casa, mostrou a jóia a filha e
contou o que faria. A moça se chamava Maria. Era muito linda, tão linda quanto
inteligente, e desaconselhou o pai. Disse que era melhor ele não fazer isso. Mas o
pescador estava decidido. Envolveu a jóia num pedaço de veludo e foi para o
castelo. Entrou no enorme palácio, foi a sala do trono e depositou o presente,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 336


humildemente, aos pés do jovem Rei. O monarca ficou satisfeito com a jóia, mas
disse:
- Agradeço o presente que me dás. Mas quero ver se realmente és fiel ao teu Rei.
Tens família?
- Sou viúvo.- respondeu o pescador
- E tenho apenas uma filha.
- Pois então, quero ver tua filha. Mas não quero que ela venha nem nua, nem
vestida. Nem a pé, nem a cavalo. Nem de noite, nem de dia. Se isso não acontecer,
somente a morte lhe caberá! O pescador saiu do palácio decepcionado e já se
preparando para morrer. Chegou em casa e contou o que acontecera à filha. Maria
pensou um pouco e pediu ao pai que saísse e arrumasse um grande punhado de
algodão e um carneiro enorme. O maior que ele pudesse encontrar. O pescador
saiu e voltou com os desejos da filha. Então, Maria esperou que o dia se fizesse
noite. Quando a noite já ia terminando e o sol começava a sangrar o céu, mas a lua
e as estrelas ainda se faziam presentes, a jovem Maria tirou sua roupa. Depois se
envolveu no algodão, montou no carneiro e foi para o palácio. Ao chegar no
enorme palácio, chamou o Rei:
- Eis me aqui, senhor meu Rei, a filha do pescador. Envolta em algodão: nem nua,
nem vestida. Montada neste carneiro: nem a pé, nem a cavalo. Tendo o sol e a lua
presentes no céu: nem de dia, nem de noite.
O Rei ficou impressionado com a inteligência da moça e resolveu dar uma festa em
sua homenagem. E ainda disse:
- Vais escolher entre os objetos do palácio aquilo que mais desejares. O objeto do
teu desejo será teu para sempre. Maria foi mandada para um quarto que tinha sido
designado para ela. Deram-lhe um belíssimo traje, digno da mais rica das princesas.
Vestida como uma soberana, a jovem chamou um criado e pediu para que ele
fizesse uma bebida com planta dormideira. À noite, na hora da festa, Maria
apareceu e encantou a todos os convidados. Principalmente, o jovem Rei. Quando
a festa ia pela metade, delicadamente, Maria ofereceu ao Rei a bebida que tinha
sido preparado pelo criado. A bebida com planta dormideira. O jovem Rei, muito
afobado, tomou tudo de um só gole e logo adormeceu. Maria chamou os criados e
pediu que colocassem o Rei numa a carruagem. Os criados assim fizeram. E ela
partiu com o Rei para sua casa. Chegando lá, a jovem colocou o Monarca em seu
quarto. Em cima da cama. Quando o jovem Rei despertou, ficou assustado e
perguntou o que significava aquilo. E Maria respondeu:
- O senhor meu Rei me disse que eu poderia escolher o objeto que mais desejasse e
que isso seria meu para sempre. Pois tu és o objeto do meu desejo! O Rei, que já
estava encantado, ficou completamente apaixonado. Casaram-se e foram muito
felizes... Felizes como Deus com os anjos.... Felizes para sempre !!!
(ROMERO, Sílvio (2000), Contos Populares do Brasil, São Paulo: Landy
Editora.P.134,135)

A mulher do piolho

Era uma vez um homem muito circunspeto e cioso de sua personalidade. Muito
moço teve a dita ou desdita de casar com uma mulherzinha extrovertida e por
demais faladeira. Num dia de domingo, depois do almoço, o homem estava
sentado debaixo de uma árvore, tomando fresco, quando a mulher veio para junto,
querendo lhe catar cafuné.
De bom grado o homem deitou a cabeça no seu colo. Cafuné para cá, cafuné para
lá, acabou por cochilar, enquanto a mulher já meio distraída mexia nos seus
cabelos. De repente algo estranho atravessou correndo o couro cabeludo do
homem.
Mais que depressa a mulher diligenciou uma busca meticulosa, terminando por
encontrar um piolho.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 337


— Um piolho!... Acorde marido! Olhe um piolho na sua cabeça.
O homem acordou assustado e logo viu o piolho esborrachado entre os polegares
da esposa. Encabulou, mas nada disse. Porém a mulher não parou mais de falar
durante a tarde. A noite chegou e ela falando. O homem calado estava, calado
continuou. Noite a dentro, volta e meia, a mulher exclamava: — Marido, o
piolho!...
No dia seguinte, indo bem cedo para a feira fazer as compras, percebeu que a
mulher contava a todos quanto cruzavam o seu caminho o achado da véspera.
— Gente, não lhe conto! ontem eu encontrei um piolho na cabeça do meu marido.
— Um piolho! — Quem ouvia se escandalizava e com justa razão.
— Sim, senhor. Um p-i-pi-o-l-h-o-lho.
O marido cada vez mais aborrecido, calado estava, calado continuava. Entrava dia,
saía dia, dormindo ou acordada, a conversa da mulher convergia somente para o
malfadado achado.
Por fim, já furioso, o marido arranjou uma mordaça de cachorro e pôs na boca da
esposa. Ela pareceu meio sufocada mas teve medo de protestar e se conservou em
silêncio. Assim o homem acreditou ter solucionado a questão. Mas sua alegria
durou pouco. Na feira, em casa, na missa, toda a vez que alguém olhava para os
dois, ela não perdia tempo. Esfregava a unha do polegar direito da no esquerdo,
como se estivesse matando um piolho, e apontava depois para a cabeça do marido.
Em desespero de causa, o marido carregou com ela para a beira de um rio fundo.
Atou aos seus pés uma pedra e lhe deu um empurrão. A pobrezinha caiu na água e
começou a se debater, tentando se manter à tona. Mas quando percebeu pessoas
que corriam em seu socorro, suspendeu os braços acima da cabeça e fez o gesto de
esfregar as unhas dos polegares. Foi afundando, se afogando, mas sem deixar de
fazer o gesto de matar um piolho.
Satisfeito, o homem voltou para casa, crente de ter se livrado da desmoralização.
Mas no dia seguinte, quando foi à feira, todos se dirigiram a ele como o marido da
mulher do piolho. Repetindo o que ele pensava ter sepultado. Assim acaba a
história.
(CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.P.241)

Cada contador foi deixado livro para montar seu repertório, mas a importância de
incluir os contos da tradição oral sempre foi ressaltada, não pelo gosto pessoal das
professoras e sim pelo o processo histórico da constituição do contador de histórias e sua
relação direta com os textos da tradição oral. De acordo a Matos (2005) o principal
repertório do contador de histórias são os contos que têm sua origem na tradição oral. A
oralidade, a palavra pronunciada, é o meio de transmissão dos contos. De acordo com Mary
Arapiraca et. al (2010, p. 1) “a contação de histórias é a arte da palavra que se atualiza no
presente, no momento em que é pronunciada pela voz do contador de histórias, para quem
a relação com o ouvinte é direta e imediata”.

A arte de contar história- tripé e ferramentas do contador

Durante as aulas numa mescla de teoria e prática foram passadas as técnicas dessa
Arte. Luciene Souza trabalhou a estrutura do conto usando a comparação feita por Gislayne
Matos entre O conto e o corpo humano. Matos (2005) compara o conto, na voz do contador,
com o corpo humano. Ela divide o conto em: esqueleto que é a parte fixa do conto, aquilo
que não muda; os músculos que são as imagens do conto; o sangue e a respiração que são
as intenções que conduzem o conto; e o coração que é a mensagem principal do conto. Ao

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 338


comparar o conto ao corpo humano Matos esclarece que as partes que compõe a narrativa e
mostra a complexidade e a leveza envolvidas ao conto. Complexidade pelas suas múltiplas
partes e significados que cada uma delas pode produzir no contador e no ouvinte. Leveza
pela fluidez que todas as partes se integram e interagem, assim como o próprio corpo
humano.
Trabalharam-se dinâmicas que aprimorasse o tripé do contador de história, voz, texto
e olhar Dessa forma:

Extrapolando as amarras do didático, do exemplar e do mero informativo.


Saltar da obrigação de ensinamento para a noção de fruição, de prazer
estético de embelezamento da conversa trocada através de uma história,
do exercício de linguagem que procura a forma adequada para dizer-se de
si mesmo. (2007, p. 39)

O contador de histórias precisa estar sempre buscando formas de aperfeiçoar sua


prática. De acordo com Sisto (2007) o contador não pode nunca ser um repetidor mecânico
do texto que escolher contar para se garantir uma narração viva não podem faltar
elementos como originalidade, surpresa, e conflitos instigantes. Todos esses pontos citados
o contador só consegue e aprimorar contando e contando. E essa foi uma das principais
orientações na oficina de contação, contar nos mais diversos espaços, em casa, roda de
amigos, nas escolas, hospitais e asilos.
Foi discutido com os professores em formação que esses momentos de contação de
história não podiam se tornar apenas pretextos ou abertura para uma atividade didática. Os
momentos das histórias precisam ser um evento em si mesmo. Se conta e ouve histórias
pelo prazer e satisfação do artista e do seu público. Isso não significa que não se possa usar
as histórias para fins específicos, como a mediação de leitura ou formação de leitores, mas
não se pode limitar a arte de narrar a tais fins.

O sabor do querer mais

“E entrou pelo uma porta


E saiu pela outra
E o rei meu senhor
Que lhe conte outra.”

Com o estudo de teóricos, a exemplo de Hampaté Bâ, Luís da Câmara Cascudo e


Gislaine Matos, que discutem Tradição Oral, Conto Tradicional e Contador de Histórias
atrelado as observações e vivências nas aulas de contação de história foi possível inferir que
o processo de formação de novos contadores de história, no espaço acadêmico, se dá
através da devida pesquisa e referência à tradição oral as quais se iniciam com a
autonarrativa e acionamento da memória afetiva de cada contador em formação.
Participar da disciplina Oficina de Contação de História ministrada, e/ou orquestrada,
pelas professoras Mary de Andrade Arapiraca e Luciene Souza Santos me proporcionou uma
experiência enriquecedora tanto na construção do meu caminhar como contadora de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 339
história como na minha vida pessoal, ambas indissociáveis. Esta foi a primeira vez que
participei de um curso de longo prazo de contação de histórias, e nele pude me aprofundar
nos teóricos que discutem a tradição oral e a contação de histórias, aprendi técnicas para
aperfeiçoar-me na arte da narração, brincadeiras da tradição oral que podem incrementar os
momentos de contação de histórias. Ampliei meu repertório e sair com a certeza que preciso
buscar e aprender muito mais com e sobre a contação de histórias.
Em cada aula aprendi um pouco sobre a vida e como se portar diante dela. Ouvindo
a “história do homem sem sorte” contada de pela professora Mary me fez repelir
pensamentos e sentimentos negativos. Cada aula com as histórias trazidas por cada
participante funcionava como momentos de celebração e reflexão, saia leve e pronta para
enfrentar os desafios da semana. Pelos relatos dos colegas de turma sei que o sentimento
não foi experimentado só por mim, a alegria de estar dividindo aquele espaço de contação
de história era de todos nós.

REFERÊNCIAS
ARAPIRACA, M ; SANTOS, L. ; RIBEIRO, K. . Contação de Histórias em Contexto de EAD. 2010.
Disponível em http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/IICILLIJ/6/TEXTO COMPLETO IIEILLIJ
v3. pdf. Acessado em 20/06/2013.
BENJAMIN, Walter, O Narrador - Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov, in Obras
Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008, p. 197-221.
BUSATTO, Cléo. Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa. Petrópolis: Vozes,
2003.
CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.
HAMPATÊ BÁ, Amadou; BADAIRE, Jean-Gilles. La Parole, Mémoire Vivant de l’Afrique. Paris:
Éditions Fata Morgana, 2008.
JACOB, Grimm; WILHELM, Grimm. O príncipe sapo e outras histórias. Tradução de Zaida
Maldonado. Porto Alegre: L&PM 2008.
MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias.
São Paulo: DCL, 2004.
MATOS, Gislayne A., A Palavra do Contador de Histórias: sua Dimensão Educativa na
Contemporaneidade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005.
MATOS, Gislayne Avelar; SORSY, Inno. O ofício do contador de histórias: perguntas e
respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
PARAFITA, Alexandre. Histórias de arte e manhas. Lisboa: Texto Editores, 2005.
SISTO, Celso. Contar histórias, uma arte maior. In: MEDEIROS, Fábio Henrique Nunes &
MORAES, Taiza Mara Rauen (orgs.). Memorial do Proler: Joinville e resumos do Seminário
de Estudos da Linguagem. Joinville, UNIVILLE, 2007. pp. 39-41.
SIMONSEN, M. O conto popular. Tradução de Luís Claudio de Castro e Costa. São Paulo:
Martins Fontes, 1987.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 340


Narrando minha prática docente online: uma experiência formativa sobre as relações na
educação a distancia

Lydia Passos Bispos Wanderley


UERJ/FFP
wanderley.lydia@gmail.com
Glaucia Guimarães
UERJ/FFP
glauguimaraes23@gmail.com

Este trabalho propõe investigar, a partir da minha narrativa autobiográfica, como me constituo a docente que
sou no espaço em que atuo como tutora a distância da disciplina de Estágio Supervisionado em Educação de
Jovens e Adultos. O campo empírico da pesquisa é o ambiente virtual de aprendizagem (AVA) dessa disciplina
que faz parte do curso de graduação semipresencial de Licenciatura em Pedagogia, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ), em convênio com o Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro
(CEDERJ). Diante da investigação, meu primeiro desafio, nesta proposta, é narrar minha constante tentativa de
romper com o rótulo de tutora que limita o fazer pedagógico do docente. Ela tem como objetivo avaliar as
relações discursivas dos interlocutores presentes neste ambiente virtual de aprendizagem, tensionar minhas
práticas pedagógicas como docente online e analisar os conflitos e estranhamentos ocorridos neste espaço
virtual. Buscamos, neste processo proposto, encarar duas questões que norteiam essa discussão: Como nos
constituímos os docentes (online) que somos? Como nossas relações no ambiente virtual de aprendizagem são
construídas? Desejo pensar cuidadosamente a importância do outro na nossa formação e como essas relações
nos afetam. Contudo, as observações e reflexões já construídas até aqui começam apontar para as fragilidades
das relações no AVA, talvez fruto da sociedade em que estamos inseridos e que vem enfrentando o capitalismo
tardio. O trabalho tem uma abordagem teórico-metodológica de (auto)biografia, e busca tecer esse
conhecimento dialogando, principalmente, a partir de Mikhail Bakhtin e Marie-Christine Josso.
Palavras-chave: Prática docente; Experiências formativas; Eduação á distancia.

Introdução

So close no matter how far


Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
And nothing else matters.
Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
And nothing else matters
(Metallica. Nothing Else Matters – In: Black Album. 1992)

Os versos da famosa música da banda de rock, Metallica, cantam o sentimento por


detrás da pesquisa; por mais distante que pareçamos estar, permanecemos bem próximos,
pois o problema e a questão que norteiam o trabalho estão intrínsecos em nós. A forma que
o pesquisador se abre para o desafio proposto, passar noites em claro pensando nas
perguntas que o angustiam, refletir cotidianamente no campo que está inserido etc, o faz se
abrir para as buscas incessantes por achados que devem emergir da empiria que formamos,
e para além disso, nada mais importa. Contudo, escrever um texto científico muitas vezes
me soa como esquizofrenia. Escrever na primeira pessoa do plural ou na terceira do singular,
não me fazer presente naquele texto, mas ser somente o pensamento por trás de toda
escrita me leva à crises, a uma fragmentação angustiante. E diante dessa agonia, sou tentada

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 341


a ousadamente escrever em uma fonte que não Times New Roman, em um tamanho que
não 12, em uma formatação de texto que não justificada, mas, principalmente, me fazer
presente em todo texto como a voz que tece junto aos outros e que possibilita toda
pesquisa. Destes desejos o único que aqui se faz possível é trazer a minha voz para a
tessitura que começa a se constituir nessa pesquisa, e ao ler a voz-autora, também será
possível ouvir a voz daqueles para quem escrevo, meus destinatários (AMORIM, 2001).
O segundo desafio que fomenta meus pensamentos, que instigam minhas reflexões,
é pensar para quem eu pesquiso. As grandes questões humanas foram construídas a partir
de questionamentos tais como “quem sou eu?” e “qual o sentido da vida?”. Viktor Frankl
escreveu sua obra A Busca do Homem por Sentido a partir de sua experiência como interno
de campo de concentração; Hannah Arendt desenvolveu o conceito ‘mal banal’ e escreveu
sobre a banalidade do mal a partir das reflexões construídas enquanto acompanhava o
julgamento de Adolf Eichmann. As obras de Ítalo Calvino, Umberto Eco e C. S Lewis são
construídas a partir das questões humanas, pensadas para sua abolição e construção. E eles,
em suas obras, nos apontam um caminho para nossas pesquisas.
Para quê e para quem pesquisamos senão para o homem e a sociedade? Lembro-me
da frase dita no filme O Último Samurai (2003) pelo personagem Capitão Nathan Algren
(Tom Cruise) que curvado diante do Imperador Japonês é acusado por um dos homens do
governo de ter lutado contra seu Império, então o coronel responde: Your Highness, if you
believe me to be your enemy, comand me and I’ll gladly take my life. O comprometimento
das suas ações está tão agarrada ao que ele é que se não pode percebê-lo como aliado, é
melhor que morra. O maior desafio que assombra minha pesquisa é me desafiar na busca
desse comprometimento com a pesquisa que importa e que se importa; me desvencilhando
das exigências que sufocam nossas ideias e agendas, e que muitas vezes nos furtam levando
nossa paixão pelas perguntas que nos instigam.
É no cotidiano em que se formam as perguntas que vivemos uma vida conectada às
redes sociais. Dizemos o que estamos fazendo, com quem estamos, onde estamos e o que
estamos sentindo. As imagens são postadas e jogadas para nossos seguidores, e esperamos
ansiosamente pelas curtições dessas postagens. Não questionamos quão rápido isso se
tornou comum para nós, aderimos os compartilhamentos e abrimos mão de nossa
privacidade sem sequer pensar sobre isso. Eu gosto dessa rede, trabalho nela, a pesquiso
com interesse e prazer, contudo reconheço que havia uma inocência no meu olhar sobre a
web, e lendo Andrew Keen comecei a reconhecer algumas questões por ele levantadas.
Lendo seu livro #vertigemdigital – por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e
desorientando vejo mais uma vez que o conhecimento é a construção de bons argumentos,
que bons argumentos garantem densos debates e que densos debates possibilitam
importantes reflexões.

“Nesse mundo todo transparente, estamos ao mesmo tempo em toda parte e


em parte alguma, a irrealidade absoluta é a presença real; o totalmente falso é
também o totalmente real. Isso, como percebi, era o retrato mais
verdadeiramente falso da vida conectada do século XXI.” (KEEN, 2012, p. 22)

A pesquisa construída com relevância, que importa e se importa, é desenvolvida pelo


pesquisador que é afetado pela beleza de questionar, ele se forma vagueando no cotidiano e
refletindo sobre as perspectivas que se fazem nele ou dele. Ele não simplifica a realidade,
mas reconhece na complexidade das perguntas sua necessidade de aceitar o desafio de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 342
respondê-las, mas ao se aproximar das respostas, as perguntas se refazem, e outro caminho
se percorre. O poema Inicial de Cecília Meireles representa lindamente a narrativa dessa
trajetória do pesquisador que se move na busca por respostas.

“Lá na distância, no fugir das perspectivas,


Por que vagueiam, como o sonho sobre o sono,
Aquelas formas de neblinas fugitivas?
Lá na distância, no fugir das perspectivas,
Lá no infinito, lá no extremo... no abandono...
Aquelas sombras, na vagueza da paisagem,
Que tem brancuras de crepúsculos do Norte,
Dão-me a impressão de vir de outrora... de uma viagem...
Aquelas sombras, na vagueza da paisagem,
Dão-me a impressão do que se vê depois da morte...
Lá muito longe, muito longe, muito longe,
Anda o fantasma espiritual de um peregrino...
Lembra um rei mago, lembra um santo, lembra um monge...
Lá muito longe, muito longe, muito longe
Anda o fantasma espiritual do meu destino...
Anda em silêncio: alma do luar... forma do aroma...
Lembrança morta de uma história reticente
Que nos contaram noutra vida e noutro idioma...
Anda em silêncio: alma do luar... forma do aroma...
Lá na distância... O meu destino... Vagamente...
Sentei-me à porta do meu sonho, há muito, nessa
Dúvida triste de um infante pequenino,
A quem fizeram, certa vez, uma promessa...
Que é que me trazes de tão longe? Vem depressa!
Ó meu destino! Ó meu destino! Ó meu destino!...”

Meu destino se iniciou na busca pela igualdade ao direito à educação, quando tinha
18 anos, e começava a Faculdade de Pedagogia, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Logo quando começamos as aulas fui questionada sobre a razão de estar lá, e
formulei minha resposta na ingenuidade dos quase vinte anos: trabalhar para que todos
tenham direito a uma educação de qualidade. A professora, claro, sorriu e disse: Ah, mas
isso é uma grande utopia!
Hoje, treze anos depois, ao encarar a pesquisa, e sondar-me pela razão que
permaneço, percebo aquelas formas de neblinas fugitivas, a utopia apontada por minha tão
realista professora. E me deparo, na rede social youtube, com Eduardo Galeano narrando o
pensamento estupendo de Fernando Birri, um diretor argentino de cinema, quando
questionado por estudantes universitários para que serve a utopia?, respondeu:

A utopia está lá no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se


eu caminho dez passos, ela se afasta dez passos. Quanto mais eu buscá-la,
menos eu a encontrarei porque ela vai se afastando a medida que eu me
aproximo. Boa pergunta não? Para que serve a utopia? A utopia serve para
isso, para caminhar.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 343


E é de fato essa utopia que move o pesquisador, sempre nos direcionando para a bela
questão que se faz presente nos versos de Cecilia: Que é que me trazes de tão longe?

O Conflito que produz: eu, eu mesmo e minha formação

A pergunta da escritora ecoa nos meus pensamentos, e percebo que o que de fato me
traz de tão longe é o desejo de pesquisar as relações construídas entre professor e aluno na
Educação a Distância (EaD). Sabemos que a tecnologia tem proporcionado o crescimento
desta modalidade. Grandes e pequenas instituições estão expandindo seus trabalhos
potencializados pela Era Digital. Contudo, vivenciando a educação a distância como docente,
acredito que este crescimento deve ser refletido e os trabalhos desenvolvidos analisados.
Minha trajetória na EaD se iniciou em 2004 como tutora a distância da disciplina de
Estágio Supervisionado no Curso Semipresencial de Licenciatura em Pedagogia, oferecido
pela UERJ, em convênio com o Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro
(CEDERJ). Quando iniciei na tutoria, não conhecia muito essa modalidade de ensino, mas foi
construindo minha prática pedagógica que comecei a levantar algumas questões sobre a
importância da formação do professor-tutor, então busquei um curso de pós-graduação na
área.
Na pós-graduação, a partir das leituras e discussões construídas, fui instigada a
questionar minha prática como tutora a distância. Mas foi quando ingressei no GPDOC75,
convidada pela professora Drª Edméa Santos76, que fui desafiada a refletir sobre meu
trabalho, construindo conceitos e discutindo diferentes possibilidades na formação docente.
Quando ingressei na EaD sabia pouco sobre a proposta, mas a partir das orientações e
propostas do CEDERJ fui me adequando ao modelo proposto, e como não tinha nenhuma
vivência anterior, fui atuando como tutora a partir das orientações recebidas. Conforme fui
trabalhando, também tive oportunidade de atuar como tutora presencial e coordenadora de
disciplina, sempre buscando construir um trabalho que pudesse contribuir com a formação
proposta, mas sem saber ao certo o que se esperava, minhas práticas eram construídas
como se tateando a realidade e as revendo a partir das experiências.
No entanto, foi como tutora a distância que comecei a tencionar minha prática na
EAD, a passividade diante do espaço virtual começou a me angustiar e me convocar a rever o
que estava construindo. A inquietação que me instigou foi “aquelas sombras, na vagueza da
paisagem”, ela me levou a buscar outras possibilidades, me fez perceber que aquilo posto
não poderia estar gerando uma real formação. O incômodo me levou a viver o grupo de
pesquisa de forma intensa, e essa relação começou a gerar o desafio formativo: me fazer
autor, isso significa autorizar-me do espaço proposto de uma forma criativa, e não mais
passiva.
Abrindo-me para essa experiência, o meu primeiro grande desafio na EaD foi romper
com o rótulo de ‘tutor’, nomenclatura que limita o fazer pedagógico a simples espaços de

75
O GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura, coordenado pela Profª Edméa Santos, pesquisa e
desenvolve estudos e projetos sobre a docência na contemporaneidade e as práticas e processos da
Cibercultura, em especial a Educação Online e os processos de ensino e aprendizagem, trazendo ao debate o
estudo das redes e sua aplicabilidade para a investigação dos fenômenos sociotécnicos e culturais mediados
pelas tecnologias digitais de informação e comunicação e suas implicações para os processos de aprendizagem
e docência. Disponível em: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326708YAKR1CM
76
Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio Janeiro.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 344
‘sala de tutoria’ em que os alunos postam suas dúvidas e aguardam nossas respostas como
se fossemos “tiradores de dúvida” ou nos enviam suas avaliações para correção e aguardam
suas notas como se fossemos meros avaliadores.
Ao começar a problematizar essa prática, comecei a vislumbrar a internet como
possibilidade de produção de cultura – cibercultura, e logo percebi que minhas práticas não
aproveitavam o seu potencial, mas deixava de fora a interação e a interatividade, não
possibilitava a construção de conhecimento coletivo e, principalmente, enfraquecia minha
atuação como docente, empobrecendo minhas práticas e tornando-me irrelevante no
processo da Educação.
A internet sem a atuação dos sujeitos se mantém sendo apenas uma infraestrutura,
logo, sem os sujeitos atuando neste espaço virtual, não há construção de cultura, pois é
nossa atuação que possibilita a intervenção, as relações e a formação das subjetividades,
estas são as atuações que dão vida à Cibercultura. Sendo assim, comecei a buscar uma
prática que contribuísse para uma Educação a Distância que vive outras possibilidades a
partir do desenvolvimento da tecnologia comunicacional. Hoje, em um espaço virtual de
aprendizagem é possível encontrar interfaces que favoreçam a construção de um espaço de
troca, leituras hipertextuais, produção colaborativa etc. Temos interfaces assíncronas
(fórum, blog, sala de tutoria etc) e síncronas (chats, conferências etc), e nesse espaço iniciei
minha procura por uma ação docente cautelosa e respeitosa: dialógica77.
Contudo, algumas posturas discentes no ambiente virtual de aprendizagem (AVA)
começaram a provocar-me e alguns conflitos geraram questionamentos que encadearam
estranhamentos naquele espaço. É este estranhamento que então me direciona para meu
campo de pesquisa ao instigar-me a perguntar quem é o outro que ali se faz presente por e-
mail, fórum, sala de tutoria? Como essas relações estão sendo construídas? Esse outro me
acenou para buscar compreender as relações que se faziam presentes neste AVA, e começo
aqui, outro desafio: estranhar o que me é familiar.

Conceitos que tecem minhas perguntas

Observando o meu campo de empiria e o problema levantado, percebi que minha


maior angústia é que minha pesquisa seja relevante, não só para o campo da educação, mas
principalmente para a formação docente: a minha e a do outro. E buscando avaliar as
questões que construía vi que a importância do trabalho depende de onde nasce e com
quem se constrói. Desta forma, lendo o texto Discurso na Vida e Discurso na Arte
(BAKHTIN&VOLOSHINOV, 1976), compreendi que a relevância deste trabalho se faz por
nascer no contexto da formação: a formação do outro transforma minha relação com a
forma que formo. A pergunta nasce da inquietação do cotidiano da prática do professor-
tutor, da rotina no AVA, de dentro para fora:

“Corpos químicos e físicos ou substâncias existem tanto fora da sociedade


humana quando dentro dela, mas todos os produtos da criatividade
humana nascem na e para a sociedade humana. Definições sociais não são
aplicáveis de fora para dentro, como no caso dos corpos e substâncias

77 As relações e conceitos apresentados neste parágrafo foram construídos a partir das discussões e
reflexões no GPDOC, mediado pela Prof. Dr. Edméa Santos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 345
naturais - formações ideológicas são intrinsecamente, imanentemente
sociológicas.” (opt. cit, p. 2-3)

Minha vivência na educação a distância vem transformando minha prática docente, e


neste artigo busco iniciar a reflexão de três conceitos que se destacaram nas análises até
aqui construídas. São eles: diálogos, olhares e docência online.

Diálogos

Estas memória ou lembranças são intermitentes


e, por momentos, me escapam porque a vida
é exatamente assim. A intermitência do sonho nos
permite suportar os dias de trabalho.
Muitas de minhas lembranças se toldaram
ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido.
As memórias do memorialista não são as
memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos,
porém fotografou muito mais e nos diverte
com perfeição dos detalhes; este nos entrega uma
galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo
e a sombra de sua época.
Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez
tenha vivido a vida dos outros.
Do que deixei escrito nestas páginas se
desprenderão sempre – como arvoredos de
outono e como no tempo das vinhas – as folhas
amarelas que vão morrer e as uvas que
reviverão no vinho sagrado.
Minha vida é uma vida feita de todas as
Vidas: as vidas do poeta.
(Pablo Neruda, ‘ Confesso que vivi’)

Dialogar. Diálogos. Seria diálogos sinônimo de conversas? Dialogar e conversar são


ações semelhantes? Do que precisamos para dialogar? São questões que me levam a refletir
e buscar em Mikhail Bakhtin a compreensão dessa ação. Nessa construção, me pego
voltando a textos que possam me mostrar caminhos para escrever, e nesse primeiro
momento já é possível perceber que não posso pensar o sentido de dialogar sem me
apropriar de autores que tão lindamente me ensinam sobre a poesia presente nos diálogos.
Dialogar não pode partir do nome singular diálogo, pois dialogar é tecer vozes,
sentimentos, experiências. Só se faz possível pensar em dialogar na pluralidade e
integralidade subjetiva do sujeito. Para escrever esse texto estou ouvindo ‘the kiss’,
composição de Trevor Jones e Randy Edelman para o filme “O Último dos Moicanos”, essa
música me toca motivando-me a escrita reflexiva. Dialogar é ser tocado para o movimento
da construção, caminhar para o desconhecido, nos interessa o diferente, o problematizar e o
estar atento às interpretações. É se dispor a ouvir, não se limitando ao sentido da audição,
mas tecer os sentidos, ou seja, ouvirvendo, ouvirtocando, ouvirpalatiando, ouvirsentindo.
Nos diálogos ocorrem os enfrentamentos e estranhamentos, e são esses que nos
movimentam para mais perto do que está sendo exposto em palavras. Mas ao se dispor ao

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 346


diálogo somos também convocados ao diálogo interno, para ouvir o outro se faz necessário
aprendermos a dialogar com nossos pensamentos, histórias, nosso devir.
A escritora Cecília Meireles abre sua prosa, Reino da Solidão, com a pergunta “Onde
estão os donos das belas casas vazias?”, então pensei: não seríamos nós essa casa vazia?
Fazemo-nos sozinhos tendo tanto potencial para os laços fortes e fracos que podem ser
construídos em nosso cotidiano; como disse Neruda, “minha vida é uma vida feita de todas
as vidas”. O poeta chileno experimentou que o outro se faz nele, e ele se faz no outro, nos
diálogos travados na vida:

Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. O


território interno de cada um não é soberano, como bem explicita Mikhail
Bakhtin (2003, p. 34), ser significa ser para o outro e, por meio do outro,
para si próprio. É com o olhar do outro, impregnado de valores, que me
comunico com meu interior. Tudo que chega a mim chega a minha
consciência através do olhar e da palavra do outro, ou seja, o despertar da
minha consciência se realiza na interação com a consciência alheia (...).
(SOUZA&ALBUQUERQUE, 2012, p. 110).

Não devemos nos limitar às imitações ou interpretações, mas somos formados nos
diálogos que podem ser scaneamentos de pensamentos construídos no seu próprio dialogar
com a leitura da sua rotina, são as mediações feitas nos livros, na arte, na música, no
cinema, na rede: são as rodas de conversas travadas no/do/com cotidiano e seus sujeitos
presentes.

Olhares

Olhar? Do que precisamos para olhar? A ação que envolve olhar sussurra por
sensibilidade, pois ela potencializa a tessitura de olhares que evocam sentimentos e
experiências. Em Roma, no terceiro mosteiro da Ordem dos Cavaleiros de Malta, localizado
na colina do Aventino, apesar de não ser aberto ao público, é possível olhar pela fechadura
da sua suntuosa porta e avistar a basílica de São Pedro, no Vaticano. A fechadura deve ter
1,5 cm de diâmetro, mas com uma das mais belas visões que já tive.
As fotos que encontro desse local não faz justiça a sua real visão. Ela não pode ser
reproduzida, somente vivida e contada. O olhar que vivenciei nessa pequena fechadura me
ensinou que os olhares tecidos em nosso cotidiano podem despertar a sensibilidade do
sujeito que olha, mas exige desse sujeito atenção. Os olhares que formam não podem ser
sem cuidado, podem ser despretensiosos, mas não endurecidos. Pois são os olhares
afetados que evocam nossa atenção e que serão recontados nas experiências; são eles que
trazem visões que serão interpretadas, pensadas, reproduzidas, mas não serão vividas fora
daquele que teceu esses olhares. Cada um deve viver seus olhares e buscar recontá-los,
pois nessa conversa damos ao outro a visão e sentimentos construídos por nossos olhares.
Eles são a ressignificação de ações anteriores e a beleza desses olhares ganha vida nas
intervenções feitas por nós e talvez pelo outro. Não é tanto pelo que se vê, mas pelo que se
sente ao ver. Os olhares vividos são luzes lançadas para dentro e que sairão em vozes que
apresentarão um lugar enunciativo de onde estamos e quem somos no texto e contexto da
vida. São os olhares que contribuem para a formação das nossas utopias que nos farão
caminhar e são eles que nos iniciam na arte de pensar e ao risco de interpretar.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 347
O ambiente virtual de aprendizagem une diversos olhares. O que o professor-tutor
tem diante dele são olhares que antecedem as palavras, e com ela, os seus conflitos.

Docência online

Docência é ensinar. Ceder tempo e conhecimento para o outro. É ter e compartilhar,


sabendo que ao compartilhar também recebemos. Docência é ver toda possibilidade do
outro. E ao docenciar atualizamos o que era antes potência. Docenciamos para a
emancipação, pois forçamos uma capacidade ignorada ou negada a reconhecer-se e
desenvolver-se a partir desse reconhecimento e toda consequência alcançada por meio dele.
O outro tem uma infinidade de saber, e a docência se propõe dialogar com esse saber,
possibilitando a construção e relação de novos saberes.
Docência, diálogo, o outro. É como a construção de “uma ponte, pedra por pedra”.
Ítalo Calvino (1990) nos faz uma linda narrativa da conversa entre Marco Polo e Kublai Khan,
em seu livro Cidades Invisíveis, que descreve o cenário que verbalizo:

“Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.


- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.
- A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -,
mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe.”

Sem o outro a docência não se faz, e a docência online está inteiramente relacionada
com a ponte de Marco Polo, contudo ela acontece no espaço virtual. Enfrentamos uma
intensa revolução digital, e a virtualização constitui a essência da mutação que se dá em
nossa Era, e isso nos desafia filosoficamente, antropologicamente e socio-potilicamente.
Virtualidade e atualidade são duas maneiras de ser diferente, e a primeira produz efeitos
que alteraram a noção de espaço e do tempo, e eu ouso dizer, que alteram, inclusive, o
conceito de ser. Pierre Lévy (1996), filósofo francês, enfatiza que a virtualização amplia as
potencialidades humanas, construindo uma nova forma de aprender e pensar. O docente
online aceita o desafio de habitar esse espaço para problematizá-lo, propondo a construção
de pontes no ciberespaço, que como já vimos, somente se torna espaço de cultura a partir
da intervenção e atuação dos sujeitos.
Não quero de forma alguma conceber verdades ou criar modelos, e lendo Bakhtin
percebo o contexto nunca no singular, mas tenho meu olhar direcionado para ver as
possibilidades na pluralidade de homens, na integridade e complexidade de conceitos e
subjetividades. Até aqui, a proposta de observar/estudar as relações travadas entre
professor e aluno na educação a distância, trouxe, à superfície, conceitos que o teórico me
ajuda a compreender, de forma que altera meu olhar sobre EaD. Logo aprendo que o campo
de pesquisa não se esgota no objeto, e que o desafio é que o pesquisador e os seus sujeitos
se percebam como atores; são o encontro de vozes que alteram as relações, que nos conduz
à diferença que se tornará conflitos e estes afetam o docente em sua prática e vida.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 348


A palavra no AVA

O ambiente virtual de aprendizagem em que atuo é construído partindo do


cronograma da disciplina e os conteúdos são organizados por semana. Cada Box traz
imagem, relações teóricas, orientações pedagógicas e dicas úteis.

Figura 1 - Ambiente Virtual de Aprendizagem - Estágio Supervisionado em Educação de Jovens e Adultos

Figura 2 – Ambiente Virtual de Aprendizagem - Estágio Supervisionado em Educação de Jovens e Adultos –


Semana 1

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 349


Após receber liberação para acessar a sala da disciplina, cada participante constrói
seu perfil que inclui foto, texto, contatos e as disciplinas em que estão inscritos naquele
semestre. Mas o que nos interessa neste momento é a sala de tutoria. A sala de tutoria é
uma atividade assíncrona que poderíamos descrever como uma vitrine de postagens de
dúvidas, esclarecimentos, questões etc, tudo que é dito pode ser lido por qualquer sujeito
que tenha acesso a esta sala, todas as mensagens são públicas. É o espaço da palavra, é
arena do AVA.
Na construção do AVA, trabalhamos todo tempo com presumidos, com um auditório
social e vivemos a presença como uma virtualidade que se atualiza no discurso. No ambiente
virtual, os presumidos têm um horizonte geral amplo pelo público, pelo que vivemos, pelo
que buscamos:

“o horizonte comum do qual depende um enunciado pode se expandir


tanto no espaço como no tempo: o “presumido” pode ser aquele da família,
do clã, da nação, da classe e pode abarcar dias ou anos ou épocas inteiras.
Quanto mais amplo for o horizonte global e seu correspondente grupo
social, mais constantes se tornam os fatores presumidos em um
enunciado.” (opt. cit., p. 7) (grifos meus)

Na EaD percebemos a importância da colaboração, da cooperação e da interação.


Vivemos uma nova era na comunicação em que a lógica de transmissão dá espaço à
interação (SILVA, 2008). Cada sujeito tem valor, cada experiência apresentada proporciona a
possibilidade de um diálogo em que buscamos a voz de todos. A cibercultura oferece um
ciberespaço que se constitui por novas práticas comunicacionais.
Nesta prática, a linguagem é que faz a mediação, sendo tanto o docente online
quanto o aluno os responsáveis por ela. Segundo Bakhtin e Peirce (1976-1982, apud
SANTAELLA, 2004, p.170) a linguagem é, sobretudo, social, não sendo privada, mas um fluxo
contínuo potencializado pela rede do ciberespaço. Ela se constrói no outro, no alheio, como
Bakhtin coloca; uma rede humana para Peirce;

a linguagem que dá sentido ao ser humano, e esse sentido só pode emergir


na interação de vozes, deslocamentos e cruzamentos entre o que fala e o
que ouve. O sentido não está armazenado nas consciências individuais,
como em um depósito estável e petrificado, mas na relação, nos interstícios
entre o falante e o ouvinte, que só se definem nas trocas recíprocas que
estabelecem e pelo discurso que escolhem entre os discursos disponíveis.
Sentido, portanto, é linguagem em movimento, diálogo. (SANTAELLA, 2004,
p.168)

Souza (2008, p. 100) fala que a “interação entre as pessoas possibilita, através do
diálogo, expor e refletir sobre diferentes pontos de vista, trocar experiências, ampliar a
tomada de consciência, além de fortalecer e favorecer a afetividade entre as pessoas, as
relações interpessoais”. Esse é um dos principais objetivos que o docente online se propõe a
alcançar em seu trabalho.
A partir do estudo de Macedo (2010, p.29), aprendo que pensar em formação é
reconhecer a totalidade do sujeito. Não separo o sujeito, nem o fragmento, mas o vejo como
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 350
“formador de si” a partir de sua história e relação com o mundo, sua etnoformatividade –
sujeito culturalmente inserido. Compreender formação é mais que entender o conceito, é
ver o ser que aprende contextualizado, construindo sentidos.
“se formando, que também existe se esforçando para compreender o
mundo, a vida e sua própria formação, a partir das suas reais condições
existenciais e dos seus projetos, e não um desejo e uma inteligência
apartados dessa humana e movente totalidade, suas potencialidades,
experiências, incompletudes, errâncias, com as quais forma-se, vive e
projeta o futuro, sintetizadas na sua etnoformatividade, com a qual, aliás,
temos que trabalhar.”(MACEDO, 2010, p.30)

Aprendemos em Vygotsky que o que é internalizado pelo sujeito é a significação da


ação. Aquilo que é experimentado é formação, sem essa relação de ação não podemos
encontrá-la, mas a vivência que forma exige reflexão, caso contrário se torna rotineira e
mecânica. Para Nóvoa (2001, p.4), a reflexão é essencial para a experiência que forma, nesse
trabalho percebo que a produção de sentidos está intimamente ligada à dinâmica do
compreender (opt.cit), e essa perspectiva fundamenta a autonomização nos processos
formativos. Desta forma, insisto em romper com o rótulo de tutoria para me apropriar da
autonomia e criatividade que devem fazer parte do docente online neste espaço virtual de
aprendizagem.

Um zoom na arena

Harold Bloom, professor das universidades de Yale e New York, diz que uma das
“funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação final tem
caráter universal” (2001, p. 17), é ela que nos possibilita a formação de opiniões críticas e
avaliações pessoais. Devemos ler buscando essa formação humana: reflexão. Para que isso
ocorra, de acordo com Bloom, devemos pensar que o sujeito que escreve é da mesma
‘matéria’ que o sujeito que lê, e essa identificação proporcionará relações e construções de
sentidos. Quando me deparo com esse argumento fico mais convicta que estou no caminho
certo ao pensar que nos construímos com as relações que desenvolvemos.
Ao aceitar o desafio de pensar sobre as construções de sentidos vamos percebendo
que a linguagem é pensamento e cerne da mediação, ela se produz por meios que são,
acima de tudo, extensões da capacidade humana de produzir linguagem, pois “para sermos
capazes de ler sentimentos humanos descritos em linguagem humana precisamos ler como
seres humanos” (opt. cit, p. 24), e a linguagem não morre, ela permanece, é preservada em
nós quando lemos, ganhando sentido e eternidade em nossas críticas, em nossos
conhecimentos. Logo, então, vemos que a linguagem constrói subjetividades, e devemos
perceber essa construção como relações do eu e o outro.
Na sala de tutoria a oralidade se faz presente como a escrita. A entoação ganha outro
símbolo. Podemos adotar letras diferentes, cores, usar ou emoticons (; ☺ etc) cada escolha
que fazemos está relacionada ao que queremos dizer, como queremos dizer e
principalmente o que sentimos ao dizer. E no último semestre, fui surpreendida com duas
postagens de um aluno, na sala de tutoria, que me desafiou a refletir essas relações do eu e
o outro. Vejamos as falas:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 351


1.
Cara TUTORA,78
Mais uma vez venho aqui esclarecer que após a conclusão das minhas
atividades, solicitei aos Professores da escola que realizassem minha avaliação
por meio das fichas e assinassem as mesmas, fato este que foi devidamente
concluído, logo após entreguei na Secretaria do Pólo Valdrada79, as fichas
assinadas dentro do prazo, mais precisamente no dia 04/05/2013, conforme
consta no livro de recebimento do Pólo. A Tutora Presencial M verificou e
confirmou estarem corretamente preenchidas. Então não vejo motivos para
minha nota estar baixa, e mesmo que a(s) Senhora(s) não tenham recebido as
fichas não justifica eu ser penalizado por algo que não fui o culpado, pois, neste
caso sou enquadrado pela legislação como um consumidor, sendo assim cabe a
Instituição por meio de seus representantes (tutores, secretaria) realizarem a
verificação e veracidade das informações e corrigirem com a maior brevidade
possível a minha nota, independente de encontrarem ou não as fichas, já que o
problema ocorreu dentro da instituição e não por desleixo ou descuido do
Aluno, no caso eu que sou o maior prejudicado pela referida falha
administrativa, e de forma alguma poderei ser penalizado, cabendo aos
senhores a aplicação no caso da nota máxima a minha pessoa.
2.
Senhora(s) Tutora(s), está é a cópia referente a minha última postagem na Sala
de Tutoria, já não suporto mais receber a resposta de que sou eu quem tem
que enviar as fichas por meio de documentos escananeados, visto que se eu
tivesse as fichas comigo já o teria feito, e como cumpri com minhas obrigações
de aluno, tenho a certeza que não é pedir demais que tudo seja resolvido e
minha nota continue a ser alta conforme sempre tenho primado durante todo
o curso no qual possuo um CR 8,9, com pretensões de subir o mesmo para 9,1,
e assim será impossível ,pois, entreguei tudo, perdi horas e horas de sono, dias
de trabalho, além de enfrentar um trânsito terrível e um enorme risco de vida
durante as viagens, agora vejo o fruto do meu árduo trabalho resumir-se a
uma resposta sem sentido?????
como posso enviar algo, que não se encontra comigo?????
Eu não atrasei nada, não estou pedindo favor a ninguém!
Só quero que meus direitos sejam devidamente respeitados como cidadão
brasileiro, e cumpridor de meus deveres perante a sociedade e a esta
instituição.
Aguardo ansioso a correção em caráter de URGÊNCIA da minha nota atinente a
minha AP-1.
Sem mais, Seu Aluno S.

78
Postagens na sala de tutoria de um aluno no primeiro semestre de 2013 na disciplina de Estágio
Supervisionado em Educação de Jovens e Adultos, no curso Semipresencial de Licenciatura em Pedagogia
UERJ/UAB-CEDERJ.
79
Os nomes citados nos e-mails foram substituídos por nomes fictícios para não expor os sujeitos envolvidos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 352
Durante todo semestre os alunos recebem orientação e sugestões para organização
de seus documentos, mas nas falas do aluno logo percebo que minha contribuição foi um
reforço ao modelo de EaD, sou forçada a pensar na minha atuação docente e vejo, sim, um
equívoco na formação do aluno, pois ela foi limitada à tarefas, cumprimentos de prazos e
apresentação de documentos. E, para ele, a mim cabia somente verificar as entregas e
avaliar o material enviado, e de preferência, sem demora; as respostas dadas são
interpretadas como erradas. Como chegamos até aqui? De fato, para construção de qual
educação estou contribuindo?
É interessante destacar que o texto foi escrito em fonte de tamanho 36, em preto,
negrito e o outro em vermelho. E, enquanto ele defendia seu argumento e exigia a revisão
de sua situação, ele disse: “neste caso sou enquadrado pela legislação como consumidor”.
Essas escolhas podem mostrar o posicionamento do aluno diante de sua relação professor-
tutor, logo me pergunto: quem nos ensinou que não podemos escrever em tamanho maior
que 12? E que as cores representam, sim, a mensagem? Sabemos que há regras, o aluno
sabia a quem falava e que seu texto era lido por todos os outros colegas, há intencionalidade
na cor, na fonte: elas são gestos e tons.
Analisei demoradamente os textos do aluno, avaliei minha prática, e inicialmente,
encontro uma palavra para traduzir o que estamos encarando nas relações: fluidez. Nosso
contexto atual é uma sociedade que enfrenta o capitalismo tardio, vivemos no momento
pós-estruturalista, somos levados a olhar rapidamente para trás e ver a modernidade como
um fracasso. Para Kant os indivíduos modernos se tornaram esclarecidos e autônomos, mas
perderam as referências. Nós nos distanciamos da reflexão da moral e começamos a buscar
o fim à angustia: ser livre. Nosso motor é a certeza que “eu mereço ser feliz”.
Comprometemo-nos somente com nossa felicidade e com nossa liberdade, começamos a
encarar a liberdade como o ‘tudo é permitido’. E as relações?

“Os laços inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurança digna de
amplo e contínuo investimento de tempo e esforço, e valiam o sacrifício de
interesses individuais imediatos (ou do que poderia ser visto como sendo
do interesse de um individuo), se tornam cada vez mais frágeis e
reconhecidamente temporários.” (BAUMAN, 2007, p. 9)

Acabamos nos preocupando em demasia com o que conquistamos, de forma que o


tempo se torna o inimigo a ser vencido e em que as relações se tornam condicionadas aos
seus próprios interesses. Quando vemos o tempo chromos como um inimigo a ser vencido,
nos propomos a correr, supervalorizamos os números e subestimamos as pessoas, não as
reconhecemos como o outro. É como se retirássemos as pedras, mas sem as pedras não
formamos os arcos, e logo construímos pontes frágeis e provisórias. Para mim, nós
acabamos nos perdendo.

Considerações finais

O texto se aproxima do fim, mas estamos distante de concluí-lo, pretendi neste artigo
compartilhar apenas algumas reflexões iniciais que fui convocada a fazer diante das
postagens na sala de tutoria. E meu desejo, neste momento, é finalizar com algumas
considerações que possam soar para além dessas páginas, que elas falem tão fortemente
como o texto em vermelho do meu aluno. Ele me ensinou com suas palavras, com a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 353
formatação escolhida e com o tamanho da fonte usada, elas expressaram conceitos que
talvez nem mesmo S tenha percebido, mas que me possibilitaram levantar questões
essenciais para minha prática como docente online, construíram em mim sentidos.
Percebi a fragilidade das relações que podemos construir no ambiente virtual de
aprendizagem e fui desafiada a refletir o caminho que tenho trilhado na EaD, retornando a
algumas leituras e ouvindo o conselho de Sir Francis Bacon: “não leia com o intuito de
contradizer ou refutar, nem para acreditar ou concordar, tampouco para ter o que
conversar, mas para refletir e avaliar”.
Trabalhar com formação humana é trabalhar com relações e seus contextos, analisar
suas construções e observá-las criticamente, devemos buscar compreender a formação
como "um fenômeno que se configura numa experiência profunda e ampliada do Ser
humano, que aprende interativamente, de forma significativa, imerso numa cultura, numa
sociedade, através das suas diversas e intencionadas mediações" (MACEDO, 2010, p. 21).
Entendo que compreender é “uma ação que provoca/produz o movimento de
mudança no sujeito” (opt. cit), dessa forma percebo que o desafio do docente é instigar o
aluno a ver que a satisfação está no aprender o novo e o velho, fazendo-os enxergar que o
processo de construção do conhecimento é inesgotável. Uma estudante de Medicina da
Universidade Federal Fluminense me contou que quando estava escolhendo sua carreira
temia por sua escolha, pois, para ela, optar por uma carreira significava tomar um único
caminho no conhecimento e deixar para trás a geografia, história, matemática etc, e isso a
deixava apreensiva porque desejava aprender o máximo de todas as áreas: "há sempre algo
novo para conhecer", ela dizia. Agora, cursando a faculdade de medicina, está descobrindo
muitos outros conhecimentos, e já nem se lembra das disciplinas deixadas na escola. Essa
jovem de 20 anos compreendeu, de uma forma simples, e ainda em tempo, o valor do
conhecimento por si mesmo.
Ao docente online cabe, desafiadoramente, ser o docente que pensa formação para
além do conteúdo, ainda que o foco atual esteja em competências e habilidades. Vimos que
o ciberespaço está posto e a cibercultura está se construindo nas atuações e intervenções
neste espaçotempo, não podemos ignorar que vivemos a virtualização da vida, mas devemos
com urgência problematizar o que nos parece familiar. De imediato, penso se é possível
realmente construir uma EaD resistindo às exigências e aos discursos pedagógicos
influenciados pela corrida mercadológica, mas ainda que tema por não influenciar o
suficiente, devo pensar que a resistência começa com a ação de compreender as práticas,
rever as atuações no ambiente virtual de aprendizagem e estar atenta aos processos
formativos que acontecem nas minhas relações cotidianas.
As mensagens enviadas pelo meu aluno não são exceções, o discurso de outros
alunos poderiam ser citados nas discussões que iniciei, mas S, em suas duas postagens,
possibilitou iniciar a análise das relações construídas com a formação e com o docente
envolvido. É urgente revermos nossas relações com o outro e sua parte em nossa
construção, a fluidez das nossas relações são, na verdade, efeito da liquidez de nossas
experiências na sociedade atual, mas não somos vítimas desse contexto, somos atores no
espaço e precisamos compreender que “produzimos a sociedade que nos produz. Ao mesmo
tempo, não devemos esquecer que somos não só uma pequena parte de um todo, o todo
social, mas que esse todo está no interior de nós próprios” (MORIN, 1999, p.23), essa é uma
compreensão que se faz necessária para revermos a trajetória que estamos percorrendo e
se desejamos continuar nesse percurso... Há caminhos que não têm volta. Ítalo Calvino
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 354
(1990), em outro momento, nos adverte das partidas sem retorno por meio da narrativa de
Kublai Khan e Marco Polo:

“O grande Khan sonhou com uma cidade – descreveu-a para Marco Polo:
- O porto é aberto na parte setentrional, à sombra. O cais é alto e a água
escura bate contra os muros, que apresentam escadas de pedra
escorregadias por causa das algas. Barcos untados de piche aguardam no
atracadouro os parentes que retardam a partida despedindo-se dos
familiares. As despedidas se dão em silêncio mas com lágrimas.
(...) Ponha-se em viagem, explore todas as costas e procure essa cidade –
diz o Khan para Marco. – Depois volte para me dizer se o meu sonho
corresponde à realidade.
- Perdão, meu senhor: sem dúvida cedo ou tarde embarcarei nesse molhe –
diz Marco -, mas não voltarei para referi-lo. A cidade existe e possui um
segredo muito simples: só conhece partidas e não retornos. (opt.cit., p. 55)
(grifos meus)

Precisamos despertar para a realidade de que, em grande parte do tempo, nossas


ações como discentes influenciarão nossa prática pedagógica. Nossas intervenções e
mediações são as pedras por pedras nas construções das pontes do conhecimento, e essas
experiências podem direcionar o tratamento que oferecemos as relações que travamos
durante nossa jornada na educação, são vivências que nos dão olhos para visão de uma
cidade que só conhece partidas e não retornos.

Referências
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Musa Editora, 2001.
BAUMAN, Zigmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BLOOM, Harold. Como e Por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
KEEN, Andrew. #vertigemdigital – por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e
desorientando. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
BAKHTIN, M. & VOLOSHINOV, V. N. In: _____. Freudianism. A marxist critique. New York
Academic Press, 1976. Tradução de Cristóvão Tezza para fins didáticos (texto digitalizado)
CALVINO, Ítalo. Palomar. São Paulo: Companhia de Letras, 1994.
______________. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia de Letras, 1990.
DELEUZE, Gilles&PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996
MACEDO, Roberto Sidnei. Compreender/mediar a formação: o fundante da educação.
Brasilia: Liber Livro Editora, 2010.
MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. IN: MARTINS, Francisco
Menezes; SILVA, Juremir Machado da. (ORGs.) Para navegar no século XXI: tecnologias do
imaginário e cibercultura. Porto Alegre: Sulina/EDIPUCRS, 1999.
MEIRELES, Cecília. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
NERUDA, Pablo. Confesso que Vivi – Memórias. São Paulo: Círculo do Livro.
NÓVOA, António. Prefácio. In.: JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação.
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RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo
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Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qH4GAXXH29s. Último acesso em 17 de
janeiro de 2014.
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Paullus, 2004.
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VYGOTSKY, Lev. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
PONDÉ, Luiz Felipe. Zigmunt Bauman e a Pós-Modernidade. Disponível em:
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 356


História de vida, formação docente e emancipação humana

Maria Aparecida da Silva Andrade


UNEB/PPGEduC

A comunicação apresenta uma trajetória de vida e formação marcada pelas dificuldades e limitações que
enfrenta uma estudante rural na infância e no acesso à universidade. A escrita deste texto reforça o
posicionamento de que o pesquisador não está fora da situação pesquisada, e que os momentos vivenciados
são refletidos a todo momento em sua prática profissional e pessoal. Aqui, busco escrever a minha (auto)
biografia, minhas memórias que me constituíram no que sou, observando a minha inserção nos contextos e
lugares os quais fiz parte, buscando compreender o processo de formação dos saberes que hoje utilizo para
todas as instâncias da minha vida, aqui também destaco o meu posicionamento político-epistemológico com
relação as questões ligadas a educação e sociedade na pós-modernidade construídos por meio das
experiências obtidas durante a vivência acadêmica. A escrita que apresento compreende alguns marcos
referenciais que constituem minha história de vida e a influencia destes momentos na minha constituição
enquanto professora-pesquisadora. As marcas da infância na escola rural e a busca pelo sonho prevalecem na
minha identidade onde existe um sinal do ser professor-pesquisador preocupado com as questões que
envolvem sociedade, ambiente e educação. A entrada na universidade foi marcada pelas dificuldades teóricas
de quem passa pela vida inteira em uma escola pública e pela dificuldade de locomoção vivida por quem mora
na zona rural. Ao ingressar na universidade nos últimos três anos da graduação foi selecionada para fazer parte
do PET Conexões de Saberes Socioambientais, o qual foi um divisor de águas em minha vida como um todo,
nele aprendi a ser gente a ser humana e profissional me descobrindo tal como hoje me constituo apaixonada
pelo poder da educação.
Palavras-chave: Histórias de vida; Formação docente; Narrativas.

“Mãe obrigada por me encontrar no caminho da escola, dividir a estrada


comigo, seguir teus passos, seu olhar de pena me deu ainda mais força”.
[...] O caminho está lá, mas verdadeiramente só existe quando o
percorremos e só o percorremos quando o vemos e o percebemos dentro
de nós (Rubem Alves,
2001, p. 10).

Introdução

A escrita deste texto reforça o posicionamento de que o pesquisador não está fora da
situação pesquisada, e que os momentos vivenciados são refletidos a todo momento em sua
prática profissional e pessoal. Aqui, busco escrever a minha (auto) biografia, minhas
memórias que me constituíram no que sou, observando a minha inserção nos contextos e
lugares os quais fiz parte, buscando compreender o processo de formação dos saberes que
hoje utilizo para todas as instâncias da minha vida, nesse texto também destaco o meu
posicionamento político-epistemológico com relação as questões ligadas a educação e
sociedade. Assumo então uma postura crítica e cidadã com relação à sociedade articulando
dimensões outras do saber o que é fundamental para a compreensão holística do mundo em
vivo. A escrita que apresento a seguir compreende alguns marcos referenciais que
constituem minha história de vida, vivências e a influencia disto na minha constituição
enquanto professora-pesquisadora, pois assim como diria Edgar Morin “minha vida
intelectual é inseparável de minha vida [...] Não sou daqueles que têm uma careira, mas dos
que têm uma vida”. Nesse sentido, a pesquisa com histórias de vida inscreve-se neste

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 357


espaço onde o ator parte da experiência de si, questiona os sentidos de suas vivências e
aprendizagens (SOUZA, 2006).
Histórias de vida refletem implicações na formação do educador, uma vez que
lembrar é lidar com tempos, espaços, vivências e experiências. Nesse sentido a partir do
momento em que rememoro realizo um exercício de observação das implicações dos
espaços que vivi e o reflexo destas na minha formação docente e humana. Assim, para
Nóvoa e Finger (1988, p. 116),

as histórias de vida e o método (auto) biográfico integram-se no movimento


atual que procura repensar as questões da formação, acentuando a idéia que
‘ninguém forma ninguém’ e que “a formação é inevitavelmente um trabalho de
reflexão sobre os percursos de vida”.

A infância na escola rural e a busca pelo sonho

Filha de pai e mãe analfabetos que sempre sobreviveram da agricultura familiar não
tive uma educação privilegiada comecei a estudar depois dos cinco anos de idade, e andava
cerca de quatro kilômetros até chegar à escola Manoel da Nóbrega, na comunidade vizinha
era uma longa caminhada todos os dias e em muitas delas a minha mãe me acompanhava na
volta da escola. Preocupada com o atraso no horário de chegada, ela sempre vinha com algo
para aliviar a fome. O apoio familiar é sempre essencial, desde as palavras de incentivo aos
estudos aos cuidados relacionados ao fardamento, a merenda, ao material escolar. Tudo isso
era conseguido por meio da criação de animais de pequeno porte, preparação de azeite de
dendê e da colheita de castanhas de caju. Participar destas atividades juntamente com meus
pais e também a caminhada que eu fazia todos os dias, seja com sol ou chuva, todo este
esforço me mostrava a escola como algo digno de privilégio e por isso, eu valorizava muito e
apesar das dificuldades queria retornar a cada dia e viver aquele. Foi nesta escola que
aprendi a escrever as primeiras palavras, esta fase foi marcada por apreensões e adaptação
sentimentos comuns desta fase, iniciando uma relação com novos espaços, regras e grupos
sociais. Quando tive condições físicas de ir até esta escola me deparei com a distorção idade
série a qual me deixava em desvantagem com relação aos meus colegas, no entanto com
esforço consegui avançar dois anos em apenas um e então desfazer em parte esta distorção.
Nas escolas que freqüentei lembro-me das formas de organização da sala de aula,
das punições com castigos e as famosas réguas atiradas no aluno, além disso, ajudávamos a
professora a lavar as louças usadas na hora do lanche, o que exigia de nós a compreensão
desta necessidade para o funcionamento da escola além da responsabilidade de todos os
dias se comprometer com esta tarefa. Nesta época eu já brincava de ser professora usando
as minhas sobrinhas como cobaias, passava atividades, dava aulas, fazia chamada, era a
minha brincadeira preferida.
Os rituais religiosos também eram muito intensos na minha infância em casa e se
fortificaram em outra escola onde estudei, na comunidade do Terrão, onde participava de
apresentações na igreja, catequese e demais atividades realizadas em datas religiosas,
adorava fazer aquilo, pois aprendia determinados valores como cooperação, respeito,
tolerância que são essenciais para a vida em sociedade e que me ajudaram a manter laços
de convívio e de aprendizado. No entanto este tipo de adoração religiosa foi sendo
substituído após o ingresso na universidade por outros tipos de cultuação religiosa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 358
Após ter completado meu ciclo de estudos na zona rural, na quinta série fui estudar
no ginásio como era chamada por minha mãe a escola na zona urbana, onde aprendi muito e
fui também descobrindo as minhas habilidades, me destacava nas apresentações de
seminário de história e nas avaliações das áreas de humanas e biológicas.

Entrada na universidade: a opção pela licenciatura em biologia

Após sair do ensino médio cheia de esperanças e muito focada no que eu queria me
matriculei com a ajuda de umas das professoras que tive no ensino médio em um cursinho
pré-vestibular. Para conseguir freqüentar o cursinho que era localizado em outra cidade eu
tinha que pegar carona na estrada todos os dias para conseguir, consegui ao fim do ano a
aprovação no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFRB. Antes de escolher esta
opção tinha uma aproximação com o curso de história, gostava de tentar entender o
passado para poder compreender o futuro, mas ainda não sabia ao certo qual profissão
seguir.
Após um período de adaptação no qual pude começar a descobrir o que era aquele
mundo novo, no primeiro ano do curso tive a experiência de realizar a minha primeira
pesquisa empírica trabalho que foi realizado como pré-requisito para avaliação de uma
disciplina, neste projeto buscava identificar os conhecimentos de adolescentes sobre a
anatomia e fisiologia do sistema genital, no segundo ano do curso, comecei a realizar um
projeto com um professor da disciplina de Anatomia Humana da universidade, o projeto
buscava descobrir os níveis de sobrepeso e obesidade em crianças de escolas públicas e
privadas de Cruz das Almas.
Nestes momentos iniciava formalmente o meu primeiro trabalho enquanto
pesquisadora com muitas dificuldades mas, a vontade e o apoio e confiança dos
orientadores foram essenciais.
Fui monitora da disciplina de Anatomia Humana da universidade, onde aprendi muito
sobre o assunto, por um tempo queria seguir a minha carreira como professora
especializada nesta área, portanto não via a possibilidade de me envolver desta forma com a
educação, por isso os projetos que realizara até agora eram sempre voltados a aspectos
biológicos. Nesse sentido, a escolha do curso se deu pensando nos conhecimentos técnicos e
puramente biológicos que este poderia oferecer, apesar de apresentar durante as fases da
vida uma aproximação com o ser professora.
Continuando o curso, já me envolvia em grupos de pesquisa, realização de cursos e
palestras bem como atividades complementares como organização e participação de
eventos, realizei estágios na área também da educação, e já no segundo ano curso, ingressei
no Programa de Educação Tutorial.

Ingresso no pet conexões de saberes socioambientais e a inspiração “freireana”

O ingresso no Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes Socioambientais


(PET), considero como um divisor de águas em minha vida como um todo, nele aprendi a ser
cidadã, humana e profissional me descobrindo tal como hoje me constituo, apaixonada pelo
poder da educação. O PET Conexões de Saberes Socioambientais propõe o diálogo dos
estudantes e professores da UFRB com as comunidades rurais, possibilitando a troca mútua
de saberes e soluções aos problemas socioambientais, por meio de atividades nas quais os
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 359
bolsistas estejam em contato direto com as comunidades rurais do entorno da UFRB,
vivenciando seu cotidiano, suas angústias e alegrias para juntos refletirem sobre os
problemas que comprometem a qualidade de vida.
Assim, a princípio o ingresso no programa contribuiu para a superação do conceito
biológico de meio ambiente bem como descobrir o papel da educação na sociedade além do
meu papel enquanto cidadã, valores desenvolvidos por meio das atividades realizadas pelo
grupo que permitia o desenvolvimento da sensibilidade necessária para me permitir a
vizualização de tais horizontes através de discussões sobre relações políticas econômicas,
sociais e culturais entre as comunidades e a natureza com o objetivo de promover a
superação dos mecanismos de dominação e controle que impede a participação livre e
democrática de todos (TEIXEIRA, 2010).
Durante os meus três anos enquanto bolsista PET, realizei uma série de atividades, sendo
coordenadora pedagógica pude estar a frente dos seguintes projetos: Rodas de Conversa:
Paulo Freire e os Saberes Socioambientais, Projeto “Juventude rural conectada”, Projeto
“Cinema, escola e saberes socioambientais”, Projeto “Etnoecologia na comunidade rural de
Laranjeiras, Pré-vestibular universitário.
É importante salientar que cada uma destas atividades foram capazes de deixar em mim
legados que me constituem hoje como professora-pesquisadora e para além disso, me
constituem como pessoa humana. Nesse sentido, o contato com outras leituras de mundo
me mostraram que existe uma outra forma de compreender e de ser e de agir, me
permitindo compreender para além daquilo que eu vejo e intervir nesta realidade com
responsabilidade.

Rodas de conversa: paulo freire e os saberes socioambientais

As Rodas de Conversa: Paulo Freire e os Saberes Socioambientais tem o objetivo de


oportunizar o debate sobre os aspectos políticos e sociais apresentados por Freire bem
como sua aplicação à práticas socioambientais. Neste espaço pude dialogar com os demais
componentes nos encontros, construindo uma troca de saberes e conhecimentos à luz deste
educador, que em seus ensinamentos nos faz refletir sobre a função que deve ter a
extensão, nos ajudando a construir um espírito crítico, o qual tem se revelado um espaço
importante para discutir a EA crítica e afirmá-la enquanto escolha teórico-metodológica
orientadora das minhas ações.
A educação ambiental crítica é, sobretudo, uma educação progressista de raiz
marxista com base teórico-metodológica coletivista. Seu posicionamento é oposto àquele
defendido pela educação liberal, pautada no liberalismo metodológico; nesta última, está
fundamentada a educação ambiental naturalista. Como Licenciada, vejo em Paulo Freire
uma referência, o qual posso basear os meus métodos didáticos e a minha conduta como
futura professora, onde devo trabalhar os aspectos de Ciências, Biologia associada a
aspectos do cotidiano dos alunos respeitando a diversidade cultural existente por onde
passo.
Graças à inspiração “Freiriana”, hoje vejo os alunos de forma diferente e a sala de
aula como um laboratório, onde posso ver o que está certo ou errado, onde arrisco e assim
vou construindo a minha prática. As leituras sobre Freire abriram meus horizontes para
entender qual o meu papel enquanto cidadã e professora, hoje me assumo como tal e tenho
a consciência do poder que tenho enquanto educador, as idéias de Paulo Freire passaram a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 360
nortear vários espaços da minha vida trazendo mais sentido para as minhas ações como
professora como membro de Programa de Educação Tutorial Conexão de Saberes
Socioambientais e principalmente como pessoa, hoje busco lapidar os meus sentidos para
que eu possa ir para a sala de aula levar aos alunos o conhecimento articulado pra vida.
Assim, a participação nesse grupo de estudos me permitiu lançar um olhar muito
mais crítico sobre a sociedade na qual vivo, a cada participação, uma descoberta e também
uma nova postura frente às situações. Neste espaço pude dialogar com os demais
componentes construindo uma troca de saberes e conhecimentos à luz deste educador, que
em seus ensinamentos nos faz refletir sobre a função que deve ter a extensão, nos ajudando
a cumprir o nosso papel como ser social. Posso levar experiências, conhecimento, muito
conhecimento, lição de vida, exemplos de vida, estas coisas vão ficar sempre ali, latentes na
memória, e reaparecem quando procuro, assim, posso me espelhar, e antes de praticar, ver
o que pode dar certo na vida, relacionamentos, formas de interpretar e ver o mundo e as
pessoas. E dessa forma a Roda contribui para a minha vida pessoal, me dando oportunidade
de ser uma pessoa melhor, mais informada, antenada, livre e humana.

Projeto juventude rural conectada- “Cine roça”

O contato com a comunidade onde desenvolvi atividades de extensão juntamente


com os demais bolsistas me permitiu um amadurecimento epistemológico à medida que
pude ver na simplicidade do agricultor os conhecimentos produzidos no cotidiano, os quais
são responsáveis pela produção de alimentos dentre outras inúmeras funções que são
portanto essenciais, além de promover o resgate do conhecimento tradicional, para que em
interação com o conhecimento científico, possam contribuir com o processo de gestão dos
recursos naturais. Do ponto de vista ontológico passei a me orientar de forma mais crítica e
responsável para o meu papel diante de problemas socioambientais, gerando portanto, uma
nova postura frente às coisas no mundo.Nesse sentido, a noção de extensão que desenvolvi
não está pautada na mera transmissão de conhecimentos, mas na troca mútua de saberes
que foram construídos de diferentes formas e que quando juntos não existe distinção. Uma
vez que “Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a “sede do
saber”, até a “sede da ignorância” para “salvar”, com este saber, os que habitam nesta”
(FREIRE, 1979 p. 25). Dessa forma, o Projeto Juventude Rural Conectada, por meio da
realização dos cines-fórum, me permitiu formar uma opinião crítica sobre as mais variadas
temáticas, servindo de ponto de partida para que eu começasse a construir e entender a
realidade que me cerca, por meio de experiências participativas. Assim, “a educação como
prática da liberdade, ao contrário daquela que é a prática da dominação, implica a negação
do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também a negação do
mundo como uma realidade ausente dos homens" (Freire, p. 86, 2009).
Ao projeto juventude rural conectada está incluso o pré-enem, atividade na qual pude
estar coordenando, esta iniciativa que surgiu a partir do desejo dos alunos para ingressarem
na universidade. Eram trabalhadas duas disciplinas por semana, e durante o período em que
o projeto esteve funcionando contou com a colaboração de outros estudantes da
universidade além dos bolsistas do PET. O maior benefício para mim foi o contato com o
compromisso docente, acredito que com esta iniciativa pude saber um pouco mais a
importância dessa profissão, suas nuances, podendo criar uma postura crítica acerca da
desvalorização que sofre a profissão, o que pode contribuir com tomada de posturas que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 361
sejam contrarias a esta desvalorização, além de conhecer a realidade que vive a educação do
campo, e um pouco da educação pública brasileira, a qual é marginalizada, uma vez que,
estão em uma estrutura excludente.

Etnoecologia na comunidade laranjeiras

O Projeto Etnoecologia na comunidade Laranjeiras teve como objetivo compreender


as relações socioambientais travadas na comunidade de forma a oferecer subsídio para a
elaboração de ações de intervenções pela própria comunidade e proporcionar aos bolsistas a
oportunidade de trocar conhecimentos com as comunidades e apreender os principais
problemas que permeiam seu cotidiano. Envolvemos bolsistas e um estudante da comunidade
em aspectos ligados ás seguintes temáticas da Etnoecologia: Conexão Homem/vegetal,
Conexão homem/animal, Conexão homem/homem, Territorialidade, Etnoconservação,
impactos ambientais, dinâmica cultural, relações de gêneros, de família e de trabalho,
capacidade de suporte. Alguns destes estudos foram acompanhados por jovens da
comunidade e estudantes voluntários.
A partir do diagnóstico socioeconômico percebi que havia problemas que afligiam a
comunidade, uma delas eram as formas de utilização e a percepção de risco dos moradores
da comunidade sobre os agrotóxicos, devido a implantação de uma fábrica multinacional de
plantação de fumo, a qual utiliza agrotóxicos em exceção nas plantações comprometendo a
saúde da população e o meio ambiente. Compreender a temática permitiu a comunidade não
apenas aspectos ligados à saúde, mas também as relações políticas e sociais que
condicionavam o problema. Os resultados me levaram a considerar ainda que a percepção de
risco também é influenciada pelas condições sociais e em que se encontra os trabalhadores
rurais no sistema atual, comandado pelo mercado. Diante da necessidade de obtenção de
renda, seja pelo trato na propriedade da família, seja no emprego no agronegócio, o
trabalhador rural se depara diante da lógica de mercado: produzir mais em menor tempo com
menor custo.
Realizei em uma das fases do projeto oficinas para toda a comunidade incluindo
crianças e jovens alertando quanto a estes riscos de saúde, políticos e sociais, verificando a
ocorrência de doenças determinadas pelo uso destes produtos nos grupos que vivem em
contato direto e indireto os agrotóxicos buscando também entender a partir de conversas
com os agricultores, qual e como o discurso legitima sua massiva utilização.
No começo deste ano, realizei uma oficina na comunidade onde executo um projeto
sobre agrotóxicos, a qual o objetivo consistiu em mostrar as crianças e professores da escola
municipal os perigos causados pelo uso dos agrotóxicos à saúde humana e ao meio
ambiente. Despertando o espírito crítico para que os mesmos compreendessem de forma
mais ampla os aspectos políticos e sociais envolvidos na problemática, oferecendo uma visão
holística do problema, possibilitando compreender que o uso dos agrotóxicos no Brasil é
dado por influencias políticos econômicos que trazem agravos sociais e de saúde
imensuráveis e que o uso deste segue a lógica do capitalismo, sistema subjacente ao
agronegócio. No decorrer da oficina percebemos a participação de todos que ali estavam as
crianças, professores e funcionários, as atividades realizadas possibilitaram a construção nos
estudantes de uma consciência crítica, integrada e conscientizadora em torno da
problemática, rompendo com a imensa barreira existente entre uma educação tradicional e
uma educação progressista.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 362
Assim, foi possível trabalhar de forma bem simples mais significativa, ações dos
agrotóxicos a saúde humana e os aspectos sociais e políticos relacionados ao uso destes
produtos, levando os estudantes a refletirem sobre a problemática, proporcionando uma
ampliação de visão sobre o que acontece ao seu redor, favorecendo a construção de uma
visão muito mais crítica e contextualizada rompendo com a visão cartesiana de compreender
e analisar a realidade, levando os estudantes a refletirem sobre a problemática,
proporcionando uma ampliação de visão sobre o que acontece ao seu redor, favorecendo a
construção de uma visão muito mais crítica e contextualizada, rompendo com o paradigma
dominante da ciência moderna. Neste panorama, pontuamos a importância desta atividade
educativa, no entanto se faz necessário a implementação de políticas públicas que valorize o
trabalhador rural, combatendo um sistema que por meio de práticas comunicativas que
leva-o a crer nesta ilusão e, reforçado pelas falas dos profissionais que os visitam em campo,
ajuda na formação do círculo vicioso que vive estes agricultores. Tal situação, extremamente
confortável para a indústria/comércio, é brutalmente prejudicial para o trabalhador, que vê
suas crenças e suas práticas de trabalho destroçadas por um saber etnocêntrico, protegido
pelo sistema capitalista. As conseqüências dessa situação, conforme já se pode notar na
comunidade de Laranjeiras, tem reflexos imediatos na qualidade de vida dos trabalhadores e
trabalhadoras do campo, refletindo em sua saúde e na alteração das condições ambientais.
Por meio deste trabalho pude reforçar ainda mais a necessidade que existia em mim
de poder mudar algo naquela comunidade, tendo em vista a importância da discussão do
tema para a saúde da população em geral. Posso dizer que os objetivos foram alcançados,
pois não tinha preço ver aquelas crianças se interessarem pela temática, questionarem com
as reflexões apresentadas, poder apresentar aos alunos uma realidade que muitas vezes fica
escondida, disfarçada, fazê-los entender a dinâmica política que orientam muitas práticas
que por sua vez influenciam na vida das pessoas é muito prazeroso, e acredito ser também o
meu papel enquanto docente, como já dizia Freire, educar para a vida, impregnar de sentido
o conhecimento apresentado, e é seguindo as palavras deste educador que tento construir
minha práxis, a qual acredito que deve estar sempre voltada para um ensino crítico,
transformador e significativo.

O estágio supervisionado: cenário de possibilidades e autoafirmação docente

Já no último período da faculdade, quando eu estava agora muito mais inclinada para
as questões sociais do que para a abordagem conteudista da anatomia humana, devido às
ações executadas no PET as quais me permitiram enxergar verdadeiramente de dentro de
mim a vida e a por em prática os pressupostos ontológicos que eu ainda não fazia como guia
nas minhas ações como professora, realizei o estágio supervisionado em uma escola do
ensino médio e fui convidada a fazer outros trabalhos de formação complementar com
outras turmas. Dessa forma, a professora cooperadora da escola, compartilhou comigo a sua
angústia e vontade de mudar um pouco a rotina das aulas com conteúdos que fossem
potencialmente significativos para os alunos, e assim sugeriu um tema, que para ela é
interessante e que seria muito bom que alguém pudesse trabalhar na escola, os agrotóxicos.
Vendo a importância do tema na atualidade e podendo fazer desta atividade um a excelente
oportunidade de ampliar meus conhecimentos, uma vez que, executo um projeto sobre a
utilização nociva e a percepção de risco dos agrotóxicos pelos trabalhadores rurais da
comunidade de Laranjeiras na comunidade de Muritiba, Bahia. Realizei quatro oficinas, cada
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 363
uma com duração de três horas, nos cursos técnicos de Agroecologia e Agropecuária.
Encarei o desafio de realizar as oficinas nos cursos técnicos e posso dizer que esta
experiência trouxe muitos benefícios para a minha prática docente.
O objetivo que tracei para as oficinas era de despertar o espírito crítico dos alunos
para entender as entrelinhas existentes na problemática, oferecendo uma visão holística do
problema, possibilitando compreender que o uso dos agrotóxicos no Brasil é dado por
influencias políticas e econômicos que trazem agravos sociais e de saúde imensuráveis.
Assim, delimitei o seguinte tema: O uso de agrotóxicos no Brasil: um problema político,
ambiental, social e de saúde. Entendendo que o ensino de ciências deve perpassar aspectos
puramente conceituais, abrangendo também aspectos relacionados à filosofia, à história e à
sociologia das ciências, como nos orientam Santos e Mortimer (2002), contribuindo para a
difusão de uma visão ampla e livre de paradigmas autoritários e para a construção de uma
visão crítica da ciência capaz de romper com mitos da visão reducionista sobre a mesma.
Esta talvez tenha sido a experiência mais prazerosa que já realizei, poder apresentar aos
alunos uma realidade que muitas vezes fica escondida, disfarçada, fazê-los entender a
dinâmica política que orientam muitas práticas que por sua vez influenciam o cotidiano das
pessoas. A partir desse momento passei a por em prática as habilidades e sentidos
desenvolvidos por meio das experiências construídas até aqui, passei então a me afirmar
enquanto educadora pondo em prática ações e visões condizentes com o papel que tenho
na sociedade. Dessa forma, acredito ser este o meu papel enquanto docente, educar para a
vida, impregnar de sentido o conhecimento apresentado, e é seguindo as palavras deste
educador que tento construir minha práxis, na qual acredito que deve estar sempre voltada
para um ensino crítico, transformador e científico.
O estágio supervisionado então se constituiu das palestras citadas acima e das aulas
ministradas, e foi neste momento que realmente conheci a realidade escolar.
A cada dia um novo desafio, o cotidiano escolar com as suas características se faz um
ambiente de difícil dominação e de dimensões teóricas imensas. As oficinas me
acrescentaram muito com profissional. Estar na escola todos os dias quase foi pra mim um
prazer e me mostrou também que é necessário renovar a cada dia, realizando uma educação
pautada em valores para além do trivial, mas eu vi durante esse tempo que é possível sim,
fazer uma educação que seja mesmo diferente e que traga para os alunos uma maior
autonomia do ambiente escolar e consequentemente na vida em sociedade. O contato com
o ambiente escolar possibilitou uma (re) afirmação da minha profissão docente, tendo em
vista a minha inclinação até então para as ciências médicas, agora acredito na educação,
hoje ela move meus pensamentos do passado, dá sentido ao meu presente e me permite
projetar o futuro.

O ingresso no programa de pós-graduação em ensino, filosofia e história das ciências

Desde os primeiros semestres da graduação e a partir do momento que passei a


conhecer a pesquisa, surgiu o interesse em ser pesquisadora, fui desenvolvendo esta prática
e logo tracei o acesso ao mestrado como sendo o primeiro objetivo a ser alcançado ao
término da graduação, e ao pensar na minha pesquisa de mestrado não poderia deixar de
questionar a existência de um problema de total relevância para a sociedade tendo em vista
os seus aspectos políticos, ambientais, sociais e de saúde.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 364


Dessa forma, o interesse pelo tema surgiu há dois anos quando realizei um projeto de
pesquisa em uma comunidade rural do Recôncavo da Bahia, em que o contato dos
agricultores com os agrotóxicos era muito intenso, involuntariamente devido a instalação de
uma fábrica de produção de fumo para exportação e voluntariamente devido ao uso em
larga escala na agricultura familiar. Um tempo depois tive a oportunidade de aplicar uma
seqüência didática sobre o uso dos agrotóxicos e suas consequências para o corpo humano,
em atividade desenvolvida como pesquisa de conclusão de curso, utilizando o mapeamento
conceitual como ferramenta que pode contribuir com o ensino e a aprendizagem no ensino
de ciências. Percebendo também a necessidade que existe de trazer para a sala de aula de
ciências abordagens que se preocupe com aspectos sociais e científicos para que os alunos
tenham acesso a informações necessárias à sua inserção tanto no mercado de trabalho
quanto para a vida em sociedade, sem esquecer da necessidade que existe de preparar os
professores para este tipo de abordagem. Dessa forma é que eu pretendo construir com
estes uma sequência didática que possa provocar nos alunos sentidos científicos e sociais
capazes de torná-los cidadãos preocupados com o ambiente social e natural que os rodeia.
Assim, o tema sempre me despertou encantamentos os quais se juntaram com a
indignação de ver o ensino de ciências muitas vezes sendo ensinado de forma ingênua e
fragmentada, quando era necessário uma abordagem muito mais ampla e crítica. Por isso é
que busco por meio do estudo mais detalhado desta problemática observar as abordagens
de ensino sobre agrotóxicos sob a perspectiva do movimento CTS\CTSA em um curso técnico
de agroecologia e de outros cursos do Centro Profissionalizante do Recôncavo I. Neste
panorama, vale ressaltar que o objetivo central do movimento CTSA acrescenta aos
propósitos de CTS a ênfase em questões ambientais, visando a promoção da educação
ambiental crítica, a qual tem como propósito a problematização de temas sociais, de modo a
assegurar um comprometimento social dos educandos (SANTOS 2007).Nesta
perspectiva,percebo a necessidade de atrelar do ensino de ciências valores pautados na
noção de sujeitos fragmentados, capazes, superando a idéia fixa e iluminista de identidade
(HALL,2000), construindo uma concepção de ciência capaz de promover um aprendizado
mais amplo e integrado, desenvolvendo aspectos políticos e sociais necessários à vida na
sociedade atual.

Algumas considerações finais

As dificuldades da vida na roça foram essenciais para que eu adquirisse garra e


determinação para superar os desafios que me foram postos para que eu chegasse até aqui.
A Identidade de professora- pesquisadora foi construída no contato com a universidade, mas
especificamente com ingresso no Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes
Socioambientais (PET), o que me permitiu a aproximação com a educação para que mais
tarde eu pudesse me interessar a esta temática, me tornando muito mais sensível às causas
que compreendiam assuntos relacionados à Ciência, Sociedade, Ambiente e educação. Por
meio do contato com a comunidade e com os ideais de Paulo Freire, percebi as relações
estreitas existentes entre a formação do educador em ciências e as questões relacionadas a
antropologia, sociologia e filosofia da educação, despertando para um papel até então
desconhecido, devido a consequências da falta de uma formação que me permitisse
desenvolver como estudante de ciências biológicas valores éticos, morais, políticos e de
cidadania, é por isso que afirmo que a formação humana é essencial para qualquer
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 365
profissional na atualidade, chega de valores dualistas, precisamos reconhecer a diferença e
respeitá-la, precisamos formar professores de Biologia que compreendam os conteúdos
conceituais mas que também dominem aspectos atitudinais e procedimentais promovendo
uma formação para além de princípios puramente pedagógicos, mas que foquem em uma
formação que permita compreender aspectos da diversidade cultural, da política e da
sociedade, pois só assim podermos construir uma geração de professores e alunos capazes
de atuar de forma critica e participativa na sociedade em que vivem. Dessa forma, o contato
com as diferentes formas de compreender e de ver o mundo me possibilitou a construção de
uma identidade cidadã e responsável, despertando para a necessidade de conhecer ainda
mais o que está por trás daquilo que vemos por meio da pesquisa e tentar realizar um
ensino de ciências que permita problematizar a ingenuidade existente nas práticas triviais
que estão presentes na nossa sociedade.
Assim sendo, eu acredito que estas vivências, estas histórias de vida são constitutivas de
quem eu sou, do que pretendo ser e do saber que pretendo construir, pautado na formação
critica e na pluralidade cultural voltados para uma formação puramente humana de valores
éticos e morais.

REFERÊNCIAS
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educação. Salvador: EDUFBA, 2000.
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ALVES, Rubem. A escola que sonhei sem imaginar que pudesse existir. Campinas: Papirus,
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 366


Método autobiográfico e formação de docentes

Marinalva Batista dos Santos Neves


SEC-BA/IAT/NTE
nalvabt@hotmail.com
Nívea Maria Fraga Rocha
FVC
niveafragarocha@gmail.com

Incluir a autobiografia na perspectiva de formação de professores como proponente de modificações nos


processos de ensino-aprendizagem na educação básica é um grande desafio. Este artigo tem como objetivo
geral discutir a inserção da Teoria da Informação e Comunicação, na Educação Básica e às necessidades de
formação continuada de docentes sob a perspectiva da autobiografia. Como objetivos específicos, pretende-se:
refletir sobre a educação básica na contemporaneidade frente à globalização, assim como contextualizar a
formação dos professores na perspectiva autobiográfica. A opção metodológica foi a da pesquisa bibliográfica e
documental. Constata-se que a globalização e a inserção das TIC na contemporaneidade exigem principalmente
maior formação continuada dos docentes para que possam acompanhar os avanços e desenvolverem novas
formas e processos educativos. Para responder aos desafios atuais é preciso que os sujeitos da educação,
professor e alunos, sejam protagonistas de uma nova história, a partir de suas próprias experiências no
contexto político-social. Conclui-se que é imprescindível atualização docente para inclusão das novas
Tecnologias da Informação e Comunicação em sala de aula, a fim de fortalecer os processos de construção de
conhecimentos por meio de ensino-aprendizagem significativa, numa perspectiva emancipadora através das
narrativas autobiográficas.
Palavras-chave: Pesquisa autobiográfica; Formação de Professores; TIC.

Introdução

O Ministério da Educação implementou, através da portaria nº 522 em


09/04/1997,os Núcleos de Tecnologia Educacional (NTE), proporcionando a formação de
especialistas em informática na educação, aos docentes da educação básica do país. Em sua
nova versão, o Programa instituído pelo Decreto n° 6300, de 12 de dezembro de 2007,
postula a integração e articulação de três componentes: a instalação de ambientes
tecnológicos nas escolas, a disponibilização de conteúdos e recursos educacionais multimídia
e digitais, soluções e sistemas de informação disponibilizados pela SEED/MEC por meio de
Portais, TV/DVD Escola e a formação continuada de professores e outros agentes
educacionais. Entretanto, a informatização que está presente nas escolas nem sempre é
referendada por um critério tecnológico ou pedagógico. A portaria nº 522 (BRASIL, 1997) do
Ministério da Educação criou o Programa Nacional de Informática na educação (PROINFO),
por meio da Secretaria de Educação à Distância, através da organização dos Núcleos de
Tecnologias Educacionais (NTE), proporcionando a formação de especialistas em
informática na educação, iniciada em 1999. O Programa instituído pelo Decreto n° 6300, de
12 de dezembro de 2007, em sua nova versão, intitulado de EPROINFO, postula a integração
e articulação de três componentes: a instalação de ambientes tecnológicos nas escolas, a
disponibilização de conteúdos e recursos educacionais multimídia e digitais, soluções e
sistemas de informação disponibilizados pela SEED/MEC, por meio de Portais, TV/DVD Escola
e a formação continuada de professores e outros agentes educacionais. Nesse contexto,
surge o Programa Nacional de Formação Continuada em Tecnologia Educacional – Proinfo
Integrado – que congrega processos de formação, dentre estes os cursos: Introdução à

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 367


Educação Digital (40h), o curso Tecnologias na Educação: ensinando e aprendendo com as
TIC (60h) e complementação local (projetos educacionais, com carga horária de 40h).
Na Bahia, assim como em outras regiões, a internet é cada vez mais empregada como
método didático, em todos os níveis de ensino. Mas como tem ocorrido a mediação
realizada pelos professores a fim de inserir os alunos através da internet na aquisição do
acervo acadêmico digital e como a pesquisa nesses acervos têm proporcionado a efetivação
de conhecimentos que promovam competências e habilidades? Conforme Perrenoud
(2000), a escola deve contribuir para a existência de uma cultura tecnológica de base, sendo
função do professor apropriar-se das novas tecnologias, uma vez que elas vêm modificando
as formas de pensar. Seria este o caminho para a construção de uma aprendizagem que
busque desenvolver habilidades e competências como preconiza a LDB/96 ?
O uso de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) por meio da informatização
das escolas públicas tem favorecido a motivação de professores e alunos, criando
expectativas ao possibilitar outras dinâmicas em sala de aula e novas formas de ensinar, de
aprender e de aprender a aprender. Isso porque a internet, principalmente, tem sido cada
vez mais empregada como ferramenta didática, em todos os níveis de ensino fundamental,
médio e superior.
Este artigo tem, então, o seguinte problema: qual a função dos docentes da Educação
Básica, como mediadores do processo de ensino-aprendizagem diante das novas TIC? Como
objetivo geral pretende discutir a inserção da Teoria da Informação e Comunicação, na
Educação Básica e às necessidades de formação continuada de docentes sob a perspectiva
da autobiografia. Como objetivos específicos, pretende-se: refletir sobre a educação básica
na contemporaneidade frente à globalização, assim como contextualizar a formação dos
professores na perspectiva autobiográfica. A opção metodológica foi a pesquisa
bibliográfica e documental.

A educação e o ciberespaço

Estamos vivendo a revolução do conhecimento, após a Revolução Agrícola e a


Revolução Industrial. Destaca-se que as redes de computadores, da microeletrônica e das
telecomunicações causaram impacto total em todas as esferas sociais, principalmente na
educação, e a expressão “tempo real” aparece com frequência dimensionando a velocidade
a qual a informação atravessa os canais de comunicação que envolve o globo (CASTELLS,
2002).
Surge o ciberespaço e com ele inovações que possam garantir a manutenção da
qualidade de vida, redimensionando as necessidades e o conhecimento (LEVY, 1999).
Segundo Kenski (2008, p. 17), “essa reinterpretação que o conhecimento possibilita dando
autoridade ao autor de gerir a informação através de sua percepção, experiência e
circunstância, agrega autonomia à sua forma de pensar.” A utilização da tecnologia vem
assumindo um mecanismo de inserção no ciberespaço, que independe da idade e possibilita
a interação com seu conteúdo seja humano ou impresso, apresentando o ‘outro lado’ da
rede (HOBSBAWM, 2009).
Neste contexto, algumas escolas utilizam o computador como mecanismo de
informação e aprendizagem, ao criar laboratórios de informática na escola ou adaptando
salas de aula de forma que os alunos venham ter contato com o mundo digital (KENSKI,
2008). O computador torna-se mecanismo de acesso a experiências novas para alunos e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 368
professores e “algo excluído a muito tempo do currículo entrará na escola: a própria vida do
estudante. Então caberá ao professor reinventar sua profissão” (RAMAL, 2002, p. 189).
Delors(1998), Duarte(2001) e Barreto(2009), nos ajudam a entender o aprender a
aprender, como sendo o desenvolvimento da autonomia para a aprendizagem. Na
perspectiva da Sociedade da Informação e do Conhecimento compreendemos que é preciso
saber acessar dados e informações transformando-os em conhecimentos úteis à vida; sem
que seja necessariamente preciso a presença ou cobrança de outrem. Com isso, as redes
informáticas se constituem em um meio favorável na busca pelo aprender a aprender, já que
são potenciais mecanismos de autoformação, portanto podem desencadear uma trilha para
o autodesenvolvimento.

Educação e globalização

A globalização, através das TIC, integra o mundo através de redes globais de


instrumentalidade (CASTELLS, 2002). No mundo de fluxos globais de imagens, riqueza, e
poder, a busca da identidade individual ou coletiva construída ou atribuída transforma-se na
fonte fundamental de significado social (SANTOS, 2002). No entanto, Sen (2001) revela que o
capitalismo contemporâneo da globalização instituiu regras nas relações globais e comerciais
que oprimem os mais pobres do mundo se preocupando mais com as relações de mercado
do que com aspectos democráticos, a educação elementar ou as oportunidades sociais dos
setores subalternos
O paradigma instrumental do desenvolvimentismo obscurece a visão dos
governantes e dos “especialistas orgânicos” no que se refere ao aspecto qualitativo do
desenvolvimento, apoiando-se em ações de ordem prioritariamente quantitativas com
consequências nem sempre positivas (BOISIER, 2000; SANTOS, 2003). Torna-se necessário
descobrir o segredo dos princípios intangíveis que organizam os campos de sintonia e
ressonância aumentando a intensidade energética e o poder qualitativo dos
relacionamentos, redefinindo o acervo de informações (SEN, 2001).
Disso podemos inferir que o incentivo ao autodesenvolvimento sugere uma
educação contínua e permanente, que não somente habilita os sujeitos para o trabalho, mas
também para melhoria da qualidade de vida e transmudam o nosso olhar para além de
uma capacitação profissional, mas para a integralização dos sujeitos, por entender, que
somos seres “sensoriais, místicos, emocionais, intuitivos e racionais”Destarte, o professor
poderá integrar esses aspectos numa perspectiva de autodesenvolvimento que se converta
não apenas em avanços na carreira, mas em iniciativas de compromisso com nossos pares.
Sobre isso, Barreto (2009, p.67) observa que não nos cabe mais, por exemplo, buscar fazer ciência,
sem consciência ou mesmo buscar promover o desenvolvimento profissional por meio da educação sem a
preocupação com despertamento, o desenvolvimento e a socialização do potencial humano.
Uma reflexão que podemos realizar por meio deste recorte é que o professor algumas
vezes demonstra impotência para realizar a mediação do conhecimento no processo de
aprendizagem do aluno.

Mudanças de paradigmas na educação autodesenvolvimento e formação docente

Os professores se vêem cada vez mais pressionados a utilizar a Internet, através da


mídia. A velocidade de informações discutidas durante o trabalho e as considerações feitas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 369


pelos professores, nos levaram à compreensão desse fato. O trabalho ainda mostrou que as
informações veiculadas na Internet podem aprofundar o desnivelamento de conhecimento,
entre alunos usuários e não usuários, o que nos levou a discutir, não só a necessidade de sua
implementação no ensino, assim como a necessidade de socializar o acesso, uma vez que, de
modo geral, os alunos sem acesso ao acervo digital através da internet podem ter, a curto
prazo, um alargamento no fosso social entre a parte que tem acesso as informações
veiculadas e a outra que se encontra à margem.
Para tentar sanar esses problemas, qual seria a “receita”? De acordo com Gadotti
(2000), é preciso o desenvolvimento de uma consciência crítica, o envolvimento das pessoas
– comunidade interna e externa à escola, participação e cooperação das várias esferas do
governo, autonomia, responsabilidade e criatividade como processo e como produto do
projeto.
Duas instâncias podem fazer muito para desenvolver o chamado “capital social”, mas
não podem fazer tudo: a educação e a escolaridade. No cenário da educação programada e
adaptativa, faz-se necessária a reeducação da educação e do educador. Segundo Santos
(2003, p. 4), [...]. Percebe-se, na especificidade da instituição educacional como um todo, a
interação que se dá nas dimensões do sujeito do conhecimento e do outro. E é na
convergência destas dimensões que se manifesta e subsiste a instituição educacional [...].
Ao redefinir a função da escola, é preciso rever os processos de ensino-aprendizagem
e redimensionar o papel do professor para estabelecer novos paradigmas para a formação
do futuro cidadão. Paiva (2003, p. 1) afirma que “em Portugal, há, porém, um longo caminho
a percorrer para que as tecnologias da informação e comunicação (TIC) sejam integradas de
uma forma transversal nos currículos. [...]” O professor na educação básica, nesse sentido,
deverá promover as condições humano-afetivas, sociais e tecnológicas com o intuito de
incorporar as diversidades na ação educativa, visto que não poderá fazer desaparecer as
desigualdades e as divergências. Uma escola que não integre os novos meios informáticos
corre o risco de ficar obsoleta (DELORS, 1998; BOISIER, 2000). Assman (2012) observa que a
revolução ocasionada pelas tecnologias informacionais desafiam os fazeres e saberes no
campo da educação e propõem uma sociedade aprendente, ou seja em processo de
aprendizagem contínua.
Uma sociedade em constante movimento, incorpora a relação de impermanência, na
concepção de ser humano, de mundo, de escola e de educação (MORIN, 1996). Este fato
revolucionou a nossa compreensão a respeito do que significa incorporar a perspectiva de
desenvolvimento individual no processo de aprendizagem (GADOTTI, 2000, p. 34), [...] o
aluno aprende apenas quando se torna sujeito de sua aprendizagem. [...]. Mas que tipo de
educação contemplaria o processo de aprender dentro de uma visão de desenvolvimento
humano, concebendo o ser numa perspectiva integralizadora? O professor, na educação
básica, diante das novas tecnologias da informação e comunicação assume uma nova
postura profissional. (MORIN, 2000).
Disso podemos inferir que o incentivo ao autodesenvolvimento sugere uma
educação contínua e permanente, que não somente habilita os sujeitos para o trabalho, mas
também para melhoria da qualidade de vida e transmudam o nosso olhar para além de
uma capacitação profissional, mas para a integralização dos sujeitos. Barreto (2009, p.67)
observa que não nos cabe mais, por exemplo, buscar fazer ciência, sem consciência ou
mesmo buscar promover o desenvolvimento profissional por meio da educação sem a
preocupação com despertamento, o desenvolvimento e a socialização do potencial humano.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 370
Educação e Autobiografia

A autobiografia não é algo fora de nós, ela faz parte de nós. Segundo Lévy (2000),
nosso pensamento não tem fronteiras. Nosso cérebro é um complexo de uma grande rede e
se organiza como tal, abrigando muitos hipertextos, cada um sendo revelador de uma rede
de conexões, de associações e de remissões, sucessivamente.
Cabe, então, aos participantes da ação pedagógica, sejam dirigentes ou professores,
seja nas universidades ou nas escolas que pensem a transdisciplinaridade como proposta
político pedagógica de seus cursos, permeada pelos sete saberes necessários à educação do
futuro (MORIN, 2000), pelos quatro pilares do conhecimento e pelos princípios que orientam
a autobiografia para pensar a complexidade.
É preciso que professores e alunos posicionem-se como aprendizes. Nesse sentido, é
interessante refletir sobre como os professores concebem, percebem e vivenciam a suas
histórias de vida em suas práticas pedagógicas.
Mudar as estruturas do pensamento envolve conhecimento, busca de novos
princípios. É preciso empreender movimentos de autotransformação e conscientização. É
mister um paradigma de complexidade que se proponha a conceber níveis de emergência
da realidade, sem reduzi-los às unidades elementares e às leis gerais (MORIN, 2000). Esta
reforma, proposta pelo autor é apresentada como possibilidade a ser construída a partir das
histórias de vida que são propostas pelo método (auto)biográfico.
A sala de aula, pode ser concebida numa proposta de intervenção, como um espaço
não homogêneo de construção contínua, de grande diversidade de sujeitos, recursos,
abordagens, olhares, possibilidades e desdobramentos, em que professores fundamentam
suas práticas em processos diferentes de concepção de aprendizagem. Percebemos uma
lacuna que exige a necessidade de repensar a prática docente , a partir do método
autobiográfico, que nada mais é que um modo de educação que possibilita a autonomia e o
respeito a histórias dos sujeitos.
Um projeto de formação continuada proporciona a reconstrução das aulas e dos
saberes, tendo como premissa básica o inesperado, as dúvidas, interesses, as expectativas e
necessidades dos alunos. O espaço pedagógico em que atuam é algo vivo que se alimenta e
retroalimenta da diversidade e da multiplicidade, embora fazedores da unicidade que é a
escola. Espaço de unidade onde é importante a reflexão e a inserção crítica das tecnologias
de comunicação e de informação, posto que são produtos e produtoras de modos variados,
formas de saber, pensar e agir. De acordo com a forma como é concebida, o método
autobiográfico se diferencia do pensamento linear, cartesiano, em que o professor é um
sujeito ativo no processo de aprendizagem. Através dela, o professor poderá fazer dos
encontros com seus alunos possibilidades de construção/desconstrução/reconstrução,
organização, desorganização da rede de conhecimentos que o constitui.
Na história de vida desses profissionais que estão incluídos na sala de aula, perpassa
um modo de educar hipertextual, que viabilizará uma proposição conclusiva provisória: a
autobiografiacomo uma proposta metodológica (DOMINICÉ, 2004).
Nas palavras de Freire (2002, p. 48), “[...] no jogo constante de respostas, altera-se no
próprio ato de responder. Organiza-se.” De acordo com o autor, ao educar o professor,
numa postura dialogizada com o aluno, educa-se nas inter-relações desenvolvidas. E por
essa razão que o professor e aluno sujeitos da educação, necessitam de algo que possibilite
aos sujeitos reconstruir seu roteiro de vida, alcançando uma reflexão ao rememorar o seu
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 371
passado e a partir disso toma consciência de si. Portanto, o caráter formativo do método,
consiste na tomada de consciência de seus experimentos quer sejam negativas ou não, as
quais possibilitam rever certas questões quanto professor. A literatura disponível sobre
história de vida, principalmente no campo da formação de professores, aponta-nos como
um método que permite o resgate de experiências pedagógicas, as quais ao serem
relatadas/historiadas através das autobiografias permite servir como parâmetro para outros
professores. Para Catani e Bueno, (2000, p.168) ao "abordar a identidade implica,
necessariamente, discorrer sobre o eu, bem como das formas pelas quais o sujeito recorda
suas experiências e adentra em si mesmo”. Destacam ainda, que as reminiscências mais
significativas são aquelas que impregnam significados adquiridos em sua vida prática, nas
relações de interações com os outros. Segundo a autora esses outros são: “referências
imprescindíveis das nossas lembranças" (CATANI, 2000, p. 168).
A identidade do professor se apresenta como “um lugar de lutas e de conflitos, é um
lugar de construção de maneiras de ser e de estar na profissão”, segundo Nóvoa (1992,
p.16). Portanto, é um método longo dinâmico, construído num processo intricado de
permuta entre seus pares. Deste modo, a pesquisa está direcionada para a contribuição no
campo da educação, na qual além do aprofundamento teórico da temática, propõem a
divulgar informações sobre a uso da metodologia de história de vida, como também do
entendimento de inovações na prática pedagógica de cursos de formação de professores.
Nessa perspectiva, as recordações escolares de momentos significativos, as impressões, se
apresentam como um recurso fundamental para reflexão na formação continuada de
professores, pois retratam situações que podem servir como parâmetro para análise e
compreensão da prática pedagógica e das relações vivenciadas no dia-a-dia escolar.
O relato autobiográfico é um instrumento cuja utilização depende do objetivo
propendido pela pesquisa. [...] Ao pedir aos adultos para percorrer sua trajetória educativa,
para dela extrair os elementos formadores, eu solicito uma informação muito pessoal, que
eles fornecerão de acordo com o modo que lhes convier. (DOMINICE, 1992, p. 75) isto
significa, portanto, que a pessoa se formam mediante a compreensão de sua própria
trajetória de vida, desse modo a rememoração pode contribuir com interpretações novas no
fazer-se docente, como aponta Josso (2004) as histórias de vida são importantes pois nos
ajudam a pensar a formação do professor para agir frente aos novos papéis que vem sendo
solicitado da instituição escola. A evolução dos papéis, das funções, das responsabilidades,
das concepções, dos lugares que comprometem todas as profissões, decompõe a
responsabilidade individual do aprendente em responsabilidade cívica coletiva. As
alternativas que adotar, as aptidões e as capacidades que desenvolver colaborarão para esta
redefinição dos atores socioculturais e profissionais que se efetua constantemente sob os
nossos olhos. Assim, o ato de aprender requer uma consciência perspicaz das questões, das
dificuldades e mesmo dos empecilhos que, alternadamente, são a manchete dos jornais, e
que estão no exercício dos nossos direitos políticos. (JOSSO, 2004, p. 241)

Qualidade da educação e formação docente

Como entender e assumir uma postura de enfrentamento no cotidiano da escola


diante da introdução das tecnologias? Ramal (2002, p. 14) menciona que, [...] com o
ciberespaço, a memória coletiva torna-se ainda mais dinâmica: da subjetividade restrita de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 372


um único narrador, e das bibliotecas de livros e documentos, passamos à rede de
computadores.
De acordo com Ramal (2002), com a aderência da sociedade ao ciberespaço
mudanças estão ocorrendo no modo de pensar, de aprender e de se relacionar das pessoas.
E segundo Almeida (2002, p. 12), a formação docente inicial não está dando conta disso. E
complementa que “temos vários estudos em que o professor reconhece que a tecnologia é
importante e ele quer utilizá-la. Tudo isso precisa ser integrado numa formação que alguns
especialistas já chamam de "nova pedagogia" [grifo do autor].
O desafio que gestores e professores têm sobre como formar pessoas pode ser
respondida com a formação pedagógica que proporcione uma ação educativa, com os
estudantes, no processo de ensino-aprendizagem de modo que priorize a organização social
e a responsabilidade com a produção e o acesso ao conhecimento.

Educação e Novas Tecnologias

A inclusão progressiva de processos digitais na veiculação, confecção e distribuição


de informações caracteriza as Novas Tecnologias de Comunicação - NTC (LEVI, 2004; MORIN,
2000). O termo se transformou numa designação genérica passada a designar os produtos e
mídias surgidos nos últimos anos. Percebemos então que o termo "novas" designa uma
qualidade, uma diferença ao substantivo "tecnologias".
De acordo com Moran (2000) deve existir integração das tecnologias e as
metodologias de ensino de aplicações orais, tanto pela escrita como por audiovisual. Assim,
a definição de novo só "faz" sentido quando incorpora uma qualidade que não existia antes,
ou ainda atualiza algo preexistente a "tecnologias". Dessa maneira, a compreensão das
"novas tecnologias" deve ocorrer através da inclusão de paradigmas ao invés de reduzí-las a
um processo de venda de produtos, de consumo, conceitos e troca (CASTELLS, 2002).
Inicialmente os conteúdos eram científicos, mas paralelamente, a comunicação
solidária foi fortalecida e surgiram redes de troca e compartilhamento de experiências e
informações: as comunidades virtuais (KOEPSELL, 2004). Segundo Levy (1996) milhões de
pessoas se comunicam pelo correio eletrônico (e-mail), como uma ferramenta para diversão
e educação das possibilidades que ainda são incipientes. Temos os sistemas de busca de
informações que através das pesquisas e jogos interativos, são opções das mais utilizadas. A
Internet é um canal para informações que não se configuram nos meios de comunicação de
massa (LEVY, 2000). Um grande dilema que fica é o da qualidade da informação que se
recebe. Apesar da credibilidade dos órgãos tradicionais da imprensa ser, em última
instância, questionável, no âmbito da Internet esse fator é crucial e incipiente (LEVI, 2000).
A disseminação da informação ocorre fora de um contexto compartilhado entre
receptor e locutor. Conforme Lévy (2004, p. 75), “os avanços tecnológicos, não melhoraram
a "autenticidade da comunicação" como propunha Habermas, mas têm sido apropriados
pelos meios de comunicação de massa e interesses políticos e econômicos do poder”.
Uma das questões mais importantes sobre o acesso a formas alternativas de
informação, é que este fenômeno social e político acarreta implicações de ordem social e
política: mudanças no acesso à informação, indicando e mobilizando diferentes graus e
formas de acesso ao poder por diferentes grupos (BANDEIRA, 2000). Essa comunicação,
entretanto, se move (DELORS, 1998). Os conceitos de entendimento e agir comunicativo se
relacionam àquele da emancipação, ampliando sua extensão para além do nível puramente
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 373
biográfico. Estes conceitos são o centro da reflexão de Habermas (BAUMGARTEN, 1998).
Enfim, há uma hierarquia de contextos do individual ao coletivo e deste ao contexto
evolutivo social, e, o contexto histórico é uma variável importante, na qual o conhecimento
deve ser revisto na criação de novas condições determinantes da história (DELORS, 1998;
FREIRE, 2003). O papel do professor, segundo Mesquita (2009), é descobrir caminhos
didáticos, se capacitando e assumindo a função de mediador competente com ênfase na
construção do conhecimento.

Considerações finais

O artigo discutiu a inserção das TIC no Ensino Fundamental e constatou-se que os


novos desafios provocados pelo avanço tecnológico e globalização podem exigir,
principalmente, formação continuada dos docentes da Educação Básica, como mediadores
do processo de ensino-aprendizagem. Nesse processo, destacamos a importância da
pesquisa autobiográfica frente à visão fragmentada de sociedade, de educação e de ser
humano. Percebemos que a educação na perspectiva da autobiografia, responde a este
desafio, ao propor um novo significado às questões que perpassam a educação, através da
vivência do autoconhecimento ou da arte de aprender. Considera-se que na formação
continuada do professor existem períodos que podem incorporar saberes da experiência,
que permitam a constituição de novos significados ao fazer profissional, isto é, que permita a
formação de um professor consciente, autônomo, crítico e responsável diante dos desafios
atuais. A formação continuada dos professores na educação básica propõem uma mediação
para o processo de ensino-aprendizagem, através das TIC. Entretanto, tem sido dificultada
pela visão ainda reducionista e manipulatória das escolas formadoras. Daí a
imprescindibilidade da formação docente continuada para inclusão das Tecnologias da
Informação e Comunicação em sala de aula, do método autobiográfico. A incorporação
deste proporcionará o fortalecimento dos processos de construção de conhecimentos por
meio de ensino-aprendizagem significativo e superação dos novos desafios da educação
fundamental por dirigentes, professores e alunos. Concluímos que é imprescindível a
atualização docente para inclusão das novas Tecnologias da Informação e Comunicação em
sala de aula, a fim de fortalecer os processos de construção de conhecimentos por meio de
ensino-aprendizagem significativa, numa perspectiva emancipadora através das narrativas
autobiográficas.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 376


Recontextualização curricular na prática docente: dialogando com as narrativas (auto)
biográficas

Marlene Moreira Xavier


UESB
marlmor@msn.com

O presente trabalho trata-se de uma pesquisa em andamento que visa compreender de que maneira as
histórias de vida implicam no processo de recontextualização do currículo instituído pelo MEC para o Curso de
Especialização em Mídias na Educação - UESB nas práticas pedagógicas dos professores cursistas das redes
municipal e estadual do estado da Bahia. Para tanto, proponho uma pesquisa qualitativa por possibilitar a
descrição detalhada da realidade e tratar o imaginário e as experiências dos sujeitos investigados como dados
que não podem ser quantificáveis. Utilizo-me do método da cartografia numa tentativa de reencontrar o
conhecimento diante da complexidade humana e busco nas narrativas (auto) biográficas dos sujeitos as pistas
que possam viabilizar a construção coletiva do conhecimento diante da problemática exposta. Nestas
narrativas os sujeitos descrevem suas itinerâncias de formação, suas concepções de currículo e de que maneira
tem recontextualizado o currículo do curso na prática pedagógica. Dentre as conclusões iniciais deste trabalho
é possível perceber que a recontextualização do currículo do referido curso encontra-se profundamente
marcada pelos contextos formativos dos sujeitos e que cada professor cursista tem recontextualizado o
currículo de uma forma bastante particular, visto que a imagem que cada professor possui de currículo
influencia diretamente na sua prática pedagógica. Frente a esta realidade, apontamos para a necessidade
inadiável de uma discussão a respeito das questões curriculares em nossas instituições de ensino para que
possamos construir uma nova imagem do currículo e consequentemente uma nova educação e outra
sociedade.
Palavras-chave: Currículo; Recontextualização; Formação.

Introdução

Nem tudo que escrevo resulta numa realização,


resulta mais uma tentativa.
O que também é um prazer.
Pois nem tudo eu quero pegar.
Às vezes eu quero apenas tocar.
Depois, o que toco às vezes floresce
e os outros podem pegar com as duas mãos”
(Clarice Lispector, 1967)

Num mundo em que o conhecimento adquirido hoje pode se tornar obsoleto


amanhã, precisamos ressignificar o nosso desejo pelo saber para compreendermos a
realidade social multifacetária que vivemos. Ao tocarmos nos fenômenos não podemos ter a
intenção apenas de transformá-lo, mas, também, de percebemos o diferente, pois é na
interação com o outro, com o diferente, que construímos coletivamente o conhecimento.
Com a potencialização das Tecnologias da Informação e da Comunicação - TIC's
assistimos a uma reconfiguração das noções de tempo e de espaço e ao surgimento de
novos ambientes formativos. A presença das TIC's rompe com o paradigma da sala de aula
convencional e traz para o cenário contemporâneo a sala de aula online. Por meio da
conexão em rede temos cada vez mais acesso a informação, fato que vem modificando
nossas práticas, atitudes, valores, modos de pensar e, principalmente, às formas de nos
relacionarmos com o outro e com o conhecimento.
Partindo deste contexto, implicada pelas inquietações provenientes das experiências
na docência online e pelas questões que permeiam em torno do currículo, buscando “tocar”
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 377
em uma realidade até então pouco explorada, esse trabalho visa compreender as
implicações das histórias de vida no processo de recontextualização do currículo instituído
pelo MEC para o Curso de Especialização em Mídias na Educação/UESB nas práticas
pedagógicas dos sujeitos.
O curso em tela é oferecido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
na modalidade de educação à distância e se configura como uma iniciativa do Governo
Federal, através do MEC/SEED (Secretaria de Educação a Distância do Ministério da
Educação) que visa contribuir para a formação continuada de profissionais da educação,
sendo parte integrante do Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica
– PARFOR, o qual tem por finalidade atender à demanda por formação inicial e continuada
dos professores das redes públicas de educação básica. Os sujeitos desta pesquisa são
professores das redes municipais e estaduais do Estado da Bahia, egressos do curso de
Mídias (III oferta) desenvolvido no período de novembro de 2011 a julho de 2013.
No caminhar da pesquisa busco nas (auto) biografias dos sujeitos compreender as
singularidades e especificidades do fenômeno em investigação, seja no que se refere as
questões mais amplas sobre o currículo e as mais específicas do contexto pesquisado, “com
o intento de avançar em direção a um clareamento da compreensão de como funciona o
sujeito, de como ele se constrói dentro das práticas, de como ele elabora seus
conhecimentos e suas ações.” (PEREIRA, 2010), relacionando suas itinerâncias formativas
com o contexto da prática pedagógica, uma vez que como ressalta o mesmo autor, o sujeito
é um sujeito-em-prática, ou seja “ é o que está sendo e , ao mesmo tempo, potência de vir a
ser outro de si, algo diferente do que vem sendo, algo nunca sido.” (PEREIRA, 2010)
Partindo do pressuposto de que a construção do conhecimento não é linear e de que
não existe uma verdade absoluta, mas que cada ser, imerso em diferentes tempos e espaços
constrói a sua realidade, procurei adotar nesta pesquisa um método científico que melhor se
aproximasse do fenômeno em investigação, procurando perceber o fenômeno em seu
contexto, tendo as (auto) biografias dos sujeitos como dispositivo de produção de dados.
Para tanto, utilizo-me da abordagem de pesquisa qualitativa, uma vez que esta compreende
que o imaginário e as experiências dos sujeitos investigados não podem ser quantificáveis,
mas, que seu universo de significados corresponde a um processo complexo que demanda
um maior aprofundamento para compreensão do fenômeno.
Dentre a variedade dos métodos de pesquisa qualitativa optei pela cartografia por
possibilitar a realização de pesquisas em realidades complexas, em que a investigação pode
ser feita através de pistas e estratégias, indagando o fenômeno a partir de uma
fundamentação própria, afirmando uma diferença, numa tentativa de reencontrar o
conhecimento diante da complexidade humana.
Diante da especificidade deste trabalho, em que os sujeitos em pesquisa encontram-
se dispersos geograficamente, suas (auto) biografias são veiculadas através do e-mail e
nomeadas de cartas cibernéticas.80 Nestas cartas os professores expressam livremente seus
sentimentos e experiências, construindo narrativas que nos trazem reflexões relevantes,
visto que “as narrativas de formação têm como objetivo falar daquela experiência durante a
qual o sujeito esteve implicado num projeto de aprendizagem profissional”. (CHANÉ apud

80
A nomenclatura é uma alusão as cartas pedagógicas (LIMA, 2006) utilizadas como um eficiente dispositivo de
produção de dados nas pesquisas em educação, sendo um termo de minha autoria adaptado com o intuito de
contextualizar as cartas pedagógicas na proposta deste trabalho.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 378
LIMA, 2006, p.144), e configura-se como um importante dispositivo para compreensão de
realidades complexas.
O correio eletrônico (e-mail) serve como meio de comunicação entre os sujeitos no
sentido de produzir os dados necessários à construção coletiva da pesquisa. Com as
narrativas em mãos, as quais descrevem os elementos primários constitutivos da formação
destes professores, busco compreender como eles recontextualizam o currículo do curso de
Mídias na Educação a partir das suas itinerâncias formativas, organizando o trabalho em três
momentos de reflexão: Encontrando “textos” e “contextos”: os sujeitos e suas itinerâncias
formativas; Concepções e (re) interpretações dos sujeitos frente ao currículo;
Recontextualização e as imagens do currículo (re) construídas na prática pedagógica.

Encontrando “textos” e “contextos”: os sujeitos e suas itinerâncias formativas

Considerando que cada sujeito é um texto vivo (re) construído nas suas itinerâncias
de formação, em seus contextos vivenciais, podendo ou não se tornar num sujeito de
experiência, já que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”
(LARROSA, 2002), neste trabalho procuro acessar territórios, desvelar histórias de vida, no
sentido de compreender as formas pelas quais os sujeitos em suas individualidades
recontextualizam o currículo do curso de Mídias na Educação; o que os tocou; que
significados construíram para o currículo e que experiências adquiriram.
Estas questões nos permite adentrar nas experiências singulares, na diversidade de
olhares dos sujeitos para perceber o que marca a vida destes professores e o que eles
trazem das suas experiências para o processo de recontextualização curricular,
compreendendo a experiência como tudo que foi significativo no seu caminhar e que lhes
possibilitam refletirem criticamente sobre a realidade, pois de acordo com Ghedin e Franco
(2006)

A experiência é um dizer-se sem saber dizer de si, isto é, a confluência e a


coincidência entre o ser e o agir. Ela é aquela tênue ligação que se dá entre a teoria
e a prática, entre a ciência e a técnica, entre a ideologia e a política, entre a fé e o
dogma, entre o ser e o querer ser. Pode-se dizer que ela é o hiato que liga nosso
limite a todas as possibilidades infinitas que temos de ser. É justamente a
experiência que nos permite a reflexão crítica. (GHEDIN;FRANCO, 2006, p. 11)

Ao explorar suas (auto) biografias percebo que suas experiências no campo


pessoal/profissional são marcadas por dificuldades encontradas para estudar e por histórias
de superação para conquistarem o seu espaço na condição de professores. A família aparece
exercendo influências querem positivas e/ou negativas na sua formação e as dificuldades
financeiras surgem como fator crucial para o acesso e permanência na escola. Mas, quem
são estes professores? Que histórias de vida trazem para o contexto deste trabalho?

Toda minha trajetória profissional começou no ano de 1986 quando ainda era
estudante do 2º ano de magistério, morava na zona rural de um povoado chamado
Mata Verde e frequentava a escola na cidade de São Gabriel a dez quilômetros de
distância era uma agonia porque o meu único transporte era uma bicicleta velha
que na maioria das vezes só vivia no prego me obrigando a empurrar e chegar fora
de hora ao destino tanto de ida quanto de volta, como de costume, quase todos os
estudante vive às custas de um mísero salário que o pai dar por mês, comigo não

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 379


foi diferente, na maioria das vezes catei mamona em baixo dos pés para vender
afim de aumentar a minha mesada. (Cursista I)

A minha história começa assim: venho de uma família em que minha Mãe era
professora, minhas tias são professoras, e sem sombra de dúvida isso acabou me
influenciando a seguir também na carreira do magistério. (Cursista II)

Minha formação na área educacional iniciou-se no ano de 1991 quando iniciei o


curso de Magistério. Na verdade, não tive escolha, pois na minha cidade - Afuá
(interior do Pará) quando a pessoa terminava o ensino fundamental II, só havia o
curso de magistério no ensino médio. (Cursista III)

Nestas histórias “o sujeito da experiência é, sobretudo um espaço onde têm lugar os


acontecimentos” (LARROSA, 2002, p.24), e estes revelam marcas em suas vidas que
produzem impactos na sua formação, demonstrando, assim, que o processo de formação
profissional não está restrito ao campo acadêmico, mas que ocorre em toda itinerância de
vida, nos diferentes contextos adentrados e que os adentram, sejam através de fatos e/ou
relações estabelecidas com o outro e com o mundo que os cercam.
Implicados desde cedo pelas experiências na docência, mesmo que sem uma
motivação inicial, estes sujeitos vão ressignificando a sua profissão e percebendo a
relevância do “ser-professor” para a sua vida pessoal e para a sociedade, conforme pode ser
observado nos relatos abaixo:

Um belo dia recebi um convite para lecionar no povoado em que morava essa
notícia me deixou em estado de graças e para mim até hoje foi uma das coisas boas
que recebi porque foi a partir daquele dia que minha vida tomou novo rumo […]
essa experiência foi um dos motivos que me levou a ingressar na carreira do
magistério até porque precisava ganhar alguns trocos e na época era a profissão
que mais tinha vaga para empregar, daí em diante teve outra visão de mundo e
percebi que além de ganhar um salário ainda me sentia útil por poder ajudar no
conhecimento dos meus alunos na época. (Cursista I)

Mas, pra falar a verdade, nunca me imaginei dando aula […] Quando chegou a hora
de realizar o estagio supervisionado eu já não tinha mais medo de encará-lo, e
consegui concluí-lo com muita tranquilidade e responsabilidade [...] Apesar do
medo que eu tinha, parecia que o magistério já era uma coisa nata, falo isso pelo
fato de que eu ensinava aos meus colegas na sala quando a professora saia.
(Cursista II)

[...]só havia o curso de magistério no ensino médio […] Comecei o curso um pouco
desmotivada, sem ânimo, pois não era o que eu queria […] Pois bem, os meses
foram passando e quando comecei a ver as disciplinas específicas do curso e ter
que ir a campo realizar certos trabalhos, comecei a ter uma maior compreensão
sobre o papel do professor e sua importância na formação do educando, passei
então a me dedicar mais nos estudos e querer seguir esta profissão. (Cursista III)

Ao irem se (re) constituindo como professores estes sujeitos buscaram na formação


continuada, seja em nível de graduação e/ou pós-graduação novas oportunidades de
ampliação do conhecimento e de ressignificação da sua prática pedagógica. Apontam que a
opção pelo Curso de Especialização em Mídias na Educação não esteve estritamente
relacionada a uma identificação com o currículo do curso, mas, principalmente, a uma

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 380


necessidade de promoção na carreira, pois conheciam muito pouco sobre as temáticas
abordadas nos módulos do curso, sinalizando que os currículos na sua maioria partem da
esfera oficial para o campo pedagógico sem levar em consideração a realidade dos
educandos, os quais acabam ingressando em campos de conhecimentos distantes das suas
necessidades pessoais/profissionais, fazendo com que muitos professores acumulem
conhecimentos que nem sempre os levam a experiência, assim como nos diz Larrosa:

Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da


reciclagem sem fim, é um sujeito que o usa o tempo como valor ou como uma
mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar
o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem que seguir o passo veloz
do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão
por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na escola
o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais
curtos. Com isso também em educação estamos sempre acelerados e nada nos
acontece. (LARROSA, 2002, p.23)

Nessa perspectiva, busco nas histórias de vida produzidas por estes sujeitos, naquilo
que os aconteceram, acompanhar as suas (re) interpretações do currículo do curso.
Compreendendo que o currículo se constitui como uma política de governo para gestão dos
espaços escolares e que “as políticas estão sempre em processo de vir a ser, sendo múltiplas
as leituras possíveis de serem realizadas por múltiplos leitores em um constante processo de
interpretação das interpretações.” (BALL, 1994 apud LOPES 2004, p.113), questiono: quais
leituras e (re) escritas estes sujeitos fazem do currículo?
Nas histórias contadas, ao tempo em que elas se convergem em alguns aspectos, em
outras, observa-se que cada professor/cursista recontextualiza o currículo do curso a partir
das suas especificidades, dos seus contextos, das suas experiências, o que podemos
perceber quando eles descrevem o seu “encontro” com o curso.

[…] me escrevi [...] para fazer especialização em Mídias, no começo me arrependi


bastante em ter ingressado, pois a linguagem midiática estava me incomodando
por dois motivos primeiro estava distante do meu vocabulário, segundo não tinha
intimidade com o computador, ou seja, era analfabeto mesmo e não entendia nada
de comandos. (Cursista I)

[...]eu me identifico com o curso pelo fato de estarmos vivendo em um mundo em


constantes mudanças. Essas mudanças foram aceleradas nos últimos dez anos,
principalmente pelos avanços científicos e tecnológicos que, juntamente com as
transformações sociais e econômicas, revolucionaram as formas como nos
comunicamos, nos relacionamos com as pessoas, os objetos e com o mundo ao
redor. (Cursista II)

Desde o dia que recebi o e-mail solicitando os envios dos documentos para a
matrícula nesta especialização comecei a me integrar mais nesse novo projeto
pesquisando e lendo mais sobre a importância das tecnologias no processo de
ensino e aprendizagem, pois como se sabe, o professor precisa estar em busca do
conhecimento contínuo a fim de saber refletir, construir e reconstruir sua prática
pedagógica para que de fato aconteça a aprendizagem. (Cursista III)

Vale salientar que para participar deste curso satisfatoriamente o aluno precisa
conhecer o computador e suas principais ferramentas, navegar com facilidade na internet e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 381
conhecer as interfaces de comunicação do Ambiente Virtual Moodle, tais como: fóruns,
wikes81, diário de bordo, chat, etc. No entanto, o que se percebe é que o currículo elaborado
na esfera oficial, na maioria das vezes não considera as especificidades dos sujeitos. Assim, o
primeiro contato da maioria dos cursistas com o currículo do curso acaba sendo marcado
por dificuldades para manusear as ferramentas necessárias para realização das atividades
propostas.
Assim, o currículo acaba sendo (re) interpretado de diferentes maneiras por sujeitos
que habitam um território comum, ou seja, enquanto alguns se sentem totalmente
familiarizados com a proposta por conta de que as suas itinerâncias formativas lhes
garantem as condições necessárias para realização do curso de forma mais satisfatória,
outros sentem o peso das limitações que lhes são impostas para aquisição dos
conhecimentos e que nem sempre são corrigidas pelos que estão à frente do processo
formativo.

Concepções e (re) interpretações dos sujeitos frente ao currículo

As imagens construídas sobre um currículo dependem da concepção de mundo,


homem, educação e conhecimento que cada indivíduo possui, assim, em um paradigma
tradicional o conceito de currículo se difere completamente dos conceitos que partem das
perspectivas críticas e pós-críticas. Estas concepções de currículo não se estabeleceram
linearmente no tempo com a ruptura de uma para a emergência da outra, mas elas se
relacionam e coexistem na prática pedagógica dos diversos ambientes formativos,
imprimindo nos sujeitos formas e possibilidades de leituras de mundo através de
experiências e situações de produção de conhecimento.
As teorias tradicionais de currículo são vistas como “neutras”, científicas e
conformistas, pois aceitam sem contestações o saber dominante, desde que este seja
científico e técnico. Preocupam-se basicamente em responder questões que se referem a “o
quê” ensinar e o que compor no currículo, revelando uma grande preocupação com
questões metodológicas e organizacionais relacionadas a construção de um currículo. Esta
teoria tem como precursor o americano Franklin Bobbitt que desenvolveu uma concepção
de currículo como algo dado ao aluno, como uma espécie de conhecimentos selecionados a
serem transmitidos aos mesmos, tendo estes apenas que assimilá-los. Segundo Bobbitt
(1971) “currículo é aquele conjunto ou série de coisas que as crianças e os jovens devem
fazer e experimentar a fim de desenvolver habilidades que os capacitem a decidir assuntos
da vida adulta”. (BOBBITT apud PEDRA 1997, p.13).
Contrárias às teorias tradicionais, as teorias críticas surgem num momento de
grandes agitações e transformações sociais, dentre elas os movimentos da contra cultura, o
movimento feminista, a liberação sexual e as lutas contra a ditadura militar no Brasil,
colocando em xeque o pensamento e a estrutura educacional tradicional. A concepção que
marca a visão crítica e a diferencia da tradicional se dá na medida em que a mesma
representa um arcabouço de questionamentos que circundam em torno de uma situação de
abertura do pensamento e ao mesmo tempo o lançamento de um novo olhar sobre as

81 A wike é um espaço virtual que permite a participação e a contribuição de todos os sujeitos participantes de um curso online, onde cada um pode intervir no processo
de criação e reconstrução das mensagens, podendo selecionar, combinar e permutar as informações, além de produzir narrativas. Para isto, todos envolvidos são
desafiados a romperem com a lógica unidirecional do currículo para uma lógica da colaboração.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 382


intenções relacionadas ao currículo, compreendendo que este emerge das relações de poder
presentes na sociedade.
Segundo Silva (1996),

O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões


sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e
sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal –
ele tem uma história, vinculada à formas especificas e contingentes de organização
da sociedade e da educação. (SILVA, 1996, p. 83)

Sem perder a importância das teorias críticas no campo do currículo, surgem as


teorias que buscam tocar em questões que tratam de forma mais direta da situação dos
excluídos socialmente. As teorias pós-críticas do currículo dão ênfase ao conceito de
discurso e das representações como sendo determinantes no processo curricular.
Expressões que traduzem um pouco desta concepção é a identidade, alteridade, diferença,
subjetividade, imaginário, significação e discurso, representação, cultura, gênero, raça, etnia
e multiculturalismo.
A ruptura com a teoria crítica do currículo se dá no campo do entendimento de que o
poder não se limita às classes sociais, mas encontra-se pulverizado, ou seja, mesmo nas
classes oprimidas, um homem branco, pode mais (tem mais poder) que uma mulher, por sua
vez, uma mulher branca pode mais que uma mulher negra. Portanto, dependendo do
gênero, orientação sexual, raça ou etnia, as relações de poder acontecem de forma
multifacetada, desencadeando múltiplos processos de hierarquias de poder. Nesse sentido,
Corraza (2001) afirma:

Currículo é uma linguagem. Ao conceber o currículo como uma linguagem, nele


identificamos significantes, significados, sons, imagens, conceitos, falas, língua,
posições discursivas, representações, metáforas, metonímias, ironias, invenções,
fluxos, cortes... Um currículo, como linguagem, é uma prática social, discursiva e
não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições
morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito.
(CORAZZA, 2001, p. 09-10)

Para os pós-críticos o currículo não transmite apenas conteúdos; através do currículo


se adquirem também consciência, disposições e sensibilidades que comandam relações e
comportamentos sociais do sujeito e estruturam sua personalidade, dando ênfase ao
conceito de discurso e das representações como sendo determinantes no processo
curricular. Nesta perspectiva, o currículo se desmaterializa e não se restringe apenas a um
documento escrito pela esfera governamental, mas se torna um constructo contínuo que vai
ganhando significados nas itinerâncias de cada sujeito, como uma espécie de “labirinto” em
que as trilhas adentradas, as experimentações, os contextos é que definirão o que é o
currículo, pois de acordo com Lopes (2004)

As políticas curriculares não se resumem apenas aos documentos escritos, mas


incluem os processos de planejamento, vivenciados e reconstruídos em múltiplos
espaços e por múltiplos sujeitos no corpo social da educação. São produções para
além das instâncias governamentais. Isso não significa, contudo, desconsiderar o
poder privilegiado que a esfera de governo possui na produção de sentidos nas
políticas, mas considerar que as práticas e propostas desenvolvidas nas escolas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 383


também são produtoras de sentidos para as políticas curriculares. (LOPES, 2004, p.
111-112)

O que se observa é que as discussões em torno do currículo vêm sendo ampliadas


num processo de construção cíclica do conhecimento, em que as teorias curriculares vão
sendo colocadas em xeque e desafiadas a (re) pensarem o currículo. No entanto, na
materialização dos currículos, quer seja os sustentados nas bases teóricas tradicionais,
críticas ou pós-críticas ainda persiste o foco na organização disciplinar e a realidade é
compreendida como uma totalidade fragmentada.
O currículo disciplinar é sustentado pelo pensamento moderno, momento em que
“com o advento do método científico, assistimos a uma proliferação das disciplinas, que
num movimento intenso de especialização, vão se subdividindo e criando novas áreas”
(GALLO, 2007, p. 03). Sob o olhar do pensamento moderno a imagem do currículo é
comparada a uma árvore, analogia criada pelo filósofo René Descartes para caracterizar o
conjunto dos conhecimentos.

Nessa imagem, as raízes da árvore representaria o mito, como conhecimento


originário; o tronco representaria a filosofia, que dá consistência e sustentação para
o todo; os galhos por sua vez, representariam as diferentes disciplinas científicas,
que por sua vez se subdividem em inúmeros ramos. (GALLO, 2007, p. 03)

Tomando o currículo do Curso de Mídias como um destes ramos, nota-se que a sua
formatação em módulos temáticos que tratam sobre o uso das tecnologias na educação
reproduz um currículo em que o conhecimento está sendo enfronhado apenas por um ramo
do saber. O currículo do curso corresponde a um conjunto de conhecimentos e atividades
dedicados a uma mídia ou à aplicação de diferentes mídias de forma integrada através de
atividades síncronas e assíncronas. São denominadas de atividades síncronas as que são
desenvolvidas quando professor e aluno estão online, a exemplo de telefone, chat, vídeo
conferência, web conferência, enquanto que as atividades assíncronas correspondem às que
são realizadas sem que professores e alunos estejam online. Exemplos: e-mail, fórum, etc.
Estas atividades são realizadas no Ambiente Virtual Moodle82 intercaladas por
encontros presenciais que acontecem ao menos três vezes durante todo o curso, exigindo
do educando disciplina para cumprimento dos trabalhos. Caracteriza-se como um currículo
sem dimensão de unidade e que poderá “formar” sujeitos com uma visão
compartimentalizada do conhecimento, com uma imagem de currículo sustentada na
analogia da árvore descrita por Descartes. Mas, qual a concepção de currículo dos sujeitos
pesquisados?
[...] o currículo nesse aspecto considero como algo vivo que quando aplicado com
responsabilidade, muda uma realidade trazendo consigo a necessidade de
mudança tanto no âmbito local como global. [...] O currículo nada mais é do que
uma construção histórica e por isso reflete movimentos de regulação e poder, bem
como as ideologias de seu tempo. (Cursista I)

[...] entendo que currículo é um resumo de todas as atividades que se pretende


desenvolver para uma melhor aprendizagem dos alunos, e está a serviço do

82 Ambiente Virtual Moodle - Software livre que permite o desenvolvimento de cursos online.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 384
professor, podendo ser modificado sempre que necessário, pois, deve ser flexível.
(Cursista II)

[...] o currículo escolar é que este representa a caminhada que os alunos deverão
vivenciar durante o processo de ensino e aprendizagem. Nele constam os
conteúdos a ser ensinados, carga horárias, etc. (Cursista III)

Nas falas dos sujeitos emerge uma imagem do currículo sustentada pelo pensamento
de Descartes: a imagem da árvore, da concepção disciplinar de conhecimento. No entanto,
em um mundo complexo como o nosso a visão de currículo sob esta ótica limita a
capacidade humana de compreensão da realidade, visto que a realidade, o currículo, é um
todo complexo e não partes desconexas de conhecimentos que precisam ser conectadas,
pois, “não há ‘religação dos saberes’ a ser perseguida, pois não há como ‘religar’ o que
nunca esteve desligado”. (GALLO, 2007, p. 06).
Embora a tradição filosófica insista na ideia do conhecimento como uma árvore e de
que há uma única realidade a ser apreendida, outra posição acredita que a realidade é
múltipla e diversa. Os filósofos franceses Gilles Deluze e Félix Guattari defendem que não
podemos falar em uma realidade, mas em múltiplas realidades interconectadas. Embora
estes filósofos não tivessem o currículo como seu objeto de estudo, eles propuseram ao
conhecimento a imagem do rizoma em lugar da imagem da árvore, em que precisamos
buscar formas de diálogo na diferença e na multiplicidade. Para Deleuze e Guattari (1995)

Um rizoma com haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e


radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raízes podem ser
rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma questão de saber se
a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente rizomórfica. Até animais
o são, sob sua forma matilha; ratos são rizoma. As tocas os são, com todas as suas
funções de hábitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O
rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial
ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há
rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o pior no
rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama é o capim-pé-
de-galinha. (DELEUZE; GUATTARI, 1995)

Sob a perspectiva do rizoma o currículo é uma construção coletiva e não linear, as


disciplinas tendem a “soar como linhas que se misturam, teia de possibilidades,
multiplicidade de nós, de interconexões” (GALLO, 2007, p. 08). Ao adentrarem nos
diferentes contextos, sujeitos e culturas, o currículo ganha diferentes significados e (re)
interpretações. Cada sujeito é “tocado” ou não pelo currículo, e através das suas
experiências produzem sentidos tanto para o campo pedagógico quanto para a esfera
governamental. Segundo Lopes (2004)
As políticas curriculares não se resumem apenas aos documentos escritos, mas
incluem os processos de planejamento, vivenciados e reconstruídos em múltiplos
espaços e por múltiplos sujeitos no corpo social da educação. São produções para
além das instâncias governamentais. Isso não significa, contudo, desconsiderar o
poder privilegiado que a esfera de governo possui na produção de sentidos nas
políticas, mas considerar que as práticas e propostas desenvolvidas nas escolas
também são produtoras de sentidos para as políticas curriculares. (LOPES, 2004, p.
111-112)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 385


Este intercâmbio de textos e contextos, de interpretações e reinterpretações das
políticas curriculares é compreendido por Bernstein, (CT. LOPES, 2005) como uma
recontextualização curricular. Para Bernstein os currículos instituídos nas esferas
governamentais sofrem diferentes (re) interpretações da sua legitimação à prática
pedagógica.

Recontextualização e as imagens do currículo (re) construídas na prática pedagógica

Pensar na recontextualização curricular é compreender a realidade como múltipla e


diversa e que neste processo de transferência de “textos” o currículo pode assumir a
imagem do rizoma, ou seja, um conhecimento entrelaçado, interconectado com as
influências do meio, com os discursos produzidos e as experiências dos sujeitos. Um
currículo que rompe literalmente com o conceito de grade, (re) constroem novos
significados e assim como o rizoma será sinônimo de “promiscuidade, mistura, mestiçagem,
mixagem de reinos, produção de singularidades sem implicar em apelo a identidade”
(GALLO, 2007, p. 08).
O conceito de recontextualização formulado por Bernstein, destaca que os currículos
instituídos nas esferas governamentais sofrem diferentes (re) interpretações da sua
legitimação à prática pedagógica. “Todo discurso pedagógico é recontextualizado a partir de
outros discursos que são seletivamente adquiridos e transmitidos, sendo o discurso
pedagógico o princípio que regula a incorporação de um discurso instrucional em um
discurso regulativo.” (BERNSTEIN apud LOPES, 2005, p.04).
O princípio recontextualizador do discurso pedagógico cria agentes e, portanto,
campos recontextualizadores, os quais o autor define como campo recontextualizador oficial
e campo recontextualizador não-oficial. “o primeiro é criado e dominado pelo Estado; o
segundo é composto por educadores nas escolas e universidades, bem como por produtores
de literatura especializada e fundações privadas de pesquisa”. (LOPES, 2005, p.05). Mas
como acontece este processo de recontextualização? Como as políticas de currículo são (re)
interpretadas nos contextos pedagógicos? De que maneira os contextos e processos
formativos podem influenciar na recontextualização de um currículo?
Mainardes (2006) baseado nos referenciais de Stephen Baal e Richard Bowe discute
que as políticas não são simplesmente implementadas, mas (re) interpretadas no contexto
da prática. Para tanto, a análise da trajetória de políticas envolve a análise de cinco
diferentes contextos (influência, produção do texto, contexto da prática, resultados/efeitos
e estratégia política).
Caracterizando sucintamente cada um destes contextos, o contexto da influência se
configura como a construção dos discursos políticos, a disputa de interesses das redes de
partidos políticos e processos legislativos que legitimam as políticas curriculares (o que
consideramos aqui as discussões que geraram a construção do currículo do curso de mídias);
o contexto da produção de texto se caracteriza como o currículo oficial que se materializa na
linguagem dos interesses mais gerais (o currículo escrito institucionalizado na esfera oficial
do governo); o contexto da prática pode ser compreendido como o contexto em que cada
sujeito vivencia o currículo (a prática pedagógica dos professores cursistas, onde o currículo
é interpretado e recriado); o contexto dos resultados os impactos e interações do currículo
com as realidades existentes (questões de justiça, igualdade e liberdade individual), e o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 386


contexto da estratégia (o que seria necessário para lidar com os problemas identificados na
política investigada).
A partir da abordagem do ciclo de política, à medida que o currículo adentra em cada
contexto ganha novas interpretações e configurações. No entanto, este processo não
obedece a uma linearidade, mas ocorre de forma hipertextual, em que o currículo
institucionalizado perpassa por diferentes contextos, influenciando a prática pedagógica e
sendo influenciado por ela, ocorrendo assim uma recontextualização curricular. Nesta trama
as propostas oficiais vão perdendo suas finalidades originais, os textos vão ganhando novos
significados a partir das experiências de cada sujeito, os quais fazem usos diferenciados do
conhecimento adquirido. Bowe citado por Mainardes (2006) ressalta que,

Os profissionais que atuam no contexto da prática não enfrentam os textos


políticos como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias, experiências, valores
e propósitos [...]. Políticas serão interpretadas diferentemente uma vez que as
histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A questão é
que os autores dos textos políticos não podem controlar os significados de seus
textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal
entendidas, réplicas podem ser superficiais etc. Além disto, interpretação é uma
questão de disputa. Interpretações diferentes serão contestadas, uma vez que se
relaciona com interesses diversos, uma ou outra interpretação predominará,
embora desvios ou interpretações minoritárias possam ser importantes. (BOWE,
1992, p. 22 apud MAINARDES 2006, p. 98).

Frente a este processo de recontextualização curricular, levando em consideração as


itinerâncias formativas dos sujeitos descritas neste trabalho, como cada um destes
professores percebem o currículo do Curso de Mídias? As imagens construídas estão
fundamentadas na imagem da árvore ou do rizoma? O currículo é compreendido como uma
série de conteúdos a serem reproduzidos na sala de aula ou há uma abertura para a
experiência, para ramificação de novos conhecimentos?

[…] o curso abordou uma proposta pedagógica e curricular inovadora a qual


despertou em mim como estudante, novos conceitos e atitudes capaz de me fazer
enxergar uma nova perspectiva e visão de futuro quanto ao uso das tecnologias
em sala de aula.(Cursista I)

[...] o currículo do curso de mídias, acho que ele nos abriu a visão para novos
horizontes, pois, já não sou mas o mesmo depois de ter participado do Curso de
Mídias na Educação. O currículo do curso de mídias proporcionou aos cursistas,
uma especialização nos mais diversos tipos de mídias educacionais existentes,
atendendo as necessidades de acordo com a realidade de cada um.(Cursista II)

A proposta do currículo do curso de mídias é muita válida e de extrema


importância, devido capacitar e preparar o professor para trabalhar com as novas
tecnologias em sua prática pedagógica, inserindo assim seu alunado nesta nova
sociedade que sofre muita influência destas tecnologias no seu dia a dia. [...] a
partir do segundo semestre do ano letivo anterior, pude colocar algumas atividades
desenvolvidas no curso em prática, claro, fazendo algumas adaptações devido a
realidade de minha escola. (Cursista III)

Os conceitos centrados na imagem do currículo como árvore, em que o


conhecimento é concebido apenas como instrução, desconsidera todas as relações
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 387
estabelecidas entre professor-aluno-professor, a riqueza dos discursos plurais de ideias, a
troca de experiências, etc. Se tratando do curso de Mídias, até que ponto o currículo
considera a diversidade e as necessidades dos educandos? Que questões são suscitadas no
sentido de garantir a formação do professor contemporâneo? O currículo instrumentaliza os
professores para o uso dos recursos tecnológicos de forma a garantir novas perspectivas
para educação?

[...] o currículo utilizado na formação do curso, é impossível dizer que ele não
atenda nenhuma necessidade uma vez que ele é moderno e criado com propostas
inovadoras que se deságua em práticas reais. [...] ainda não tive a oportunidade de
atuar como disseminador do conhecimento virtual e até se tivesse a oportunidade
seria muito difícil, pois aqui na escola onde trabalho até o momento ainda não
dispõem de uma internet, mas confesso que na primeira oportunidade estarei
pondo em prática tudo àquilo que aprendi. (Cursista I)

Esta fala nos convida a questionar: Por que impossível? Por que moderno? Todo
currículo acaba por atender as necessidades dos atores envolvidos no processo formativo?
Este currículo pode ser considerado moderno por tratar do uso das tecnologias na
educação?
A imagem do currículo disciplinar, como uma rota a ser seguida pode impedir a
construção de um significado mais abrangente da realidade. Precisamos desenvolver uma
leitura mais ampla pelas ramificações do currículo a fim de conseguirmos enxergar todas as
suas implicações na formação dos sujeitos e da nossa sociedade, pois são as nossas
concepções de currículo que sustenta a nossa prática pedagógica.
Assim, vejam o que nos diz os cursistas sobre o currículo do curso:

[...] creio que o currículo do curso de mídias na educação atende aos anseios de
uma escola que busca ser construtora de práticas pedagógicas inovadoras que
envolvam professores e estudantes nos processos de ensino-aprendizagem. [...] E o
que é legal nesse curso é que agora eu tenho um leque de opções muito grande,
ficando até com dúvida em relação a qual mídia utilizar, pois são tantas, ao
contrário de alguns anos atrás quando não tinha quase nada como opção de aula
com utilização de mídias. (Cursista II)

O curso de mídias despertou-me muitas idéias de como usar as diferentes mídias,


hoje, a depender da mídia, consigo trabalhar certos conteúdos de forma bastante
diferente de antes tornando as aulas mais atraentes e interessantes para os alunos.
E pelo que entendi o objetivo é este, incluir as novas tecnologias dentro e fora da
sala de aula de forma que estas venham a somar ainda mais na formação tanto
cognitiva quanto pessoal do educando. (Cursista III)

A imagem do currículo do curso compreendida com um “galho da árvore” que trata


sobre o uso das tecnologias na educação poderá subsidiar ou não o uso que estes sujeitos
fazem das TIC's em suas salas de aula para construção de práticas pedagógicas inovadoras.
Mas, qual o conceito de inovação destes professores? O uso da tecnologia pela tecnologia
pode modificar a prática pedagógica?
A proposta do Ministério da Educação - MEC é instrumentalizar os professores para
uso das tecnologias em suas salas de aula, oferecendo-os o domínio técnico. No entanto, no
processo de recontextualização o curso oferece ao aluno muito mais que noções técnicas
das TIC's, possibilitando também, uma reflexão crítica sobre o uso das mídias.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 388
Pensando na recontextualização como uma trama, onde o currículo oficial perpassa
por diferentes contextos, ligando pontos de diferentes partes, é possível perceber que o
currículo do curso sofre diferentes recontextualizações ao adentrar nos contextos. Para
alguns dos sujeitos pesquisados o currículo aborda questões distantes da sua realidade e
sentem dificuldades de “aplicar” os conteúdos apreendidos, visto que só conseguem
visualizar as possibilidades de aplicabilidade deste currículo mediante a existência dos
aparatos tecnológicos (in) disponíveis na escola. Mas, nas narrativas emerge também a ideia
do currículo como todas as experiências adquiridas durante o curso, ou seja, aquilo que os
tocou.
A diferença nas falas dos sujeitos, ora aponta o currículo para a imagem da árvore,
ora para a imagem do rizoma. Ao descreverem que: agora eu tenho um “leque de opções”,
estes sujeitos expressam que o currículo não é apenas prescrição, mas que é também (re)
interpretação e (re) construção, pois o conhecimento adquirido será recontextualizado a
partir da sua realidade, experiências e possibilidades.
Não tenho neste trabalho a intenção de perceber o que cada sujeito “apreendeu”
com o curso, mas, o desejo de ouvir o outro e compreender o seu olhar sobre o curso, bem
como a importância deste curso para formação de formadores inseridos no contexto da
sociedade contemporânea. Nesta sociedade não cabe mais a ideia do currículo linear,
compartimentalizado, cuja finalidade última da educação se resume a preparar sujeitos
produtivos para serví-la, instruindo-os de forma técnica e mecânica, mas, cresce cada vez
mais a necessidade do diálogo com a multiplicidade de sujeitos, contextos e realidades,
conforme nos aponta Gallo (2007)

Em Diferença e Repetição Deleuze procurar mostrar que nós professores podemos


até tentar controlar aquilo que ensinamos, mas é virtualmente impossível controlar
o que alguém aprende. O aprendizado escapa a qualquer controle, e por isso um
currículo rizomático não implica em planejamento prévio do processo educativo,
pelo menos da forma que estamos acostumados a lidar com os planejamentos.
(GALLO, 2007, p. 08).

Neste sentido, o currículo deve propiciar a construção do conhecimento na interação


mútua com o outro e com o mundo, permitindo adquirir informações, interpretá-las,
representá-las nos traçados das nossas itinerâncias de formação. No processo de
recontextualização curricular do curso de Especialização em Mídias percebe-se que os
sujeitos veem utilizando os conhecimentos adquiridos adaptando-os a sua realidade; que as
lacunas da sua formação, bem como o meio social e o ambiente escolar exercem grande
influência na “aplicabilidade” deste currículo e que cada professores, do “lugar” em que se
encontra, faz usos diferenciados dos conhecimentos construídos.

Considerações

Discutir sobre as questões curriculares não é uma tarefa fácil, pois demanda a
necessidade de uma compreensão abrangente do que seja o currículo e o seu relevante
papel na construção de uma sociedade. Buscar nas histórias contadas por professores as
implicações de um currículo na sua prática pedagógica requer uma escuta sensível e um
olhar direcionado para as individualidades dos sujeitos com histórias de vida marcadas por
suas itinerâncias formativas.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 389


Nas suas narrativas os sujeitos demonstram uma forma particular de enxergar a
realidade construída a partir das suas experiências. Os conhecimentos adquiridos nos
diferentes ambientes formativos contribuem na construção do “ser-professor”. Um
professor que fala de um lugar comum (o curso de Mídias), mas que recontextualizam o
currículo do curso a partir das suas diferenças.
Refletindo sobre as suas histórias de vida, observo que os diferentes contextos que
os sujeitos vivenciaram torná-los nos professores que são, que suas itinerâncias formativas
exercem grande influência no processo de recontextualização do currículo do curso. As
diferentes realidades fizeram com que cada um perceba o currículo sob uma ótica, onde
diferentes sujeitos fazem diferentes (re) interpretações, pois que recontextualizações do
currículo pode ser feita por um aluno que nunca manuseou o computador e um que já
possuía familiaridade com a máquina? Do professor que leciona em uma escola com todo
aparato tecnológico moderno e o que só dispõe do quadro e do giz? Do professor que
convive com colegas que compreendem a importância das tecnologias na sala de aula e o
dos que lecionam em escolas em que os professores são totalmente avessos ao uso das
TIC's?
Os professores relatam que suas experiências com o curso estão correlacionadas com
a sua identificação, ou não-identificação com o currículo e pelas dificuldades encontradas
para dominar as ferramentas tecnológicas, pois nem todos possuíam os conhecimentos
necessários para ingressar no curso. Neste sentido, percebe-se que o currículo elaborado na
esfera oficial (MEC) na maioria das vezes leva mais em consideração os interesses “de quem”
o elabora que os interesses “de para quem” se elabora.
O currículo oficial perpassa por diferentes caminhos até adentrar as salas de aula,
sejam presenciais ou online. Neste percurso, o que se observa é que o currículo do curso
sofre modificações que ora irão se aproximar da realidade dos sujeitos, ora apenas
reproduzirá os interesses dominantes subjacentes no currículo oficial. Mas, sendo o
contexto da prática o lugar em que a política é sujeita a interpretação e recriação, esta
poderá produzir ou não mudanças e transformações significativas na política original.
No que diz respeito a recontextualização do currículo do Curso de Especialização em
Mídias na Educação, apesar dos professores terem percebido a sua importância na
instrumentalização quanto ao uso das tecnologias na sala de aula, eles ainda se deparam
com as dificuldades existenciais para implementação da proposta. Estas dificuldades estão
relacionadas ao contexto social das escolas que em sua maioria não dispõe de nenhum
recurso tecnológico e muitos professores não possui formação adequada para trabalharem
com as mídias de forma significativa.
Frente a estas dificuldades, alguns destes professores acabam se fixando na ideia de
currículo como documento prescrito que precisa ser seguido à risca. Assim, compreendem
que se não houver recursos tecnológicos na escola, nada poderá ser feito com o
conhecimento adquirido. Outros, por possuírem uma visão mais ampla sobre o currículo
acreditam que mesmo diante da falta de recursos tecnológicos o currículo do curso lhe
subsidiará em novas discussões na sala de aula e na construção de novas práticas
pedagógicas.
Neste sentido, acredito que sejam necessários maiores discussões sobre o currículo
nos cursos de formação de forma a desconstruirmos a imagem do currículo disciplinar
arraigada nas concepções de muitos professores para que o currículo seja compreendido
como algo vivo e em constante processo de mutação, em que cada sujeito envolvido nos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 390
campos educativos são co-responsáveis pela recontextualização curricular, pois, somente
com a participação efetiva de todos nos diferentes contextos em que o currículo perpassa é
que poderemos garantir uma construção coletiva do conhecimento .

Referências
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RJ: Vozes, 2001.
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LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de
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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: Uma introdução as teorias do currículo.
2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 391


Memoriais dos professores supervisores de estágio

Maria Auxiliadora Lisboa Moreno Pires


UEFS
auxpires@terra.com.br
Luiz Márcio Santos Farias
UEFS
lmsfarias@ig.com.br

O estudo reuniu fragmentos de memória da história de vida e da construção da formação docente de três
professores supervisores de estágio supervisionado, nos cursos de Licenciatura em Matemática, de três
instituições de ensino superior, no Estado da Bahia. Nas áreas da educação e das ciências sociais, o uso cada
vez mais disseminado das abordagens biográficas tem contribuído para uma melhor compreensão das
trajetórias dos sujeitos, à medida que renova os modos de se investigar cientificamente a construção dos
percursos docentes. As referências biográficas não arrematam as trajetórias de vida dos professores, elas
servem de balizas para que se perceba a relação intrínseca entre pensamento e vida, conhecimento e
autoconhecimento, no conjunto de seus percursos acadêmicos. Existem várias definições para memorial assim
como existem vários textos técnicos publicados sobre o assunto. Particularmente, não vamos utilizar nenhuma
dessas definições, e, sim, apresentar a pesquisa com esses memoriais, em um sentido que com certeza
encontra eco em vários trabalhos já realizados por outros pesquisadores: o da narrativa da própria experiência,
as auto-narrativas. Narrativas permeadas de momentos significativos que retoma as lembranças dos três
professores supervisores do Estágio Curricular Supervisionado, nos cursos de Licenciatura em Matemática. São
muitos os pontos ainda a serem preenchidos, e optamos por apresentar esses professores por meio de suas
histórias de vida com uma narrativa própria, pessoal, autoral no lugar de simplesmente, falar sobre eles.
Palavras-chave: Memoriais; Estágio supervisionado; Formação docente.

Introdução

Existem várias definições para memorial, assim como existem vários textos técnicos
publicados sobre o assunto. Particularmente, não vamos utilizar nenhuma dessas definições,
e, sim, vamos trabalhar com o memorial neste estudo, em um sentido que certamente
encontra eco em vários estudos já realizados por outros pesquisadores: o da narrativa da
própria experiência, as auto-narrativas, permeadas de momentos significativos que retoma
as lembranças dos três professores supervisores do Estágio Curricular Supervisionado (ECS),
nos cursos de Licenciatura em Matemática.
Os professores convidados para responder inicialmente, a um questionário foram
posteriormente convidados a escreverem seus memoriais para a pesquisa. A entrevista fez
isso nesta pesquisa até certo ponto, porém o memorial teria, ainda, a função de apresentar
os professores por eles mesmos, pois para nós o memorial representa exercício de
autoconhecimento que possibilita ao narrador escrever a sua própria história, rever a
própria trajetória de vida e aprofundar a sua reflexão sobre ela.
Um planejamento prévio e a observação cuidadosa do componente ético para
atender as exigências científicas e técnicas da pesquisa foram realizados, a fim de informar
os participantes sobre o objetivo das informações coletadas e do direito ao sigilo profissional
que os mesmos tinham ao concordarem em participar da entrevista e da elaboração do
memorial.
São três os memoriais dos professores supervisores do ECS analisados a partir das
entrevistas e da redação solicitada para cada um dos professores de Matemática
participantes da pesquisa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 392
O primeiro deles é o da professora da UCSAL, outro memorial é da professora egressa
do curso de Licenciatura em Matemática da UEFS, e mais um memorial do professor da
UFBA e Coordenador do curso de Licenciatura em Matemática da UCSAL (professor
supervisor do ECS, em ambas as instituições).

Características pessoais e profissionais dos professores supervisores do ECS

Um dos motivos da escolha dos professores para participarem do estudo sobre o


Estágio Curricular Supervisionado foi aprofundar as contribuições desses professores com o
estudo dos memoriais, de cada um deles. Dentre os vários critérios estabelecidos para a
seleção dos professores, consideramos a formação específica de Licenciado em Matemática,
atuar nos cursos de Licenciatura em Matemática na disciplina ECS durante a realização da
pesquisa, além de outros critérios que, a princípio, achávamos difícil preencher e que se
revelou, posteriormente, uma surpresa agradável, ou seja, buscávamos profissionais que
aliado à experiência nos cursos, tivesse também experiência de produção científica,
pesquisa, extensão etc. na área de ensino de Matemática.
A dificuldade imaginada a princípio foi pelo fato de em várias ocasiões durante
encontros, seminários e mesmo nas reuniões de estudos dos grupos de pesquisas das três
instituições envolvidas neste trabalho, as discussões sobre a necessidade de registrar através
de publicações as experiências dos professores dos cursos de licenciatura, em particular
sobre estágio supervisionado, formação de professores etc., comparado com outros centros
de pesquisa no País, o número de publicações no Estado da Bahia nesta área é reduzido;
pudemos constatar na revisão de literatura realizada neste estudo. Na procura de trabalhos
sobre esses temas encontramos poucos estudos desenvolvidos por autores na Bahia.
Vários são os fatores que contribuem para isso, porém, não vamos aprofundar esta
discussão, pois foge ao objetivo deste trabalho. Entretanto, foi possível selecionar
professores das instituições pesquisadas com o perfil de professores supervisores de estágio
com trabalhos sobre estágio supervisionado, formação de professores de Matemática e
ensino de Matemática. Alguns dos trabalhos foram produzidos como dissertações de
mestrados (o caso das duas professoras) e outras publicações voltadas para professores de
matemática de modo geral, como os trabalhos publicados pelo professor.

Sobre as características pessoais dos professores supervisores do ECS que escreveram os


memoriais

O primeiro memorial é o da professora convidada a participar da pesquisa possui


graduação em Licenciatura em Matemática pela Universidade Católica do Salvador (1979) e
Mestrado em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (2007).
Uma das principais características da professora é sua experiência no trabalho com
formação inicial e continuada de professores. Trabalhando com as disciplinas de ECS no
Centro Universitário – UNIJORGE, e na UCSAL onde tem vivenciado ao longo dos últimos
anos várias experiências compartilhadas com estudantes e professores do curso de
Licenciatura em Matemática.
O segundo memorial, na sequencia é de autoria da professora da UEFS. Apesar de
jovem acumula também experiência na área de ensino de Matemática, principalmente com
relação a sua atuação como professora da disciplina ECS, na UEFS. Possui graduação em
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 393
Licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2000) e
Mestrado em Ensino Filosofia e História da Ciência pela Universidade Federal da Bahia
(2005) e em Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias para professores do
Ensino Médio pela Universidade de Brasília UNB (2007). A sua dissertação de mestrado teve
como objeto de estudo a experiência do ECS em Matemática para alunas de um Curso
Normal: algumas contribuições para formação de educadores.
Professora do Departamento de Educação da UEFS é também, professora efetiva do
Ensino Médio pela Secretaria Estadual de Educação. Na UEFS participa do Grupo de Pesquisa
e Estudo em Educação e Matemática, do projeto de pesquisa: Análise dos erros cometidos
por discentes de cursos de Licenciatura em Matemática das Universidades Estaduais
Baianas. Tem experiência na área de Educação Matemática, atuando principalmente nos
seguintes temas: Formação e prática dos professores de Matemática e ECS.
Aliado à experiência de mais de 30 anos de ensino o professor da UCSAL e da UFBA,
autor do último memorial analisado neste estudo. O professor sempre esteve ligado aos
movimentos do ensino de Matemática, no Brasil. É um dos participantes de um grupo de
professores de Matemática que sempre estiveram presentes desde o início da fundação da
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, no Brasil, na defesa de um ensino de
Matemática de qualidade nas nossas escolas públicas. Tive a oportunidade de conviver de
perto com esse professor em vários programas e atividades ligadas ao ensino de
Matemática, desenvolvidas ao longo das últimas décadas no Estado. Tem experiência na
área de Educação com ênfase em Ensino-Aprendizagem. Coordena o curso de Licenciatura
em Matemática da UCSAL e atua também como professor de Prática de Ensino, Estágio
Supervisionado em Matemática nas duas instituições: UFBA e UCSAL.

As vozes dos professores do Estágio Curricular Supervisionado

A professora da UCSal

Com relação ao percurso pessoal e profissional na recordação da professora, de uma


maneira geral, a vida familiar, em particular o contato com o trabalho desenvolvido por sua
mãe, despertou o seu interesse pelo ensino, que surgiu, naturalmente, ao observar nos idos
da década de 1960 a mãe alfabetizar crianças no bairro de Nazaré, na cidade de Salvador,
Bahia, numa sala de aula improvisada no apartamento da Ladeira do Desterro onde morava.
A mãe não possuía nenhuma formação acadêmica, nem mesmo o dito curso normal.
Entretanto, ela desenvolveu, de forma intuitiva, métodos para a alfabetização de crianças de
diversas faixas etárias. Posso dizer então, que o meu interesse pela educação é genético.
Em 1972 entrou para o Curso Técnico de Química Industrial na Escola Técnica Federal
da Bahia. Ao terminar o curso foi convidada pela instituição para ser auxiliar de ensino no
referido curso, forma que a instituição utilizou para substituir o termo estagiário. O término
do curso técnico coincidiu com os exames de vestibular prestados para Licenciatura em
Química e Matemática, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Católica do
Salvador, respectivamente. Nesse ponto da sua trajetória de vida surgiu um novo impasse ao
ser aprovada nos dois vestibulares: qual curso seguir? Decidiu pelo curso de Licenciatura em
Matemática, por dois motivos: o curso era à noite, o que iria permitir que continuasse
trabalhando e a paixão pela Matemática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 394


Em dezembro de 1981 fez concurso para ser professora de Matemática da Rede
Estadual de Ensino. A nomeação veio em 1984 e foi designada para trabalhar com o curso
Supletivo (como na época era chamado o que hoje conhecemos como “Aceleração”) no
Colégio Estadual Cupertino de Lacerda, localizado na Rua Visconde de Itaboraí, no bairro de
Amaralina, em Salvador, que atendia a clientela do bairro do Nordeste de Amaralina. Vale
salientar que não abandonou o trabalho na Escola Técnica Federal, onde continuou a ensinar
Química.
Como bem sinalizou o fato de ter passado no concurso e ter ido trabalhar na rede
estadual de ensino, não a afastou da Escola Técnica Federal. Em julho de 1986, por questões
pessoais, pede demissão do Estado e vai trabalhar em regime de Dedicação Exclusiva (DE) na
Escola Técnica. No Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia trabalhou em várias
funções e desenvolveu atividades diversificadas. Além da docência com a disciplina Química,
foi coordenadora Técnica e Pedagógica do curso de Química, trabalhou na reformulação
curricular em nível nacional dos cursos técnicos de química, e foi assistente do
Departamento de Relações Comunitárias e Empresarias.

A pesquisa na vida da professora

No período compreendido entre 1992 e 1993 realizou o primeiro curso de


especialização Lato Sensu em Planejamento de Ensino, pela Faculdade de Educação da Bahia
(FEBA).
Na época, a sua produção científica estava voltada para a educação profissional com
a elaboração do trabalho monográfico teórico “Ensino Profissionalizante: Proposta de
criação de um Centro Federal de Educação Tecnológica na Bahia”, sob a orientação do Prof.
Dr. Edvaldo Boaventura. Em 1998 aposenta-se do CEFET-BA e vai trabalhar durante um ano
como professora do Instituto Luís Viana Filho, na cidade de São Francisco do Conde. Possui,
então, experiência de ensino nos três níveis: Municipal, Estadual e Federal. Em função do
desgaste da viagem constante de Salvador para o município de São Francisco do Conde
pediu demissão em 1999.
Em abril de 1999 é então convidada para trabalhar como prestadora de serviço no
SENAI-CETIND como consultora para a criação de cursos técnicos profissionalizantes e
docência na área de matemática de cursos técnicos, de qualificação e de reciclagem para
trabalhadores de diversas empresas do setor industrial da Bahia. Em 2000, volta para o
CEFET-BA como professora substituta, para trabalhar com o ensino médio, desta vez
ensinando matemática. De acordo com a orientação do governo, permaneceu durante dois
anos na função de professora. Em paralelo com as atividades do CEFET, é selecionada para
ser Coordenadora Pedagógica do SENAI – Dendezeiros, função que exerceu até abril de
2002, quando volta para a docência e se realiza profissionalmente.
Em 2001 é selecionada para ser tutora a distância de professores da rede estadual de
ensino que trabalhavam com a regularização do fluxo (projeto de Secretaria de Educação do
Estado da Bahia em parceria com a UNIFACS). A partir de abril de 2002 iniciou a sua
trajetória como professora capacitadora em curso de formação continuada para professores
em projetos associados ao PDE, desenvolvidos por consultorias particulares e também pelo
Instituto Anísio Teixeira (IAT,) em escolas das redes públicas estaduais e municipais e em
algumas escolas particulares. A área de atuação profissional nesses cursos está associada ao
ensino de matemática na Educação Básica. Esse é um trabalho que desenvolve até os dias
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 395
atuais sempre que surge uma solicitação, o que a fez buscar estar sempre atualizada no que
diz respeito à organização dos sistemas de ensino brasileiro nos três níveis e às tendências
da Educação Matemática.
Em julho de 2002 foi selecionada para participar do primeiro curso de especialização em
Educação Matemática promovido pela UCSAL. Esse curso foi uma oportunidade ímpar de ampliar as
minhas perspectivas na área de educação e de educação matemática.
A monografia de conclusão do curso versou sobre Modelagem Matemática e
Interdisciplinaridade. Considera que o curso de Especialização em Educação Matemática impulsionou
a busca pelo mestrado, que foi realizado na Universidade do Estado da Bahia-UNEB no programa de
Educação e Contemporaneidade, no período de 2005 a 2007. Desenvolveu uma pesquisa associada à
Etnomatemática e à Educação de Jovens e Adultos, na linha de pesquisa de Processos Civilizatórios,
Memória e Pluralidade Cultural.

A docência universitária

A partir de 2004 passa a atuar na educação superior como docente de prática de


ensino e estágio supervisionado no curso de Licenciatura em Matemática. Sendo um curso
de formação de professores onde tem como alunos os profissionais que já atuam na
educação há algum tempo e outros que nunca estiveram numa sala de aula. A professora
declarou que procura criar em sala de aula um ambiente de troca de experiência e
expectativa. De forma particular, este ambiente enriquece-se nos momentos de Seminário
de Relatos de Estágio onde os alunos narram as suas observações e experiências realizadas
(como foi o desenvolvimento do estágio, as dificuldades encontradas, o papel do professor
regente, a relação com os alunos etc.) nas escolas campo de estágio. Considera muito
importante estes momentos de relatos, pois em função da grande quantidade de alunos por
turma (média 25-30 aluno) não tem condições de realizar o acompanhamento do aluno em
campo.
Trabalha, também, desde 2006 no curso de Licenciatura em Matemática na
modalidade de Educação a Distância com as chamadas disciplinas pedagógicas: Prática e
Pesquisa Pedagógica, Metodologia e Didática da Matemática e Estágio Supervisionado.
Como se trata de um curso fechado voltado apenas para professores da rede estadual de
ensino, o estágio supervisionado que possui uma atividade específica pode ser desenvolvido
na própria turma, em que o professor-aluno atua e o diretor ou coordenador da escola atua
como supervisor de estágio.

Síntese

Pelas experiências que vem vivenciando nesses anos nos quais atuou em cursos de
formação de professores, considera que os momentos nos quais o professor (licenciado ou
licenciando) tem oportunidade de falar sobre as suas experiências, anseios e angústias se
constituem em importantes momentos de aprendizagem.
Para a professora, o ambiente do estágio supervisionado é enriquecido pelos
momentos proporcionados nos Seminários de Relatos de Estágio nas instituições onde atua
como professora supervisora do ECS, pois os alunos narram as suas observações e
experiências realizadas (como foi o desenvolvimento do estágio, as dificuldades
encontradas, o papel do professor regente, a relação com os alunos etc.) nas escolas campo
de estágio. Considera muito importante estes momentos de relatos, pois, em função da
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 396
quantidade de alunos por turma (média 25-30 alunos), não tem condições de realizar o
acompanhamento do aluno em campo.

A professora da UEFS

A influência direta da mãe, professora, foi decisiva na vida da professora e levou-a a


optar por fazer o vestibular para Licenciatura em Matemática. Os professores de
Matemática que passaram em seu caminho durante o período escolar reforçaram o desejo
de vir a lecionar a disciplina Matemática no futuro.
Em 1996, ingressou no curso de Licenciatura em Matemática na Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), onde participou de atividades ligadas à área de
Educação Matemática promovidas pela instituição. Uma das atividades que marcou a sua
trajetória durante os estudos de graduação foi o curso de aperfeiçoamento “A Matemática
do Século XX”, realizado pelo Núcleo de Educação Matemática Omar Catunda (NEMOC –
UEFS) 83, local onde exercia a função de estagiária colaborando com a confecção de um
Folhetim de Educação Matemática.
Trabalhar no NEMOC e envolver-se no curso de licenciatura em matemática nos
eventos e atividades oferecidos na instituição começou a definir a sua formação como
professora. As reflexões dessas experiências do curso de LM foram se constituindo em
referências importantes para sua vida profissional. Nos vários cursos oferecidos na UEFS, dos
quais participou, discutia-se não só conteúdos da disciplina, mas também temas
relacionados à formação do futuro professor de Matemática.
O trabalho na rede pública estadual como estagiária ministrando aulas de
Matemática aos alunos do Ensino Fundamental e Médio foi um período dividido com os
estudos da Universidade. A preparação e organização das aulas que ministrava nas escolas
tornavam esse trabalho proveitoso, pois compartilhava nas disciplinas do curso de
licenciatura em matemática, com os colegas e professores, as experiências e dificuldades
que passava na sala de aula.
De acordo com a minha visão de formação docente, a professora em formação, por
meio dessas experiências, integrava à sua prática docente significados atribuídos em relação
ao exercício docente ligado à ação, à reflexão sobre o fazer ainda pouco conhecido e ia
mesclando o que aprendia no curso de graduação, as experiências vividas no processo de se
constituir professor, o processo de vir a ser professor, tornar-se professor no contexto da
prática de ensino e do próprio estágio supervisionado.
Quando terminou o curso de Licenciatura em Matemática, fez concurso para
professor efetivo da rede estadual, no qual foi aprovada. Neste mesmo período, participou
do Curso de Especialização em Educação Matemática da UEFS, que teve na sua vida um
papel importante, dando embasamento teórico e profissional. Assim que terminou a
Especialização em Educação Matemática, foi aprovada no Mestrado em Ensino, Filosofia e
História das Ciências da UFBA/UEFS, como aluna regular.
Em 2004, no segundo ano do Mestrado, começou a ministrar aulas de Matemática
em uma escola para futuros professores, no 4º ano do Curso Normal, nível médio, antigo
Curso de Magistério. Convivendo com estes alunos-professores que estavam se formando

83
O NEMOC-UEFS (Núcleo de Educação Matemática Omar Catunda – Universidade Estadual de Feira de
Santana) é um grupo que promove cursos na área de Educação Matemática, como cursos de
Aperfeiçoamento e Especialização em Educação Matemática, e publica o Boletim de Educação Matemática.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 397
para dar aulas na Educação Infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental,
passou a partilhar de suas questões e anseios referentes à sua formação e futura profissão, o
que fez surgir o desejo de investigar como vem se desenvolvendo a formação desses
professores e compreender melhor o que permeia esta formação.

pesquisa na vida da professora

O desejo por investigar a formação desses professores era muito presente, pois fazia
parte e era responsável também por esse processo, queria de alguma forma contribuir e
passar a me dedicar ao assunto. Observava que a maioria desses alunos sentia insegurança
para enfrentar a realidade do ambiente escolar com toda a complexidade e desafios que lhe
é inerente. Em particular, notava que eles mantinham uma relação um pouco desconfortável
com o ensino de Matemática, disciplina que ministrava, e isto causava uma grande
inquietação. Um dos momentos marcantes em que estas inquietações encontram-se bem
presentes é no Estágio Supervisionado, momento no qual se deparam com as demandas
práticas de organizar e ministrar aulas. Passou, então, a refletir sobre o Estágio
Supervisionado em Matemática na tentativa de estudar como estes alunos professores viam
a experiência pela qual passavam naquele momento. O estudo se alinharia às poucas
pesquisas encontradas atualmente na área, focando sobre a experiência do Estágio
Supervisionado em Matemática no Curso Normal.
A pesquisa intitulada “A experiência do Estágio Supervisionado em Matemática para
alunas de um Curso Normal: algumas contribuições para formação de educadores” foi, para
ela, uma fase extremamente importante o período dos estudos no mestrado para o seu
desenvolvimento profissional, não só pela possibilidade de aprofundar os estudos sobre
várias questões presentes no universo dos cursos de formação de professores, como
também pela oportunidade de desenvolver uma pesquisa sobre tema que estava
diretamente relacionado com minha atuação profissional como professora de matemática.
A pesquisa em si contribuiu para apontar as contradições do estágio supervisionado
para professores e estagiários e evidentemente influenciou diretamente a sua atuação como
professora de estágio supervisionado nos cursos de licenciatura, nos quais atuava e vem
atuando desde então.

A docência universitária

Assim que terminou o Mestrado começou a ministrar aulas em faculdades


particulares em Salvador, atuando em disciplinas como Educação Matemática, Estágio
Supervisionado II dentre outras. Posteriormente, trabalhou em outras instituições de ensino
superior com o ensino à distância, sendo aprovada em primeiro lugar na seleção para
professor substituto (UEFS) na disciplina Metodologia e Prática do Ensino de Matemática, e
neste caso optou por trabalhar na Universidade Estadual de Feira de Santana.
No decorrer de toda esta trajetória sempre participou de diversos cursos, não só
como ouvinte, mas também como palestrante, em cursos de formação de professores na
Rede UNEB e na UEFS como professora, encontros de Matemática e Educação Matemática,
colóquios, como, por exemplo, o Colóquio Brasileiro de Matemática no IMPA – Rio de
Janeiro, semanas de matemática, IX Encontro Nacional de Educação Matemática em Belo

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 398


Horizonte – MG, Encontro Baiano de Educação Matemática, Encontro Paulista de Educação
Matemática, dentre outros diversos.
Em 2007 cursou mais uma Especialização intitulada Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias para professores do Ensino Médio pela Universidade de
Brasília – UNB, curso que ajudou no seu trabalho como docente, no sentido de que passou a
conhecer diversos elementos tecnológicos que podiam ser utilizados em sala de aula.
Hoje trabalha como professora da rede pública estadual em Feira de Santana no
Colégio Estadual Polivalente e na Universidade Estadual de Feira de Santana como
professora do ECS, na qual desenvolve atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão.

A importância do grupo de estudo

Além das atividades de ensino e extensão, participa de um grupo de estudos


chamado Grupo de Pesquisa e Estudo em Educação e Matemática (GEPEMAT), que tem
como objetivo desenvolver estudos e pesquisas sobre formação do professor e o ensino de
Matemática, elaborar propostas de ensino, realizando intervenções nas instituições de
ensino, preferencialmente públicas, através das linhas de pesquisa Ensino de Matemática e
Formação do Professor de Matemática.
No momento de realização deste estudo, o GEPEMAT desenvolve a pesquisa Análise
de Erro, que é um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado da
Bahia (FAPESB), e desenvolvido por diversas Universidades com o objetivo de criar
estratégias para a superação das dificuldades manifestadas pelos estudantes de Licenciatura
em Matemática, a partir da análise dos erros cometidos por eles durante o processo de
avaliação da aprendizagem, a fim de que não reproduzam essas mesmas dificuldades com
seus futuros alunos.
Hoje, pensa que com o conhecimento construído na área de Educação Matemática
ao longo da jornada acadêmica e profissional e descrita neste memorial, pode contribuir
substancialmente para o fortalecimento das atividades de pesquisa, ensino e extensão no
ensino superior e na educação básica.

Síntese

A professora da UEFS relata o percurso do seu desenvolvimento profissional, sua


trajetória. Destaca no seu memorial os espaços de interação entre as dimensões pessoais e
profissionais que orientaram o processo de sua formação e deram sentido à sua história de
vida.
De acordo com Nóvoa (2002, p.57), a “formação não se constrói por acumulação (de
cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas, sim, através de um trabalho de reflexividade
crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal”.
As contribuições das reflexões da professora da UEFS nesta pesquisa revelam com
clareza a importância do papel do professor mediante o investimento contínuo na sua
formação profissional para o sucesso dos alunos da Educação Básica, do Ensino Superior e
ilumina o caminho da formação percorrido pela professora e esse processo tem sua base
alicerçada na/sobre a reflexão da sua prática docente.
A dissertação de Mestrado da professora da UEFS foi cuidadosamente lida e
apreciada e corrobora, positivamente, na análise e conclusões de alguns pontos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 399
fundamentais nesta tese: a importância da produção científica de estudos sobre o ECS,
ampliando e fortalecendo a formação inicial do professor de Matemática; o envolvimento
direto do professor supervisor de estágio com grupos de pesquisas consolidados nas
instituições de ensino; valorização do professor supervisor de estágio que desenvolve suas
atividades diretamente voltadas para o ensino e formação de professores. Essas primeiras
conclusões surgiram naturalmente da análise dos dados coletados nos questionários,
entrevistas e nos memoriais elaborados pelos professores.

O professor da UFBA

Os livros publicados e/ou organizados pelo professor nos últimos anos contam um
pouco a sua trajetória como educador matemático. Os temas são quase sempre o professor
e sua prática docente, o aluno e o ensino-aprendizagem de Matemática. Os livros são
instrumentos imprescindíveis para a formação dos professores. Escritos de forma a abordar
os conteúdos de Matemática permeados por uma metodologia voltada para facilitar a
atuação do professor, em sala de aula, através de uma linguagem simples, acessível aos
professores, os livros traduzem nas diversas sugestões de atividades didáticas práticas
voltadas ao ensino de Matemática a própria experiência docente do professor.
Ingressou no curso de LM da UCSAL, em 1974. O professor recorda que algumas
circunstâncias da vida o levaram a escolher esse curso. Já trabalhava no pólo petroquímico, e
um curso no turno noturno era mais propício para estudar e matemática era uma boa
opção, pois sempre gostou de estudar. Fez o curso de LM em quatro anos, de 1974 a 1977.
Lembra que foram somente dois concluintes de uma turma de 60 alunos. O professor
recorda que foram quatro anos de comprometimento e dedicação apesar das dificuldades
de conciliar os horários de trabalho com os horários das aulas e de estudo na universidade.
Ainda no curso de LM, no ano de 1976, 5º semestre, realizou o seu primeiro concurso
para professor da rede municipal de ensino, que à época estava estendendo o ensino do 1º
grau, da 5ª a 8ª séries. Aprovado, foi nomeado para atuar no Grupo Interescolar Teodoro
Sampaio, no Alto da Santa Cruz, um bairro muito pobre de Salvador. Em 30 de abril de 1976
começou, então, a minha trajetória como professor, um sonho que cada vez mais acalentava
nos anos vividos de indecisões e conflitos profissionais quando trabalhava no pólo
petroquímico, em Camaçari.
Formado em 1977, logo depois fez o primeiro concurso para professor do 1º e 2º
graus da rede estadual da Bahia. Nomeado em 1978 para o então Instituto Central de
Educação Isaías Alves, permaneceu lá até o ano de 1984.
Durante muito tempo de sua carreira exerceu o cargo de professor de Matemática no
Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA), uma escola que guarda na sua história um
passado brilhante de contribuições para a formação de professores do antigo Magistério, a
chamada Escola Normal. Muitos educadores do nosso Estado lembram com saudade os
tempos áureos daquele colégio, hoje uma imagem pálida do que representou para a
educação na Bahia. Percorrer aqueles corredores me traz tristeza, diz o professor ao ver
como as coisas são destruídas, principalmente pela falta de sensibilidade dos nossos
governantes que poderiam recuperar aquele espaço e transformá-lo num grande centro de
ensino superior, voltado para a formação de professores para atuarem nas séries iniciais.
Passou então a atuar no Colégio Estadual Rafael Serravalle, no bairro da Pituba, em Salvador.
Em 1983, faz novo concurso para rede estadual e pede então exoneração da rede municipal,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 400
passando a acumular dois cargos de professor de 20 horas da rede estadual, ainda no
referido colégio.
O professor recorda que de 1976 a 1984 foi o período em que se envolveu bastante
com o ensino de matemática. Estudou várias obras de autores como Jean Piaget, Jerome
Brunner, Zoltan Diénes, George Papy, Jean Dieudonné, Anísio Teixeira, Maria Montessori,
dentre outros. Faz um curso de especialização em Metodologia do Ensino Superior
(1981/1982) que o coloca em contato com a comunidade de educadores da Faculdade de
Educação. Posteriormente, ingressa no mestrado em Educação da UFBA, não chegando a
concluí-lo. Durante o curso do mestrado foi aluno da professora Teresinha Fróes, na
disciplina Teoria de Currículo. A professora o convida então para fazer parte de uma equipe
multidisciplinar para elaborar as Diretrizes Curriculares para o ensino das disciplinas do 1º
grau, da rede estadual de ensino. O trabalho foi concluído em nove meses, sob consultoria
da professora Teresinha Fróes, na Secretaria de Educação e Cultura, do Estado da Bahia.
Para o professor, esse foi um trabalho dos mais relevantes que desenvolveu e que lhe
deu a oportunidade de ser conhecido na rede estadual de ensino.

A docência universitária

Como professor universitário, ingressou na UCSAL em 1978, logo após a formatura,


para ministrar as disciplinas Cálculo e Álgebra, posteriormente Fundamentos de Matemática
Elementar, no curso de LM, onde conseguiu alcançar o nível de professor titular. Com a
experiência sobre currículo, o professor recordou sua participação em várias comissões de
reformulação curricular do curso de LM, culminando com a mudança de modelo do curso,
influenciado pelo movimento da Educação Matemática e com o arcabouço legal emanado
pelo Conselho Nacional de Educação, que culminou com a construção do Projeto Político
Pedagógico do curso de LM, outro trabalho de maior relevância na sua trajetória docente.
No ano de 1993 fez concurso para professor auxiliar de ensino de Didática da
Matemática, na Faculdade de Educação da UFBA. Aprovado em primeiro lugar, tomou posse
começando uma nova trajetória profissional.
Na UFBA, integrou o Colegiado do curso de Matemática e foi, então, convidado a
participar da comissão de reformulação curricular dos cursos de bacharelado e licenciatura
em Matemática, trabalho esse concluído em 2005.
Ministrou durante anos, na UFBA, as disciplinas de Didática da Matemática,
Metodologia do Ensino da Matemática para o curso de Pedagogia, Metodologia e Prática de
Ensino. Com a reforma curricular passou a ministrar Metodologia do Ensino de Matemática
para a LM, além das disciplinas de Estágio Supervisionado III e IV que correspondem ao
Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, respectivamente.
Integrando o grupo de professores de ECS, teve a oportunidade de elaborar diversos
documentos norteadores do estágio para o então Departamento II, da Faculdade de
Educação da UFBA, a fim de atender aos mais de vinte cursos de licenciatura.

Síntese

Alguns títulos publicados ao longo dos anos, livros como o Módulo de Autoformação
de Matemática, publicado pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Regularização do
Fluxo Escolar-Matemática 5ª a 8ª série, também publicado pela UNEB; Caderno de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 401
Geometria, publicado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura; Matemática:
diretrizes curriculares para o ensino fundamental; Matemática: subsídios para a prática
pedagógica do professor suplência II; Diretrizes Curriculares para o ensino da Matemática no
1º grau, Matemática In: Maria do Socorro da Costa e Almeida. (Org.). Escola, Arte e Alegria:
sintonizando o ensino municipal com a vocação do povo de Salvador. 1 ed. Salvador:
Secretaria Municipal de Educação e Cultura; Licenciatura em Matemática. In: Universidade
Católica de Salvador. (Org.). Diretrizes Curriculares: contribuições da comunidade acadêmica
à elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais. 1 ed. Salvador: Universidade Católica de
Salvador; Fundamentos e metodologia do ensino de matemática. In: Maria Aparecida da
Silva. (Org.). Escola normal programa de ensino. 1 ed. Salvador: Secretaria de Educação e
Cultura.
Este docente entende que a preocupação com o ensino-aprendizagem de
Matemática sempre esteve presente na sua trajetória e foi à mola propulsora para o seu
desenvolvimento pessoal e profissional.
Do seu ponto de vista, a escola deveria ocupar sempre um local de destaque, de
referência, para qualquer ação pensada sobre Educação. A escola representa o fim e o
começo de tudo.
Para o professor em um mundo em constante mudança, o desempenho do professor
deve ocupar um lugar de destaque, o que necessariamente passa pelas universidades, pelos
centros de formação de professores, na formação desse profissional para um ensino de
qualidade.
As instituições devem estar preparadas com professores bem qualificados e
fortemente envolvidos com a sua própria formação, e com a necessidade permanente de
aprender.

Sobre os aspectos técnicos da pesquisa e suas conclusões

Esta investigação ocorreu no período 2010/2012 em três instituições de ensino


superior do Estado da Bahia: UFBA, UEFS, UCSAL, nos cursos de Licenciatura em Matemática.
A pesquisa se inseriu no quadro de investigações qualitativas do tipo interpretativo, em que
se privilegia a interpretação na procura de significados, de compreensão mais do que uma
experimentação na procura de modelos, leis (SHULMAN, 1996).
Optamos pela realização de estudo trabalhando dentre outras referências teóricas os
estudos de Robert K. Yin (2001).
A pesquisa envolveu (3) professores supervisores de estágio curricular
supervisionado,
Com relação aos documentos analisados na pesquisa, trabalhamos de modo
complementar com: (3) projetos pedagógicos, (3) programas de disciplina do ECS, (12)
relatórios do ECS, (3) memoriais de professores supervisores do ECS, especificamente ligados
aos cursos de Licenciatura em matemática das três instituições: UFBA, UEFS e UCSAL.
A análise de todo material produzido na investigação, estabeleceram os parâmetros
para as conclusões do estudo. Alguns dessas análises estabelecem relação descritiva dos
dados, comparativos em alguns aspectos e classificatório em outros.
O memorial mais uma vez ressaltamos a título de conclusão que teve a função de
apresentar os professores por eles mesmos, pois o memorial representa este exercício de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 402


autoconhecimento que possibilita ao narrador escrever a sua própria história, rever a
própria trajetória de vida e aprofundar a sua reflexão sobre ela.
Sabemos que a universidade proporciona através dos programas específicos,
voltados para os professores, uma formação que se distribui ao longo de todo o espaço
acadêmico, institucional, seja por via dos cursos regulares da graduação, através dos
projetos pedagógicos dos cursos de licenciaturas, como também pelos programas da
extensão, da pós-graduação, porém defendemos aqui, que o conjunto de relações vividas
pelos futuros professores, no aqui e agora, fora da academia, também educa. O futuro
professor é esse agente de produção de cultura, de conhecimento e a escola não existe
separada da vida. Há um compromisso ético e político e essas dimensões estão presentes na
construção do conhecimento por professores e pelos estudantes. E a escola pública é um
espaço de produção, um saber não exclusivo da universidade. Daí se buscar tornar o ECS das
licenciaturas em um elemento orgânico, articulado entre as escolas públicas e a
universidade, da própria organização do pedagógico das escolas da educação básica com a
universidade, no modelo de uma presença efetiva, quem sabe até próxima da ideia de uma
residência pedagógica para estudantes de licenciaturas em escolas públicas.
Esse desejo foi compartilhado por muitos dos sujeitos participantes da pesquisa que
expressaram nas suas falas ao reconhecerem às possibilidades que se abrem para as
universidades e escolas a realização do ECS de modo integrado, articulado na promoção de
uma docência de qualidade, como a literatura mais recente aponta pautada na investigação,
na pesquisa, com princípio fundamental para promover a ciência, a educação como caminho
para a qualidade de vidas das pessoas.
Consideramos que houve poucos avanços nos cursos de Licenciatura em Matemática
investigados para a melhoria da qualidade do ensino-aprendizagem de Matemática nas
escolas pesquisadas, as mudanças ocorridas nas práticas das professoras regentes, os
trabalhos desenvolvidos pelos estudantes estagiários deixam a desejar, pois, provocam
poucas alterações no ritmo das escolas, principalmente, nas salas de aulas, no ensino de
Matemática,
A análise dos memoriais em determinados aspectos sinalizam essa dificuldade. Alguns
desses estudantes, ainda, permanecem presos ao paradigma da racionalidade técnica, no
exercício de suas atividades docentes, talvez como alguns dos indicadores da pesquisa
sinalizam, pelo conservadorismo de métodos e técnicas de ensino de Matemática
privilegiados pelos professores do curso, na graduação.
Percebemos, entretanto, que alguns aspectos precisam ser repensados: a
competência básica de todo professor e, consequentemente, as mudanças pedagógicas
produzidas em sala de aula passam pelo domínio do conteúdo específico de Matemática.
Somente a partir desse conhecimento básico, específico, é possível construir e produzir
ações educativas competentes, o que não significa que mudanças não possam ocorrer na
formação do professor de Matemática. O ECS representa essa possibilidade concreta para as
mudanças na formação inicial, desde que o ECS represente de fato, não a explicitação da
fragmentação do curso de Licenciatura, como vem ocorrendo na prática. Como o ECS tem
sido concebido nessas instituições de ensino: uma etapa da formação inicial, separada do
curso. Uma atividade de caráter obrigatório, de responsabilidade exclusiva do professor
supervisor do estágio.
Não é mais possível tratar o ECS como um apêndice do curso de Licenciatura em
Matemática.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 403
Por outro lado, como ressalta Azanha (1998), a melhoria das práticas docentes
exige um adequado conhecimento das práticas dos professores e das condições em que elas
ocorrem bem como do contexto em que elas se organizam e se aplicam. De fato, o
conhecimento sistemático dessas práticas é fundamental para a elaboração das propostas
dos cursos para o ECS compartilhado diretamente com as escolas. Os professores regentes
nas escolas devem participar como elaboradores dessas propostas, pois, citando Azanha
(1995, p. 203.), "a melhoria da prática somente pode ser feita pela critica da própria prática,
no momento em que ela ocorre, e não pela critica teórica de uma prática abstratamente
descrita, ainda que essa descrição seja feita pelos próprios praticantes".
Nesse sentido, este estudo recomenda que os esforços para a melhoria da
qualidade do ensino de Matemática devem ocorrer fundamentalmente na escola, na
universidade e devem envolver todos os docentes do curso de Licenciatura em Matemática,
os professores das escolas de Educação Básica contemplando e valorizando o saber docente
formado e aperfeiçoado no cotidiano da escola.
O lócus da formação a ser privilegiado é a escola e, como fala Candau (1996, p.143),
"considerar a escola como lócus de formação inicial do futuro professor de Matemática
passa a ser uma afirmação fundamental na busca de superar o modelo clássico de formação
inicial dos professores e construir uma nova perspectiva na área de formação de
professores".
A pesquisa realizada parece indicar que os cursos de Licenciatura em Matemática das
três instituições de ensino superior: UFBA, UEFS e UCSAL ampliaram o espaço da prática
pedagógica dos professores que o concluíram, possibilitando a cada professor, de acordo
com as declarações dos sujeitos pesquisados, experimentar práticas que refletiam novas
formas de conceber o ensino de Matemática e discutir as concepções subjacentes a essas
práticas: a ênfase em práticas reflexivas, o domínio de estratégias que permitiram aos
professores iniciantes atuarem em sala de aula com uma concepção de aprendizagem
fundada na interação social, com uma prática capaz de identificar problemas e resolvê-los,
em certo ponto os memoriais traçam também essa trajetória de egressos desses cursos de
licenciatura.
Sugerimos, portanto, que o trabalho desenvolvido tenha continuidade, possibilitando
uma discussão com os professores dos cursos de Licenciatura em Matemática, com os
órgãos colegiados das universidades, envolvendo as escolas de Educação Básica na
construção coletiva dos projetos de ECS.
É cabível a revisão dos projetos pedagógicos e dos currículos considerando a
dinâmica de uma sociedade em mudança, ajustando-os as suas demandas e anseios,
redefinindo o papel do professor de Matemática egressos dos cursos de Licenciatura.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 407


Narrativas (auto)biográficas de professores: experiência e formação

Maria Emérita Jaqueira Fernandes


UESB
meljaqueira@gmail.com
Anthony Fábio Torres Santana
PUC/RS
afabiotorres@hotmail.com

Este texto apresenta o recorte de uma pesquisa, ora em andamento, vinculada ao Programa de Pesquisa e Pós-
Graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). É um estudo fundamentado
no método (auto)biográfico, especialmente nas dimensões conceituais: subjetividade, memória, e
territorialidade como formações constitutivas do sujeito no processo de desenvolvimento da pessoa e do
profissional da docência como instâncias da vida que encontram-se imbricadas. O objetivo central do trabalho
consiste na compreensão do sujeito/narrador em um processo (auto) formativo, a partir da experiência com as
narrativas das histórias de vida de professores em formação, e do seu desdobramento em uma escrita de si.
Assim, a investigação obteve um cunho formativo tendo em vista que o trabalho foi desenvolvido como
atividade pedagógica na forma de um Ateliê de professores, aplicada a discentes do Curso de Pedagogia do
Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) na Plataforma Freire da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A investigação-formação contemplou a participação de 26
professoras-alunas durante o desenvolvimento do componente curricular Práxis V, que ocorreu no período de
27/10/2013 à 22/12/2013. Os sentidos produzidos a partir das narrativas provocaram o diálogo travado neste
como resultados parciais da pesquisa em questão.
Palavras-chave: Formação. Professores; Método (Auto)biográfico; Narrativas.

Introdução

Atualmente no Brasil, a pesquisa em educação, em especial a formação de


professores, veio se constituindo como um campo autônomo de pesquisa em ascensão
desde 1990, tendo por finalidades estudar os processos de preparação, profissionalização e
socialização docentes, numa perspectiva intencional de promover a mudanças na qualidade
do ensino e da aprendizagem, como nos diz a pesquisadora Marli André (p. 174-181, 2010).
Mas, quando refletimos sobre o processo de formação docente ao longo História da
Educação (NÓVOA E FINGER, 2010), notamos a recorrência do paradigma escolar
mecanicista que produz separações no espaço/tempo, em torno da experiência e
conhecimento, subjetividade e objetividade, teoria e prática. Essas dissociações tiveram suas
origens no modelo escolar construído pela modernidade e consolidado a partir da revolução
burguesa dos finais do século XVIII, e embora presente até nos dias de hoje, vem sendo
contestado desde o início do século XX pelos movimentos da Educação Nova, Educação
Permanente nos anos 1970, e, “manifesta-se hoje em dia por meio da procura de uma nova
epistemologia de formação, tendo como expressões visíveis, por exemplo, as experiências
em torno das Histórias de Vida e do Método Autobiográfico”. (NÓVOA e FINGER, 2010, p.
157-158).
Embora as informações já produzidas nesse campo específico, renovados estudos
abrem possibilidades de análises de múltiplos fatos e fenômenos inter-relacionados à
profissão docente e trazem à pauta incipientes perspectivas vinculadas à estetização desta.
Dentre os pesquisadores ressaltamos os estudos de Pereira (2010a) e os modos como este
aborda tal processo formativo, a partir de um viés fundamentado na estética da existência.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 408
Com esta dimensão conceitual o citado autor concretiza uma rica interface da
Educação com a Arte e a Filosofia e aponta caminhos na direção do ato de estar sendo professor,
relacionados ao que denomina de estética da professoralidade. Seus estudos abrangem a
constituição do professor e da prática profissional em sentidos deste realizar-se como um
agente propositor de experiências catalisadoras de incursões em direção ao si-mesmo, o que
envolve atos de “formar os outros e formar a si mesmo como uma intricada arte de existir”.
(PEREIRA, 2010a, p. 63). Nessa perspectiva, seus estudos trazem à sua pauta denominados
movimentos de professoralização como processos de constituição da docência articulada à
(auto) formação, à produção da subjetividade na constituição de si que produzem, num
mesmo lance, o sujeito e o professor (Ibidem, 2010b).
Implicados com os renovados estudos no campo da formação e profissionalização
docente, é que objetivamos estudar os Movimentos de professoralização nas tramas da
vida: enlaces com a arte e educação, no sentido de problematizar o devir a ser professor (a),
como nos tornamos os professores que somos como é possível, arte e vida, contribuírem
para a constituição de uma estética da professoralidade.
Assim, o presente artigo almeja indiciar os percursos (auto) formativos dos
movimentos de professoralização, se servindo das narrativas das histórias de vida, da
biografia educativa (PASSEGI, 2010), e do seu desdobramento em uma escrita de si,
considerando esses, os meios colaborativos para uma compreensão do conceito da estética
da professoralidade (PEREIRA, 2013), imbricados na pessoa e no profissional docente.

É estudando a professoralização que alcanço vislumbrar a professoralidade. É


investigando como me tornei o professor que sou, por que me tornei o professor é
que investigo a professoralidade. O professor que sou, o professor que estou sendo
é apenas um estado, um estágio, um efeito dessa professoralidade que se
professoraliza. Aquilo que sou é um caso particular de um vasto leque de
possibilidades de eu ser. A realidade é um caso particular do possível. (PEREIRA,
2010a, p. 67).

Histórias de Vida: Narrativa e (Auto)biografia

As Histórias de Vida surgiram no início do século XX em Chicago, como método de


pesquisa no campo da Sociologia, e foram desenvolvidas no campo da Educação, quando sua
utilização na pesquisa precisou ser resgatada em sua dimensão de ação social, em especial
na educação de adultos e na dimensão de formação profissional contínua. Em 1979 o
sociólogo italiano Franco Ferraroti escreve sobre a autonomia do Método biográfico, com
“As razões de um revival”, fazendo uma “crítica à objetividade” e ao método positivista de
August Comte, justificando que este, por seguir a hermenêutica das ciências naturais, “[...]
teve como consequência a valorização crescente de uma metodologia mais ou menos
alternativa: o método biográfico”. (NÓVOA; FINGER, 2010, p.35).
Assim, Ferraroti dá um contorno cada vez mais específico ao trazer, para o método
biográfico, a subjetividade como objeto de pesquisa. “Devemos voltar a trazer para o
coração do método biográfico os materiais primários [narrativas autobiográficas] e a sua
subjetividade explosiva.” (Idem, 2010, p.43). Outra importante contribuição deste autor foi a
dimensão dialética do individual/social atribuída ao aspecto da subjetividade do indivíduo,
ao afirmar que “[...] devemos procurar os fundamentos epistemológicos do método

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 409


biográfico noutro lado, numa razão dialética capaz de compreender a ‘práxis’ sintética
recíproca, que rege a interação entre o indivíduo e um sistema social.” (Idem, 2010, p.50).
Na atualidade, o citado Antônio Nóvoa (2010), e, demais autores internacionais vêm
se dedicando a propulsores e inovadores avanços no constructo de uma epistemologia da
formação de professores, trazendo as Histórias de vida e o método (Auto) Biográfico para o
campo educacional. Segundo este pesquisador, do âmbito das pesquisas realizadas na
década de 1980, alguns princípios teóricos foram sistematizados para servirem de referência
“[...] a qualquer projeto de formação de adultos, quer seja no quadro da formação
profissional, quer seja no âmbito da formação de formadores”. (NÓVOA e FINGER, 2010, p.
184-187).
A subjetividade reivindicada diz respeito a um novo modo de conceber a ciência,
iniciado nas primeiras décadas do século, a partir dos movimentos de mudanças e rupturas
com as ciências experimentais regidas pelas leis da física e da biologia, em detrimento da
subjetividade nos estudos dos fenômenos sociais. (BUENO, 2002, p. 11-30).
De acordo com Bueno (2002), os estudos (auto)biográficos passaram a ter relevância
nas pesquisas sobre a formação de professores, precisamente a partir de 1980, quando o
estudo da subjetividade foi salientado como o eixo agregador de toda a discussão e a base
das propostas dos estudos e pesquisas nas (auto)biografias de professores. No Brasil, a
partir dos anos 1980 e 1990, vemos aflorar nas discussões acadêmicas uma valorização da
pesquisa (auto)biográfica, tanto em relação à formação de professores, quanto ao seu
desenvolvimento profissional.
Sobre o que é a formação do ponto de vista do sujeito, como se forma e como
aprende o sujeito, Josso (2007) considera que é preciso haver reflexões do professor sobre a
própria experiência, configurando-se aí em um aprendizado advindo das experiências e
recorrentes das narrativas das histórias de vida. Nesse sentido, narrar a nossa história, os
caminhos que fizemos para ser quem somos, significa fazer uma reflexão sobre como nos
tornamos esse ser, pessoa e professor, em formação contínua. Um dos princípios
fundadores das escritas de si como prática de formação é a dimensão autopoiética84da
reflexão biográfica. Ao narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas
experiências e, nesse percurso, constrói outra representação de si: reinventa-se. (PASSEGI,
2011, p. 147). A gênese de si dá-se, portanto, em processo de formação, a escrita de si
(FOUCAULT, 1992, p. 127-160) analisa algumas estratégias de trabalho (auto)biográfico e
demonstra a sua excelência no resgate das trilhas dos acontecimentos e dos registros das
marcas visíveis e invisíveis inscritas na reapropriação das experiências de formação.
As narrativas das histórias de vida de professores e o método (Auto)biográfico,
seguem o movimento socioeducativo dessa abordagem no Brasil, no contexto da formação
docente, na perspectiva de uma “reflexão sobre os princípios epistemológicos,
metodológicos, éticos e deontológicos nas histórias de vida como procedimento de
pesquisa, formação e intervenção”, (PASSEGI, 2010, p.30).

84
Autopoiese – do grego (autos), “próprio”; (poiésis), criação, invenção, produção. Neologismo criado por
Humberto Maturana e FranciscoVarela, nos anos 1970, para designar a capacidade dos seres vivos de
produzirem a si próprios. O termo passou em seguida para as ciências sociais e humanas para se referir à
capacidade humana de se autorregular, autoadequar, autoinventar. (PASSEGGI, 2011, p. 156).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 410
Experiência e/em Formação

A experiência no contexto da formação, ou em formação, nos diz de um movimento,


cuja noção remete a uma nova compreensão e interpretação de si a cada narrativa da
experiência de vida, uma resignificação que consideramos aqui, “razão estimulante para a
pesquisa educacional, pois nos conduz a buscar as relações entre viver e narrar, ação e
reflexão, narrativa, linguagem, reflexividade autobiográfica e consciência histórica”
(PASSEGI, 2011, p.148). Nesse sentido, buscamos o conceito filosófico da experiência com o
intuito de compreender seu significado como processo do saber, da razão e do
conhecimento:
A essência da experiência é pensada aqui desde o princípio, a partir de algo no qual
a experiência já está superada. Pois a própria experiência jamais pode ser ciência.
Está em uma posição insuperável com o saber e com aquele ensinamento que flui
de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém sempre a
referência a novas experiências. [...] A dialética da experiência tem sua própria
consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é
posta em funcionamento pela própria experiência. (GADAMER, 1997, p. 525).

Assim, podemos pensar em experiência como marca na nossa existência, como


estados inéditos que se produzem e transformam o nosso estado de ser, novas composições
de existir, de forma que “cada um destes estados constitui uma diferença que instaura uma
abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que as marcas são sempre a
gênese de um devir.” (ROLNIK,1993, p. 2).
Outro sentido da experiência, ressaltado por Benjamim (1987) é a pobreza da
experiência como marca da modernidade, onde o narrador não tem mais expressão, porque
a experiência perdeu seu significado original:
Ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da
velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias;
muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a
pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam
contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje
palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em
geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará,
sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (Walter Benjamim, 1987,
p. 114).

Dessa forma poderíamos dizer que não é o menino o pai do homem [FREUD] e sim,
como no caso de Nava85, o velho, o pai da criança. (...) Esse é o lugar de onde nos fala o
narrador de memórias, o lugar do velho para quem tudo é lembrança e o futuro, a
consciência cada vez mais inalienável da própria morte. (CHIARA, 2001, p. 23). Para Larrosa
(2002, p. 19-20-21), o homem é muito mais do que um animal racional, social, é um vivente
dotado de palavra. O que isso significa? É com as palavras que lidamos desde que nascemos,
e crescemos imersos num mundo de palavras, na cultura à qual fazemos parte. Quando
pensarmos a educação a partir da experiência, partimos da convicção de que “as palavras
produzem sentido, criam realidades e às vezes funcionam como potentes mecanismos de

85
Autobiografia: paixão e verdade. In CHIARA, Ana Cristina. Pedro Nava, um homem no limiar. Rio de janeiro:
EDUERJ, 2001.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 411


subjetivação”, continua Larrosa, “pensar não é somente raciocinar ou calcular ou
argumentar, como nos tem sido ensinado, mas é, sobretudo dar sentido ao que somos e ao
que nos acontece”. (LARROSA, 2002, p. 21). Também tem a ver com as palavras os modos
como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros, e diante do mundo em que
vivemos e o modo como agimos em relação a tudo isso. Portanto, é preciso, considerar as
experiências coletivas da autoformação, “elas vêm de um investimento social, no caso do
processo escolar, ou das tramas dos encontros e desencontros que temos com os outros e
com o meio, ao longo da vida”. (BRAGANÇA, 2011, p. 160).
Ao pensar a relação entre o método (Auto)biográfico e a escrita de si, trazemos o
conceito de memorial (auto)biográfico em Passegi (2010) como uma escrita institucional de
si que há mais de setenta anos vem se construindo e se modificando de acordo com a
própria transformação do ensino superior no Brasil,

O narrador nesse tipo de escrita oscila entre a resistência à pressão institucional,


que ‘obriga’ o candidato a refletir sobre a história de sua formação intelectual e
profissional, e o fascínio da escrita autobiográfica, que desencadeia o prazer de
escrever sobre si mesmo. (PASSEGGI, 2010, p .19).

No tocante à territorialidade na formação do professor, compreendemos que a


profissionalização docente estando arraigada ao contexto sócio, histórico, político e cultural,
da relação pessoal e profissional, trazemos um recorte da abordagem da proletarização
atrelado ao contexto da profissão docente, que levou a uma descaracterização do
profissional da educação, pela desvalorização do magistério no contexto social capitalista,
enraizado historicamente desde o pós-guerra até os dias atuais, (SOUZA, 2011, p. 214-215).

Nesse ponto é que identificamos a relevância do trabalho docente da escrita de si,


desde quando:
O registro narrativo permite compreender o modo como cada sujeito
permanecendo ele próprio, se transforma. [...] ao selecionar aspectos da sua
existência e ao tratá-los na perspectiva oral e escrita, organiza suas ideias e
potencializa a reconstrução de sua vivência pessoal e profissional de forma
autorreflexiva como suporte para compreensão de sua itinerância vivida. (SOUZA e
CORDEIRO, 2010, p. 219-220)

Outro aspecto importante que deve ser lançado mão, é a dimensão literária
constitutiva no processo da escrita de si, na redescoberta do professor-leitor, de como “as
experiência de leitura ganham sentido quando o sujeito se transforma e aprende a partir de
suas próprias marcas sócio-históricas”. (SOUZA e CORDEIRO, 2010, p. 227).
As relações desses sujeito com dificuldades sociais, econômicas, amorosas, escolhas,
orientações, rupturas, enfim, o universo humano em sua forma singular, ou seja, em sua
subjetividade, é “desvelado pela memória do passado, como um presente que se expande”
(CHIARA,2001, p. 22) e ao ser resignificado, reinventa-se, em uma autopoiese.
Na docência das disciplinas Práxis Pedagógica e Estágio Curricular Supervisionado,
mediante as dificuldades e problemas encontrados na educação contemporânea
concernentes à precarização da qualidade do ensino-aprendizagem discente e docente,
inferimos que somente a racionalidade técnica na formação de professores tem sido
bastante questionada em sua prática como método pedagógico em detrimento aos saberes
docentes, estes, adquiridos pela experiência ao longo da trajetória da história de vida
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 412
profissional e pessoal, atreladas ao sujeito que ensina e que aprende em que vemos surgir o
que chamamos de uma racionalidade prática, como um contraponto ao uso do tecnicismo, é
uma forma qualitativa de tratar a produção de sentidos na formação do profissional da
educação.

Ateliê de Professores como uma modalidade da Abordagem (auto)biográfica

Até aqui viemos trazendo as dimensões conceituais que compõem o arcabouço


teórico da investigação-formação e narrativa (auto)biográfica de professores, no intuito de
fundamentar teoricamente os sentidos produzidos na experiência com as professoras em
formação.
A literatura sobre o surgimento dos ateliês biográficos de professores, encontra-se
no contexto histórico do método (auto)biográfico trazido para educação de adultos,
precisamente, no trabalho de Pierre Dominicé, junto à sua equipe de investigação. Foram
estudos voltados para processos de formação e de conhecimento dos adultos, nomeado de
Biografia Educativa, cujos resultados das pesquisas deram lugar e foram fontes de
referências e publicações aos artigos de Cristine Josso, Mathias Finger e Marcel Fallet.
(DOMINICÉ, 2010, p. 84).
Influenciado e interessado com o trabalho de Pierre Dominicé, Antônio Nóvoa
elabora o Projeto Prosalus em 1986, uma experiência de formação utilizando as Histórias de
Vida (NÓVOA e FINGER, 2010, p. 157-186).
Atualmente encontramos em Christine Delory-Momberger, pesquisadora franco-
alemã, o trabalho com Ateliês Biográficos de Projetos (DELORY-MOMBENGER 2006), cujo
objetivo com este dispositivo metodológico, está em promover a emancipação profissional
docente, a partir da possibilidade do sujeito biografar-se. Com esse mesmo sentido, é que
voltamos o olhar para os movimentos de professoralização, buscamos conhecer o processo
pelo qual o sujeito torna-se professor, ou seja, a estética da professoralidade (PEREIRA,
2013).
Esse trabalho tratou de uma experiência incipiente, cuja participação das professoras
deu-se durante a aula de Práxis, onde as narrativas foram encadeadas inicialmente a partir
da lembrança de um objeto de valor sentimental, de escolha pessoal, anteriormente
solicitado às professoras-alunas a fim de participaram da atividade pedagógica denominada
Ateliê de Professores: Baú de Memórias. Importante dizer que uma experiência semelhante
havia sido vivenciada antes por um dos autores, como aluna especial da disciplina
Abordagem (Auto)biográfica e formação de professores-leitores, no Mestrado em Educação
e Contemporaneidade.
Nossa experiência com o Ateliê de Professores reportou-nos a alguns sentidos
fundamentais do método (auto)biográfico, como a revelação do grupo primário como
mediação entre o social e o individual, propondo-se como “espaço de ligação onde se
articulam reciprocamente e se esbatem um ao outro, o público e o privado, as estruturas e o
eu, o social e o psicológico, o universal e o singular” (FERRAROTTI, 2010, p. 54). Podemos
ver com Ferrarotti a dimensão de síntese do sujeito, a partir da concepção dialética do
sujeito histórico que se engendra como síntese de ser ao mesmo tempo, singular e universal:

Devemos procurar os fundamentos epistemológicos do método biográfico noutro


lado, numa razão dialética capaz de compreender a “práxis” sintética recíproca,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 413


que rege a interação entre o indivíduo e um sistema social. (FERRAROTTI, 2010,
p.50)

Exporemos em seguida, à guisa de uma marca, durante o processo, a escrita


(auto)biográfica, a memória da experiência , realizada m formação, no ateliê de professores,
realizado em 27/10/13:
Na porta, um mensageiro dos ventos dava-lhes as boas vindas evocando
ressonâncias. Enquanto iam colocando sutilmente seus objetos no Baú,
surpresas e curiosas, as professoras-alunas observavam a sala de aula, que
transformada, mais lembrava algum lugar do passado... No quadro-negro as
cortinas transparentes e esvoaçantes davam a ideia de uma janela aberta
para o céu de estrelas... Cobrindo a velha mesa, uma toalha de cetim e
sobre esta, alguns livros de poesia atraiam os olhares, e pediam para serem
lidos, como uma recomendação antes das memórias; Uma manta de linho
para aprochegar-se da cadeira e do baú de vime adornado com filó
sugerindo leveza, guardando as lembranças. Havia ali um guarda-chuva
para amparar as águas que porventura viessem anuviar o clima de onde se
ia contando a vida, e na contracena, um leque para abanar o calor dos
afetos, objetos que quereriam pular pra fora do baú das memórias: O
antigo cabide do avô (pessoa mais importante na vida); Retratos de quando
se era criança; Anéis de formatura, presentes da vida; Manteigueira de
vidro com a forma de uma galinha dourada, (a galinha dos ovos de ouro?);
Panos bordados de histórias, fios de crochês; bíblia com iluminuras
iluminando os caminhos, palavras de amor escritas em cartões... Entre as
lembranças, ouvia-se o silêncio. Nem todas quiseram falar. A vida resistia às
condições sociais, afetivas, culturais, profissionais. Muitos casos de
abandono de mães, dificuldades financeiras, tiranias de maridos, de muitos
amores também pelos filhos, de doenças, de paixões. A escolha pela
profissão se deu em alguns casos como por acaso, em outros por
necessidade/oportunidade, outros por determinação de outros e em alguns
poucos, por querer mesmo ser professora.

Foram momentos densos, emotivamente fortes, que tornavam difícil


controlar o tempo das narrativas. Ao contrário de como imaginava, as
professoras queriam falar, em alguns momentos foi preciso intervir,
lembrando o tempo que corria solto. Feito um pacto de respeito mútuo,
sem palavras, mas com os olhares, com os gestos de delicadeza de
gentileza, fomos todas testemunhas das dores de todas ali presentes.

E assim terminamos a aula, com educação e ética. Fiquei com um


sentimento de humanidade, nos tornamos um pouco mais humanas
naquele dia, e a sensação era de que não seremos mais as mesmas daqui
pra frente: Menos descaso, menos desinteresse, mais comunicação, mais
cuidado de si e do outro.

Algumas considerações

A citada pesquisa no campo da formação de professores, vivenciada a partir do


próprio contexto pedagógico – e este intermediado pela Arte e pelas narrativas como

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 414


propulsoras de sentidos, neste veio, o ambiente sociocultural e a prática docente de
professores atuantes em classes de anos iniciais da educação básica, subsidiam este estudo
acerca da experiência da formação, guiado pelas seguintes questões:
Como a abertura à experimentação estética, à experiência criativa, poderá constituir
em renovados movimentos de professoralização?
E ainda, de que modo, ao acionar as narrativas da própria vida o sujeito poderá
acionar a si mesmo e à sua professoralidade no sentido de promover ações de
transformação?
Sobre a especificidade da abordagem (Auto)biográfica no campo educativo,
tomamos como um dos fios da análise a busca de uma epistemologia de formação que,
“contrapondo-se à racionalidade técnica, mobilize uma racionalidade sensível, incorporando
a vida dos sujeitos, em toda a sua complexidade existencial, como componente fundamental
do processo formativo” (BRAGANÇA, 2011, p. 157). Na concepção que tem como proposta
metafórica o professor como um artista- que experimenta estratégias de ensino, até
encontrar a melhor forma de expressá-las, ultrapassando níveis individuais de ação (MIDLEJ,
2008, p. 1).
Nossas considerações teóricas acerca desta mediação no processo de formação de
professores fundamentam-se na concepção de uma ação docente implicada e presente no
tempo real da formação, numa perspectiva de “reflexividade crítica e consciência
contextualizada operante ao assumir a palavra, gerando um saber a partir da partilha do
discurso”, de acordo com Nóvoa e Finger (2010, p.166-167), assumindo como um ponto de
vista em que “a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos da
vida”.
A escuta do outro implica, pois, em “narrar a experiência e refletir sobre a autonomia
ausente ou presente nas minhas ações e me perceber enquanto sujeito nesse processo”.
(JOSSO, 2010, p. 61-63). “Entre a ação dos outros (heteroformação) e a do meio ambiente
(ecoformação), parece existir ligada a essas últimas e dependentes delas, mas à sua maneira,
uma terceira força de formação, a do eu (autoformação)”, sendo esta considerada “um
fenômeno tridimensional que acontece em um processo dialético, permanente e
multiforme, cujas narrativas das histórias de vida como método de investigação-ação,
contribuem para a consciência individual e coletiva” (PINEAU, 2010, p. 99).
Na perspectiva de Gastón Pineau, a História de Vida é prática autopoiética, ou seja
“aquela que trabalha para produzir por si mesma sua própria identidade e agir de
conformidade com o seu propósito” (PINEAU, 2012, p. 16) . Assim, inferimos que a formação
é sempre autoformação e só se desenvolve pela relação tripolar, ou seja, se desenvolve no
ambiente, com o outro e consigo. Sem essa relação, podemos dizer que não há formação.

Essa pesquisa tem como pretensão dar continuidade e aprofundamento investigativo


a esses processos iniciados, levando em consideração o ponto de vista coletivo da
autoformação, os movimentos de professoralização e a estética da professoralidade.
É, portanto, partindo dos Ateliês biográficos de professores como um dispositivo
metodológico em um processo de investigação-formação, no campo por excelência da
formação de professores no curso das disciplinas Práxis e Estágio VI, dos estudos das
Histórias de Vida e (Auto)biografia de professores, que buscamos investigar no processo de
desenvolvimento profissional docente, nos ciclos de vida profissional dos professores
(NÓVOA, 1992); e nos saberes experienciais docentes, a estética da professoralidade não
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 415
como uma identidade, mas sim como uma “diferença que o sujeito produz em si” (PEREIRA,
2013, p.35). No sentido em que “Vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é
diferir de si mesmo” (Idem), sentido que se expressa na pessoa e no profissional. No dizer de
Midlej (2009), “O que se está sendo, quando se é professor, é um componente atualizado de
diferentes vetores de forças do campo imanente de possibilidades históricas e culturais que
se circunscrevem e se atualizam” (MIDLEJ, 2009, p. 36).
Ao problematizar a professoralização na compreensão da professoralidade, estamos
no campo da subjetivação e no contexto continente e contingente das suas circunstâncias,
ou seja, entre o limiar e no infinito.
Compreendamos com a explicação do autor sobre essa dualidade:

O grande mote do trabalho de formação, assim, aparece como uma imensa


vontade de poder viver para fazer os outros viverem, de saber aprender para levar
os outros a aprenderem. Motivação prometeica de roubar o fogo aos deuses para
dar aos homens, mas com a característica do trabalho de Sísifo: nunca suficiente,
nunca o bastante, nunca esmorecendo, sempre suspeitando, cada vez inventando
o mundo e inventando-se para estar nesse mundo e inventar-se com os outros.
(PEREIRA, 2010a.p. 66).

Enfim, ao refletirmos sobre a metáfora da motivação prometeica, fazemos uma paráfrase


com o autor Marcos Villela Pereira, supondo a escola com espírito do mito Prometeu, por ser
concebida como uma promessa de futuro - ao manter acesa a chama do fogo do conhecimento, tão
arduamente roubado dos deuses e, ao mesmo tempo condenado pela ousadia – o conhecimento é
perigoso? Todavia a educação também é Pandora, no sentido de que apesar das mazelas, resta ainda
uma esperança – a estrela no fundo da caixa: A educação é encarada sempre como uma esperança
do futuro. Contudo, não podemos esquecer as dimensões da territorialidade na formação e profissão
docente.
Justamente sob tais óticas acontece a nossa pretensão em articular estética, arte,
educação nessa investigação-formação apoiando-nos, também em ARANHA, (2003, p.397)
quando afirma que o desenvolvimento das concepções estéticas é histórico, já que cada
época e lugar propõem questões diferentes para a vida humana, sendo que o papel e a
função da arte na vida têm variado conforme a geração e o espaço da vida. Sua afirmação
passa, portanto pela presença da Arte e do estético no mundo humano.
Ao pretendermos abordar a presença da Arte na educação, não estamos nos
colocando como pesquisadores em Arte Educação – não temos a pretensão de nos colocar
nos parâmetros de pesquisadores e militantes de dignas lutas a exemplo de Ana Mae
Barbosa (2005), entre outros; apenas, de alguma forma, a vivência com a Arte em boa parte
de nossa vida imbricada no processo formativo docente, passa a constituir-se como um foco
investigativo. Queremos o presente pela mediação da experiência estética quiçá a perpassar
a ação pedagógica. Pereira (2012 a, p.1), novamente nos dá suportes epistemológicos ao
afirmar o que acreditamos: “[...] chamo estetização a essa forma de induzir ou atuar sobre o
mundo e os sujeitos de modo a conduzi-los a certa performance ética e política no âmbito da
vida coletiva”.
Assim, mobiliza-nos abordar acerca das relações entre a estética, a escola no mundo
contemporâneo, os movimentos de professoralização e a professoralidade, tendo em vista a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 416


estetização da escola como um campo fértil de subjetividade, experiências de formação e
narrativas de vida.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 418


Trajetórias profissionais e de formação: lentes ampliadas a partir da experiência no PIBID

Maria do Socorro da Costa e Almeida


UNEB
help26@uol.com.br

O presente estudo doutoral aborda a relação entre a experiência no Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência – PIBID e a construção de trajetórias profissionais e de formação por participantes
bolsistas, no âmbito de um subprojeto de Pedagogia, da UNEB. O trabalho articula categorias como iniciação,
formação, experiência e trajetória profissional, no contexto da aprendizagem da docência. Discute as nuances
das políticas, ritos e práticas inerentes à entrada na profissão de professor. Relaciona os aportes da abordagem
autobiográfica para dar visibilidade aos processos que caracterizam as trilhas polissêmicas e multirreferenciais
que interpretam as aproximações entre Universidade e Escola. Busca a produção de sentidos a partir da adoção
de entrevistas narrativas para obtenção das ideias dos colaboradores da pesquisa acerca dos aspectos,
percepções e implicações das experiências vivenciadas por eles, no PIBID, para sua iniciação profissional.
Investiga o trabalho docente à luz da literatura contemporânea, de matriz histórico-crítica, confrontando-a com
documentos sobre políticas públicas para o fomento à qualidade da educação, com a legislação educacional
vigente e com a discussão sobre o papel da Universidade na formação de professores. O trabalho discute,
especialmente, as tensões da “entrada no mundo da profissão”, problematizando a reflexão sobre a iniciação à
docência, a partir de sua gênese e historicidade. Aproxima os debates que indagam a responsabilidade sobre a
melhoria dos resultados de aprendizagem na escola e a qualidade da formação de professores, indagando a
eficácia do modelo curricular atual para a construção do perfil do egresso da licenciatura em Pedagogia.
Palavras-chave: Iniciação; Formação; Docência; PIBID.

Introdução

O presente artigo aborda a tríade Iniciação/Formação/Docência, considerando os


referenciais que orientam a pesquisa doutoral: ‘Trajetórias de Formação e Profissionalização
Docente: reflexões político/formativas sobre o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
à Docência – PIBID’.
Seu foco consiste em investigar trajetórias de formação profissional, utilizando
algumas concepções teoricometodológicas dos estudos sobre formação de professores,
articulando-as aos usos dos dispositivos próprios das abordagens (auto)biográficas de
pesquisa, em especial, o uso do procedimento: narrativa de vida (DELORY-MOMBERGER,
2012). São utilizados para consecução deste trabalho, subsídios das investigações de autores
contemporâneos, a saber: Mello (2000); Nóvoa (2000 e 2002); Souza (2004; 2006; 2008 e
2012); Pimenta (2002 e 2007); Catani (2006); Contreras y Lara (2010), dentre outros.
Vale destacar que o PIBID consiste em uma política de formação inicial de
professores, implementada em 2007, pelo Ministério da Educação através de ações da
CAPES86 (BRASIL, 2013), visando fomentar a qualidade na educação básica por meio da
oferta de bolsas aos licenciandos participantes de Subprojetos institucionais que aproximam
Universidade e Escola Básica no acompanhamento dos bolsistas em seus percursos de
iniciação ao trabalho docente.
Minha aproximação em relação um Subprojeto fez aumentar o meu interesse pelos
estudos acerca da formação docente e reconhecer a necessidade de pesquisá-lo para
compreender alguns sentidos e injunções que atravessam essa política e minha própria
condição de educadora em formação.

86
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 419
Para este trabalho foi escolhido um recorte que explicita cenas de minha trajetória
profissional, reveladas por meio de narrativas que descrevem os sentidos de alguns
momentos de minha formação e profissionalização como educadora. As narrativas aqui
relacionadas destacam minhas memórias e impressões sobre a experiência de entrada na
profissão docente, as possibilidades, tensões e desilusões sobre as práticas profissionais na
escola e o impacto de vivenciar o diálogo com minha própria história de vida e formação
(Souza, 2004); Josso (2004) ao realizar o acompanhamento, por meio de pesquisa
qualitativa, de um Subprojeto do PIBID para Iniciação à Docência, vinculado a um
Departamento de Educação, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB.
Este texto, portanto, está organizado em três sessões integradas: reflexões sobre
iniciação e trajetórias docentes, apresentação de trechos de minhas narrativas sobre a
vivência da formação para e na docência, além, de seus impactos no meu percursos de
formação e de (auto)formação, especialmente mobilizados após o inicio de minha
aproximação investigativa sobre a condução do já citado Subprojeto do PIBID, desenvolvido
na Licenciatura em Pedagogia.

Sobre a tríade iniciação/formação/docência

A tríade iniciação/formação/docência tem sido abordada na literatura especializada,


constituída de publicações de resultados de pesquisas, apresentados em livros e periódicos,
nos quais a docência tem diferentes ênfases, com vários níveis de implicação para a
formação (CATANI, 2001); (SOUZA, 2004) (CONTRERAS y LARA, 2010). Embora a docência
seja tratada à luz de distintos paradigmas, neste estudo, ela é compreendida como um
conjunto de concepções e práticas sociais, aprendidas e históricas de apropriação de modos
de fazer, avaliar e refletir sobre o trabalho educativo.
A docência é carregada de especificidades relativas aos percursos dos sujeitos nas
etapas constituintes do ‘tornar-se professor e tornar-se professora’. Desde sua a história
vivida como estudante, à relação com a escola, escolha da profissão, as interações com os
componentes curriculares das licenciaturas, as primeiras experiências de observação do
trabalho realizado na escola e os desafios tecnopolíticos que marcam os percursos da
profissão (GATTI e BARRETO, 2009); (GATTI e NUNES, 2009) tem se tornado cada vez mais
complexos, visto que as demandas e arranjos da contemporaneidade refletem as tensões
inerentes a um tempo de incertezas políticas, econômicas e de possibilidades tecnológicas
emergentes, redefinindo as posições dos sujeitos e o que esperar da escola (BARNETT,
2005).
Dentre os aspectos que compõem uma trajetória profissional em educação
(PIMENTA, 2002 e 2007) destacam-se as experiências constituídas a partir das práticas, dos
confrontos entre concepções e demandas reais do trabalho profissional do professor
durante sua atuação didática. Envolve, também, a redefinição de suas estratégias e tomadas
de decisões para constituir um trabalho pautado na reflexão, na compreensão e na ética
com vistas à aprendizagem dos estudantes e suas apropriações enquanto profissional em
formação.
Para viver uma trajetória profissional, o sujeito é convocado a experimentar alguns
ritos de passagem, pois, para cada etapa faz-se necessário conjugar conhecimento,
capacidade técnica, leituras contextualizadas da realidade e aventurar-se na construção de
sua identidade profissional, articulando competência e intuição. Nesse sentido, o papel da
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 420
iniciação à docência ganha destaque para subsidiar as indagações sobre o que se esperar da
formação e, ainda, questiona sobre os saberes necessários para a atuação eficaz e
transformadora da Escola, das Licenciaturas e, sobretudo, do professor em formação.

A entrada no mundo da profissão e o pibid

As primeiras aproximações realizadas no acompanhamento de um Subprojeto de


Iniciação à Docência indicam como aspecto positivo do PIBID, a possibilidade de combinar
ações de programas distintos voltados para a melhoria da educação. E, como fragilidades,
aparecem o fato de contemplar com bolsas, só os participantes dos Subprojetos, ficando
todos os demais licenciandos à margem dessa política. Outro aspecto relevante consiste na
impotência material e política que os Subprojetos revelam frente à abrangência das
necessidades pedagógicas evidenciadas pelas escolas onde ocorrem as práticas e o
acompanhamento formativo dos estudantes. A imagem a seguir apresenta alguns aspectos
que integram a mediação Universidade/Escola na construção das trajetórias dos
participantes bolsistas dos estudos e práticas no ambiente escolar.

Imagem 1. Categorias que Atravessam o Pibid

Fonte: Acervo de Almeida (2014)

O PIBID transita entre duas frágeis realidades, simultaneamente, a saber: as práticas


de iniciação profissional nas Licenciaturas e a as práticas que caracterizam o trabalho
docente na Escola Básica, da rede pública. A concepção institucional do referido Programa
está assim descrita, no Portal da CAPES:

O PIBID é uma proposta de valorização dos futuros docentes durante seu processo
de formação. Tem como objetivo o aperfeiçoamento da formação de professores
para a Educação Básica e a melhoria de qualidade da educação pública brasileira.
O PIBID oferece bolsas de iniciação à docência aos estudantes de cursos de
Licenciatura que desenvolvam atividades pedagógicas em escolas da rede pública
de Educação Básica; ao coordenador institucional que articula e implementa o
programa na universidade ou instituto federal; aos coordenadores de área

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 421


envolvidos na orientação aos bolsistas; e, ainda, aos docentes de escolas públicas
responsáveis pela supervisão dos licenciandos. Também são repassados recursos
de custeio para execução de atividades vinculadas ao projeto. (BRASIL, 2013, p.1)

Muito atenta às armadilhas do discurso oficial e aos textos que indicam que há
correlação entre qualidade da formação docente e a ampliação das oportunidades para a
valorização da escola, considero que a proposta do PIBID deve ser tratada de forma crítica e
contextualizada; sabendo-se das contradições que envolvem a implementação de um
programa de formação inicial de professores e do risco de se reduzir as responsabilidades
frente às mudanças na educação e ao investimento na formação docente por meio da
execução de programas pontuais. Ademais, existe sempre a possibilidade nefasta e
politicamente reincidente de responsabilizar o professor pelos fracassos das políticas
educacionais e pela debilidade da escola, especialmente, no Brasil.
O PIBID pode, desse modo, pode contribuir para uma discussão acerca da docência
(GALVÃO, 1998); (DOMINICÉ, 2010), tão secundarizada nos debates e práticas acadêmicas
quando comparadas com o prestígio atribuído ao campo e às práticas de pesquisa. Nesse
sentido, os referenciais seguidos nesta pesquisa apostam no valor dos saberes das práticas
como igualmente relevantes aos resultados dos estudos científicos.
Contudo, o que vem a se caracterizar como uma das justificativas para o
investimento de recursos públicos na promoção do PIBID é, sobretudo, a tentativa de
promover a transformação da realidade escolar, por meio de alterações substantivas nas
concepções que transversalizam os cursos de formação de professores, visando superar
obstáculos relacionados à aprendizagem da profissão docente.
A aproximação entre universidade e escola é um dos principais objetivos do PIBID,
pois, a superação dos obstáculos entre os dois contextos possibilita a reinterpretação dos
potenciais dos saberes e práticas produzidos em suas fronteiras, assim como, as tensões que
impregnam as relações de aprendizagem dos discentes nos processos formativos que
compõem a construção das trajetórias profissionais de professores, futuros egressos das
Licenciaturas (ALMEIDA, 2013, 2014, 2014a).
As experiências de docência, portanto, são promovidas nos Subprojetos do PIBID e
tendem a oportunizar visitas regulares à escola, aproximando o estudante universitário do
mundo das relações concretas estabelecidas entre os professores já graduados com as
crianças, as famílias, o grupo gestor da escola, dentre outros atores do contexto escolar,
desvelando formas de conceber e desenvolver as abordagens didáticas, como também, as
diversas estratégias de aprendizagem de conceitos, fatos, relações e atitudes construídas
por crianças e adolescentes, nas interfaces com os currículos das escolas públicas
Para compreender os sentidos, Dominicé (2002 e 2010) propõe o delineamento de
“redes relacionais”. Elas permitem que características e emergências de contextos e sujeitos
dialoguem para ampliar a qualidade da compreensão sobre as nuances de um fenômeno.
Assim, os participantes do PIBID são sujeitos de politicas públicas de formação de
professores e precisam ser considerados em seu contexto sociohistórico e com as qualidades
de suas trajetórias: pessoal e profissional, por isso, de natureza dinâmica, imprevisível e
rizomática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 422


Trajetória profissional em formação ou cenas das (bio) descobertas de meu caminho de
pesquisadora

A experiência de narrar possibilita aquecer processos de recordação e revisitação do


vivido (SOUZA, 2006). E, para compreender a experiência, faz-se necessário deixar emergir
as histórias de vida dos sujeitos, nas quais se desenham os processos formativos que
compõem distintas trajetórias profissionais, resultado da integração das experiências, mas,
longe de se constituir seu somatório linear. Souza (2014), ainda, alerta que ao trabalhar com
narrativas de vida, o processo é mais rico que o resultado final.
Portanto, socializo, aqui, cenas de minhas (bio) descobertas e traços de uma
trajetória de formação que se iniciou quando ingressei como estudante do Curso de
Magistério, com quatorze anos, no Instituto Central de Educação Isaias Alves (ICEIA),
historicamente espaço de formação de professoras para o ensino primário, hoje,
denominado anos iniciais do ensino fundamental. E, com dezessete anos, já havia concluído
o Curso de Magistério e ocorria minha entrada na profissão.
Para Dominicé, a abordagem biográfica fornece elementos para reflexão, não
pretende “contar, verificar ou provar” (2010, p. 94), visto que possibilita a revelação das
riquezas das dobraduras da realidade, por meio da ativação dos sentidos, gerando melhor
compreensão sobre e para o sujeito em dada situação. Portanto, continuo minhas narrativas
de histórias de vida pautada em textos que:
Sempre atenta às práticas, vivenciei oportunidades de trabalhar em bairros
populares, na condição de alfabetizadora e como auxiliar de pesquisa em projetos científicos
e sociais. Depois, atuei como docente na Educação Básica e na educação de jovens e adultos,
na Rede Municipal de Ensino, em Salvador, como professora concursada. Vivi, também, a
experiência com a Pedagogia Social ao trabalhar como ‘educadora de rua’, na capital baiana,
em projetos socioeducativos para crianças em situação de vulnerabilidade pessoal e social,
com grande desvantagem econômica. Dessas experiências nas ruas, resultou a pesquisa de
Mestrado em Educação, defendida na Universidade Federal da Bahia (UFBA), intitulada:
“Meninos e Meninas de Rua: um estudo sobre suas representações sociais sobe a Escola e o
Trabalho”.
A docência continuava a me inquietar, marcando qualitativamente minha biografia,
pois, muito do que eu vivia era marcado por escolhas intuitivas e alguns cruzamentos com
abordagens teóricas de referenciais histórico-críticos sobre o ‘fazer pedagógico’, na escola e
em outros espaços formativos. As vivências noturnas nas ruas com os meninos e meninas
que desenhavam e narravam suas histórias de vida e suas relações com a escola, em alguns
casos, narravam experiências e desventuras de ‘não escolarização’ devido às interdições
socioinstitucionais das quais eram objeto; fatores traduzidos em suas revelações como a
condição personificada “dos que não tem”: livro, caderno, farda, mãe para assinar a
matrícula, quem ensine o “dever de casa”, família de modelo convencional, lar, dentre
outras ausências.
Tudo isso, parecia muito sombrio, pois, evidenciava fragilidades na concepção das
políticas e processos de formação de professores que eu conhecia, tendo em vista que os
sujeitos faziam a entrada na profissão docente, totalmente despreparados, como eu fui,
para interpretar, mediar e transformar a realidade que compõe o cenário da escola, além de
ignorar muitas dessas nuances sociohistóricas e seus impactos nas políticas educacionais.
Essas lacunas na preparação para a docência serviam para imprimir regularidades às práticas
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 423
profissionais reprodutivistas, que ainda prevalecem em muitos contextos escolares, inclusive
com arquiteturas e aportes curriculares neotecnicistas, marcados por rotinas desprovidas de
criatividade e de questionamentos.
Na minha entrada na profissão, nos livros de Didática ou nas aulas de Sociologia da
Educação, já como licencianda em Pedagogia, esses temas não eram abordados. Discutia-se
“o papel e o compromisso da Pedagogia e do educador com as classes populares”, gerando
elaborações protocolares ou filosóficas, muito distanciadas das pautas que eu
experimentava como educadora nas ruas e nas escolas, com crianças de comunidades
economicamente pobres. Parecia que todos estavam incluídos no “Contrato Social”: uns
eram “membros da elite dominante e os demais, eram representantes da classe
trabalhadora”. Mas, e aqueles socialmente invisibilizados? A quem e a que serve a escola?
Qual o caráter social de meu trabalho docente? Emergiam algumas insistentes indagações
que impactaram em minha trajetória pessoal, me direcionando nas escolhas das inserções
formativas e profissionais posteriores.
Com esses questionamentos, a minha trajetória se orientou para a formação de
professores, no contexto da docência universitária. Nos Cursos de Licenciatura, passei a
organizar aulas de Didática, Estágio Curricular Supervisionado e de outros componentes
curriculares, especialmente, na graduação em Pedagogia. Atualmente, vivencio as tensões e
possibilidades do trabalho docente com as elaborações de dezoito anos de construção de
minha profissionalidade. Nesse percurso, muitas vezes, a distância entre os propósitos
curriculares canônicos da universidade e as reais necessidades impostas pelos desafios do
‘fazer pedagógico’, na academia, na escola ou na rua se evidenciaram sistematicamente.
Por isso, além das experiências elaboradas durante o trabalho docente, fui me
constituindo na profissional que sou hoje, investigando minhas afinidades pessoais e
intelectuais, minhas idiossincrasias e militâncias, buscando meu autoconhecimento por meio
de (bio)descobertas. E, considerando, como destaca Bertaux, que “[...] um duplo movimento
contraditório de homogeneização e de diferenciação caracteriza as sociedades
contemporâneas” (2010, p. 25), fazendo-me perceber, por exemplo, que minhas escolhas
acadêmicas dialogam com as opções pessoais que marcam minha trajetória e se projetam no
que eu me transformei. É uma história de vida atravessada por aprendizagens, aventuras,
frustações, rupturas e recomeços profissionais.
Por isso, me lancei no acompanhamento dos debates nacionais e na busca por meio
de leituras e participação em grupos de pesquisa, de mais contribuições de estudiosos
brasileiros e estrangeiros, vitalizando as redes semânticas que atravesso e que me ajudam a
atribuir sentidos, com especial atenção, acerca das complexas dimensões que envolvem a
formação do professor.
Assim, ao longo desses anos, atuando como professora da Educação Básica e da
universidade, tenho acompanhado momentos distintos do debate acerca da construção de
subsídios teóricos e metodológicos para o trabalho educativo na e para a escola. Desse
modo, percebo em minhas (bio)descobertas que algumas indagações são recorrentes sobre
os elementos necessários à aprendizagem da docência, tais como: Como se organizam os
saberes que orientam as práticas na escola? Como investir e acompanhar a iniciação à
docência?, dentre outras perguntas.
Contudo, essas inquietações contrastam com o visível anestesiamento de muitos
estudantes e professores universitários, das Licenciaturas, frente aos desafios da docência,
em particular, em relação às emergências e especificidades da escola básica. Muitos falam e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 424
agem como se fosse imperativo adiar ou abreviar o contato com o cenário no qual atuarão
como egressos das Licenciaturas ou como mediadores de aprendizagem sobre a profissão.
Esse distanciamento simbólico e geográfico se acentua ainda mais quando o ‘lócus’ de
possível aproximação constitui-se nas classes dos anos iniciais, da escola pública (ALVES e
GARCIA, 1999); (MELLO, 2000); (ALMEIDA et al, 2012).
Vale ressaltar, portanto, que as vivências curriculares dos universitários na escola
básica, fora dos muros da academia, são quantitativamente reduzidas na carga horária dos
currículos das Licenciaturas. As atividades de iniciação à docência se caracterizam,
principalmente, por ações dirigidas e pontuais de observação de aulas, breves entrevistas a
professores e gestores, culminando com o momento, muitas vezes, adiado, temido e
descaracterizado: Estágio Supervisionado Curricular.
Esse encontro - licenciando e sala de aula do ensino fundamental -, revela,
frequentemente o distanciamento entre a formação do futuro professor da Educação Básica
(ALMEIDA et al, 2012) e as necessárias experiências inerentes à docência, representando um
obstáculo a ser transposto pelos Cursos de Licenciatura e pelas ações e políticas de
investimento na profissionalização docente.
Portanto, movida por elementos desta trama socioacadêmica, desde 2011, me
engajei como pesquisadora em um Subprojeto de iniciação e profissionalização de
licenciandos do Curso de Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia. Esse Subprojeto
está vinculado ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Com este
engajamento busquei mais elementos para minhas (bio)descobertas e construção de minha
trajetória profissional.
Constituem, também, minhas aprendizagens sobre a docência, aquelas desenvolvidas
nas participações, com apresentação de comunicações e painéis, em eventos científicos
nacionais e internacionais87, lembrando que as marcas das minhas histórias de vida-
formação (JOSSO, 2004) edificam minha condição de professora e de pesquisadora, em
permanente desenvolvimento, constituída, sobretudo, por minhas práticas profissionais.
Ao narrar minhas experiências vivencio movimentos autoformativos, repensando
minhas ações, angústias, superações e aprendizagens. Esta pesquisa, ao conceber a ‘escuta’
das narrativas implicativas da pesquisadora, favorece elementos contundentes para a
reflexão acerca do trabalho docente, horizontalizando o trato com o conhecimento,
admitindo a aprendizagem a partir de lentes ampliadas, lançadas sobre os dilemas da
profissão, sobretudo, aqueles tensionamentos mais frequentes na iniciação profissional.
Assim, as narrativas revelam algumas trilhas percorridas em minha história de vida-
formação, alimentam e potencializam meu interesse por investigar as experiências que
compõem a profissionalização docente, considerando as narrativas de vida que emergem
dos participantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID,
empreendimento que faz parte das próximas etapas da pesquisa.

Breves considerações

As evidências de minhas (bio)descobertas e a as relações que dinamizam as


aproximações entre iniciação, formação e docência permitem considerar as riquezas nas
trocas realizadas pelos sujeitos em seus percursos formativos, suas experiências e
87
ENDIPE, 2012; EPENN, 2012; ELLUNEB, 2013 e o IV SIMPÓSIO MEMÓRIA, (AUTO) BIOGRAFIA E
DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA, 2014.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 425
aprendizagens da prática e pela prática, proporcionando o reconhecimento da
multirreferencialidade que compõe os mundos sociais e impactam na construção de
trajetórias profissionais de professores.
Assim, as bases epistemológicas que sustentam o conhecimento sobre o trabalho
docente podem ser revisitadas, permitindo novas reflexões sobre a singularidade do ‘fazer
pedagógico’ e o necessário empoderamento político/formativo do professor, a partir da
apropriação reflexiva sobre esse ‘fazer’ profissional.
O ‘tornar-se professor’ é, portanto, resultado de muitas aproximações e
investimentos. Traduz a qualidade das trocas e das experiências vivenciadas na escola e as
atitudes frente aos processos didáticos e aos dispositivos de mediação no contexto da aula.
Portanto, as narrativas sobre iniciação profissional se apresentam como particularmente
delicadas e importantes, pois, expõem o sujeito, no caso deste trabalho, partilha um pouco
de minha história de formação. Em geral, propicia uma reflexão e entrafretamentos ao novo,
aos desafios adultos do mundo da profissão, seus atores, rituais, linguagens, cultura,
políticas, possibilidades e interdições.
Desse modo, este estudo valida o caráter político/formativo da correlação:
aprendizagem da profissão e profissionalização, pois, ao dar-se conta de seus percursos,
cada sujeito poderá operar em outro nível de reflexão sobre sua própria trajetória
profissional. Ademais, a partir dessas reflexões, posicionamentos mais conscientes e críticos
sobre as interdições e oportunidades pessoais e profissionais podem se constituir,
reconhecendo as contradições de suas práticas, gerando novos arranjos que alimentem
buscas mais consistentes e contextualizadas de valorização, formação, alianças e visibilidade,
no âmbito do trabalho e da comunidade.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 426


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2014.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 428


A democratização da universidade e as escolas públicas no recôncavo da Bahia: acesso,
formação e extensão

Milena dos Santos


UFRB
milesperolanegra@hotmail.com
Miriam Feliciano de Barros
UFRB
mirian0673@yahoo.com
Samylle Pinto dos Santos
UFRB
samyllesantos18@hotmail.com

Realizar um curso superior em universidade pública no Brasil não é tarefa fácil, especialmente para estudantes
provenientes da rede pública de ensino. Além da grande concorrência que eles enfrentam, o desinteresse e a
falta de direcionamento e informação presentes em inúmeras escolas da rede pública fazem com que muitos
alunos nem almejem fazer um curso superior. A necessidade de ingressar no mercado de trabalho e a falta de
incentivo por parte de professores agravam ainda mais este quadro. Em face desse cenário, entendemos que a
passagem dos estudantes pelo ensino médio é o período que deve ser preparatório para o jovem ingressar na
vida profissional e/ou dar continuidade aos seus estudos com o ingresso na vida universitária. Portanto, esse
período é de fundamental importância, um tempo necessário para que o estudante tenha informações sobre a
vida acadêmica e subsídios que o estimule e motive a dar continuidade à sua formação. Infelizmente, apenas
uma pequena parcela dos que concluem a escola pública enfrenta o vestibular/ENEM, e ainda encontra uma
competição injusta, especialmente pelo menor preparo que apresentam em relação aos alunos provenientes
das escolas particulares e cursinhos pré-vestibulares (Segundo César (2003), apenas 2% das vagas do ensino
superior do país foram preenchidas por afro-brasileiros, em 2003. Isto reflete um quadro de desigualdades que
se confunde com a própria história da educação em nosso país. Diante desses agravantes, novas medidas que
ajudem a diminuir o distanciamento entre populações historicamente marginalizadas e o acesso ao ensino
superior têm sido implantadas. Dentre elas, destacam-se os cursos preparatórios ao vestibular/Enem, e as
cotas de participação, sendo essas últimas alvo de intenso e polêmico debate.
Palavras-chave: Acesso à universiadde; Formação; Extensão.

Introdução

Realizar um curso superior em universidade pública no Brasil não é tarefa fácil,


especialmente para estudantes provenientes da rede pública de ensino. Além da grande
concorrência que eles enfrentam, o desinteresse e a falta de direcionamento e informação
presentes em inúmeras escolas da rede pública fazem com que muitos alunos nem almejem
fazer um curso superior. A necessidade de ingressar no mercado de trabalho e a falta de
incentivo por parte de professores agravam ainda mais este quadro (VASCONCELOS, 2005).
Em face desse cenário, entendemos que a passagem dos estudantes pelo ensino
médio é o período que deve ser preparatório para o jovem ingressar na vida profissional
e/ou dar continuidade aos seus estudos com o ingresso na vida universitária. Portanto, esse
período é de fundamental importância, um tempo necessário para que o estudante tenha
informações sobre a vida acadêmica e subsídios que o estimule e motive a dar continuidade
à sua formação.
Bellini e Ruiz (2001, p. 154-155) Apontam a preocupação que a escola pública deve ter
com o acesso ao ensino superior, diante das crescentes exigências de formação para
obtenção de um emprego, diminuindo assim a marginalização e a exclusão social:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 429
A função da escola é formar o cidadão atuante, crítico, através da
transmissão/ apropriação do conhecimento, numa relação dialética
que envolva professor e aluno. Se a escola fizer isso com qualidade,
pode estar ajudando os jovens a ter um bom desempenho como
cidadãos. Acreditamos que o direito e a chance de acesso ao ensino
superior fazem parte dessa formação e, se há algum instrumento para
selecionar, seja ele qual for, tem que ser levado em conta pela escola
pública [...].

O papel que as escolas exerce na formação dos alunos de um modo geral é irrefutável,
sua função social é fundamental e necessária, embora exista crise nesta instituição de
ensino.
Infelizmente, apenas uma pequena parcela dos que concluem a escola pública
enfrenta o vestibular/ENEM, ainda encontra uma competição injusta, especialmente pelo
menor preparo que apresentam em relação aos alunos provenientes das escolas particulares
e cursinhos pré-vestibulares (CASTRO, 2001).
Segundo César (2003), apenas 2% das vagas do ensino superior do país foram
preenchidas por afro-brasileiros, em 2003. Isto reflete um quadro de desigualdades que se
confunde com a própria história da educação em nosso país. Diante desses agravantes,
novas medidas que ajudem a diminuir o distanciamento entre populações historicamente
marginalizadas e o acesso ao ensino superior têm sido implantadas. Dentre elas, destacam-
se os cursos preparatórios ao vestibular/Enem, e as cotas de participação, sendo essas
últimas alvos de intenso e polêmico debate.
As políticas adotadas pelo governo brasileiro, nos últimos anos, com o intuito de que,
cada vez mais jovens cursem o ensino superior, tem se fortalecido visivelmente, visto que a
universidade historicamente um espaço elitizado, no Brasil, o acesso a educação superior foi
reservado aos filhos da elite, com pequenos históricos de expansão e democratização. A
partir da década de 1960, os movimentos de abertura do sistema se tornaram mais fortes.
Nos anos 1990, foi possível registrar diversas conquistas nesse sentido, porem com um
agravante: o sistema privado cresceu mais fortemente em relação ao publico que,
consequentemente, passou a ser cada vez mais disputado. Embora representasse, em 2006,
apenas 12,5% da oferta de educação superior no país, o setor público concentrava quase
metade dos candidatos (45,3%), perfazendo uma disputa de 7 candidatos por vaga, muito
superior a do sistema privado de 1,2 (INEP, 2008). Porém a universidade tem se
democratizado e ampliado à participação e parcelas mais representativas da população
brasileira. Para democratizar o acesso ao ensino superior, o estado brasileiro tem se
engajado na criação de programas e de políticas de inclusão, que deem oportunidade para
todos, incluindo as diferentes camadas da sociedade, para que dessa forma, a educação se
torne igualitária para todos, ampliando assim, a formação geral e a cidadã, e também
ampliando as possibilidades dos jovens, em sua inserção no mercado produtivo e no
trabalho, através de uma boa educação.
Surge as varias formas de acesso ao ensino superior no Brasil.
O Prouni Programa do MEC, criado em 2004, que oferece bolsas de estudo integrais
ou parciais em instituições de ensino superior privadas.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 430


Reuni teve início abril de 2007, o programa do governo federal visa a ampliação do
número de vagas tanto nos cursos de graduação quanto no ensino técnico em instituições
federais. Já foram construídos 354 campi em 321 municípios no Brasil.
Fies Destinado ao financiamento da graduação de estudantes matriculados em
instituições privadas de ensino superior, o programa do MEC foi criado em 1999. Até 2010 já
havia beneficiado 477 mil estudantes, com um recurso de R$5,5 bilhões.
Lei das Cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012) obriga as universidades,
institutos e centros federais a reservarem para candidatos cotistas metade das vagas
oferecidas anualmente em seus processos seletivos.
Enem/Sisu é o sistema informatizado, gerenciado pelo Ministério da Educação (MEC),
no qual instituições públicas de ensino superior oferecem vagas para candidatos
participantes do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem).
Que para o Ministério da Educação, o modelo de avaliação do ENEM lança-se como
inovador, na medida em que rompe com conceitos tradicionais da “educação bancária”,
que:

[...] concebe o processo de ensino-aprendizagem como uma simples transferência


do conhecimento do professor para o aluno, visto como um depositário passivo de
quem não se espera mais do que o esforço mecânico de memorização de fatos,
regras e conceitos. Ao invés de testar a retenção de conteúdos das diversas
disciplinas que compõem o currículo da educação básica, como fazem os
vestibulares tradicionais, o Enem exige que o aluno demonstre o domínio de
competências e habilidades na solução de problemas, fazendo uso dos
conhecimentos adquiridos na escola e na sua experiência de vida. (BRASIL, 2010)

Para Castro (2001), a extrema fragilidade do ensino fundamental e médio da rede


pública faz com que as classes sociais passem literalmente por uma peneira, fato que resulta
em uma sub-representação das classes de menor renda no ensino superior. Ao longo dos
anos escolares, ocorre uma depuração social dos alunos, que comunica aspectos sócio-
econômicos, étnico-raciais, de gênero e geracional.
O aumento da diversidade nas instituições de ensino superior deve indicar novos
questionamentos em relação à forma como a universidade se relaciona com a sociedade,
tendo em vista os desafios no campo das políticas afirmativas existentes nas universidades
brasileiras, citando como exemplo, o sistema de cotas para correção das desigualdades no
Brasil.

A Educação no Brasil

A colonização surgiu em meio ao desenvolvimento econômico de certos Estados


Europeus, que buscavam superar as relações feudais, bem como ativar a acumulação de
capital, e acelerar o processo de formação dos Estados Nacionais centralizados. “Portugal,
Espanha, Países-Baixos, França, Inglaterra, do século XV ao XVII, realizaram sucessivamente a
transição para a forma moderna de Estado, e se lançam à elaboração de seus respectivos
impérios coloniais” (NOVAIS,1995, p. 50). É neste contexto que tem início a partilha das
terras que ainda não foram colonizadas, conforme se constata pelo Tratado de Tordesilhas
de 1494.
Neste sentido, a colonização se constituiu na organização de uma economia
complementar a da metrópole, o que tornava as colônias um instrumento de poder das suas
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 431
correspondentes colonizadoras, mas também uma preocupação a mais para proteger tal
império diante das demais potências, pois, considerando que a riqueza de um país estava na
acumulação de metais/moedas (ouro e prata), necessitou-se concentrar na metrópole o
exercício do monopólio sobre o comércio e a administração da colônia.
A produção colonial se ajustava às necessidades da procura européia. Assim, a
economia colonial se desenvolveu sobre a agricultura e a mineração, exercida pela mão-de-
obra escrava, o que assegurava os interesses dos exploradores na lógica de acumulação
capitalista. Tal proposição econômica não era vislumbrada num modelo de trabalhador
assalariado, porque acreditava-se que, neste processo, os indivíduos, diante da abundância
de terra, optariam por produzir a sua subsistência, desencadeando, assim, um descontrole
da metrópole sobre a colônia.
A metrópole portuguesa, no Brasil, se estruturou pelo aparelho repressivo de base
militar, que garantia o aparato à estrutura administrativa (jurídica e fiscal) do Estado, e o
aparelho ideológico que se funda na Igreja Católica, com o propósito de difundir a ideologia
da exploração colonial, reforçando para a aceitação da dominação e a “ressocialização” do
índio para força de trabalho servil. É sobre este último aparelho que se funda o processo de
organização educacional na colônia.
Dentre as Ordens religiosas existentes no período, a de maior importância foi a Companhia
de Jesus, criada por Inácio de Loyola em 1540. Os primeiros padres inacianos chegaram ao
Brasil em 1549. Esta data é tida como marco do início da história da educação no Brasil. A
Companhia de Jesus se organizou entre a atividade educacional tida como a principal,
voltada para a catequização (conversão) dos índios, e os serviços religiosos voltados para os
colonos. Para cumprir tal missão a companhia recebia subsídio do Estado.
Nesta primeira comitiva que chegou ao Brasil acompanhando o governador geral
Tomé de Souza, estava o Padre Manoel da Nóbrega responsável no período (1549 a 1553)
pela companhia provincial. O padre foi quem apresentou a primeira política educacional
voltada para a construção de “recolhimentos” para meninos indígenas, onde lhes era
ensinado a doutrina cristã, os bons costumes, as primeiras letras. Os mais hábeis aprendiam
o latim, os outros nativos que não se destacavam para este aprendizado, eram direcionados
para o ensino profissional agrícola ou manufatureiro. Com o tempo a proposta foi
desautorizada pela ordem, o que resultou na dissolução desta estrutura em favor dos
colégios, mas sem o ensino profissional e, sem a presença dos índios.
Os estabelecimentos de ensino da Companhia de Jesus seguiam normas
padronizadas, sistematizadas na Ratio Studiorum, que foi construída sobre meio século
(1548 a 1599) de experiência. Sua redação se efetivou sobre o acúmulo de material em
dezenas de anos e sobre a crítica dos melhores pedagogos da ordem na província da Europa,
também se submeteu à prova de experiência nos colégios, até que sob a luz de algumas
sugestões foi promulgada em 1599.
O primeiro colégio jesuíta no Brasil foi fundado na Bahia em 1550. Em 1553 passou a
funcionar o curso de Humanidades. E em 1572 os cursos de Artes e Teologia2. Toda esta
organização perdurou até 17593, quando os padres jesuítas foram expulsos do reino
português e do Brasil.
Ao longo destes duzentos anos de atividade, a ordem de Inácio chegou a dirigir 578
colégios, 150 seminários e 728 casas de ensino no mundo (FRANÇA, 1952). A expulsão dos
jesuítas dos territórios portugueses foi desencadeada por inúmeros fatores dos quais
apontaremos apenas alguns.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 432
Desde o início da colonização, Estado e igreja, confundiam suas atribuições. A Igreja sempre
esteve presente no cotidiano da sociedade com funções que iam desde catequizar e civilizar
os índios, até instaurar todo o sistema de ensino, além de outras funções que exerceram,
conforme apresenta Gonçalves (1998, p. 38).
Cabe destacar mais uma vez que a criação de cursos superior não ocorreu com
instituições universitárias, mas sim em instituições isoladas. Cunha (2007) critica e lamenta
que o Brasil colônia não recebeu a atenção de Portugal para a criação de uma Universidade.
Ao contrário das colônias espanholas, o Brasil somente veio a criar instituições de ensino
superior universitário no Século XX, quando já não era mais uma colônia. A criação dessas
instituições isoladas para oferta do ensino superior, segundo Paim (1982), deu origem à
necessidade de criação de exames preparatórios que eram prestados por alguns
estabelecimentos de ensino na época. A partir de 1837, os egressos do Colégio Pedro II não
precisavam prestar os exames preparatórios, tendo acesso direto a qualquer escola de
Ensino Superior. Mais tarde, no período entre 1891 e 1910, o acesso passou a ser
automático, sem a necessidade de exames de estudo também para os alunos formados em
escolas estaduais que possuíam currículo similar ao do Colégio D. Pedro II, então chamado
de Ginásio Nacional. Assim, a multiplicação de escolas superiores trouxe a facilitação do
acesso, mas não sem resistências a essa maneira de ingresso ao ensino superior. (CUNHA,
2000)

Ações afirmativas na ufrb

Compreende-se ações afirmativas como ações compensatórias que têm como


objetivo evitar que espaços e posições definidas por mecanismos meritocráticos sejam
ocupados exclusivamente por determinados grupos sociais privilegiados. Sua implantação
tem gerado muita polêmica, por se tratar de uma discriminação positiva em termos
institucionais, onde o que está em questão são os interesses coletivos não os individuais. As
ações afirmativas partem do princípio de que ignorar as desigualdades entre os indivíduos
acaba sendo um mecanismo de perpetuação dessas mesmas desigualdades. Assim
entendem que é preciso tratar desigualmente aos desiguais para garantir a equidade entre
eles. Desse modo, tais ações são implantadas em contextos onde diferenças estejam sendo
usadas para gerar ou perpetuar desigualdades.
Essas políticas são aplicadas em espaços restritos, não universalizados, que exigem
uma avaliação de mérito e têm como campo mais fértil para sua aplicação o sistema
educacional, o mercado de trabalho e a representação política. Moehlecke (2002) define a
ação afirmativa como:

[...] uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca


corrigir uma situação de descriminação e desigualdade infringida a certos
grupos no passado, presente ou futuro, através da valorização social,
econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um período
limitado.” ( Moehlecke, 2002, p. 203)

Na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia os estudantes tem acesso ao


Programa de Permanência Qualificada que tem como objetivos: Garantir a permanência dos
estudantes dos cursos de graduação da UFRB, ao assegurar a formação acadêmica dos
beneficiários do Programa, através de seu aprofundamento teórico por meio de participação
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 433
em projetos de extensão, atividades de iniciação científica vinculada aos projetos de
pesquisa existentes nos Centros, atividades de ensino/acadêmica relacionadas à sua área de
formação e ao desenvolvimento regional. Implementar na instituição a adoção de uma
política de permanência associada à excelência na formação acadêmica. Possibilitar maior
interação entre o ensino, a extensão e a pesquisa. Estimular pesquisadores produtivos a
envolverem estudantes de graduação nas atividades científica, tecnológica, profissional e
artístico-cultural em articulação com o desenvolvimento regional. Qualificar a permanência
dos alunos beneficiários dos Programas de Políticas Afirmativas da UFRB. Contribuir para
reduzir o tempo médio de permanência dos alunos na graduação. Combater o racismo e as
desigualdades sociais. É composto por diferentes ações de atenção às demandas
acadêmicas, entre elas as Modalidades de bolsas disponíveis: Bolsas de Auxílio à Moradia/ à
Alimentação/Bolsas Pecuniárias associadas a projetos vinculados à Extensão, Pesquisa e
Graduação e serviços (acompanhamento psico-social, pedagógico) e assistência a demandas
específicas.(UFRB/PROPAE)
No âmbito das ações de democratização e promoção do acesso ao ensino superior,
previsto nas atividades de ensino/formação, pesquisa e extensão do grupo de Educação
Tutorial – PET Conexões – Acesso, Permanência e Pós-permanência na UFRB, desenvolvemos
uma ação de protagonismo dos petianos, através da Rodas de Saberes e Formação, com o
intuito de apresentar a forma de acesso da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
tendo como público definido os estudantes de ensino médio das escolas públicas do
Recôncavo da Bahia.
Neste texto será enfocada a experiência realizada no ano de 2013, no município de
Cruz das Almas. Essa atividade, de caráter extensionista, enfoca o protagonismo dos(as)
acadêmicos(as), e tem como base as autobiografias dos estudantes que integram o gruo
PET–Conexões, e suas características que os identificam como estudantes negros, oriundos
de escolas públicas, integrantes de famílias de origem popular.
A contribuição fornecida pelo INEP diz que:

Um contigente representativo dos jovens brasileiros matriculados atualmente no


ensino médio [...] pertencem a famílias pobres, dependentes da renda que o jovem
pode auferir ingressando no mercado de trabalho. O resultado é que quase a
metade dos alunos trabalha, e boa parte tende a estudar à noite. Acabam, então,
sendo afetados cumulativamente pela pobreza, pela dupla jornada, pelo turno da
noite e por outros fatores (INEP, 2004, p. 20)

A ação tem como objetivo divulgar a forma de acesso na UFRB (enfocando os


ENEM/SISU, e o sistema de reserva de vagas), os cursos ofertados (indicar o campus/cidade
e a quantidade de cursos por campus), os centros de ensino, o programa de permanência da
universidade (Programa de Permanência Qualificada - PPQ), e as possibilidades de
programas que incentivam a pesquisa, ensino e extensão, como formas de inserção
participativa dos estudantes, e de redução do distanciamento entre a universidade e a
comunidade do seu entorno.
Colocando-se como espelho para esses jovens igualmente a nos de origem popular e
baixa renda, conhecedor das mesma dificuldades permitindo assim um bom dialogo por
desconhecer a cultura da população a quem se destina, esta extensão é antidialógica e
manipuladora. Freire 2006 nos propõe a quebra da verticalidade “coisificadora” onde um

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 434


ator é sujeito e o outro objeto, para uma relação onde todos possam ser sujeitos atuantes,
que agem e pensam criticamente.

Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a “sede do


saber”, até a “sede da ignorância” para “salvar”, com este saber, os que habitam
nesta”.
Ao contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade é tarefa daqueles que
sabem que pouco sabem - por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a
saber mais
– em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que
estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem,
possa igualmente saber mais. (FREIRE, 2006, p.25)

Em 2013, as Rodas de Saberes que é uma tecnologia sócio-educacional, concebida


coletivamente pelos saberes, expressões e partilhas sócio-culturais, a princípio dentro do
projeto Conexões de Saberes desenvolvidos durante os anos de 2007 a 2011 na UFRB. As
RSF são uma ação afirmativa de extensão, construídas pelos estudantes, dentro das escolas
de Ensino Médio, no intuito de estimular a pesquisa, o debate, a integração e a formação de
diversos jovens do recôncavo da Bahia. Nas Rodas, são experimentadas as vivências
culturais, são investigadas as experiências coletivas, os aspectos identitários, os participantes
fazem uma leitura de si mesmo e compartilham uns com os outros as suas experiências, suas
heranças culturais e tudo aquilo que teve relevância para a constituição da sua identidade
pessoal e profissional. A RSF permitem uma horizontalidade dos saberes e das contribuições
dos indivíduos envolvidos no processo formativo, em que seus relatos, aspectos, histórias e
saberes “entrem na roda”, que cada um(a) seja co-autor(a) das conclusões sobre
determinado tema ou situação enfocada. (JESUS. NASCIMENTO. 2010).
Foram realizadas nas Cidades de Cruz das Almas, Cachoeira e São Félix. Em Cruz das
Almas, nos Colégios Estaduais Alberto Torres, Landulfo Alves, Dr. Lauro Passos e Luciano
Passos, no Centro Educacional Cruzalmense, todos localizados na zona urbana. No município
de Cachoeira, no Colégio Estadual de Cachoeira e na Escola Estadual Edvaldo Brandão
situados na zona urbana, e a Escola Eraldo Tinoco situada na zona rural. No município de São
Félix, no Colégio Estadual Rômulo Galvão situado na zona rural. No município de Santo
Amaro da Purificação, foi realizada na Escola Estadual Teodoro Sampaio situado na zona
urbana.

Máterial e métodos

As atividades de divulgação nas escolas ocorrem desde 2011, entretanto,


enfocaremos a realização durante o período de inscrições para o Enem/2013, entre os dias
13 a 27 de Maio de 2013. Foi utilizada a metodologia das Rodas de Saberes e Formação –
RSF, (Jesus, 2010), uma tecnologia educacional que trabalha com o enfoque através da
horizontalidade entre os saberes e seus participantes. Durante as “RSF” nas escolas, os
estudantes do ensino médio foram apresentados às políticas de ações afirmativas da UFRB
que estão embasadas nas práticas políticas emancipatórias, críticas, de transversalidade e
pregnância, seu norteamento social voltado para a inclusão social e reparação racial, no
campo formativo, a prática do diálogo, da reflexão, sobre a vivência e questões de
identidade, a partir das experiências dos próprios acadêmicos(as)/petianos, também
egressos da escola pública e oriundos de cidades do Recôncavo. Neste contexto, a UFRB
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 435
valoriza o Recôncavo quando põe em evidência as histórias, suas culturas, tradições dos
sujeitos e grupos sociais locais, as lutas dos movimentos sociais, raciais dentre outros, e as
políticas públicas e institucionais de promoção da equidade na educação superior.
Em uma relação de participação, cooperação e mutualismo foi demonstrada a ética
que norteia a política de inclusão da instituição. No contexto das RSF, também foram
socializados panfletos, folderes e informativos institucionais.

Resultados e discussão

Concordamos com o que Marilena Chauí (2001), fala em seus escritos sobre a
universidade:

graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entretanto no espaço


político para reinvidicar a participação nos direitos existentes e, sobretudo, para
criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam
anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que
fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os
fizeram ser reconhecidos por toda sociedade. (p. 11).

A partir das novas políticas criadas para educação é possível perceber que os que
sempre foram considerados desiguais acessam os mesmos espaços anteriormente
considerados da elite, consequentemente estão cada vez mais ocupando espaços sejam eles
políticos, de direitos ou mesmo para reinvidicar novos direitos. Tornando-se evidente nos
novos sujeitos que se manifestam ativamente nos novos movimentos ou com os novos
movimentos sociais em busca desolução dos mais variados problemas da sociedade.

A Tabela 1 demonstra que a atividade realizada atingiu 78% do público alvo


inicialmente definido: turmas de 3º ano de ensino médio, de 5 escolas públicas no município
de Cruz das Almas – BA.
Como composição dos dados de análise da pesquisa, considera-se satisfatório, visto
que as atividades foram desenvolvidas durante 5 (cinco) dias, promoveu-se uma divulgação
para o público de interesse direto na temática, possibilitando que todos os alunos
concluintes do ensino médio tivessem informações a respeito do funcionamento do Enem,
do ingresse ingresso na universidade (UFRB) através do ENEM/SISU, com um detalhamento
de informações sobre os cursos da UFRB, além de explicar o sistema de cotas, as políticas
afirmativas da instituição e o programa de permanência qualificada (PPQ/UFRB). Desse
modo, a ação contribui diretamente em duas linhas: de acesso para os novos ingressantes, e
de construção de permanência com êxito para os acadêmicos, pois a atividade formativa,
promove a ampliação da afiliação universitária (Coulon, 2008) para todos os envolvidos.

Conclusão

A partir das atividades de ensino-formação-extensão desenvolvidas no âmbito do


Grupo PET Conexões de Saberes – Acesso, Permanência, Pós-permanência na UFRB, foi
possível perceber a importância da divulgação e a necessidade de ações dessa natureza,
visto que essas ações estimulam e motivam os estudantes oriundos de escolas públicas e das
camadas populares, a atuarem como mobilizadores sociais, em realidades similares àquelas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 436


em viveram e construíram a sua formação escolar, encorajando a outros em condições
semelhantes, na busca da realização do sonho de ingressar em uma universidade.
A ação formativa age diretamente para ampliar o processo de afiliação dos(as)
acadêmicos(as), uma vez que promove um maior conhecimento da instituição, suas políticas,
práticas, normas, procedimentos e organização, o que contribui para a constituição de uma
“identidade universitária” (JESUS, 2010) para estes estudantes negros e negras, egressos da
escola pública, oriundos do sistema de reserva de vagas, ao tempo em que fomenta o
protagonismo, a formação cidadã, e a autonomia nos processos formativos, tendo por
norteamento as elaborações que decorrem de suas próprias biografias, suas identidades
(culturais, sociais, étnico-raciais, de gênero), e suas experiências de vida e formação.
Essa atividade também teve como proposta transpor os muros existentes entre a
universidade e a sociedade como um todo, com a intenção de motivar os jovens a trilhar
novos caminhos na perspectiva da qualificação através do acesso a universidade. Numa
universidade criada para suprir as demandas da educação superior existente a nível regional,
faz-se necessário reafirmar o compromisso social a partir das ações do programa Pet
Conexões, que visa contribuir com a instituição para concretizar com êxito, o que se deseja
para o bom desempenho tanto da universidade como dos estudantes de modo geral.
Embora com essas ações não tenhamos a intenção de impor o acesso a universidade
como única via de desenvolvimento do jovem no que se refere ao sucesso profissional,
econômico e pessoal, pois outras políticas estão sendo criadas no sentido de minorar os
problemas de desenvolvimento profissional para esse público. Esta é apenas uma das
alternativas propostas e que os dados mostram que são eficazes. Mas é preciso estar atento
para não deixar que as oportunidades de acessar a universidade caia no esquecimento por
conta de oportunidades menores e que no futuro signifique descrença num futuro melhor.
As ações promovidas pela extensão universitária tem objetivo de inserir a
comunidade aos saberes científicos, filosóficos, culturais e tecnológicos, porém essa
demanda não isenta a responsabilidade do Estado e das políticas pedagógicas de ensino da
escola. Assumindo nosso papel como atores sociais, compreendendo nosso objeto de
estudo, relacionando e agregando o máximo de informação que pudermos de forma a
dialogar com os estudantes de ensino médio que em contrapartida contribuíram de forma
participativa na evolução do nosso processo de extensão, assim, consideramos que deve
haver também, uma redução da distância entre teoria e prática x prática e produção x
aplicação do conhecimento.
Procedendo a uma reflexão sobre os aspectos apontados nesse estudo e que levam
estudantes das classes populares, pelas suas condições pessoais e sócio-econômicos a não
ingressarem nas universidades. Nesse contexto, as políticas de ações afirmativas têm
potencial para apontar as contradições e limitações do sistema meritocrático brasileiro no
ensino superior e, partir para ações concretas na observância de um sistema de ensino de
qualidade para todos os cidadãos desde o nível fundamental, suprimindo o privilégio de
acesso e permanência no ensino superior daqueles alunos que tiveram a possibilidade de
estudar em escolas privadas de qualidade.
Embora muitos são os problemas enfrentados pelos estudantes de origem popular
para garantir o seu êxito no ensino superior, é admirável que esses jovens não desista diante
de tantas dificuldades que vai alem do acesso, ele precisam lidar com a insegurança que é
ocasionado por seu despreparo, e a necessidade de trabalho e sustento.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 437


É indispensável que novas formas de enfrentamento aos problemas que acompanha
a trajetória acadêmica desses estudantes de origem popular e vindo das escolas publicas
seja pensada tendo em vista sua trajetória de vida.

Referências
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Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13318&Itemid=310.
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contraditórios na formação de professores e de seus alunos. Revista Estudos em Avaliação
Educacional, São Paulo, n. 23, p. 154-155, 2001.
Castro, C. M. Educação superior e equidade: inocente ou culpada? Ensaio: avaliação de
políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v. 9, n. 30, p. 110-120, 2001.
Cesar, R. C. L. Ações afirmativas no Brasil: e agora, doutor? Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v.
33, n. 195, p. 26-32, 2003.
CHAUI, Marilena de Souza. Escritos sobre uma universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. Extensão
ou Comunicação. 13a Edição. São Paulo: Paz e Terra. 2006 34a edição. São
Paulo: Paz e Terra, 2006
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Ministério da
Educação. Relatório Qualidade da Educação: uma nove leitura do desempenho dos
estudantes da 3° série do ensino médio.2004.
Jesus, R. de C. D. Políticas Afirmativas e formação acadêmica: uma perspectiva de ação. In:
Nascimento, C. O. C. do; Jesus, R. de C. D. P. de. Currículo e Formação: diversidade e
educação das relações étnico-raciais. Curitiba. Progressiva, 2010. p.301-312.
MOEHLECKE, S. Ação Afirmativa: História e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117,
p. 197-217, novembro/2002
PAIM, Antonio. Por uma universidade no Rio de Janeiro. In: SCHARTZMAN, Simon (org) e
outros. Universidades e instituições científicas no Brasil. Brasília: CNPq, 1982.
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partir da percepção dos alunos de um pré-vestibular inclusivo. Ensaio: Avaliação e Políticas
Publicas e Educação. [online]. 2005, vol.13, n.49, pp. 453-467. ISSN 0104-4036.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362005000400004. Acessado em: 31/07/2013.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 438


TABELA 1.

Escolas Média de estudantes Média de estudantes Porcentagem de


prevista por escola atingidos por escola alcance
2012/2013 2012/2013

CEC – Centro 200 120 60%


Educacional
Cruzalmense
Colégio Estadual 40 30 75%
Doutor Lauro Passos
Colégio Estadual 203 163 80%
Landulfo Alves
Escola Estadual 150 150 100%
Luciano Passos
CEAT – Colégio 247 198 80%
Estadual Alberto
Torres
TOTAL 840 661 78%

GRÁFICO 1.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 439


Vida de professora: da estagiária que acalma o mar à professora que guarda tamanhos
segredos88

Monique Millet de Lima


Faculdade Dom Pedro II
educadoramonique@gmail.com
Roseli Chagas de Santana
Faculdade Dom Pedro II
educadoraroseli@gmail.com

O presente texto abrange sobre a trajetória de professoras estagiárias que se encontram em formação e atuam
na sala de aula como regentes desde as professoras de profissão que atuam com a primeira formação
acadêmica findada. O texto objetiva compreender o significado da docência na vida dessas professoras que
operam na rede pública e particular de ensino soteropolitana, mas especificamente da localidade conhecida
como Península Itapagipana (cidade baixa, zona periférica da cidade de Salvador- Bahia). Para tal intento,
apresentamos os relatos de algumas professoras estagiárias que são regentes na vida profissional, entretanto
estagiárias na academia, e de professoras que já atuam na docência há mais de cinco anos. Trata-se de uma
pesquisa (auto) biográfica, com relatos de experiências extraídos de entrevistas narrativas. Sendo assim,
percebemos que as professoras escolhem a docência como profissão, por se identificarem, desde o início da
graduação, em consequência o estágio na academia surge como uma “prova real” para tomada de decisão. Os
relatos perpassam sobre a escolha da docência e todo percurso formativo. As professoras relatam com
tamanha emoção e precisão suas ações no cotidiano escolar, desde os planos para cada turma, aos segredos
que emaranham atitudes ocultas, mas que são resolvidas e explicitadas com diálogo, paciência e vontade de
acalmar o mar (a sala de aula).
Palavras-chave: Formação; Docência; Experiências profissionais.

Viagens iniciais

“Se um veleiro repousasse na palma da minha mão


Sopraria com sentimento, deixaria seguir sempre rumo ao meu coração”.

Navegando pelo caminho da educação nos defrontamos com diversas pessoas,


comportamentos, localidades, aprendizagens, entre tantos que seríamos capazes de
escrever um livro. Porém, algo vem chamando nossa atenção, independente da localização
que o docente esteja inserido: o prazer e a vontade de viver a profissão docente. A profissão
de professor (a) é uma das mais belas profissões no Brasil, porém a beleza que identifica a
profissão não é sinônimo de valorização e / ou reconhecimento social. O trabalho docente,
ora apresentado é um cotidiano, que podemos classificar com início e meio, mas seu fim
ainda será uma incógnita. O pensar sobre histórias de vida e formação ocorreu na
graduação, no curso de Pedagogia, aproximadamente no final do curso, fomos apresentadas
ao memorial de formação por uma professora do componente curricular Leitura e Produção
Textual, e descobrimos os memoriais e a pesquisa autobiográfica. Ficamos encantadas com o
mundo de narrativas de professores e professoras de todo Brasil, que descrevem as histórias
de suas vidas e docência, dando sentido ao envolvimento com a profissão.
Este artigo apresenta uma pesquisa autobiográfica, com relatos de experiências
extraídos de entrevistas narrativas, que segundo Souza (2008) [...] é uma metodologia de
trabalho que possibilita tanto ao formador, quanto aos sujeitos em processos de formação

88
O título é baseado na música Porto Solidão do cantor Jessé
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 440
significar suas histórias de vida [...]. Deste modo, nos deixamos seduzir pela arte de contar e
encantar através de narrativas e histórias de vidas, e, descobrimos que essas narrativas são
métodos de pesquisa. Ainda segundo o mesmo autor, é no momento da escrita que os
professores serão autores e atores de suas experiências em formação e para formação de
outras identidades através do espaço oportunizado.

A escrita da narrativa abre espaços e oportuniza, às professoras e professores em


processo de formação, falar-ouvir e ler-escrever sobre suas experiências
formadoras, descortinar possibilidades sobre a formação através do vivido.
(SOUZA, 2008, p. 45).

A escolha pela docência tornou-se algo sublime, que a cada dia nos surpreendemos
pelas histórias contadas, sejam nos memoriais de formação ou em pesquisas
autobiográficas. É importante dizer que as mulheres adquiriram seu lugar de prestígio no
magistério, tornando-se maioria nos cursos de Pedagogia que têm duração mínima de
quatro anos, contando com o estágio para Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino
Fundamental. O que nos chama atenção nessa viagem, são as condições desses estágios, em
que o professor (estagiário) se desloca da residência paras às instituições em que é docente,
mas ao mesmo tempo discente.
Nos bastidores destas vivencias, milhões de fatos ocorrem, mas nem sempre são
discutidos na sala da graduação, ou na sala da coordenação e direção escolar. O mesmo
homem ou a mesma mulher que se encontra como discente na academia é o (a) mesmo (a)
responsável por uma turma de educandos: estagiários para a instituição de ensino superior e
regente (professor) para instituição da educação básica. Uma dicotomia entre teoria e
prática ou seria prática e teoria? Trata-se uma formação inicial que precisa ser (re) pensada
pelas instituições de ensino, tanto básica quanto superior. Nesta perspectiva Pimenta,
abrange essa discussão de acordo com pesquisas de outros autores que apontam uma
realidade para formação inicial afirmando que:

[...] os cursos de formação, ao desenvolverem um currículo formal com conteúdos


e atividades de estágios, distanciados da realidade das escolas, numa perspectiva
burocrática e cartorial que não dá conta de captar as contradições presentes na
prática social de educar, pouco têm contribuído para gestar uma nova identidade
do profissional docente [...] (PIMENTA, 2010, p. 05).

Partindo da premissa de formação inicial, surgem nossas inquietações, pois, assim


como a maioria dos professores e professoras, fomos e atuamos como estagiários, apesar de
sermos consolidados como regentes pela Escola, Pais e Comunidade. Apesar de todas as
circunstâncias, seguimos nossa essência, para resolvermos as mais diversas tempestades
encontradas, que não aprendemos na graduação, mas sim na vivência do dia a dia, nas
experiências de outros professores, nas pesquisas e leituras, e principalmente nos nossos
erros e acertos. Nem sempre o tempo estará favorável, nem sempre teremos respostas
imediatas para todos os percalços numa sala de aula, e é por isso que as narrativas são de
extrema importância, por contribuírem para o currículo oculto89 dos duzentos dias letivos.

89
Para Tomaz Tadeu (ano, p. 78), o currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente
escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explicito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens
sociais relevantes.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 441
Identidade docente: ponto de partida para o diálogo sobre a profissão

Meu coração a calma de um mar que guarda tamanhos segredos


Diversos naufragados e sem tempo...

Nos últimos anos as temáticas relacionadas à identidade docente e as histórias de


vida de professores tomaram uma repercussão extremamente importante para o meio
acadêmico. Nada mais justo e perspicaz pesquisar sobre a formação e identidade com seus
principais atores. Deste modo, encontramos na literatura diversas definições sobre
identidade docente, e entre muitos autores como Nóvoa (1995), Pimenta (2009) e Freire
(1996; 1997), dialogaremos com algumas professoras entrevistadas90 sobre a escolha da
profissão e como pensam a respeito da docência. Vale salientar que nestes diálogos, as
professoras de profissão e estagiárias para academia, conseguem navegar no dia a dia letivo
participando de reuniões, paradas pedagógicas, elaboração e aplicação de planos de aulas,
problemas de indisciplina, entre tantos outros que guardam os segredos e anseios, mas não
deixam que sua identidade enquanto professora naufrague.
Em meio aos conflitos do cotidiano e acontecimentos que ocorrem na sala de aula, e
em todo contexto escolar, percebemos que muitas histórias estão restritas ao espaço
escolar. Histórias de vida, de profissão, (des) contentamento, problemas, soluções, contos e
até mesmo ilusões. Mulheres que percorrem por anos na mesma profissão, que iniciaram
como estagiárias e tornaram-se regentes de suas embarcações (a sala de aula), outras, ainda
estão na graduação, mas assumem a responsabilidade de compartilhar os dias bons e
enfrentar, os que são considerados ruins, tempestades e dias ensolarados. Narrações de
mulheres que se seduzem a cada dia na profissão escolhida, e se engrandecem em partilhar
suas experiências de vida, algumas já esquecidas, entretanto, quando começam a serem
narradas, transformam-se em momentos únicos e especiais. Conforme Passeggi (2011), ao
narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas experiências e nesse
percurso, constroi outra representação de si: reiventa-se.
Mas, afinal, o que sabemos sobre nossa identidade enquanto pessoa? Sabemos o
local em que nascemos, dia, mês, horário, peso e altura. Parece muito simples, mas assim
como o nascimento, a escolha pela profissão tem suas peculiaridades. E neste crescimento
peculiar, construímos nossa identidade enquanto pessoa e profissional. Deste modo
concordamos com (Nóvoa, 1992, p. 7) ao afirmar que [...] não é possível separar o “eu”
pessoal do “eu” profissional [...]. Todavia, Pimenta (2010) afirma ser [...] um processo de
construção do sujeito historicamente situado [...]. Sujeito esse, que ao escolher o curso de
graduação, se sente preparado para enfrentar todas as adversidades e gozo, não apenas ao
longo do curso, mas durante toda caminhada. Então, perguntamos as nossas tripulantes
iniciais e já graduadas por que escolher a docência? E constatamos que os trajetos algumas
vezes podem ser diferentes, mas o destino final tornam-se os mesmos: a paixão pelo outro.
Vejamos:

Porque sou apaixonada por crianças e sempre tive prazer em ver o


desenvolvimento do ser humano, e acredito que a educação de forma geral,
é o melhor caminho para conseguir isto. Não consigo me ver
desempenhando outra atividade, pois amo o que faço e me sinto realizada,

90
Utilizaremos as iniciais dos nomes das professoras entrevistas.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 442
mesmo enfrentado as adversidades que qualquer professor enfrenta. E.A,
2014).

A paixão pela docência, o carinho no ato de educar, de trocar conhecimentos, nos


insere numa caminhada de ação-reflexão-ação. Freire (1997),91 já afirmava que o processo
de ensinar, que implica o de educar e vice versa, envolve a “paixão de conhecer” que nos
insere numa busca prazerosa, ainda que nada fácil. De tal modo vai-se construindo o
professor.
A princípio foi porque estava grávida, e percebi que poderia ser mãe e
professora. Depois me apaixonei pela profissão e percebi que foi uma ótima
escolha. Se não escolhesse pedagogia, eu iria escolher administração, pois
gosto muito de escritório, ou serviço social, pois trabalho muito com
pessoas. (G.A, 2014).

Por motivos semelhantes ou não, sempre encontraremos respostas parecidas. Isso se


explica por pertencermos a uma sociedade, que concebe a educação como garantia para
transformação de um povo.
Por acreditar que a educação é o único meio que transforma o homem e a
sociedade. E é claro: por amor! Se não fosse professora, nem sei o que seria.
(R.V, 2014).

Toda decisão, reflete sobre a significação atribuída à profissão docente. Segundo


Pimenta (2010) um dos motivos pelos quais construímos nossa identidade são as atribuições
que damos aos seus significados. Para a autora [...] cada professor, enquanto ator e autor
confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se de
sua história de vida, de suas representações, de seus saberes [...]. Todos os dias, impregnamos de
sentido o nosso fazer docente, isso nos motiva e impulsiona a (re) construir nossa formação.
Percebemos que é impossível pensar na profissão e não pensar no professor. Que ser
é esse, que nos dias atuais com a crescente (des) valorização consegue trilhar seu caminho e
profissionalizar-se? Podemos responder que são professores e professoras humildes92,
professores (as) determinados (as), e que exaltam sua profissão. Se nós, enquanto
professores não lutarmos pela busca da nossa identidade, tampouco outros farão.
A identidade do professor começa a ser construída, sem negar a pessoa física e
espiritual envolvida pela matéria. Aos poucos o docente começa a se encontrar e se
perceber no outro e pelo outro, características para concretizar seu trabalho pedagógico e
acima de tudo, social. Nesse contexto, um mundo de expectativas começa a girar na nova
rotina pessoal do professor, que passa a questionar e problematizar sua função social na
profissão.

Desafios do ofício de ser professor: vivenciando a prática e (re) pensando a teoria

Rimas, de ventos e velas. Vida que vem e que vai. A solidão que fica e entra; me
arremessando contra o cais

91 Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. (1997)


92
Paulo Freire se referiu a humildade como exigência de coragem, confiança, em nós mesmos, respeito a nós
mesmos e aos outros.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 443
Quando iniciamos nossa vida acadêmica no curso de Pedagogia, descobrimos que
passaremos pelos estágios supervisionados na educação infantil, anos iniciais do ensino
fundamental, observação na educação de jovens e adultos e gestão e coordenação escolar.
Todavia, algumas discentes, em especial, a maioria da turma já atua nas salas de aulas,
outras ficam ansiosas e muitas vezes nervosas porque terão de “encarar” uma ou duas
semanas como professoras estagiárias. Deste modo, a maioria que nunca adentrou uma sala
de aula, em sua totalidade se encanta pela profissão, e ao término do estágio já começam a
lecionar.
Professoras e professores que são estagiários para a graduação de ensino superior e
professores regentes que atuam nas salas exercendo o ofício de professor. É natural que as
contestações nas salas acadêmicas floresçam em relação aos assuntos estudados, e suscitem
inúmeras discussões. Geralmente os (as) graduandos (as) questionam que a teoria e a
prática não são iguais, inclusive existe uma vasta literatura abordando esta temática.
Para localizar o leitor, é necessário informar que na cidade de Salvador- Bahia há
inúmeras empresas de recursos humanos e recrutamentos, que contratam profissionais de
diversas áreas, e o campo educacional é vasto, e não é difícil encontrar uma vaga de prática
docente a partir dos primeiros semestres. O salário deste estagiário é pago com a
nomenclatura de “bolsa”, onde o (a) mesmo (a) receberá aproximadamente um pouco mais
que meio salário mínimo mais o transporte. Este estagiário contratado passará por um
estágio prático, que muitas vezes, sem aporte teórico e uma supervisão será contestado com
a teoria estudada na academia, principalmente nas escolas de pequeno e médio porte. Não
podemos esquecer que nossa profissão requer ações facilitadoras que independem do meio
social e cultural.
Quando tomamos a decisão de lecionar, devemos adequar à teoria apreendida a
prática cotidiana, sem adequação, não haverá transformação. A docência requer
disponibilidade e principalmente vontade. Relembrando Paulo Freire: Não a docência sem
discencia. O professor enquanto ser transformador é primeiramente pesquisador de sua
prática, das práticas já vivenciadas e das supostas soluções para suas necessidades diárias.
Os primeiros anos de trabalho não serão fáceis, o dia a dia implica responsabilidade e
consignação, emaranhados da complexidade que envolve a pessoa e o trabalho
desenvolvido.

Recordemos a complexidade e as contradições vividas nos primeiros anos de


trabalho, quando há que enfrentar dia a dia, no cenário da profissão, situações
novas e imprevisíveis, obstáculos frequentes a exigir respostas rápidas, adequadas,
convincentes. É o tempo da instabilidade, da insegurança, da sobrevivência, mas
também da aceitação, dos desafios, da criação de novas relações profissionais e da
redefinição das amizades e de amor, de construção de uniões familiares, da
reestruturação do sonho de vida. (CAVACO, 1995, p. 179)

A iniciação à docência precisa preencher um espaço dentro do ser, que irá trabalhar
com vidas, com seres pensantes e atuantes na sociedade. O professor precisa ser ouvido,
precisa ouvir outras pessoas, refletir sobre sua prática, para que não seja arremessado
contra o cais, que algumas vezes causam um mal estar docente. Nessas vidas que vêm e se
vão a nossos caminhos, nos deparamos com situações que jamais imaginávamos vivenciar na
sala da graduação. Nossos verdadeiros estudos de caso acontecem nas vivências, exercendo

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 444


a profissão. Estes são alguns fatos vivenciados por nossas tripulantes no currículo oculto da
profissão:

Uma aluna se sentia excluída do grupo de meninas e vivia isolada. Passei a


observá-la mais e percebi que a mesma se afastava das outras garotas e
muitas vezes eram ríspidas com elas. Comecei a trabalhar, através do
dialogo, esta dificuldade que ela tinha em se sentir aceita pelo grupo. Ao
mesmo tempo, mostrava as outras meninas que elas deveriam ajudá-la,
chamando-a para as brincadeiras, além disso, passei a fazer rodinhas de
piquenique favorecendo o dialogo e a comunhão entre elas. Em outro caso,
houve um surto de virose, e a turma em geral, passou a reclamar durante as
aulas, praticamente todos os dias, de dores abdominais e náuseas. Nos
primeiros dias fiquei sem saber se eram verdadeiras as queixas, mas com o
passar dos dias percebi a esperteza dos alunos em usar a desculpa da
enfermidade para voltarem para casa, então, quando alguém dizia que
estava com dor, sem que tivesse sido advertida pelos responsáveis, passei a
deixá-los na sala sozinhos, e os observava através da câmera e percebi a
mudança de comportamento, assim que saia da sala. De cabisbaixo e
contorcendo-se a agitado e conversador, passei a administrar placebo (água
com uma gota de anilina), os meninos pensavam ser realmente remédio, e
logo ficavam curados. Por fim, tive um aluno que se achava incapaz de
executar suas atividades, se intitulando até mesmo de burro. Através do de
mensagens no diário de incentivo e valorização, ele mudou a forma de
pensar sobre si e passou a ter mais autoconfiança. (E. A).

Estes relatos nos mostram a aptidão e astúcia que a professora encontrou para
solucionar os problemas da sua sala de aula. Quantas professoras passam por experiências
semelhantes, mas que ainda permanecem ocultas, por achar que não merecem ser
compartilhadas, ou que não são significativas? E.A relatou fatos vivenciados ainda como
estagiária na instituição em que estudava, mas no seu dia a dia profissional, enfrentou
dificuldades que muitos professores enfrentam, e às vezes não são resolvidos com tanta
facilidade, ou será tamanha criatividade e vontade de recuperar o aluno, de motivá-lo e
mostrar que o professor é um grande incentivador. Deste modo, concordamos com
FEIMAN-NEMSER (1983) apud SACRISTÁN (1992) que [...] a sala de aula não é somente um
lugar para ensinar, mas também de aprendizagem para o docente: as influencias informais
na socialização são mais decisivas do que as formais, mais eficazes do que os cursos de
formação. Em todo momento E. A, foi autônoma nas suas decisões, que lhe renderam
histórias, experiências e resultados positivos. É preciso coragem para gerenciar
determinadas situações do contexto escolar, é preciso agir de maneira democrática, para
que haja transformação do modo de pensar e atuar.

Nesse fazer pedagógico acontece de tudo. Coisas que não são ensinadas
na faculdade, mas pela experiência de vida, você acaba contornando. No
ano de 2013, aconteceram muitas situações marcantes, mas teve uma
situação que me marcou, ou melhor, uma aluna. A aluna E. A, veio de outra
escola, quieta, calada. Na primeira semana, estava fazendo sondagem para
saber o que os alunos já sabiam. Comecei com a escrita do nome, pedi para
que separassem as letras maiúsculas das minúsculas e E.A não conseguiu,
fui para segunda sondagem que foi o ditado de palavras e tomei um susto,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 445
ao ver que nada tinha feito, nem tentou. Começamos as provas da I
Unidade, e como já sabia nada fez, e suas médias foram abaixo de dois
pontos. Não sabia o que fazer, pois isso não foi ensinado na faculdade. Foi
então que marquei com a mãe para conversar e então ela disse sobre as
perdas que E.A teve primeiro do pai e depois do tio, foi então que comecei a
tratá-la de forma diferente, incentivando-a a escrever, a ler... E. A começou
a evoluir, e sempre a parabenizava por uma nova conquista, e então,
iniciaram as provas da II Unidade, e o que me surpreendeu foi a autonomia
de E.A em responder e mais ainda, a cada unidade ela foi progredindo.
Então disse para mim mesma “Vale a pena ser professora”. Nesse mesmo
ano de 2013, criei junto com a direção, um diário, onde os alunos escreviam
algo que acontecia com eles, e eu só poderia ler se eles autorizassem. E em
um desses diários era o de M.C, onde na sua casa estava acontecendo
violência entre os pais, traição e separação. M.C sempre me relatava tudo
que acontecia em sua casa, e eu além de professora, era sua confidente e
amiga, e o que me marcou foi o que ela disse: “Na escola eu sinto paz”.
Agora me diga, como não se apaixonar por essa profissão? (G. A, 2014 -
grifos nossos).

Este relato demonstra que ser professor, muitas vezes ultrapassa os muros da escola.
O professor que ouve seus alunos, e os impulsiona consegue resgatar suas histórias, e
motivá-los, através da competência, capacidade, confiabilidade que vão além das técnicas
apreendidas na graduação. Não estamos tratando apenas, de técnicas, no entanto dos
conhecimentos e experiências.

A competência docente não é tanto uma técnica composta por uma serie de
destrezas baseadas em conhecimentos concretos ou na experiência, nem uma
simples descoberta pessoal. O professor não é um técnico nem um improvisador,
mas sim um profissional que pode utilizar o seu conhecimento e a sua experiência
para se desenvolver em contextos pedagógicos práticos preexistentes. (SACRISTÁN,
1995, p. 74).

Ser professor implica competência com a própria profissionalidade93, o fazer


pedagógico que foi citado na narrativa da professora G, A, possibilita entender que no
ambiente escolar, principalmente nas salas de aula, onde alunos e professores passam uma
boa parte do tempo, todo o fazer torna-se pedagógico, quando há uma intencionalidade, um
objetivo e determinada diversidade dos saberes dos professores através de suas
experiências.

É nesse repertorio de experiências, de saberes, que orienta o modo como o


professor pensa, age, relaciona-se consigo mesmo, com as pessoas, com o mundo,
e vive sua profissão. Entendemos, pois, que o professor traz para sua prática
profissional toda a bagagem social, sempre dinâmica, complexa e única. (FARIAS, et
al, 2011, p. 59)

93
SCHWAB (1983) apud SACRISTÁN (1995), diz que a profissionalidade manifesta-se através de uma grande
diversidade de funções (ensinar, orientar o estudo, ajudar individualmete os alunos, regular relações, preparar
materiais, saber avaliar, organizar espaços e actividades, etc.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 446


A profissão docente, ou melhor, a atuação docente vem sendo alvo de algumas
críticas, mas antes de quaisquer comentários, que desequilibrem ou inferiorizem o
profissional, é preciso se questionar sobre a pessoa, pois antes de ser professor ou
professora, o indivíduo possui sua identidade pessoal, seu “eu” pessoal. É necessário
aprender sobre este ser humano, quem é; de onde vêm, seios anseios para então descobrir
sua profissão. Na bagagem do professor, não encontramos, apenas, o profissional com suas
teorias, métodos de ensinos e conteúdos de anos de experiências. Encontramos igualmente
a pessoa física e imaterial, que chora, rir, se aborrece, se emociona entre tantos outros
sucedem no dia a dia.

Significando a docência, para além da formação

Ao construir uma vida pautada nas causas educacionais, o profissional jamais poderá
deixar de (re) inventar suas práticas. A profissão de professor requer muito mais que uma
sala de aula com uma turma que faça acontecer o papel instrutor, é necessário um (auto)
conhecimento crítico e reflexivo da sua função e desempenho na coletividade.
A graduação é apenas, o início de uma carreira que sabemos tão somente que se
enceta. A busca pelo conhecimento deve, e, precisa ser constante, a consumação precisa
acontecer a todos os momentos, não podemos deixar que o epistemicídio94 envolva nosso
saber docente, a busca é um compromisso educacional que transcende a profissão. E
imprescindível que a maiêutica acompanhe o profissionalismo. O empoderamento do
educador precisa coexistir desde os seus primeiros anos de estudo. Ao se tornar professor o
conhecimento passa a ser uma forma de vestimenta importante, e esse indumento não
pode ser uma armadura.

Nós, os professores, podemos desenvolver a atividade profissional sem nos colocar


o sentido profundo das experiências que propomos e podemos nos deixar levar
pela inercia ou pela tradição. Ou podemos tentar compreender a influencia que
estas experiências têm e intervir para que sejam o mais benéficas possível para o
desenvolvimento e o amadurecimento dos meninos e meninas. Mas, de qualquer
forma, ter um conhecimento rigoroso de nossa tarefa implica saber identificar os
fatores que incidem no crescimento dos alunos. (ZABALA, 1998.p.28; 29)

Para assumir uma sala de aula, ou estabelecimento de ensino, é preciso apresentar


uma imagem de coerência, de competência, de segurança, que tranquilize os apreensivos,
crie um consenso, estimule os indecisos, acalme os extremistas, dê sentido a coexistência,
etc. Para isso, é preciso ter certa solidez, uma correspondência entre a pessoa e o papel,
entre o que deve ser feito e o que se sabe ou se gosta de fazer. (PERRENOUD, 2001 p55)
Assim, nossas professoras e estagiárias não se deixam ludibriar a respeito da escolha
profissional, e acreditam que somente a educação, tão-somente o amor pelo outro pode
transformar e (re) significar vidas. Ensinar é uma tarefa complexa, na qual nada é estável:
cada nova turma é uma incógnita, cada aluno em dificuldade é um enigma, cada ano letivo é
uma aventura. (Perrenoud 2001, p.130)
Percebemos que as professoras escolhem a docência como profissão, por se identificarem,
desde o início da graduação, em consequência o estágio na academia surge como uma
“prova real” para tomada de decisão. Em efeito, os professores e professoras encontrarão

94
Termo utilizado para definir a morte do conhecimento.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 447
em suas salas de aulas, meninos e meninas com identidades culturais e sociais diferentes, ou
seja, as turmas não serão homogêneas, cabendo ao professor já graduando ou ainda
estagiário superar os desafios que compete à educação. Desta forma nossas autoras e
atrizes estimam superar todos os desafios.
Espero que nós possamos colocar em prática tudo que aprendemos na
teoria, o oficio de educar, transformar e semear na vida de cada criança,
adolescente ou adulto.

“Colocar em prática” este é o desafio que muitos colegas ainda enfrentam no dia a
dia, pois a teoria e prática ainda se encontram distanciada da realidade escolar. Sendo assim,
a esperança está nas mãos dessas professoras, que trabalham numa perspectiva de
mudança, não apenas das práticas escolares, mas uma mudança social, cultural e até mesmo
ideológica. Parafraseando Imbernón (2005), é preciso formar o professor na mudança e para
mudança. A mudança que queremos surge quando refletimos sobre nossa prática social.

Espero que a docência seja sempre o meio pelo qual eu possa ser um
instrumento para impulsionar sonhos, descobrir talentos, formar cidadãos
conscientes de seus atos e acima de tudo, contribuir na formação de
cidadãos conscientes de seus atos, e capazes de melhorar a si mesmos e o
mundo a sua volta. (R.V, 2014).

Professores são talentos que inspiram novos talentos, professores são pessoas que
têm a responsabilidade de acreditar no outro e em seu oficio. Professores são agentes de
transformação e fazem do ensino um conjunto de saberes para si, e para o outro. Conforme
Tardif (2011, p. 209), o saber ensinar na ação implica um conjunto de saberes, e, portanto,
um conjunto de competências diferenciadas.
Assim como outras profissões, a docência deve ser vista como profissão de destaque,
profissão respeitada. Não é qualquer pessoa que pode chegar a uma sala de aula para
lecionar, achando, apenas, que nada precisa ser feito antes da aula acontecer, isto serve
tanto para educação básica, quanto superior. Nossa profissão requer estudos, habilidades e
competências e acima de tudo a prática.

É necessário possuir diversas habilidades profissionais que se interiorizem no


pensamento teórico e prático do professor mediante diversos componentes, entre
os quais a formação como desenvolvimento profissional a partir da própria
experiência. (IMBERNÓN, 2005, p. 33).

Quando nos tornamos professores, desenvolvemos nossas habilidades, aguçamos


conhecimento, fazemos inúmeras tentativas até alcançarmos nossos objetivos. Apesar de
todos os males, que envolvem a profissão docente, resurgimos a cada dia com planos e
metas diferentes, mas com o objetivo de fazer uma educação de qualidade, de fazer com
que nossos alunos sintam-se cingidos, queridos e acima de tudo, respeitados. Nóvoa (1995)
diz que “os professores têm que adquirir margens mais alargadas de autonomia na gestão da
sua própria profissão e uma ligação mais forte aos actores educativos locais [...].” Somos
autônomos nas nossas decisões e utilizamos as experiências e histórias de nossas vidas para

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 448


(re) construir novas teorias a cada dia, de acordo com nossas necessidades e
particularidades.

Considerações finais

Narrar às histórias de nossos colegas de profissão tornou-se um convite à ampliação


dos nossos estudos. Só é possível entender a rotina de um professor, quando vivenciamos
seus costumes. A cada dia descobrimos um pouco mais sobre nossa profissão, a cada dia (re)
significamos os nossos saberes da experiência e descobrimos histórias de vidas que são
motivadoras para transformação docente. Neste texto, descobrimos que ser estagiário ou
graduado constituem formas de atuação semelhantes, pois o dia a dia numa sala de aula
requer sensibilidade para compreender e resolver eventuais problemas. Ser professor é
descobrir nas entrelinhas, a necessidade individual e coletiva de uma turma de alunos, ou
simplesmente de um único aluno.
As professoras entrevistas relatam com tamanha emoção e precisão suas ações no
cotidiano escolar, desde os planos para cada turma, aos segredos que emaranham atitudes
ocultas, mas que são resolvidas e explicitadas com diálogo, paciência e vontade de acalmar o
mar (a sala de aula). Mulheres guerreiras, que buscam uma solução para além da teoria que
conhece, vão além, atribuindo significado no fazer docente, transmitindo segurança e
autocontrole para comunidade escolar local.
Sabemos que não é fácil atuar no inicio da carreira, pois é o momento de turbilhões de
ideias e incógnitas, momento dos anseios e das expectativas. A pesquisa nos faz refletir que
todo profissional tem a sua historia de vida, biografia única que precisa e deve ser
respeitada. Assim como nossas entrevistadas, milhares de professores e professoras têm
dado significações à docência. Cabe a nós, enquanto docentes e pesquisadores resgatar
essas histórias que se espalham, não só pela península itapagipana, mas por todo território
nacional.

Referências
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Porto: Porto Editora, 1995.
FARIAS, Isabel Maria Sabino de et.al. Didática e docência: aprendendo a profissão. 3. Ed.
Nova Ortografia Brasília: líber livro, 2011.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D´Água,
1997.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo,
D´Água, 1996.
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a
incerteza. 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2005.
NÓVOA, António. Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1995.
PASSEGGI, Maria da Conceição. A experiência em formação. In: Revista Educação, Porto
Alegre, v.34, n.2p. 147-156, maio/agosto, 2011.
PERRENOUD, Philippe. Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. Porto Alegre , Artmed
editora, 2001.
PIMENTA, Selma Garrido. Saberes pedagógicos e atividades docentes. 7. ed. São Paulo:
Cortez, 2009.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 449


SACRISTÁN, G. Consciência e ação sobre a prática como libertação profissional dos
professores, In: NÓVOA, António (Org.). Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1995.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 12. Ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
ZABALA, Antoni. A Prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: ArtMed, Ed. 1998.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 450


Travessias de professoras rurais: apreendendo vida e trabalho docente em classes
multisseriadas

Natalina Assis de Carvalho


UNEB
nataassis@yahoo.com.br

O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa realizada no contexto das classes multisseriadas cujo
objetivo foi compreender a formação do professor rural, a partir de narrativas autobiográficas apreendendo a
vida e o trabalho docente em classes multisseriadas. O campus da pesquisa foi construído por duas professoras
que exercem a docência em escolas rurais no município de Baixa Grande Bahia no contexto das classes
multisseriadas. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, onde se utilizou a abordagem (auto)biográfica e
o método das narrativas autobiográficas de duas professoras rurais atuantes em classes multisseriadas. Deste
modo, a pesquisa (auto)biográfica foi inserida neste trabalho por ser um potencial de formação e método de
conhecimento que buscou encontrar elementos significativos para as professoras em formação. Assim, a
incorporação das narrativas obtidas por meio de histórias permitiu ampliar discussões e conhecer as
especificidades vivenciadas pelas docentes de espaços rurais. Assim, o estudo com as narrativas possibilitou o
professor rememorar o que mais o marcou, no seu processo de vida-profissão-formação, retomando as
experiências a partir do que foram mais significativos. O trabalho evidenciou que as travessias feitas pelas
professoras dentro do ônibus escolar que sai da cidade e vai para a roça são momentos formativos. Portanto, a
formação profissional distante da realidade das escolas e da vida dos sujeitos que vivem e produzem a vida foi
uma questão que ainda permeou as narrativas docentes. Além disso, a pesquisa deu visibilidade ao fazer
docente de professoras rurais que cotidianamente enfrentam diversos desafios no dever da docência.
Palavras-chave: Pesquisa (auto)biográfica; Narrativas de Professoras rurais; Formação do professor rural.

Introdução

Neste trabalho procuro levantar questões sobre a formação de professoras no


contexto das classes multisseriadas no município de Baixa Grande Bahia, analisando, assim, a
formação do professor rural, a partir das dificuldades apresentadas na prática pedagógica
em classes multisseriadas, em função da fragilidade na formação continuada. Deste modo,
analiso algumas das narrativas, para entender, por meio destas, as questões da sua
formação, vivências e práticas pedagógicas em classes multisseriadas. O professor, a partir
do momento que começa a narrar, passa por um processo de rememoração na sua
profissão, o que inclui suas experiências e aprendizagens adquiridas. Esse é o momento de
pensar nas diversas questões dentro da sala de aula e fora dela. É nesse período que o
professor reflete e passa a conhecer melhor seu fazer docente em espaço rural e a
formação.
O presente trabalho apresenta e discuti a importância de estudar a educação rural e o
meio em que os sujeitos vivem, pois, é nele que os professores rurais realizam o trabalho
docente. Para a realização do mesmo, buscou-se coletar alguns dados na Secretaria de
Educação no município de Baixa Grande, referentes a projetos desenvolvidos que
contemplasse os espaços rurais e as classes multisseriadas. O corpus da pesquisa constituiu
para análise as narrativas de professoras rurais, onde buscou um embasamento teórico a
partir de estudos já realizados sobre as temáticas aqui relacionadas.
A relevância desse trabalho vem do fato de promover um estudo que contemple a
realidade das professoras da zona rural do município de Baixa Grande-BA, no que diz
respeito à formação e às práticas pedagógicas em classes multisseriadas realizadas nos
espaços rurais. Este trabalho surge a partir de reflexões no âmbito do projeto “Ruralidades
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 451
diversas - diversas ruralidades: sujeitos, instituições e práticas pedagógicas nas escolas do
campo Bahia, Brasil” com financiamento da CNPq e FAPESP, a partir de estudos do Grupo
Autobiografia, Formação e História Oral (GRAFHO), e se expande no Programa de Pós-
graduação em Educação e Contemporaneidade PPGEduc/UNEB. Contudo, alguns
conhecimentos foram se delineando por conta desta pesquisa maior.
A escola rural vem passando por problemas, dentre os quais se destacam a falta de
estrutura, professores não especializados e a evasão escolar. Nesse sentido, a
industrialização e os avanços tecnológicos chegaram muito mais cedo no espaço urbano que
no rural, e este desenvolvimento chega a cidade como atrativo para o processo de migração.
Por diversas razões, tais como a falta de estrutura, a má formação de professores rurais, que
estes docentes sentem as dificuldades no momento do trabalho docente em escolas rurais.
Observa-se também que o professor formado nas grandes cidades e designado para o meio
rural nem sempre tem subsídios necessários para lidar com uma determinada realidade
regional, a qual muitas vezes é bastante distante daquela que corresponde à sua vivência.
A formação é um suporte para o professor que vai se construindo ao longo do tempo.
Segundo Mizukami (2002) a formação de professores é entendida como um processo
contínuo, um processo de desenvolvimento para a vida. Para a autora, concentram-se neste
processo da formação inicial, profissional e continuada elementos para entender a prática
profissional deste docente. Entretanto, entender como se acontece a formação docente,
remete os professores a refletir na formação inicial, podendo compreender e pensar durante
o estágio a sua prática. Dessa forma, as aprendizagens e as experiências são elementos
essenciais na constituição e auto-formação desses profissionais.
Para a compreensão das dimensões envolvidas nessa pesquisa e constituir um aporte
teórico da literatura sobre o tema em pauta, deu-se ênfase aos estudos de Leite (2002),
Caldart (2008), Candau (1996), Santos (2006) e Souza (2006), sendo este último uma forte
referência nas discussões sobre a importância das narrativas autobiográficas em trabalhos
dessa natureza. A partir desses estudos, busquei compreender como se dá a formação dos
professores que vão atuar com as classes multisseriadas em espaços rurais. O trabalho com
as professoras significou uma importante contribuição às pesquisas relacionadas à formação
de professores, e ao estudo dos docentes rurais atuantes em classes multisseriadas para a
produção de conhecimentos, além de possibilitar, a reconstituição de uma história que
permitirá o conhecimento de si mesmo enquanto profissional.

Pesquisa (auto)biográfica

O método autobiográfico no trabalho com os professores tem crescido de forma


significativa no contexto da pesquisa em educação, buscando conhecer os percursos de
formação, e como esses profissionais vêm desenvolvendo sua profissão. Para isso, se faz
necessário pesquisar a vida cotidiana com suas emoções e lutas que acabam por constituir o
processo identitário de cada docente, pois cada um tem seu modo de ser e viver.
O trabalho (auto)biográfico, tem sido utilizado no campo da formação do professor e
da pesquisa em educação, promovendo reflexões significativas sobre a formação docente e
sobre os caminhos para a construção da identidade e dos saberes docentes. Desta forma,
percebe-se o quanto as narrativas (auto)biográficas centradas na reconstrução de histórias
de formação têm propiciado o conhecimento sobre as histórias de vida,-profissão e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 452


formação. Portanto, percebe-se o quanto as histórias de vida são, atualmente, utilizadas em
diferentes áreas das ciências humanas e de formação profissional (SOUSA, 2006).
A pesquisa autobiografia como potencial de formação e método de conhecimento,
busca na formação de professores, encontrar recursos que possam subsidiar o trabalho
desenvolvido pelos docentes. A abordagem autobiográfica é uma forma de investigação e
procura na formação de professores localizar elementos significativos para os sujeitos.
Assim, pensando em trabalhar com as narrativas de vida de professoras rurais atuantes em
classes multisseriadas, ponho em evidência as narrativas como método de investigação-
formação.
Segundo (CARVALHO, 2010) a autobiografia tem sido utilizada como metodologia de
pesquisa e de formação para professores e pesquisadores, como instrumento de produção e
de autoconhecimento. Emprega conceitos em diversos campos do conhecimento, seja a
história de vida, a narrativa de formação. Neste sentido,

As narrativas são muito importantes para o pesquisador pois, podem propiciar uma
melhor compreensão do professor e constituem um momento em que se
rememora o vivido, seja ele na experiência pessoal ou profissional. As narrativas
exige um esforço do sujeito na construção de suas histórias, resultando em
lembranças organizadas linearmente ou não. (CARVALHO, 2010, p. 29)

As narrativas permitem que o sujeito passe por um processo de busca das


experiências no seu interior para chegar aos acontecimentos. Fornece estado de espírito,
sensibilidade, pensamentos a propósito de emoções, sentimentos, assim como, atribuições
de valores (JOSSO, 2004). A partir do momento em que se busca esses sentimentos durante
as narrativas, entra-se no processo de conhecimento para a própria formação.
O trabalho com narrativas de formação, centrado na reconstrução de histórias, tem
propiciado a reflexão sobre as histórias de vida-profissão-formação, bem como sobre as
histórias e culturas dos lugares. Conforme Souza “A narrativa de si e das experiências vividas
ao longo da vida caracterizam-se como processo de formação e de conhecimento, porque se
ancora nos recursos experienciais engendrados nas marcas acumuladas das experiências
[...]” (SOUZA, 2006, p. 136). Narrar a própria vida ajuda a recuperar as experiências vividas
que marcaram efetivamente a trajetória do sujeito, ao longo do seu percurso formativo. As
histórias de vida permite o indivíduo refletir sobre as trajetórias e “abre possibilidades de
teorização da sua própria experiência e amplia a sua formação por meio da investigação-
formação de si, dos enfrentamentos da racionalidade técnica, da capacidade de experienciar
situações [...]” (SOUZA, PINHO, GALVÃO, 2008, p. 82).
A escuta e o registro das vozes nos processos formativos possibilita rememorar e
compartilhar experiências e potencializar práticas no campo pedagógico, ético e político.
Percebe-se que o trabalho autobiográfico, revela-se como importante recurso para a
descoberta de si, existindo assim a apropriação de trajetórias pessoais, constituindo um
exercício para que as experiências de vida, de profissão, e de formação sejam refletidas.
Assim, segundo Bertaux, “As narrativas revelam conhecimento tácito, importante para ser
compreendido; têm lugar num contexto significativo; apelam à tradição de contar histórias,
o que dá uma estrutura à expressão; geralmente está envolvida uma lição de moral a ser
aprendida [...]” (2010, p. 49)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 453


As narrativas fazem o sujeito refletir sobre o seu processo na profissão, das situações
que marcaram sua escolha, e é através das experiências e aprendizagens construídas ao
longo da vida que este adquire saberes, o que implica no processo de formação.

A abordagem (auto)biográfica pode ser entendida como uma forma de mediar


estratégias que permitam ao professor tomar consciência de suas
responsabilidades pelo processo de sua formação, através da apropriação
retrospectiva do seu percurso de vida. E, nesse sentido, quando eles tentam
justificar a opção pela profissão, retomam elementos que nos parecem essenciais à
construção transacional da identidade docente. (PASSEGGI, 2006, p.262)

O processo de lembranças propicia ao professor analisar a sua prática na profissão


docente, a responsabilidade que exerce perante a sua profissão. A abordagem
autobiográfica auxilia o docente a criar formas de entender o seu percurso e, é na profissão
docente, que se descobrem enquanto profissionais. A reflexão acontece de acordo com
saberes que o sujeito possui, visto que “As (auto)biografias sendo constituídas por narrativas
em que se desvelam trajetórias de vida, é processo de construção que tem a qualidade de
possibilitar maior clarificação do conhecimento de si [...] (ABRAHÃO, 2006, p. 161).
Portanto, é neste desvelar de narrativas e no conhecimento de si próprio que
“tentamos capturar sinais da compreensão que os educadores desenvolveram, mediante
ressiginificação do vivido, pela reflexão sobre si e sua profissão docente no momento da
narração [...] (ABRAHÃO, 2006, p. 161)

Narrativas de professoras rurais

Ser professor é uma tarefa que requer, em geral, dedicação, gostar do que faz,
conhecer a si mesmo e o lugar em que atua. Na sala de aula, o docente vai articulando a sua
vida pessoal e profissional, as quais vão se transformando e originando subsídios
importantes para a reflexão de como ser um professor. Cada um tem uma história de vida,
um percurso, e a partir daí vai delineando suas entradas na profissão. É importante conhecer
como os docentes percebem suas vivências e como eles elaboram os acontecimentos, fatos,
experiências que se entrelaçam e lhes permitem interpretar o mundo.
Tratando-se de professores rurais atuantes em classes multisseriadas, vê-se de
maneira clara uma educação vagarosa, profissionais desestimulados, que continua até hoje a
partir de um modelo de educação do meio urbano. O docente formado na área urbana, e
que vai atuar no meio rural em classes multisseriadas, necessita ter uma formação
continuada para exercer o trabalho docente. Ser educador da zona rural implica em refletir
uma identidade em construção, é tentar entender o que está fazendo e compreender as
demandas da sala de aula. Caldart (2008, p, 18) afirma que “sem reconhecer o campo como
um lugar específico e com sujeitos que lhe são próprios não há como pensar em uma
educação do campo. Não há como se constituir como um educador do seu povo”. É preciso
que o educador entenda que o ser humano é produto da sua história e que estes diferentes
grupos humanos que vivem no campo têm história, cultura, identidade, lutas comuns e
específicas.
A pesquisa com as professoras no município de Baixa Grande foi realizada com
intuito de entender como eram desenvolvidas as práticas pedagógicas em classes
multisseriadas e a formação do professor rural. A realização da pesquisa foi com professoras

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 454


atuantes em classe multisseriada. No primeiro contato com as professoras do meio rural,
informou-se como seria realizada a pesquisa e o objetivo desta. Esclareceu-se o que
representa o projeto “Ruralidades diversas - diversas Ruralidades: sujeitos, instituições e
práticas pedagógicas das escolas do campo Bahia, Brasil”, o qual serviu de base para o
desenvolvimento da presente pesquisa, para que entendesse o interesse de se trabalhar
com profissionais do meio rural. Por fim, elucidou-se, superficialmente, a importância do
processo da pesquisa como formação e das narrativas que iriam desenvolver, apontando-as
como um momento de reflexão.
A predominância das classes multisseriadas em nosso país ainda é muito grande,
principalmente na região Nordeste. Por isso, Santos (2006) destaca que o fenômeno das
classes multisseriadas são caracterizadas pela junção de alunos de diferentes níveis de
aprendizagem, em uma mesma classe, as vezes submetida à responsabilidade de um único
professor. Nesse sentido, esta é uma realidade muito comum nos espaços rurais brasileiros,
notadamente nas regiões Nordeste e Norte. Portanto, nota-se que o fenômeno das classes
multisseriadas no semiárido baiano é muito comum.
O contexto rural e das classes multisseriadas deve ser de identificação de muitos
professores, pois se espera que estes possam contribuir no momento de educar. Entretanto,
não se pode afirmar que todos os docentes se identificam com o contexto rural ou que
muitas dificuldades não surjam no decorrer das aulas em classes multisseriadas. Assim,
através das narrativas das professoras, pude fazer alguns recortes da vida, trabalho docente
em espaços rurais e formação. Deste modo, foram evidenciados alguns trechos das
narrativas das professoras. Assim, a professora Maria narra

Olha a minha vida não foi fácil, morei na roça e sempre tive que procurar a melhora.
Comecei a trabalhar muito cedo, claro por conta da minha família. Logo depois veio as
minhas filhas e o marido. Havia de alguma forma ter que procurar um trabalho que
pudesse ganhar mais um pouco e sabia que por meio dos estudos conseguiria. Mas,
passei um bom tempo criando as minhas filhas com a ajuda dos meus pais. (Professora
Maria)

Percebemos a angústia da professora Maria quando diz que sua vida não foi fácil, e
que muitos percalços ocorreram durante o percurso. Contudo, retrata ter começado a
trabalhar cedo, por ter uma condição pouco favorável. Esse é o processo marcado pela sua
história, onde deixa marcas e imprime o agente principal do outro lado de sua vida o marido
e o nascimento de suas filhas. É nesse caminhar que a professora Maria vai percorrendo, e
se vê na condição de precisar ganhar mais dinheiro para as despesas, por conta do aumento
da família. Surge aí a solução nos estudos, mas não prossegue por conta das ocupações. A
professora Camila narra,

Na minha vida sempre morei parte na zona rural e outra na zona urbana. Depois meus
pais havia saido da roça e vindo para a cidade. Nossa esse período foi bom e ruim, o
bom foi que concluir os estudos mais sempre tive que trabalhar em um mercadinho,
para ajudar na comida da casa. É, mas conseguir concluir meu Magistério. Concluir o
Magistério em nossas condições não era nada fácil. (Professora Camila)

A professora Camila fala dos espaços que promulgou durante a sua vida, ora morava
em espaço rural, ora na cidade. A sua chegada na cidade é marcada pela necessidade de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 455
trabalhar para ajudar os pais. A construção dos episódios da vida perpassa e transcende o
que foi mais significativo. No que condiz o processo de escolarização a Professora N2 suspira
e agradece, pois mesmo com toda dificuldade conseguiu terminar os seus estudos. Com
relação a vivência no espaço rural lugar onde fazia a prática pedagógica em classes
multisseriadas a professora Camila narra

Tenho uma grande identificação com o espaço rural, mas é muito precário o prédio em
que trabalho a estrutura as condições como um todo. E as classes multisseriadas, meu
bem é de total abandono. Você sabe o que é abandono com a multisseriação nossa nem
queiramos saber os detalhes. Brigo muito com a Secretaria de Educação do município,
as vezes não sei o que fazer . A minha prática eu faço de tudo, divido os meninos, depois
trabalho com alguns de forma igual, com outros diferentes. Mas, me viro não tenho a
formação que deveria pois, não tive preparação para trabalhar com multisseriadas. Eles
me colocaram na roça, por conta de ter sobrado vagas nesse colégio e ninguém queria
ir, mas amo tanto educação desde o Magistério que aceitei a turma. (Professora Camila)

Apesar da identificação com o meio rural, a professora mostra na sua narrativa a


precarização do trabalho docente nos espaços rurais e em classes multisseriadas. A
professora trás ainda marcas de abandono e silenciamento. Contudo, apesar de todas as
complexidades mostra-se com bastante garra cobrando de órgãos públicos. A prática
pedagógica fica nítida quando expõe a maneira como trabalha com os alunos, fazendo suas
próprias estratégias pedagógicas. Fica no bojo da educação a descriminação com pessoas
que vão lecionar na roça, a falta de salário digno e condições precárias. Porém, mesmo
frente a tanta dificuldade a professora revela sempre ter amado a educação de forma febril.
Segundo Souza (2006), as narrativas permitem entender o processo do sujeito, pois, através
das experiências construídas e das aprendizagens, adquirem-se os mais diversos
conhecimentos da sua vida e do que se faz. Parece também que os saberes adquiridos
dentro das classes multisseriadas fazem com que novas aprendizagens surjam para o
planejamento do dia seguinte. Realizando assim, reflexões sobre a prática pedagógica e a
formação como elementos para auxiliar o professor em sua profissão docente. A professora
Maria ainda narra

Quando os meus filhos fizeram um 6 e outro 8 anos de idade, daí fui estudar. Acabei
como professora quando terminei o Magistério. Fui professora daqui do Povoado do
Tabuleiro mesmo onde resido a mais de 30 anos. Trabalho com classe multisseriada a
sete anos. É muito difícil trabalhar com as classes multisseriadas, mas acabei que me
apaixonei. Eu tenho meus alunos cada um de tamanho e série diferentes, mas creia que
eles me ensinam muito também. Eu dou um jeito de trabalhar, porque é muito precária
as condições da escola. Não tem nada praticamente e o pior não tenho base para
ensinar tanta série junta. Conseguir trabalhar melhor, depois de alguns cursos que fiz na
cidade junto com a coordenadora rural do município. Vejo meus alunos muitos
formados e outros fazendo faculdade, isso me orgulha. (Professora Maria)

A professora Maria fala do como se tornou professora, e como atua em classe


multisseriada. Delimita a prática na multissérie como falta de suporte para trabalho durante
a sua formação de magistério, só depois com alguns cursos ministrado pela coordenadora
rural. É importante lembrar Segundo VEIGA que “a formação assume uma posição de
“inacabamento” vinculada à história de vida dos sujeitos em permanente processo de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 456
formação, que proporciona a preparação profissional”. (2008, p.15). A história ligada a
prática de ensino faz com que a professora Maria entre em um processo de rememoração.
Portanto, deixa claro que mesmo com algumas dificuldades é satisfatório ver o resultado do
seu trabalho revendo os alunos formados.

Formação do professor rural

Tratar da formação de professores é de suma importância para muitos professores


rurais, os quais possuem uma formação continuada insuficiente e que realizam sua prática
em classe multisseriada de maneira, muitas vezes mais complexa, do que a dos professores
da zona urbana. O professor em sua formação está sempre buscando mais aprendizados que
possa dá conta da vida profissional. Na profissão o docente passa por um processo contínuo
de descobertas e/ou redescobertas. Muitas mudanças acontecem no decorrer dos processos
vividos, assim, há uma incompletude, o docente encontra-se em um processo de
permanente busca.
O professor rural lida com muitas questões na sua profissão, pois, “A profissão é uma
palavra de construção social. É uma realidade dinâmica e contingente calcada em ações
coletivas” (VEIGA, 2008, p.14). Ainda segundo o autor, a docência envolve uma construção
do lugar, das pessoas e das ações, e a realização desse trabalho pode ser individual ou
coletiva. Os professores que estão no meio rural e trabalham em classes multisseriadas
modificam a sua prática durante o seu exercício em sala, visto que estão sempre
encontrando questões diversas para resolver. A prática no contexto rural é determinada pela
formação que este docente possui e que se configura na realização de sua profissão. Uma
das questões que atrapalham muitos docentes, que vão ensinar nas escolas multisseriadas, é
a falta de um projeto político pedagógico adequado à vivência do sujeito rural.
Podem-se perceber as mais diversas questões que o professor de classe multisseriada
precisa saber manusear, é muito mais do que apenas conteúdos, é uma realidade
totalmente heterogênea. Por isso o professor necessita estar em constante processo de
formação. Pensar em uma escola de qualidade para os sujeitos estudantes em classes
multisseriadas é repensar a formação inicial e continuada de professores, pois,

(...) para a implantação de qualquer proposta que se proponha uma renovação das
escolas e das práticas pedagógicas, a formação continuada dos professores passa a
ser um aspecto especialmente crítico e importante. Qualquer possibilidade de êxito
do processo que se pretenda mobilizar tem no professor em exercício seu principal
agente. (CANDAU, 1996, p. 140)

Essa formação ajuda transformar muitos aspectos dentro da sala de aula, como a
melhoria da prática, a busca de elementos novos para serem aplicadas na escola, e a
competência para resolver demandas que poderão sempre surgir. A prática diária é um
elemento de formação, não apenas as teorias e a experiência adquirida. A formação pode
ajudar o docente a achar respostas às dificuldades encontradas do dia-a-dia e é um processo
inicial e contínuo. Para Mizukami,

[...] a formação inicial sozinha não dá conta de toda a tarefa de formar professores,
como querem os adeptos da racionalidade técnica, também é verdade que ocupa
um lugar muito importante no conjunto do processo total dessa formação, se
encarada na direção da racionalidade prática. (2002, p.23).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 457
Nota-se assim que a formação inicial é um ponto de partida para o professor e esta
não será suficiente para resolver todos os assuntos que enfrentará no decorrer de sua
atuação, por isso, a formação continuada é o que dará suporte ao professor. A formação do
professor rural para atuar em classes multisseriadas deve ser pensada com mais atenção,
pois, estes lidam com muitas dificuldades no campo em classes multisseriadas e sua grande
maioria tem formação inicial, mas não pensam em dar continuidade. No entanto, conforme
aponta Silva (2005) já se assegura a profissionalização do professorado rural.

A formação do professorado deve ser formulada numa perspectiva de contribuir


para a sua profissionalização docente, o que compreende o direito à formação
inicial, em todos os níveis, em um processo permanente de formação continuada
em serviço, possibilitando que o/a professor/a possa atuar com o mesmo grau de
eficiência no campo e na cidade (p. 49)

Consta nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo
(2002) que é dever do sistema de ensino municipal ou estadual assegurar a formação do
professor, seja ela no magistério ou em nível superior. As Diretrizes dizem também que os
cursos oferecidos aos professores deverão ter conteúdos da zona rural, os conhecimentos
devem ser voltados ao campo, às questões enfrentadas pelo educador rural. Formar
docentes para a atuação na educação rural é um desafio para as universidades e são poucas
as instituições de ensino superior que estão tomando a iniciativa de incluir no seu currículo
disciplinas para o professor rural ou até mesmo oferecer cursos. No entanto, não existem
programas de apoio à formação de professores especificamente com classes multisseriadas
o que temos até hoje foi o programa da Escola Ativa usada como metodologia de ensino e
que já se extinguiu dentro da cidade.
As classes multisseriadas transcendem uma forma silenciada pelas políticas públicas e
pelas Universidades. Existem as grandes concentrações destas classes na região Norte e
Nordeste e pouco se vêem estudos que contemplem a realidade da multisseriação no
espaço rural. São poucos os seminários, os cursos de formação que abordam as discussões
referentes as classes multisseriadas, o que mantém o quadro de silenciamento e abandono
por parte das autoridades.

Considerações Finais

O estudo realizado a partir das Travessias de professoras rurais: apreendendo vida e


trabalho docente em classes multisseriadas, comprovou dentre outras coisas, que antes de
se estudar a formação de professor rural, faz-se necessário entender as relações existentes.
A superação de dificuldades com relação a evasão escolar, a baixa qualidade no ensino, falta
de formação de professores, apresenta-se, então, como uma condição necessária para a
melhoria do ensino.
Constatou-se a importância de se trabalhar com a abordagem autobiográfica e as
narrativas no processo de formação de professores. Através das narrativas foi possível obter
o conhecimento sobre a história de professoras, sobre o que é ser professor de espaço rural
atuante em classe multisseriada. Desta forma, apresentaram-se, mediante este estudo,
reflexões acerca do trabalho docente, formação do professor rural de classes multisseriadas
de Baixa Grande, e verificou-se, através das narrativas, as dificuldades existentes na prática
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 458
pedagógica dos professores atuantes em classes multisseriadas, ligadas diretamente à
fragilidade na formação inicial e continuada. A partir dessa análise, pode-se constatar que o
professor durante sua formação precisa estar refletindo sobre a sua vida, sobre o seu
processo de formação e suas práticas pedagógicas. Também foi verificado que a educação
escolar multisseriada vem sendo silenciada e lesada pelas políticas públicas e pelo pouco
conhecimento que os formadores docentes possuem.
Deste modo, é evidente que a prática pedagógica em classe multisseriada não deve
apenas ser direcionada às metodologias e às didáticas no campo do ensino, mas às questões
que envolvam o contexto em que se está ensinando. Em se tratando de educação rural, o
contexto rural e a realidade social deste, devem ser de conhecimento do professor, pois,
estas e outras questões interferem na sua prática.
O professor precisa refletir melhor sobre o seu processo na sala de aula,
principalmente sobre as dificuldades na prática com alunos da multisseriação. O professor
que reflete acerca do seu saber fazer, agora precisa refletir muito mais do que o espaço sala
de aula, necessita pensar nos seus saberes e do fazer. O professor precisa de uma formação
além da inicial, de novos conhecimentos, além dos que já possui.
Não se pode pensar em descartar a aprendizagem adquirida ao longo da prática
realizada pelos professores. No entanto, novos episódios vão aparecendo e o professor
deverá ter conhecimentos para aplicar com os alunos no intuito de lidar com essas novas
situações. A aprendizagem a partir da experiência adquire uma competência ou um saber-
fazer que pode mudar muitas coisas na sua existência, o saber adquirido é de suma
importância dentro da profissão. Conclui-se, por fim, que o município, juntamente com a
Secretaria Municipal de Educação, elabore e desenvolva projetos para a formação de
professores da zona rural atuantes em classes multisseriadas, pois se verificou que parece
haver um desamparo dos docentes neste respeito.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 459


MIZUKAMI, M. G. N. et al. Escola e aprendizagem da docência: processos de investigação e
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 460


Histórias de vida dos professores de espanhol em formação na UNEB, Campus I

Núbia Cruz 95
UNEB
nubiadiosa@yahoo.com.br

Este trabalho tem como objetivo refletir o(s) itinerários (s) de vida dos professores de espanhol em formação,
analisando neste percurso o lugar da língua espanhola e sua relação com a escolha profissional. Neste sentido,
entende-se que as narrativas autobiográficas são um potencializador instrumento de reflexão para o processo
formativo docente ao possibilitar ao professor, entre outros aspectos, debruçar-se sobre sua própria história na
busca de compreender sua razão de ser e desejar estar na profissão. Nesta perspectiva, se descortinam as reais
e diferentes motivações históricas dos sujeitos implicados no que diz respeito à vocação profissional. Assim,
focalizamos, especificamente, dentro destas histórias de vida, transitar pelos por estes percursos a partis dos
seguintes questionamentos: Por que ser professor? Qual a relação do professor em formação coma língua
espanhola? Qual o lugar que a língua ocupa na vida do futuro professor e qual a sua relação com a escolha
profissional? Para a coleta de dados, serão analisados memoriais e recortes de narrativas orais dos professores
em formação durante as atividades de estágio. O referencial teórico que orienta esta pesquisa advém das
posições elaboradas por Nóvoa (1998), Tardif (2002) Almeida Filho (1999, 2005), e Souza (2006 e 2011).
Palavras-chave: histórias de vida; Formação docente, Língua espanhola.

“Narrar a sí mismo o a otros lo que ha sido o va a ser el proyecto personal


de vida es una estrategia para construir una identidad. (BOLÍVAR, 2012, p.
34)

Introdução

Na contemporaneidade a formação docente tem se constituído um dos objetos de


estudo mais complexos e desafiadores sobre o qual tem se debruçado pesquisadores do
mundo inteiro. A atual configuração social, política, econômica e cultural tem nos sinalizado
a emergência de se repensar a formação dos professores, de forma a atender as injunções
do contexto social multifacetado no qual estamos inseridos.
Neste cenário, a formação profissional tem ganhado novos contornos e assumido a
responsabilidade do resgate da subjetividade dos atores sociais como eixo potencializador
de um fazer pedagógico crítico, criativo e reflexivo permeado pelas constantes leituras e
releituras que fazemos nas incursões pelas nossas histórias.
Dialogando com este contexto, este artigo tem como objetivo refletir sobre o(s)
itinerário(s) de vida dos professores de espanhol em formação, analisando neste percurso
como os professores de espanhol em formação dão sentido à profissão, ao passo que será
analisada a relação entre escolha profissional e língua espanhola.
Neste sentido, entende-se que as narrativas autobiográficas são um potencializador
instrumento de reflexão para o processo formativo docente ao possibilitar ao professor,
entre outros aspectos, debruçar-se sobre sua própria história na busca de compreender sua
razão de ser e desejar estar na profissão. Nesta perspectiva, se descortinam as reais e

95
Professora de Estágio em Língua Espanholano curso de Letras, Língua Espanhola e Literaturas na
Universidade do Estado da Bahia- UNEB campus I,Salvador. É mestranda do Programa de Pós-graduação em
Educação e Contemporaneidade na mesma universidade.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 461


diferentes motivações históricas dos sujeitos implicados no que diz respeito à vocação
profissional.
Como os professores de espanhol em formação dão sentido à profissão em suas
histórias de vida? É a questão norteadora desta pesquisa Assim, será focalizado,
especificamente, dentro destas histórias, como desdobramento da questão maior da
investigação os seguintes questionamentos: Por que ser professor?Qual a relação do
professor em formação com a língua espanhola? Qual o lugar que a língua ocupa na vida do
futuro professor e qual a sua relação com a escolha profissional? Para a coleta de dados,
serão analisados fragmentos de memoriais e recortes de narrativas orais dos professores em
formação durante as atividades de estágio.
O referencial teórico que orientou a escrita deste artigo advém das posições
elaboradas por Nóvoa (1992), Tardif (2000), Souza (2004), Freire (1981) e Passeggi (2006).
Vale ressaltar que se trata de um estudo preliminar, embora as motivações e
inquietações que o gerou sejam fruto de experiências vivenciadas no Estágio Supervisionado
em Língua Espanhola na instituição há três anos. Por outro lado, o resgate destas
experiências teve forte impulso nas discussões realizadas na disciplina Pesquisa(auto)
biográfica: perspectivas metodológicas, ofertada pelo Programa de pós-graduação em
Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/Uneb).
Embora esteja em sua fase inicial, o estudo já revela a necessidade de resignificação
da formação dos futuros professores de Língua Espanhola, entendendo que os saberes
linguístico, cultural, pedagógico, entre outros, não dão conta por si só da formação destes
profissionais, os quais são atravessados o tempo inteiro, em suas subjetividades, por
momentos charneiras através de diferentes e múltiplas experiências de outros contextos
formativos, o que, por esta razão, não pode ser secundarizado.
Esta constatação nos aponta o significativo papel que o método (auto) biográfico
desenvolve ao permitir ao sujeito revisitar sua história por meio de sua própria narrativa,
assumindo a centralidade deste processo e nele encontrando os pontos de ancoragem de
suas escolhas profissionais, da constituição de suas identidades e de seu modo de ser e
conceber a formação, o que ao tempo que se faz se converte em autoformação.

Histórias de vida em formação

Ao longo da história da educação assistimos, em muitos momentos, a silenciosidade


dos sujeitos nos seus processos formativos. Negligenciava-se os saberes e experiências
provenientes do universo de relações sociais, culturais, políticas e religiosas como
constituinte indenitário do aprendiz. Negligenciava-se a pessoa, sua história a singularidade
e o processo formativo que o compunha.
Na década de 80, no entanto, por conta de uma série de transformações sociais e
econômicas e a queda dos grandes paradigmas nas ciências humanas, reconhece-se no
contexto sócio-cultural-educacional a emergencial necessidade de se repensar o processo
educativo-formativo tomando como parâmetro o deslocamento do sujeito, o que significou
sua saída da posição periférica para assumir a centralidade, assumindo seu lugar na história
coletiva, com direito a deixar emergir suas singularidades.
Nesta perspectiva, o método (auto)biográfico tem se constituido, na
contemporaneidade, como um potencial instrumento de pesquisa e formação em diferentes
campos do saber, sobretudo o educacional.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 462
A abordagem(auto)biográfica pode ser entendida como uma forma de mediar
estratégias que permitam ao professor tomar consciência de suas reponsabilidades
pelo processo de sua formação,através da apropriação retrospectiva do seu
percurso de vida. E,nesse sentido, quando eles tentam justificar a opção pela
profissão, retomam elemenos que nos parecem essenciais à construção
transacional da identidade docente. (PASSEGGI, 2006, p. 262).

Nesta abordagem, o falar de si, como modo particular de narrar a própria trajetória,
de rever os caminhos e descaminho deitinerâncias do sujeito, de identificar-se se configuram
como espaço- tempo que o devolve o direito de protagonizar, rememorar e refletir sobre si
ao mesmo tempo.
Nossas histórias de vida são constituídas de pessoas, aprendizagens distintas,
experiências múltiplas e ao mesmo tempo tão singulares que desenham o terreno da nossa
existência e nos permitem a cada traço atribuir significado a diferentes momentos,
delineando de forma idiossincrática nossa identidade pessoal e coletiva.
No contexto de formação docente, a narrativa dos percursos de vida favorecem a
consciência da tomada de decisão profissional, fortalece o processo de conhecimento de si e
contribui para a conscientização dos processo constitutivos do pessoal e do profissional.È
preciso levar em consideração, portanto, que

Um professor tem uma história de vida, é um ator social, tem emoções, tem corpo,
poderes, uma personalidade, uma cultura, ou mesmo culturas, e seus pensamentos
e ações carregam as marcas do contexto nos quais seinsere. (TARDIF, 2000, p. 15)

O autor sinaliza a importância de pensar a formação docente levando em


consideração todas as dimensões do seu ser, posto que nelas se inscrevem os registros de
suas experiências e modos de ser e viver. Narrar é, portanto, fazer incursões no universo de
nossas experiências e revisitar espaços de formação em que o entrecruzamento com outras
histórias, outros mundos, faz emergir o exercício indispensável do autoconhecimento.

Contexto e percurso metodológico da pesquisa

O professor de línguas vive na contemporaneidade o desafio de ser portavoz de


uma cultura inserido em um contexto social pluri-multicultural, ao mesmo tempo em que se
vive a emergência, desencadeada por este mesmo contexto, de dar lugar e voz a sua
subjetividade. Neste cenário, a narrativa das histórias de vida torna-se imprescindível na
formação profissional por se configurar como potencial tentativa de dar respostas às
necessidades de formação, posto que

[...] o método (auto) biográfico repousa no reconhecimento não apenas do saber


formal, externo aos sujeitos, mas também naquele de saberes subjetivos, não
formais, tecidos nas suas experiências de vida e nos contextos socioculturais onde
agem e interagem. (PASSEGGI, 2006, p. 260).

A pesquisa realizada se inscreve nos pressupostos da abordagem qualitativa e se


utiliza do método (auto)biográfico como instrumento de coleta de dados. Para investigra os
sentidos que o professores de espanhol em formação dão à profissão foram realizadas
entrevistas semiestruturadas e levados em consideração também os relatos orais dos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 463
estudantes durante as atividades do estágio. Língua Espanhola no final do segundo semestre
de 2013.
São colaboradores desta investigação 06 (seis) graduandos do curso de Letras
Língua Espanhola e Literaturas, estudantes do turno matutino. Dentre eles cinco são
dogênero feminino e 01 (um) do masculino. O critério de seleção dos cinco participantes
levou em consideração a fase em que se encontravam na graduação, ou seja, semestres
finais. Além disso, observou-se também as experiências vividas nos estágios como acervo
significativo e peculiar da formação acadêmica na rememoração dos percursos de vida dos
professores em formação.
A título de contextualização, vale mencionar que o curso foi implantado em 2005 e,
neste momento, analisa a reformulação do seu projeto, atentando para as injunções do
contexto social, político, educacional, econômico e cultural para a formação docente do
professor de Língua Espanhola na contemporaneidade. Dentro deste contexto, o método
(auto)biográfico tem contribuído significantemente por possibilitar ao corpo docente o
desenvolvimento de novas formas de pensar a organização dos componentes curriculares,
sobretudo os que dizem respeito ao eixo da pesquisa e prática pedagógica e ao estágio. Após
o período de coleta, foram feitas as transcrições das entrevistas semiestruturadas para
posterior coadunação e análise dos dados recolhidos.

Incursões nas Histórias de vida dos professores de espanhol em formação

Em resposta à primeira questão- Por que serprofessor? – observamos no discurso


dos informantes a valorização da profissão construída desde a infância, a consciência do
papel do professor enquantoagente de transformação e mediador do conhecimento, durante
as falas:

- Desde pequena sempre admirei a vida daqueles que estavam a minha


frente me conduzindo e trazendo coisas novas, isso me encantava. “Saber”
– era a palavra que justificava esse meu encanto. Ao longo dos anos esse
olhar foi se apurando à medida que conhecia outras funções de um
professor: guiar, planejar, estabelecer, proporcionar e, sobretudo formar
(auxiliar isso). Compreender que você pode dar o melhor para o outro, a fim
de que o outro se torne cada vez melhor, que poderá ser através de uma
quebra de concepções e ilusões sócio-culturais. (Colaboradora A)

Vale destacar que o questionamento a respeito das razões do ser professor, feito de
forma direta e objetiva para a informante, a remeteu para a narrativa de uma fase da sua
vida, a infância, marcada pela figura dos seus professores. A valorização e admiração pela
profissão docente são aspectos significativos para a escolha profissional. A percepção
aguçada do papel do professor e a consciência da sua capacidade de intervenção e
transformação do sujeito são elementos pontuais da identificação com a profissão.
Dar vida, fazer emergir na sua história, através da narrativa, todas estas questões,
de acordo com Nóvoa (1992,p.116), nos ajuda a compreender que “ a tomada de
consciência opera-se através do assumir da palavra. O saber gera-se na partilha do discurso”.
Neste sentido, o discurso da informante acerca do profissão docente deixa expresso a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 464


consciência do labor do professor, mas sobretudo a contribuição sua responsabilidade social
no exercício profissional.

Apesar de muitos dizerem que seguir a carreira de professor não vale


apena, por conta do baixo salário e de sua desvalorização, acredito que esta
é uma das profissões mais importantes senão a mais importante, pois, sem
estes profissionais não existiriam bons médicos, arquitetos, engenheiros,
etc. Todos estes profissionais passaram por professores para chegarem
onde estão. É tão gratificante quando conseguimos de alguma forma
despertar o interesse e contribuir com desenvolvimento de um indivíduo,
nada melhor do que fazer parte de uma realidade como esta. (Colaboradora
B)

Percebe-se no discurso do informante a consciência das representações que se tem


da profissão docente no contexto social, mas sobretudo o sentido que ele mesmo atribui à
profissão, mencionando enfaticamente à relevância deste profissional parao
desenvolvimento das demais profissões.
No segundo questionamento - Como se deu o contato com a língua espanhol/em
que circunstâncias? Dois aspectos foram mais recorrentes nas falas dos licenciandos: a
curiosidade relacionada à semelhança do espanhol com a Língua materna, bem como a
evocação à imagem do outro como mediador dos primeiros contatos com a lígua espanhola,
conforme se pode obervar no exerto seguinte.

A língua espanhola, para mim, é a mais linda de todas. É encantadora e


envolvente, e minha relação com a mesma é de curiosidade. Meu desejo de
aprendê-la surgiu a partir da curiosidade, pois todos diziam que era igual a
Língua Portuguesa, o que não é verdade. (Colaboradora C)

Minha relação com a língua espanhola veio pela memória de ver minha
mãe cantando na minha infância em espanhol as músicas do momento
dela, então criou um fascínio em mim e um desafio em conhecer essa
língua. (Colaboradora D)

No discurso da colaboradora C vemos a evocação á sua mãe, primeira mediadora do


seu contato com o iodioma espanholo qual se converteu em objeto de sua profissão. As
memórias da infância são,neste contexto, o lugar onde se ancora o desejo de passear pela
história cultural da língua espanhola e onde se registram os primeiros ecos da identificação
com a profissão. Desta forma, a família é para Dilma o lugar gerador da vocação do ser
professor.
As incursões que fazemos ao narrar nossas histórias de vidas reforçam em nós o
vínculo construído com o outro por meio de sua imagem e representações a cada evocação
feita. A imagem do outro aparece aqui,portanto, como espelho que nos revela a nós mesmo.
Essa comunhão entre o eu e o outro presentes na remoração de experiências e
aprendizagens de nossas trajetórias de vida é muito bem enfatizada por Freire (1981, p. 79)
quando afirma que “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo." A língua, neste contexto, nos possibilitar
adentrar o universo de experiências do outro, o que não se faz sem o exercício constante de
,a cada encontro, retornar a si mesmo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 465
No que diz respeito á relação entre escolha profissional e língua espanhola,
percebemos, mais uma vez, a forte evocação á imagem do outro como fonte de motivação
da escolha profissional.

- Ser professora para mi foi algo que descobri que tinha aptidãodesde
infância, porém ser professora de espanhol foi assim por motivação de um
professor que tive no UPT (Universidade para todos).Ele foi tão essencial e
motivador que me motivou a ser professora de língua espanhola.
(Colaboradora E)

Para a entrevistada, a imagem do professor é decisiva e direcionadora para a escolha


da profissão. Ela revela, ainda que de forma implícita, o sentido que tem a profissão para a
licencianda, a ponto de converterse em sua escolha pessoal, e a relaçãode afeto e respeito
construída pelo professor em sua prática docente na UPT.
A respeito deste último aspecto, Passeggi (2006, p. 263) afirma que “são aitudes dos
professores que constroem as atitudes dos alunos nas suas relações como o saber e consigo
próprio,como participante ativo de uma cultura”.A assertiva da autora reforça a repercussão
e representação da postura do professor supramencionado, como potencializadorna tomada
de da escolha profissional da entrevistada.
Ao narrar sua história e revisitar momentos charneiras de sua vida, o sujeito reflete
suas ações, experiências e escolhas, realizado no movimento de reinterpretação de tempos,
pessoas eespaços, o que ao mesmo tempo se configura como um intenso processo de auto
formação.
Na perspectiva de outro licenciando, a língua espanhola é um potencial instrumento
para sua inserção no mercado de trabalho, conforme se pode observar no seguinte
fragmento:

- Hoje acredito que a língua espanhola me abriu várias portas. Direcionou-


me para uma área de trabalho que tem crescido nos últimos anos, me deu a
oportunidade de conhecer e conversar com falantes nativos da língua, algo
que antes do curso de letras seria praticamente impossível acontecer. Este
idioma me abriu um leque de possibilidades e me deixa inspirado a correr
atrás de meu sonho que é ter um diploma de nível superior em uma área
que eu escolhi e que me renderá bons frutos. Nada melhor que atuar em
uma área que te dá prazer. (Colaborador F)

Em sua fala o informante se reporta a dois fatores que marcam a relação entre
escolha profissional e língua: a convicção do retorno dos investimentos direcionados para
sua formação como professor de espanhol, reconhece a abertura o campo de possibilidades
proporcionado pela língua no campo sociocultural e profissional e ao mesmo tempo deixa
expresso o contentamento com a escolha da profissão.
Percebe-se em sua narração o lugar que ocupa a língua espanhola em sua vida e a
convicção do sucesso na profissão escolhida, mas mais do que isso deixam impressões de
sua subjetividade, dos anseios e das experiências que o atravessam e marcam os elementos
constitutivo de sua identidade profissional em construção,entrecruzando desta forma o
pessoal e o profissional. Neste contexto, se apreende que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 466
A abordagem biográfica a partir do trabalho com as histórias de vida ou com as
biografias educativas, configura-se como um processo de conhecimento. Um
conhecimento de si, das relações que se estabelecem o seuprocessoformativo
ecom as aprendizagens que construiu ao longo da vida. (SOUZA, 2004, p. 54).

De acordo com o autor, o método (auto)biográfico é um potencial instrumento de


autoconhecimento que vai aflorando no sujeito por meio das narrativas da histórias de vida,
as quais possibilitam o diálogo com experiências,tempos e espaços os quais constituem o
sujeito.

Considerações do estudo

As narrativas das histórias de vidados licenciandos nas entrevistas e relatos orais se


configuram como potencial para a compreensão dos deus modos de ser e conceber a
profissão docente. Por meio delas, os professores em formação tiveram a oportunidade e
rememorar momentos charneiras para sua formação. Transitar por seus percursos de vida
lhes permitiu revisitar espaços, tempos histórias etraduzir em palavras aquilo que os
constitui.
Compreender as histórias e representações que estão por tras da escolha
profissional desetes acadêmicos contribuiu para a revisão e ressignificação da minha prática
docente enquanto formadora, posto as incursões que me permitiu realizar pela minha
própria história quando ainda me preparava para o magistério superior. Destas apreensões,
possibilitadas pelo método (auto)biográfico, vale destacar seu potencial de reflexão para o
sujeito e instrumento de auto-conhecimento.
A possibilidade de conhecer e compreender a relação de cada estudante com a
língua espanhola, nascida no contexto familiar, do pré-vestibular e na infância são
elementos que tornam, com toda certeza, a prática do formador mais
reflexiva,desafiadorae,ao mesmo tempo, frutífera à medida lhe exige criar espaços no seu
contexto acadêmico de atuação, para o protagonismo do licenciando em seu processo
formativo.
Além disso, a consciência da tomada de decisão na profissão, a descoberta da
singularidade que porta cada língua,cada cultura e a valorização da profissão nos discurso
dos entrevistados, bem como a evocação à imagem do outro e a alusão à identidade,
revelam com objetividade o olhar crítico e atento ao exercício futuro da profissão,sem
perder de vista as injunções do contexto social,político,econômico e cultural que está a sua
volta.

Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 9 ed., Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1981, p.79.
BOLÍVAR, Antonio. Dimensiones epistemológicas y metodológicas de la investigación
(auto)biográfica. In: ABRAHÃO,Maria Helena Menna Barreto.(org.); PASSEGGI, Maria da
Conceição.(org.). Dimensões epistemológicas e metodológicas da pesquisa
(auto)biográfica. Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, v.1, 2012,p.
26-58. (Coleção Pesquisa (auto)biográfica: temas transversais).
NÓVOA, Antonio. Vida de professores. 2. ed. Porto: Porto Editora,1992.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 467


PASSEGGI. Maria da Conceição et al. Formação e pesquisa autobiográfica. In: SOUZA, Elizeu
Clementino (org.). Autobiografias,histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. Porto
Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006, p. 257-267.
SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: narrativas do itinerário escolar e
formação de professores. 2004, 344 f. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-
graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
Disponível em : https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/
10267/1/Tese_Elizeu%Souza.pdf.
TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários:
elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas
conseqüências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação,
Campinas, Autores Assoiados, n° 13, p. 1-17, 2000.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 468


A formação continuada de professores iniciantes nas classes de alfabetização de uma
escola em tempo integral da rede municipal de ensino de Campo Grande-MS

Pabliane Lemes Macena


UEMS
pablianelemes@hotmail.com
Eliane Greice Davanço Nogueira
UEMS
eg.nogueira@uol.com.br
Andre Afonso Vilela
UEMS
andreafonsus@hotmail.com

O interesse pelo tema da “Formação Continuada de Professores Iniciantes nas classes de alfabetização de uma
Escola de Tempo Integral da Rede Municipal de Campo Grande/MS” é resultado da atuação profissional, da
autora principal desse artigo, por mais de dois anos no ciclo de alfabetização. Nas Escolas em Tempo Integral –
ETI, durante o ano letivo, os professores participam de Formação Continuada oferecida pela equipe gestora e
técnica da escola, como também pela Secretaria Municipal de Educação – SEMED. Um dos aspectos
considerados na escolha pela temática foi à relevância da formação continuada para melhoria na qualidade da
prática pedagógica dos professores alfabetizadores a partir das formações continuadas que participam. A
pesquisa, para esse artigo, partiu da problemática: qual é a formação dos professores iniciantes que atuam
com as turmas de alfabetização de uma Escola em Tempo Integral da Rede Municipal de Campo Grande/MS. O
objetivo da pesquisa centrou-se na investigação da formação continuada dos professores iniciantes que atuam
no 1° e 2° anos do ensino fundamental. A temática “professores iniciantes” faz parte dos estudos do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Narrativas Formativas (GEPENAF). Os relatos dessa pesquisa configuram-se em trechos
narrativos corroborando na visão holística da (auto)formação. O artigo encontra-se estruturado iniciando com
a trajetória legal da Formação Continuada no Brasil, seguida da conceituação da Formação Continuada e seus
significados. Traz relatos sobre a Formação Continuada nas Escolas em Tempo Integral, a metodologia e os
instrumentos de coleta de dados, bem como a apresentação, análise e discussão dos resultados, seguidas das
considerações finais. A pesquisa em si, vincula-se ao eixo temático “Pesquisa (auto)biografia e práticas de
formação”.
Palavras-chave: Professores Iniciantes; Formação de Professores; Alfabetização e Letramento.

Introdução

A presente pesquisa é resultado das vivências da autora principal desse artigo numa
Escola de Tempo Integral na Rede Municipal de Campo Grande/MS. A formação continuada
(profissional) dos professores de uma ETI é diferenciada, acontecendo semanalmente, as
sextas-feiras, durante quatro horas, no período vespertino. Esse “momento de estudo e
pesquisa” reflete o rosto da escola. Os professores participam das formações intra e extra
escola. Na escola há dois momentos formativos: 1. Hora do Trabalho Pedagógico Articulado
(HTPA) – é nesse momento que gestores e professores de um determinado ano/série escolar
podem discutir e refletir sobre educação integral, proposta pedagógica da escola e suas
ações pedagógicas para a sala de aula e é o momento da partilha das vivências e
experiências como articulação de saberes; 2. Hora do Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) –
é o momento de articulação dos saberes experiências e teóricos de todo o grupo de
professores orientados pela equipe gestora e pedagógica da escola e da SEMED permitindo a
socialização do trabalho desenvolvido pelo/entre professores como forma de produções
individuais e coletivas. Esses momentos formativos visam o desenvolvimento profissional
docente da (auto)formação.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 469
Trajetória Legal da Formação Continuada no Brasil

A partir da década de 1980, um marco para abertura política do País, a educação


passou por inúmeras transformações. Anteriormente, a Lei no 5.692, de 11 de agosto de
1971, fixou as normas e diretrizes para o ensino de 1° e 2º graus que entrava em vigor e era
promulgada em meio ao Golpe Militar. Contribuiu, dessa forma, para o desenvolvimento do
tecnicismo na educação do país como nos mostra em seu Artigo 1º ao afirmar que o ensino
teria como objetivo formar para o desenvolvimento das potencialidades na qualificação para
o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania.
A formação de professores, a partir de 1971, seria realizada progressivamente e de
acordo com os objetivos estabelecidos para cada série, como também atendendo as
especificidades de cada região de atuação do professor.
A Constituição Federal (BRASIL, 1988) nos mostra em seu Artigo 206 que um dos princípios é
a valorização dos profissionais da educação, como também garantia da qualidade das ações
educativas. A década de 1990, conhecida como “Década da Educação”, denominada pela Lei
9.394 de 20 de Dezembro de 1996, estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
regulamentando a formação continuada dos professores por meio do Artigo 61, definindo
que essa formação deve estar vinculada a/ao:
I – associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço;
II – aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de
ensino e outras atividades (BRASIL, 1996).

Ao analisarmos o artigo mencionado, fica claro que a formação continuada realizada


pelos profissionais deverá ir ao encontro dos objetivos do nível e da modalidade de ensino
que estarão atuando, fazendo a relação entre as teorias estudadas e as práticas pedagógicas
para melhoria do aproveitamento e êxito nas atividades desenvolvidas nas instituições de
ensino. O Art.62 da LDBEN 9.394/96 fixa também que “A formação de docentes para atuar
na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena
em universidades e institutos superiores de educação [...] (BRASIL, 1996). Portanto, o Artigo
62 sinaliza para a importância da formação inicial dos docentes, a fim de garantir a qualidade
do trabalho pedagógico, culminando com a qualidade no processo de aprendizagem dos
discentes. O Artigo 63 deixa explícito que os programas de formação continuada devem ser
oferecidos aos professores de todos os níveis de ensino. O Artigo 67 afirma que a valorização
dos professores será feita por meio de planos de cargos e carreira, como também com
licença remunerada para a formação continuada e período de estudos, planejamento e
avaliação da sua prática pedagógica, incluída dentro da carga horária de trabalho docente.
A formação continuada oferecida aos professores deverá acontecer na escola
partindo das experiências do profissional, como nos afirma Nóvoa (2002) que “o aprender
contínuo é essencial e se concentra em dois pilares: a própria pessoa, como agente, e a
escola, como lugar de crescimento profissional permanente” (p.23).

Formação Continuada e seus significados

Atualmente, a (re) significação da atuação profissional em qualquer área, é uma


necessidade imposta pelas mudanças em nossa sociedade. As novas exigências,
especialmente na área educacional, são afirmadas pelas entidades e profissionais que
buscam a qualidade social. Tardiff (2002) nos mostra que:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 470
Os saberes profissionais são temporais [...], pois são utilizados e se desenvolvem no
âmbito de uma carreira, isto é, de um processo de vida profissional de longa
duração do qual fazem parte dimensões identitárias e dimensões de socialização
profissional, bem como fases e mudanças (p.262).

Nas palavras de Tardiff fica claro que os saberes dos profissionais da educação são
construídos ao longo da carreira profissional e estão contextualizados com a sociedade da
qual fazem parte, sendo um processo permanente e integrado.
Na área educacional, a Formação Continuada tem por objetivos, propor novas
metodologias e realizar discussões teóricas atuais, com a intenção de contribuir para
readequações da ação pedagógica na escola. Conhecer novas teorias faz parte do processo
de construção profissional, mas não bastam, se estas não possibilitam ao professor
relacioná-las com seu conhecimento prático construído no seu dia a dia.
A Formação Continuada dos profissionais atuantes nas escolas deve constituir-se em
um espaço de socialização dos saberes, repensando a prática do professor, da construção de
competências do educador. Nóvoa (1995b) afirma que a formação continuada dos
professores é uma necessidade que se impõe para que ocorra o desenvolvimento
profissional, resultando numa melhoria da sua prática docente.
Nóvoa (1998) afirma que a profissionalização docente demanda o acompanhamento
aos jovens professores, permitindo-lhes um tempo de transição, no aprendizado e das
rotinas da profissão e, em caráter decisivo, integração de um grupo docente que, no quadro
de projetos da escola promova uma atitude de formação, de reflexão e de inovação.
A formação continuada deve ser voltada para reais necessidades dos professores, já
que segundo Nóvoa (1995a), auxiliaria na “aquisição de conhecimentos e de técnicas” (p.27),
na (re) construção dos conhecimentos ao longo da trajetória profissional e na aquisição de
novas técnicas para o avanço da prática pedagógica. Quanto ao trabalho pedagógico,
segundo o autor, é fundamental que os professores realizem ações coletivas que
“contribuam para a emancipação profissional e para consolidação de uma profissão que é
autônoma na produção dos seus saberes e dos seus valores” (Ibidem).
A formação continuada dos professores é uma necessidade que se impõe a cada dia
para que ocorra o desenvolvimento profissional dos professores, resultando numa melhoria
da sua ação docente e uma educação com mais qualidade.

A Formação Continuada nas Escolas em Tempo Integral - ETI para os professores


alfabetizadores

A Rede Municipal de Educação de Campo Grande conta com duas escolas em Tempo
Integral e o documento que instrumentaliza seu funcionamento é a Proposta das Escolas em
Tempo Integral: Diretrizes de Implantação e Implementação na Rede Municipal de Educação
de Campo Grande-MS, conhecido como Livro Proposta, publicado em 2009 e elaborado por
profissionais do NUAC-ETI – Núcleo de Acompanhamento das Escolas em Tempo Integral -
da Secretaria Municipal de Educação (SEMED) do município de Campo Grande.
O objetivo maior da ETI é assegurar o direito de aprender do aluno, sem, no entanto,
adotar uma teoria oficial de aprendizagem, possibilitando aos docentes a construção de sua
proposta própria, buscando a aprendizagem adequada dos alunos.
Os professores que atuam nessas escolas, de acordo com o Livro Proposta (2009), têm duas
funções essenciais, a de orientação, no sentido de promover a participação e o engajamento

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 471


do alunado, acompanhando de perto o desempenho individual e grupal, cuidando em
especial dos que sentem maior dificuldade de aprender.
A formação continuada dos professores que atuam na ETI, de acordo com o Livro
Proposta (2009), tem como base aprimorar a aprendizagem dos alunos e não apenas
aumentar o tempo de permanência do alunado na escola. A Proposta de uma ETI enfatiza
que a formação continuada deve incentivar a apropriação dos saberes pelos professores,
propiciando uma autonomia profissional, levando em consideração o contexto da instituição
escolar e a organização/formação profissional. A matriz dessa proposta define que:

[...] os profissionais da educação que atuarão na Escola em Tempo Integral terão o


direito de participar de formação continuada, com o princípio de estudar baseados
na pesquisa e na elaboração. Espera-se que esses profissionais, por meio da
preparação e da formação permanente, não se orientem pelo instrucionismo, mas
pela construção de autoria própria (LIVRO PROPOSTA, 2009. p. 10)

Conforme proposta, os profissionais que atuam na ETI dedicar-se-á seu tempo às


atividades de aprendizagem, pesquisa e elaboração; consolidando o processo de ensino e
aprendizagem dos discentes, tornando-se autores e pesquisadores da sua própria atuação
na escola.
O Livro Proposta (2009) nos mostra que aos professores que atuam na ETI serão
oferecidas, continuada e sistematicamente, oportunidades de formação, estimulando a
produção própria e ininterrupta.
A formação continuada na ETI prioriza o desenvolvimento do profissional e da
pessoa, a construção de ações baseadas no currículo da escola e a articulação do projeto
pedagógico, regimento e plano escolar.
O processo de alfabetização na ETI descrito no Livro Proposta relata que “a ETI
trabalha novas alfabetizações ou multi-alfabetizações para além do tradicional” (p. 8),
porquanto, as oportunidades de vida e de mercado assim o exigem neste tempo. Sendo
assim, o processo de alfabetização na ETI vai muito além do ler e escrever. Busca possibilitar
aos alunos uma alfabetização tecnológica para o pleno manuseio das diferentes tecnologias,
como exigência da sociedade pós-moderna.
Foram sujeitos dessa pesquisa quatro professoras iniciantes na ETI e que atuam no 1º
e 2ºAnos, nas classes de alfabetização. A coleta de dados envolveu o uso de técnicas
padronizadas – o uso do questionário. Fez-se uso de oito questões descritivas. As
professoras participantes da pesquisa responderam perguntas sobre seu sexo, idade e ano
de atuação na instituição onde a pesquisa foi realizada, sendo que todas são do sexo
feminino; as atuantes no 1° ano, tem 32 e 35 anos; as atuantes no 2° ano, tem 25 e 41 anos.
Observou-se que as professoras do 1º Ano são graduadas em Pedagogia e pós-graduadas, a
nível de especialização, em Alfabetização e Letramento; e, o tempo de atuação profissional
em uma ETI varia de 3 a 4 anos. As professoras que atuam no 2º Ano, são pedagogas, mas
sem pós-graduação (especialização); e o tempo de atuação profissional varia de 2 a 3 anos.
García (2006) afirma que o período de inserção na docência é de extrema relevância para o
desenvolvimento profissional do professor. Essa etapa se caracteriza pela entrada na
carreira, passando de estudante a professor, experimentando o fato real dos primeiros
contatos com o que existe efetivamente na escola, desempenhando o papel destinado ao
profissional docente.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 472
A instituição no início de sua implantação ofereceu um curso de formação continuada
aos professores e equipe técnica, com duração de quatro meses e com estudos da
Metodologia da Problematização, da Proposta da ETI e diferentes textos. Das professoras
pesquisadas, nenhuma delas participou dessa formação inicial.
A formação continuada deverá estar voltada para o investimento nos professores,
especialmente os que não participaram de formações continuadas antes de iniciar sua
atuação na ETl. Segundo Nóvoa (1995a), a formação continuada, auxiliaria na “aquisição de
conhecimentos e de técnicas necessárias do processo de ensino e aprendizagem” (p. ).
A quarta pergunta traçou o perfil do tempo de atuação das professoras nas classes de
alfabetização. Conclui-se que, as professoras atuantes do 1º Ano, atuam na alfabetização
entre cinco e oito anos. As professoras do 2º Ano, atuam na alfabetização entre dois e três
anos. Observou-se que uma professora iniciou sua atuação profissional na ETI. Todas as
professoras atuantes na ETI, entre efetivas e convocadas, acreditam na proposta de trabalho
e na missão educativa posta. Dessa forma, acreditamos que essas professoras “geram
conhecimento prático a partir da sua reflexão sobre a experiência” (GARCÍA, 1999, p.55). O
conhecimento e a prática proporcionam conhecimentos práticos acerca do trabalho
pedagógico, pois parte de suas próprias experiências, como também do grupo de colegas
que atuam no mesmo contexto educacional. Essa reflexão é extremamente relevante para
as professoras que fazem parte do ciclo da alfabetização, além desses momentos coletivos
proporcionarem a socialização das experiências entre as professoras iniciantes e as
experientes.
A quinta questão foi sobre o método utilizado para alfabetizar os alunos. Uma das
professoras que atua no 1° Ano respondeu que não possui um método específico e a outra
diz utilizar o método tradicional e sintético. Quanto às professoras do 2° Ano, uma delas
afirma que “trabalha bem a fonética das letras” e a segunda professora não respondeu à
questão. Observou-se que a Proposta da ETI que está em prática pelos professores não tem
sido a mesma preconizada nos documentos norteadores seguidos pela instituição, visto que
na prática as professoras estão presas a determinados métodos de ensino “tradicional”. A
proposta inicial da ETI põe em “xeque os velhos métodos de alfabetização [...] e aposta
numa alfabetização sem metodologia, ou seja, sem um plano de atividades
intencionalmente concebidas para ensinar a escrita alfabética” (MORAES, 2012, p. 24).
Ao refletir sobre as palavras de Moraes (2012) é fundamental repensar a utilização de
um único método de alfabetização, realizando a “desinvenção”, possibilitando assim a
amplitude de atividades que proporcionem um processo prazeroso na aquisição da leitura e
escrita. Moraes, ainda afirma, que houve uma má interpretação da psicogênese da escrita,
como também uma hegemonia das práticas envolvendo o letramento, culminando com o
processo de ensino sem planejamento e sistematização.
Moraes (2012) faz uma crítica às interpretações errôneas da psicogênese da escrita,
já que o aluno não aprende sozinho, mas partindo de uma sistematização da prática
pedagógica. Além disso, o trabalho com as unidades menores, como por exemplo, sílabas e
palavras não deveriam ser realizadas e o aluno aprenderia apenas quando o professor
realizasse um trabalho partindo de textos. Sendo assim, na prática das professoras que
afirmaram utilizar apenas um método para alfabetização é necessário repensar suas práticas
e readequá-las às necessidades dos alunos.
A sexta questão faz uma sondagem sobre como o letramento é trabalhado pelas
professoras em suas práticas em sala de aula. As professoras são unânimes em responder
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 473
que suas práticas pedagógicas são recheadas do “letramento”. Tal fenômeno é apresentado
pela utilização de diferentes gêneros textuais, presentes em todas as atividades
desenvolvidas. Os diferentes gêneros textuais abrangem a realidade vigente, levando o
alunado a reflexão e ao posicionamento cidadão, somando-se ao princípio da ETI em
construir “saberes indispensáveis a inserção social” (LIVRO PROPOSTA, 2009, p. 24),
considerando que
“Letramento” é um conceito criado para referir-se aos usos da língua escrita não
somente na escola, mas em todo lugar. Porque a escrita está por todos os lados,
fazendo parte da paisagem cotidiana [...]. Porque a escrita, de fato, faz parte de
praticamente todas as situações do cotidiano da maioria das pessoas (KLEIMAN, p.
5 e 6).

Podemos afirmar, de acordo com Kleiman (2005), o letramento pode acontecer em


todos os locais, especialmente na escola e ocorre em diferentes situações do nosso
cotidiano. Esse conceito surgiu como “uma forma de explicar o impacto da escrita em todas
as esferas de atividades e não somente nas atividades escolares” (p. 6). Sendo assim, a
prática das professoras possibilita aos alunos participar de atividades de letramento. É
importante considerar que as práticas de letramento fora do contexto escolar têm objetivos
sociais, contribuindo para a formação do cidadão. Já as práticas dentro do ambiente escolar
têm como objetivo o “desenvolvimento de habilidades e competências no aluno” (p. 33).
Para que isso possa acontecer é imprescindível organizar o trabalho didático inserindo os
diferentes textos que circulam entre os diversos grupos sociais em seu cotidiano.
Soares (2003) afirma que a alfabetização e o letramento não podem ser dissociados,
pois:

[...] dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das


atuais concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a
entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre
simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional
de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a
língua escrita – o letramento. (p. 14)

Dessa forma, Soares (2003), afirma que a alfabetização e letramento:


[...] não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a
alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de
leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez,
só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações
fonema–grafema, isto é, em dependência da alfabetização (p. 14).

Nesses trechos fica evidenciado que é necessário realizar um trabalho conjunto entre
alfabetização e letramento, ou seja, alfabetizar letrando, por meio de atividades
significativas em que o processo de alfabetização seja trilhado conjuntamente com o
processo de letramento.
Ao analisar as respostas das professoras sobre o método utilizado e sua percepção de
letramento, observamos uma contradição evidente: métodos que enfatizam apenas as
relações fonéticas, também chamados “tradicionais” ou sintéticos, evidenciam uma
concepção de leitura e escrita pautada na mecanização do sistema de aquisição da escrita.
Alfabetizar letrando, ao contrário, parte de uma concepção de leitor e escritor em potencial,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 474
um sujeito com uma capacidade para aprender que não depende de pré-requisitos, como a
memorização de sílabas ou de correspondências sonoras. Quando Moraes (2012), de
maneira muito perspicaz, advoga que não é voltando a “velhos métodos” que se resolverá o
problema criado com a divulgação parcial e errônea das pesquisas sobre a psicogênese da
língua escrita, podemos subentender que o que é realmente necessário ao professor
alfabetizador é o conhecimento aprofundado sobre como a criança aprende, para que este
conhecimento dê sentido às suas práticas pedagógicas.
A sétima pergunta, trouxe a reflexão sobre a formação continuada na escola e suas
especificidades no trabalho pedagógico. Essas especificidades estão centradas na forma
como os alunos são alfabetizados. Essa alfabetização acontece de forma sistemática ou
assistemática? A formação na escola favorece o intercâmbio ou a inter-relação entre
letramento e alfabetização? - conclui-se que na complexidade da reflexão estabelecida,
todas as professoras participam do HTPA e HTPC e que esses momentos de formação
contribuem com o trabalho pedagógico realizado por elas com o foco na alfabetização dos
alunos.
A última questão ressaltou a participação das professoras em cursos/momentos de
formação fora do ambiente escolar de trabalho. As mesmas afirmam participar de cursos
oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação – SEMED. Cabe-nos lembrar que a SEMED
é a mantenedora das ações da escola. Não foi percebido a participação dessas professoras
em cursos/momentos de formação ligados a universidades, institutos e instituições de
ensino. A formação dada pela escola e pela SEMED acaba sendo as únicas fontes de
aprimoramento profissional. A participação das professoras em cursos de formação
continuada tem por objetivo “contribuir para a emancipação profissional e para
consolidação de uma profissão que é autônoma na produção dos seus saberes e dos seus
valores” (NÓVOA, 1995b, p.27), dessa forma enfatiza o êxito do trabalho pedagógico a partir
de ações coletivas qualificadas, ou seja, fruto do estudo e da pesquisa.
Podemos assim afirmar que as atividades de formação continuada desenvolvidas na
instituição pesquisada contribuem de forma efetiva para o desenvolvimento nas diferentes
áreas de atuação das professoras, especialmente da alfabetização. Tal proposição é
compartilhada por Demo (1994) que propõe que os professores deverão desenvolver sua
capacidade de pesquisa buscando a construção autônoma do conhecimento, desenvolvendo
a autoria, sendo possível por meio da formação continuada crítica dos profissionais que
atuam dentro das escolas. O professor atual precisa ser autônomo, criativo, crítico e
transformador, um profissional que se preocupe em buscar novos fazeres e novas práticas
para o futuro. Para ele, o que se espera do professor já não se resume ao

[...] formato expositivo das aulas, a fluência vernácula, à aparência externa. Precisa
centralizar-se na competência estimuladora da pesquisa, incentivando com
engenho e arte a gestão de sujeitos críticos e autocráticos, participantes e
construtivos (DEMO, 1994, p. 13).

Considerações Finais

A presente pesquisa demonstrou por meio dos resultados obtidos que na instituição
pesquisada, as professoras participam de atividades de formação continuada voltadas para o
atendimento aos alunos que estão no processo de alfabetização ao longo do ano letivo. A
participação das professoras em atividades de formação continuada é assegurada na

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 475


Proposta da Escola em Tempo Integral e acontece nos momentos de HTPA, nos grupos de
professores dos anos/séries e das áreas, e na HTPC, uma vez por semana com a participação
de todos os professores, equipe técnica pedagógica e gestores escolares.
Quanto à adoção de métodos para alfabetizar seus alunos, as respostas foram
diversificadas, demonstrando que as professoras, apesar de receberam formação específica
para atuação no ciclo de alfabetização, ainda utilizam-se de métodos que não atendem mais
às expectativas dos alunos, como por exemplo, o tradicional. Em uma conversa com uma das
gestoras da escola, ela afirmou que:

Assumimos na escola o processo sócio-linguístico, segundo Onaide S. Mendonça,


com algumas adaptações, isto é, partimos do texto, destacamos a palavra geradora
(Paulo Freire), decompomos em sílabas, construímos as famílias silábicas e
buscamos descobrir novas palavras por um processo que chamamos de
coordenadas silábicas. Isto para sistematizar o sistema de escrita alfabética
enquanto exploramos as atividades de letramento. Segundo Soares, são dois
processos de naturezas distintas que precisam ser "ensinadas" em tempo
concomitante, mas com metodologias diferenciadas.

A metodologia mencionada pela gestora demonstra uma visão da alfabetização


centrada na decodificação. Utilizando-se dos princípios de um processo de alfabetização que
caminha em consonância com o processo de letramento, concebemos que somente faz
sentido “decompor uma palavra em sílabas” quando, em atividades significativas de escrita,
a criança necessitar de uma informação sobre “aquela sílaba”, no momento em que for
escrever uma palavra. Ao contrário, atividades sistemáticas de memorização de
“coordenadas silábicas”, indistintamente ou descontextualizadas de produções de texto, não
sendo garantia que na escrita a criança recordará as famílias estudadas.
Assim, quando se concebe que as famílias silábicas devam ser ensinadas de forma
descontextualizada, admite-se que não se pode alfabetizar letrando. Magda Soares, citada
na observação da gestora, ao afirmar que alfabetização e letramento são dois processos de
naturezas distintas, não advoga que existiriam, separadamente, momentos de alfabetização
e momentos de letramento. Estes são processos que caminham juntos: ao alfabetizar,
letramos.
Nesta perspectiva de trabalho com a formação de professores para atuarem no ciclo
da alfabetização, nos questionamos: é necessário realizar um trabalho com as professoras
que atuam nestes anos, a fim de que possam “falar uma mesma língua” e utilizarem uma
única proposta metodológica, variando suas práticas pedagógicas de acordo com as
especificidades de sua turma? Ou, o maior desafio da formação de professores é a realização
de estudo sobre os processos de aquisição da língua escrita, para que as professoras tenham
clareza teórica sobre “como a criança aprende”, e o foco dos estudos seja a forma de
aprendizagem, e não a forma ou método de ensino?
No início da pesquisa, foi traçado o objetivo de investigar a formação continuada das
professoras que atuam no 1° e 2° anos do ensino fundamental de uma Escola em Tempo
Integral da Rede Municipal de Campo Grande-MS, ficando explícito que todas as professoras
participam de formações continuadas no decorrer do ano letivo. Nosso questionamento é se
o modelo de formação continuada adotado na ETI tem contribuído para a ação – reflexão -
ação sobre as práticas pedagógicas no processo de ensino e aprendizagem dos alunos,
desconstruindo assim conceitos previamente formulados e possibilitando a reconstrução
desses conhecimentos sob bases teóricas firmemente estabelecidas. As professoras
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 476
participantes desta pesquisa não expõem suas concepções metodológicas em suas práticas
de alfabetização. O questionamento segue seu curso – não toma para si, como saciada de
respostas, ao contrário vai além, buscando saber se a formação recebida não tem sido
suficientemente aprofundada ou se as professoras da ETI não conseguiram absorver os
conteúdos teóricos das formações.
Soares (2013), ao discorrer sobre o que chama de “as muitas facetas da
alfabetização” afirma com muita propriedade:

[...] tudo o que foi dito nos permite concluir que a formação do alfabetizador – que
ainda não tem se feito sistematicamente no Brasil – tem uma grande
especificidade, e exige uma preparação do professor que o leve a compreender
todas as facetas (psicológica, psicolinguística, sociolinguística e linguística) e todos
os condicionantes (sociais, culturais, políticos) do processo de alfabetização, que o
leve a saber operacionalizar essas diversas facetas (sem desprezar seus
condicionantes) em métodos e procedimentos de preparação para alfabetização e
em métodos e procedimentos de alfabetização, em elaboração e uso adequados de
materiais didáticos, e, sobretudo, que o leve a assumir uma postura política diante
das implicações ideológicas do significado e do papel atribuído à alfabetização
(p.25).

Desta forma, para que os momentos de formação, estudo e planejamento sejam


efetivamente significativos, sugerimos a formação de grupos de estudos que tratem de
todas as especificidades da alfabetização. Grupos que podem, inclusive, ser realizados
juntamente com professores de outras escolas para socialização das atividades e vivências
de formação continuada desenvolvida na escola. As vivências socializadas têm por finalidade
a formação de multiplicadores das experiências exitosas, contribuindo para ampliação da
rede de formação continuada das escolas da Rede Municipal de Ensino de Campo
Grande/MS.
A participação das professores nos cursos de formação continuada possibilita à
escola constituir-se em espaço de produção de novos conhecimentos, de vivências de
diferentes saberes e experiências, de reflexão das práticas dos professores e da construção
de competências. Portanto as atividades de formação continuada têm importância decisiva
para a melhoria da qualidade da educação.

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constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 478


Da roça, onde nasci, para a cidade, onde me reconheci: narrativas de formação e imagens-
lembranças que me tornaram um profesor

Priscila Lima de Carvalho


UNEB
prissylima@yahoo.com.br
Áurea da Silva Pereira
UNEB
aureauneb@gmail.com

Trata-se de uma pesquisa que tenciona abordar sobre a história de vida de um professor, do sexo masculino e
de origem rural, que busca as imagens-lembranças da infância/adolescência para reafirmar sua performance e
práxis docente na sala de aula. Tal proposta surgiu da pesquisa de Iniciação Científica intitulada: Saberes
experienciais de três professores: a pedagogia construída, a história e a língua portuguesa – entre cidade e
zona rural de Pojuca, BA. A pesquisa fundamenta-se em princípios teórico-epistemológico-metodológicos do
método (auto)biográfico, tendo em vista compreender o processo de formação/autoformação, a partir das
histórias de vida de professores do sexo masculino aposentados ou com vasta experiência docente. A análise
compreensiva-interpretativa da narrativa (auto)biográfica de um dos professores colaborador da pesquisa, o
qual protagoniza este trabalho, trouxe à luz memórias da sua infância, que foram decisivas na constituição do
ser professor, bem como os percalços enfrentados no processo de formação identitária e profissional,
decorrentes de sua orientação sexual, condições de precariedade e subalternidade presentes na esfera rural e
do sentimento de não pertencimento ao contexto rural, tendo assim, que migrar para a cidade em busca de
realizar o sonho de ser professor. Destarte, oportunizar espaços para as histórias de vida-formação de
professores do sexo masculino é pertinente, pelos poucos trabalhos voltados para os sujeitos desse gênero no
âmbito da pesquisa (auto)biográfica.
Palavras-chave: Trajetórias de formação; Memórias.; Histórias de vida.

Considerações preliminares: contexto da pesquisa

Este trabalho tenciona explicitar sobre a história de vida de um professor, do sexo


masculino e de origem rural, que busca as imagens-lembranças da infância/adolescência
para reafirmar sua performance e práxis docente na sala de aula; bem como, analisar a
importância que a pesquisa (auto)biográfica implica para a formação do sujeito. As reflexões
aqui expostas são resultados de um recorte da pesquisa de Iniciação Científica financiada
pela FAPESB intitulada: Saberes experienciais de três professores: a pedagogia construída, a
história e a língua portuguesa – entre cidade e zona rural de Pojuca.
O presente trabalho surgiu da vertente das histórias de vida em formação, que visa
perscrutar a estrutura, forma do indivíduo a partir do vivido, de suas narrativas,
rememorações e experiências significativas; bem como, surgiu da inquietação em constatar
que os olhares voltados para os professores do sexo masculino na área de pesquisa
(auto)biográfica e histórias de vida são reduzidos.
A pesquisa fundamenta-se em princípios teórico-epistemológico-metodológicos do
método (auto)biográfico, tendo em vista compreender o processo de
formação/autoformação, a partir das histórias de vida de professores do sexo masculino
aposentados ou com vasta experiência docente.
A pesquisa (auto)biográfica vem assumindo importante papel no meio das ciências
sociais, principalmente no meio educacional, por tratar de forma moderna e autêntica o
processo formativo e identitário, investigando e contribuindo para o conhecimento de si e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 479


reconstrução das atitudes, práticas, compreensão do presente no tocante a tomada de
consciência da figura de si.
Diante disso, evidencia-se a importância de investir nesse tipo de pesquisa,
corroborando com premissas incentivadoras da valorização de si, da história do sujeito, das
experiências adquiridas ao longo do itinerário da vida subjetiva e docência. Na geração
contemporânea, do sujeito fragmentado - como afirma considerável parcela dos grandes
autores pós-modernos -, é de suma importância dá lugar aos estudos que primam as
narrativas de vida-formação; pois, o ato de narrar-se possibilita sentido, compreensão,
(re)significação do que foi vivido e conhecimento de si.
Assim, as histórias de vida dá sentido ao presente e transforma/aperfeiçoa o futuro,
desse modo, depreende-se que os estudos concernentes às histórias de vida e saberes
experienciais adquiridos contribuem de forma positiva para o bem-estar, seja pessoal,
profissional do indivíduo, visto que, a vertente das histórias de vida incentiva a prática
constante do ato de narrar-se ainda na formação acadêmica, tendo em vista o
aperfeiçoamento da mesma.
Para concretização da pesquisa, buscou-se organizar um lastro teórico-metodológico
que pudesse permitir diálogo e interpretação das categorias que emergiram do corpus da
pesquisa. Encontramos em Marie-Christine Josso (2010), Delory-Momberger (2008), Maria
da Conceição Passegi (2010), Elizeu Clementino de Souza (2006), Daniel Bertaux (2010),
Sergio Celani Leite (2002), Guaraci Lopes Louro (2008), António Nóvoa e Matthias Finger
(1988 ; 2010), Karen Worcman (2007), entre outros, as bases teóricas e metodológicas que
fundamentarão esse trabalho.
Ademais, a opção em pesquisar acerca de professores do sexo masculino é de grande
importância por contribuir a uma pequena porcentagem dos estudos da área, pelo menos
ainda conhecida, fazendo com que a pesquisa (auto)biográfica, que tem como ponto de
partida a vida desses professores supracitados, se expanda, dê ouvido a essas vozes
silenciadas e tenha visibilidade no meio das ciências sociais, especificamente no âmbito
educacional.
A análise compreensiva-interpretativa da narrativa (auto)biográfica de um dos
professores colaborador da pesquisa, o qual protagoniza este trabalho, trouxe à luz
memórias da sua infância/adolescência, que foram decisivas na constituição do ser
professor, bem como os percalços enfrentados no processo de formação identitária e
profissional, decorrentes de sua orientação sexual, condições de precariedade e
subalternidade presentes na esfera rural e do sentimento de não pertencimento ao contexto
rural, tendo assim, que migrar para a cidade em busca de realizar o sonho de ser professor.
No decorrer do texto esses recortes serão explorados correlacionando-os com as entrevistas
narrativas que atestam os fundamentos (auto)biográficos.

Muitos professores em um

O narrador-autor-personagem (PASSEGGI, 2010) deste trabalho se chama Ivan, veio


da zona rural do município de Pojuca, BA, ainda adolescente, e, migrou para a zona urbana
da referida cidade onde estudou todo o ensino básico.
Conforme Souza (2006, p.102),

A arte de lembrar remete o sujeito a observar-se numa dimensão genealógica,


como um processo de recuperação do eu, e a memória narrativa marca um olhar
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 480
sobre si em diferentes tempos e espaços, os quais articulam-se com as lembranças
e as possibilidades de narrar as experiências. O tempo é memória, o tempo instala-
se nas vivências circunscritas em momentos; o tempo é situar-se no passado e no
presente.

Assim, fazendo uso de entrevistas narrativas, o sujeito da pesquisa compartilhou suas


recordações-referências, termo utilizado por Josso (2010), como professor e pessoa unindo
retalhos de sua vida que teceram o “todo” de sua história de vida-formação.
O protagonista dessa pesquisa tem 51 anos e dedica mais de 23 anos à docência; em
sua extensão narrativa, o Professor deixa registrado inúmeras imagens-lembranças
adquiridas com os saberes experienciais obtidos durante seu percurso formativo e docente,
bem como registra os saberes alcançados pelas práticas cotidianas; sobretudo, são
pertinentes nas narrativas do Professor Ivan, a forte presença de representações de
professores e da escola para reafirmar sua performance e práxis docente na sala de aula.
Como lembra Souza (2006, p.103),

A memória é escrita num tempo, um tempo que permite deslocamento sobre as


experiências. Tempo e memória que possibilitam conexões com as lembranças e os
esquecimentos de si, dos lugares, das pessoas, da família, da escola e das
dimensões existenciais do sujeito narrador.

Rememorar a história de vida-formação e a narrar, é reviver experiências que no ato


narrativo toma forma de experiências formadoras, fazendo da narrativa de si um ato
significativo da sua existência. É trazer à tona fragmentos vividos que constituem o ser de
hoje.
Nessa perspectiva, é relevante apontar a problemática da educação rural no Brasil,
carente de políticas públicas, já que, como foi dito anteriormente, o sujeito dessa pesquisa é
de origem rural, e precisou migrar de seu lugar de origem para a cidade de Pojuca, BA, em
busca de alcançar seus objetivos, pois, a zona rural não dispunha de aporte educacional e
financeiro digno para a permanência desse sujeito naquele contexto. Segundo Celani Leite
(1999, p. 55, grifos do autor)

Quanto à clientela da escola rural: a condição do aluno como trabalhador rural;


distância entre locais de moradia/trabalho/escola; heterogeneidade de idade e
grau de intelectualidade; baixas condições aquisitivas do alunado; acesso precário a
informações gerais.

Nesse sentido, o Professor Ivan enfrentava situações similares com a realidade citada
por Celani Leite (1999). Morava na zona rural, estudava na cidade e ainda ajudava seus pais
com as despesas de casa, pois, as dificuldades financeiras eram acentuadas, comum do
contexto rural do município. Afirmo isso, pois, todos os meus trabalhos com professores de
zonas rurais é recorrente a precariedade, discriminação e abandono pelo governo dessa
esfera da sociedade.
Segundo Santos (2003, p. 148),

[...] a população residente nas “zonas rurais” não possui escolas suficientes para
atender as demandas de matrículas (principalmente nas séries finais do ensino
fundamental), forçando, assim, os alunos “rurais” (denominados de alunos da roça)
a buscarem a continuidade dos seus estudos nas escolas da cidade, se quiserem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 481


aspirar níveis mais elevados de escolarização. Tais aspectos demonstram bem a
forma como a diversidade cultural é ignorada pelas políticas educacionais
totalitárias que negam o direito à alteridade.

É nítido a dificuldade que os alunos rurais enfrentam para concluir a educação básica
e galgar níveis mais elevados. Sujeitos como o Professor Ivan, que conseguiu ir além do que
as condições lhe proporcionava, sempre tem história de dificuldade a narrar.
Em sua narrativa o Professor Ivan expõe momentos de necessidade com forte
emoção, conforme Bertaux (2010, p. 85) “A carga emocional é também carga de
significações”, como no fragmento a seguir:

Eu tive momentos que eu fraquejei aqui na escola, né? Da gente de repente... De


meu pai desistir de estar na família; e nós todos de menor, a minha mãe doente,
isso eu era 8ª série; eu cheguei a ter momentos de dizer: assim não!
De chegar aqui com fome mesmo de noite, que antes as coisas eram mais difíceis,
hoje não, hoje qualquer lugar que você vai, você trabalha, você acha alguma coisa
para fazer. Eu cheguei em casa, cheguei uma vez em casa, minha mãe dizia:
- Seus irmãos tomaram café por que o... (pausa em virtude do choro do
entrevistado) o ovo que tinha (ainda choro do entrevistado), foram dois ovos [...]
eu dividi para seus irmãos menores, você faz o seguinte: você pega o açúcar, que
ainda tem açúcar aí, a água, a farinha mistura e coma e vá dormir. E, foram
várias vezes em seguida assim! (Depoimento de Ivan)

Destarte, o momento de emoção do colaborador de minha pesquisa me fez retomar


outros escritos de Bertaux (2010), ao aludi sobre: administrar o inesperado, ou seja,
aprender a lidar com os momentos de forte emoção, silêncios prolongados, confidências
sigilosas, momentos de dificuldades do entrevistado, pois, como afirma o autor, esses
momentos servem de “provação” para o pesquisador, que, ainda segundo o autor, algumas
vezes é passível de sair da entrevista literalmente “esvaziado”.
Assim sendo, tal narrativa evidencia a realidade do contexto rural da época, dos
obstáculos superados no percurso da vida para conquistar a formação escolar. Em sua
narrativa ele declara que não conseguiria viver na zona rural, onde nasceu, pois não se via
inserido naquele contexto, sentia-se deslocado, tinha um sonho a realizar, o de ser
professor.
O sujeito entrevistado expôs com forte emoção a batalha que enfrentou para ajudar
a família, e mesmo assim estudar, pois, apesar dos estereótipos engendrados em nossa
sociedade referente ao sujeito rural, o Professor tinha convicção que a educação é a chave
para mudar o mundo, como ele mesmo disse: “A gente transforma o cidadão através da
educação”; e, seu mundo naquele momento eram as dificuldades financeiras e empecilhos
para conseguir terminar os estudos.
Vale ressaltar, que não houve grandes mudanças desse contexto partilhado pelo
Professor pesquisado para o momento em que vivemos. É visível o ato de superação
vivenciado pelo professor, mediante os problemas apresentados ao longo da vida. O desejo
de ser professor, conquistar destaque em seu meio social, vencer as adversidades do jogo da
vida, o impulsionava a seguir em frente, procurando combater a situação manifestada
anteriormente e tantas outras enfrentadas em seu itinerário de vida.
Segundo Celani Leite (1999, p. 28)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 482


[...] a sociedade brasileira somente despertou para a educação rural por ocasião do
forte movimento migratório interno dos anos 1910/20, quando um grande número
de rurícolas deixou o campo em busca das áreas onde se iniciava um processo de
industrialização mais amplo.

Historicamente falando, o homem rural brasileiro vivia em estado de elemento


produtivo e anulado da cidadania brasileira. Numa realidade similar ao cenário sócio-
histórico rural brasileiro das décadas de 10 e 20, o Professor precisou mudar de seu lugar de
origem para a cidade, em busca de sua melhoria de vida e formação escolar, pois, a zona
rural não lhe oferecia os recursos necessários a uma vida de qualidade, falando aqui em suas
diversas categorias, nem mesmo oferecia perspectiva de vida, segundo o Professor Ivan:
Eu poderia ser hoje um homem que ao menos estivesse na roça, plantando, não
tenho nada contra a essas pessoas, que eu acho que é trabalho honesto; mas eu
inserido nesse papel, eu não me vi! O meu sonho era ser professor, nisso eu me vi!
(Depoimento de Ivan)

Conforme o exposto, o Professor Ivan não se sentia inserido no meio rural; em toda
sua narrativa ele assevera que para realizar o sonho de ser professor tinha que ir para a
cidade. Assim sendo, o sentimento de não pertencimento ao contexto rural fica evidente,
pois, o Professor demonstrava que a zona rural não tinha nada a lhe oferecer, do mesmo
modo que as lembranças guardadas dessa fase de sua vida não eram das melhores.
E, segundo Silva (1951, p. 13)
O homem rural tem acentuado sentido de realidade, pensamento rico e concreto,
pouco inclinado a divagações teóricas [...] embora religioso, muito inclinado à
superstição; ingênuo na concepção da vida e do mundo, limitando-o quase ao
próprio horizonte visual. Conserva muitas formas de pensamento primitivo, apesar
das conquistas das ciências, para ele pouco ou nada difundidas. [...] é ainda o
homem do campo rude no trato social e as suas manifestações estéticas são pouco
frequentes, principalmente pela falta de cultura, expressando-as, de modo
especial, pela música, uma de suas poucas formas de recreação [...].

Pelo discurso de Silva (1951) depreende-se a óptica preconceituosa da sociedade da


época, e que, infelizmente, vem sendo reproduzida até a atualidade em diversos âmbitos da
sociedade. Como foi constatado nas entrelinhas do depoimento do Professor, a imagem
estereotipada onde reproduz que o homem de zona rural é ignorante, mal cuidado, que só
lida com animais e a terra, desprovido de qualquer tipo de cultura, estudo, não seriam
constructos de sua história, não entrariam na trajetória de sua vida. O Professor Ivan
almejava escrever outras imagens e representações de homem rural a partir de sua história.
Ademais, é notória a busca de imagens e representações de professores e diretores
de sua infância, como parte decisiva à construção do perfil docente e gestor educacional que
empreendeu ao longo dos anos na cidade de Pojuca, BA, pois, segundo Delory-Momberger
(2008,p.60, grifos do autor).

[...] na narrativa do outro, eu me aposso prioritariamente dos biografemas


(pessoais, sociais, históricos, culturais, imaginários) que podem ser integrados à
minha própria construção biográfica, na medida em que respondem, aqui e agora,
o meu próprio mundo-de-vida.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 483


Assim, depreende-se que os biografemas (Delory-Momberger, 2008), nesse caso: os
professores, diretora, escola, vislumbrados no período da infância, foram influenciadores e
construtores do perfil docente do Professor Ivan.
Em sua extensão narrativa, O narrador-autor-personagem deixa explícitas a
admiração e influência de professores, ao ser questionado acerca das imagens-lembranças
da infância, escola e professores:

Teve vários professores que me marcaram, agora eu tenho a professora... Uma


pessoa que me marcou muito, a diretora! Oscarlinda Veloso sabe? Mulher
imperiosa, mulher de força, de garra, e, eu gostava de quando ela chamava a
gente, a atenção da gente.
E tanto que muitas coisas aqui que faço com os alunos, eu me sinto Oscarlinda
sabe? Que ela tinha o dom de chamar a gente e nos dizer a verdade, sem medo de
ferir a gente, entendeu?
Então, eu peguei isso de Oscarlinda Veloso, eu peguei a essência da professora
Deda, de sala de aula! Sabe? aquela professora que nos ensinava. E muitas coisas
que eu trouxe para sala de aula, eu trouxe do perfil da professora Deda, sabe? O
perfil de dizer o aluno o que é o que não é; de dizer ao aluno como ele tem que se
comportar em sala de aula; tanto é que eu trouxe essas riquezas de alguns
professores; mas eu também trouxe a doçura da professora Sônia, sabe? Eu soube
é... mesclar, eu sei mesclar as coisas, ao mesmo tempo em que me sinto forte eu me
sinto também um fraco; ao mesmo tempo em que eu digo que sou um pouco
austero com o aluno, mais ai eu volto e me adoço!
Eu tive é... o professor Eudes, que também sabia lidar com o aluno, sabia lidar com
essas... com esse perfil do aluno, de chamar o aluno atenção, forte, firme e forte. E
ao mesmo tempo é... ser forte como o professor Eudes era, né?
Ele chamava a gente atenção, depois ele voltava, de uma certa forma para dizer
porque ele tinha chamado a gente atenção. E hoje eu não me sinto, eu não me vejo
naquele professor simplesmente, da do professor moderno, contemporâneo, eu vou
trazer também o tradicional, sabe?
Quando eu citei todos esses professores por que eu me espelhava neles, foram
minhas referências, foram meus sonhos, Ave Maria! Foram as pessoas com quem
eu me criei visualizando ser entendeu? No mesmo perfil de sempre. (Depoimento
de Ivan)

Diante de tal depoimento, fica clara a importância de se ouvir/contar o percurso de


sua vida-formação, compreendendo que o que foi vivido está gritando dentro de nós,
mostrando que é preciso trazer à tona esses biografemas (DELORY-MOMBERGER, 2008),
recordações-referências (JOSSO, 2010), construtores de nossa identidade pessoal/docente
do ser de hoje.
As experiências vividas na infância “[...] marcam os percursos profissionais por meio
das expectativas frustradas, dos medos sentidos, mas também dos prazeres, das realizações
e dos saberes construídos.” (DIAS, 2006, p. 94). Deste modo, a reflexão citada por Dias
(2006) é bem colocada na história de vida do Professor Ivan, visto que, o contato com a
escola, professores durante a infância contribuiu a tomada de decisão-consciência.
Segundo Peres (2010, p. 82): “Compreender a memória como eco do passado
passível de recriar imagens na busca de soluções e ressignificações, mostra que ela não tem
tempo cronológico, mas o tempo da necessidade de restabelecer sentidos e significações”.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 484


Então, as imagens-lembranças guardadas na memória assumem caráter significativo
da formação docente, permite a compreensão de situações vividas e perfil construído ao
longo da vida.
É enriquecedor ouvir uma história como a supracitada pelo Professor,
compartilhando suas imagens-lembranças da infância/adolescência e entendendo o
percurso que o tornou quem é, assim como, construindo seu caráter e identidade docente.
Escrever a própria história de vida permite conhecer a si. A leitura de uma escrita
(auto)biográfica revela os sentidos, sentimentos, perfil do sujeito de quem a escreve. Narrar
sua história de vida é retirar as máscaras.
Durante a entrevista narrativa, o Professor socializou desde sua infância
desfavorecida, aos momentos vividos na escola, até a fase em que cursou faculdade:

Eu vivi durante um período assim, me deu vontade de desistir, mas eu disse: não! Eu
tenho que mudar minha história! Eu tenho que buscar aquilo que eu sempre quis
ser, eu sempre quis ser professor, eu vou buscar ser professor! Eu fui atrás dos meus
sonhos realmente! Eu vou atrás dos meus sonhos! E eu vou conseguir, corri, sabe?
Perdurei esse sonho e no ano de 2000 vim entrar na Católica, na Universidade
Católica, com toda a ousadia eu entrei na Universidade Católica! (Depoimento de
Ivan)

É notório o orgulho que o Professor sente ao contar que conseguiu realizar seu sonho
de ser professor, como também é patente a influência dos professores da infância que
assumiram papel decisivo nessa decisão tomada.
Cada ser constitui o seu eu com lembranças de situações vivenciadas, inesquecíveis e
muitas vezes reprimidas com medo da realidade ou de reações inesperadas, portanto, o ato
de contar sua história de vida possibilita descarregar essas lembranças, situações reprimidas,
principalmente quando se narram fatos antigos que geralmente são acompanhados de uma
forte carga emocional.
É preciso estar atento e sensível à história do outro, de forma que se percebam os
diferentes pontos de referência da memória (HALBWACKS, 1968) que o sujeito da pesquisa
expõe, ou deixa nas entrelinhas ao narrar-se, que são partes formadoras do seu eu.
Conforme o ouvido da história de vida do Professor Ivan, as imagens de professores,
diretor, escola, vividos na infância/adolescência foram decisivas na escolha da docência. Ao
ouvir a narrativa do sujeito entrevistado, percebia-se o olhar tenro que o professor tinha ao
aludir essas imagens-lembranças. Pois, segundo Pesavento (2003, p. 39-40) “[...] representar
é, pois, estar no lugar de, é presentificação de um ausente (...) não é uma cópia do real, sua
imagem perfeita, mas uma construção feita a partir dele.” Desse modo, percebe-se que ao
incorporar os professores que foram referências para sua vida-formação, o Professor Ivan
não faz uma cópia deles, mas sim os tomam como referência para construir o seu próprio
perfil de Professor.
Parafraseando Santo Agostinho (s/d), as memórias consistem em cavernas e palácios,
visto que, resguarda inúmeros lugares quer lembrado, quer esquecido, conveniente a cada
um; deste modo, é nítido que as cavernas são lugares onde nossa memória reserva
memórias perigosas, memórias que ao desejo humano seriam apagadas definitivamente.
Todavia, é nítido que os professores, diretores, escolas da infância do Professor
referendado, passeiam pelo palácio de sua memória. A memória, porém, é também, e
essencialmente, o lugar de encontro e afirmação de si mesmo, depósito onde se vão buscar
as causas de sua vida presente.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 485
Todavia, a história de vida do Professor é emocionante, exemplifica uma história de
luta em prol de sucesso pessoal e realização de seu sonho em ser Professor. Contudo, as
narrativas do professor referendado ainda revelam sua orientação sexual: a
homossexualidade. O professor não adentra muito nesse lado de sua vida, mas conta:
Os alunos sabem qual é a minha opção sexual, e eu transmito para eles, a questão
de que mesmo sendo uma prostituta, gay, etc., se você souber impor respeito, você
vai ganhar respeito! É isso que eu passo pra todos eles, entendeu? E eu quero
conquistar eles dessa forma; ele sabendo qual é a minha opção sexual, mas
sabendo também que dentro dessa opção sexual, existe uma pessoa que sabe dá
limites e tirar limites! E quando eu vejo que o aluno está se excedendo demais, eu
sempre chamo ele aqui na sala: - sente aí porque você precisa aprender algumas
coisas!
E ele ainda sai daqui me pedindo desculpa. Porque às vezes acham que por ser
homossexual tem que ser visto como todos. (Depoimento de Ivan)

Destarte, é sabido que a masculinidade é uma construção social, onde a ideia de que
o homem deve ser ligado ao poder e optar pela heterossexualidade está engendrada,
enraizada em nosso meio desde os primórdios; e, que apesar da grande proporção que os
estudos inerentes à homossexualidade vem tomando desde o século XIX (LOURO, 2008), o
sujeito que expõe sua orientação sexual pelo mesmo sexo, ainda é visto como um sujeito
anormal, rebelde, doente, imoral.
O texto “Políticas da masculinidade” de Robert W. Connell (1995 apud Bueno; Catani;
Sousa, 2003,p. 190), em concordância com a questão de construção e reconstrução da
masculinidade, expõe:

Existe uma narrativa convencional sobre como as masculinidades são construídas.


Nessa narrativa, toda cultura tem uma definição da conduta e dos sentimentos
apropriados para os homens. Os rapazes são pressionados a agir e sentir dessa
forma e a se distanciar do comportamento das mulheres, das garotas e da
feminilidade compreendidas como o oposto. A pressão em favor da conformidade
vem das famílias, das escolas, dos grupos de colegas, da mídia e finalmente, dos
empregadores. A maior parte dos rapazes internaliza essa norma social e adota
maneiras e interesses masculinos, tendo com custo frequentemente, a repressão
dos seus sentimentos.

O ser homem não se limita apenas ao constituído pela minoria dominante, pelas
ideologias engendradas na sociedade, que é o “macho”. Por causa dos estereótipos de
masculinidade reproduzidos em nosso meio, o homem agride, bate, estupra, julga, assobia,
avalia, domina, etc.
Assim, os rapazes são pressionados, por meio das famílias, das escolas, dos grupos,
da mídia e dos empregadores, a agir e a sentir de uma determinada forma, distanciando-se
dos comportamentos das mulheres, das garotas, da feminilidade que são entendidas como
oposto.
Nesse sentido, ao deixar de silenciar mesmo que uma pequena parcela das vozes
masculinas, pude vislumbrar as complexidades existentes nesse universo.
O universo masculino é pensado e estereotipado como grupo dominante, no
entanto, o indivíduo não nasce com sua orientação sexual determinada por causa de seu
sexo, mas sim, se torna o que se quer ser.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 486


Deste modo, percebi que apesar de sua orientação sexual, o Professor Ivan conseguiu
empreender uma boa relação, de respeito mútuo, com a comunidade escolar e não escolar
em sua cidade.
Destarte, o que pude perceber das narrativas do Professor Ivan foi verdade em seu
olhar, conheci sua realidade local, a relação de interação com as pessoas que o circundam, o
respeito construído, o método de rigidez, a mescla de tradicional/moderno que adotou e
deram certo, e como ele mesmo afirmou não mudaria jamais, pois, estava dando certo.
A história de vida do Professor Ivan teceu o percurso trilhado por um sujeito que
enfrentou e enfrenta diversas dificuldades para estar na condição atual de professor e vice-
diretor de uma escola do município de Pojuca, BA, mesmo vindo de zona rural e pela sua
orientação sexual, visto que, as formas de preconceito foram dobradas, por vir de zona rural
e ser homossexual.
Assim, são histórias como essa que reforçam a ideia que deve-se atribuir importância
às experiências adquiridas ao longo da vida, pois são delas que somos constituídos e é
também por meio delas que formamos a si e aos outros.
Nesse sentido, o excerto textual abaixo está intimamente ligado à história de vida do
Professor Ivan:

A existência de desejos e ideias ignorados pelo próprio indivíduo e sobre os quais


ele não tem controle é devastadora para o pensamento racional vigente: ao ignorar
seus desejos mais profundos, ao se mostrar incapaz de controlar suas lembranças,
o sujeito se “desconhece” e, portanto, deixa de ser “senhor de si”. (LOURO, 2008,
p. 40)

A abordagem (auto)biográfica volta às raízes, à essência que compõe sua identidade


possibilitando uma interpretação pessoal do percurso vivido. Levando-se em consideração a
complexa função social exercida pelo professor, utilizar a metodologia das “Histórias de vida
em formação” como um lugar de formação, permite um método não-tradicional e autêntico
ao processo formativo, como também, assume formação continuada, ao aperfeiçoar suas
práticas a cada narrativa de si e de sua formação.

Para pensar nas considerações finais: onde queremos chegar.

A pesquisa (auto)biográfica é de suma importância para a formação docente, pois, a


narrativa concretizada, unida a tomada de consciência do que se viveu é forte aliada para
transformar o professor/sujeito.
Assim, é preciso uma escuta de si, mas também, desejo de mudança para que a
pesquisa (auto)biográfica contribua positivamente na vida do sujeito, pois, a narrativa da
história por si só não traz grandes colaborações, mas como afirma Josso (2004, p. 59),

Esse conhecimento de si não especializa em um ou em vários dos registros das


ciências do humano; tenta pelo contrário, apreender as suas complexas
imbricações no centro da nossa existencialidade. Procura, pois, envolver os nossos
diferentes modos de estar no mundo, de nos projetarmos nele e de o fazermos na
proporção do desenvolvimento da nossa capacidade para multiplicar, alargar,
aprofundar as nossas sensibilidades para nós mesmos e para o mundo, para
questionar as nossas categorias mentais na medida em que se inscrevem numa
historicidade e numa cultura.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 487


Ao narrar às experiências significativas da vida acadêmica de um sujeito é possível
permutar saberes, reler as práticas docentes do passado permitindo rever, modificar o que
se vive hoje, procurando entender as causas que o levaram a tais práticas. É um encontro e
simultaneamente um distanciamento entre sua interioridade e exterioridade. As memórias
trazidas à tona pelo próprio sujeito possibilitam autoconhecimento e consciência dos
caminhos escolhidos, dos encontros e desencontros.
Diante da pesquisa narrativa do professor apresentado, percebe-se a grande
importância do trabalho (auto)biográfico no âmbito educacional, a fim de contribuir para o
aperfeiçoamento das práticas docentes.
É patente que as memórias de formação (re)significam as práticas pedagógicas, e
também assumem importantes papéis para os cursos de formação, pois, iniciando esse ato
rememorativo ainda na academia, indubitavelmente, o futuro educador qualificará sua
metodologia em sala de aula, além da esfera subjetiva.
Conforme Worcman (2007, p.07),
Se entendermos que cada indivíduo tem uma história única, uma experiência
valiosa que deve ser respeitada e tida como “saber”, estamos de fato,
reconhecendo o valor do outro. Isso é fundamental para a mudança de culturas: de
uma cultura de “especialistas” e “de poucos”, com emissores, receptores
predeterminados, para uma cultura que reconhece o valor de cada pessoa.

A partilha de experiência permitida pelo contar de si, extraída da narrativa


(auto)biográfica do Professor Ivan, contribuiu tanto para si quanto para mim na condição de
pesquisadora, porque a troca de experiências socializadas durante a narrativa
(auto)biográfica contribuiu de forma significativa, à medida que pudemos visualizar as
aprendizagens, as dificuldades e desafios experienciados pelo professor rural em prol de seu
sonho e os percalços recorrentes no processo de alfabetização e letramento em
comunidades rurais, carentes de políticas públicas para uma educação de qualidade.

Referências
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(trad.). São Paulo: Paulus, 2010.
CATANI, Denice Barbara et.al. Vida e ofício de professores: formação contínua, autobiografia
e pesquisa em colaboração. 4. ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2003.
DELORY-MOMBERGER,Christine. Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto. Trad. de
Maria da Conceição Passegi, João Gomes da Silva Neto e Luis Passegi. Natal, RN: EDUFRN;
São Paulo: Paulus, 2008.
IZQUIERDO, Iván. Questões sobre memória. Rio Grande do Sul: Editor Unisinos, 2004.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução José Claudino e Júlia
Ferreira. São Paulo: Cortez, 2010.
LEITE, Sergio Celani. Escola rural: urbanização e políticas educacionais. São Paulo: Cortez,
1999.
LOURO, Guaraci Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
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itinerários e alternativas de formação.(org.) São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 488
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Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Departamento de Educação – Campus
I, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2008.
PERES, L. M. V. A escrita da memória autobiográfica: Para que te quero?. In: SOUZA, Elizeu
Clementino de; GALLEGO, Rita de Cassio. (Org.). Espaços, tempos e gerações: perspectivas
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
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WORCMAN, Karen. Memória: poder de transformação. In: Presente! Revista de educação.
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 489


Histórias de vida e formação do professor de música: desafios a partir da Lei 11.769/ 2008

Rafael de Souza
IC/UNIRIO
desouza.rafaelf@gmail.com

Este trabalho pretende discutir o processo de formação do professor de música frente aos desafios colocados
pela lei n° 11.769 de agosto de 2008, a qual versa a respeito da obrigatoriedade do ensino de música e,
consequentemente, demanda aumento da formação de profissionais para e nesta área. A partir desta nova
realidade, o presente texto problematiza a necessidade de se refletir sobre experiências de vida e formação do
professor de música e os atravessamentos dessas experiências para a prática cotidiana. Nesse sentido, busca
defender a reflexão em torno de histórias de vida e formação – especialmente sobre os processos de
musicalização vividos por professores de música atuantes na escola básica – no processo formativo e
autoformativo docente. Para tal, a ação investigativa lança mão da pesquisa narrativa como possibilidade de se
aproximar de sentidos singulares construídos pelos sujeitos ao longo das histórias por eles vividas, com os
quais compõem e recompõem seus fazeres/saberes pedagógicos. A aposta na formação continuada e
permanente do professor de educação musical é, antes de tudo, um posicionamento e compromisso políticos,
uma vez que a geração atual de educadores musicais, formada pelos licenciandos em música e pelos recém-
licenciados, é que vai atuar na construção da "nova" educação musical brasileira, posto o regresso da
obrigatoriedade do ensino de música proporcionado pela referida lei (11.769/ 08).
Palavras-chave: Formação do professor de música; Histórias de vida e formação; Pesquisa narrativa.

Introdução

Um professor tem uma história de vida, é um ator


social, tem emoções, um corpo, poderes, uma
personalidade, uma cultura, ou mesmo culturas, e seus
pensamentos e ações carregam as marcas do contexto
nos quais se inserem.
Maurice Tardiff

Este trabalho é fruto de um percurso de pesquisa de Iniciação Científica. Tal pesquisa,


inicialmente, tinha como objetivo o levantamento do perfil do egresso do curso de
Licenciatura em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Além disso,
tinha a intenção de empreender uma avaliação curricular sob o ponto de vista dos ex-alunos
desse curso superior, coincidindo e contribuindo para os momentos de instituição da
Comissão Interna de Avaliação Curricular e de avaliação, por parte do Ministério da
Educação, do referido curso.
Porém, um dos ex-alunos participantes da pesquisa e atuante em escola básica,
demonstrou um forte desejo de ter espaço para retornar à universidade e dividir com os
atuais licenciandos e professores suas vivências, questionamentos, dificuldades, anseios,
erros e acertos como professor.
Sensibilizado pelo anseio do educador, foi feito um levantamento bibliográfico sobre
formação continuada e/ ou permanente do professor de música. Cumpri a busca em
periódicos da área da educação com qualis atribuído pela CAPES B2 ou superior, em um
recorte histórico de 10 anos, compreendendo o período que vai do ano de 2004 ao de 2013:
Revista Brasileira de Educação (revista da ANPED), Revista Educação e Sociedade, Revista
Educação e Contemporaneidade, Revista Teias, Revista do INEP e Revista da ALEPH (com
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 490
qualis B5, mas especializada na área da formação continuada). Além disso, o levantamento
também foi realizado em periódicos da área da educação musical utilizando-se os mesmos
critérios. Foram pesquisadas, até o momento: A Revista da ABEM (Associação Brasileira de
Educação), Revista Ictus, Revista Música Hodie e Revista per Musi.
Para grande surpresa, mesmo sabendo-se da evasão/ abandono dos professores de
música em seus cargos públicos como docentes e a escolha predominante dos recém-
licenciados por cursos/ conservatórios de música (PENNA, 2012), bem como do baixo índice
de alunos formados na Licenciatura em Música da UNIRIO – totalizando 58 no período que
vai de 2008/1 a 2012/1 (SARAIVA, 2013) –, foi encontrado um número inexpressivo de
trabalhos publicados na área em relação ao universo de periódicos nos quais foi realizada a
busca. No caso das revistas de educação, não foi encontrado nenhum resultado para a
pesquisa. Já no caso dos periódicos da área musical, foram encontrados apenas um artigo
tratando de formação continuada na Revista Ictus (QUEIROZ; MARINHO, 2010) e outro na
Revista Música Hodie (DEL BEM, 2005). A Revista da ABEM retornou diversos resultados para
formação continuada, mas voltada apenas para pedagogos96.
Além disso, preocupado com a nova realidade da inserção da música como conteúdo
obrigatório na educação básica, este texto pretende discutir estratégias significativas de
formação para/ com os profissionais desta área do conhecimento.
Para realizar tal debate, trago um histórico da educação musical no Brasil e suas
diferentes concepções desde o final do século XIX, a partir dos trabalhos de Santos (2011) e
Penna (2012), e uma discussão sobre a Lei 11.769 de agosto de 2008 a partir de Sobreira
(2012; 2014) e Santos (2014). Ademais, teço reflexões sobre as mudanças nas políticas de
formação de docentes para a área frente àquelas exigidas pelas novas determinações para
educação musical nas escolas básicas.
A mudança trazida por esta lei tem implicação imediata: a demanda por aumento de
formação de educadores musicais, fazendo urgir a preocupação em lançar-se um olhar mais
atento para a formação de uma forma mais ampla – não só continuada/ permanente – de
professores desta área. Pensando nisso, este texto apresenta a narrativa de histórias de vida
de professores de música atuantes na educação básica formados a partir de 2008 na
Licenciatura em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Elas são
concernentes aos processos de musicalização de profissionais que recentemente
ingressaram no mercado de trabalho.
Acreditando em tais narrativas como mobilizadoras da tomada de conhecimento de
si para a superação de modelos de exercício da docência preestabelecidos (SOUZA, 2006),
foram realizadas conversas com estes professores baseadas em três perguntas: (1) Como fui
musicalizado? (2) Como aprendi a musicalizar? e, finalmente, (3) Como musicalizo hoje?97
As conversas puderam comprovar a influência da dimensão pessoal e social, da
historicidade do professor, como produtora de “sentido e significados no seu processo de
aprendizagem” (SOUZA, 2006, p. 35). Além disso, o retorno para si provocado por elas foi
marcado pela reflexividade incidente sobre a própria prática, demonstrando a

96 Este resultado se deve à preocupação de educadores musicais com o processo de musicalização das
crianças em fase de alfabetização/ nos anos iniciais do Ensino Fundamental, já que a Lei 11.769/ 08 exigiria
a presença do conteúdo música na educação básica e, nessa fase de escolarização, a formação se dá
apenas com o professor generalista.
97 Tais perguntas foram adaptadas a partir de pesquisa de mestrado sob a temática da Documentação
narrativa, onde as perguntas eram utilizadas, mas interessadas na alfabetização (RIBEIRO, 2014).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 491
potencialidade das narrativas como processo (auto)formativo. Porém, dadas as dimensões
restritas de um texto para comunicação oral, utilizarei apenas uma das conversas realizadas.
Na medida em que as narrativas das histórias de vida provocam silêncios,
descobrimentos de incoerências/ contradições em seus narradores, produzem, também, um
olhar e escuta mais sensíveis à prática docente, e, consequentemente a produção de
experiências (DOMINGO; FERRÉ, 2010; LARROSA, 2004).
Desta forma, as histórias de vida mostraram-se como um pressuposto para uma
possibilidade outra de:

• Formação;
• Formação continuada, na medida em que a criação de redes de conversações
(CARVALHO, 2011) para a partilha de práticas/ histórias de vida atualizam o passado
no presente (PRADO, 2006) e
• Formação permanente, visto que o conhecimento de si produz uma visão
problematizadora da própria prática, bem como a (re)criação de saberes/ teorias/
práticas/ conhecimentos de forma constante e permanente.

Concluo, então, defendendo e lançando a proposta/ provocação de uma formação


permanente, caracterizada pela elaboração da identidade de professores pesquisadores da
própria prática (ESTEBAN; ZACCUR, 2002a; GARCIA, 2001) - mais que profissionais reflexivos
(ZEICHNER, 2002). Tal proposta tem como objetivo a formação com professores de educação
musical para a sensibilidade às demandas de seus alunos e aos cotidianos escolares, onde
inicie-se “um movimento em que a prática atualiza e interroga a teoria, que por sua vez
interroga e atualiza a prática” (ESTEBAN; ZACCUR, 2002b).

História da Eucação Musical brasileira antes da Lei 11.769/08

A história da educação musical nas escolas brasileiras é longa e repleta de


continuidades e rupturas e foi alicerçada sobre os mais diversos motivos. Primeiramente, tal
área do conhecimento foi incluída como componente curricular por decreto no ano de 1854,
o qual determinava que o ensino de música deveria reunir noções de música e, em primeira
instância, oferecer exercícios/ prática de canto (SOBREIRA, 2011). Apesar de esta ter sido a
primeira regulamentação oficial dada ao ensino de música, o Colégio Pedro II – tradicional
escola carioca fundada em dezembro 1837 como reorganização de Seminário já existente –
já apresentava aulas de música em classes não regulares em seu primeiro ano de
funcionamento a partir do seu primeiro ano de funcionamento, 1838.
À esta época, os motivos para ensinar-se canto eram, entre outros, introjetar
ideologias políticas, melhorar a condição física, disciplinar os alunos e prevenir a tuberculose
através dos exercícios de respiração.
Em São Paulo, uma escola inaugurada em 1894 e chamada Jardim de Infância
Caetano de Campos oferecia aulas de música privilegiando o uso de marchas e cantos que
marcavam “todos os momentos da rotina disciplinar na escola” (SANTOS, 2011, p.169).
Segundo a mesma autora, o exercício de marchas foi fortemente presente na educação
musical de São Paulo e, nas décadas de 1910 e 1920, a prática musical nas escolas já era
denominada “Canto Orfeônico”, prenunciando a forma como a música estaria presente nas
escolas do período histórico subsequente, nomeadamente o Estado Novo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 492
O projeto varguista – e villalobiano98 – do Canto Orfeônico, implantado nas escolas
com a promulgação do Decreto nº 19.980 de 18-04-1931 e que perdurou até a década de
1960, visava alcançar todo o território nacional e pretendia um resgate/ formação de uma
identidade nacional. Tal empreendimento seria tornado realidade, principalmente, a partir
da educação musical, que se encarregaria de desenvolver a disciplina e o civismo. O
repertório trabalhado englobaria canções de caráter “artístico” e teria o papel de despertar
energias cívicas, configurando um canto coletivo socializador, de exaltação e
reconhecimento do patrimônio musical brasileiro. Vale ressaltar que, para atender à
demanda de alcance nacional do projeto, foi necessário investir na formação de profissionais
para esta área, criando-se o Curso Normal de Canto Orfeônico.
Na década de 1970, aparece a Lei 5.692/ 71 a qual, promulgada em regime militar de
exceção, reforma a Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Tal Lei propunha a integração das
linguagens artísticas, exigindo, então, a polivalência dos professores, ou seja, que os mesmos
dominassem as diferentes linguagens da arte. Não sendo muito clara, ela também gera
crises na formação dos educadores musicais e leva a conduções de reformulações das
graduações, as quais passam a formar professores de educação artística, como vivências em
todas as linguagens, mas ficando as Artes Plásticas privilegiadas.
A música só é propriamente mencionada no Parecer 540/77 do Conselho Federal de
Educação, onde ela é tratada como uma das linguagens da arte a serem tratadas na escola.
De acordo com ele todas artes prescindem de horário fixo para seus conteúdos nas escolas,
devendo as manifestações artísticas constituírem-se “numa atitude contínua da escola”
(SANTOS, 2012, p. 10) e preocupação geral do processo formativo, não como disciplina. O
mesmo documento critica a educação musical calcada na teoria e no canto, como até então
ocorria, e propunha uma vivência das diferentes linguagens artísticas com mais espaço para
a criatividade e a autoexpressão.
A LDB 9394/ 96 se afasta da abordagem da educação artística e fala, declaradamente
do ensino de arte. Com isso, “a Lei deixou uma vaguidade que tentou ser preenchida com os
Parâmetros Curriculares Nacionais, onde as modalidades Artes Visuais, Dança, Teatro e
Música são descritas separadamente” (SANTOS, 2012, p.12). Contudo, os PCNs são
documentos que dão um parâmetro para ajudar a pensar os currículos escolares, e não uma
lei definidora da estruturação curricular. Por isso, as escolas eram obrigadas, apenas, a
oferecer a disciplina Arte, ficando a música fora da formação das crianças nas escolas,
mesmo ela estando presente nos cotidianos das mesmas, desconsiderando, assim a
importância social desta e das outras linguagens artísticas, como a dança e o teatro.
Toda essa falta de clareza sobre o ensino de música na escola criou uma série de
concepções sobre a formação do educador musical. Ao mesmo tempo em que haviam
cursos de Educação Artística, foram criadas habilitações específicas em Educação Musical,
criando um quadro de diferentes modalidades de formação para os professores das
diferentes linguagens artísticas por todo o Brasil desde antes a década de 1990. A
regulamentação da Licenciatura em Música em âmbito nacional veio apenas com Resolução

98 Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi compositor e um dos maiores expoentes da música do Movimento
Modernista brasileiro, o qual propunha a reinvenção da estética musical brasileira através da busca de uma
identidade nacional outra, assim como o Estado Novo propunha. O músico aproveitou-se do momento
político propiciado por Getúlio Vargas para garantir, através da educação, a formação dessa identidade de
forma mais ampla, misturando ideias escolanovistas com uma pedagogia calcada em forte controle e
previsibilidade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 493
Nº 2, de 8 de março de 2004 do Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação
Superior, que criou as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Música
(PENNA, 2012, p. 137).
Vale ressaltar, também, que esta discussão relacionadas às leis sobre o ensino das
diferentes manifestações artísticas não corresponde à realidade total dos cotidianos
escolares, visto que muitas escolas continuaram a oferecer aulas de música regularmente
como diferencial formativo humanizador. O oferecimento desse diferencial pode ser
interpretado, também, como um fruto da competição decorrente da ordem sociopolítica e
econômica capitalista e neoliberal, onde cresceu consideravelmente o número de escolas
particulares no país, ficando essas instituições escolares no hall dos novos empreendimentos
lucrativos, sempre em busca da “excelência”.

A Lei 11.768/ 08

Após cerca de quatro décadas em que a educação musical ficou oficialmente fora dos
espaços escolares, é formulada e promulgada a Lei 11.769/08, a qual modifica a Lei de
Diretrizes e Bases Educação Nacional (Lei n° 9394/96) acrescentando a obrigatoriedade do
ensino de música nas escolas de educação de níveis fundamental e médio. Com esta nova
realidade, algumas questões referentes ao ensino/aprendizagem de música precisam ser
pensadas. Que mudanças esta lei traz para a prática do professor de Educação Musical e sua
formação?
Para pensar essas questões é importante contextualizar o cenário em que tal lei é
implementada. Fruto, principalmente, da união dos esforços da ABEM (Associação Brasileira
de Educação Musical) junto aos profissionais da música que formaram o Grupo de Apoio
Parlamentar e da campanha para a aprovação da lei, sob o slogan Quero Educação Musical
na Escola (SOBREIRA, 2012), tal lei reconhece a legitimidade de se ensinar e aprender os
conhecimentos musicais.
Essa conquista, resultado da referida união, não foi possível sem relações de força e
poder. O texto final da lei sofreu alterações, o que mostra que as discussões em torno da
mesma não se deram frente a uma multiplicidade de perspectivas e concepções. Seu artigo
2º, o qual determinava a exclusividade do ensino do conteúdo musical por profissionais
formados na área foi vetado pelo então Presidente da República, sob as seguintes alegações:

1) música é uma prática social; 2) os profissionais atuantes na área não possuem


formação acadêmica, embora tenham competência reconhecida; 3) “esses
profissionais estariam impossibilitados de ministrar tal conteúdo de maneira em
que este dispositivo está proposto” (SANTOS, 2011, p. 188).

Com esse veto, o legislador expressa não ser necessária, para o ensino de música,
uma formação em licenciatura própria a fim de que os processos de ensino/aprendizagem
dos conteúdos específicos da área ocorram. Assim, pessoas sem formação “adequada”
poderiam ministrar aulas de música nas escolas.
Se por um lado a lei abre brechas para outros profissionais atuarem com música nas
escolas; por outro, ela amplia a oportunidade de abertura de vagas para professores da área,
uma vez que, para um concurso público, exige-se a certificação para exercer a atividade
docente na área à qual o candidato concorre. Isto é reforçado com a inserção da música

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 494


como conteúdo curricular, porém, essa mesma inserção como conteúdo, e não como
disciplina tem tornado possível a ambivalência já citada.
Não obstante, a despeito da ambivalência em torno do profissional que vai atua com
música nas escolas, a Lei 11.769/08 gera demandas por ampliação da formação de docentes
especialistas na área e, consequentemente, profissionais formados para atuar na realidade
das escolas regulares. Essa demanda implica a necessidade de se repensar os currículos dos
cursos de formação em Licenciatura em Música, já que, de forma geral, a formação em nível
superior parece estar majoritariamente voltada para a inserção desses profissionais nas
escolas/ cursos/ conservatórios de música – os espaços de atuação mais escolhidos pelos
licenciados (PENNA, 2012).

Histórias de vida: uma “opção metodológica”

O processo formativo a partir das histórias de vida faz com que o narrador da própria
história, no caso, o professor, seja o centro de sua própria formação. Nesta perspectiva,
assume-se, então, a impossibilidade de separação entre as dimensões pessoal e profissional
do professor, e torna-se possível entender o impacto do desenvolvimento da pessoa – na
vida de forma mais ampla, para além dos cursos de formação, antes durante e depois deles –
do professor no execício de seu trabalho em sala de aula.
Assim, o desenvolvimento pessoal mostra-se importante para pensar a formação
docente, já que “a noção de desenvolvimento expressa um contínuo, uma aprendizagem
que se constrói ao longo da vida e também por parecer mais pertinente para a superação
tradicional justaposta entre formação inicial e aperfeiçoamento ou reciclagem de
professores” (SOUZA, 2001, p. 35). Além disso, desobscurecer estes processos de
desenvolvimento, ou seja, voltar a memória sobre eles, permite mostrar que a própria
pessoa é responsável por sua formação, na medida em que é o sujeito quem está a frente de
seus percursos de vida e, principalmente, permite mostrar a compreensão que tais sujeitos
constroem sobre suas trajetórias de vida, fator determinante em seus processos de
formação.
Desta forma, “investir na singularidade e na subjetividade das narrativas possibilita
ao sujeito em formação, ao mesmo tempo, entrar em contato com suas lembranças e
relacioná-las às diferentes dimensões da aprendizagem profissional através da sua própria
trajetória (...)” (SOUZA, 2001, p. 35). Indo além, a pesquisa com histórias de vida permite
pensar a formação enquanto processo sempre em curso por causa da conexão que
possibilita entre as experiências construídas pelos professores narradores durante suas vidas
e as singularidades das mesmas.

As dimensões formativas e ecoformativas que emergem da narrativa de formação


ligam-se à globalidade da vida e das experiências pessoal, profissional, cultural,
social, espiritual, encarnando a formação como um trabalho e atividade do sujeito
sobre si e em relação a si mesmo, aos outros e aos diferentes espaços-tempos em
que está inserido. (SOUZA, 2001, p. 39)

Histórias de vida e musicalização: a narrativa de Carlos

Como bem aponta Elizeu Clementino de Souza (2001), as pesquisas com histórias de
vida vêm aumentando no Brasil. Porém, tais pesquisas trazem narrativas de professores
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 495
experientes profissionalmente, ou no final de suas carreiras. Por isso, no caso específico
deste trabalho, dadas as dimensões restritas de um artigo, trago a seguir apenas a narrativa
de Carlos99. O professor de música, carioca, de 32 anos de idade é formado recentemente,
no ano de 2012, no curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro e está no seu primeiro emprego formal como professor em escola básica,
participando de um programa o qual oferece aulas de educação musical nas escolas
municipais da cidade de Niterói, vizinha ao Rio de Janeiro, para os alunos do quarto ano de
escolaridade.
Logo, sem deixar de lado a importância dos estudas que vêm sendo realizados, a
narrativa do educador musical se torna relevante por contribuir para o campo da pesquisa
com as histórias de vida, pois traz o confronto da prática docente em seu início com as
histórias de vida do professor, principalmente relacionadas aos processos de musicalização
por ele vividos. A opção pela ênfase na musicalização foi feita porque a maioria dos
professores de música formados recentemente faz parte de uma geração a qual foi
musicalizada no estudo de seus instrumentos e não teve aulas de educação musical nas
escolas em que estudaram, mas exercerão a docência nesses espaços.
Ademais, o conhecimento de si ampliado por tais narrativas tem a potência de
descortinar tal questão, mostrando o/a professor/a a si mesmo, durante sua narrativa, os
eventuais reflexos da formação técnica que recebeu em sua prática docente. A partir disto,
percebe-se mais claramente a necessidade a qual estes professores têm de retornar o olhar
ao passado para (re)criar seus saberes/ fazeres/ conhecimentos postos em ação em suas
salas de aulas.
Sobre como foi musicalizado, Carlos contou que seu interesse por estudar música se
deu pelo desejo de imitar um amigo, de ser como ele, de ter uma banda de garagem como
ele. Então, aos 14 anos, iniciou seus estudos de bateria. Sem a presença de familiares
próximos com alguma dedicação à música, o professor chegou a cursar engenharia, mas
abandonou o curso para seguir o desejo de se dedicar exclusivamente à música. Segundo
ele, sua musicalização

foi direto no instrumento, na bateria (…) os primeiros contatos já foram com figuras
de ritmo, com o professor já me falando: “isso aqui é uma semínima, isso uma
colcheia”, “isso você toca assim”, fazendo exercícios de leitura (de partitura) e o
próprio instrumento, a coordenação motora e algum repertório. Eu levava músicas
que eu gostava, tocava junto e tal. (Carlos. Conversa transcrita. 05/03/2014)

Neste início de conversa, pudemos100 nos deparar com um primeiro engasgo.


Ouvindo a expressão “músico, músico mesmo” na fala de Carlos quando ele falava sobre sua
história inicial com a música e a presença dela em sua família, me incomodo101 e, curioso
sobre o que ele reconhece como um músico de verdade, a retomo. Na retomada

99 Com o intuito de preservar a identidade do professor, seu nome foi trocado para a publicação deste
trabalho.
100 Faço uso, neste momento, da primeira pessoa do plural não à toa: acredito na conversa, na escuta da
narrativa como um processo formativo também para mim (SOUZA, 2001; PRADO, 2011; RIBEIRO, 2014),
como um confronto também às minhas verdades cristalizadas, contradições, etc. A conversa afeta também
quem ocupa o lugar de pesquisador, e não apenas aquele que narra.
101 Este incômodo se dá pelo conhecimento de um discurso corrente entre os estudantes de graduações em
música, o qual afirma serem apenas aqueles que têm formação superior ou estão passando por ela,
músicos profissionais, “músicos de verdade”.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 496
provocativa, o professor faz uma pausa e responde que não se referia a alguém que tornou
música sua profissão, mas que dedica alguma parte da sua vida ao estudo da música ou à
prática de música (Carlos. Conversa transcrita. 05/03/2014).
A seguir, começamos a falar sobre como Carlos aprendeu a musicalizar. Aqui começa
a surgir, nas pausas feitas pelo professor para responder, a afetação, iniciada já na última
provocação, que a conversa provoca, a necessidade de voltar o pensamento mais calma e
atentamente ao vivido. A narrativa provoca um processo reflexivo, trazendo a necessidade a
quem narra seu íntimo, de “voltar para dentro de si e pensar sobre as histórias que conta,
ponderando, indagando, modificando, rompendo e instituindo um ambiente de
aprendizagens por causa delas” (PRADO, 2011, p. 170).
Neste ponto, o educador, em meio a interrupções que faz a si mesmo, cita as
ferramentas que recebeu durante a licenciatura em música, as metodologias criadas no
século XX em países da Europa. Puxando para este lado “capacitador” e conteudista da
formação que recebemos, pergunto sobre a validade destas ferramentas no contexto de seu
trabalho e, o próprio Carlos em sua fala, afirma que depende do lugar onde você estiver, da
possibilidade do aluno (Carlos. Conversa transcrita. 05/03/2014). Esta colocação demonstra,
simultaneamente, o quanto estes conhecimentos são dessituados, pensados para uma
realidade cotidiana escolar distinta da vivida por ele e por muitos outros professores das
escolas públicas fluminenses, bem como a relevância que esses conhecimentos têm para a
prática deste professor.
Além disso, mais fortemente ainda, Carlos aponta a centralidade do estágio em sua
formação, um espaço no qual ele tinha a prática, via os colegas que já tinham mais
experiência, era uma disciplina na qual se botava a mão na massa. Para ele, seu processo de
aprender a musicalizar foi mais ou menos essa combinação, né... um pouco da teoria, em
sala, com prática também (Carlos. Conversa transcrita. 05/03/2014).
Desta forma, o educador musical viu no estágio um “entrelugar de reflexão e
experimentação da identidade docente-discente, campo particular de disputas de saberes,
fazeres e poderes entre a universidade e a escola” (SÜSSEKIND, 2011, p. 24). Entrelugar no
qual é possível ressignificar o pensar e a prática como professor, ressignificação esta
atravessada pelas questões que emergem do cotidiano e pela relação com as crianças.
Demonstrando uma postura de aprendizagem contínua, o musicalizador afirma: E eu ainda
não aprendi (entre risos), tô aprendendo com o processo (Carlos. Conversa transcrita.
05/03/2014).
Perguntado sobre como musicaliza hoje, o musicalizador tem dificuldades em
responder, fala sobre a preocupação em ensinar os parâmetros sonoros e em seguir as
recomendações e planejamentos fornecidos pela coordenação do programa de educação
musical no qual trabalha. Insistindo, pergunto quais são seus objetivos, para além das
questões de conteúdos e capacidades que ele pretende desenvolver com as crianças, qual a
sua abordagem em classe. Recebendo as mesmas respostas, pergunto, diretamente, quais
funções ele estabelece para a disciplina música na escola, consequentemente, para quê está
em sala de aula lecionando. Finalmente a resposta, entremeada a muitas pausas:

é uma função pedagógica no intuito de estimular as crianças a aprender valores


como respeito, educação, bom comportamento, participação e, enfim, saber ceder,
saber a hora de participar, de só ouvir. Acho que isso tá invariavelmente ligado a
qualquer prática de ensino, inda mais numa turma com crianças, nessa fase de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 497


formação da pessoa. Sim, eu diria que sim, que essa atividade tá presente acho que
em qualquer área. (Carlos. Conversa transcrita. 05/03/2014)

Após toda a montagem deste quadro, pergunto a Carlos se ele é capaz de estabelecer
um paralelo, de explicitar as possíveis relações entre sua história de vida e sua forma de
exercer a docência. Respondendo positivamente, as relações que tece são de fundo teórico,
sobre o que aprendeu em termos musicais e os reflexos da aprendizagem das habilidades/
competências que enumera nos conteúdos que privilegia.
De forma provocativa, trago uma fala do educador enunciada do início da conversa,
na qual ele afirmava que seus estudos iniciais no instrumento aliavam teoria à prática, mas
que também era possível levar às suas aulas músicas que eram de seu interesse tocar com o
professor. Então, pergunto se essa postura de dar espaço em classe, de se colocar de forma
aberta para que as crianças tragam músicas de seus próprios universos musicais para as
aulas.
A resposta: É... (pausa) deveria, né?. A partir daí, o professor fala que aproveita
facilidades detidas por determinados alunos têm e lembra um episódio no qual deu espaço
para que dois de seus alunos cantassem para a turma um funk composto pela própria dupla.
Com o educador afirmando o embarque imediato da turma na ocasião, pergunto se ele já se
preocupou em conhecer um pouco mais do cotidiano musical das crianças com as quais
trabalha. Apesar de dizer se colocar aberto a situações como essa, Carlos confessa nunca ter
emprestado sua escuta às demandas de seus alunos, mesmo com a dificuldade que vinha
enfrentando na relação com os mesmos.
Assim, o professor admite a possibilidade e o desejo de se abrir a uma escuta mais
sensível, de se deixar afetar mais de viver a experiência como aquela proposta por Larrosa
(2004) e por Domingo e Ferré (2010).

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um


gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço. (LARROSA, 2004, p. 122. Grifos meus)

Encerramento em aberto: as narrativas de histórias de vida como pressupostos para uma


possibilidade outra de formação

Levando em conta as afetações e movimentos provocados tanto em mim como em


Carlos, as narrativas de histórias de vida, ainda que no recorte apresentado neste artigo
sobre os processos de musicalização vividos, puderam mostrar seu imenso potencial
formativo.

(…) é possível afirmar que a narrativa é uma atividade discursiva por meio da qual
(e na qual) se dá a conjunção de múltiplos processos – a construção de si nas
narrativas, a emergência das subjetividades, a constituição de um posicionamento
identitário em uma perspectiva alteritária. (PRADO, 2011, p. 137)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 498


Além da dimensão (auto)(trans)formativa que possuem, tais narrativas detêm a
potencialidade de transformar a prática de quem narra (e também de quem escuta a
narrativa). Isto porque o conhecimento de si proporcionado pelas narrativas propiciam a
construção de novos olhares e problematizações incidentes sobre as práticas em sala de
aula, recriando-se, então, conhecimentos/ saberes/ teorias/ práticas constante e
permanentemente. Ademais, a abordagem das histórias de vida podem vir a contribuir para
a superação/ não repetição dos modelos de musicalização vividos pelos professores, fazendo
com que os mesmos saiam dos caminhos conhecidos e assumam os riscos do novo, da
construção/ reconstrução/ desconstrução de saberes e fazeres.
É em consonância com a perspectiva de formação permanente supracitada que este
artigo compactua, uma proposta na qual a prática docente é o ponto de partida e a
finalidade da teoria, bem como local e objeto de questionamento – maior pilar desta
proposta de formação – mediado pela teoria. Trata-se da formação de professores
pesquisadores da própria prática (ESTEBAN; ZACCUR, 2002a; GARCIA, 2001):

Desta perspectiva, a prática se transforma em práxis, ou seja, síntese teoria-prática.


O movimento permanente de questionamento e aprofundamento visa a ajudar o/a
professor/a a entender melhor e redimensionar seu cotidiano. Parte-se da prática
para voltar a ela. Porém, na volta, não se encontra a mesma prática inicial, há uma
nova qualidade na medida em que o movimento ação-reflexão-ação gera
transformações, que permitem avançar em direção à melhor compreensão do
fenômeno, relativizando o imediatamente perceptível. (ESTEBAN; ZACCUR, 2002b,
p. 22)

Assim, produz-se uma nova racionalidade, da mesma forma que a proposta de


formação continuada oferecida por Carvalho (2011), e pedida por um dos ex-alunos da
Licenciatura em Música da UNIRIO, “uma formação com os professores, e não dos
professores” (RANGEL apud CARVALHO, 2011, p. 75). Trata-se de uma formação continuada
baseada em redes de conversações e de trabalho afetivo, ou seja, baseada em narrativas,
onde as diferentes lógicas introduzem “experimentações e exercícios de solidaridade cada
vez mais vastos” (CARVALHO, 2011, p. 67). Aparece, então, novamente, a conversa como
protagonista de uma formação de professores repleta de sentidos, seja ela continuada ou
permanente.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 500


Da formação da NATA@: um estudo sobre os modos de produção de sonhos na escola

Reinaldo Ramos da Silva


PPGE/UFF
reinaldoramos@id.uff.br

Este projeto concentra-se em analisar a experiência escolar dos alunos do Colégio Estadual Comendador
Valentim dos Santos Diniz, no município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Criado no ano
de 2009, o colégio abriga o Núcleo Avançado de Educação em Tecnologia de Alimentos e Gestão de
Cooperativismo (NATA). Trata-se da primeira escola de tecnologia de alimentos do Estado do Rio, uma parceria
entre as Secretarias de Educação e de Agricultura (SEEDUC e SEAPPA), com o Grupo Pão de Açúcar e a
Cooperativa Central dos Produtores de Leite (CCPL). Equipado com lousas digitais, usinas de laticínios e
panificação, laboratórios de ciências e de informática além de possuir uma proposta curricular inovadora
apoiada na integração interdisciplinar, o NATA acolhe egressos da rede escolar de São Gonçalo e municípios
próximos, cuja admissão se dá por meio de seleção pública. Foi observando casos recorrentes de alunos
detentores de traços de distinção intelectual bastante evidentes que tomou forma a questão central deste
projeto, a saber, como o NATA se configura enquanto experiência de vida, enfatizando a questão da formação
dos capitais social e cultural destes jovens dentro da perspectiva da constituição de redes (sociais e
sociotécnicas) e da construção de suas histórias pessoais recorrendo ao uso da metodologia da análise da
história de vida para trançar os panoramas individuais em contraponto à cultura institucional que toma forma
no espaço da escola. Trata-se de uma importante reserva de trajetórias individuais e de um espaço produtor de
encontros e expectativas que guarda um valioso material de pesquisa sobre o chamado "sucesso escolar em
meios populares", permitindo aduzir elementos para aprimorar nossa compreensão da vivência do jovem de
periferia imerso em escolas públicas de excelência, uma vez que estamos diante de territórios com escassa
oferta de bens culturais e notadamente carentes em serviços elementares.
Palavras-chave: Percursos biográficos; Juventude e educação; Cidade e educação.

Motivação, justificativa e apresentação do tema:

A prática docente - via de regra submetida aos ditames do fordismo da produção


em série - leva a escola a insistir na tarefa de compartimentar por gavetas em armários
de ferro enquanto o mundo navega por janelas virtuais há um considerável tempo. A
escola vive uma grave contradição performativa entre o que ela ensina e o modo como
ela mesma se institucionaliza. Para Adorno (1993), a inteligência é uma categoria moral,
pois o indivíduo sensato escolhe agir eticamente por saber que a transgressão
egocêntrica é portadora do princípio de sua própria degradação, pois a totalidade é a
ressonância da parte e vice-versa (princípio mereológico):

“A inteligência é uma categoria moral. A separação entre sentimento e


entendimento, que torna possível absolver e beatificar os imbecis, hipostasia a
divisão do homem em diferentes funções que se realizou ao longo da história.
(... ) Ao contrário, o que a filosofia deveria buscar na oposição entre
sentimento e entendimento é a unidade de ambos: a unidade que é
justamente uma unidade moral. A inteligência, enquanto poder de julgar,
contrapõe-se, na efetuação do juízo, àquilo que em cada caso é dado de
antemão ao mesmo tempo que ela o expressa”. (ADORNO, 1993).

O homem reduzido à dimensão da reprodutibilidade técnica é objeto do processo


de massificação cultural que concorre para a “colonização do mundo da vida”

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 501


(HABERMAS, 1998). Marcuse (1979) discute o domínio da sociedade contemporânea que
privilegia um conhecimento técnico, enfatizando que “a maneira pela qual a sociedade
organiza a vida de seus membros compreende uma escolha inicial entre alternativas
históricas que são determinadas pelo nível de cultura material e intelectual herdado. A
própria escolha resulta do jogo de interesses dominantes”. É portanto desta reavaliação
do projeto intrumentalizador instituído pela Ratio moderna que decorre a formulação
de todas as pedagogias progressistas que enfatizam a aquisição de habilidades que
desenvolvam a criatividade e a solidariedade como categorias da inteligência. A chamada
“revolução digital” só veio corroborar esta perspectiva. A rejeição do binômio clássico
“mestre-aprendiz” encaminhando os debates para uma reformulação do princípio da
autoridade é fundamental para a definição de novas propostas pedagógicas centradas na
promoção do amadurecimento intelectual dos estudantes, tendo o princípio da
autodeterminação da vontade como principal divisa dos projetos educacionais
emergentes. Eis aí importância de pensar em um projeto de pesquisa que passasse
primeiramente pela investigação das condições de possibilidade para a implantação de
novos modelos de socialização dos saberes.
No campo propositivo, alguns querem perceber a revolução digital e a
emergência das novas tecnologias como uma panaceia educacional, incorrendo
frequentemente em políticas públicas que tomam o aparato tecnológico como fins em si
mesmos e não como meios para a facilitação do processo de ampliação das
possibilidades de conhecimento. Mas para além das políticas públicas e dos espaços
formais de educação, a revolução digital altera radicalmente o modo pelo o qual nossa
sociedade se relaciona com a produção, a armazenagem e o com o fluxo do
conhecimento – conforme já nos alertava Lyotard no final dos anos 70 no livro “A
condição Pós-moderna”. A escola encontra-se na vanguarda desta revolução, logo após a
academia – por ser responsável por transmitir para as gerações jovens em caráter
introdutório o legado cientifico e cultural erigido pela nossa civilização.
A escola é um espaço de contradições irredutíveis e é assolada por uma
irracionalidade estrutural. As pesquisas em Sociologia da ação de François Dubet, que
fundamenta seu trabalho a partir da experiência dos atores, apontam para a brutalidade
do sistema capitalista nas sociedades atuais, atravessadas pela contradição de serem em
um só tempo sociedades democráticas (que afirmam a igualdade entre os cidadãos) e
sociedades de consumo (que incentivam a competição e que hierarquizam a competência
e os méritos) (DUBET, 2003). O aluno não funciona como um processador de informações,
mas apenas um acumulador destas. Já os mestres, por seu turno, ao persistirem diante
de seus pupilos como desterrados de seus territórios, reis destronados e deslegitimados
do saber professoral, nostálgicos da era do monolitismo catedrático contribuem para
perpetuar uma condição escolar tradicionalista, segregadora e defasada, “desnorteada” e
perplexa com a incompreensão da necessidade de construção de uma autoridade que
tradicionalmente se supôs naturalmente afirmável. Se o acesso ao conhecimento na era
da informação se dá mediante a gradual ampliação do acesso aos meios eletrônicos, a
principal quebra de paradigma da era digital é justamente a democratização do saber. A
escola ressoa esta nova condição na medida em que ocupa posição de centralidade na
subjetivação de princípios de cidadania e atuação democrática.
O princípio que Pierre Lévy denomina “inteligência coletiva” não seria senão
uma ampliação do conceito proposto por Dewey ao pensar em um projeto educacional
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 502
em que o mestre despoja-se de sua figura centralizadora, acatando o papel de gestor do
conhecimento em lugar de detentor deste? Aliás, a conjugação que o filósofo francês
estabelece entre os ideais da cooperação e da competição em coexistência equilibrada
sintetiza uma alternativa profundamente inteligente para a dialética econômica que produz
as crises estruturais do sistema capitalista a oscilar entre períodos de maior ou menor
liberalização proporcionais à também maior ou menor ampliação da
intervenção/regulamentação estatal. Educar para um saber coletivo e aberto, comungado
no ciberespaço, sem perder de vista o estímulo à competição saudável que rege o
princípio da singularização dos indivíduos, mas que tem em seu horizonte o
alargamento das possibilidades humanas baseado em um compromisso com a ampliação
da liberdade, da democracia e, sobretudo, do bem comum.

Objeto empírico:

Pretendemos promover com este projeto um estudo de caso que deverá


concentrar-se sobre a experiência escolar dos alunos do Colégio Estadual Comendador
Valentim dos Santos Diniz, no município de São Gonçalo. O outro vetor empírico deste
trabalho será o estudo das principais redes sociotécnicas utilizadas pelos alunos como
ferramentas complementares (ou mesmo principais) no processo de ampliação de seu
capital cultural.
Criado no ano de 2009, o colégio abriga o Núcleo Avançado de Educação em
Tecnologia de Alimentos e Gestão de Cooperativismo (NATA). Trata-se da primeira
escola de tecnologia de alimentos do Estado do Rio, uma parceria entre as Secretarias de
Educação e de Agricultura (SEEDUC e SEAPPA), com o Grupo Pão de Açúcar e a
Cooperativa Central dos Produtores de Leite (CCPL). O colégio é equipado com lousas
digitais, usinas de laticínios e panificação, laboratórios de ciências e de informática
além de possuir uma proposta curricular inovadora, calcada na interdisciplinaridade e na
integração dos conteúdos. Foi observando casos recorrentes de alunos detentores de
traços de distinção cultural bastante evidenciados nesta unidade escolar que tomou
forma a questão central deste projeto. Tratam-se de alunos egressos da rede pública
municipal de São Gonçalo102, em sua maioria. O ingresso no colégio dá-se por meio de
processo seletivo, isto é, em que pese o aspecto excludente deste modelo pautado no
mérito e na seleção, o capital humano que passa a integrar os bancos escolares de uma
escola com este perfil representa um vasto e riquíssimo material de pesquisa sobre
sucesso escolar em camadas populares, podendo ensejar a partir de um minucioso
estudo de caso elementos para a elaboração de estudos e políticas públicas para a
educação, uma vez que estamos diante de um município emblemático em termos de
desigualdade social.

102
A participação dos 20% mais pobres da população de São Gonçalo na renda passou de 4,1%, em 1991,
para 3,3%, em 2000, aumentando ainda mais os níveis de desigualdade. Em 2000, a participação dos 20%
mais ricos era de 53,0%, ou 16 vezes superior à dos 20% mais pobres. No índice de desenvolvimento
da educação básica, IDEB, Este município está na 3.757.ª posição, entre os 5.564 do Brasil, quando
avaliados os alunos da 4.ª série , e na 4.324.ª, no caso dos alunos da 8.ª série. Fonte: Portal ODM
(http://www.portalodm.com.br).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 503


Já o estudo das redes sociotécnicas tem se mostrado uma ferramenta fundamental
na compreensão da dinâmica das relações sociais em nosso tempo. A tarefa de
compreender suas especificidades e, principalmente, seu alcance na ampliação do
campo semântico da ação democrática através da educação pode se configurar em
valioso objeto de estudo e análise. É notório que a expansão da presença das novas
tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) tem deflagrado mudanças profundas e
contínuas nos modos de participação política na sociedade civil. Segundo Maia (2002), as
redes sociotécnicas têm efeitos sobre a formação de uma esfera pública virtual e no
estabelecimento de um espaço de interação que amplia o poder de ação social. Formas
alternativas de governança têm emergido neste novo cenário mediante o movimento dos
diversos atores sociais determinando uma revisão dos conceitos de territorialidade,
políticas públicas e democracia a partir da apropriação do conceito de rede em suas
dimensões social e tecnológica. A própria clivagem do termo “sociotécnico” quando
aplicado ao conceito de redes aponta para a ambivalência de seu sentido: a “tecnificação”
da ação social e a socialização da tecnologia – ambivalência que estabelece um processo
de dupla mão que caracteriza seu funcionamento.
Foi Norbert Elias (1994) quem destacou em 1939 o papel das redes de funções nas
relações que se estabelecem entre indivíduo e sociedade. Essa rede de funções pelas quais
as pessoas estão ligadas entre si tem suas leis próprias, e se constituem na rede
autônoma de relações que se estabelecem entre as pessoas e que chamamos de
sociedade. Para Castells (1999), a contemporaneidade pode ser definida pelo estar em
rede: “Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da
lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos
produtivos e de experiência, poder e cultura”. Egler (2007) em sua obra “Ciberpolis –
redes no governo da cidade”, explora a constituição das redes sociotécnicas como um
importante fenômeno contemporâneo de ação social, realizando um amplo estudo
analítico que abre caminho para o estabelecimento de um novo objeto empírico do
conhecimento e de novas metodologias de análise afeitas às suas especificidades.
Segundo Lévy (1999) a interatividade é um modelo comunicacional que implica numa
relação de reciprocidade, a comunicação se faz de “todos para todos” e torna-se, portanto,
uma das primeiras marcas dessa cultura. Nestes novos arranjos, o elemento
democrático reforça a tese do comunitarismo como agente potencializador para o
desenvolvimento individual das inteligências em processo de reciprocidade. Segundo
Chioca & Martins (2011), “ao se depararem com situações de diálogo, as pessoas
trocam, além de suas convicções, seu argumentos, as suas razões relativas às suas
convicções”.
Esta condição favorece a possibilidade da autocorreção e autoaprimoramento
por via do diálogo, tornado possível a partir de uma horizontalização das relações de
poder. O ser social, o próprio zoon politikon aristotélico atualizado em um corpus pós-
moderno. O advento das redes sociotécnicas permite possibilidades de participação política
que ainda não haviam sido pensadas, cujo objetivo é inviabilizar a imposição da relação

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 504


polarizadora entre mercados e Estados determinando demarcações monológicas de
pensamento e análise sociológica (SANTOS, 2011). Essa é a questão que também
nos propomos a investigar e analisar: as possibilidades dadas pela tecnologia para
reinventar as políticas educacionais no contexto da sociedade da informação.
Importa observar de que forma as tecnologias possibilitam a redefinição das
relações entre Estado e atores sociais, no que se refere à formulação e
implementação de processos de democratização da educação nas políticas públicas,
por compreender que os paradigmas da contemporaneidade são atravessados
diametralmente pela multiplicidade, pela interatividade, pela diversidade, pela
descentralização, pela solidariedade e, por fim, pelas redes (CASTELLS, 1999).

Objeto teórico (interlocuções no campo)

O conceito-chave deste estudo deverá ser o de capital cultural na lógica


de Bourdieu e rediscutido por Lahire. Setton (2011), nos fala sobre a abordagem
em Sociologia das disposições sociais e culturais segundo Lahire, nos chamando
atenção para o fato de que não basta a um aluno estar cercado de objetos ou
circular em ambientes estimulantes do ponto de vista da aquisição de saberes. É
preciso estar atento para as modalidades efetivas de transmissão destas disposições
culturais. Bourdieu (1997), assim define o conceito de capital cultural:

“Conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse


de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de
interconhecimento e de interreconhecimento ou, em outros termos, à
vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente
são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas
pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são
unidos por ligações permanentes e úteis”. (BOURDIEU, 1997).

Outro importante referencial teórico para nossa pesquisa é o da


Inteligência Coletiva. Segundo este princípio, as inteligências individuais quando
somadas e compartilhadas, potencializadas com o surgimento das novas
tecnologias de comunicação, permitem o advento de uma nova categoria de
inteligência organizada sobre a ideia de comunitarismo. Uma de nossas hipóteses é
de que a revolução digital fragiliza a centralidade do processo hereditário de
transmissão de capital cultural, ampliando nas comunidades virtuais (redes
sociotécnicas) as possibilidades de construção de identidades a partir do fluxo
relacional todos-para-todos e do conceito de inteligência coletiva. Desta feita, a
inclusão digital poderia representar em princípio uma possibilidade subversiva,
pois incide diretamente na lógica de reprodução da desigualdade calcada na exclusão
escolar meritocrática.
De acordo com Lévy (1993),"a inteligência coletiva possibilita a partilha
da memória, da percepção, da imaginação. Isso resulta na aprendizagem coletiva,
troca de conhecimentos”. Ainda segundo ele, “há uma espécie de ecossistema das
ideias humanas, na qual as informações são trocadas e selecionadas por cada
indivíduo”. Recuero (2001), no artigo “Comunidades virtuais - uma abordagem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 505


teórica”, apresenta um quadro geral da evolução do conceito de comunidade,
a partir da definição
Weberiana, baseado na orientação da ação social, em que ele, a relação é o
exemplo mais básico de comunidade.

"Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a


orientação da ação social, na média ou no tipo ideal - baseia-se em um
sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou
tradicionais dos participantes". (WEBER, 1987).

Ainda no mesmo artigo, são citados os conceitos de comunidade de


Palacios (1998) e Beamish. Para o primeiro, “o sentimento de pertencimento, ou
"pertença" - noção de que o indivíduo é parte do todo, coopera para uma
finalidade comum com os demais membros (caráter corporativo, sentimento de
comunidade e projeto comum); e a territorialidade, o locus da comunidade; a
permanência, seriam as duas condições essenciais para o estabelecimento das
relações sociais que desenham o conceito de comunidade. Já para Beamish,
(1995), o significado de comunidade giraria em torno de dois sentidos mais comuns:
O primeiro determinado pelo lugar físico, geográfico, (cidade, vizinhança, bairro).
Desta feita, o espaço compartilhado e seus desdobramentos culturais contingentes
ensejam relações de pertencimento entre os indivíduos, dada a proximidade física,
o que também determina as convenções e hábitos comuns. O segundo significado é
relacionado ao grupo social, ao compartilhamento de interesses sociais,
profissionais, religiosos, etc. Neste caso há uma separação entre dois âmbitos: o
material e o simbólico.
"Comunidade Virtual" seria a nomenclatura utilizada para agrupamentos
humanos organizados no ciberespaço, com comunicação mediada pelas redes de
computadores (CMC) (PALACIOS, 1998). A ação dos meios de comunicação, ao
influenciar a percepção das relações espaço-temporais também incide sobre o
conceito de comunidade, como propõe McLuhan no conceito de “aldeia global”. A
Comunicação Mediada por Computador não está excluída deste conjunto de agentes,
representando na atualidade talvez o principal meio de difusão de conhecimento
e criação de novos espaços comunitários não físicos.

Objetivos

Compreender de que maneira se processam casos de sucesso escolar nos


meios populares diante da limitação no acesso aos meios de produção e difusão
de bensculturais é nossa questão norteadora. Esta percepção nos possibilitaria pensar
a exclusão e os processos produtores de desigualdade a partir de um olhar
propositivo, enfatizando os fatores positivos mediante o acúmulo significativo de
capital cultural, com especial interesse pela influência das novas tecnologias e das
redes sociotécnicas nestes processos. Segundo Bourdieu (1997),

“A acumulação de capital cultural desde a mais tenra infância –


pressuposto de uma apropriação rápida e sem esforço de todo tipo de
capacidades úteis – só ocorre sem demora ou perda de tempo,
naquelas famílias possuidoras de um capital cultural tão sólido que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 506
fazem com que todo o período de socialização seja, ao mesmo tempo,
acumulação. Por conseqüência, a transmissão do capital cultural é,
sem dúvida, a mais dissimulada forma de transmissão hereditária de
capital”.

Nossa hipótese é a de que se o capital tecnológico enseja acumulo de


capital cultural, então a inclusão digital seria fator importante para a facilitação
deste processo. Do mesmo modo a exclusão digital favorece o não acúmulo de
capital tecnológico e, por conseguinte, de capital cultural. A utilização das novas
tecnologias e das redes sociotécnicas poderiam alterar significativamente a
centralidade da questão hereditária na transmissão do capital cultural, abrindo
novas possibilidades para o estudo dos processos de promoção da desigualdade
escolar a partir da reprodução da ideologia de dominação mediada pela escola no
exercício do poder simbólico.
Nosso objetivo central é a partir deste estudo lançar luz sobre os processos
que ensejam o aparecimento de casos de sucesso escolar em meios populares
buscando agregar evidências empíricas para uma melhor compreensão das
possibilidades de utilização das redes sociotécnicas como ferramentas de
ampliação do horizonte sociocultural dos educandos e de sua inserção plena no
mundo do trabalho e da vida.

Perguntas gerais específicas

• Como a inclusão digital atua na ampliação do capital cultural em meios populares?

• Uma vez aferida esta ampliação, de que modo ela contribui no sucesso escolar
dos alunos com origem nos meios populares?
• Como o ambiente escolar pode propiciar um ambiente não excludente de
modo a ampliar as potencialidades de acúmulo de capital cultural dos alunos sem
expandir as desigualdades?

Todas as perguntas específicas deverão ser oriundas das análises das causas e
processos dos fatores derivados do cruzamento de dados em cima das seguintes
variáveis:

• Sucesso escolar/insucesso escolar


• Inclusão/exclusão digital
• Grau de escolarização da família (baixo, médio e elevado).

Orientações metodológicas

É considerado para o nosso campo a utilização da metodologia de relatos de


vida, com possível ênfase na abordagem definida por Daniel Bertaux, e sob o
referencial teórico dos estudos em Sociologia do Indivíduo, a partir dos trabalhos de
Danilo Martucelli, em especial, pretendendo partir da compreensão dos processos de
socialização e autoanálise individual para estabelecer considerações acerca do
funcionamento das estruturas e instituições sociais. Utilizaremos também
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 507
referenciais teóricos desenvolvidos por Pierre Bourdieu e B ernard Lahire sobre o
sucesso escolar em meios populares. Trabalharemos com as categorias definidas por
este último para estudar os processos de transmissão e apropriação de capital
cultural, a saber, a) as formas de autoridade familiar; b) a ordem moral doméstica;
c) as formas familiares de investimento pedagógico; d) as condições e disposições
econômicas; e por último, e) as formas familiares de cultura escrita (SETTON, 2011).
Outro referencial importante neste estudo virá da contribuição de Egler, que
estudou a potencialidade das redes sociotécnicas na sua vertente sociopolítica à luz
do referencial teórico de Habermas e Arendt. Na leitura de Habermas, 1998, “o
processo de mudança nas estruturas do poder está no domínio da vida,
transmitindo valores e conhecimentos culturais e permitindo a integração dos
grupos sociais”. Nesse sentido, a auto-organização reforça a capacidade coletiva de
agir porque permite a saída do individual para o coletivo. São retiradas normas,
burocracias e centralidades para dar lugar a formas de esferas públicas autônomas
que se auto-regulam frente à democracia (HABERMAS, 1998). Ao definir as redes
como “um conjunto de nós interconectados” e “nó”, como “o ponto no qual uma
curva se entrecorta”, Castells (1999), se aproxima do campo conceitual proposto
em Arendt, ao definir que o poder nasce das relações transcorridas no espaço
público, no processo comunicativo, onde se entrecruzam os fios invisíveis de
comunicação (ARENDT, 2005). Segundo Latour (2004), “uma rede social não é o que
está representado no texto, mas quais leituras do texto podemos tirar do
revezamento dos atores como mediadores destas ações.” Desse modo, diante dos
avanços tecnológicos, o mais importante aspecto a ser levado em consideração é
que devemos compreender o aspecto humano das redes em toda sua
complexidade, isto é, redes não se reduzem a sistemas, são pessoas que buscam o
diálogo, a ação crítica e o compartilhamento de saberes.

Considerações finais

Dado o caráter recente desta pesquisa, iniciada em Setembro de 2013, nos


encontramos um estágio de apropriação de aportes metodológicos e definição de
abordagens empíricas, nos sendo possível por ora somente tecer algumas
considerações acerca do modelo de gestão adotado na escolar. É preciso quem é o o
jovem do ensino médio do NATA. Antes de tudo é preciso ouvir os jovens, conhecer
suas demandas, dar espaço para que eles possam expressar seus desejos, seus sonhos,
suas inquietações. Muitos ingressam na escola mal sabendo do que se tratam os
cursos técnicos que irão fazer. As instalações amplas, as oportunidades de estágio, de
participação em eventos, a realização contínua de trabalhos integrados permite a estes
alunos uma imersão interessante em processos de autodescoberta que já são naturais
à idade, mas que ganham força em escolas como as contempladas neste modelo, que
a meu ver tem seu ponto alto na criação de múltiplos espaços de encontro. São
escolas da diversidade por excelência, consequência de dois processos: o processo
seletivo de alunos que arregimenta e congrega moças e rapazes de diversas
localidades periféricas e a interface externa com profissionais experientes em diversas
áreas, tanto técnica quanto docente. São profissionais com titulação acadêmica e
currículo internacional. Se não responde aos anseios, seguramente têm o potencial de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 508


auxiliá-los no processo de descoberta de novos anseios, para fazer deles caminhos,
sonhos, começos, recomeços, em suma, produzir vivências capazes de ampliar a
experiência de mundo para muito além daquilo que pretende objetivamente propor a
escola em seu currículo e fazer desta passagem um ponto de inflexão fundamental
para o esboço de seu futuro.A escola integrada é uma experiência é bem sucedida mas
conta com vantagens que ferem o princípio da isonomia do serviço público e procuram
implantar uma lógica de "quase-mercado". Ao oferecer benefícios em forma de
gratificações para os professores destas unidades o modelo consegue recrutar
profissionais mais bem qualificados dentro da rede em processos internos de seleção.
Universalizar o modelo de educação integral do estado até 2021, ou seja, em apenas 7
anos, não soa convincente. Se hoje em 2014 ele atende 1% da rede com 24 escolas
(Segundo a secretaria), isso significa fazer em sete anos uma revolução de fazer inveja
aos tigres asiáticos. A julgar pelas mais de 50 escolas fechadas no período em que o
atual secretário está à frente da SEEDUC-RJ, a estratégia para universalizar o modelo
parece que será o de encolher a rede para tornar viável sua implantação total. A meu
ver, a universalização é impossível nos marcos da política atual. A escolha dos locais
para instalação destas escolas também causa estranheza pois parecem não obedecer a
uma lógica muito clara. A região da Tijuca por exemplo conta com duas escolas neste
sistema.
O NATA, uma parceria da SEEDUC com a secretaria de Agricultura e Pecuária
implantou um pólo de formação técnica em um município com vocação para outras
atividades econômicas. Como consequência, os alunos não ingressam no mercado
proposto pela formação oferecida na escola e tornam-se clientela das universidades
públicas do estado - ou, na hipótese ruim, aceitam empregos que exigem uma
formação muito abaixo daquelas que eles possuem (no NATA há casos de alunos com
estágio técnico na França trabalhando como balconistas de lojas de conveniência).
Concluo afirmando que a universalização talvez não seja viável, mas a multiplicação
estratégica talvez seja interessante do ponto de vista da política pública, uma vez que
a consolidação destas escolas não aponta para um caminho tecnicista como nos
moldes do ensino técnico preconizado no período militar. Pelo contrário, é um modelo
que usualmente mira onde vê e acerta onde não vê. Desenvolver parcerias locais
segundo as vocações econômicas das regiões do estado e implantar múltiplos núcleos
pode parecer uma política interessante. Mas seu sentido será totalmente esvaziado se
não vier acompanhado de uma política séria de valorização da carreira docente como
um todo, com incentivos justos à qualificação dos professores e com boa vontade para
a concessão de licenças e bolsas de estudo para a complementação da formação, além
do assentamento dos docentes em somente uma escola, onde seja possível uma
gestão participativa, democrática. Uma proposta interessante seria a equiparação do
plano de cargos e salários com os profissionais da FAETEC, escolas técnicas
subordinadas à secretaria de Ciência e Tecnologia que funcionam sem as PPP's das
escolas integradas mas que também apresentam números destacados quanto ao
ingresso de ex-alunos em universidades públicas sem prejuízo para o ingresso de ex-
alunos no mercado profissional para técnicos. Seria válido observar a performance
deste dois modelos similares e traçar pontos proximais para compreender de que
forma as escolas integradas poderiam atender melhor a população sem tornarem-se
uma experiência segregadora e elitista. Um dado curioso sobre o modelo da FAETEC e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 509


o das escolas integradas é que a primeira possui um caráter de uso político muito mais
evidenciado, uma rede capilarizada pelo estado todo e instrumentalizada por
lideranças regionais, dificultando o ingresso de profissionais concursados - uma vez
que a reserva de vagas para contratados sob indicação possui cota elevada de modo a
atender aos interesses de seus "patronos" locais, enquanto a presença do capital
privado retrai esse tipo de aparelhamento na escolas de PPP, por estarem submetidas
a uma lógica gerencial diversa. O ingresso dos alunos também ocorre por concurso
público, colaborando na atração de alunos já previamente assentados em um percurso
de relativo sucesso escolar - mesmo que contando com uma cota elevada para
egressos das redes municipais. Some-se a isso o aporte de generosos recursos privados
e públicos, temos um conjunto de fatores que fazem com que estes espaços sejam
oásis de infraestrutura em função primordialmente da atenção política que lhes é
dispensada por parte do governo.
Para a questão da universalização do modelo, fica outra questão: se o sucesso
da fórmula depende da seleção de professores que passam a receber gratificações e a
ter dedicação exclusiva, de que modo sustentar a "qualidade" se o modelo vai se
universalizar e o estado não investe na qualificação de seus profissionais? Os
incentivos à qualificação por mestrado e doutorado dentro da rede são irrisórios. Esse
modelo só é possível porque mimetiza a lógica liberal: o "mérito" separa o 'mais aptos'
dos 'menos aptos'. Sendo assim, dentro da SEEDUC/RJ persistirão os docentes
desmotivados, as escolas sucateadas, as direções com práticas administrativas
conservadoras, todos a perdurar como adorno da decadência para fazer luzir com mais
brilho as pequenas joias da coroa adornadas com seus enfeites de “eficiência”,
“inovação” e “competitividade” nos marcos da nova linguagem da meritocracia liberal.
A não ser que o estado abandone sua política de gestão amparada na nebulosa GIDE
(Gestão Integrada da Escola), um roteiro de aferição de resultados que pauta
gratificações meritocráticas cujo resultado tem sido o de aumentar ainda mais a
desmotivação e o sentimento de divisão interna entre a categoria docente. A não ser
que o estado comece a adotar políticas realmente efetivas para conter a drenagem
contínua de bons profissionais. A política de "desincentivo" à qualificação docente
burocratiza ao limite da desistência todo o esforço de afastamento para estudos por
parte dos professores e traz com isso uma tendência à ampliação da desigualdade
dentro da rede pública estadual. O ensino integrado é fruto de uma decisão política
muito clara: priorizar a qualidade total em um número restrito de unidades escolares
para, unindo o útil ao agradável, atender aos interesses das grandes empresas
parceiras para qualificação de mão-de-obra especializada, e, vender à população um
"projeto" na área de educação que possa auferir vantagens eleitorais dada a sua
comprovada eficiência - elidindo, obviamente, a situação precária dos outros "99%" da
rede pública. Quero também lembrar uma das primeiras escolas do sistema de PPP e
que a matéria não cita: o Colégio Estadual Erich Walter Heine, em Santa Cruz ("a
primeira escola sustentável da américa latina"), que possui parceria com a Companhia
Siderúrgica do Atlântico e tem como mote a sustentabilidade. A empresa foi
denunciada pelo ministério público estadual por diversos crimes ambientais,
repercutidos no exterior e tratados com conveniente complacência pelas autoridades
locais. Fica o registro do quão grave deva ser para um educando vivenciar um processo
pedagógico dentro de uma contradição performativa tão explicitada e o quão

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 510


imprevisíveis do ponto de vista ético podem ser as consequências desta contradição. E
por fim , proponho a seguinte reflexão: se a secretaria de educação é capaz de
estabelecer parcerias com entidades cuja diversidade abrange desde a Fundação
Ayrton Senna, passando por embaixadas, empresas de telecomunicações, ONGs,
condados estadunidenses, oligopólios midiáticos, siderúrgicas causadoras de danos
ambientais, porque afinal ela não consegue abrir uma interlocução saudável com o
sindicato dos professores e com as Universidades Públicas Brasileiras (que tão bem
tem acolhido os alunos egressos destas escolas...)? Será que a "solução" realmente
está tão longe assim?

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 512


A diversão como sentido da escola na vida de futuros professores de matemática

Renan Marcel Barros dos Santos


USP
renan.marcel.santos@gmail.com
Rita de Cassia Gallego
USP
rita-gallego@hotmail.com

Geralmente, os anos iniciais das nossas vidas acontecem dentro da escola, onde se dá um dos primeiros
contatos com o mundo para além da família. Lá aprendemos a nos relacionar, a contar, ler e escrever,
sobretudo falar corretamente nossa língua. A escola e sua educação básica, em tese, possibilita a
ascensão social. No entanto, para que servem as escolas? As escolas são construções e representações
sociais. Entretanto, cada sujeito, em sua experiência, lhe atribui um sentido. A partir de sete estudantes
da graduação em Licenciatura em Matemática do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade
de São Paulo serão apresentados resultados de uma pesquisa em nível de Mestrado que está em
andamento. A pesquisa tem por objetivo responder, parcialmente, a duas perguntas: O que a escola faz
com o sujeito? e O que o sujeito faz com aquilo que a escola lhe fez?. Desse modo, pretende-se
identificar e compreender sentidos da escola em diferentes fases da vida – antes da escola, durante a
escola e após a escola – e suas contribuições para a constituição dos seus projetos pessoais. Considerou-
se a constituição da identidade social do indivíduo a partir de projeto e memória. A coleta dos dados se
deu através de entrevistas narrativas autobiográficas em que os sujeitos produziram histórias de vida.
Nesse caso, a análise dos resultados terá como cerne a diversão como um dos sentidos atribuídos à
escola. Para isso, serão levadas em conta três dimensões da diversão: suspensão da realidade, dilatação
da realidade e antecipação da realidade.
Palavras-chave: Educação Matemática; Memórias de formação; Sentidos da escola.

Introdução

Considerando a existência de uma infinidade de lugares da escola, esse artigo


tem por objetivo discutir um dos sentidos da escola para graduandos de matemática: a
escola como lugar de diversão. A análise será ancorada em sete narrativas
autobiográficas, as quais consistem fontes nucleares da pesquisa em desenvolvimento,
em nível de mestrado, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que
está em sua etapa final, a análise dos resultados. Essa pesquisa é alicerçada em duas
questões: o que a escola faz com o sujeito? e o que o sujeito faz com aquilo que a
escola lhe fez?. Porém, tendo em vista diversos tipos de limitações, foi feito um
recorte para se pensar as questões. Foram escolhidos sete estudantes do curso de
Licenciatura em Matemática da Universidade de São Paulo que estavam em diferentes
momentos da graduação, no início, no meio e no fim, se considerar os semestres
letivos. Esses graduandos produziram histórias de suas vidas, de modo que foi possível
se aproximar do objeto de interesse. A abordagem da pesquisa autobiográfica se deu
pois, segundo Christine Delory-Momberger, é impossível atingir diretamente o vivido e
só se tem acesso a ele através da mediação das histórias. Para a ela, “nós não fazemos
a narrativa de nossa vida porque nós temos uma história; nós temos uma história
porque nós fazemos a narrativa de nossa vida” (2006, p.363). Porém, é preciso
considerar duas impossibilidades narrativas da memória: lembrar tudo e narrar tudo.
Foram feitas considerações acerca da memória e do tempo narrativo, uma vez que a
memória é seletiva, isto é, suas articulações se dão em função do momento (POLLAK,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 513


1992). Os sujeitos ao narrarem suas vidas acessam marcas com interesses e posições,
moral e social, atuais. Logo, voltar ao passado a partir da memória resulta em
encontrar uma das suas possíveis histórias. Vale destacar que
A pesquisa com narrativas (auto)biográficas ajuda-nos a perceber a
singularidade da vida, contudo a forma como a contamos não é linear ou a-
histórica. Cada um de nós, ao longo de nossa existência, esteve/está imerso
em papéis e lugares sociais carregados de significados, e, geralmente, a
totalidade de uma experiência que é manifestada também vem marcada de
sentidos que, por sua vez, potencializam-se como processo de
(auto)formação. (SOUZA & UZÊDA, 2009, p. 256)

Além disso, segundo Nacarato e Passeggi (2012, p.213), assumir narrativas de


formação "como práticas formativas traz para o âmbito das pesquisas em educação a
atribuição de valor de conhecimento à subjetividade".
Essa pesquisa de mestrado que está sendo desenvolvida mostra-se
relevante dado que um levantamento bibliográfico realizado acerca dos sentidos e das
contribuições da escola na vida de sujeitos que cursam a graduação em Matemática
apontou para a existência de algumas lacunas no campo educacional. Esse
levantamento contou com cerca de 2000 trabalhos em plataformas como o Banco de
Teses da CAPES, o SCIELO e o DEDALUS, referente à biblioteca da USP. Dentre os
resultados, apesar de constata a existência de muitos trabalhos concluídos acerca dos
sentidos da escola, considerando o público alvo estudantes da Educação Básica, e de
um grupo bastante influente que realizou trabalhos com professores de matemática
numa perspectiva da pesquisa autobiográfica, como Adair Nacarato e Inês Teixeira. De
todos os trabalhos, cerca de dez se aproximavam efetivamente. Essa aproximação se
deu pelo público alvo serem alunos de licenciatura, que ainda estão em formação.
O curso de Licenciatura em Matemática consta com 50 vagas no período diurno
e 100 vagas no período noturno e o ingresso se dá pela FUVEST, um vestibular
específico para seleção dos candidatos do Ensino Superior. Apesar de se tratar de uma
das melhores universidades não apenas do país, mas da América Latina, o curso não é
tão procurado e existe um alto o número de vagas se comparado a outros cursos. Por
mais que exista uma seleção criteriosa para o ingresso, no geral, o público da
Licenciatura em Matemática do IME é diferenciado. Muitos desses estudantes não são
recém concluintes da Educação Básica, trabalham durante o dia e cursam o Ensino
Superior no período noturno. Dos seis cursos que são oferecidos pelo IME-USP, apenas
dois, dentre eles a Licenciatura em Matemática, é oferecido no período noturno. A
diferença entre o período diurno e o período noturno é o tempo de curso, sendo 4
anos e 5 anos, respectivamente. Para além disso, existem disciplinas obrigatórias de
Matemática, Estatística, Computação e Educação.
Essa ampla formação possibilita a atuação dos licenciandos em diversas áreas.
Durante a graduação, muitos dos alunos estagiam no setor financeiro, sobretudo em
bancos. É um campo bastante atrativo, se comparado com as condições de trabalho da
área da Educação. Em pesquisas anteriores, foi constatado que menos da metade dos
formandos e licenciados em matemática atuam ou já atuaram na área de Educação,
sendo que muitos sequer pisaram dentro da sala de aula e não conhecem essa
experiência. Num viés da pesquisa autobiográfica, através de entrevistas narrativas
autobiográficas, os sete licenciandos escolhidos, colaboradores da pesquisa,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 514
contribuíram com suas histórias de vida para ajudar a responder as duas questões
centrais do trabalho, o que a escola faz com os sujeitos? e o que o sujeito faz com
aquilo que a escola lhe fez? A entrevistas narrativas autobiográficas

compreende três partes centrais. Com uma questão narrativa orientada


autobiograficamente [...] desencadeia-se – como primeira parte – a
narrativa autobiográfica inicial. Na medida em que o objeto da narrativa seja
efetivamente a história de vida do informante e transcorrendo
compreensível de forma que o ouvinte possa segui-la, não deverá ser
interrompida pelo pesquisador-entrevistador. Somente após de uma coda
narrativa [...], o pesquisador-entrevistador começa com suas perguntas. Na
segunda parte central da entrevista, o pesquisador-entrevistador inicia
explorando o potencial narrativo tangencial de fios temáticos narrativos
transversais, que foram cortados na fase inicial em fragmentos nos quais o
estilo narrativo foi resumido, supondo-se não serem de importância; [...] A
terceira parte da entrevista narrativa autobiográfica consiste, por um lado,
no incentivo à descrição abstrata de situações, de percursos e contextos
sistemáticos que se repetem, bem como da respectiva forma de
apresentação do informante; por outro, no estímulo às perguntas teóricas
do tipo “por que?” e suas respostas argumentativas. [...] A entrevista
narrativa autobiográfica produz dados textuais que reproduzem de forma
completa o entrelaçamento dos acontecimentos e a sedimentação da
experiência da história de vida do portador da biografia. (SCHÜTZE, 2011,
p.212)

Depois de produzidas, as entrevistas narrativas autobiográficas foram


transcritas
para que os rascunhos de si se tornem visíveis aos olhos do seu autor, eles
necessitam da mediação de instrumentos semióticos, para tomar corpo e se
objetivar. A vida transformada em texto é passível de interpretações mais
acuradas, pois é sobre o texto que se praticam, sem cessar, novas e
permanentes exegeses. (PASSEGGI, 2010, p.123)

Assim, referente à primeira questão, é possível pensar os diferentes sentidos da


escola na vida desses colaboradores, diferentes momentos, divididos em antes de
entrarem na escola, durante a etapa da educação básica e após a conclusão dessa
modalidade de ensino, e a segunda questão, possibilita pensar como a escola contribui
para a constituição dos projetos pessoais em suas vidas. Logo, aqui será apresentada
umas das perspectivas de análise dessa pesquisa, que é o da diversão como sentido da
escola na vida desses colaboradores. A escola é tida como um lugar onde se
estabelecem diversos tipos de relações, sobretudo relações de aprendizagem e
relações sociais. Essa instituição conta com documentos e parâmetros para nortear o
seu funcionamento, isto é, normas internas e normas externas, como o Projeto Político
Pedagógico e a Lei de Diretrizes e Bases (1996), respectivamente. Se por um lado a
escola dispõe de certa autonomia, por outro lado, ela está estruturada seguindo um
currículo, implícito e oculto, que abrange diversas esferas. No entanto, não se pode
falar de uma escola em que todos compartilhem da mesma percepção, por mais que
se trate do mesmo prédio escolar, período e sujeitos envolvidos nessa relação. Isso
porque cada um, em sua singularidade e trajetória pessoal, incorpora e significa um
fato da sua maneira. A existência de um currículo obrigatório nacional, não garante, e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 515


não deve garantir, uma educação igual para todos, pois suas necessidades, interesses,
competências e habilidades não são iguais, inclusive, muitas vezes são emergentes
dessa diversidade da escola.
A diversidade na escola acontece em muitos âmbitos. A estrutura física da
escola é um dos fatores que contribuem para o seu funcionamento, se pensar sua
localidade e o seu entorno, acessibilidade e condições materiais para o
desenvolvimento do trabalho dos sujeitos que compõe essa relação. Esses sujeitos são
muitos e não devem se limitar a professores e alunos, mas todos os funcionários desse
ambiente, mesmo aqueles que atuam na gestão, como diretores, coordenadores e
assistentes. O espaço escolar também serve como meio para educar, veja o exemplo
que segue. A limpeza de uma sala de aula, desde o chão e paredes à lousa e carteiras,
por si só, não garante o bom andamento de uma aula, mas pode contribuir para isso.
Quem deveria garantir a higiene desse lugar são os próprios sujeitos que nele estão, os
professores e os alunos, porém, para assegurar o asseio, existem os funcionários de
limpeza. Há também questões burocráticas e questões de secretaria que interferem e
influenciam no funcionamento da escola. Os pais dos alunos e seus responsáveis
também compõem a relação escola, ou ainda, a comunidade que cerca envolve a
escola.
Os apontamentos acima contribuem para que a escola não seja considerada
como uma única escola para todos. Ainda nessa perspectiva, as experiências escolares
dos sujeitos da escola também são bastante diferentes, o que não quer dizer que não
exista semelhança. Porém, o objetivo aqui, é dar visibilidade a algumas dessas
diferenças através da ideia de diversão.
A palavra escola, que deriva do grego schole, em sua origem, está associada ao
ócio, ao lazer. A escola existe desde a antiguidade clássica e o tempo e espaço do ócio
era utilizado para a reflexão da vida, era um lugar para poucos. A escola só era
possível, pois existia alguém para garantir outras atividades que não cabiam na escola,
como o trabalho e a política, por exemplo. Em meio a tantos conflitos e disputas de
espaço, será que é possível pensar, em algum nível, a escola na sociedade
contemporânea como a schole grega? Qual é o lugar da escola hoje? Não existe uma
única resposta para tal questão, tampouco é possível esgotar a pergunta, já que cada
sujeito faz sua própria escola, claro que dentro das suas limitações. Retomando o
objeto principal da discussão aqui travada, será discutido o sentido da diversão na
escola.
Se procurada em qualquer dicionário, a palavra diversão tem algumas
concepções, como o de divertimento, ou, a mudança de rumo ou direção.
Frequentemente, apenas o primeiro aspecto é levado em consideração e o papel da
diversão fica pela alegria, brincadeira, distração, entretenimento, festa, lazer,
passatempo, recreação e prazer. Talvez por isso, os anos iniciais na escola venham, de
modo geral, mais acompanhados da diversão do que seus anos posteriores que exigem
um trabalho mais custoso se considerado o nível de exigência intelectual. A seguinte
apresentação do termo é bastante sugestivo para a discussão que seguirá:
A palavra "di-versão" vem do verbo vertere, voltar ou voltar-se; A di-versão
quer dizer em seu sentido primário apartar-se de algo e, portanto, voltar-se
para outra coisa. O correlato da di-versão é a conversão: aparto-me de uma
coisa e me converso ou me volto a outra. Em espanhol há outras palavras

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 516


também interessantes: “entretenimento”; ou “recreio”; nos recreamos em
algo, repristinamos as coisas, lhes damos frescor, as fazemos novas. De
certo modo, a diversão é uma suspensão da vida real, que quase sempre é
fatigante; Às vezes se está simplesmente cansado; outras vezes, e isto é
mais grave, se está cansado da vida; ou sente-se-lhe o peso ou o pesar. A
diversão é então a suspensão desse peso, um descanso ou alívio, e para isso
um desvio: deixo de momento o peso da vida e me volto para outra coisa.
[...]. Esta é uma função essencial da diversão. Tem porém outra mais
positiva: a dilatação da vida. A diversão me enriquece, me leva a outros
lugares, presenças, paisagens, histórias; [...] Uma das dimensões mais
interessantes da diversão é a sua antecipação, que tem relação com sua
frequência. [...] Quando o prazer ou a diversão são imediatos, constantes,
frequentes, esse gozo da antecipação diminuir ou desaparece. (MARIAS,
1989, p.206)

Como foram apresentadas, serão consideradas as concepções da diversão


como suspensão, dilatação e antecipação da vida real. Uma vez conhecendo algumas
facetas da escola em questão, o curso dos colaboradores, também é importante
conhecer um pouco das suas histórias.

Sujeitos da pesquisa

Nascido em 1985, Bruno foi o primeiro colaborador. Nasceu em São Paulo, mas
passou parte da sua infância no Piauí, onde ingressou na Educação Básica. Aos 7 anos
sua família, composta por ele, pelos pais e por um casal de irmãos, voltou para São
Paulo, onde vive até os dias de hoje. Filho de pais humildes, que não tiveram
oportunidade de completar os estudos, sempre estudou em escola pública e, apesar
de não existir grandes incentivos para os estudos por parte dos pais, nunca deixou de
ir à escola. Seu pai acreditava que ele e o irmão seguiriam o mesmo caminho que
seguiu, que seriam ajudantes de pedreiro, não tinha grandes perspectivas para os
filhos. Se por um lado a condição financeira da família de Bruno não favorecia uma boa
qualidade de vida, a escola era o lugar onde podia se destacar. Desde o início da sua
vida escolar era o primeiro da turma se considerar seu rendimento nas disciplinas.
Além do bom desempenho escolar, gostava bastante de ir à escola, pois era um lugar
onde encontrava seus amigos e também por jogar futebol, outra situação de destaque.
Sem quaisquer dificuldades de aprendizagem, tinha preferência pelas disciplinas da
área das exatas. Sempre gostou de números. Seu avô, no Piauí, era professores de
Matemática, fato que pode ter contribuído para isso, segundo Bruno. Conforme ia
ficando mais velho, Bruno enxergava novas possibilidades na escola. Foi lá onde
começou o interesse pelas primeiras meninas, onde se relacionou com as primeiras
namoradas. A sua transição do Ensino Fundamental para o Ensino Médio foi marcada
por grandes dificuldades dentro de casa, pois seus pais estavam se separando e a mãe
não tinha condições de sustentar os três filhos. Nessa época, Bruno começou a fazer
bicos para ajudar na renda de casa e precisou transferir os estudos para o período
noturno. Quando completou 16 anos, Bruno conseguiu um emprego fixo de office boy
numa empresa. Estava tão cansado com a situação, que seu rendimento caiu bastante
e chegou a cogitar a possibilidade de largar os estudos, mas foi impedido por sua mãe.
O último ano escolar foi o mais difícil para Bruno. Ao sair da escola, concomitante ao
trabalho, começou um curso técnico de contabilidade numa escola municipal e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 517


acabando o curso, sentiu bastante falta do ambiente escolar. Foi quando, pela primeira
vez, começou a pensar na possibilidade de entrar na faculdade. Acabou conhecendo a
USP e prestou a FUVEST. Além dessa, também prestou para uma faculdade privada,
mas não sentiu confiança na instituição e optou por não seguir com os estudos lá. Em
2006, fez um curso pré-vestibular e dessa vez entrou no curso de Licenciatura em
Matemática, no período noturno, pois durante o dia trabalhava. Continuava na mesma
empresa, mas o curso técnico lhe garantiu uma promoção. Por causa da sua base
defasada, o primeiro semestre da graduação de Bruno foi marcada por grandes
dificuldades. Ele precisou se dedicar bastante para acompanhar o curso e percebeu
que não seria possível conciliar o trabalho e os estudos, optando por sair do emprego.
Não demorou para Bruno começar a dar aulas particulares de Física e Matemática e
também para conseguir um emprego na área de Educação como plantonista103 de
curso pré-vestibular. Ainda sem completar o Ensino Superior, Bruno conseguiu um
emprego de professor de Matemática numa escola privada bastante conceituada.
Além dessas atividades, Bruno também foi monitor de disciplinas da licenciatura. Foi
na graduação que Bruno conheceu muitos dos seus amigos e sua companheira, mãe de
suas duas filhas, com quem está até hoje. Na entrevista, Bruno apontou em seus
próximos passos dar continuidade aos estudos, uma vez que pretende ser professor de
Ensino Superior. Ele também falou da importância da Educação na sua vida, que fará
de tudo para a escola ser tão boa na vida das suas filhas quanto foi para ele, e disse
querer seguir como professor, mas não na rede pública de ensino, devido a
desvalorização da profissão.
Thiago nasceu em 1989 e na época seu pai já era formado em Matemática e a
mãe cursava um curso superior de contabilidade. O pai era professor e trabalhava em
empresa, enquanto a mãe trabalhava em banco. Três anos depois, quando sua
segunda filha nasceu, a mãe parou os estudos e saiu do trabalho. Desde pequeno, os
pais de Thiago falam que os estudos são importantes, pois um bom emprego e uma
boa qualidade de vida só serão possíveis através da Educação. Apesar de existir grande
incentivo para frequentar a escola, o início na vida escolar de Thiago foi bastante
difícil, uma vez que associava a escola ao distanciamento de sua mãe, pois era
bastante apegado a ela. Com o passar do tempo, foi se acostumando com a ideia de
frequentar a escola. Apenas os dois primeiros anos de Thiago foram cursados na rede
pública de ensino, numa escola da prefeitura. Os anos posteriores foram todos em
escolas privadas, concluindo a primeira etapa do Ensino Fundamental na Escola da
Polícia Militar. Nessa escola, o intervalo era um momento esperado para Thiago, onde
as crianças tinham liberdade para fazer o que quisessem. Segundo ele, eram muitas
crianças para um único inspetor de pátio, mas na época não percebiam que ele não
conseguia dar conta da situação. Nessa etapa, Thiago fazia futebol na escola às sextas-
feiras. Logo no início do Ensino Fundamental II Thiago passou por alguns problemas
pessoais fora da escola e precisou ser transferido para uma escola menor, o que foi
muito bom para ele, pois a transição da etapa anterior da Educação tinha vindo
acompanhada da mudança do material escolar, de livros didáticos para apostilas.
Sempre bastante dedicados aos estudos, por influência da família, Thiago estudava em

103
O cargo de plantonista, geralmente em escolas da rede privada ou cursos pré-vestibular, visa
atender, individualmente ou em grupo, estudantes em forma de plantão de dúvidas. No geral, os
plantonistas resolvem e explicam exercícios que os alunos não conseguem fazer.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 518
casa, fazia todas as lições indicadas, mas não estava dando conta do material
apostilado. A mudança para escola também resultou numa maior atenção por parte
dos professores, pois se antes as turmas tinham entre 30 e 40 alunos, passara para
turmas entre 10 e 20 alunos. Fez grandes amigos na escola, muitos que permanecem
até hoje. Sempre que podia, Thiago permanecia na escola depois do período escolar
para jogar futebol com os amigos. Nunca teve dificuldade em questão de
aprendizagem. Tinha notas boas e algumas vezes estava entre os primeiros da turma.
A escola também era um lugar para namorar e a transição para o Ensino Médio veio
acompanhada de uma pequena crise, o que fez cair um pouco seu rendimento.
Precisou tomar remédios fortíssimos para melhorar desse problema. Nessa época, ele
já sabia que faria faculdade, pois um primo seu cursava Direito e sempre foi grande
influência na vida de Thiago. Ele queria ser professor, mas não sabia de quê. Estava em
dúvida e chegou a pensar em Geografia e História. Só foi decidir que o curso era
Licenciatura em Matemática no 3º ano do Ensino Médio, quando optou por fazer um
curso pré vestibular, pois, mesmo sendo uma escola particular, sabia das limitações
daquela escola. Durante o Ensino Médio Thiago começou a namorar uma garota, com
quem está até hoje. No último ano da Educação Básica, em 2006, Thiago prestou
FUVEST e entrou, de segunda chamada, no curso de Licenciatura em Matemática no
período noturno. Para ele, a escola foi um momento importante da sua vida porque lá
ele existiam pessoas da sua idade que além de acompanhar seu crescimento, estavam
vivendo as mesmas situações. A sua entrada na graduação foi marcada por grandes
dificuldades, sobretudo pela maneira com que estava acostumado a estudar. Se na
escola estudar um dia antes da prova funcionava, essa estratégia já não era mais
eficaz. Depois de pegar o jeito do Ensino Superior, não teve grandes dificuldades.
Porém, já não estava mais entre os primeiros da turma. Ele conseguiu um estágio
numa escola particular como plantonista. Além disso, também fez iniciação científica e
foi monitor de disciplinas no IME. Na graduação ele teve contato com professores
marcantes e foi o lugar onde estabeleceu laços de amizade importante. Para ele,
diferente da escola, as relações são mais sólidas, talvez por ser um público mais velho,
com responsabilidades e bastante diferentes uns dos outros. No momento que fez a
sua entrevista narrativa autobiográfica, Thiago estava cursando o último semestre da
graduação e pretendia cursar o mestrado profissional em Educação Matemática que
tinha sido inaugurado no IME-USP, isso porque tinha interesse em lecionar no Ensino
Superior.
Henrique, nascido em 1982, filho de pais que não tiveram oportunidade de
estudar, passou toda a sua vida em escola pública. Ele não tinha grande apoio da mãe
e do padrasto se considerar os estudos. Isso por falta de instrução por parte deles. A
mãe, quando tentava ajudar, agredia o filho quando ele não conseguia realizar alguma
atividade. O padrasto, utilizava técnicas que tinha aprendido no exército. Henrique
sempre apresentou bastante dificuldade de aprendizagem na escola, em todas as
disciplinas. Ele repetiu a 2ª série do Ensino Fundamental e morou com a avó no ano
seguinte. Seu rendimento melhorou bastante, pois além de ter a atenção da avó, as
condições dentro e fora de casa eram bastante diferentes. Antes, chegou a residir por
volta de 15 pessoas na casa da sua mãe que dispunha de quarto, cozinha, banheiro e
uma pequena sala. O lugar onde sua família morava era cenário de bastante violência,
criminalidade e drogas. Depois de concluir a 2ª série, voltou a morar com a mãe,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 519


consequentemente, o rendimento escolar voltou a cair. Henrique não entendia como
funcionava a aprendizagem e para ele essa se dava pela capacidade de decorar as
coisas, mas mesmo em relação à leitura ele tinha dificuldades, não conseguia
interpretar. Ficava surpreso com os colegas de classe que conseguiam e os invejava,
tentava ser como eles, mas não conseguia. A escola que se fazia como uma obrigação
em sua vida, era um lugar em que brigava bastante e assim conseguia o
reconhecimento de todos. A conclusão da Educação Básica foi motivada por causa do
diploma que lhe possibilitaria adentrar o mercado profissional. Em um de seus
empregos como atendente de telemarketing, fez novas amizades com pessoas mais
instruídas, foi quando decidiu fazer faculdade. Em 2004, Henrique começa o curso de
Economia numa faculdade privada, pois se lembrava que de todas as disciplinas da
escola a Matemática era aquela que tinha menos dificuldades, mas acaba tendo
contato com disciplinas da área das Ciências Humanas. É quando decide trocar para o
curso de Matemática e no ano seguinte, faz uma prova de transferência para a USP,
ingressa no curso de Bacharelado em Matemática e transfere para o curso de
Licenciatura em Matemática devido às dificuldades enfrentadas. Ao longo da
graduação ele começa a trabalhar como plantonista num curso pré-vestibular e
pretende dar continuidade aos estudos, em curso pré-vestibular, para preencher
algumas lacunas da Educação Básica que ficaram em sua vida.
Já Eduardo não teve muitos altos e baixos na sua trajetória. Nasceu em 1987,
sua mãe já tinha Ensino Superior e o pai tinha uma empresa. Os pais sempre
acreditaram que os estudos possibilitariam um bom emprego, assim, sempre
investiram na Educação dos filhos. Eduardo sempre estudou em escola particular, mas
em casa não tinha tanta atenção dos pais, pois esses trabalhavam bastante e
permaneciam fora o dia inteiro. Ele ficava bastante tempo sozinho. Na escola, tinha
dificuldades para se relacionar e em meados do Ensino Fundamental e no Ensino
Médio chegou a fazer tratamento com psicólogos, devido, também, a outros fatores.
Apenas no Ensino Médio teve poucas dificuldades com alguns conteúdos disciplinares.
Seu irmão mais velho, sempre bem sucedido nos estudos, servia de exemplo para
Eduardo. Esse tinha feito Engenharia e Eduardo queria seguir no mesmo caminho.
Depois de concluir a Educação Básica em 2004, fez um ano de curso pré-vestibular e
ingressou no curso de Licenciatura em Matemática no ano de 2006. Para ele, a USP era
um local privilegiado, lá encontraria grandes gênios. No início, acreditava que a
graduação seria um local de muita curtição. Trancou por um ano, quando fez
intercâmbio, e quando voltou começou a trabalhar como plantonista em escola e
curso pré-vestibular. Porém, mais para o final do curso, começou um estágio num
banco, onde optou por seguir carreira. Ele disse que faria um curso de pós-graduação
no setor financeiro e que, de alguma maneira, talvez com projetos paralelos,
continuaria se relacionando com a área da Educação.
Os pais de Lucas estudaram até a 4ª série e em sua adolescência seu pai saiu de
casa, não estabelecendo qualquer contato desde então. Além de Lucas, seus pais
tiveram quatro filhas e um filho. Todos eles, com pelo menos dez anos de diferença de
Lucas, fizeram algum curso de nível superior. Sempre houve investimento na Educação
de Lucas. Se a mãe não tinha condições para pagar uma escola particular, os irmãos se
juntavam para isso. Segundo Lucas, a escola foi o melhor momento da sua vida. Lá ele
aprendeu tudo o que sabe, fez seus grandes amigos e mais do que isso, opta pela

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 520


carreira de professor para não precisar sair da escola. Nunca apresentou qualquer
dificuldade com os conteúdos escolares. Em 2005 Lucas termina a escola, faz um ano
de curso pré-vestibular e ingressa, em 2007, no curso de Licenciatura em Matemática.
Apesar da sua Licenciatura em Matemática, Lucas diz que aprendeu praticamente tudo
que sabe, inclusive sobre a profissão de professor, na escola. Em 2008, ele começa
como plantonista em uma escola. Depois disso, começa também como plantonista em
cursos pré-vestibulares e consegue uma turma para dar aula como professor. Após
concluir a graduação, Lucas não tem tantos planos para continuar estudando e disse
que talvez fará um mestrado profissional em Educação Matemática, curso esse
oferecido também pelo IME-USP.
Leandro nasce em 1988. Seu pai não estudou muito, a mãe é analista de
sistemas. Tem uma irmã dois anos mais velha. Os pais, apesar de não ter uma condição
financeira tão favorável, sempre acreditaram na importância da Educação e investiam
nessa da maneira que podiam. Leandro estuda a 1ª e a 2ª série em escola particular,
mas por causa de dificuldades financeiras permanece até o final do Ensino
Fundamental em escola pública. Na 5ª série do Ensino Fundamental, uma tia muito
querida de Leandro falece. Nessa época, seu rendimento escolar que nunca tinha sido
ruim começa a cair. Com isso começam as primeiras dificuldades. Na 8ª série, Leandro
adentra um projeto de Física por causa de uma instituição religiosa que frequenta com
os pais. Isso faz despertar o interesse nos estudos e as perspectivas para ele começam
a mudar. Ele quer ser Engenheiro. A transição para o Ensino Médio vem acompanhada
de uma bolsa de estudos numa escola particular que, para ele, é bastante boa, pois sua
proposta de estudos é voltada para o vestibular. Ele termina a escola em 2006, presta
para Engenharia na FUVEST, mas não consegue o ingresso. Todos os anos posteriores
Leandro fez cursinho pré-vestibular, exceto 2009, que ingressou em Engenharia na
Universidade Estadual de Londrina, mas desiste e volta para São Paulo. Em 2011, mais
uma vez, não conseguiu o ingresso em Engenharia pela FUVEST e ingressa em 2012 no
curso de Licenciatura em Matemática, que era menos concorrido, através de uma
proposta nova da FUVEST, em que os candidatos, podiam optar por outro curso depois
do resultado do vestibular. Leandro, no momento que participou da pesquisa, estava
em meados da sua graduação e disse que concluiria o curso para ter uma formação,
mas não sabia se atuaria como professor.
Cristina nasceu em 1991, sua mãe tem o Ensino Médio completo e o pai tem
uma empresa e é graduado em Marketing. Os pais sempre defenderam a importância
dos estudos na vida de Cristina. Sempre pagaram escola, a fim de tentar garantir uma
boa formação inicial, pois só assim, poderia dar continuidade aos estudos, ter uma
formação e conseguir um bom emprego. Ela sempre estudou na mesma escola, essa
que se voltava bastante para atividades culturais. Cristina sempre participou de todas
as atividades que aconteciam na escola. Apenas no Ensino Médio a proposta da escola
muda, o ensino se volta para o vestibular, é quando as primeiras dificuldades com as
disciplinas começam para Cristina. Ela se adapta ao modelo de estudo da escola no
mesmo momento que a Educação Básica está para se concluir, isso é em 2008. Em
2009, Cristina começa um curso superior de Moda, permanecendo durante o primeiro
semestre apenas. Já em 2010, ela faz um curso pré-vestibular e em 2011 ingressa no
curso de Licenciatura em Matemática. O ingresso na graduação vem acompanhado de
grandes dificuldades de aprendizagem por parte de Cristina e ela chega a cogitar a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 521


possibilidade de parar os estudos. Porém, com metade do curso completo, mesmo
apresentando grandes dificuldades, ela disse que vai concluir a Licenciatura em
Matemática para ter uma formação.

Escola como diversão na percepção dos sujeitos

Uma vez conhecendo os colaboradores da pesquisa, é possível discutir os


principais sentidos da escola como diversão. O primeiro aspecto relevante se fez nos
casos de Bruno e Henrique, cujas condições econômicas não eram tão favoráveis. As
perspectivas, sobretudo profissionais, consequentemente as condições materiais,
dadas suas trajetórias, eram bastante limitadas. Ambos de famílias bastante humildes,
estudantes da escola pública durante a vida inteira, a escola serviu-lhes, não
exclusivamente, como suspensão da realidade. A escola servia como um lugar de
destaque tanto para Bruno quanto para Henrique, por fatores diferentes. No caso de
Bruno, ele que sempre gostou de estudar, aprender novas coisas, tinha bastante
facilidade e era o primeiro da sala, era reconhecido pelos colegas e também pelos
professores, fazendo com que tivesse atenção dos outros. Inclusive, esse lugar de
destaque possibilitou relações de namoro, pois, segundo ele, por mais que não fosse
dos mais bonitos, algumas meninas tinham-no como um rapaz responsável e que
poderia dar certo na vida. Além disso, alguns episódios escolares envolvendo
professores foram bastante marcantes na vida de Bruno. Por exemplo, quando estava
na 8ª série do Ensino Fundamental e a sua professora de Ciências gostou tanto de um
trabalho seu e não lhe deu apenas um dez, mas apresentou o trabalho em outras
escolas. Ou então, quando, num concurso de redação, ficou entre os primeiros
colocados da sua escola e ganhou um livro. Já no Ensino Médio a escola promoveu um
passeio cultural e Bruno, apesar de demonstrar bastante interesse naquilo, passava
por muitas dificuldades dentro de casa, sobretudo financeiras. Com grande esforço,
sua mãe lhe deu R$ 5,00 para que pudesse participar da atividade e para sua surpresa,
a professora responsável, sabendo da situação de Bruno, lhe pagou o passeio de modo
que pudesse utilizar aquele dinheiro para ajudar em casa. Foi um dia bastante feliz
para Bruno, pois além de participar do passeio com os colegas, tinha o
reconhecimento da professora e não tinha prejudicado sua família. Durante a
graduação, Bruno disse que seu pai ainda não valorizava os estudos, mas isso mudou
quando em uma conversa Bruno começou a falar do seu emprego de professor, de
como eram as suas condições de trabalho e o quanto era valorizado financeiramente.
O pai, humilde e sem muita instrução, ficou bastante surpreso, pois para ele não era
possível ganhar tanto quanto Bruno tinha dito. Bruno lhe disse que se tivesse
começado a estudar mais cedo e que se continuasse estudando, poderia ganhar ainda
mais.
Com Henrique a situação foi um pouco diferente, uma vez que não tinha
facilidade em questões de aprendizagem, pelo contrário. Ele reconhecia nos colegas a
facilidade com as disciplinas, sobretudo a capacidade de argumentação. Por mais que
quisesse e tentasse ser igual, ele não conseguia. Sendo assim, para garantir seu lugar
de destaque, recorria a outros recursos, a força física. No geral, a escola é um lugar
onde acontecem relações de aprendizagem. Para Henrique, a escola que se fazia como
uma obrigação em sua vida, era um lugar para brigar. Ele sabia da sua força física e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 522


também da sua agressividade, sobretudo pelas condições que vivia fora da escola, e
reproduzia isso com os colegas. Todos o temiam. Henrique chegou a perder um ano
escolar e foi morar com sua avó, para aproveitar mais a escola e melhorar seu
rendimento. Segundo ele, foi uma das melhores épocas da sua vida. As diferenças
começavam, em primeiro lugar, pela alimentação, tanto na casa da sua avó, que tinha
leite no café da manhã, por exemplo, e da merenda da escola, pois era uma escola
municipal e a merenda, para ele, era muito melhor do que a da escola estadual onde
estudava. Além disso, durante muito tempo, principalmente no final do Ensino
Fundamental II e o Ensino Médio, a escola era tida como um espaço de socialização
apenas. Na própria sala de aula, se reunia com os colegas para ficar conversando e
brincando. No geral, disse ter bastante medo e respeito por seus professores, isso
porque eram visto como autoridade. Então, de alguma maneira, a escola lhe ensinou
valores, podendo servir como dilatação da realidade. Para além dos valores pessoais,
também existiram situações de aprendizagem que foram valorizadas por Henrique. No
Ensino Médio, Henrique gostava bastante das aulas de química, pois além de
acompanhar um programa de televisão que tratava de alguns assuntos que via em
aula, o professor trabalhava com experiências. Para Henrique, aquilo era fantástico e
tanto em casa, quanto na sala de aula, ele participava e se dedicava às atividades. A
suspensão da realidade decorrente da escola, como vinha sendo discutida, não
aconteceu apenas durante a Educação Básica. Depois de concluir a escola, Henrique
trabalhou durante bastante tempo em empresas de telemarketing, onde não tinha
perspectiva alguma de crescer profissionalmente. Porém, acabou conhecendo pessoas
que tinham um pouco mais de instrução do que ele, que pensavam e agiam diferente,
principalmente porque seu vocabulário era bastante limitado e o dessas pessoas não.
Para ele, essa limitação é decorrente da maneira como cursou a escola. Henrique
associou as habilidades dessas pessoas ao investimento que tinham feito nos estudos,
pois faziam faculdade. Foi quando, pela primeira vez, Henrique cogita a possibilidade
de fazer um curso de nível superior e entra, num primeiro momento, numa faculdade
privada e posteriormente consegue a transferência para USP. Ele sempre teve
bastante dificuldade na escola e na faculdade não era diferente. Precisou se dedicar
bastante aos estudos para começar a acompanhar as turmas. Até que, num dado
momento, percebeu que aprender não era apenas uma habilidade em decorar, mas
que estava relacionado à capacidade de interpretar e estabelecer relações. Foi quando
seus hábitos começaram a mudar, pois passara a dedicar boa parte do seu tempo aos
estudos. Já não saía mais para curtir com os amigos com tanta frequência. Além disso,
começava a perceber que existia a possibilidade de ter uma condição de vida melhor,
que era possível progredir na sua carreira profissional. Consequentemente, se deu
conta que existia uma lacuna cultural na sua vida, que ainda o limitava em algumas
situações, tudo por causa da maneira como passou os anos na escola. Sabendo dessa
necessidade, em seus planos, Henrique disse que faria um curso pré-vestibular e que
continuaria estudando. Ele disse que um momento importante da sua vida, quase já no
final da graduação, foi perceber de onde tinha saído e onde tinha conseguido chegar.
Em sua adolescência, as drogas e o crime eram muito frequentes nos grupos que
frequentava e sabia que a USP, lugar onde conseguiu chegar, não era para muitos. Isso
fez bastante diferença para ele, pois começou a valorizar a vida de uma maneira
diferente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 523


Nos outros cinco casos, a questão da diversão aparece muito mais como
dilatação ou antecipação da vida do que como suspensão da realidade. Um fato que
pode ter relação com isso é o incentivo aos estudos por parte dos pais, sobretudo pelo
nível de estudo dos seus familiares. Em todos os casos, pelo menos um membro da
família tinha grau superior. No caso de Lucas, não eram os pais, mas todos os irmãos
mais velhos. Já no caso de Leandro, que não tinha nenhum parente direto com
formação superior, tinha alguns tios de consideração que incentivavam bastante os
estudos dos seus filhos, o que foi grande influência para família de Leandro. Todos
tiveram alguma dificuldade na escola: relações pessoais, relações com a aprendizagem,
dificuldades financeiras e até mesmo o acesso à escola. Porém, em algum momento, a
escola lhes propiciou a consciência de que os estudos eram importantes e o desejo em
continuar estudando, após a conclusão da Educação Básica. Thiago, ao longo do Ensino
Médio, já sabia que faria faculdade, pois, como já foi dito, tinha um primo que cursava
Direito e esse sempre serviu como influência positiva na sua vida, queria seguir seus
passos. Além disso, já sabia que seria professor. No início, tinha algumas dúvidas de
qual disciplina lecionaria, porque também gostava da área das Ciências Humanas,
apesar de ter mais facilidade com as disciplinas nas Exatas. Bem como Thiago, Lucas,
também sabia que seguiria como professor. Isso porque nunca pensou em sair da
escola. Foi lá onde constituiu seus laços de amizade, aprendeu tudo que sabe e passou
os melhores momentos da sua vida. Por causa de alguns professores marcantes,
sobretudo do curso pré-vestibular que fez, optou por Matemática, além de ser a
disciplina que mais gostava e que tinha facilidade na época da escola.
Enquanto Thiago e Lucas já projetavam ser professor, ainda na escola, o mesmo
não aconteceu com Eduardo, Leandro e Cristina. Se eles sabiam que continuariam os
estudos após concluírem a Educação Básica, a princípio, a área de interesse era outra.
Todos eles optaram, em algum momento das suas vidas, pelo curso de Engenharia. O
irmão de Eduardo, também grande inspiração, tinha cursado Engenharia e era bem
sucedido em questões profissionais. Além da projeção que já acontecia na escola,
Eduardo percebia existir diferenças entre os amigos de onde morava e os amigos da
escola, mas essas comparações só foram feitas em festas escolares que ele convidou
seus amigos para participar. Ele disse que o jeito de se vestir e de se portar era
bastante diferente entre os grupos. A escola também propiciou situações culturais em
sua vida, por exemplo, as feiras do livro que aconteciam na escola, pois sabia da
existência de outras feiras do livro, mas não participaria se não fosse em sua escola. Já
Leandro, depois de passar por grandes dificuldades pessoais no início do Ensino
Fundamental, que acabaram por prejudicar seu rendimento escolar, começou a
participar de um projeto de Física numa instituição religiosa que frequentava com seus
pais. Foi quando começou a despertar seu interesse nos estudos, já que estava
bastante desmotivado. Isso aconteceu no último ano do Ensino Fundamental II, 8ª
série da época. Ele percebeu que estudar poderia contribuir em muitos aspectos,
inclusive, nas formas de se relacionar com as pessoas, através dos interesses e
assuntos em comum que poderiam surgir. Chegou a participar de competições por
causa desse projeto e ganhou prêmios por isso. O projeto de Física e os bons
resultados lhe fizeram optar pelo curso de Engenharia, mas, apesar de frustrado,
Leandro ingressa na Licenciatura em Matemática. Na graduação, ele começa a
participar de um projeto da OBMEP – Olimpíadas Brasileira de Matemática das Escolas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 524


Públicas – e pela primeira vez começa a se interessar pela carreira de professor. Com
Cristina não foi muito diferente. Durante toda sua vida na mesma escola, essa que
valorizava bastante aspectos culturais na formação dos seus alunos, com muitas
atividades para além da sala de aula, como música e teatro. Sempre bastante
interessada, participava de tudo que a escolha lhe oferecia. Nunca teve dificuldades
nas disciplinas escolares e nos últimos anos do Ensino Fundamental II foi convidada a
participar de um projeto de Matemática em que ajudaria outros alunos através de
plantões de dúvidas. Apesar das dificuldades que acompanharam a transição para o
Ensino Médio, Cristina pensava em prestar Engenharia por causa de dois de seus
professores. A disciplina mais difícil para ela foi Física, sendo a sua primeira
recuperação. Mas a estratégia de um de seus professores em fazer experiências
científicas contribuía bastante para seu entendimento. Depois da escola e do curso de
superior de moda que fez durante um semestre, Cristina ingressou, em 2011, na
Licenciatura em Matemática. Durante sua graduação, Cristina passou por grandes
momentos de dificuldades com a Matemática, chegando a cogitar a possibilidade de
parar com os estudos. Porém, a entrada num projeto de iniciação científica, que
acontecia dentro da sala de aula em escolas públicas de São Paulo, começou a
despertar o interesse nela para continuar e, talvez, seguir como professora. Ela não
tem interesse em trabalhar durante sua graduação, pois, por um lado há incentivo por
parte dos seus pais em relação aos estudos e, por outro lado, ela acredita que só pode
atuar numa área depois de ter formação para isso.
Todos os meninos, inclusive Eduardo que tinha dificuldade para se relacionar
com as pessoas na escola, tiveram o futebol como uma marca muito forte na escola.
Para eles, o futebol era um tempo e um espaço deles e para eles, onde podiam ser eles
mesmos. Em alguns casos, como no de Bruno, Henrique e Leandro, era uma situação
de destaque. Leandro chegou a jogar futebol profissionalmente, mas, ainda na escola,
optou por dar continuidade aos estudos e seguir outra carreira, o que, na época, foi
uma grande decepção para o pai.
Foi possível perceber que em muitos momentos das vidas escolares dos
colaboradores, durante ou mesmo depois da conclusão da Educação Básica, as
situações vivenciadas por eles se faziam em alguma das concepções da diversão,
suspensão, dilatação ou antecipação da realidade, como foram apresentadas. Em
alguns casos, uma realidade difícil, das dificuldades financeiras e falta de
reconhecimento às dificuldades de aprendizagem e falta de interesse enfrentadas, era
substituída por situações de destaque e prazerosas, algumas que aconteciam na
escola, ou por causa dela, mas que talvez não aconteceriam em outros lugares.
Entretanto, essas mesmas situações de suspensão da realidade convergiam em alguma
instância para momentos de aprendizagem, enriquecimento e engrandecimento da
vida, ou seja, de dilatação da vida. A própria mudança de rumo nas suas trajetórias
muitas vezes tiveram como marcas esses momentos que fugiam às realidades vividas,
por exemplo, a opção por ingressar num curso de nível superior ou mesmo continuar
com a graduação. Além disso, não se pode esquecer dos momentos de felicidade e
entretenimento propiciados pela escolas, esses que contribuem para a ideia mais
comum da diversão, o da alegria. Os apontamentos, como foram feitos, contribuem
para pensar que, em sua origem, em sua essência, a escola já é um lugar de diversão e,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 525


talvez, não precise disputar lugar com outras instituições, instrumentos e meios, uma
vez que é ela pode, em alguma instância, possibilitar melhores condições de vida.

Referências
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MOMBERGER, Christine Delory. Formação e Socialização: Os Ateliês Biográficos de
Projeto. In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, maio/ago. 2006. p. 359-371.
NACARATO, A. M.; PASSEGGI, M. da C. Olhar para si e superar marcas deixadas pela
matemática escolar: reflexões de uma futura professora sobre seu percurso de
formação. In: OLINDA, Ercília Maria Braga de. Artes de sentir: trajetórias de vida e
formação. Fortaleza: Edições EFC, 2012. p. 208-225.
PASSEGGI, Maria da Conceição. Narrar é humano! Autobiografar é um processo
civilizatório. In: PASSEGGI, M. C.; SILVA, V. B. (Orgs.). Invenções de vida, compreensão
de itinerários e alternativas de formação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 103-
130.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5,
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SCHÜTZE, Fritz. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: Weller, W.; Pfaff, N.
(Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação. Petrópolis: Vozes, 2011.
p. 210-222.
SOUZA, E. C. de; UZÊDA, L. C. de O.. Histórias de vida, narrativas (auto)biográficas e
docência na educação infantil. In: TAKEUTI, N. M.; NIEWIADOMSKI, C. (Orgs.).
Reinvenções do sujeito social: teorias e práticas biográficas. Porto Alegre: Sulina,
2009. p. 256-268.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 526


Rastros de leitura: por entre histórias e memorias

Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima


UEFS
rbredalima@yahoo.com.br

Com quantas histórias se formam leitores? Qual o papel da memória na nossa constituição leitora? O
presente trabalho objetiva discutir a importância da memória como reminiscências dos percursos, usos,
modos e relações estabelecidas com a leitura ao longo da vida, nos múltiplos espaços de atuação, assim
como entrecruzar a literatura memorialística com outros aportes teóricos na tentativa de traçar os
rastros de leitura advindos das práticas culturais de leitura tanto em espaços formais quanto não-
formais, e assim compreender como estas práticas contribuem para sensibilização e formação de
diferentes leitores, em condições sociais e culturais adversas. Fruto de discussões travadas ao longo da
disciplina Abordagem (Auto)biográfica e formação de leitores, este trabalho de cunho bibliográfico
nasce do desejo de inventariar histórias e práticas de formação leitoras, tomando como referência a
história da leitura e as práticas culturais de leitura. Foram utilizados como fontes de investigação
trabalhos publicados de teóricos como: Chartier (2001); Hébrard (2001); Lacerda (2003); Tardelli (2001)
e obras memorialísticas de Sanches Neto (2004) e Queirós (1989; 1996). As narrativas de leitura
investigadas revelam o papel preponderante que os contextos socioculturais exercem na nossa
formação leitora, portanto, que os sujeitos se constituem leitores a partir de múltiplas, variadas e
inúmeras histórias e vivências pessoais e coletivas.
Palavras-chave: Paráticas culturais de leitura; Histórias de leitura; Memórias.

E por que não um preâmbulo?

O desejo de escrever sobre os rastros de leitura surgiu quando frequentava a


disciplina Abordagem Auto-Biográfica e Formação de Leitores ministrada pela Profa.
Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro durante o mestrado no programa de Pós-
graduação em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia –
UNEB. Ao longo do curso fomos instigados a rememorar o nosso próprio percurso
formativo e assim, (re)conhecemos que a nossa história pessoal e a nossa formação
leitora são constituídas por muitos rastros deixados por tanta muita diferente gente104.
Reuníamos semanalmente e, a cada novo encontro, muitas eram as
aprendizagens, as partilhas, as trocas e aproximações (afetivas, sociais, formativas) que
a disciplina propiciava. No ambiente cuidadosamente preparado para degustarmos
poesias, beber em fontes variadas da literatura memorialística, de ficção,
canções/músicas, indicações de filmes, socialização de histórias pessoais vividas,
lembradas, afinal “as palavras são mutantes: revestem-se de significados quando
envolvidas nas teias, nos emaranhados das vidas pessoais” (Almeida Júnior, 2009, p.
11), nós também aprofundávamos as leituras dos teóricos que discutem as categorias
teórico-metodológicas da abordagem auto-biográfica, das histórias de leitura e
práticas culturais de leitura sempre com foco na implicação dessas leituras na
formação dos leitores.
O momento e o movimento da escrita de um texto mexem e remexem nossos
acervos, nossas bibliotecas pessoais, nossos portos de ancoragem e faz emergir novas
e tantas inquietações sobre o que deixar impresso no papel com tintas multicores.

104
Expressão usada por Gonzaguinha em sua canção – Caminhos do Coração.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 527
O desafio posto era articular as pesquisas sobre memória e ficção e
construir/tecer de modo singular, um texto em que as marcas e rastros das leituras de
cunho teórico fossem entremeados com os saberes e sabores da literatura
memorialística. O texto que ora apresento tem esse intuito, entrecruzar histórias,
memórias e processos de formação de leitores.

Entrecruzando histórias e memórias

As pesquisas que tomam como objeto de estudo e investigação as práticas de


leitura podem ser consideradas recentes no campo da Educação, sendo registradas só
nas últimas décadas, como campo de estudo e exploração pelos historiadores da
leitura, sociólogos e outros pesquisadores interessados em temas afins.
Reconhecendo a importância da memória no processo de formação de leitores,
busco retomar conceitos e compreensões caras para mim, sobre o papel da memória
enquanto lembranças, na constituição e reconstituição da formação de leitores.
Segundo Lacerda (2003, p.27) “a memória reconstrói lembranças de lugares, de
pessoas e de práticas sociais”. Portanto, tomaremos como foco deste artigo a escrita
memorialística de dois escritores brasileiros como uma das veias possíveis de resgate
das narrativas de histórias de vida e de leitura.
Conforme afirma Lacerda (2003, p.32) “a literatura memorialística vem sendo
considerada tanto como objeto de análise como fonte documental”. Como fonte
documental sua riqueza se constitui por possibilitar a reconstituição de vestígios,
indícios, rastros e pistas sobre as condições da leitura no passado, sobre o acesso aos
bens culturais, sobre as interdições históricas e sociais de uma época, sobre as práticas
de uso da leitura bem como pelas formas de circulação e de disponibilização dos
materiais de leitura.
Os estudos que tratam do memorialismo caracterizam três tipos de escrita
memorialística: diários, memórias e autobiografias, mas afirmam que outras
denominações podem ser encontradas, como romances pessoais, diários intimistas,
crônicas memoriais e romances autobiográficos, muito embora todas elas pertençam à
trilogia clássica: diário – memória – autobiografia. Para Lacerda (2003, p.38) “o que
diferencia basicamente essas formas literárias de outras são as marcas da escritura do
eu e os modos de inscrição de si mesmo, que resulta num pacto denominado por
Philippe Lejeune de pacto autobiográfico”.
Em sua obra intitulada Álbum de Leitura – memórias de vida. Histórias de
leitoras a autora afirma que a escolha pela escrita memorialística representava a
possibilidade de retomar trajetórias de algumas leitoras, conhecer os usos e práticas
sociais em torno dos textos e impressos e seus modos de recepção, transmissão e
representação cultural. Segundo Lacerda, por meio desse tipo de escrita é possível
reconstituir percursos de leitura, escolhas e cenários.
Dentre inúmeras obras memorialísticas já disponibilizadas hoje nas bibliotecas,
livrarias, sebos etc. optamos por trabalhar/analisar a trilogia Indez; Por parte de pai;
Ler, escrever e fazer conta de cabeça de Bartolomeu Campos Queirós e a obra
intitulada Herdando uma biblioteca de Miguel Sanches Neto.
Bartolomeu Campos Queirós (1944-2012), mineiro, escritor e entusiasta por instituir
no Brasil uma política de formação de leitores buscou através da escrita

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 528


memorialística, dentre elas: Indez; Por parte de pai e Ler, escrever e fazer conta de
cabeça inventariar a cultura do interior de Minas Gerais quando, por meio de um
minucioso e sensível gesto de re-memoração, de imersão na própria infância, nos
oferece de forma detalhada e precisa, modos de viver, de conviver, de aprender e de
sobreviver no mundo simples, mas não simplório do interior do Brasil.
Foi remexendo suas reminiscências que Bartolomeu entrecruzou suas alegrias,
suas dores, suas descobertas e aprendizagens que somente com a convivência familiar,
a convivência com amigos e vizinhança de forma intensa, e verdadeira poderiam fazer
brotar,
Meu avô me convidou, naquela tarde, para me assentar ao seu lado nesse
banco cansado. Pegou minha mão e, sem tirar os olhos do horizonte, me
contou: O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da
eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena.
Mastiga rios, árvores, crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as
estrelas. Ele é o dono de tudo. Pacientemente engole todas as coisas,
degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e
saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. As madrugadas, os
sonhos, as decisões, duram na boca do tempo. Sua garganta traga as
estações, os milênios, o ocidente, o oriente, tudo sem retorno. E nós, meu
neto, marchamos em direção à boca do tempo.

Meu avô foi abaixando a cabeça e seus olhos tocaram em nossas mãos
entrelaçadas. Eu achei serem pingos de chuva as gotas rolando sobre meus
dedos, mas a noite estava clara, como tudo mais.
(Por parte de pai, 1995)

No encontro amoroso de Bartolomeu com seu avô (figura marcante na sua


constituição como pessoa e como escritor humanista) fica explícito um modo de
aprender muito comum no interior. Sentados em um banco, à sombra das árvores, no
batente da varanda ou juntinho ao pé do fogão de lenha os diálogos acontecem, as
narrações dos mais idosos sobre fatos e acontecimentos de uma época, histórias
vividas e não vividas (talvez) são contadas, os saberes são passados pelo gesto, pelo
simples jeito de olhar, pela palavra não dita, pelo carinho, e assim se aprende o modo
de ser, o jeito de se comportar, de respeitar e, portanto, aprender-se a viver e a com-
viver.
Essas práticas de vida e de leitura aprendidas no cotidiano e com o cotidiano
foram aos poucos delineando a trajetória, as escolhas, as concepções e tecendo a
própria escrita do autor mineiro que expressa sua sensibilidade, sua astucia e
reverência a um passado que se foi, mas que deixou marcas profundas entranhadas no
seu corpo, na sua linguagem, na sua voz e na sua forma de ver e escrever o mundo.
Bartolomeu assim como Michel de Certeau (2007, p. 269) definem que “...os leitores
são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através
dos campos que não escreveram[...]”.
É importante salientar que se para muitos intelectuais a presença da biblioteca
familiar foi imprescindível para sua constituição leitora, como se é possível perceber
através dos relatos de Sartre sobre suas recordações de infância “sem dúvida, comecei
minha vida como terminarei: no meio dos livros” (Fraisse, p.17) e de Simone de
Beauvoir que admite que a leitura foi herdada na intimidade do lar quando seu pai, um

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 529


leitor apaixonado, fazia da leitura em voz alta uma espécie de rito familiar. Esta não é,
sem dúvida, uma cena comum no cotidiano dos lares brasileiros.
Miguel de Sanches Neto em seu livro Herdando uma biblioteca (2004) confessa-
nos com certa mágoa que “passei a infância em uma casa sem livros, sempre com a
sensação de que eles não me pertenciam” (pp.11/12). Admite que se tornou leitor por
meio da biblioteca pública, espaço que lhe permitia ser sujeito das próprias escolhas.
Afirma ele “das muitas orfandades que sofri, uma das mais fortes foi não ter herdado
uma biblioteca familiar” (p. 34) e se assume:
Um escritor de pais sem livros e sem leitura, que não encontrou vizinho,
professor ou bibliotecário para adotá-lo e que frequentou bibliotecas e
livrarias com o mesmo sentimento de desamparo das crianças brasileiras
que vivem na rua. Não venho de uma biblioteca paterna, e sim de sua
ausência. (2004, p. 34).

Nas memórias desses autores, a presença e a percepção sobre o papel social da


escola aparecem de forma bastante diferenciada. Bartolomeu ao escrever suas
reminiscências lembra com saudade e respeito da escola e da professora. Assim como
ele, para muitos, estes representam a oportunidade de aprender a ler, a adentrar ao
mundo mágico da escrita, de se apropriar de novos saberes e passar por experiências
singulares. Essa memória afetiva da escola revelada por Bartolomeu difere das
lembranças de Sanches Neto que para ele
Nessa escola paralisante, que não queria que fôssemos além das
informações medíocres que nos davam em preguiçosas doses
homeopáticas, gastei minha infância. [...] Naquela época mais, mas ainda
hoje, a escola pública – que agora não cobra minimamente os conteúdos –
tinha antes uma função conformadora do que formadora. Ela não desejava
elevar culturalmente os alunos pobres, queria apenas dotá-los de
habilidades manuais e informações básicas (2004, pp. 16/17. Grifo meu).

Ao longo das obras é possível perceber que tanto Bartolomeu quanto Sanches
Neto tecem sobre a prática escolar uma crítica aguda sobre os modos de ensinar e os
fins educativos. Se para um a entrada na escola era sim uma possibilidade de aprender
a olhar mais longe, mesmo que para isso houvesse perdas, para o outro a escola era
justamente o espaço do cerceamento e de lamentações, afirma Sanches Neto “gastei
minha infância”.
Na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça (1996). Bartolomeu expõe o
conflito vivido por ele ao ter que ir para a escola, pois para ele significaria a perda de
coisas caras e significativas que só o recanto familiar pode oferecer, pois para ele

ir para a escola era abandonar as brincadeiras sob a sombra antiga da


mangueira; era renunciar o debaixo da mesa resmungando mentiras com o
silêncio; era não mais vistoriar o atrás da casa buscando novas surpresas e
outros convites. (p.08)

A entrada no espaço/educação formal representava para o autor a dicotomia


entre a vida vivida e o processo de aprendizagem. Mesmo assim, reconhece a
importância da escola, do aprender a ler, do saber conta de cabeça e o respeito pela
professora, quando declarou:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 530


Contrapondo-se a essas perdas, havia a vontade de desamarrar os nós,
entrar em acordo com o desconhecido, abrir o caderno limpo e batizar as
folhas com a sabedoria da professora, diminuir o tamanho do mistério, abrir
portas para receber novas lições, destramelar as janelas e espiar mais longe
(p. 08).

Bartolomeu ao admitir ter entrado para a escola já sabendo ler, mais ou menos,
expõe que a aprendizagem da leitura esteve associada a momentos de descobertas, de
medo e de dor:

A primeira palavra soletrada, inteirinha, foi morfina [...] Um dia, muito de


repente, abri o embrulho. Olhei e li, lentamente, morfina. Um pavor frio
tomou conta da minha barriga inteira. Uma vontade de correr, sumir no
mundo, de me confessar com o Padre Viegas, me agarrou. Pedir uma
penitência de três terços por ter ido longe demais, ter invadido o mundo,
sem a professora. A palavra morfina me levou a muitos lugares e a outros
exílios. (Queirós, 1996, pp 35/36) (grifo meu) .

A sensação de medo descrita pelo auctor que neste caso também é lector105,
lembra-nos, mesmo através da dor, a sensação de medo, pavor e realização
proporcionados pelo domínio da lecto-escrita. O ato de ler que decifrando duras e
difíceis realidades compreendia “as letras e seus silêncios podia-se saber muito mais
longe”, inclusive propiciava a levar para muitos lugares, muitas recordações e
sensações que precisam ser apreendidas a conviver e aceitar. Afirma Chartier (1996,
p.20) “cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais,
históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos
partilhado, aos textos de que se apropria”.
Essas são, sem dúvida, algumas dentre tantas outras histórias que revelam
como nos constituímos leitores e nos ajudam a entender quais vestígios trazemos pela
nossa errância106 e quais rastros deixamos ao nos aventurar pelo mundo inimaginável
do conhecimento.
Gonzaguinha (cantor, compositor e poeta) já afirmou que “toda pessoa sempre
é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas”. Ideia similar é defendida por
Jonas Ribeiro em sua obra Gente que mora dentro da gente quando nos diz que
“pencas de gente brotam dentro da gente” e que “somos feitos de gente que se foi e
de gente que ainda não nasceu [...] que ao invés de balas, guardamos gente dentro da
gente. Gente de vários sabores, gente de vários amores”. Assim sendo, não estamos
nunca prontos nem tão pouco indiferentes às influências, contribuições, marcas e
aprendizagens que tecemos ao longo das itinerâncias, até porque as experiências são
singulares nas vidas dos sujeitos.

105
Sobre o sentido dessa distinção, ver BOURDIEU, P e CHARTIER, R. A leitura: uma prática cultural. In.:
Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
106
Termo utilizado por Jean Marie Goulemot para referir-se a trajetória de Valentim Jamerey-Duval, um
pequeno camponês do século XVIII, que expulso de casa aos trezes anos pela miséria e brutalidade de
seu círculo familiar, não escolarizado, torna-se aos vinte e cinco anos professor de história e de
antiguidades na academia de Lunéville no ducado da Lorena.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 531
Mas afinal, com quais vestígios de práticas culturais de leitura tecemos nossa
história pessoal e sociocultural? Esse será sempre um desafio posto a ser decifrado,
portanto uma história ainda a ser escrita, pois se “cada um lê com os olhos que tem. E
interpreta a partir de onde os pés pisam” como afirma Boff (1997, p. 09) então, o
acúmulo de rastros/vestígios advindos das vivências, experiências, saberes, lugares,
leituras que cada indivíduo realiza vão se somando e entrecruzando as histórias e
reescrevendo as próprias vidas.
Nesse tecer das histórias reforça ainda mais a ideia que o ato de ler é um ato de
relações, de articulação de sentidos e significados que se entrecruzam a partir de
tantas muitas referências pessoais, sociais, políticas, culturais, ou seja, são muitas as
formas e práticas de sociabilidades.
Nos relatos feitos por J. Hèbrard sobre como Valentin Jamerey-Duval (autodidata), se
apropriou do mundo da leitura escrita vivendo ele na mais completa e absoluta
ausência de contato com o mundo letrado, encontra-se,

Na memória do professor de história e de antiguidades subsiste da infância


apenas a recordação da miséria, tanto de início a de sua família, atingida
pela morte rápida do pai artesão, quando do vilarejo inteiro, assaltado por
cobradores de impostos ilegais. Portanto, nada sobre os eventuais lugares
ou momentos de aculturação oral ou escrita: nada de vigílias, nem de
práticas familiares de leitura, nem de redes de circulação de livros. (2001,
p.46)

As marcas, os rastros ou vestígios recebidos do seio familiar ou do entorno


social são descritas por Valentim Jamerey-Duval como sendo vagas, esparsas, sem
grande influência, declara que “não tive outra companhia senão a dos pássaros, das
moscas e das borboletas que perseguia até perder o fôlego pelos prados e ao longo
dos riachos até que a noite ou a fome lembrava-me a casa” (Hébrard, 2001, p. 48).
Entretanto, não se podem desconsiderar as relações tecidas por Valentim após sua
retirada do pequeno vilarejo. Pois como afirma Fraisse (1997, p.15) “se ler
verdadeiramente é poder ler algo que ainda não conhecemos, aqueles que não
nasceram no mundo dos livros terão necessidade de nada menos que uma
reestruturação de seu horizonte cultural de referência por si chegar”. Portanto, este
foi o único caminho que restou a Velentim, sair à procura, reestruturar seu horizonte e
preencher lacunas herdadas ao longo da vida.
Afirma Hébrard que,

Para a sociologia das práticas culturais, a leitura é uma arte de fazer com
que herde mais do que se aprende. E, por essa razão, ela tem mais
frequentemente valor de sintoma de enraizamento nos grupos sociais que
praticam as formas dominantes da cultura do que valor de instrumento da
mobilidade cultural em direção a esses mesmos grupos (2001, p.37).

Então, a herança cultural não necessita ser “de berço” como afirma os ditos
populares. Nas nossas errâncias aprendemos com nossos pares, com os meios de
comunicação, com os lugares visitados, com os filmes assistidos ou apenas contados,
com os livros lidos, com as relações tecidas e as múltiplas linguagens disponíveis.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 532


Assim sendo, as possibilidades de se aprender são incalculáveis e inenarráveis se
considerarmos que as práticas culturais de leitura envolvem desde os mais tenros
contatos com o mundo letrado até as múltiplas formas de sociabilidades que o
universo nos oferece.

Histórias e memórias: arrematando os fios

Rastreando os percursos de leitura de alguns autores/leitores, foi possível


perceber que a escola enquanto instituição teoricamente responsável pela formação
de leitores e escritores107 competentes não aparece nas memórias dos escritores
analisados com a mesma evidência/relevância como poderia se esperar, porém,
também não se pode desconsiderar seu valor em potencial. No entanto, é importante
resguardarmos cada contexto, cada realidade, cada época histórica, para não fazermos
generalizações precipitadas.
Reconhecendo o valor das memórias como parte da constituição da identidade
de cada sujeito, Tardelli (2001, pp. 262/263) nos convoca a pensar que “resgatar, a
partir das narrativas de vida, a herança cultural que nos acompanha e nos constitui,
não somente exige de nós um exercício de reflexão e re-conhecimento daquilo que
somos hoje como leitores”, faz-se necessário que reconheçamos que nossa construção
pessoal e social é entremeada por muitos fios de lembranças, de rastros, de histórias e
saberes que se entrecruzam e tecem novos “bordados”.
Portanto, o exercício de bisbilhotar as experiências, as histórias e as memórias de
autores que se lançaram na literatura memorialística, com foco na formação leitora,
reside principalmente no desejo de entrelaçar as marcas encontradas com nossas
próprias histórias e assim, tecermos possíveis relações entre as muitas histórias de
leitura que ainda encontram-se escondidas ou pouco visibilizadas na história de leitura
do Brasil.
É importante registrar que o recorte feito para este trabalho foi de uma
pequena amostra entre os vários escritores que vem se debruçando nas suas
reminiscências, mas com certeza uma amostra importante para reafirmar o papel das
histórias de vida e os rastros de memórias na constituição/formação do nosso perfil
leitor. E para finalizar quero compartilhar ideias defendidas por Chartier quando nos
convoca a pensar no poder e na relevância das práticas de leitura:

A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados [...] Toda


história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que
desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta
liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações
derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas
diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os tempos e
lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas,
outras se extinguem... (Chartier, 1999, p.77)

E assim vamos inventando, descobrindo e construindo novas formas de ler e


novas maneiras de ser.

107
A noção de escritores utilizada remete ao usuário competente da língua escrita.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 533
Referências
ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Apresentação. In.: SILVA, Rovilson José da.
Biblioteca escolar e a formação de leitores – o papel do mediador de leitura. Londrina:
EDUEL, 2009.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha – uma metáfora da condição humana. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
CHARTIER, Roger (Org.) A leitura: uma prática cultural. In.: Práticas de leitura. São
Paulo: Estação Liberdade, 2001.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora
UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.
FRAISSE, Emannuel et al. Representações e imagens da leitura. São Paulo: Ática, 1997.
GONZAGUINHA. Caminhos do coração. Música.
HÉBRARD, Jean. O autodidatismo exemplar: como Valentin Jamarrey-Duval aprende a
ler? In.: CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
LACERDA, Lílian de. Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras. São
Paulo: Editora UNESP, 2003.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Indez. Belo Horizonte: Miguilim, 1989.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Ler, escrever e fazer conta de cabeça. Belo Horizonte:
Miguilim, 1996.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Por parte de pai. Belo Horizonte: Editora RHJ, 1995.
RIBEIRO, Jonas. Gente que mora dentro da gente. Belo Horizonte: Editora Dimensão,
1997.
SANCHES NETO, Miguel. Herdando uma biblioteca. Rio de Janeiro: Record, 2004.
TARDELLI, Gláucia Maria Piato. Histórias de leitura de professores: as diferentes
maneiras de ler. In.: SILVA, Lílian Martin da (Org.) Entre leitores: alunos, professores.
Campinas, São Paulo: Komedi: Arte Escrita, 2001.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 534


Programa de formação inicial para professores em exercício na educação infantil:
resultados dos docentes egressos da turma 2006/2007 de Vitória da Conquista – BA

Ronilda Rodrigues da Silva Oliveira


UNEB
ronilda_oliveira@hotmail.com

A pesquisa (Auto)biográfica no que se refere à formação de professor tem sido um assunto bastante
discutido aqui no Brasil e quando se trata da educação infantil tem ganhado um espaço considerável
entre muitos pesquisadores da área. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo apresentar
o Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na Educação Infantil (Proinfantil), bem
como os resultados dos docentes egressos da primeira turma 2006/2007 em Vitória da Conquista- BA,
no que se refere às contribuições dessa formação para prática pedagógica, dando um retorno à
sociedade que justifique os investimentos no projeto. O Proinfantil se concretiza como uma das políticas
públicas do Ministério da Educação (MEC) através de uma parceria com a Secretaria Estadual de
Educação do Estado da Bahia (SEC) e a Secretaria Municipal de Educação dos municípios envolvidos os
quais viabilizam uma implementação descentralizada, a fim de garantir o funcionamento e eficácia do
programa. A Proposta Pedagógica deste programa está voltada para a qualificação e potencialização dos
profissionais da Educação Infantil, buscando frente a esses docentes elevar o nível de conhecimento e
aprimorar sua prática pedagógica. Para tanto, articula os conteúdos das diferentes áreas com suas
experiências vivenciadas na sala de aula, elaboram portfólio (planejamento diário, registro de atividades
e memoriais), evidenciando sua reflexão sobre a própria trajetória escolar. O trabalho tem como base a
discussão a partir das leituras dos autores: Nóvoa (1992); Campos (1994); Kramer (1999); Machado
(2002); Bueno, Chamlian, Sousa E Catani (2006); Gatti (2010); Nóvoa e Finger (2010); Passeggi (2013);
Vicentini, Souza e Passeggi (2013), a análise dos memoriais dos docentes e depoimentos das pessoas
envolvidas no programa, comprovando a consistência deste.
Palavras chave: Pesquisa (Auto)biográfica; Formação de profesores; Educação Infantil; Memoriais.

Introdução

Um dos principais problemas da Educação Infantil no Brasil encontra-se na falta


de formação adequada dos professores visto que antes da inclusão das creches no
Fundo da Educação Básica (Fundeb) prevalecia o assistencialismo com as crianças,
deixando evidentes as necessidades apenas do cuidado enquanto que a educação
ficava muitas vezes em segundo plano. As pessoas que trabalhavam com essas crianças
não tinham sequer a formação de nível médio completo.
Em 1998 o documento que estabelece os subsídios para credenciamento e
funcionamento de instituições de Educação Infantil já demonstrava essa preocupação
quando afirmava que:

[...] a formação adequada do professor e sua atuação são fatores


determinantes do padrão do atendimento na base do processo educacional
que é a educação infantil. As crianças precisam de educadores qualificados,
articulados, capazes de explicitar a importância, o como e o porquê de sua
prática, gozando de status, assim como de condições de trabalho e
remuneração condigna. (BRASIL/MEC, 1998, p. 20)

No entanto, vê-se que apesar de alguns avanços, somente com o


estabelecimento da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) 9394/96 e a
implementação do Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na
Educação Infantil (Proinfantil), sobretudo, em Vitória da Conquista, foi possível
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 535
visualizar mudanças significativas no trabalho docente, uma vez que este programa
descortinou as mazelas que permaneceram há anos encoberta pelo descaso das
autoridades no que se refere à Educação Infantil.
Para Nóvoa (1992), a formação de professores constitui um papel fundamental
na configuração de uma “nova” profissionalização docente. Dessa forma, entende-se
que esta formação requer muito mais do que um simples formar, ela faz parte de uma
discussão muito mais ampla que diz respeito à cultura tanto do sujeito quanto da
escola.
No que tange à formação de professores de educação infantil é preciso
observar alguns fatores, pois esta deve responder à nova concepção de creche e pré-
escola, a qual lhes confere caráter educativo. A formação adequada desses
profissionais concretiza o direito da criança de receber educação de boa qualidade
bem como consagra a necessidade de estruturar e fortalecer um campo de trabalho
que tem sido destituído de maiores exigências e pouca valorização. (BRASIL/MEC,
1998)
Ao pensar a formação de professores no Brasil se faz necessário compreender
de que maneira essas formações estão acontecendo e sobre quais perspectivas esses
professores são formados. Implementar cursos que não condizem com a cientificidade
do processo educacional tornou-se uma prática comum, que deve ser sempre
refutada. De acordo com Gatti,

Não há consistência em uma profissionalização sem a constituição de uma


base sólida de conhecimentos e formas de ação. Com estas conceituações,
estamos saindo do improviso, da ideia do professor missionário, do
professor quebra-galho, do professor artesão, ou tutor, do professor
meramente técnico, para adentrar a concepção de um profissional que tem
condições de confrontar-se com problemas complexos e variados, estando
capacitado para construir soluções em sua ação, mobilizando seus recursos
cognitivos e afetivos. (GATTI, 2010, p. 1360)

É exatamente no sentido desse alerta que Gatti faz que devem ser pautados os
cursos de formação de professores, pois é inaceitável um professor que não pensa sua
própria formação como prioridade em sua carreira. Quando ao escolher um curso não
faz a opção por aquele que melhor representa seus anseios. Portanto, quando se trata
de formação se faz necessário o reconhecimento do presente que está inserido para
projetar o futuro de sua profissionalização. Trabalhar com crianças pequenas nas
creches de Vitória da Conquista era uma atividade pouco desejada pelos os
professores. Não bastasse a precariedade das instituições devida à falta de políticas
públicas mais sérias por parte dos governos, ainda havia a ideia de que apenas os
professores menos qualificados eram encaminhados para as creches, pois as crianças
não necessitavam de educação, apenas do cuidado. Os professores da Educação
Infantil eram também os menos valorizados tanto moral quanto financeiramente.
Neste sentido, observa-se que as políticas públicas educacionais que vem sendo
implantadas em um país tão desigual como o Brasil precisam ser reguladas com mais
eficácia buscando minimizar o desequilíbrio existente no âmbito educacional. Como
assegura Oliveira (2011), para oferecer uma educação de qualidade que permita uma
inserção social do indivíduo é preciso que haja uma ampliação do financiamento da

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 536


educação, pois a precariedade revelada sobre os dados dos docentes, bem como das
escolas de redes públicas demonstram a necessidade de políticas imediatas. Nesta
perspectiva, Entende-se como urgente a implementação de políticas públicas de
formação do professor de educação infantil, que se preocupe com o zelar pelo
desenvolvimento integral da criança, pois este requer habilidades e competências que
necessitam ser adquiridas através de uma formação efetiva.
Infelizmente em Vitória da Conquista, assim como em muitas cidades brasileira,
não é possível visualizar por parte dos governos, uma preocupação em relação aos
profissionais que atuam nessa área, levando a crer que essa iniciativa de se qualificar
parte mais da busca pessoal de alguns professores do que de uma política pública de
qualidade que incorpore em suas metas a formação dos professores.
Em Vitória da Conquista, antes do programa a Educação Infantil ficava sob a
responsabilidade da Secretaria de Desenvolvimento Social a qual definia as metas
anuais que o município tinha em relação aos cuidados com as crianças. Com isso nas
creches configurava-se um estado de assistencialismo e pouco resultado era percebido
em nível de educação.

Conhecendo a proposta do programa

O Proinfantil faz parte das políticas públicas do governo federal para educação
infantil e se caracteriza como um curso em nível médio, na modalidade Normal, que
proporcionou aos professores que atuavam como docentes nas instituições de
educação infantil, o domínio dos conteúdos do Ensino Médio, bem como a formação
pedagógica necessária para a melhoria da qualidade de sua prática profissional. Esses
professores não possuíam a habilitação mínima exigida e necessitavam se adequar
profissionalmente segundo a LDB 9394/96. Esta implementação aconteceu em várias
cidades brasileiras contando com a participação de centenas de professores. No caso
de Vitória da Conquista se inscreveram 80 (oitenta) professores cursistas.
O programa se concretiza como uma das políticas públicas voltadas para a
qualificação e potencialização dos profissionais da Educação Infantil, através de uma
implementação descentralizada, que reúne três níveis integrados que se articulam
para garantir o funcionamento e eficácia do programa. Os três níveis são os
componentes Nacionais (Secretaria de Educação a Distância – SEED; Coordenação
Nacional do Proinfantil – CNP), Estadual (Secretaria Estadual de Educação do Estado da
Bahia – SEC), e Municipal (Secretaria Municipal de Educação dos municípios
envolvidos). (BRSAIL/MEC. 2005, p. 19)
Os objetivos do Proinfantil além de promover a habilitação em magistério dos
docentes que atuam na Educação Infantil, é elevar o nível do conhecimento para a
melhoria da prática pedagógica, bem como a valorização do magistério e contribuição
da qualidade da educação para o maior desenvolvimento das crianças de 0 a 5 anos.
No que diz respeito à metodologia, o curso foi realizado na modalidade de ensino a
distância, com atividades presenciais, utilizando materiais autoinstrucionais
(impressos), atividades coletivas e individuais, e um serviço de apoio à aprendizagem
realizado por meio de tutoria e de comunicação permanente. A avaliação no programa
foi resultado de um processo contínuo e abrangente no qual zela pela integralidade do
professor cursista. Neste sentido, é entendida como parte inerente do processo de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 537


ensino e aprendizagem. Dessa forma, os resultados da avaliação devem servir para
orientação da aprendizagem, cumprindo uma função eminentemente educacional.
Vale ressaltar que um dos importantes instrumentos de avaliação do programa é a
construção de um portfólio no qual está incluído planejamento diário, registro de
atividades e memoriais. (BRSAIL/MEC. 2005, p. 9-19)
O Proinfantil foi implementado em Vitória da Conquista no ano de 2006, com
uma duração prevista para 2 (dois) anos. Este programa contou com a participação de
18 (dezoito) creches municipais e conveniadas, sendo 80 (oitenta) professoras
cursistas, 5 (cinco) tutoras, 7 (sete) professoras formadoras e uma coordenadora da
Agência Formadora que desenvolvia os trabalhos sobre orientação do Ministério da
Educação (MEC) e depois com a parceria da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
além do apoio constante das diretoras e coordenadoras das creches.

A pesquisa (Auto)biográfica: contribuições significativas

A pesquisa qualitativa no Brasil têm se intensificado bastante com o advento do


método (Auto)biográfico e as histórias de vida no campo da educação, efetivamente
no que diz respeito a formação de professores, baseados nos estudos de António
Nóvoa, um dos autores de referência nesta área, embora observa-se um grande
números de pesquisadores que estão debruçando sobre essa abordagem.
Para compreender o porquê da escolha desse método se faz necessário destacar uma
breve contextualização do momento histórico em que, segundo Passeggi (2010), ele se
adentrou no âmbito da comunidade cientifica e definir o que vem a ser uma pesquisa
do tipo biográfica. Os estudos apontam que seguindo um esquema temporal, ela
surgiu timidamente no século XX atrelado a sociologia. Nas décadas de 40 e 50 sofreu
uma espécie de crise advinda do crescimento da pesquisa quantitativa, mas retomou o
seu uso na década de 70, ganhado força principalmente em 1990.

As histórias de vida e os estudos auto-biográficos como metodologias de


investigação científica na área da educação ganharam visivelmente impulso
no Brasil nos últimos quinze anos. Em comparação com o período anterior, a
década de 1990 traz grandes mudanças, apresentando um crescimento
vertiginoso dos estudos que fazem uso dessas metodologias, genericamente
denominadas de autobiografias. (BUENO, CHAMLIAN, SOUSA e CATANI
(2006)

No Brasil o método foi introduzido por Nóvoa, embora tenha sofrido influências
de vários autores, como afirmo anteriormente. Na Bahia quem primeiro trouxe a
discussão sobre a pesquisa (Auto)biográfica e narrativas de histórias de vida foi Souza.
Para Souza (2006), os estudos e pesquisas sobre as histórias de vida dos professores
baseados sobretudos nas biografias e autobiografias, são de fundamental importância
uma vez que possibilita a inserção dos professores na discussão sobre as pesquisas no
campo educacional tomando-os enquanto sujeitos de sua própria história.
O método ou abordagem biográfica apesar de ter sido utilizado em diversas
áreas do conhecimento, tem se intensificado no campo da educação. Seu uso tem sido
alvo de incisivas críticas quanto a sua eficácia, no entanto, a qualidade e quantidade
das pesquisas apresentadas em vários congressos e seminários nacionais e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 538


internacionais só confirmam a singularidade desse método. Como asseveram Nóvoa e
Finger:

O método biográfico permite que seja concebida uma atenção muito


particular e um grande respeito pelos processos das pessoas que se
formam: nisso reside uma das suas principais qualidades, que o distinguem,
aliás, da maior parte das outras metodologias de investigação em ciências
sociais. Respeitando a natureza processual da formação, o método
biográfico constitui uma abordagem que possibilita ir mais longe na
investigação e na compreensão dos processos de formação e dos
subprocessos que o compõem. (NÓVOA e FINGER, 2010, p.23)

No método (Auto)biográfico o narrador faz uma retomada da sua história de


vida e/ou formação profissional para a partir dela refletir sobre suas ações, buscando
(re)significá-las. Nesse processo o narrador o faz de forma natural e se torna uma
ferramenta fundamental para o desenvolvimento da sua subjetividade. Do ponto de
vista de Kramer (1999, p. 133), resgatar a história das pessoas significa vê-las
reconstituírem em sujeitos sua cultura, seu tempo, sua história, reinventando a
palavra. Tal resgate é crucial para a construção de um conceito humanizado de
ciências.
Nesta pesquisa (Auto)biográfica, os instrumentos utilizados serão os
depoimentos e os memoriais de formação, pois este constitui uma ferramenta de
fundamental importância para o desenvolvimento de reflexão da vida tanto pessoal
quanto profissional. Neste esforço de escrever sobre sua caminhada o sujeito vai
elencando os momentos mais significativos da sua vida. Como afirma Passeggi (2010),
Nos memoriais, forma e conteúdo entrelaçam-se nessa busca de (re)conhecimento de
si. Como ato de criação, eles exigem o encadeamento de fatos significativos dentro de
uma lógica valorizante, cuidadosa, do percurso.
Na década de 30, os memoriais eram escritas predominantemente masculinas,
suas histórias eram voltadas para seus feitos históricos, no entanto com a
disseminação dos estudos autobiográficos, começou-se introduzir no Brasil essas
práticas vinculadas a formação de professores. Neste sentido, observa-se que a
primeira pesquisa sobre memoriais no Brasil, data de 1998/2000 e foi realizada por
Passeggi, trazendo para o âmbito educacional a discussão sobre a capacidade de
reflexibilidade dos memoriais.
Na opinião de Souza (2006), o contexto histórico e as discussões travadas no
âmbito da educação a respeito da validade da abordagem biográfica e as histórias de
vida enquanto opção metodológica na pesquisa de formação de professores tem
ajudado na compreensão da mesma fortalecendo o desenvolvimento de novas
investigações.
Portanto, o objetivo deste trabalho é discutir com base na pesquisa
(Auto)biográfica os resultados alcançados pelas docentes envolvidas no programa,
tomando como objeto de estudo os memoriais e depoimentos colhidos tanto com as
professoras cursistas quanto com as tutoras, diretoras e coordenadoras das creche que
acolheram o Proinfantil.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 539


Algumas reflexões sobre os resultados da pesquisa

Durante o período de duração da pesquisa 2012/2014, foram coletados os


instrumentos e realizada uma investigação a partir da análise dos memoriais e
depoimentos das professoras cursista envolvidas no programa, contando também com
a participação de diretoras, coordenadoras e tutoras, que relataram acerca da sua
relação com o Proinfantil e quais mudanças na prática das professoras cursista
puderam observar tanto no decorrer do processo de aprendizagem quanto depois da
conclusão do curso. Vale ressaltar, que todos os nomes que aparecem nas citações de
memoriais e depoimentos são fictícios a fim de preservar a integridade das pessoas.
No inicio do programa, segundo as leituras dos memoriais observados, o que as
cursistas mais temiam era a observação da prática pedagógica. Como não tinham o
hábito de planejar nem de realizarem atividades voltadas para educar, as professoras
cursistas se preocupavam com a reprovação e ficavam muito nervosas. Isso fazia com
que o desempenho na hora das visitas não alcançasse o resultado esperado.

No inicio do Proinfantil foi muito difícil por já ter bastante tempo que eu
tinha terminado o 2º grau. E na primeira fase presencial achei muito
estranho quando lá foi dito que teríamos que fazer (memorial, registro de
atividades, planejamento diário), e que seríamos observada na creche
umavez por mês pela tutora. (memorial – Eduarda)

Com o tempo, após entenderem o sentido real da observação, as cursistas


melhoraram bastante, apresentando relatos mais animadores em relação a este
instrumento de avaliação. Neste sentido, as tutoras relatam que também foram
contempladas com as observações, pois puderam conhecer melhor a prática das
professoras cursistas, o que as ajudaram nas outras avaliações.
De acordo com o que foi colhido nos memórias, na quarta etapa do módulo II, percebi
que o trabalho desenvolvido pelas professoras cursistas para as crianças, nas creches
foi muito mais proveitoso.
As professoras cursistas apontam que o Proinfantil abriu um leque de
conhecimentos fundamentais para o aprimoramento das suas práticas pedagógicas.
Compreendem também que com os debates tiveram a oportunidade de aprender mais
sobre o desenvolvimento das crianças e como poderia levá-las a fazerem suas
descobertas. Elas relatam com fluência como estão colocando em prática os
conhecimentos adquiridos nas disciplinas de Fundamentos da Educação e Organização
do Trabalho Pedagógico.

Em Fundamentos da Educação pude aprender como planejar, fundamentar


e implementar uma proposta pedagógica. Percebi a grande necessidade que
o meu espaço de trabalho tem de sistematizar esse documento [...] Com o
conteúdo de Organização do Trabalho Pedagógico, passei a entender o meu
papel enquanto agente responsável para a elaboração efetivação do
mesmo. (Memorial da professora cursista – Carla)

Contudo, foi observado que as professoras cursistas demonstraram


dificuldades quanto à didática para trabalhar com as crianças bem como na escolha do
conteúdo adequado à idade delas. Algumas argumentaram que isso se agravava mais
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 540
pelo fato delas não terem uma coordenadora pedagógica que as acompanhassem na
construção de um projeto pedagógico. Apesar das orientações das tutoras auxiliando-
as neste processo, ainda não era suficiente. Outro fator observado, que dificultou o
bom andamento das atividades das professoras cursistas, era muitas vezes, a própria
estrutura física das instituições que era bastante decadente e a falta de um bom
relacionamento com os pais. Certamente se as creches tivessem os pais como
parceiros muitos problemas seriam solucionados, uma vez que a parceria da creche
com a família das crianças é de fundamental importância para o desenvolvimento das
atividades que serão realizadas no decorrer do processo ensino aprendizagem.
Diante das leituras dos Memoriais percebi que os encontros quinzenais foram
muito úteis para o desenvolvimento da aprendizagem das professoras cursistas. A
troca de experiências que foi promovida nos encontros surtiu um efeito muito bom,
pois foi possível observar nos comentários das professoras cursistas. Como relata a
professora cursista Gabriela: Os encontros quinzenais são de grande valor, pois
compartilhamos nossas experiências e dificuldades. Ajudando-nos a lutar por um
futuro melhor.
Neste sentido, as diretoras e coordenadoras apontam que os resultados
obtidos através do curso foram muito satisfatórios, pois a mudança de postura das
professoras cursistas vêm sendo demonstrada de forma explícita. Elas estão se
tornando educadoras mais reflexivas e críticas, o que favorece o seu trabalho nas
creches. Para a diretora de uma creche em Vitória da Conquista,

Várias mudanças ocorreram após o Proinfantil. A motivação foi uma delas;


os docentes passaram a despertar muito mais interesse das crianças,
motivando-as na construção de novos conhecimentos. Passaram a ter mais
compromisso com a aprendizagem dos alunos, se tornaram mais
conscientes de sua responsabilidade e participam ativamente dos
planejamentos e execução dos mesmos. Lidam melhor com a diversidade de
questões que surgem na sala de aula considerando que a ênfase está no
processo de ensino aprendizagem. (Diretora de creche – Bernadete)

Para as professoras cursistas o programa foi uma experiência muito importante


tanto para a vida profissional quanto para a pessoal. Em relação à profissão apontam
que o crescimento e aprendizado foram de grande relevância, pois começaram a
refletir e analisar vários aspectos do trabalho que antes não haviam percebido como,
por exemplo, as opiniões, as idéias as queixas das crianças frente a determinados
assuntos. Quanto ao aspecto pessoal, elas alegaram que o Proinfantil foi o eixo
motivador no que diz respeito à elevação da autoestima, do conhecimento de si, bem
como da aceitação e superação das suas dificuldades.
Neste sentido, apresento depoimentos semelhantes de algumas professoras
cursistas que reforçam a afirmação anterior:

O Proinfantil foi a base para meu crescimento tanto profissional quanto


pessoal, foi depois do curso que me despertou o interesse em cursar uma
faculdade. O Proinfantil me deu a oportunidade de aprofundar os
conhecimentos na área da educação infantil. Tinha prática e com ele adquiri
a teoria que é essencial para uma boa prática pedagógica que evoluiu muito.
Agora estou sempre em busca de conhecimentos e até hoje estou colhendo
os frutos do Proinfantil. (Professora cursista - Sara)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 541
O Proinfantil foi a base para ampliar os meus conhecimentos e melhorando
assim a minha prática pedagógica. Agradeço ao Proinfantil a oportunidade
de desenvolver na prática os conhecimentos adquiridos. O Proinfantil me
despertou o desejo de cursar a faculdade no curso de Pedagogia, onde
aproveitei muitos conhecimentos já adquiridos no mesmo. (Professora
cursista – Simone)

O Proinfantil foi uma ótima experiência que tive o privilégio em participar,


foi muito importante na minha vida profissional e pessoal. [...] Hoje já
conclui a faculdade de Pedagogia e pretendo cursar uma pós-graduação.
Dessa forma, as novas descobertas e conhecimentos adquiridos com o
Proinfantil foram bastante significativos. (Professora cursista – Eliene)

A despeito disso foi mapeada a quantidade de professoras cursistas que


migraram para um curso superior após a conclusão do programa. Ainda com a
pesquisa em andamento foi possível observar que boa parte das professoras cursistas
sentiu-se motivada e desafiada a continuarem seu estudo a fim de dar continuidade ao
que foi começado no programa. Vale ressaltar que a grande maioria cursou ou está
cursando a graduação em Pedagogia, o que deixa evidente que o interesse é continuar
atuando na educação infantil.
Foi observado também que no decorre do curso, as professoras cursistas
apresentaram um desenvolvimento crítico reflexivo bastante aguçado em relação aos
primeiros e aos últimos memoriais. Na descrição de trechos dos memoriais da
professora cursista Eliene podemos observar um significativo avanço no que se refere
a sua preocupação com a aprendizagem das crianças.

As minhas aulas estão fluindo bem [...] já apliquei várias atividades como:
pintura, colagem, massinha de modelar, bolinha de crepom, tinta guache,
revistas, coordenação motora, confecção de cartaz etc. (Memorial 10- 03-
2006)
Quanto a minha prática, percebo a cada dia as mudanças e transformações
envolvendo o meu relacionamento com as crianças. Estou valorizando mais
os trabalhos feitos por elas e vejo o quanto elas tem a nos ensinar
(Memorial 28-09-2007)

No primeiro trecho, início do programa, sem adentrar na questão das


habilidades e competências que os Referenciais Curriculares Nacionais propõem para
Educação Infantil, sobretudo nas turmas de 3 (três) anos, bem com na confusão que a
professora fez em relação as atividades com os recursos utilizados na aula, observei
que sua preocupação era, exclusivamente, com sua atuação, dar conta do que havia
planejado e não com a atitude dessas crianças frente a essas atividades/recursos
realizadas. No entanto, no segundo trecho, quase no final do programa a professora
começa a ter uma melhor compreensão do seu papel enquanto educadora. Ela faz
uma crítica a sua prática anterior.
Neste sentido, percebi o que o programa proporcionou à essa professora
cursista, e pude também constatar em memoriais de outras tantas, jus às observações
de Nóvoa em relação à criticidade do professor em seu processo de formação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 542


A formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça
aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as
dinâmicas de auto-formação participada. Estar em formação implica um
investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os
projetos próprios, com vistas à construção de uma identidade, que é
também uma identidade profissional. (NÓVOA, 1992, p.25)

Nos depoimentos das tutoras do programa o que ficou muito claro foi à
questão do assistencialismo que permeava as práticas das professoras cursistas. Em
conversas informais e outras relatadas, uma das tutoras revelou que no início das
visitas ficou horrorizada com o cenário em que se constituía a creche. O cuidar estava
visivelmente desarticulado do educar. O trabalho era feito sem nenhuma preocupação
com a aprendizagem da criança. Observa-se que neste depoimento da professora
cursista ela reflete acerca da indissociação do cuidar e educar, mas que só foi possível
essa percepção após seu ingresso no curso.

Através do Proinfantil passei a ter um novo olhar para minha prática


pedagógica. Antes eu encarava a minha função de monitora de forma
assistencialista. Pensava que cuidado da higiene, segurança e dando afeto às
crianças, meu trabalho estava sendo bem realizado.
Ao cursar o Proinfantil entendi que sou professora. Entre as minhas funções
está ajudar meus alunos a fazer descobertas, aprender de forma lúdica,
desenvolver em sentido físico, emocional e social. É brincando que as
crianças aprendem regrinhas de convivência, respeito e cooperação.
(professora cursista – Andressa)

Neste sentido, para a vice-diretora de outra creche em Vitória da Conquista, as


mudanças foram muito visíveis no trabalho das professoras cursistas formadas pelo
programa, não apenas no que se refere a aspectos conceituais, mas na prática
educativa cotidiana que passou a evidenciar a superposição do educar em relação ao
simples cuidar. Segundo ela, o cuidado era a única vertente que se via no trabalho
dessas funcionárias. Assim, as respostas dadas pelas tutoras do programa nos
depoimentos em relação às mudanças observadas da prática pedagógica das
professoras cursistas está demonstrada neste depoimento:

Foi de grande relevância a implementação do Proinfantil no município de


Vitória da Conquista. Foi gratificante acompanhar algumas cursistas onde
observei mudanças significativas nas suas práticas pedagógicas. Durante as
visitas realizadas por mim em algumas creches ficou nítido que as cursistas
que fizeram parte do Programa além de cuidar das crianças elas propiciavam
a elas brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada os quais
permitiam às crianças um desenvolvimento pleno. (Tutora do Programa –
Luísa)

No depoimento desta outra tutora:

Sem sombra de dúvidas a implementação do Proinfantil foi de suma


importância para o aprimoramento da prática pedagógica na Educação
Infantil. Mediante a aplicação deste, pode-se perceber um maior
desenvolvimento das profissionais. Em conjunto eram estimuladas a corrigir

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 543


seus déficits e aprimorar seus acertos, o que reflete hoje no ensino
aprendizagem. (Tutora do programa – Maria)

Na fala das pessoas envolvidas no programa, a exemplo de uma das vice-


diretoras das creches, o Proinfantil deu uma contribuição muito significativa para o
ambiente de trabalho, pois, além de proporcionar formação pedagógica inicial,
estimulou a continuação dos estudos por muitas cursistas que hoje estão na
Universidade. A vice-diretora argumentou que participou ativamente do programa
dando orientações às funcionárias quando foi solicitada e que esse acompanhamento
acabou por fortalecer o seu processo de ação-reflexão-ação no lócus de atuação se
descobrindo uma "apaixonada pelo Proinfantil".
Outro aspecto relevante citado pelas professoras cursistas, diretoras, vices e
tutoras foi o incentivo financeiro que a Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista
deu a essas servidoras, o que as fez se sentirem mais valorizadas do que antes. Embora
o fato de haver uma grande diferenciação entre o salário do monitor e o salário do
professor ainda suscitar grandes revoltas e questionamentos por parte da maioria.

Considerações da pesquisadora sobre os resultados

Falar dos resultados desta pesquisa olhando de fora, sem ao menos contribuir
com o que está dentro, buscando um caminho pedregoso a fim de alcançar o objetivo
desejado não foi tarefa fácil. O fato de ter atuado enquanto tutora do programa
possibilitou uma visão mais ampla, mas também desconstruiu algumas inquietações
que permeavam o senso comum da pesquisadora. As dificuldades encontradas
durante a pesquisa demarcou o lugar de onde é preciso avançar nas questões.
Nesta perspectiva é bastante pertinente a discussão acerca das políticas
públicas implementadas pelo governo em qualquer esfera da sociedade, no entanto,
quando se trata de formação de professores a desconfiança ainda é maior devido ao
crescente número de cursos “aligeirados” que se configuram no âmbito da educação.
Vale ressaltar, que a ideia de associar essas políticas a tantas outras infundadas não é
feita de forma ingênua, pois a sociedade brasileira tem vivido momentos de
sufocamento como inúmeras tentativas do governo de maquilar a educação brasileira.
Embora a pesquisa não tivesse o propósito de avaliar o programa do governo, mas sim
analisar através de um dos instrumentos de avaliação a reflexão que os envolvidos no
programa têm a respeito de sua própria prática a partir da implementação deste, foi
possível observar que os autores não teceram críticas a respeito. Se as tinham
guardaram para serem usadas no momento mais propício. Portanto, outras
interpretações que aparecerem nesta pesquisa não dizem respeito a minha análise.
A realização da pesquisa foi um período intenso, as idas e voltas às creches
colhendo o material para a análise revelou algo que não estava previsto nesta
discussão. Alguns professores ainda apresentam uma grande resistência com a escrita,
mesmo que esta se configure como um exercício espontâneo. Os memoriais já escritos
durante o curso foram disponibilizados com muita tranquilidade, mas quanto aos
depoimentos apesar de oralmente declararem ter gostado muito do programa
apresentaram certo desconforto ao escreverem a respeito.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 544


À medida que a investigação acontecia, houve certa inquietação da minha
parte enquanto pesquisadora no sentido de compreender os impactos que o programa
estava causando em cada sujeito, uma vez que cada um, apesar de receber a mesma
formação, reage de maneira diferente. Tentei, portanto, abarcar o maior número
possível de professoras cursistas na pesquisa, mas por motivos vários que independem
do meu controle não foi possível. Penso que talvez essas que não foram ouvidas
pudessem dar alguma visão diferente do que foi o programa para elas. No entanto,
fico com o resultado parcial das que foram investigadas.
O Proinfantil foi para a maioria dos envolvidos no programa um difusor de
conhecimento que trouxe um momento de grande reflexão e construção na formação
docente das professoras que atuavam na Educação Infantil do município sem nenhuma
qualificação para trabalharem com crianças pequenas. O programa despertou nas
professoras o desejo de buscarem uma formação superior, bem como a valorização do
seu trabalho, exigindo do município um incentivo para trabalharem na área.
Assim, o mapeamento que foi realizado com esses sujeitos não constitui uma
pesquisa acabada, como foi dito anteriormente, pois seus resultados deram margens a
outras análises que dizem respeito não somente a formação, mas a identidade e
subjetividade das pessoas envolvidas. Neste aspecto torna-se possível construir a
partir desse arcabouço os elementos para novas interpretações.

Referências
BRASIL, lei nº 9.394, de 20.12.96, Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação.
Brasília, 1996.
BRASIL/MEC. Estabelece os Subsídios para Credenciamento e Funcionamento de
Instituições de Educação Infantil - Vol. 01. Brasília, 1998.
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BUENO, Belmira Oliveira; CHAMLIAN, Helena Coharik; SOUSA, Cynthia Pereira; CATANI,
Denise Barbara. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e
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sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 545


PASSEGGI, Maia da Conceição. Memoriais autobiográficos: escrita de si como arte de
(re)conhecimento. In: CORDEIRO, V.M.R; SOUZA, E. C. (Orgs.). Memoriais, literatura e
práticas culturais de leitura. Salvador: EDUFBA, 2010.
SOUZA, E. C. A arte de contar e trocar experiências: reflexões teórico-metodológicas
sobre historiais de vida em formação. Revista Educação em Questão, Natal, RN:
EDUFRN, 2006, V. 25, Nº 11, jan./abr. , 22-39.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 546


Nas enunciações biográficas, as artes da professoralidade

Rosane Alves Rodrigues


UNEB
rosane_alves90@hotmail.com
Rita de Cássia Santos Côrtes
UESB
ritalice@yahoo.com.br

Há algumas décadas, muito se tem escrito e discutido sobre o papel do professor e acerca de suas
práticas pedagógicas desencadeando importantes polêmicas em sua evolução histórica.
Contemporaneamente, tais estudos ganharam outras vertentes e acoplam-se a dimensões que
exploram e valorizam a constituição da docência. Nesse sentido, encontra-se na primeira fase deste
trabalho uma investigação de cunho formativo que traz em si intenções de problematizar os processos
que envolvem o vir a ser professor e os sentidos da docência nos anos iniciais da educação básica. Sua
problemática desenvolve-se em torno das seguintes questões: De que modos se constituem os
denominados movimentos de professoralização especialmente relacionados aos anos iniciais da
educação básica? Como se compõe a professoralidade voltada para tal segmento escolar? Seu campo
investigativo específico vincula-se a uma escola pertencente à rede pública municipal de Jequié e conta
com a cooperação de cinco professoras com mais de dez anos de docência. Apresenta-se acoplado a
vieses epistemológicos e metodológicos conectados à abordagem (auto)biográfica, a qual vem se
configurando não só como um instrumento de investigação, mas como uma ferramenta de extrema
importância no processo de (auto)formação relacionado à práxis humana. O processo de coleta de
informações, como produção de significantes, está a envolver estratégias de observações diretas do
ambiente escolar, da ação docente e do fluxo curricular, da linguagem como forma de constituição de si
– de narrativas e diálogos com os partícipes da pesquisa a ocorrerem como um processo
investigativo/formativo. Espera-se que, da emersão no humano, situações, fenômenos e realidades de
ser, sendo professor, sejam desveladas e que resultem num levantamento de possibilidades de
crescente qualificação da professoralidade em esferas públicas de ensino.
Palavras-chave: Professoralização; Professoralidade; (Auto)biografia; Formação de professores.

Elementos introdutórios

“...o nosso sistema social encontra-se integralmente em cada um


de nossos atos, em cada um de nossos sonhos, delírios, obras,
comportamentos. E a história desse sistema está contida por inteiro
na história da nossa vida individual.” (Franco Ferraroti)

Um novo saber que se insere nas ciências da educação a partir da década de


1980 quando muitos teóricos têm se debruçado na investigação do papel do professor
reconhecendo-o como um sujeito que ocupa um lugar de destaque no cenário
educacional e mais amplamente como pessoa humana permeado de subjetividades e
não apenas voltado para as metodologias e técnicas do seu fazer pedagógico. Essa
nova ciência, que se opõe aos métodos tradicionais de investigação é denominado
método biográfico (BUENO, 2002) está intrinsecamente ligado ao sujeito como um
todo e tenta-se assim, desenhar como esse profissional vem se constituindo em sua
seara que é a sala de aula.
Baseando-se nessa nova vertente sensibilizadora, que busca articular meios
favoráveis com a finalidade de que haja uma viagem para dentro de si mesmo, através
de ateliês, que esse trabalho inclina-se, para ouvir do professor sobre como se vem a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 547


ser o que está sendo, sobre como se constitui a sua professoralidade, a sua
professoralização. Assim, compreende-se que antes de exercer essa marca – de ser
professor (VILELA, 2013) – essa pessoa já estava constituída no seu ideário humano e
traz em si nuances e experiências vividas em todos os espaços por onde tem circulado
e durante todo o tempo, que refletem na sua trajetória profissional transformando e
modificando o seu fazer pedagógico.
Nesse sentido, encontra-se na primeira fase deste trabalho uma investigação
de cunho formativo que traz em si intenções de problematizar os processos que
envolvem o vir a ser professor e os sentidos da docência nos anos iniciais da educação
básica.
O campo investigativo específico vincula-se a uma escola pertencente à rede
pública municipal de Jequié e conta com a cooperação de cinco professoras com mais
de dez anos de docência. Apresenta-se acoplado a vieses epistemológicos e
metodológicos conectados à abordagem (auto)biográfica, a qual vem se configurando
não só como um instrumento de investigação, mas como uma ferramenta de extrema
importância no processo de (auto)formação relacionado à práxis humana. As
metodologias aplicadas no recolhimento de informações, como produção de
significantes, estão a envolver diversas situações que podem ser elencadas da seguinte
maneira: observações diretas do ambiente escolar, da ação docente e da estrutura
curricular, da linguagem como forma de constituição de si, de narrativas e diálogos
com os partícipes da pesquisa a ocorrerem como um processo investigativo/formativo.
Trata-se, portanto, nesse trabalho investigativo. Espera-se que, da emersão no
humano, situações, fenômenos e realidades de ser, sendo professor, sejam desveladas
e que resultem num levantamento de possibilidades de crescente qualificação da
professoralidade e da professoralização em esferas públicas de ensino.
Acrescenta-se aqui, que, ao usar os termos professoralidade e
professoralização, esse texto apropria-se ainda de Vilela (2013), cujo autor além de ser
seu criador, apresenta uma nova concepção sobre o significado de estar sendo
professor, ao dizer que ser professor é uma marca que se produz no sujeito.
Ao optar pela abordagem (auto)biográfica, urge a necessidade de salientar que
a importância reside em se perceber como autor do texto produzido e não autor da
vida investigada, pois o que de fato interessa é, conforme citado anteriormente, o
processo de constituição de si, a subjetividade. Procura-se assim respeitar a
expressividade dos participantes da pesquisa, visto que cada pessoa se sujeitou à
colaboração a esta proposta de trabalho. O trabalho se desenvolve durante todo o ano
em curso e tem o objetivo de provocar nas professoras a experienciar o desafio de
participação nos ateliês para melhor compreender a compreender como vem
ocorrendo o seu itinerário educativo mesmo antes de tempo de escolarização, com a
proposta para que elas exteriorizarem como vêm se constituindo em sua
subjetividade.
O corpo deste texto encontra-se estruturado em três partes. Num primeiro
momento, é feita uma exposição sobre o método (auto)biográfico ao mesmo tempo
em que justifica-se a escolha por essa abordagem, em seguida, explora-se a questão
dos movimentos de professoralizade, tendo como base teórica os fundamentos de
Pereira, e num terceiro momento tenta-se compreender o território denominado
escola em toda a sua dinâmica como estrutura, currículo, lugar de saberes, formação

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 548


de pessoas, ao mesmo tempo em que são descritos alguns aspectos observados no
cenário escolar em que está se efetivando a pesquisa. Continuando, são feitas
considerações que não são caracterizadas como definitivas no intuito de que sejam
questionadas ou enriquecidas posteriormente, por outros autores interessados em
debater o assunto.

Uma nova ciência a serviço do humano

“As novas concepções de Ciência, ao impor uma reflexão


mais aprofundada sobre a existência humana, me impelem a compor uma
reconstrução de trajetórias, ambientes e reativação de saberes, no intuito
de influir na tecedura de novas possibilidades de futuro; além disso, de
explicar, para mim mesma, certos matizes ressonantes que envolvem a
profissão docente, profissão que escolhi como opção de sobrevivência e de
prazer.” (Jussara Midlej.

Intrigado com o saber moldado pela ciência, que em diferentes épocas passou
por mudanças epistemológicas, embora sempre a serviço de um modelo dominante,
FINGER (1988) busca em suas raízes epistemológicas esclarecimentos sobre tais
modelos apresentados em diferentes épocas e contesta-os, oferecendo um outro
saber que fundamenta-se numa metodologia voltada para uma prática social
debruçada na investigação a que ele denominou de método biográfico e refere-se ao
mesmo como um saber epistemológico alternativo. Este outro saber dá voz ao sujeito-
professor oportunizando-o frequentar o seu passado histórico oferecendo
possibilidades de refletir e ressignificar suas práticas pedagógicas. Esse novo saber –
biográfico - justifica-se pelo fato de valorizar a subjetividade que implica uma
investigação-formação, é a autopoiética. Assim o professor passa a fazer parte do
cenário educacional não mais sendo visto ou se vendo como um cumpridor de
recomendações e tarefas advindas de autores que muitas vezes não exerceram a
experiência docente, permitindo-se repensar suas ações a partir do momento em que
elas são evidenciadas e insere-se em uma tomada de consciência, o saber mecanicista
é substituído por um saber reflexivo e critico, e esses possuem uma finalidade
emancipadora e por isso deveria constituir a “primeira preocupação da pedagogia”
(FINGER, 1988, p.126).
Um papel essencial da pedagogia seria o de propor ao professor a
rememoração de sua constituição e não somente de seu conhecimento técnico e
científico, ou de elencar seu papel como mediador através dos teóricos que criam
métodos, repensam a escola, tecem críticas, reconstroem a educação. O professor,
outrora pessoa cujo grito não ecoava, era indiferente ao olhar pedagógico enquanto
sujeito crítico, sua voz interior também foi sendo sufocada por um longo período de
tempo. Porém, nesse comportar-se da pedagogia há um olhar exterior voltado ao
professor que oferece a inquietações a ponto de nos remeter a alguns
questionamentos: O que diz o professor de si mesmo? De seu ser sendo? Que
desvelamentos têm se constituído nele como um sujeito em formação? Como tem sido
sua trajetória mediante as experiências vivenciadas? Que situações o levaram à
escolha de tal profissão? O método biográfico surge, assim, como uma alternativa ao
saber científico moderno dominante visto que este último apresenta dois principais

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 549


problemas: o primeiro deles consiste em que o saber se apresenta cada vez mais sob a
forma de informações e o segundo é que esse saber encontra-se persistindo na forma
de um saber especialista para a pessoa (FINGER, 1988). O professor, nessa abordagem,
salta de narrador onisciente para narrador-personagem, aquele que é autor de sua
própria história.
A abordagem (auto)biográfica apresenta facetas que são desobedientes a uma
ordem cronológica visto que ao fazer uma retomada de sua história de vida, o sujeito
faz uma busca do passado, ao mesmo tempo em que pincela o já constituído com
aspectos do ser sendo desvelando suas experiências, nesse contexto, profissionais,
mas que estão encharcadas de fatos e acontecimentos pessoais, particulares. É a
oportunidade ímpar, por assim dizer que a pessoa pode rememorar sua itinerância sua
individuação compondo-a com o social por assim dizer, a célula passa a ser vista
através do núcleo e não mais da membrana. Por outro lado, compreende-se que a
(auto)biografia não é unicamente um relato confessional, pois ao constituir-se, a
pessoa de certa forma está entrelaçada em uma teia onde o individual se liga a outro
individual que se liga ao coletivo. Na situação do professor, este está assim
entremeado em estratos (PEREIRA, 2013) como a escola, por exemplo, e esta está
sob/e produzindo efeitos e influências de outras camadas estratificadas.
Constata-se que há um ganho fundamental em trabalhar com a abordagem
(auto)biográfica na medida em que o sujeito se refaz, refaz sua própria história, analisa
sua estética (PEREIRA, 2013). Há os registros das marcas que o tem constituído como
professor, ao tempo em que os movimentos da professoralidade configuram-se. São
práticas de formação que vêm à tona na constituição de si e estão a envolver
narrativas de percurso e histórias de vida de professores que são também formadores
na medida em lidam com o humano em formação. Apesar de Dominicé (2000) sugerir
o termo biografia educativa no lugar de (auto)biografia, esta última é o termo a que
convencionou-se empregar aqui no Brasil ao tratar-se de educação. Considera-se
também que se trata de uma (auto)biografia por compreender que existe uma
participação efetiva do biografado visto que este é um representante que exerce um
papel fundamental na realização da pesquisa, e todo o trabalho na realidade é
construído por ele, pois ao biógrafo cabe a tarefa de instigar, motivar, conduzir e
possibilitar condições situações favoráveis para que as histórias de vida sejam
explicitadas na coleta de dados. Consiste, para o biógrafo, a atividade de dar uma
formatação às narrativas, legitimá-las através do seu registro, expor, analisar, depurá-
las e tecer considerações. Assim sendo, pesquisado e pesquisadores tornam-se
interlocutores.

Itinerâncias

“A memória é a faculdade épica por excelência. Não se


pode perder, no deserto dos tempos, uma só gota da água
irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para
outra mão” (Ecléa Bosi).

Na pesquisa é utilizada para recolha de informações a produção de


significantes, tendo a linguagem como forma de constituição de si, tanto no âmbito da

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 550


oralidade quanto da escrita de professores. Com base nesse enfoque selecionado,
parte--se para a primeira estratégia que consiste em observações diretas ao ambiente
escolar, na ação docente e no fluxo curricular. Busca-se sempre observar situações,
fenômenos e realidades de ser, sendo professor. Faz-se necessário salientar ainda que
essa pesquisa busca desenvolver um trabalho baseado no viés da diferença na
formação docente e não no viés da identidade do professor, pois, procuram-se
indagações acerca do como e por que se vem sendo o ser o que é hoje. Para Pereira
(2013, p.35) os conceitos de identidade e diferença são entendidos da seguinte forma:
“[...] professoralidade não é uma identidade que um sujeito constrói ou assume ou
incorpora, mas, de outro modo, é uma diferença que o sujeito produz de si. Vir a ser
professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é diferir de si mesmo.
Partindo das construções conceituais de Pereira (2003), entende-se que a
professoralidade é um estado de desequilíbrio constante e por isso justifica-se a recusa
de trabalhar com a identidade já que este é um estado estável e estagnado dessa
forma o fluxo seria prejudicado. É importante salientar que quando se é utilizado a
expressão professoralidade nesse trabalho se tem como base o conceito desenvolvido
por Pereira, segundo o autor esse termo pode ser definido da seguinte forma “é vir a
ser professor, é uma diferença de si que o sujeito produz culturalmente (num campo
coletivo) num dos seus inumeráveis movimentos de ser no mundo.”
Vale ressaltar a importância da biografia e sua subjetividade na pesquisa, pois é
a partir dela que se faz uma leitura da realidade partindo do ponto de vista de um
individuo historicamente determinado, tendo em vista também que os materiais
(auto)biográficos podem sofrer algumas deformações a depender do tipo: os escritos
provêm do fato de ser um sujeito que se analisa e se reencontra e no caso dos orais
existe a ocorrência das interações entre o observado e o observador.
Busca-se como vieses metodológicos, trabalhar com a emersão do humano nas
diferentes situações de realidade. E para discutir e ampliar entendimento em relação à
formação é utilizado três conceitos discutidos por Pineau (1983, p. 99) que permeiam
o processo formativo, que são: heteroformação, ecoformação e autoformação.
A heteroformação representa ação dos outros, a ecoformação é referente a
ação do meio nessa formação ligada e totalmente dependente das duas ações
supracitadas, está a autoformação é a implicação do eu no processo formativo.
Segundo Pineau e Marie-Michéle (1983, p. 241) a autoformação é abordada “numa
perspectiva de autonomização educativa, segundo uma problemática de poder,
definindo-a formalmente como a apropriação por cada um do seu poder de
formação”. Em concordância com Pineau, Dumazedier afirma o seguinte em relação a
essa mesma problemática: “[...] reforço do desejo e da vontade dos sujeitos de regular,
orientar e gerir cada vez mais eles próprios o seu processo educativo” (1980, p.6). A
autoformação tem um papel fundamental no entendimento em relação a alguns
aspectos da vida, desmistificações de estereótipos e mudança de pensamento em
relação a alguns prenconceito.
Voltando para a pesquisa e como já foi dito anteriormente, está em fase inicial,
tendo sido concluído apenas as observações diretas (ambiente escolar, ação docente e
fluxo escolar) e conversações. O próximo passo do projeto serão as rodas de diálogos
que aconteceram da seguinte maneira: Com o intuito de trazer, emergir e rememorar
lembranças da infância, adolescência e/ou períodos iniciais da docência será levados

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 551


elementos vocativos como textos, filmes, poemas, cantigas de rodas, musicas entre
outros para de alguma forma trazer à tona as lembranças. É o momento de exercitar a
memória, rememorar o visto, o vivido, o vivenciado, mesmo bem anterior ao tempo de
escolarização, buscar as lembranças que marcaram o sujeito, é o tempo de trabalhar
na reconstituição de si. Subsequente, passa-se para o momento de suma importância
que são as narrativas de si. Em relação à importância desse momento das narrativas
Carmen Lúcia Pérez (2003) afirma o seguinte: “Possibilita o professor a se colocar
como sujeito de sua própria história. A narrativa autobiográfica é um texto “vivo”, de
um sujeito historicamente datado e socialmente situado; um texto que revela modos
de pensamento[...].” Esse sujeito da sua própria história oportuniza-se para verificar
como e em que medida a heteroformação e a ecoformação têm influenciado e
continuarão a influenciar na sua autoformação.
O momento dessas narrativas desenvolvidas nos ateliês deve ser especial, pois
sugere muita sensibilidade, porque ao provocar situações que possuem teor
sentimental muito grande para os pesquisados, requer toda atenção e habilidade para
que as reações que possam vir à tona não sejam confundidas com sentimentos de
fraqueza, é necessário então que haja um envolvimento maior do pesquisador no que
diz respeito à condução do trabalho prático. Em relação a esse momento Bakhtin
(2000) considera que o processo de narrativa é fazer de si um objeto para o outro e
para si mesmo e de sua própria voz uma segunda voz. E fazer essa segunda voz requer
muita coragem do sujeito, pois se torna um momento de confrontar a si mesmo
através da rememoração, das lembranças. Para Halbwachs (2003) essas lembranças
não são solitárias, pois apesar de não serem necessários testemunhos no sentido
literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível, eles
estão ali, presentes, pois ao lembrarmo-nos de um fato, então, lembramo-nos de
alguém que participou ou presenciou esse fato.
O universo escolar permanece subjacente na memória de cada um dos
indivíduos que um dia teve o privilégio de conhecer, investigar, mostrar-se de alguma
maneira íntimo ou estranho naquele espaço independentemente de atuarem com
sujeitos aprendentes ou ensinantes. Na literatura, por exemplo, vemos muitos autores
construírem personagens para autobiografarem etapas de sua vida no ambiente
escolar. Na obra O Ateneu, o narrador Sérgio reconstrói pela memória um pedaço de
seu passado, porém sabe-se que na realidade é uma obra de cunho autobiográfico
posto que se refere a uma parte da infância do autor Raul Pompeia. Em Cazuza, de
Viriato Corrêa essas memórias da infância na escola também são registradas, por isso a
obra de igual maneira é considerada um romance autobiográfico. JOSSO (2010, p.40)
salienta a importância dos contos e histórias da infância quando afirma que eles são os
primeiros elementos de uma aprendizagem sinalizadora para se compreender que ser
humano é também criar as histórias que simbolizam a nossa compreensão das coisas
da vida. Os primeiro elementos elencados por Josso e até mesmo os anteriores a eles
serão considerados fundamentais para esta pesquisa.

A dinâmica do espaço escolar

“Como num instantâneo, sob a luz de um flash, vemos a escola como


uma instituição, uma figura atualizada de uma realidade possível, um

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 552


lugar circunscrito por uma institucionalidade prática, concreta.”
(Pereira, 2003).

Há quem afirme que não há espaço mais conflituoso e heterogêneo que o


espaço escolar. É nesse ambiente onde o pessoal e o coletivo se misturam a tal ponto
que em algumas situações há a impossibilidade de se perceber o uno dentro do
coletivo. Esse palco homogêneo na estrutura arquitetônica, de aparência rígida,
geralmente também fixa e homogênea em sua estrutura curricular e recheado de
posturas ainda preconceituosas, pois reflete as normas tradicionais sociais com valores
mascarados vigentes, guarda, porém, em suas edificações, os mais variados
comportamentos e atitudes. Abrem-se as cortinas e a diversidade entra em cena.
A escola, território onde se dá o exercício das histórias e experiências narradas,
situa-se no coração de uma periferia do município de Jequié. No que diz respeito à
modalidade de ensino, atende ao ensino fundamental I e II. Porém houve um recorte
no direcionamento da pesquisa (auto)biográfica e preferiu-se realizá-la com cinco
professoras que estão em classes dos anos iniciais do ensino fundamental, mas a
escolha das biografadas ocorreu de forma aleatória, já que a escola possui nove classes
do referido segmento de ensino.
A unidade de ensino é caracterizada como uma escola inclusiva – aquela que
recebe estudantes com necessidades educacionais especiais -, embora se observe que
a mesma não esteja apta para atender a toda a diversidade porque não oferece uma
estrutura física adequada assim como profissionais qualificados para a demanda. No
entanto, embora apresente tamanho problema, verifica-se que os professores não
mostram nenhum tipo de rejeição na receptividade desses alunos com necessidades
educacionais especiais. Todavia, apesar de ainda estar apenas no início da
aplicabilidade da pesquisa, nota-se uma inquietação, ou melhor dizendo, uma angústia
das professoras pelo fato da forma como acontece a inclusão na escola e porque
reconhecem que não conseguem atender a tanta diversidade sozinhas, sentindo-se
impotentes diante da situação. Nesse contexto, percebe-se que esses aprendentes
especiais estão ali apenas com o objetivo da sociabilização visto que não há
desenvolvimento da aprendizagem e ao final de cada ano letivo, vão sendo
promovidos para o ano seguinte. Faz parte do escriturário da escola, além dos arquivos
documentais, o projeto político pedagógico (PPP), porém este não é de acesso
constante do corpo docente, ao passo que se encontra na diretoria escolar.
O currículo, que para GOODSON (2005, p. 21) é meramente um testemunho
visível, público e sujeito a mudanças, uma lógica escolhida para legitimar uma
escolarização, no que diz respeito à escola em questão, nota-se que é herdado de uma
educação tecnicista, permeada de um saber científico, está estruturado em áreas e
disciplinas, é organizado com vistas a uma educação formal conteudista trazendo o
referencial da teoria positivista. Ou, melhor dizendo, é um currículo baseado na cultura
dominante: ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do
código cultural dominante (SILVA, 2004, p. 35) e ainda, conforme salienta o autor, há
os aspectos do que ele denomina de “currículo oculto” que refere-se a outra
modalidade de currículo não formalizado mas que apresenta-se sutilmente no
ambiente escolar materializada em forma de organização dos ambientes, o que é
visível na arrumação das carteiras nas salas de aula ou de forma comportamental, que
evidenciam valores e aprendizagens privilegiando a forma social vigente. Nesse
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 553
espaço institucional, nota-se que há uma preocupação das professoras colaboradoras
na pesquisa em questão no que diz respeito à sua práxis educativa no processo ensino-
aprendizagem o qual consiste mais para dar uma resposta positiva à escola do que em
referir-se ao universo dos estudantes enquanto sujeitos-aprendentes. Como
justificativa para tal situação elas relatam que há as cobranças das avaliações externas
temporariamente, cujas avaliações as escolas são obrigadas a se submeterem e que
são classificatórias comprometendo, assim, autoestima da comunidade escolar como
um todo, pois é através dessas avaliações que se tem um diagnóstico de como anda a
saúde da escola e consequentemente da educação do município. É um exemplo de
realidade opressora a que FREIRE (2005, p. 41) refere-se, onde o sistema de exames
oprime o professor e este oprime os estudantes. Os professores reconhecem-se como
oprimidos e ao mesmo tempo opressores, mas ainda sentem-se muito impotentes
para se libertarem.
Apesar dos descaminhos evidenciados anteriormente alguns aspectos positivos
são observados na relação professora/estudante: é a afetividade existente entre as
professoras e suas classes. Há uma proximidade com cada um dos estudantes, essa
intimidade é verificada no trato com os mesmos, o fato de elas conhecerem sua
história de vida e a maioria de seus familiares e responsáveis. Além disso, há variados
gestos carinhosos como abraço, beijo no rosto, forma de tratamento, estudantes que
oferecem bombons e até flores às professoras, outros que oferecem ajuda fora e
dentro da sala de aula. Aos estudantes que apresentam mais dificuldades, ainda há a
prática das professoras fazer cuidadosamente as atividades no caderno deles com o
objetivo de acompanhá-los mais de perto, conforme elas ressaltam. Essa reciprocidade
de afetos desconstrói temporariamente o ambiente hostil que a escola enquanto
(des)estrutura proporciona. É o instante da emoção nas relações entre os sujeitos
envolvidos no contexto escolar.
A pesquisa, conforme já foi dito anteriormente, está em fase de
desenvolvimento, portanto, não convém antecipar considerações que podem interferir
num a análise futura de maneira mais criteriosa, por isso, o que se pode acrescentar é
que tendo em vista que as professoras participantes estejam inseridas em um sistema
que privilegia o conhecimento científico, e que a escola é um estrato, que está inserida
em outras camadas estratificadas PEREIRA (2003, p. 31), conclui-se, a priori que,
enquanto espaço de aprendizagem ela não está isolada em suas funções ao passo que
há toda uma conjuntura que interfere, como por exemplo, a família, a comunidade do
entorno escolar, o sistema político, vigente, entre outros. Ainda assim a voz do
professor pode ressoar de modo significativo nos sujeitos aprendentes, pois em se
tratando do segmento I do ensino fundamental, dois aspectos fundamentais podem
estar a seu favor: ele deve ser um sujeito autônomo em sua classe e sobrepor a
qualquer outra situação o princípio da afetividade, para que a aprendizagem aconteça
de forma prazerosa.
Considerando a importância do papel de ação social e politico que o professor
tem não só em sala de aula, mas também fora dela que Passegi (2011, p. 154) reafirma
a necessidade do método autobiográfico na transformação social do docente
enquanto sujeito ciente da sua importância e de sua função social “ [...] o individuo
deve assumir a tarefa de se reinventar a cada dia, diante das mais inesperadas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 554


situações, criadas pela mobilização social, os processos intensos de deslocalização e os
efeitos da informatização.”

Tecendo considerações provisórias

“Aprendi que é assim mesmo, que a gente perde os pedaços


não no sentido de desintegrar-se: somos todos um complexo muito
grande de práticas simultâneas e, a cada processo de desfazimento de si,
sobrevivem resíduos que garantem uma referência retentiva, de
memória, que não deixa a gente enlouquecer.” (Pereira, 2003)

Entende-se a importância da reflexão do docente acerca de sua própria prática,


possibilitando assim a compreensão dos caminhos percorridos para um melhor
entendimento de como se vem sendo esse professor que se é hoje. E um fator
fundamental na pesquisa é se observar a questão da subjetividade, pois, deve-se
compreender que não é uma simples questão de método ou de conteúdo. Como
afirma Pereira (2010) “ [...]considerar a condição humana em sua processualidade, isto
é, como sujeitos subjetivados no interior de práticas coletivas, institucionais e
sociais”(p.124). Busca-se entender, compreender e analisar da forma mais clara
possível de como esse sujeito funciona, como se constitui e se constrói dentro das
práticas elaborando seus conhecimentos e suas ações (PEREIRA, 2001).
Embora a pesquisa não tenha sido concluída e ainda esteja em andamento é
possível considerar quão grande torna-se o valor e a importância que ocorre nos
processos de pesquisar, conversar, discutir e rememorar em conjunto com os
professores e acrescente-se a isso a contribuição que se faz na formação e no
entendimento deles em relação a sua realidade. Ratifica-se ainda o fato de que os
processos (auto)biográficos e as narrativas de si não só ajudam os pesquisados a
refletirem sobre o seu processo de professoralidade mas também contribuem para os
pesquisadores, pois a reflexão do outro nos faz emergir e repensar os nossos próprios
movimentos de professoralidade. Coloca-se em voga, com essas ações, que esses
sujeitos além de se caracterizarem como sujeitos ensinantes são também sujeitos
aprendentes e que podem dar a si mesmos a visão de serem pessoas cada vez mais
conscientes.
Josso (1988, p. 64) clareia as ideias dos que se arriscam a adentrar no universo
da abordagem (auto)biográfica, cuja autora também prefere denominar de “Biografia
Educativa” que essa construção “é um fruto de um processo de reflexão que só
parcialmente aparece numa narrativa escrita a meio caminho do percurso seguido.”
Essa condição limítrofe de aparecer parcialmente leva à observação de que as
narrativas não aparecem em sua integralidade, representa um recorte por assim dizer
do sujeito pesquisado, etapas de uma vida humana que são desveladas, em se
tratando dessa pesquisa, cuja coleta de dados ocorre em forma de ateliês. Nesses
ateliês, os quais são organizados de diversas maneiras conforme sugestão e orientação
do pesquisador a que a autora chama de animador, ocorrem os momentos-charneira,
que é quando se dá a rememoração de práticas do professor pesquisado, que são
situados em fragmentos de sua vida identificados em espaços e tempos diferentes e
nesse momento acontece o conflito do pesquisador consigo mesmo. O instante
conflituoso é gerado por haver nesse momento uma ruptura, certamente à proporção

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 555


que ele é levado a reorientar-se tanto nas suas atitudes pessoais quanto nas ações e
reações perante aos diversos grupos sociais com os quais está envolvido, aos espaços
em que frequenta quer sejam naturais ou modificados pela ação humana, isso tudo
devido à tomada de consciência adquirida por ele. Pereira (2013, p. 19) aprofunda
mais essa experiência ao enfatizar que por sermos um processo de práticas
simultâneas, há constantemente um desfazimento em nossas experiências, mas que
esse desfazimento vem sempre acompanhado de um refazimento, de um novo
refazimento.
Discutindo ainda as ideias de Josso e Pereira, Freire (2004, p.39) propõe uma
“reflexão crítica sobre a prática na formação de professores”, e esse pensar a prática
deve acontecer tanto relacionada à prática atual quanto a já exercida no passado,
acrescenta o autor que somente desta maneira é possível melhorar as práticas futuras.
Com tudo o que já foi dito, compreende-se uma das formas de pensar
criticamente a educação é prioritariamente permitir ao professor que em sua
subjetividade ele mesmo reconstitua sua trajetória, que lhe sejam possibilitados vários
momentos-charneira, que em seus desfazimentos ocorram imediatamente condições
de refazimento e novos fazimentos.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 557


Revisão conceitual da pesquisa sobre formação de Educadores do Campo: desafios e
perspectivas contemporâneas para um novo projeto político-pedagógico

Sandra Regina Magalhães de Araújo


UNEB
magalhaes-araujo@uol.com.br
Eduardo José Fernandes Nunes
UNEB/PPGEduC
eduardo_nns@yahoo.com.br

Este artigo faz um levantamento das pesquisas realizadas nos últimos anos sobre a educação do campo
dentro dos principais espaços de discussão desse tema, seja nas agências públicas, nas universidades no
campo da extensão e dentro da própria pós-graduação em educação. Ressalta as pesquisas sobre o
tema da formação de educadores do campo; realiza uma abordagem teórico-metodológica, constituída
pela análise de documentos e fontes referenciais bibliográficas, além dos trabalhos apresentados em
anais de seminários e eventos. Na conclusão enfatiza a necessidade de elaboração de um projeto
político-pedagógico voltado para a formação de educadores do campo, com o apoio dos movimentos
sociais, dos agricultores(as) familiares e dos povos tradicionais.
Palavras-chave: Formação de Educadores do Campo; Educadores do Campo; Projeto Político-
Pedagógico.

Introdução

O tema formação de educadores do campo vem, pouco a pouco, ocupando


lugar de destaque nas discussões e reflexões, seja no âmbito dos Ministérios de
Educação (MEC) por meio da SECADI, do Ministério de Desenvolvimento Agrário
(MDA), pelo PRONERA, seja através dos cursos de graduação de Pedagogia com a
inclusão do componente curricular Educação do Campo108, seja por meio dos
programas de pós-graduação em educação e áreas afins, como também nos encontros
acadêmico-científicos, a exemplo do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do
Campo (ENPEC), dos Seminários sobre Educação Superior e Políticas para o
Desenvolvimento do Campo Brasileiro e do Encontro Internacional de Educação do
Campo, ocorridos simultaneamente, no âmbito da Universidade de Brasília (UnB),
promovidos pelo Observatório de Educação do Campo, nos anos de 2005, 2008 e 2010,
respectivamente.
Este trabalho pretende discutir a importância de um projeto político-
pedagógico para a educação do campo a partir das produções bibliográficas existentes
nas últimas décadas. Sem esquecer as grandes conquistas da educação nesse período
apresentamos o levantamento sistemático das apresentações orais e escritas sobre o
tema. O desafio e a motivação maior em torno do tema em foco se inscreve no
conjunto de movimentos e ações institucionais aonde finalmente vem ganhando
relevância a temática deste trabalho, num contexto de transformação da economia

108A Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por exemplo, incluí nos Cursos de Pedagogia, o
componente curricular Educação do Campo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 558


brasileira e, principalmente, por conta das mudanças sociais e tecnológicas que vem
ocorrendo nos espaços rurais em nosso país.
A presença dos movimentos sociais na definição das políticas públicas incide na
transformação da democracia meramente representativa para uma democracia cada
vez mais participativa. A nova contribuição dos movimentos sociais para uma educação
no/do campo é mais crítica e preocupada com os grupos atingidos pelo modelo de
desenvolvimento, fazendo com que novos projetos políticos de educação para o
campo surjam, não apenas repetindo modelos anteriores, mas procurando perceber os
movimentos de inovação necessários num mundo sempre em mudança e em rápida e
franca expansão e implosão.

Educação do/no Campo: outros espaços, novos sujeitos

Como parte deste movimento de debates e reflexões sobre e Educação do


Campo e, por extensão, a formação de educadores do campo, o XV Encontro Nacional
de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE), realizado na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), no período de 20 a 23 de abril de 2010, cujo tema foi Convergências e
Tensões no Campo da Formação e do Trabalho Docente, incluiu o Subtema – Educação
do Campo.
Na Coleção Didática e Prática de Ensino nº 2, parte III, sob a organização e
apresentação da Professora Maria Isabel Antunes Rocha, do Departamento de Ciências
Aplicadas à Educação da UFMG, resultado dos trabalhos apresentados, traz artigos que
problematizam essa especificidade de educação. Desse modo, os simpósios foram
organizados em três temas, a saber: Desafios e perspectivas na formação de
educadores do campo; Concepções, práticas e dilemas das escolas do campo;
Educação do Campo e Movimentos Sociais. Os referidos temas contaram com a
participação de pesquisadores que produziram reflexões focalizando aspectos
diferenciados sobre eles. De posse dos temas, a organizadora agrupou os artigos em
três partes, num total de oito textos. Na Parte I, destaca os trabalhos que discutem o
tema relativo aos desafios e perspectivas na formação de educadores do campo. Na
Parte II, agrupa os trabalhos que refletem as concepções, práticas e dilemas das
escolas do campo. Por fim, na Parte III, traz os textos que analisam a relação entre
Educação do Campo e Movimentos Sociais (ANTUNES-ROCHA, 2010).
O I Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo (ENPEC) e o I
Seminário sobre Educação Superior e as Políticas para o Desenvolvimento do Campo
Brasileiro, acontecidos simultaneamente no período de 19 a 21 de setembro de 2005,
na Universidade de Brasília (UnB), contaram com a participação de pesquisadores de
24 Estados da Federação e foram orientados sob os seguintes eixos temáticos: O
Campo da Educação do Campo; A Produção Pedagógica dos Movimentos Sociais e
Sindicais; Escola do Campo e Pesquisa do Campo (MOLINA, 2010).
A segunda edição aconteceu no período de 06 a 08 de agosto de 2008 nas
dependências dessa mesma instituição de ensino superior, reunindo um número
significativo de pesquisadores (MOLINA, 2010)3, implicados com as questões da
educação do campo e suas interfaces, entre estas, a formação inicial e continuada de

3
Estiveram presentes, neste encontro, 350 pesquisadores de todo o país (MOLINA, 2010).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 559
educadores que desenvolvem o magistério nos diferentes níveis e modalidades de
ensino: educação infantil, ensinos fundamental, médio, superior e educação de jovens
e adultos.
Com o apoio dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário (MDA), por
intermédio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA/INCRA,
e da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade e Inclusão – SECADI/Coordenação-Geral de Educação do Campo, tais
encontros trouxeram para o debate questões teóricas e práticas através das pesquisas
desenvolvidas nos programas de pós-graduação e de relatos de experiências
significativas, na perspectiva de subsidiar as políticas públicas interministeriais cujo
objetivo é contribuir com a promoção do desenvolvimento e da educação nos
territórios rurais. Busca, também, possibilitar a ampliação das articulações em âmbito
interinstitucional, com vistas à construção de uma agenda comum nesta área de
pesquisa (MOLINA, 2006).
No II Encontro, foram organizados cinco Eixos Temáticos, a saber: Eixo 1 –
Educação do Campo e Desenvolvimento; Eixo 2 – Formação e Trabalho Docente nas
Escolas do Campo; Eixo 3 – Políticas de Educação Superior no Campo; Eixo 4 –
Educação do Campo, Movimentos Sociais e Políticas Públicas; Eixo 5: Políticas de
Educação Profissional no Campo.
A análise realizada no Caderno de Resumos4 revelou um total de 115 trabalhos
aprovados dispersos nos diferentes eixos, sendo: 23 no Eixo 1; 30 no Eixo 2; 20 no Eixo
3; 33 no Eixo 4 e 9 trabalhos no Eixo 5. Do total de trabalhos inscritos, 27 abordam a
formação inicial e continuada de educadores do campo, distribuídos em três eixos, ou
seja: treze artigos no Eixo Temático 2; doze no Eixo Temático 3; e dois no Eixo
Temático 4.
O III ENPEC, juntamente com o III Seminário sobre Educação Superior e as
Políticas para o Desenvolvimento do Campo Brasileiro e o I Encontro Internacional de
Educação do Campo, iniciativas das universidades que fazem parte do Observatório da
Educação do Campo – CAPES/INEP, aconteceu no período de 4 a 6 de agosto de 2010
no Centro de Excelência em Turismo da UnB.
Esses eventos reúnem um número considerável de professores-pesquisadores,
estudantes de graduação e de pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento,
áreas afins e, portanto, dialogam, aglutinados nos seguintes Círculos de Produção de
Conhecimento (CPC): 1) Educação do Campo, Agroecologia e Soberania Alimentar; 2)
Formação de Educadores do Campo; 3) Educação Escolar do Campo; 4) Políticas de
Educação Superior no Campo e, 5) Educação do Campo, Movimentos Sociais e Políticas
Públicas.
Foram aprovados, pelo conjunto dos professores-pesquisadores que compõem
o Comitê Científico de cada CPC, 201 (duzentos e um) trabalhos assim distribuídos: 28
no CPC 1; 67 no CPC 2; 56 no CPC 3; 08 no CPC 4 e 42 no CPC 5. Quanto à formação de
educadores do campo, têm-se os seguintes dados de acordo com o Quadro abaixo:

4
O Caderno de Resumos foi entregue aos inscritos durante o credenciamento e contém toda a
programação do evento, contendo também, em anexo, um CD com os artigos aprovados .
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 560
Quadro 1 – Número de trabalhos que tratam da Formação de Educadores do Campo

Círculo de Produção do Conhecimento Número de Trabalhos


Educação do Campo, Agroecologia e
Soberania Alimentar 01
Formação de Educadores do Campo 67
Educação Escolar do Campo 04
Políticas de Educação Superior no Campo 04
Educação do Campo, Movimentos Sociais e
07
Políticas Públicas
Total 80
Fonte: Caderno de Resumos do III ENPEC (2010).

Os temas sobre a formação de educadores do campo foram os mais variados


possíveis, incluindo: Pedagogia da Alternância, História de Vida de Professores,
Relações Étnico-Raciais, entre outros. Contudo chama atenção para o número de
estudos que discutem o PROCAMPO, ou seja, 17 trabalhos, seguidos do curso de
Pedagogia da Terra, com sete (7) trabalhos.
Ainda tratando dos eventos acadêmico-científicos nos quais a educação do
campo e suas interfaces constituem objeto de estudo, tem-se a 34ª Reunião Anual da
ANPED realizada em Natal – RN no período de 2 a 5 de outubro de 2011. O GT 03 –
Movimentos Sociais, Sujeitos e Processos Educativos, por meio do seu Comitê
Científico, aprovaram 14 (quatorze) trabalhos que versam sobre diferentes abordagens
no campo da educação do campo, só para citar alguns: Projovem Prisional, Projovem
Urbano, Educação Infantil, Classes Multisseriadas, Educação do Campo e Movimentos
Sociais, Educação do Campo e Educação Especial, Juventude, Movimentos Sociais e
Universidade. Em relação à formação de educadores do campo, aparece um único
trabalho, de um dos autores deste artigo5. Esses dados provavelmente se justifiquem,
de um lado, pelos números de trabalhos que cada GT deve aprovar, e, de outro, pela
ausência de estudos inscritos que problematizem o tema em estudo.
O Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste (EPENN) é outro
espaço acadêmico-científico vinculado à ANPED e promovido pelo Fórum de
Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação do Norte e Nordeste, sendo
organizado pelo Programa onde vai ser sediado. Esse encontro bienal reúne
professores/pesquisadores das instituições de ensino superior, estudantes de
graduação vinculados aos projetos de iniciação científica, estudantes de pós-graduação
(mestrandos e doutorandos) e também mestre e doutores das referidas regiões. Seu
objetivo principal é o fortalecimento dos Programas de Pós-Graduação em Educação,
da pesquisa e da produção intelectual voltada para a área educacional.
O XX EPENN foi sediado na Cidade de Manaus – Amazonas, no período de 23 a
26 de agosto de 2011, sob a organização da Universidade Federal do Amazonas

5
O trabalho apresentado teve como título: ARAÚJO, Sandra Regina Magalhães de. “Formação de
Educadores do Campo: considerações a partir dos cursos de licenciaturas para os monitores das Escolas
Famílias Agrícolas”.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 561
(UFAM) e promovido pelas universidades federais e estaduais das Regiões Norte e
Nordeste.
Levantamento realizado pela autora da tese parte deste artigo, no Caderno de
Resumos de Comunicações do referido evento, de modo especial nos Grupos de
Trabalhos (GT) Movimentos Sociais e Educação (03), Formação de Professores (08),
Trabalho e Educação (09), Política de Educação Superior (11) e no de Educação e
Ruralidades (26), dada a proximidade com o tema em estudo neste trabalho,
identificou 26 trabalhos que tratam do tema Formação de Educadores do Campo,
assim distribuídos: três no GT 03; onze no GT 08; um no GT 09; quatro no GT 11 e sete
no GT 26.
Verifica-se, por meio dos dados acima, um número insignificante de estudos
que tratam do fenômeno em análise, ou seja, formação de educadores do campo, se
comparados com outras interfaces que o tema suscita, tendo em vista que o
documento pesquisado registra a existência de 275 trabalhos no GT (08) Formação de
Professores, contra onze (11) que problematizam a Formação de Educadores do
Campo neste mesmo GT6. Constata-se, portanto, um vazio, um silenciamento muito
grande em torno dessa área de conhecimento ainda marginal, e isso revela mais uma
vez, o mérito da tese.
Além dos eventos acadêmico-científicos referenciados, tanto em nível nacional
como regional, registra-se, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade (PPGEduC), o projeto de pesquisa intitulado Ruralidades diversas
–diversas ruralidades: sujeitos, instituições e práticas pedagógicas nas escolas do
campo, Bahia/Brasil, vinculado ao Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e
História Oral (GRAFHO), sob a Coordenação do Prof. Dr. Elizeu Clementino de Souza. O
projeto é desenvolvido em regime de colaboração entre a Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), por meio do grupo de pesquisa Currículo, Avaliação e
Formação (CAF), do Centro de Formação de Professores – Campus de Amargosa; e o
Centre de Recherche Interuniversitaire EXPERIENCE (Paris 13/Nord-Paris 8/Vincennes-
Sainte Denis)7.
Esse projeto de pesquisa, após sua aprovação pelos comitês científicos das
agências de fomento às pesquisas no campo da educação, vem desenvolvendo
diversas atividades, entre estas, pensar ações educativas de formação e autoformação
em torno da educação do campo, a exemplo do Seminário Ruralidades, Currículo e
Formação: sujeitos, práticas pedagógicas e multisseriação, realizado pelo GRAFHO e
CAF/UFRB, no município de Amargosa/Ba, no período de 15 a 17 de abril de 2009.
Registram-se ainda quatro encontros de estudos e de orientação de pesquisa
com os estudantes de pós-graduação (mestrandos e doutorandos) associados do
grupo e dos professores orientadores no município de Amargosa-Bahia e visitas às
escolas do meio rural, entre estes, de classes multisseriadas. Além dessas ações, é
6
Nos 275 trabalhos, estão inclusos os onze (11) que tratam da formação de educadores do campo.
7
A referida pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB), por meio do Edital FAPESB 04/2007 – Temático – Educação, e também do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do Edital MCT/CNPq 03/2008 – Ciências
Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Atualmente, conta com financiamento do CNPq, Edital Universal
14/2010. O projeto de pesquisa é composto por estudantes de Iniciação Científica do Curso de
Graduação em Pedagogia do Campus I/DEDC, de mestre e mestrando, como também de doutores e
doutorandos do Programa de Pós-Graduação.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 562
fundamental destacar as produções acadêmico-científicas que tratam do objeto de
pesquisa, publicados em periódicos reconhecidos tanto em nível nacional como
internacional, a saber: “Sujeitos e Práticas Pedagógicas nas Escolas Rurais da Bahia:
ações educativas e territórios de formação”, publicado pela Revista on-line Currículo
sem Fronteiras8; “Sujeitos, instituições e práticas pedagógicas: tecendo as múltiplas
redes da educação rural na Bahia”9, publicado pela Revista da FAEEBA: Educação e
Contemporaneidade, do Departamento de Educação/Campus I da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), vinculada ao PPGEduC.
Nessa trajetória de luta e labuta por políticas públicas bem como de discussões
que vêm acontecendo nos espaços acadêmico-científicos aqui destacados, no que se
refere à formação de educadores do campo, Antunes-Rocha (2010), a partir de sua
experiência com os cursos de formação de educadores do campo na Faculdade de
Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), junto aos
movimentos sociais e sindicais, a exemplo do Curso de Licenciatura em Educação do
Campo, destaca aspectos a serem considerados no perfil de um curso de formação de
educadores vinculados às escolas do campo, a saber: “[...] que tenha compromisso,
condições teóricas e técnicas para desconstruir as práticas e ideais que forjaram o
meio e a escola rural”. E mais, que o educador do campo precisa “[...] ter a
compreensão da dimensão do seu papel na construção de alternativas de organização
do trabalho escolar. Uma atuação que entenda a educação como prática social”
(ANTUNES-ROCHA, 2010, p. 395).
Ainda, como parte das reflexões acerca da formação do educador do campo
para as escolas do campo, Antunes-Rocha (2010, p.396) traz outras considerações:

[...] a formação deve contribuir para que o educador seja capaz de propor e
implementar as transformações político-pedagógicas necessárias à rede de
escolas que hoje atendem a população que trabalha e vive no e do campo.
Um educador do povo do campo para muito além do papel da educação
escolar. Um educador que assume seu papel como agente de
transformação da sua realidade pessoal e social.

Seguindo essa mesma linha de reflexão, isto é, de pensar, de problematizar a


formação de educador do campo, Prof. Miguel Arroyo lança um questionamento: Qual
a formação específica para ser educador(a) do campo? Para responder tal indagação, o
autor ressalta as reivindicações dos movimentos sociais nos programas de formação
de educadores do campo e destaca considerações fundamentais quanto à formação
deste profissional que venha a atuar nas escolas do campo e, portanto, os programas
deverão incluir, nos currículos de formação, os seguintes conhecimentos:

8
SOUZA, Elizeu Clementino de; SANTOS, Fábio Josué Souza; PINHO, Ana Sueli Teixeira de; ARAÚJO,
Sandra Regina Magalhães de. Sujeitos e Práticas Pedagógicas nas Escolas Rurais da Bahia: ações
educativas e territórios de formação. Currículo sem Fronteiras, v. 11, n.1, jan./jun. 2011. p. 156-169.
9
SOUZA, Elizeu Clementino de; SANTOS, Fábio Josué Souza; PINHO, Ana Sueli Teixeira de; ARAÚJO,
Sandra Regina Magalhães de. Sujeitos, instituições e práticas pedagógicas: tecendo as múltiplas redes da
educação rural na Bahia. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 20, n. 36,
jul./dez./ 2011. p. 151-164.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 563
[...] o conhecimento do campo, as questões relativas ao equacionamento da
terra ao longo de nossa história, as tensões no campo entre o latifúndio, a
monocultura, o agronegócio e a agricultura familiar; conhecer os problemas
da reforma agrária, a expulsão da terra, os movimentos de luta pela terra e
pela agricultura camponesa, pelos territórios dos quilombolas e dos povos
indígenas. Conhecer a centralidade da terra e do território na produção da
vida, da cultura, das identidades, da tradição, dos conhecimentos...Um
projeto educativo, curricular, descolado desses processos de produção da
vida, da cultura e do conhecimento estará fora do lugar. Daí a centralidade
desses saberes para a formação específica de educadoras e educadores do
campo. (ARROYO, 2007b, p. 167).

Além dos conhecimentos acima descritos, fundamentais para a formação


específica do educador do campo, Arroyo (2007b) traz outras considerações para dar
conta de pensar essa formação e, consequentemente, o processo de ensino e
aprendizagem nas escolas do campo. Primeiro, trata-se de construir uma rede de
escolas no campo com profissionais do e no campo, afinal, um dos “problemas”
presentes nessas escolas é a ausência de educadores oriundos das próprias
comunidades rurais. Estes devem levar para a escola sua herança cultural e os saberes
da diversidade enquanto formas de viver no campo, pois a maioria dos educadores das
escolas presentes no meio rural é proveniente da cidade. Desse modo, diz Arroyo
(2007b, p.169): “A maioria das educadoras e educadores vai, cada dia, da cidade à
escola rural e de lá volta a seu lugar, a cidade, a sua cultura urbana.
Consequentemente, nem tem suas raízes na cultura do campo, nem cria raízes”.
Contrários a essa lógica instituída nos e pelos programas ou projetos de
formação generalista, os movimentos sociais vêm defendendo cursos de formação em
áreas onde possam concentrar os formandos, cursos estes ofertados em regime
semipresencial, articulando a formação pedagógica com as experiências e vivências da
comunidade. Os movimentos sociais defendem, também, o ponto de vista de que o
professor/formador dos cursos tenha conhecimentos sobre a realidade do campo e a
especificidade de ser educador do/no campo (ARROYO, 2007b).
Segunda consideração destacada pelo autor é a construção de um corpo
estável de educadores nas escolas do campo, pois, com a ausência de um corpo
docente estável, provavelmente todo esforço quanto à especificidade da formação
inicial poderá se perder.
Formação para um projeto de campo é outra consideração que o autor
apresenta quanto à formação específica para ser um educador do campo. Para ele, a
ausência de políticas de formação de educadores se justifica pela própria inexistência
de uma política específica de educação do campo, enquanto um direito constitucional
de todos à educação básica, seja para as crianças, adolescentes, jovens ou adultos.
Nesse quesito, mais uma vez, os movimentos sociais têm sido decisivos, ao reivindicar
políticas públicas de educação e de formação alinhadas a um projeto de campo que
assegure a permanência da agricultura familiar ante o agronegócio, que luta pela sua
extinção. E mais: “[...] defesa da tradição camponesa, da cultura, dos valores, dos
territórios, dos modos de produção de bens para a vida de seres humanos. Essa é a
defesa mais radical do sentido social e cultural da educação do campo e da formação
de seus profissionais” (ARROYO, 2007b, p. 171).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 564


Finalmente, o autor traz mais duas considerações para responder a questão
inicial, ou seja, qual a formação específica para ser educador(a) do campo? A formação
assumida como política de Estado e superar o estilo delegado de formação. A primeira
destaca as reivindicações dos movimentos sociais, ao exigir do Estado políticas públicas
tanto para a educação do campo quanto para a formação dos educadores do campo.
Tal exigência visa a superação de programas e projetos temporários, supletivos,
experimentais e, como tal, não constituem políticas de Estado permanentes. Em
relação à segunda consideração, o autor chama atenção para o fato de que o processo
de implantação, implementação e financiamento dos programas são entregues aos
bancos ou agências de financiamento. É aqui, segundo ele, que os órgãos financiadores
incorporam nos programas ou projetos suas visões, ou melhor, suas concepções de
campo, de educação e o papel dos educadores e gestores ante esse estilo delegado de
formação.
Por fim, Arroyo (2007b) esboça alguns “traços” de uma política de formação
construídos pelos movimentos sociais, contrapondo-se aos “estilos” de programas e
projetos implementados pelas agências de financiamento e de outras formas de oferta
de cursos de formação de educadores do campo, a saber: políticas que afirmem uma
visão positiva do campo; políticas de formação articuladas a políticas públicas de
garantia de direitos; políticas de formação afirmativas da especificidade do campo;
políticas de formação a serviço de um projeto de campo e políticas de formação
sintonizadas com a dinâmica social do campo.
O perfil e a centralidade dos saberes a serem ensinados e aprendidos nos
cursos de formação de educadores do campo apontados pelos autores (ANTUNES-
ROCHA, 2010; ARROYO, 2007b) se mostram compatíveis com o perfil e a centralidade
de saberes e fazeres desenvolvidos pelos monitores do movimento educativo CEFFAs,
construídos na relação teoria-prática, ação-reflexão-ação, tendo em vista os quatros
pilares que orientam essas escolas: uma metodologia que está pautada no princípio da
Alternância integrativa, por meio de dois tempos-espaços formativos – o meio
socioprofissional (família/comunidade) e o centro escolar; uma Associação
responsável nos diversos aspectos – econômicos, jurídicos, de gestão, etc.; a educação
e a formação integral da pessoa, contribuindo para que o jovem construa a sua
personalidade e o seu futuro com a família e no meio em que vive; e, finalmente, o
desenvolvimento local sustentável e solidário através da formação de seus próprios
atores sociais (CALVÓ, 1999), conforme apresenta a figura abaixo:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 565


Esquema dos sete componentes em interação

Uma rede de Uma


parceiros concepção do
coformadores formador

Estatuto e Papéis

Um projeto
Prioridade dada à experiência
educativo
socioprofissional
Papéis

O jovem ator de sua


Um dispositivo Um contexto
pedagógico formação educativo
conteúdo- facilitador
método-
instrumentos

Figura 1 – Esquema dos sete componentes em interação. Fonte: Gimonet (2004, p.22).

(In)Conclusões

Nesse campo de preocupação com uma política de formação inicial voltada


para os educadores do campo, se inscreveu essa pesquisa, conforme nota de rodapé
número 1objeto de discussão e reflexão deste artigo, ao buscar compreender uma
experiência de formação inicial para os monitores das Escolas Famílias Agrícolas do
Estado da Bahia que atuam nas duas redes – AECOFABA e REFAISA –, cursos de
licenciatura nas áreas de História, Geografia, Letras, Biologia e Matemática, por meio
de convênio com a UNEB.
Essas escolas do ponto de vista metodológico adotam a Pedagogia da
Alternância. Essa pedagogia é desenvolvida numa interação entre jovens, monitores,
mestres de estágios e famílias, pois todos são parceiros, responsáveis e
comprometidos com a escola e com o desenvolvimento sustentável e solidário da
comunidade ou região, fazendo deles os principais agentes educacionais, como diz
Forgeard (1999, p. 67):

[...] a Alternância não consiste em dar aulas aos jovens, e em seguida pedir-
lhes que apliquem isto no terreno. Mas ao contrário, o processo de
aprendizagem do jovem parte de situações vividas, encontradas,
observadas no seu meio. Elas passam a ser fontes de interrogações, de
trocas e o CEFFA o ajuda a encontrar suas respostas.

A Alternância, portanto, proposta pelos Centros Educativos Familiares de


Formação por Alternância (CEFFAs), de acordo com Forgeard (1999, p. 69), “[...] não é

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 566


a justaposição de dois tempos: o da escola e o da empresa, mas sim de dois tempos
que se interpenetram mutuamente: a alternância integrativa”.
Para dar conta de colocar em prática a verdadeira alternância, ou seja, a
alternância integrativa enquanto uma atividade meio nos CEFFAs no qual teoria e
prática, ação e reflexão, empreender e aprender fazem parte de um mesmo processo,
foi necessária, a partir de um trabalho de investiga-ação e de estudos nas diversas
correntes didático-pedagógicas, a construção dos instrumentos didáticos da Pedagogia
da Alternância, a saber: Plano de Estudo, Caderno da Realidade, Serão, Visitas e
Viagens de Estudo, Colocação em Comum, Aulas e Cadernos Didáticos e Visitas às
Famílias.
Considerando a complexidade do papel que o monitor desempenha nas Escolas
Famílias Agrícolas, como também a exigência da LDB nº 9394/96 quanto à formação
dos professores para desenvolverem o magistério na Educação Básica, de modo
especial nos anos finais do ensino fundamental e médio, fez necessário uma formação
em nível superior especificamente para esse profissional, conforme já assinalado.
Dentre os aspectos que se buscou compreender, diz respeito ao projeto-
político pedagógico dos cursos. Ainda que para as coordenadoras da universidade os
objetivos propostos nos projetos político-pedagógicos dos cursos terem sido
alcançados, as lideranças do movimento educativo avaliam que essa formação em
nível superior possibilitou uma formação teórica mais consistente, entretanto, em
termos de movimento EFAs, deixou lacunas, apontadas mais adiante.
Desse modo, emerge a necessidade de pensar um novo projeto político-
pedagógico para as escolas do campo como também a formação dos educadores do
campo ser de fundamental importância considerando os perfis apontados por
Antunes-Rocha (2010) e Arroyo (2007b), inclusive, para que se estabeleça como
política pública de Estado.
Investigar esses cursos de formação inicial voltada para os
monitores/formadores, denominados nesta pesquisa de professores/estudantes, das
Escolas Famílias Agrícolas do Estado da Bahia, sob a concepção de formação de
educadores do campo na contemporaneidade, foi instigante, afinal, trata-se de um
tema de interesse da pesquisadora de um lado, e do outro, a implicação da mesma
com esse movimento educativo do/no campo. Daí as noções construídas por Velho
(2003) de familiaridade/proximidade e de distância/estranhamento terem sido
fundamentais para prosseguir o caminho, caminhado.
Os resultados revelaram que essa formação inicial foi uma experiência ímpar,
tanto na dimensão pessoal como profissional dos sujeitos/colaboradores da pesquisa
— professores/estudantes, professores/formadores — e também para o movimento
educativo EFAs da Bahia, confirmados pelas narrativas desses sujeitos e analisadas
neste trabalho. Do mesmo modo, para as coordenadoras dos programas especiais da
UNEB, que se alimentaram e retroalimentaram por meio dessa experiência de
formação inicial, curso de graduação em regime modular e em internato, pois serviu
de inspiração para a implementação de novos cursos de formação de professores.
Entretanto, como ocorre em todo processo formativo, essa formação
apresentou lacunas, entre as quais, a ausência de abordagem em torno da pedagogia
da alternância e da filosofia dos Centros Educativos Familiares de Formação por
Alternância. Acrescenta-se, ainda, a inexistência de componentes curriculares que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 567


abordassem a concepção de educação do campo e a formação de seus educadores na
contemporaneidade construída pelas organizações sociais do campo e pelas
Faculdades de Educação por meio dos seus professores/pesquisadores.
Contudo, espera-se que esta investigação possa servir de orientação para as
políticas de formação inicial e continuada para os educadores que desenvolvem ou
desenvolverão práticas educativas em escolas situadas no campo brasileiro,
considerando a diversidade de sujeitos e dos contextos sociocultural e político, entre
outros, presentes no meio rural.
Desse modo, faz-se necessário a elaboração de um projeto político-pedagógico
voltado para a formação de educadores do campo, com o apoio dos movimentos
sociais, dos agricultores(as) familiares e dos povos tradicionais.

Referências
ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel. Desafios e perspectivas na formação de educadores:
reflexões a partir do curso de Licenciatura em Educação do Campo desenvolvida na
FAE/UFMG. In: SOARES, L. et al. Convergências e tensões no campo da formação e
trabalho docente. Conteúdo: Educação de pessoas com deficiência, altas habilidades e
condutas típicas – Educação do campo – Educação, gênero e sexualidade – Educação
indígena – Relações raciais e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p.389-406.
Textos selecionados do XV ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de
Ensino, realizado na UFMG, no período de 20 a 23 de abril de 2010.
ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas de formação de educadores(as) do campo.
Caderno CEDES, Campinas, v. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago. 2007b.
CALVÓ, Pedro Puig. Introdução: centros familiares de formação em alternância. In:
PEDAGOGIA da Alternância: alternância e desenvolvimento. Brasília: Unefab, 1999. p.
15-24.
FORGEARD, Gilbert. Alternância e desenvolvimento do meio. In: PEDAGOGIA da
Alternância: alternância e desenvolvimento. Brasília: União Nacional das Escolas
Famílias Agrícolas do Brasil. 1999. p. 64-72.
GIMONET, Jean-Claude. Método pedagógico ou novo sistema educativo? A experiência
das Casas Familiares Rurais. In: UNIÃO NACIONAL DAS ESCOLAS FAMÍLIAS AGRÍCOLAS
DO BRASIL – UNEFAB. (Org.) Documentos Pedagógicos. Brasília: Unefab, 2004. p. 21-
31.
MOLINA, Mônica Castagna. C. (Org.). Educação do Campo e Pesquisa II. 1. ed. Brasília:
Nead, 2010. v. 1. 211p.
VELHO, Gilberto. O desafio da proximidade. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina
(Orgs.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003. p. 11-19.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 568


Narrativas de Vida na Formação do Sacerdote Redentorista

Sebastião Fernandes Daniel


UNISAL
sebastiancssr@gmail.com
Francisco Evangelista
UNISAL
francisco.evangelista@am.unisal.br

A presente comunicação discorrerá como se dá a Formação Religiosa Redentorista, inserida na Paróquia


Santo Afonso Maria de Ligório na cidade de Campinas. A motivação para esta pesquisa foi desencadeada
a partir do trabalho que desenvolvido na casa de formação religiosa (Seminário), junto aos jovens que
almejam serem futuros religiosos redentoristas. Se, por um lado, o objetivo é buscar, por meio da
pesquisa, como a paróquia, representada por suas lideranças, pode contribuir para a formação dos
seminaristas, por outro, analisa como oferecer a esses jovens um jeito de formá-los, tornando-os
sujeitos do processo de amadurecimento vocacional. Em fase final de pesquisa, buscou-se alcançar um
diálogo entre a casa de formação (Seminário) e a comunidade paroquial, a fim de estabelecer uma
ligação entre a educação formal acadêmica e a educação não formal, que acontece nas vivências
informais da própria casa de formação (Seminário) e no campo de atuação pastoral junto às treze
comunidades que formam a Paróquia Santo Afonso Maria de Ligório. Para tanto, como recurso
metodológico de trabalho, foram utilizados aos dados biográficos, autobiográficos, à história oral e à
imagem etnográfica, a fim de por esse parâmetro literário, as narrativas de vida de sete seminaristas
que se propuseram a colaborar com esta pesquisa e as respostas a um questionário respondido por
doze leigos de uma Paróquia onde atuam os religiosos da congregação redentorista, possibilitando um
quadro geral da formação necessária para o futuro padre. As narrativas de vida ou memórias de
formação nos ajudam a perceber que nenhuma vocação surge do nada, ela tem um sentido de existir
com o indivíduo contextualizado em uma determinada realidade histórica. A vocação religiosa
sacerdotal também é assim, ela é construída no decorrer da vida e das experiências que vão somando
na vida da pessoa. Ela é fruto de um meio. É parte de uma história.
Palavras-chave: Narrativas de vida; Fomação religiosa; Sacerdote.

Introdução

As narrativas de vida ou memórias de formação nos ajudam a perceber que


nenhuma vocação surge do nada, ela tem um sentido de existir com o indivíduo
contextualizado em uma determinada realidade histórica. A vocação religiosa
sacerdotal também é assim, é construída no decorrer da vida e das experiências que
vão se somando a ela. É fruto de um meio e parte de uma história. Vejamos essa fala
do Jonas:

“Um dia o pároco da época, Pe. Otávio, no final da celebração,


convidou todas as crianças para fazerem parte da pastoral dos
coroinhas. Consequentemente, minha mãe me colocou na pastoral
para que eu desse “sossego” a ela nas celebrações... E deu certo, pois
gostava do que fazia”.

A constituição do ser humano e de suas escolhas se dá a partir do ambiente


no qual está inserido. Entre diversos autores que discorrem sobre a temática das
escolhas, Vygotsky também ressalta a influência do meio. Para ele, o desenvolvimento

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 569


humano se dá, principalmente, pelo fato de o ser humano ser possuidor de história, de
culturas sociais de transformação da realidade. O indivíduo é adquiridor de materiais
que possibilitam a concentricidade das coisas vivas e inanimadas.
A psicologia sócio-histórica concebe o homem num sentido amplo, como um
ser dotado de cultura e história que lhe são anteriores e cabe a esse ser, num processo
interativo de trocas interpessoais com os outros membros de sua espécie e de
apropriação, a produção e a reprodução disso na sociedade à qual pertence.
(VYGOTSKY, 2009).
Na história da Igreja e das vocações religiosas, também acontece assim.
Quantas pessoas nós conhecemos que, ao ler a vida de algum santo, pelo testemunho
de alguém ou porque tem uma pessoa na família que é religiosa, sentiram-se atraídas
por esse modo de vida. Santo Agostino, citado como um dos grandes doutores da
Igreja, foi influenciado pelo Bispo Ambrósio. Assim cita o santo em um de seus diálogos
com Deus:

Assim que cheguei a Milão, encontrei o bispo Ambrósio, conhecido no


mundo inteiro como um dos melhores, e teu fiel servidor. Suas palavras
ministravam constantemente ao povo a substância do teu trigo, a alegria do
teu óleo e a embriagues sóbria do teu vinho. Tu me conduzias a ele sem que
eu o soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a ti.
(AGOSTINHO, 1997, p. 137).

Conduzido pelos ensinamentos do Bispo Ambrósio, Agostinho atinge a


maturidade da fé e da escolha vocacional. A experiência de Deus que fizera leva o
santo a expressar em tom poético essa oração de agradecimento a Deus: “Tarde te
amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas
dentro de mim e eu te procurava do lado de fora [...] Estavas comigo, mas eu não
estava contigo”. (IDEM, p. 299).
Com essa citação de Agostinho, estamos afirmando que as influências fazem
parte da vida humana e também das escolhas vocacionais em todos os tempos. Com
esse autor, percebemos a importância da narrativa em primeira pessoa, ou seja, o
estilo literário autobiográfico.
Essa experiência vivida por Agostinho continua, de maneira diferente,
acontecendo na vida dos vocacionados à vida religiosa. Nas narrativas vocacionais dos
jovens, percebe-se, em sua maioria, que ainda pequenos já exerciam alguma atividade
na igreja. As motivações dos pais ou de outras pessoas das comunidades ajudaram a
perceber que dedicar a vida pela causa do Reino de Deus é uma maneira de sentir-se
realizado. É o que descreve este jovem:

“Desde pequeno, sempre fui encaminhado na fé e crença no Deus


único e salvador, por meio de minha mãe, tanto que entrei para o
grupo de coroinhas de minha comunidade, na qual trabalhei por
muito tempo. Algum tempo depois, formei-me acólito, passando a
atuar em minha paróquia e, mais tarde, tornei-me cerimoniário,
trabalhando diretamente na catedral e nas paróquias da diocese.
Durante aquele período, tive a chance de trabalhar e construir um
caráter de pessoa responsável por mim mesmo e pelos outros,
também ajudei minha família”.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 570


Nessa narração, o jovem relata a importância de sua mãe em sua vida. Tem
consciência também que a comunidade o ajudou a amadurecer humanamente e
assumir compromissos. Mesmo estando bem com sua família e construindo sua
própria vida profissional, ele fala sobre a busca de algo a mais.

“Mas, dentro de mim, algo ainda não estava completo, faltava algo
em meu interior, algo que me completasse e me satisfizesse por
inteiro. Foi quando decidi fazer alguns encontros vocacionais com os
padres de Aparecida, os missionários redentoristas, os quais me
ajudaram em meu discernimento vocacional, encaminhando-me em
direção ao chamado de Deus em minha vida”.

Para a autorrealização da pessoa, o senso de responsabilidade é um dos


critérios para a construção da felicidade. Assumir responsabilidade, ser capaz de
suportar sempre maiores compromissos, dedicar-se sempre mais ao bem comum, com
renúncias múltiplas à própria comodidade e, muitas vezes, à própria vontade, é sinal
de amor amadurecido.
O chamado para a vida religiosa é compreendido pela Igreja como algo que
ultrapassa a racionalidade humana. Na bíblia, o vocacionado é diretamente
interpelado pelo mistério de Deus. “Quando eras jovem, amarravas o teu cinto e ias
para onde querias; quando ficares velho, estenderás as mãos e um outro atará o teu
cinto e te conduzirá para onde não queres”. (Jo 21,18).
Para muitos, essa primeira experiência acontece na comunidade paroquial.
Por isso, ela é um terreno vocacional, mas também um espaço de discernimento e de
formação. Tanto a experiência com Deus, como a formação, de modo progressivo, vai
acontecendo na vida dos jovens no contato com o povo e com os agentes de pastoral.
O agente exerce um papel de educador espiritual e social na comunidade. Ele busca
integrar fé e vida. “Todas as atividades desenvolvidas pelo educador social devem
também buscar desenhar cenários futuros”. (GOHN, 2010, p.54).
Na perspectiva desta pesquisa, pode-se dizer que isso acontece também
quando damos voz ao agente para contribuir no processo formativo dos seminaristas.
Em uma das perguntas do questionário: Como você acha que deve ser a formação do
seminarista que está se preparando para assumir a vida religiosa sacerdotal? Um dos
agentes respondeu:

“Uma preparação voltada para o conhecimento e vivência pastoral


para integração comunitária. Uma formação de dimensão
sociológica, antropológica e política”.

Ao responder a questão, o agente faz menção à importância de uma boa


preparação intelectual do seminarista, integrada com a realidade pastoral. Também
sobre esse aspecto, o Documento da V Conferência descreve:

O encontro com Cristo, Palavra feito carne, potencializa o dinamismo da


razão que procura o significado da realidade e se abre para o Mistério. Ela se
expressa em uma reflexão séria, posta diariamente em dia através de
estudo que, com a luz da fé, abre a inteligência para a verdade. Também
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 571
capacita para o discernimento, o juízo crítico e o diálogo sobre a realidade e
a cultura. Assegura de maneira especial o conhecimento bíblico-teológico e
das ciências humanas para adquirir a necessária competência em vista dos
serviços eclesiais que se requeiram e para a adequada presença na vida
secular. (DOCUMENTO DE APARECIDA: TEXTO CONCLUSIVO DA V
CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO AMERICANO E DO CARIBE,
2008, nº 280, p. 131-132).

De modo geral, os jovens têm consciência da necessidade de se ter uma boa


preparação a fim de que os auxilie a responderem às urgências pastorais do mundo
contemporâneo. Assim relata o seminarista Carlos Henrique:

“Aqui nós, formandos redentoristas, participamos, aprendemos e


auxiliamos na Paróquia Santo Afonso de Ligório na região do Campo
Grande. Verdadeiramente, a experiência do estudo de Filosofia
contribui, e muito, para a tomada de consciência e de posição,
possibilitando a análise, a crítica e a busca de alternativas de
mudanças das realidades em que vivemos, especialmente, na
realidade pastoral, por meio da reflexão, da liberdade e da libertação
do pensamento, participando e convivendo com povo”.

Nesse relato, fica evidente a inquietação do jovem pela busca de experiência


e de elementos que possibilitem a ele o exercício competente do trabalho apostólico,
pois a pastoral urbana quer ser um espaço de “ação-reflexão-ação”, um local em que
se pense a educação e se busque mais alternativas para a Igreja evangelizar. Nesse
contexto, a Pastoral da Educação quer encaminhar toda a sua reflexão e gestão na
assunção de uma evangelização inculturada em suas quatro exigências fundamentais:
serviço, diálogo, comunhão e anúncio. (OLIVEIRA J, 2001).
Ainda sobre as influências na vida humana, esse testemunho que segue,
contado por Diego, reafirma concretamente o que vários autores vêm nos dizendo do
modo teórico sobre os ambientes, as pessoas e o entorno de vivência do indivíduo e
dos grupos:

“A vocação, como chamado de Deus ao seu segmento, nasceu e


desenvolveu-se dentro do ambiente familiar. Meus pais sempre me
ensinaram os valores religiosos, cultivando em mim o amor a Deus e
à Igreja, sempre participando e incentivando participar da vida da
comunidade”.

O espaço familiar que permite à criança, ao adolescente e ao jovem falarem


de seus sonhos, suas fantasias e de seu futuro contribui para que o indivíduo cresça de
modo saudável, sem medo de arriscar-se, pois ele sabe que sempre terá o apoio da
família para fazer as escolhas que almeja. Na prática, pode não ser real, mas é um
caminho orientado por profissionais e pela própria Igreja.

No seio de uma família, a pessoa descobre os motivos e o caminho para


pertencer à família de Deus. Dela recebemos a vida que é a primeira
experiência de amor e da fé. O grande tesouro da educação dos filhos na fé
consiste na experiência de uma vida familiar que recebe a fé, a conserva, a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 572


celebra, a transmite e dá testemunho dela. Os pais devem tomar nova
consciência de sua alegria e irrenunciável responsabilidade na formação
integral dos filhos. (DOCUMENTO DE APARECIDA: TEXTO CONCLUSIVO DA V
CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO AMERICANO E DO CARIBE,
2008, n° 118. p. 66).

O espaço acolhedor no seio da família e na comunidade possibilita maior


segurança ao jovem para fazer uma escolha profissional ou religiosa. Contudo, nem
sempre, ao fazer uma opção, significa que ela será para toda a vida. Vemos vários
exemplos de pessoas que desistem de um curso antes do término e optam por outro;
outras que, depois de alguns anos de trabalho, mudam de profissão. Assim também
acontece na vida religiosa. Alguns, no decorrer do processo formativo, acabam
descobrindo distintas motivações, outros, depois de ordenados, descobrem que
aquela vocação já não faz mais sentido e recomeçam. No relato que segue deste
seminarista, após alguns anos de caminhada com os redentoristas, não se sente mais
identificado com o carisma da Congregação, e sim pela vida diocesana:

“Desde o ano passado venho refletindo juntamente com meus


formadores sobre a minha vocação, visto que, no contato pastoral
com o povo de Deus na paróquia onde atuo, venho despertando-me
para a vocação de sacerdote diocesano. Tenho rezado
constantemente sobre meu discernimento vocacional, entre a vida
religiosa e diocesana, também para aprofundar esse discernimento, li
um livro de São João Maria Vianney, me sinto profundamente
identificado com o perfil desse sacerdote que é um exemplo de
santidade para toda a Igreja. Por minha vontade, estou certo que
quero continuar o meu processo formativo na vida diocesana, por isso
estou entrando em contato com minha Arquidiocese, onde estão
minhas raízes e família. Pretendo ser um padre diocesano, servindo
com generosidade a minha diocese, na qual fui criado e recebi os
sacramentos de iniciação a vida cristã. Meus formadores, ao
tomarem conhecimento de minha decisão manifestaram-se apoio, e
ao mesmo tempo, gratidão pelos anos de minha vida dedicados à
família religiosa redentorista, a qual sempre serei grato pela
formação humana e cristã que recebi durante esse tempo.

Como formador desse jovem, fiquei satisfeito quando ele veio me falar de sua
inquietude e sua incerteza vocacional sobre a vida religiosa. Primeiro, porque ele
sentiu confiança para falar de seu novo discernimento; segundo, pelo fato de poder
ajudá-lo simplesmente com o gesto de acolhida e de apoio a sua nova escolha; e, em
terceiro, por perceber que a nossa metodologia de formação está contemplando o que
pede este Documento da CNBB, o Seminário como espaço de acolhida e de
discernimento vocacional:

Tendo em vista o objetivo de ajudar e de favorecer os jovens vocacionados a


chegarem à opção vocacional presbiteral, as dioceses, auxiliadas pela
pastoral vocacional, devem escolher e adotar ambientes, lugares e
instituições que são mais indicados para despertar os vocacionados para a
vocação humana, cristã e eclesial. Ajudá-los a perceberem os sinais
indicadores do chamado de Deus. Acompanhá-los nos processo de opção
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 573
vocacional consciente e livre; despertar e acompanhar os vocacionados na
vocação específica à vida e ao ministério presbiteral. (DIRETRIZES PARA A
FORMAÇÃO DOS PRESBÍTEROS DA IGREJA DO BRASIL, 2010, p. 52-53).

É ao longo do processo de discernimento que o indivíduo vai tomando


consciência do modelo de vida que mais o identifica. No relato acima, o jovem não
citou, porém, é certo que os estudos de filosofia também tenham ajudado em seus
questionamentos.
A formação filosófica é um dos elementos constitutivos da formação
presbiteral, quer para adequada interpretação do ser humano e do mundo, da história
e da sociedade, do pensamento humano e das correntes culturais e religiosas do nosso
tempo, quer como suporte para o diálogo com o mundo contemporâneo, ou quer para
a descoberta da dimensão transcendente da existência.
É importante dizer para o leitor que o nosso espaço de formação (Seminário),
na pessoa dos formadores, tem como primeira preocupação a formação humana do
indivíduo. Nosso objetivo primeiro é preparar a pessoa para a vida, independente da
vocação que ela vai escolher. Ao possibilitar uma boa formação ao jovem, acreditamos
que estamos contribuindo para preparar à comunidade ou à Igreja uma pessoa que vai
somar na construção de uma sociedade mais justa.
Nesse outro relato, o seminarista destaca a importância da comunidade
religiosa em sua vida. A partir do jeito de cada um ser e de viver a vida religiosa em
comunidade, o jovem vai se sentindo integrado e feliz com a escolha que está fazendo.

“O ano de dois mil e dose foi muito bom, ano em que uma nova
realidade foi apresentada surgiram obstáculos que ao longo do ano
foi sendo superado, as esperiencias de vida dos missionarios que
moram em nossa casa contribuíram ainda mais em minha vida, o
jeito brincalhão e administrativo do Irmão Walter, a seriedade
misturada com brincadeira do Padre Edvaldo, o trabalho pastoral
exercido pelo Padre Barreiro, os esforços, amizade, sinceridade e
preocupação dos nossos formadores padre Maciel e Padre Sebastião,
todos eles me ajudaram a ter a certeza de posso dar passos mais
firmes rumo ao objetivo, e a certeza de que posso confiar em cada um
deles”.

A vocação é construída e amadurecida a cada dia, as experiências vividas e


partilhadas nos diversos ambientes, no entorno do cotidiano, vão caracterizando o
sujeito a uma identidade vocacional. O autor que veremos a seguir fundamenta a
experiência narrada acima:

A antropologia da vocação cristã considera que a pessoa é um sujeito vivo,


em crescimento pessoal e em interação com pessoas, grupos sociais e
estímulos do ambiente; e, sobretudo, uma pessoa que deve responder a
esse ambiente a partir de uma intencionalidade consciente que a leva,
através de diferentes níveis de relação com o ambiente, à
autotranscedência na verdade, no bem e no amor. Nesse processo, a
vontade humana adquire um papel muito significativo como uma alavanca
desse crescimento e como exercício da liberdade a serviço da
intencionalidade consciente. Pois o candidato escolhe continuamente e faz

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 574


suas opções a partir do conhecimento que tem de si e de sua vocação, de
modo que em cada decisão, pequena ou grande, ele ativa todas as suas
potencialidades na direção que pretende seguir. É, nesse optar cotidiano,
nesse exercício contínuo de sua vontade, pode integrar todo o seu
psiquismo a serviço da resposta ao chamado que é a vocação. (DOMÍNGUEZ,
2010, p. 164).

Esse dinamismo existencial acontece na vida humana desde muito cedo. Ao


longo do desenvolvimento evolutivo, o indivíduo vai constituindo sua personalidade e,
ao mesmo tempo, caminhando em direção à sua autorrealização que também
acontece nesse processo. A realização e a felicidade não caem prontas do céu para
ninguém, são frutos de uma busca, de um esforço muitas vezes a duras penas, ou seja,
o sacrifício também é parte dos êxitos alcançados.
O próprio Jesus viveu esse dinamismo de amadurecimento, Ele foi se
descobrindo em sua caminhada e missão. Pode-se dizer que atingiu a Sua maturidade
vocacional no alto da cruz quando disse: “Tudo está consumado, e inclinando a cabeça,
entregou o espírito”. (Jo 19,30).
Portanto, podemos dizer que as narrativas autobiográficas são uma ação
social, pois o sujeito reinventa o seu percurso e sua vida. Dessa forma, sua interação
social não se trata de algo somente descritivo ou como uma interpretação superficial
dos acontecimentos da vida, pois o sujeito revisita, interpreta e narra a sua história. Os
significados não estão em si mesmos, eles são relacionados e desenvolvidos na trama
narrativa. (BRUNER, 1997).

Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1997.
BRUNNER, Jerome. Atos de significação. Porto Alegre: Artes médicas, 1997.
BÍBLIA: Tradução Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1995.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretrizes para a Formação dos
Presbíteros da Igreja do Brasil. Brasília: Edições CNBB, 2010.
DOMINGUEZ, Luis Maria Garcia. Discernindo o Chamado: a avaliação vocacional.
Tradução: Maria Stela Gonçalves. São Paulo, SP: Paulus, 2010.
DOCUMENTO DE APARECIDA: Texto Conclusivo Da V CONFERÊNCIA GERAL DO
EPISCOPADO LATINO AMERICANO E DO CARIBE, 2008, nº 280, p. 131-132).
GOHN, Maria da Glória. Educação Formal e o Educador Social: atuação no
desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010.
OLIVEIRA, João Bosco e OLIVEIRA, Maria de Fátima Fonseca. Uma Nova Evangelização:
pastoral de conjunto e pastorais orgânicas. São Paulo: Paulus, 2001.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
processos psicológicos superiores. Revisão da tradução Monica Stahel. 7ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 575


Narrativas autobiográficas: a EJA em Santo Antônio de Jesus

Silvania de Jesus Santiago


PMSAJ/SME–NEPPINS/UFRB
silvania10santiago@hotmail.com
Regina Marques de Souza Oliveira
UFRB
marquesregina@uol.com.br

O encantamento na educação é a condição para o progresso tanto do aluno como da condição de


sustentação emocional do professor, agente de transformação social em seu lugar de coparticipação no
processo de desenvolvimento dos sujeitos. Sob este aspecto, promover a Educação de Jovens e Adultos
é um processo de encantamento de mão dupla, no qual o professor deve encantar-se pela narrativa de
vida e de descobertas das condições de existência e cotidiano de seus alunos. Assim sendo, em Santo
Antônio de Jesus, a EJA tem sido desenvolvida a partir do trabalho das narrativas de vida. Autobiografias
de sujeitos – professores e alunos - em identificação plena com a qualidade de descoberta da condição
de acesso mínimo à cidadania. A sensibilidade docente, incentivada e promovida pela coordenação da
EJA a partir de pressupostos materialistas históricos mediados pela noção de identidade em psicologia
social vem favorecendo e ampliando as condições de liberdade de acesso ao mundo de direitos e
cidadania: autonomia e emancipação. O professor da EJA, uma vez incentivado e recebendo capacitação
e formação para este nível de dedicação e sensibilidade – apoio técnico e conceitual a partir da parceria
entre Prefeitura Municipal e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), tem sido caminho
frutífero de desenvolvimento social para populações excluídas do acesso ao mundo da leitura e escrita.
Apresentar as experiências autobiográficas e narrativas dos docentes e seus alunos, bem como
indicativos dos trabalhos construídos ao longo de um ano de gestão na Coordenação da EJA em Santo
Antônio de Jesus é o objetivo deste relato de experiência.
Palavras-chave: Identidade; Psicologia; Narrativas de vida; Formação docente.

Introdução

Na trajetória da educação brasileira a Educação de Jovens e Adultos sempre


ocupou espaços reduzidos nos sistemas educativos, com uma marca compensatória e
sem valor social, sendo desprezada por diferentes administradores da educação. Como
bem coloca Silva (2005) a EJA quase sempre teve caráter marginalizado, pois as
políticas públicas referentes a ela tinham apenas a função reparadora pretendendo
apenas resolver questões imediatas do analfabetismo, sem uma preocupação de
oportunizar políticas mais permanentes e que dessem uma continuidade ao processo
de Educação de Jovens e Adultos.
Para Paiva et.al. (2004) “a ausência de políticas públicas mais efetivas de
médio e longo prazo conduz à fragmentação, dispersão e descontinuidade dos
Programas da EJA”. Além da carência das políticas públicas direcionadas à Educação de
Jovens e Adultos outros entraves contribuíram para que a mesma não fosse vista como
direito, mas como objeto de assistencialismo. Os programas não contavam com
profissionais qualificados, materiais didáticos e específicos, espaço físico adequado
além da falta de um processo sistemático de acompanhamento teórico metodológico.
Chegamos à um dos momentos mais tristes da história brasileira, o Golpe
Militar de 1964. Com o Militarismo, os programas que visavam a constituição de uma
transformação social foram abruptamente interrompidos com apreensão de materiais,
detenção e exílio de seus dirigentes. Retoma-se, nessa época, a educação como modo

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 576


de homogeneização e controle das pessoas. O governo militar, então, criou o
Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), em 1967, com o objetivo de
alfabetizar funcionalmente e promover uma educação continuada. Com esse programa
a alfabetização ficou restrita à apreensão da habilidade de ler e escrever, sem haver a
compreensão contextualizada dos signos. Configurava-se assim, o sentido político do
Mobral, que procurava responsabilizar o indivíduo de sua situação desconsiderando-o
do seu papel de ser sujeito produtor de cultura, sendo identificado como uma “pessoa
vazia sem conhecimento, a ser ‘socializada’ pelos programas do Mobral” (MEDEIROS,
1999, p. 189). O Mobral procura restabelecer a idéia de que as pessoas que não eram
alfabetizadas eram responsáveis por sua situação de analfabetismo e pela situação de
subdesenvolvimento do Brasil. Um dos slogans do Mobral era: “você também é
responsável, então me ensine a escrever, eu tenho a minha mão domável”
(STEPHANOU; BASTOS (orgs), 2005, p. 270). Junto a essa idéia, também houve
recrutamento de alfabetizadores sem muita exigência, rebuscando a idéia de que para
educar uma pessoa adulta é necessário ser apenas alfabetizada, sem entender o
método pedagógico. Por fim, o Mobral foi extinto em 1985, com a chegada da Nova
República, e seu final foi marcado por denúncias sobre desvios de recursos financeiros,
culminando numa CPI (Comissão Parlamentar de Investigação). Muitas pessoas que se
alfabetizaram pelo Mobral acabaram desaprendendo a ler e escrever. No período
militar, a economia brasileira é determinada pela redução do investimento, a
diminuição da entrada de capital estrangeiro, a queda da taxa de lucro e a aceleração
do processo inflacionário. Pode-se dizer que estas características são frutos de uma
tentativa frustrada da fixação de um modelo econômico autônomo. Além disso, a
economia brasileira se encontrava numa grande crise de nível conjuntural, que acabou
continuando no início da Nova República. Porém, poderemos ver que com a República
Nova há a primeira explicitação legal dos direitos dos cidadãos que não foram
escolarizados na idade ideal, como destaca Oliveira (2007, p. 4): O inciso I do artigo
208 indica que o Ensino Fundamental passa a ser obrigatório e gratuito, “assegurada,
inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade
própria”. Em seu artigo 214, a Carta Magna indica também a que legislação
“estabelecerá o Plano Nacional de Educação, de duração plurianual, visando à
articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das
ações do poder público que conduzam à • I – erradicação do analfabetismo, • II –
universalização do atendimento escola. Cabe lembrar também, que na emenda
constitucional N° 14/96 fica estabelecido que a União deverá investir nunca menos que
trinta por cento do caput do artigo 212 para a erradicação do analfabetismo e
manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental. Assim, com a nova
constituição de 1988, prevê-se que todas as pessoas tenham acesso à educação, sendo
reforçada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394/96 de 20 de
dezembro de 1996. De acordo com a LDB, 31 é determinado que o Plano Nacional de
Educação seja elaborado em concordância com a Declaração Mundial de Educação
para Todos, e com base na LDB, foi constituída a Educação de Jovens e Adultos como
modalidade de ensino através da resolução CNB/CEB Nº 1, de 5 de julho de 2000, que
estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos.
Ressalta-se ainda o direito a jovens e adultos à educação adequada às suas
necessidades peculiares de estudo, e ao poder público fica o dever de oferecer esta

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 577


educação de forma gratuita a partir de cursos e exames supletivos. Com o fim do
Mobral em 1985, surgiram outros programas de alfabetização em seu lugar como a
Fundação Educar, que estava vinculada especificamente ao Ministério da Educação. O
seu papel era de supervisionar e acompanhar, junto às constituições e secretarias, o
investimento dos recursos transferidos para a execução de seus programas. No
entanto, em 1990, com o Governo Collor, a Fundação Educar foi extinta sem ser criado
nenhum outro projeto em seu lugar. A partir daí então, começou a ausência do
governo Federal nos projetos de alfabetização. Os municípios passam a assumir a
função da educação de jovens e adultos. Paralelamente, foram feitas muitas
experiências de universidades, movimentos sociais e organizações não-
governamentais em relação à educação. Há uma imensa pluralidade de práticas
metodológicas baseadas em descobertas, linguísticas, psicológicas e educativas
recentes (como os estudos de Emília Ferero), que contribuíram para a criação de
métodos de alfabetização. Entre os movimentos que surgiam no início da década de
90, podemos destacar o Movimento de Alfabetização (Mova), que procurava trabalhar
a alfabetização a partir do contexto socioeconômico das pessoas alfabetizandas,
tornando-as coparticipantes de seu processo de aprendizagem. Somente em 1996,
surge novamente um programa nacional de alfabetização promovido pelo governo
federal. No entanto, com o Programa Alfabetização Solidária (PAS), parecia que
estávamos tendo um replay das campanhas das décadas de 40 e 50.
No final da década de 40 e início dos anos 50, tornava-se uma necessidade
promover a educação do povo para acompanhar a fase de desenvolvimento que se
instalava nos países, era preciso formar os continentes de mão-de-obra necessários
para atender ao crescimento das indústrias. Essa necessidade de promover a educação
e qualificação foi justificada por várias teorias ligadas à política e a ampliação das bases
eleitorais do país, e com incentivo externo. Paiva (1973, p.250-253) ressalta que desde
o final da década de 50 até meados de 60 viveu-se no país uma verdadeira
efervescência no campo da educação de adultos e da alfabetização. O II Congresso
Nacional de Educação de Adultos constitui-se um marco histórico para a área. Paulo
Freire, mesmo não tendo ainda um envolvimento maior com o analfabetismo entre
adultos, apresenta e defende, liderando um grupo de educadores pernambucanos, o
relatório intitulado: A Educação de Adultos e as populações Marginais: o problema dos
mocambos. Defendia e propunha uma educação de adultos que estimulasse à
colaboração, a decisão, a participação e a responsabilidade social e política. Paiva
(1973, p. 251 – 304), ao fazer uma caracterização do método Paulo Freire, que
segundo ele, passa a ser sistematizado, realmente a partir de 1962, diz que ele não era
uma simples técnica neutra, mas todo um sistema coerente no qual a teoria informava
a técnica pedagógica e seus meios.
Derivava diretamente de idéias pedagógicas e filosóficas mais amplas e
representava tecnicamente uma combinação original das conquistas da teoria da
comunicação da didática contemporânea, e da moderna. Enfatiza-se que Freire, ao
partir de uma visão crítica do mundo, nos oferece em termos teórico- metodológicos
uma formulação original. O pensamento pedagógico de Paulo Freire, assim como sua
proposta para a alfabetização de adultos, inspirou-se as principais proposta de
alfabetização e educação popular que se realizaram no país no início dos anos 60.
Essas propostas foram empreendidas por intelectuais e estudantes católicos engajados

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 578


numa ação política junto aos grupos populares. Ressalta-se que os trabalhos de
educação popular, em particular da alfabetização, foram na sua grande maioria
inspirados nas idéias de Paulo Freire, na chamada Pedagogia da Libertação ou
Pedagogia dos Oprimidos. Segundo Paiva, (1973, p. 252), esse educador constituiu
uma proposta de mudança radical na educação e objetivos de ensino, partido da
compreensão de que o aluno não apenas sabe da realidade em que vive, mas também
participa de sua transformação. Esses diversos grupos de educadores foram se
articulando e passaram a pressionar o governo federal para que os apoiassem e
estabelecessem uma coordenação nacional de iniciativas. Em janeiro de 1964,
aprovou-se o Plano Nacional de Alfabetização que previa a disseminação por todo o
Brasil da proposta orientada por Paulo Freire. A preparação do plano contou com
forte engajamento de estudantes, sindicatos, e diversos grupos estimulados pela
efervescência política da época. O pensamento de Paulo Freire se construiu numa
prática baseada num novo entendimento da relação entre a problemática educacional
e a problemática social; se antes este era visto como uma causa da pobreza e da
marginalização, o analfabetismo passava a ser interpretado agora como um efeito da
situação de pobreza gerada por uma estrutura social não igualitária. Fez-se necessário,
portanto, que o processo educativo interferisse na estrutura social que produzia o
analfabetismo, por isso, a alfabetização e a educação de base de adultos deveria partir
sempre de um exame critico da realidade existencial dos educandos, da identificação
de origens dos seus problemas e das possibilidades de superá-los.
Para Paulo Freire: a sociedade tradicional brasileira fechada se havia rachado
e entrado em trânsito, ou seja, chegar o momento de sua passagem para uma
sociedade aberta e democrática. O povo emergia nesse processo, inserindo-se
criticamente, querendo participar e decidir, abandonando sua condição de objeto de
história. (PAIVA, 1973, p. 251).
No período que segue, mudanças políticas e econômicas interferem nesse
processo educacional e com adentrar do período militar a Educação de Adultos é
concebida através de outras iniciativas governamentais. Pouco se alfabetizou após a
implantação do regime militar. A educação de adultos foi levada a uma estagnação
política e pedagógica vazia e superficial. Entretanto com o instalar da Democracia na
década de 80, definiu-se uma nova concepção de educação de jovens e Adultos a
partir da Constituição Federal de 1988. A constituição federal foi promulgada em 1988,
garantindo importantes avanços no campo do EJA. No artigo 208, a Educação passa a
ser direito de todos, independente de idade, e nas disposições transitórias, são
definidas metas e recursos orçamentários para a erradicação do analfabetismo. Assim
o artigo 208 é claro:
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I –
ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive sua oferta gratuita
para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria (CONSTITUIÇÃO FEDERAL,
1988).
Nesse sentido, torna-se claro que a oferta da EJA necessitava de
institucionalidade e continuidade, precisava ainda superar o modelo dominante nas
campanhas emergenciais e iniciativas de curto prazo, que recorrem à mão-de-obra
voluntária e recursos humanos não especializados (HADDAD, 2000).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 579


Foi buscando um novo enfoque que, no inicio da década de 90, questões
normativas os que se refere às Leis, Pareceres e outros documentos legais foram
sendo direcionadas à Educação de Jovens e Adultos e consequentemente, as políticas
públicas nacionais da EJA no Brasil vêm ganhando relativa visibilidade. No entanto, a
realidade ainda apresenta um quadro de limites, concebida até então como estratégia
de compensação, reposição, suplência ou adequação ao mercado e não como um meio
de informação ampla e integral de homens e mulheres.
Partindo dessas reflexões, pode-se afirmar que uma das origens das faltas do
atendimento a EJA deve-se à prioridade dada à educação das crianças e adolescentes
na idade dos 7 aos 14 anos no ensino fundamental.
Portanto é preciso agir agora para que seja garantido o pleno
desenvolvimento das comunidades, pessoas e nações. O investimento no ensino
fundamental deve ser priorizado como uma importante medida contra aos altos
índices de distorção idade-série. Chegamos aos dias atuais, ainda se houve ecos do
discurso que definem que é “coisa de branco” e o que é “coisa de negro”. Essas
diferenças no que se referem aos desafios dos alunos da EJA se definem
principalmente no campo social e cultural, ou seja, na família, na igreja, na escola, na
vida em sociedade, desconhecendo a necessidade da igualdade de direitos e
tratamento entre os diferentes. Sob tal aspecto implementar políticas de identidade
na EJA é fundamental.
A identidade é processo contínuo de construção social. No social encontra-se
o individual. E a partir da subjetividade do sujeito singular estão impressas as
dimensões de uma coletividade. Um incidindo sobre o outro. Entender estas amarras
sociais, decodifica-las para interpretar a cultura, através da leitura e valorização da
história de vida dos sujeito – análise materialista histórica da psicologia – é favorecer
metodologias para transformações pessoais e sociais (OLIVEIRA, 2008).
O jovem de camadas populares, etnicamente diverso em nosso país
multiculturalizado – negros, indígenas e brancos – necessita deste olhar transversal e
ao mesmo tempo focalizador de suas especificidades históricas para se apropriar das
condições de emancipação e autonomia que o processo de aprendizagem e a EJA
proporcionam. Neste campo, a identidade é o campo por excelência do trabalho do
professor.
A identidade se apresentada através de características culturais, linguísticas,
entre outras, confunde-se com a identidade subjetiva, que é como o próprio grupo se
define.
O processo de construção da identidade nasce a partir da tomada de
consciência das diferenças entre nós e o outro. O grau dessa consciência não é igual
entre todos os negros, uma vez que cada um vive em um contexto sociocultural
diferenciado.
Para mostrar essa diversidade contextual, Kabengele Munanga (2009),
considera alguns fatores tidos como componentes essenciais na construção de uma
identidade ou de uma personalidade coletiva, que são:
a) fator histórico: Ele une os elementos de um povo através do sentimento de
continuidade histórica. A consciência histórica, constitui uma relação de segurança
para o povo. Razão pela qual o afastamento e a destruição da consciência histórica

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 580


eram uma das estratégias utilizadas pela escravidão e pela colonização, para destruir a
memória coletiva.
b) fator lingüístico: Nesse fator a crise não foi total, pois nos terreiros
religiosos persiste uma linguagem esotérica. Em outras categorias foram criadas outras
formas de linguagens, como penteados, estilos de cabelos, estilos musicais, etc.
c) fator psicológico: Este nos leva a nos perguntar se o temperamento do
negro é diferente do, do branco. Tal diferença se existir, deve ser explicada a partir do
condicionamento histórico do negro e não com base nas diferenças, a identidade
negra não nasce do simples fato de tomar consciência da diferença de pigmentação
entre brancos e negros ou negros e amarelos.
A negritude e /ou a identidade negra se refere a história comum que liga de
uma maneira ou de outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo
ocidental “branco ”reuniu sob o nome de negros. A negritude não se refere
somente a cultura dos povos portadores da pele negra que de fato são todos
culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos humanos têm
fundamentalmente em comum não é a cor da pele, como o termo Negritude
parece indicar. Mas sim o fato de terem sido suas culturas não apenas objeto de
políticas sistemáticas de destruição, mas, mais do que isso, de ter sido simplesmente
negada a existência dessas culturas. (MUNANGA, 2009, p. 20)
A partir disto observamos que essa ideologia impossibilita que o jovem e
adulto negro tenha acesso ao mesmo saber direcionado ao branco , principalmente
quando refere-se às classes de poder aquisitivo baixo, como mostra esse estudo .
Nessa perspectiva, torna-se necessário que a escola evidencie em suas propostas
pedagógicas a necessidade de um trabalho voltado a desconstrução dos desafios
desses alunos que estão atrelados às características da clientela: classe baixa,
desemprego, baixa auto-estima, gravidez precoce, discriminação da mulher,
defasagem de idade e série pertencentes de bairros periféricos sendo formada por
pessoas provenientes de grupos étnicos raciais.
Kabengele diz:
A implantação europeia efetuou-se no plano psicológico, utilizando-se entre
outros recursos o cristianismo. Em vez de formar personalidades africanas livres,
independentes, capazes de conceber um nova ordem para a África, a
implantação europeia contribuiu para destruir os valores espirituais e culturais dos
povos africanos. A sabedoria dos ancestrais foi considerada sinal de paganismo e
primitividade. Muitos objetos de arte e da cultura material foram confiscados
pela força. Grande parte deles foi queimada, outra contribuiu para formar e
enriquecer os grandes museus metropolitanos, como o Musée d l’Homme, de
Paris; o Britsh Museum, de Londres; o Musée Royal de Afrique Central, de
Tervuren, Bélgica, etc. Lá, de onde foi arrancada a estátua de madeira de uma
divindade africana, de um ancestral, de um herói ou de um rei, puseram uma
madona ou um santo de argila ou de bronze( MUNANGA, 2009,p.36).
Diante dessa ideologia que se manifesta no plano da realidade o negro é visto como
sinônimo de ser primitivo e inferior. Essa alienação por parte da literatura e da
colonização que negam as suas condutas preconceituosas do branco (Ocidente) em
relação ao negro, atinge profundamente a pessoa tida como “diferente”. No caso, o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 581


negro. Mas também o indígena, o branco pobre, os excluídos do mundo formal da
cultura e do acesso a cidadania mínima através da leitura e da escrita.

A EJA em Santo Antônio de Jesus

Consideramos importante trazer as razões que nos levaram a escrever de modo


diferente a EJA em Santo Antonio de Jesus/BA. A dimensão da saúde emocional e formação de
identidade – dimensão psíquica – dos alunos da EJA, os quais são em sua maioria de
ascendência negra.
Ao assumir a coordenação da EJA fiquei muito feliz e ao mesmo tempo apreensiva.
Pois muito trabalho de transformação viria. Sabia que podia contar com a ajuda de alguns.
Principalmente de professores que estavam já desenvolvendo trabalhos de formação com um
grupo de professores do município do qual eu participava (no caso minha participação no
grupo de pesquisa e estudos do NEPPINS/UFRB – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise,
Identidade, Negritude e Sociedade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia).
Considero importante, através deste relato e narrativa de minha autobiografia, porque
minha identidade pessoal, se confunde com minha trajetória profissional na EJA, com a
identificação com meus alunos e principalmente como a coordenação da EJA foi se
construindo através do atendimento a público e clientela totalmente desassistido do acesso a
educação formal. Como os usuários dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), como os
pacientes que realizam cotidianamente hemodiálise na Clinica do Rim, idosos encerrados em
asilos, enfim. Narrarei os modos como fui me construindo juntamente com os professores e
alunos da EJA e a ajuda da Universidade Federal do Recôncavo (NEPPINS/UFRB).
Assim sendo, o objetivo deste texto é apresentar as narrativas autobiográficas
de um professor – profissional da educação – vinculado a Educação de Jovens e
Adultos enquanto agente de transformação de si mesmo e de seu contexto de
atuação. No caso, os alunos da EJA no município de Santo Antonio de Jesus/Ba.
Observando que a transformação de uma dada realidade, faz-se principalmente pela
transformação da identidade do professor no reconhecimento de vinculação social de
seu papel frente ao sofrimento e formas de enfrentamento da exclusão de populações
historicamente desprezadas do acesso à educação e à cidadania.

Metodologia

Utilizamos por metodologia as diferentes formas de atuação e orientação dos


professores protagonistas da rede de Educação de Jovens e Adultos os quais, através
da coordenação da EJA e orientação da assessoria do Núcleo de Pesquisa em
Psicanálise, Identidade, Negritude e Sociedade da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (NEPPINS/UFRB), valeram-se de linguagens artísticas e culturais, as quais
valorizavam o contexto de vida cotidiana do aluno da EJA para que o mesmo
adentrasse o universo do mundo da leitura e da escrita como protagonista de suas
próprias articulações sociais e individuais.
A música, o teatro, a dança, as linguagens plásticas através do desenho,
pintura, colagens e trabalhos artesanais com diferentes públicos da EJA – Jovens,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 582


Idosos e Adultos – possibilitaram a transformação do contexto de vida das pessoas
participantes das aulas.
O papel do professor, sua articulação e entrega pessoal através da
ressignificação de seu papel docentes, mediado pela coordenação da EJA favoreceu a
plenitude da metodologia do trabalho.
Fez parte também da metodologia as leituras de textos e discussões oriundas
da psicologia social materialista histórica, através do NEPPINS, as quais foram a base
para a transformação subjetiva – narrativa autobiográfica – e despertar da consciência
da coordenação da Educação de Jovens e Adultos no município de Santo Antônio de
Jesus/BA.

Discussão

A minha proposta enquanto coordenação é dar contribuições efetivas para o


fortalecimento da cidadania e a luta em prol da garantia de direitos. Acredito que para
garantir os direitos negados aos educandos, ao longo de suas trajetórias de vida, é
indispensável fazer uma análise crítica do contexto histórico e social. É importante dar
condições às pessoas de compreender a conjuntura atual e definir estratégias para o
fortalecimento das conquistas sociais como um processo democrático e de inclusão.
O território é a nossa base de construção das mudanças. A comunidade é o
nosso chão de identidade. A EJA tem como finalidade promover a dignidade humana
garantindo aos indivíduos e às comunidades a oportunidade de reconstruírem seu
destino e de conquistarem o direito à cidadania plena e participativa.
A EJA em Santo Antônio de Jesus fundamenta-se nos princípios filosófico-
político-pedagógicos de Paulo Freire. A ação pedagógica se desenvolve com base
na Leitura do Mundo do(a) educando(a), a partir da qual se identificam as situações
significativas da realidade em que está inserido. Desse processo, surgem os Temas
Geradores que, por sua vez, orientam a escolha dos conteúdos programáticos.
Realizamos formação continuada a educadores de jovens e adultos, ensinando
e aprendendo numa relação dialógica que promove a conscientização, promovendo o
exercício crítico da cidadania. Além disso, desenvolvemos materiais de apoio
pedagógico, oferecemos oficinas, palestras. No intuito de contribuir com a definição de
políticas públicas em EJA, e com avaliação de projetos e sistematização de
experiências. OS encontros quinzenais com os professores é um espaço de encontro,
celebração, solidariedade, reflexão, formação, pesquisa em torno de questões que
envolvem a formação de pessoas jovens e adultas numa perspectiva cidadã e
ecopedagógica, com o compromisso de fortalecer o movimento a favor da garantia do
direito humano fundamental à educação para toda a população.
O meu acompanhamento pedagógico ocorre no sentido de caminhar junto – e
procuro sempre dar o melhor de mim à equipe de profissionais que atuam na EJA.
Atualizo a minha prática didático-pedagógica com os professores envolvidos no
processo de formação , estimulando para que se assumam como sujeitos do processo
educativo, aceitando os desafios da prática, aprimorando os seus conhecimentos e
exercendo suas ações educacionais com ousadia e criatividade. Mobilizo a atenção, o
prazer, a criatividade dos(as) professores (as), respeitando seus saberes, incentivando
os seus potenciais criativos e expressivos e desenvolvendo suas capacidades de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 583


expressão, que muitas vezes se encontram desprezadas em razão de intensos e
históricos processos de educação, formal.
O acesso dos jovens, adultos e idosos ao desenvolvimentos da habilidade de
leitura e escrita é fundamental para o fortalecimento da identidade política e garantia
de direito à cidadania à população negra. Em termos individuais, os alunos
apresentaram sofrimento ético e afetivo diante de sua marginalização racial, histórica,
social e cultural, indicando anseios de verem reconhecidas suas necessidades de
acesso ao desenvolvimento cultural, político e econômico em termos individuais e
coletivos.
Um novo pensar sobre a educação de jovens e adultos traz para o âmbito
escolar questões relativas ao processo histórico do aluno. Existem muitos motivos que
levam esses adultos a estudarem, como: exigências econômicas, tecnológicas e
competitividade do mercado de trabalho. Vale destacar, que outras motivações levam
os jovens e adultos para a escola, por exemplo, a satisfação pessoal, a conquista de um
direito, a sensação da capacidade e dignidade que traz auto estima e a sensação de
vencer as barreiras da exclusão.

Abaixo trago relato de aluna da EJA em Santo Antônio de Jesus/BA. Pesquisa e


narração que nos possibilitou compreender os processos de formação de identidade e
exclusão em termos de interpretação da história – enfrentamento social e afetivo –
quando a partir de políticas de ações pedagógicas e educacionais implementa-se o
fundamento do estudo da identidade e do território.
Vejamos abaixo:

“Eu me chamo Eliete, tenho 25 anos, já tenho uma filha de 6 anos,


meu motivo de voltar à escola é que não tive muita
oportunidade de estudar, quando criança às vezes ia à escola. Não
tinha professor para ensinar porque não tinha transporte para trazer
os professores.Quando eu era criança eu ia à escola, voltava e ainda
tinha que ajudar nas tarefas de casa, na roça à noite ainda tinha que
fazer as tarefas da escola. Meu objetivo é estar aqui e continuar
a estudar pelo motivo de não ter muitas oportunidades de estudo.O
motivo de trazer a minha filha à escola é porque não tenho com
quem deixar, o pai trabalha de vigia bastante, passa 15 a 20 horas
por dia fora é o jeito trazer a minha família que não mora aqui”.
(Eliete de Souza Jesus, 25 anos, aluna da Escola Municipal Florentino
Firmino de Almeida)

Estamos realizando várias ações a partir da observação do perfil etário da EJA,


favorecendo a diversidade cultural e social, oferecendo a oportunidade de
profissionalização e aceleração de estudos a fim de superar, principalmente para o
jovem negro (PROJOVEM) a defasagem idade/série.
Temos nos dedicado a apoiar em grande medida o professor – profissional da
EJA. Pois este não possui uma formação específica para o trabalho com o aluno e
metodologias diferenciadas para a EJA. Daí a importância do diálogo constante e
participativo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, através do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 584


NEPPINS/UFRB, o qual redimensionou minhas competências e habilidades para o
exercício pleno e transformador da EJA em Santo Antônio de Jesus/BA.
Através do apoio da Prefeitura Municipal com a valorização do nosso trabalho
junto a assessoria do NEPPINS/UFRB, conseguimos apresentar alguns frutos de nosso
trabalho no Primeiro Colóquio de Educação de Jovens e Adultos de Santo Antônio de
Jesus/BA o qual contou com a presença e participação ativa e ilustre dos professores
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Profa. Dra. Regina Marques de Souza,
Prof. Dr. Reinaldo José de Oliveira, Profa. Dra. Rosy Oliveira, Profa. Dra. Evenice Chaves,
Prof. Dr. Fabio Oliveira, dentre outras personalidades e profissionais de saúde e
educação que favoreceram a visibilidade através do Colóquio, das produções e
transformações da EJA e seus alunos, em Santo Antônio de Jesus.

Foto da Mesa de Abertura do Colóquio SEM/EJA e NEPPINS/UFRB (a direita


a secretária de educação com o microfone Zeliane Santos de Jesus).

Foto do Pré-Colóquio com conferência ministrada pelo Prof. Dr. Reinaldo José de Oliveira
( atividade prévia ao Colóquio como formação dos professores da EJA realizada no Centro de
Ciências da Saúde da UFRB).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 585


A Conferência do Professor Reinaldo Oliveira, “Acesso à saúde e educação:
territórios e cartografias de exclusão” foi importante reflexão para redirecionar os
passos e ações dos professores das zonas rurais e urbanas da EJA, fortalecer a
dimensão histórica e identidade do professor enquanto agente de transformação
social valorizado por seus alunos e pela comunidade extensa através da promoção de
formação profissional.

Aprendemos que o território é o lugar de desenvolvimento da cultura, do saber


popular. A marca de desenvolvimento de uma comunidade e que merece e necessita
ser compreendido e valorizado. A favela, a periferia, as comunidades quilombolas são
territórios de segregação e exclusão. Através da educação e da saúde na valorização
destes territórios a partir de políticas públicas favorece formas de organização social
da própria população para enfrentamento das mazelas e dificuldades em geral
(OLIVEIRA, 2013).
Ao observar minha realidade, meu entorno social e também minha sensibilidade
humana – identidade, memória, relacionamentos afetivos – pude “encantar-me”,
como venho desde sempre “encantando-me” com meu papel de articuladora da EJA.
Ao narrar as realizações dos alunos e professores das áreas de exclusão da cidade e
território de Santo Antônio de Jesus, narro os desafios e lutas de minha própria vida.
De minha própria existência e sonhos de superação e enfrentamento.
Abaixo colocaremos em itens as ações que estamos desenvolvendo a partir do
descortinamento da história social do lugar na Educação de Jovens e Adultos e da
história pessoal e singular – identidade – dos alunos. Singular, porém não separada da
relação com a história da coletividade. Porque no plano das necessidades individuais
encerra-se o trabalho de acesso a cidadania e direitos de uma coletividade.
A partir destas conquistas formativas de diálogos com a pesquisa e produção de
conhecimento no NEPPINS/UFRB buscamos realizar as metas abaixo apresentadas, as
quais encontram-se em pleno desenvolvimento:

• Elaborar e desenvolver oficinas na comunidade escolar com temas que


elevem a autoestima dos alunos no intuito de incentivar a frequência,
reduzindo a evasão;
• Manter as visitas às escolas e os encontros quinzenais: oficinas, palestras,
contemplando diversas áreas de conhecimento;
• Continuar com os projetos temáticos por unidade;
• Iniciar “Roda de diálogos” com diretores das escolas;
• Desenvolver o Projeto Diversidade Cultural: Educação x Cultura x Esporte:
relacionar educação, cultura e esporte do Brasil com outras nações
inseridas na Copa do Mundo;
• Realizar, em parceria com a UFRB/ SME, a Mesa Redonda: Psicologia e
Diversidade na EJA (lançamento de CD -Livro das experiências da EJA e a
UFRB);

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 586


• Organizar e desenvolver a Feira de Ciências: Promoção da saúde e
Educação Ambiental;
• Dar continuidade na promoção em parceria com o NEPPINS/UFRB e a SME
– Secretaria Municipal de Educação o II Colóquio de Educação de jovens e
Adultos;
• Avaliar o ano letivo de 201

Apresentar as conquistas com a Educação de Jovens e Adultos em Santo


Antônio de Jesus e realizar a formação continuada de professores desse segmento, com
o apoio, fomento e disseminação de conhecimentos através da UFRB (NEPPINS/NEAB)
para tanto, a Psicologia apresentou-se como ferramenta essencial de articulação entre
saúde e educação: elementos nodais de acesso a cidadania e direitos.

Conclusão

Narrando minha história, aprendi (aprendemos) que a escuta sensível é muito


importante. Magnifica e encantadora. É muito produtivo efetuar meu trabalho a partir
da consciência de minha história, de minha vinculação a ela enquanto sujeito de certo
modo excluído e que no enfrentamento do mundo – através de oportunidades e
trabalho – posso avançar e contribuir para mudanças significativas em meu contexto
social com pessoas e meus pares afetivos e profissionais. Aprendi como coordenadora
da EJA que nada é melhor do que efetuar um trabalho a partir de relatos de
experiências vivas, as quais precisam ser escutadas pelo professor, docente da EJA.
Mas também pelos políticos, pelos gestores da história social e construtores de
políticas públicas para a educação e a saúde. Narrativas de vida que necessitam ser
ouvidas também por estudiosos, produtores de “ciência” e “conhecimento” nas
universidades. A qual em geral é tão distante das pessoas comuns e mais simples no
âmbito social.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 587
A abertura da participação dos professores da EJA e no meu caso em
específico, nas atividades do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Identidade, Negritude
e Sociedade, foi um divisor de águas em minha vida. A oportunidade eu sei que é rara.
Muitos não tem acesso a conhecimentos que são reservados somente aqueles que por
privilégio da vida estão sentados em bancos de uma universidade pública.
Entendo também – interpreto minha identidade social e coletiva – que o meu
acesso a estes conhecimentos também é fruto da história dos movimentos sociais e
políticos no âmbito do contexto da Bahia, do Recôncavo e do Brasil.
A fundação da UFRB é fruto destas lutas históricas e sociais, além da
realização de políticas educacionais para o Nordeste encampadas pela gestão
presidencial passada (Governo Lula).
Como coordenadora da EJA, protagonizo, narro minha vida e minha história a
partir deste contexto de luta política e social.
Não só eu estou a narrar uma nova história. Todos que comigo compartilham
o trabalho de construção de cada dia na sala de aula, nas reuniões pedagógicas, nos
embates políticos, no acesso à Universidade com os parceiros que valorizamos
(NEPPINS/UFRB) são fundamentais para o processo de transformação da história e
realidade social em Santo Antônio de Jesus/BA.
Os professores da EJA também aprenderam que valorizar a autobiografia dos
alunos, o seu trabalho, traz melhores resultados na aprendizagem com melhor fruição
das atividades. Além disto, os relatos dos alunos são o melhor diagnostico para saber
quem é esse aluno e como fornecer instrumentos adequados para que ele se aproprie
dos modos de emancipação, autonomia e conhecimento. Os alunos a cada dia
aprendem o quanto sua história de vida é importante para que eles mesmos sejam os
protagonistas de suas existências. Identificando-se com sua história e escrevendo a
história de seu tempo, revertendo exclusões eternas na história da educação brasileira.
Atualmente o trabalho da EJA vem priorizando a escuta sensível de relatos de
professores e alunos para alcançar as metas traçadas durante o ano letivo, enquanto
metodologia principal de nossos trabalhos.
Observamos que o trabalho vem sendo feito com muita seriedade e
comprometimento por parte dos professores em função de um objetivo comum: o
acesso à cidadania através do domínio da leitura, escrita e aprendizagens formais por
jovens e adultos de Santo Antônio de Jesus no Recôncavo da Bahia.
Ao narrar esta historia individual e coletiva nossa consciência vem crescendo
no sentido de compreender que em um mundo que passa por profundas e constantes
transformações torna-se pertinente a discussão acerca da problemática que envolve a
educação ofertada aos jovens e adultos. Sabemos que por um longo período a política
de educação direcionada aos jovens e adultos teve caráter assistencialista, com
práticas improvisadas com recursos escassos, além do preconceito que estava atrelado
às práticas direcionadas a esse público.
Percebe-se ainda que muito pouco tem sido feito em prol da melhoria do
atendimento dos jovens e adultos nos cursos noturnos. Um dos grandes desafios
enfrentados pelas redes municipais ainda é a questão dos recursos destinados a esta
modalidade de ensino, como também a elaboração e implementação de projetos
políticos pedagógicos que atendam de modo satisfatório jovens e adultos
trabalhadores.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 588


Os principais desafios enfrentados pelos alunos da EJA de SAJ são: baixo poder
aquisitivo, trabalhadores urbanos vivendo de atividade formal como produção de
fogos de artifício, pequenas atividades de fundo de quintal, empregadas domésticas
dentre outros, baixa autoestima, subemprego, baixa visão, múltipla diferença de idade,
provenientes de grupos étnicos-raciais historicamente desprezados como negros e
indígenas, além da falta de políticas publicas direcionada a essa clientela.
A coordenação da EJA de SAJ vem desenvolvendo projetos educativos
inovadores, conseguindo romper com modelos de ensino direcionado ao público
infantil, fazendo motivar o ensino direcionado aos jovens e adultos, pois a vivência
desse público na escola não é ignorada. Assim faz-se necessário que cada sistema de
ensino assegure oferta adequada e específica a este contingente que não teve acesso à
escolarização num momento de escolaridade obrigatória. Os estabelecimentos
públicos de ensino deverão viabilizar e estimular o que preconiza a Constituição no seu
artigo 211, que indica a necessidade de uma articulação solidária dos sistemas de
ensino da União, Estado e Municípios, os quais devem acolher solidariamente a
crescente demanda desse público.
Questões como estas servem para refletirmos e fortalecer a importância da
EJA enquanto modalidade de ensino e sua relação com o ensino fundamental e médio,
além de nos propiciar outras reflexões sobre a clientela de jovens e adultos que
frequentam os cursos noturnos onde são geralmente homens e mulheres que têm a
menor condição financeira ou que vivem na linha da pobreza, como trabalhadores com
sub-empregos ou empregos não qualificados.
Narrar esta história, da vida destas pessoas, é uma obrigação moral de todo
gestor comprometido com o desenvolvimento social e acesso a cidadania por todos os
brasileiros.
Narrar esta história de construção e transformação da EJA em Santo Antônio
de Jesus é buscar reiteramente novos paradigmas de trabalho e conquistas para a
escrita formal da história de uma população em caráter de exclusão e desprezo.
Narrar esta autobiografia, a qual confunde-se com a configuração da
Educação de Jovens e Adultos em território de exclusão social – o Recôncavo da Bahia
– é narrar a história de vida e identidade da maior parte da população brasileira de
Norte a Sul.
Acreditamos que a psicologia, através da análise dos relatos de histórias de
vida, os quais foram as metodologias mestras de entendimento do mundo e
interpretação da história a partir das leituras propostas durante meu tempo de
participação nas atividades do NEPPINS/UFRB foi uma conquista singular que se
ampliou na disseminação de trabalhos e atividades que desdobraram a vida de
inúmeros outros sujeitos: professores da EJA, alunos jovens, adultos e idosos da EJA e
sobretudo o poder público municipal. O qual a partir da valorização de meu trabalho
no âmbito da universidade pode também olhar e escutar a narração que se faz da vida
das pessoas que vivem nos territórios e cartografias de Santo Antônio de Jesus. Na
zona urbana, na zona rural, enfim, em todo o contexto de atuação da Secretaria
Municipal de Educação.
Um caráter utópico se imprimiu em minha – nossa vida: a de que a
transformação social é possível, a partir do respeito a linguagem, história e sentidos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 589


das pessoas, de suas vivências e singularidades. A compreensão do materialismo
histórico na psicologia nos forneceu a concretização desta utopia.
Realizamos nosso sonho de transformação. O qual ainda está em pleno
desenvolvimento para outros e novos porvires.
Políticas se constroem – ou devem se construir – com sensibilidade. O que
fundamentalmente significa dizer: com caráter humano e moral de reconhecimento do
valor e direito a cidadania de todas as pessoas.

Referência
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OLIVEIRA, Reinaldo José. A cidade e o negro no Brasil – cidadania e território. São
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 590


Formação docente: reflexões sobre a vida-formação-profissão no/para o ensino
superior

Simone Martins de Jesus


FTC
simonemj2@hotmail.com

Este trabalho resulta de uma experiência formativa, ocorrida durante o curso de Pós-graduação em
Docência do Ensino Superior, quando fomos mobilizados por uma professora formadora a escrever um
memorial, retratando elementos da vida pessoal, da formação e da atuação profissional para discutir os
saberes e fazeres do professor no ensino superior. A motivação para produção deste artigo deve-se a
um processo de implicação pessoal com o pensamento reflexivo provocado a partir da solicitação desta
escrita reflexiva sobre a trajetória de vida e escolha profissional dos estudantes da primeira turma do
curso de Pós-graduação em Docência do Ensino Superior oferecida pela Faculdade de Tecnologia e
Ciências – FTC, na cidade de Feira de Santana, a qual fazia parte. A presente produção busca
compreender como o professor do ensino superior se forma para além dos dispositivos legais, fazendo
uma pequena retrospectiva histórica, cuja finalidade é desvelar outros aspectos pertinentes ao processo
de formação docente, evidenciando elementos da trajetória de vida e da formação, bem como da
experiência profissional e partilha com os pares para compreender os saberes e os fazeres do
profissional docente. Tal discussão é de grande importância porque, através do mesmo, os professores
em formação para o exercício docente superior podem compreender como a história de vida se cruza
com as trajetórias de formação e refletir sobre o conhecimento de si, aspectos importantes para
fomentar reflexão sobre a identidade docente. Desse modo, o presente artigo encontra-se
fundamentado nas produções de autores como Alarcão (1996), Brandão (2004), Josso (2002), Nóvoa
(1988), Souza (2006), Tardif (2002), dentre outros.
Palavras-chave: Trajetórias de Vida; Formação; Saberes; Fazeres docentes.

Reflexões iniciais...

Investigar sobre os saberes docentes no ensino superior, a partir de trajetórias


de vida e de formação reconhecendo o professor como ator social só é possível devido
ao movimento na arte de pesquisar e refletir sobre o próprio contexto formativo,
entrelaçando as itinerâncias pessoais e profissionais.
Dentro do exercício da docência é exigido do professor algumas qualificações,
especificamente no que concerne ao ensino superior, sobretudo quando observamos a
valorização das qualificações acadêmicas, nas pesquisas e no fazer pedagógico. Tais
aspectos fazem emergir questões como:
- De onde provêm os saberes dos professores?
- Quais saberes são relevantes para o exercício da docência?
Esta abordagem é de grande relevância porque se insere no contexto atual de
reconhecimento da atuação docente e reafirmação da identidade de modo a elucidar
os saberes docentes.
Neste trabalho, ao abordar as discussões sobre os saberes e fazeres necessários
à docência, a autora do artigo se sente convidada e envolvida a falar de si, de suas
itinerâncias formativas que a conduziram ao exercício profissional docente, buscando
compreender e socializar as relações existentes entre a história de vida, formação e
atuação na docência na educação básica, tendo em vista discutir os saberes e fazeres
que constituem a atuação do exercício profissional no ensino superior. Para tanto, os
diálogos serão tecidos com os autores que discutem a formação e a atuação do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 591


profissional docente e o método (auto)biográfico, como Alarcão (1996), Brandão
(2004), Josso (2002), Nóvoa (1988), Souza (2006, Tardif (2002), entre outros.

Um pouco da nossa história: uma retrospectiva da profissão docente

Refletir sobre a história da profissão docente requer observarmos alguns


aspectos como as marcas da colonização portuguesa deixadas em nosso país e a
expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses. Após séculos de
predominância na nossa educação dá início a um processo de laicização da instrução
com o envio dos professores régios.
O processo de estatização do ensino consiste, sobretudo, na substituição dos
professores religiosos por um corpo de professores leigos (sob o controle do Estado),
no qual o modelo do professor era segundo o padrão religioso, marcado pela figura do
padre. Desse modo, a educação se caracterizava por uma ocupação não especializada
e secundária e, assim, a profissão docente se originou antes da estatização da escola.
A partir da Revolução Francesa surge o advento de uma Escola Normal, a cargo
do Estado para formar professores leigos. Antes, porém, que se fundassem as
primeiras instituições destinadas a tal papel, já existia preocupações no sentido de
selecioná-los. A Lei de 15 de outubro de 1827 decretava a criação de escolas de
primeiras letras em todos os lugares mais populosos do Império e, segundo Saviane
(2009), a questão do preparo de professores emerge de forma explícita após a
independência, quando se cogita a organização da instrução popular.
A primeira forma de preparação de professores se deu nas primeiras escolas, a
partir de 1820, no Brasil, pois havia a preocupação de ensinar as primeiras letras e de
preparar docentes para dominar o método, pois segundo Arroyo (2009, p.77) “O
modelo de formação de muitos cursos normais treinou e formação mantido
irresponsavelmente por décadas, em muitos cursos normais, de Licenciatura e
Pedagogia, treinou e preparou primeiramente para dar conta de competências
fechadas. Ao menos era o que se esperava e em grande parte se fez”. Mais adiante
neste artigo veremos os resquícios desta prática na formação de professores.
Nos primeiros anos da República surge a influência das filosofias cientificistas e
a introdução dos primeiros ensaios de renovação pedagógica, do método intuitivo de
Pestalozzi (experiência sensorial).
Por toda década de 1920 há uma preocupação e entusiasmo pela problemática
educacional. As reformas educacionais do ensino primário e normal são
fundamentadas nos ideais escolanovistas que, por sua vez, fundamentaram e
alimentaram a crítica no formato da escola normal existente desde o período do
império.
Já o cenário de 1930, marcado por transformações políticas, econômicas e
sociais em nosso país devido à crise internacional da economia, desencadeou a
urbanização no modelo agrário-rural, alimentada pelo processo de industrialização que
gerou a necessidade dos operários serem instruídos para operacionalizar as máquinas.
Deste modo, surge a preocupação com a escolarização.
A escola normal chegou ao final da Primeira República com um curso que se
caracterizava pelo currículo profissional, baseado num ensino introdutório, uma
espécie de “ginásios mal adornados”, quadro este revertido porque, neste período

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 592


(1932), aconteceu o manifesto dos pioneiros da educação que “Apontava, antes de
tudo, para a necessidade de corrigir a falta de continuidade e articulação do ensino,
em seus diversos graus, como se não fossem etapas de um mesmo processo [...]”
(BEISIGEIL, 2003, 361). Desse modo, a escola primária deveria haver articulação entre
educação secundária unificada com base comum de três anos e deixar o antigo
formato da velha escola para ser um aparelho flexível e vivo, vinculada ao contexto
social no qual emergia no período da industrialização.
A Lei nº 4.024, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro
de 1961, não trouxe soluções inovadores para o ensino normal, conservando as
grandes linhas da organização anterior, como a duração dos estudos e a divisão em
ciclos.
A partir de 1970, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases - LDB para o
ensino de 1º e 2º graus, a Lei nº 5.692/71, o Curso de Magistério transformou-se em
Habilitação Específica para o Magistério, em nível de segundo grau/nível médio,
prevalecendo até meados dos anos de 1990, presente em vários municípios brasileiros,
sobretudo os que estão inseridos no interior do estado da Bahia, realidade nossa. Essa
mudança desmontou a estrutura anterior do curso.
Já a promulgação da LDB nº 9.394 de dezembro de 1996, trouxe novos olhares
para formação docente, expostos nos Artigos 43 e 45, ao dizer que:

Art. 43. A educação superior tem por finalidade:


I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e
do pensamento reflexivo;
Art. 45. A educação superior será ministrada em instituições de ensino
superior, públicas ou privadas, com variados graus de abrangência ou
especialização.

Se por um lado a nova LDB promulgada, após diversas vicissitudes, em 20 de


dezembro de 1996, não correspondeu a expectativa, já que introduzindo como
alternativa aos cursos de Pedagogia e demais Licenciaturas, os institutos superiores de
educação e as Escolas Normais Superiores, ela, a Lei 9.394/96, escolheu uma política
educacional tendente a efetuar um “nivelamento por baixo”. Por outro lado,
preconizou a estimulação do espírito científico e do pensamento, aspecto positivo
porque fomenta a necessidade da práxis pedagógica e abre espaço para nós
educadores nos posicionamos frente aos nossos saberes.

O professor, entre os saberes e fazeres: o conhecimento de si através da consciência


reflexiva

Optamos por abordar os saberes docentes tocadas pelas necessidades de situar


o professor enquanto agente social e pedagógico, numa sociedade na qual geralmente
ele não participa das grandes decisões que envolvem a sua profissão, sobretudo no
que concerne à escolha dos conteúdos, das habilidades e competências a serem
desenvolvidas pelos discentes, mediados pelo trabalho do professor.
O que ocorre é que as decisões são tomadas e disponibilizadas para o professor
executar, portanto, verticalizadas, sem a efetiva participação na construção das
mesmas. Por isso, acreditamos ser essa discussão relevante para refletirmos sobre as
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 593
especificidades de ser professor no ensino superior, visto que a mesma é fértil para
fomentar aprofundamento nas análises dos saberes pertinentes à docência, uma vez
que todo saber que uma sociedade constrói, socialmente requer um método de
socialização aos membros da mesma e são, portanto, de natureza pedagógica, pois:

Tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de


saber, existe também como algum modo de ensinar. Mesmo onde não
criaram escola, ou nos intervalos dos lugares onde ela existe, cada tipo de
grupo humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados
para ensinar as crianças, aos adolescentes e também aos jovens e mesmo
aos adultos, o saber, as crenças e também os gestos que tornarão um dia o
modelo de homem ou mulher [...] de cada sociedade (BRANDÃO, 2004, p.
36).

De outra maneira, é correto afirmar que a educação está em todo lugar, através
das redes de comunicação, dos saberes passados de geração para geração, pois da
aprendizagem das vivências depende toda a forma de vida, uma vez que elas partem
das invenções da nossa cultura109. A partir daí surge a organização da sociedade e da
cultura provenientes da divisão de trabalho e a necessidade de transmitir esses
saberes.
Assim, podemos afirmar que a aprendizagem é adquirida de diversas maneiras
e sob muitas formas, em qualquer lugar e é praticada em situações diversas, através
da vivência social. Entre os índios, por exemplo, não existe nenhuma situação escolar,
mas o diálogo é uma maneira de perpetuar tradições, costumes e ritos, considerados
como fortes elementos que demarcam a cultura e a identidade desse sujeito.
Particularmente, essa abordagem nos reporta às muitas aprendizagens e trocas entre
pessoas da nossa família, da rua em que moramos, da universidade que estudamos,
enfim, são saberes que a tecnologia não nos ensinaria sem a vivência com o outro
sujeito, tão singular como nós, como coloca Brandão (2004), ao enfatizar que

[...] o saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o


saber próprio dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes,
jovens, adultos e velhos; o saber de guerreiros esposas. O saber que faz o
artesão, o sacerdote, o feiticeiro, navegador e outros tantos os especialistas,
envolve, portanto situações pedagógicas [...] (BRANDÃO, 2004, p. 20).

De fato, corroboramos com este autor, pois a sistematização dos saberes na


sociedade da informação seria inviável sem a atuação docente que pode/deve
ressignificar o conhecimento através das experiências adquiridas a partir das trocas, do
cotidiano das pessoas, visando uma formação mais cidadã, uma vez que “os processos

109
Segundo Claval (2001, p. 63), “a cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas,
dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra
escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte”. Já Geertz (1978) afirma que cultura é definida
como um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos e
materializados em comportamentos. Assim, podemos afirmar que a cultura não é inata a pessoa, mas é
adquirida na convivência em grupo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 594


de aprendizagens individuais e coletivos” são extremamente relevantes para a
formação do sujeito crítico e reflexivo, como afirma Tardif (2002, p.33). No entanto,
aquela dimensão formadora dos saberes vividos cotidianamente atrelada à cultura foi
transferida para o mercado de trabalho. Assim, os educadores e pesquisadores ficaram
cada vez mais distantes da comunicação de saberes sociais, considerados como
aqueles que demarcam a nossa própria identidade.
Ademais, o professor articula diversos saberes em sua prática. Eles são de
natureza plural, fruto da formação, dos saberes disciplinares, curriculares e
experienciais, tanto nos espaços de educação formal, como não-formal.
Os saberes profissionais são aqueles adquiridos através das instituições da
formação e incorporados à prática do professor. Ao mesmo tempo, a prática docente
mobiliza outros saberes advindos da mesma, pois são concepções sobre ela.
Já os saberes disciplinares são produzidos pelas ciências da educação e
incorporados às instituições universitárias. Neste espaço educativo, os docentes
também se apropriam dos saberes curriculares presentes nas instituições e todos eles
se entrecruzam com os saberes vividos e experienciados no cotidiano, na singularidade
de cada sujeito.
Os professores também utilizam os saberes experienciais, gerados a partir da
prática da profissão. Estes brotam da experiência pessoal e por eles são validados pelo
próprio exercício profissional. Arrastam “um saber-ser e um saber-fazer”, termo
utilizado por Tardif (2002) para explicar a atuação do professor vinculado à consciência
coletiva. Geralmente esses saberes são partilhados com seus pares, dividindo assim
um saber prático sobre a atuação que trazem também, neste compartilhamento,
aquisição de outros novos saberes.
Vale salientar a relevância da experiência na atuação docente que está, para
além das certezas, a partir da prática, ela favorece aos atores a avaliação de outros
saberes, como o da formação e da experiência, avaliando e ressignificando a sua
formação e atuação profissional a partir destes.
Por tais aspectos analisados é conveniente afirmar que o professor é um sujeito
social, por isso, entendemos que a dimensão formadora deve ser atrelada à questão
cultural, ao sentimento de pertencimento ao lugar de onde vivemos, o qual nos dá
uma identidade, às experiências pessoais, pois é uma maneira de reconhecê-los
enquanto atores sociais na prática docente.
Então, é salutar que tais processos aconteçam norteados por uma prática
reflexiva, já que todo saber é construído socialmente e o saber docente é fruto de uma
constituição social, por isso, afastar da formação docente as dimensões que envolvem
cultura e identidades, é negar o diálogo com a diversidade.
Então, os professores são, ao mesmo tempo, sujeitos com dimensão social e
pedagógica e, por isso, ocupam uma posição privilegiada em relação ao conhecimento
e, como tal, podemos sim promover reflexões acerca dos saberes já
concebidos/adquiridos em outros tempos/espaços como uma maneira de reivindicar a
própria identidade e a sobrevivência da cultura em meio a uma sociedade que tem
sido fortemente marcada pelo consumismo.
Entender que o professor só pode enfrentar os desafios da docência a partir da
formação centrada nos padrões formais é destituí-lo do capital de sua experiência,
uma vez que elas podem desencadear transformações identitárias, pois, como diz

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 595


Nóvoa (1988, p. 28), o professor “é uma pessoa e que parte importante dessa pessoa é
o professor”.
Historicamente, a formação de professores esteve centrada nos dispositivos
legais, pois se acreditava ser este o meio de preparar os educadores para atuar frente
os desafios da docência. No entanto, a partir da década de noventa, aumentaram as
pesquisas no âmbito da formação e atuação docente, o que resultou em novos olhares
para pensar a docência e o profissional docente e influenciou um movimento de
pesquisadores na produção literária nessa área, no pensar a pessoa, o sujeito, a
trajetória de vida e de profissão deste profissional em educação, a exemplo as obras
de Josso (2002), Nóvoa (1988), Souza (2006), entre outros. A primeira e a segunda,
relacionam as experiências de vida e formação docente e a terceira ocupa-se de
investigar a formação docente, a partir da experiência de estágios e narrativas.
A entrada da autora deste artigo no curso de especialização na área de
educação sinaliza a busca de um conhecimento que, de certa forma, aperfeiçoasse a
prática docente e a partir das vivências em sala de aula, entre o que é e o que não
foi/será dito, acabam por se constituir como experiências autoformativas na nossa
formação porque são trilhas de relações e de enlaces que se formam no dia-a-dia.
Nesse sentido a pesquisa realizada por Souza (2006) é bem fecunda, pois
apresenta sentidos múltiplos para as experiências de vida construídas a partir da
reflexão (auto)biográfica que se inclina para uma pesquisa sobre os itinerários de
formação. Nesta obra, este autor traz conceitos, perspectivas e normas que se
estruturam a partir do estado da arte na pesquisa sobre a formação de professores,
enfocando questões concernentes a epistemologia da formação, a identidade e os
saberes docentes, além do método que alimenta a sua pesquisa investigativa, qual
seja, a (auto)biográfica. Nele também há uma tentativa de demarcar o surgimento das
pesquisas (auto)biográficas sobre a formação de professores e a história de vida como
aspecto fundante para compreender o processo formativo docente.
Os caminhos percorridos para construir o objeto da investigação de Souza
(2006) foram alimentados pela prática do estágio supervisionado, através da
abordagem experiencial, a partir das preposições e desafios formativos e
autoformativos desenvolvidos na disciplina de Prática Pedagógica II e III, no Campus I
da UNEB, como contexto gerador da investigação. E, se inscreveu enquanto
experiência formadora, pois ali o trabalho foi direcionado a partir de uma consciência
reflexiva, uma vez que os atores/sujeitos envolvidos pensaram sobre a própria prática
formativa.
Através dos itinerários de vida individual/coletiva, marcas educacionais
acontecem durante o processo de formação de cada indivíduo e viabiliza o
conhecimento de si. Por isso, a possibilidade formativa do estágio permitiu ao referido
autor (SOUZA, 2006) investigar o movimento da formação. A narrativa é tomada como
potencializadora, pois são reveladoras das singularidades úteis para compreender os
processos de formação, conhecimento, aprendizagem, identidades e subjetividades.
Dessa forma, a dimensão pessoal não deve ser destituída de tal discussão para que,
nós professores, nos apropriemos do nosso processo de formação.
Entender a formação como iniciação e processo é uma forma de superar a
transferência de conhecimento que outrora balizava a ideia da experiência inicial de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 596


estágio, pois, antes, ele é um momento de autoformação à medida que não atende
aquela ótica positivista desvinculada da realidade.
Há mais de dez anos, Josso (2002) já trabalhava na descrição compreensiva dos
processos de formação do ponto de vista de adultos aprendentes. Ela entende que
falar de uma experiência formadora é contar de si mesmo, qualidades socioculturais.
Desse modo, a autora denomina experiências pessoais como “vivências particulares”
(JOSSO, 2002, p. 48). Nessa discussão, ela traz o conceito de experiência formadora
como “articulação conscientemente elaborada entre atividade, afetividade e ideação”.
Ela difere experiências existenciais - que agitam coerências de uma vida e os critérios
das experiências e a aprendizagem pela experiência que transformam complexos
comportamentais, afetivos e ou psíquicos sem por em questão valores que orientam
os princípios da vida. Na concepção da autora, a formação é experiencial, ou seja, sem
experiência não há formação.
Portanto, Souza (2006) acredita que o trabalho com narrativas é formativo e
Josso (2002) defende que o domínio dos processos experienciais pode se tornar um
suporte fértil para desencadear transformações identitárias.
A partir dos argumentos discutidos ao longo deste texto, observamos o quanto
é necessário considerar tais conhecimentos como relevantes na integração do
currículo da nossa formação.
Ao contemplar as experiências dos autores como sinalizadoras para o
aprofundamento da prática reflexiva atrelada às experiências de estágios, também
entendemos que a realização de cursos sobre pesquisa-formação, aquela que envolve
a escuta sobre as experiências formativas, a escrita (auto)biográfica, é favorável a fim
de proporcionar transformações identitárias porque permite ao sujeito a autoreflexão
sobre a sua própria formação pessoal e profissional.
Sobre este aspecto, vale ressaltar que tivemos o privilégio de produzir
memoriais de vida escolar e trajetória de formação e profissão no decurso do curso de
Especialização em Docência do Ensino Superior, na disciplina Metodologia do Ensino
Superior, sugerido pela professora Simone Santos de Oliveira, ao ministrar este
componente curricular. Foi uma experiência rica, porque pudemos refletir sobre
aspectos formadores da nossa identidade pessoal e profissional, sobre a contribuição
dos atores sociais (professores) que deixaram marcas no nosso processo de
escolarização e formação inicial para compreendermos como a nossa identidade
docente foi/vai sendo construída.

O estado da arte na pesquisa

Compreender o movimento no estado da arte na pesquisa é bem fecundo para


nos mostrar como a compreensão da pesquisa influenciou na formação de
professores. Assim sendo, entendemos o quanto a concepção da pesquisa pode ser
determinante na nossa formação e por consequências se refletir na nossa prática
pedagógica, pois esta abordagem é de grande valia para nós enquanto
estudantes/educadores porque demonstra a importância da pesquisa qualitativa para
compreendermos o processo desta formação docente.
A partir da década de noventa, a pesquisa veio a ser compreendida como
princípio formativo e aferidor para a formação de professores o que, por sua vez, se

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 597


materializou na literatura nacional e internacional. Surgiram novos conceitos sobre a
relação ensino-pesquisa, e qualificações adversas para o educador como “o professor-
pesquisador, prático-reflexivo ou professor reflexivo” (SOUZA, 2006, p. 25), cada vez
mais presentes nas discussões sobre a formação de professores. Tal evolução na
compreensão da pesquisa é o primeiro e mais forte canal de abertura para o
desenvolvimento da presente produção.
No cenário nacional, Nóvoa (1988) teve um papel significativo através da
organização de literatura na década de noventa, apresentando diversos pesquisadores
europeus que discutem sobre a profissionalização (lutas pelo aperfeiçoamento e
reconhecimento da profissão docente) e a formação reflexiva (aquela que entende ser
a pesquisa o eixo da formação, viabilizando assim, o exercício da docência aliado a
pesquisa) que veio a ganhar destaque no Brasil a partir do I Congresso sobre Formação
de Professores nos países de Língua e Expressões Portuguesa no ano de mil
novecentos e noventa e três.
É impossível abordar sobre o movimento da arte na pesquisa destituída do
contexto socioeconômico e político, uma vez que este se constitui como um pano de
fundo que institui e dá sentidos para o palco dos acontecimentos na reforma de
professores.
A década de oitenta é tomada como recorte devido às transformações na
sociedade brasileira e internacional (queda do muro de Berlim, colapso do socialismo
real, reorganização da sociedade civil por fortalecimento da cidadania e o exercício da
democracia e conseqüentemente superação do autoritarismo), aspectos que
influenciaram no contexto educacional porque marcaram lutas contra ideologias e da
história como formato de modelo econômico capitalista.
No Brasil, por sua vez, houve uma busca para democracia popular e
participativa, consequentemente os embates travados na área da formação de
professores preconizavam sobre o caráter político da pedagogia.
Souza (2006, p. 27) faz referência a contribuição de literaturas e publicações
como a de André (2000, apud SOUZA, 2006) sobre formação de professores, e
contribuições de André Simões, Carvalho e Brzezinski (1999, apud SOUZA, 2006) como
um forte recorte teórico para entendemos a evolução da formação de professores.
Outrora ela era norteada pela visão da pesquisa quantitativa, aquela caracterizada por
um esquema experimental útil para observar certas variáveis envolvidas.
Além disso, havia crença numa separação perfeita entre sujeito e objeto. Assim,
o pesquisador deveria manter-se afastado do objeto, para que suas ideias e valores
não influenciassem o ato de conhecer, a fim de garantir objetividade, ou seja,
conclusão transparente dos fatos. Ora se os fatos não se revelam espontaneamente ao
pesquisador, nem este enfrenta desarmado de seus princípios, de onde surgem suas
interrogações? No nosso caso, por exemplo, a curiosidade epistemológica por tais
questões surgiu por ter encontrado na pesquisa a questão central para pensar sobre
uma formação reflexiva.
E, na procura do entendimento sobre os saberes e os fazeres que constituem o
ser professor no ensino superior, enfatizamos também o conceito de causalidade,
ligado à linearidade, entre variáveis independentes, mas no contexto educacional, a
realidade é constituído por “múltipla ação de inúmeras variáveis agindo e interagindo
ao mesmo tempo” (LUDKE, 1986, p. 5). No caso da relação pesquisa e formação são

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 598


algumas das variáveis que condicionam a mesma a um mero trabalho de conclusão.
Todos esses caracteres da pesquisa correspondem ao paradigma positivista. Nesta
perspectiva, a literatura sobre formação focaliza a racionalidade técnica sob influência
da tecnologia educacional e da psicologia comportamental.
Assim, os estudos apontavam para a dimensão técnica na formação de
professores. Dessa forma, a escola e a universidade tende a ser reprodutora das
desigualdades sociais porque elas são aparelhos ideológicos do Estado, ou para manter
a ordem ou para qualificar/preparar os sujeitos para o mercado de trabalho e
continuar reproduzindo a divisão de classes sociais, mas no atual contexto histórico
pelo qual passamos, não cabe mais aceitar essa ideologia sem fazermos à devida
reflexão, sobretudo do papel social do ser professor e como este profissional se
constitui.
O movimento de crítica à perspectiva reprodutivista e crítico-reprodutivista
abriram caminho para crítica e pós-críticas de diferentes processos e fenômenos
educativos sobre a formação de professores. Tais discussões, em torno do papel da
escola, geraram contendas que demarcavam o compromisso da educação com as
classes populares, uma forma de reação à sociedade capitalista. As teorizações críticas
e pós-críticas da formação de professores reagiram à neutralidade assinalada por essa
área na década anterior.
Os embates travados sobre a formação de professores consideravam o “caráter
político da prática pedagógica e o compromisso do educador” (SOUZA, 2006, p. 29).
Então, surgiram diferentes estudos denunciando o caráter reprodutivista da educação,
a marginalização do sistema capitalista buscando anunciar formas de enfrentamento
em relação ao trabalho docente. Através dos mesmos foi demonstrado o paradoxo
entre o discurso oficial de financiamento destinado à educação e demandas reais da
formação como a criação de cursos de licenciaturas. Também as pesquisas sobre
gênero desencadearam um olhar sobre a profissionalização com base na feminização
da profissão.
Nessa abordagem ficou evidente um movimento na arte da pesquisa,
ultrapassando um enfoque positivista centrado na neutralidade, segundo o qual o
trabalho sobre formação de professores seguia a racionalidade técnica, a escola, por
sua vez, era uma reprodutora das desigualdades sociais. O movimento da crítica
reprodutivista e critico-reprodutivista abriram caminhos para discussão sobre a
educação, denunciando o caráter reprodutivista da escola. A partir dessa abordagem
fica clara a importância das formas de reivindicação pela abertura dos estudos que
postulem atuação dos atores sociais.

Experiências que transformam identidades: um relato

Josso (2002) indica pistas ao apresentar a sua compreensão sobre o que é


formação e sobre as experiências que transformam nossas identidades. A autora
destaca a contribuição da educação de jovens e adultos para o advento do novo objeto
teórico: formação e autoformação, intrínseco ao adulto aprendente, aspecto que fez
emergir uma reflexão sobre a relação pedagógica.
Do ponto de vista do sujeito aprendente a formação torna-se um conceito
gerador que abriga conceitos descritivos, como temporalidade, saber-fazer, tensão

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 599


dialética, consciência, subjetividade e identidade. Nessa abordagem os procedimentos
metodológicos no processo de formação sugerem oportunidade de aprendizagem.
Assim, o conceito de formação se enriquece com práticas (auto)biográficas, pois “A
autobiografia também exerce uma função retroativa e retrospectiva, ela ordena o
passado”, como afirma Alarcão (1996, p. 129), pois aprender significa o próprio
processo de integração. Então, aprender pela experiência é ser capaz de resolver
problemas que extrapolam as soluções teóricas, uma vez que a experiência formadora
articula o saber fazer e o conhecimento.
Josso (2002) sinaliza que a abordagem (auto)biográfica constitui-se também
numa experiência formadora e permite uma interrogação sobre o saber-fazer. Há
cerca de vinte anos as histórias de vida tornaram-se um material valioso para as
ciências humanas. Por isso, marca presença em eventos como simpósios, colóquios ou
encontros científicos a nível local, regional, nacional e internacional. Já na área
educacional, houve expressivo crescimento na formação de professores valorizando os
saberes adquiridos e as abordagens (auto)biográficas ganharam mais valorização na
comunidade acadêmica, sobretudo nos cursos de pós-graduação, nas linhas de
pesquisas que abordam a formação docente.
O interesse pela abordagem (auto)biográfica abriga em si a atuação do sujeito e
do ator. Segundo Josso (2002) veio a ser teórica e científica por causa da teoria dos
Sistemas, proposta por Bertalanffy que reintroduziu a abertura e indeterminação no
seio de uma visão determinista, caracterizando no campo social, as individualidades. A
autora também destaca a contribuição da Antropologia (compreensão de realidades
construídas por meio das interações sociais) e da Sociologia (tradução concreta da
teoria sistêmica), Psicologia da Educação, através de autores como Carl Rogers, Paulo
Freire, Bernad Honoré que prepararam o terreno para a compreensão da formação do
ponto de vista do sujeito aprendente.
Vale ressaltar os dois momentos autoformativos na construção da minha
identidade docente. A primeira ocorreu durante a produção do meu memorial durante
o processo de graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB,
Campus XI, cidade de Serrinha, a partir da disciplina Didática ministrada pela professa
Ana Cristina Pereira. O desafio naquele momento foi escrever sobre a vida escolar
fundamentado nos conhecimentos daquela disciplina dada na Graduação.
O outro grande momento autoformativo, ocorreu recentemente na Pós-
graduação oferecida pela Faculdade de Tecnologia e Ciências - FTC, pólo de Feira de
Santana, a partir do enfoque dado no componente curricular intitulado Metodologia
do Ensino Superior, sob orientação da professora Simone Santos de Oliveira, co-autora
desta produção, na condição de professora orientadora, ao nos permitir construir um
memorial que retratasse todo o processo de escolarização à formação inicial,
perpassando pelas experiências profissionais. Ambas vivências me fizeram refletir
principalmente sobre os modos de atuação pedagógica. Na primeira, foi possível
identificar traços de professores que passaram em minha vida e hoje são presentes na
minha atuação. Na segunda, ficaram evidentes os sinais da escolha profissional desde
a infância, bem como as vivências que me permitiram pensar sobre minha identidade
pessoal e profissional e a escolha da profissão docente.
Esta abordagem me reporta a minha trajetória profissional, pois ela se
constituiu a partir da conclusão do ensino fundamental no ano de 1989, quando surgiu

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 600


a necessidade de fazer a escolha profissional, já que naquela época a do segundo grau
atendia à formação técnica/profissional á nível médio (Magistério, Administração e
Enfermagem, dentre outros).
Por influência de uma amiga, optei pelo Magistério no Instituto de Educação
Gastão Guimarães - IEGG. Aquela formação teve duração de três anos e durante as
duas experiências de estágio daquele curso tive oportunidade de revisitar a minha
origem estudantil ao estagiar na escola onde fiz a Educação Infantil. Que experiência
fascinante! Lembrei das primeiras histórias, as pinturas. O perfil daqueles professores
foi se constituindo um saber docente para minha atuação. De algum modo, eu tinha
segurança para atuar na sala de aula.
Ainda no segundo ano do curso fui convidada para lecionar numa turma de
alfabetização. No ato deste exercício profissional, na condição de aprendente, eu já
tentava colocar em prática as aprendizagens do curso técnico, mas no segundo
semestre tive que abandonar o trabalho para fazer o último estágio do magistério. Ali
eu vi o desafio da docência, ao trabalhar com uma turma de crianças repetentes, não
sabia como mediar àquelas situações de dificuldades de aprendizagens e indisciplina.
Após a conclusão do curso, comecei a corrida por emprego. Em 1996 fui
contratada para trabalhar na escola Príncipe da Paz, numa turma de primeira série e,
neste período, já me considerava como profissional. No ano seguinte, tive
oportunidade para trabalhar na escola Filadélfia, considerada uma experiência
maravilhosa, pois havia formação continuada através de grupos de estudos,
conhecimentos estes adquiridos que me permitiram atuar como coordenadora – Mais
um traço na minha identidade profissional.
A partir de tais experiências senti a necessidade de validar a minha prática
através da formação acadêmica. Fiz o curso de Licenciatura Plena em pedagogia pela
Universidade do Estado da Bahia – UNEB, no Campus XI, em Serrinha, entre os anos de
2004 à 2009. Através desta formação me encantei pela área de atuação docente, por
isso escolhi a pós-graduação em Docência do Ensino Superior para dar continuidade a
minha busca por novos saberes e fazeres profissionais.
Esta breve narrativa de formação, atrelada à minha trajetória profissional me
permite uma tomada de consciência entre minhas experiências e posições tomadas na
minha vida pessoal/profissional e me consente ampliar meu processo de
conhecimento e formação, aprendizagem da profissão desde o contexto da formação
inicial no curso técnico ao nível superior.
E, um olhar sobre mim no contexto desta escrita/pesquisa, como diz Souza
(2006, p. 104), me permitiu “Revelar-me, Apresentar-me, autorizar-me. Dizer de mim”.
Deste modo, os saberes provêm das experiências adquiridas nas nossas itinerâncias
pessoais e profissionais.

Considerações (in)conclusivas

Discutir sobre o ser professor no ensino superior, entrelaçando com a sua


formação, a partir dos saberes e fazeres, é uma temática fértil para quem está no
exercício da docência, pois sinaliza uma continuidade da luta daqueles pioneiros que
se manifestaram por melhorias no sistema educacional, pois é a partir do
aprofundamento da consciência reflexiva que tais posturas se fortalecem, sobretudo, a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 601


pesquisa formação, àquela prática que Josso (2002) considera útil para oportunizar
transformações identitárias através da consciência coletiva.
O professor é um mediador, condutor do processo de ensino e de
aprendizagem, realizando intervenções pedagógicas que fazem com que os conceitos
espontâneos desenvolvidos pelos alunos na convivência social, evoluam para o nível
científico.
Deste modo, o trabalho docente consiste numa atividade mediadora entre o
individual e o social, entre aluno e a cultura social. E, enquanto sujeito do
conhecimento, ele constrói saberes e práticas ao longo de sua trajetória profissional.
Se estes forem validados, será uma forma de superar a dicotomia entre a teoria e
prática, entre o que faz no ensino e o que o fundamenta é também um modo de abrir
caminho para que eles sejam polidos através da atividade reflexiva.
Portanto, seria imprescindível a criação de um núcleo de pesquisa para que os
estudantes de Pedagogia e pedagogos em formação contínua a fim de estimular um
pensamento autônomo em torno de experiências da autoformação, através da
atuação social, podendo perceber os benefícios da reflexão da formação e ação,
integradas a uma prática contextualizada e realizada a partir da realidade vivenciada
pelos sujeitos em formação para compreender melhor como os professores aprendem
e viabilizar práticas mais significativas no contexto da formação inicial, levando o
graduando a se perceber como um sujeito em constante formação, retroalimentando
epistemologicamente os seus saberes, a partir de uma reflexão de suas trajetórias de
vida e de formação, surgindo os saberes-fazeres mais significativos no campo
educacional.

Dialogando com...
ALARCÃO Isabel e outros. Formação reflexiva de professores Editora Porto, 1996.
ARROYO, Miguel G.. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. 11. ed. Petrópolis, RJ:
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 602


SAVIANI, Dermeval. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do
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TARDIF, Maurice. Saberes docente e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes,
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 603


A experiência formativa de mediação docente em meio rural: relato, memórias e
construção de saberes

Susiara Moreira Reis Coutinho


PPGEduC/UNEB/IAT/SEC
susiarareis.iat@gmail.com

Este artigo traz reflexões sobre o saber docente considerando fatores ligados a identidade, experiências
de vida, percurso profissional, relações que estabelece com seus alunos, escola e a comunidade. Para
tal, utiliza-se da análise do relato oral de uma professora mediadora da rede municipal da cidade São
Sebastião do Passé no Estado da Bahia no Distrito Baixa da areia que atua no Programa Ensino Médio
Com Intermediação Tecnológica (EMItec). Busca-se nesse viés, compreender através da autobiografia
como se dar o processo de construção dos saberes docentes pelo ato de ensinar e aprender. Nessa
perspectiva, tem-se na narrativa de formação um instrumento constitutivo da docência, pois através
dela, podem ser apreciados os níveis de evidência de construção do saber docente, assim como, suas
especificidades os disciplinares, curriculares e experienciais adquiridos. Para tal, são utilizados aportes
teóricos como: Tardif (2013), Ferreira (2010), Josso (2002), Souza (2006) e Leite (2002). Eles apresentam
o percurso histórico da educação rural brasileira dentro das suas múltiplas pluralidades, bem como, a
ideia de que a experiência formadora nasce da capacidade de falar de si próprio, sua história,
estabelecendo significado ao que foi construído individualmente e coletivamente
Palavras-chave: EMItec; Experiências formativas; Educação rural; Memórias docentes.

Introdução

Ensinar é mobilizar uma ampla variedade de saberes,


reutilizando-os no trabalho para adaptá-los e transformá-los
pelo e para o trabalho. (TARDIF, 2013)

O presente artigo representa uma contribuição nos estudos sobre a formação


do professor que atua em meio rural, adentra nas peculiaridades da construção do
saber docente observando aspectos da prática cotidiana buscando perceber a
identificação que o docente desenvolve com a Escola Rural da qual faz parte. Para tal
teremos como objeto de estudo a experiência de uma professora mediadora que atua
no Programa Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (EMItec), no Distrito Baixa
da Areia no município de São Sebastião do Passé, no Estado Bahia.
Utilizaremos a abordagem (auto)biográfica e o método de entrevista narrativa e
através do relato da mediadora tentaremos obter respostas para algumas indagações
do tipo: Como se sente essa mediadora diante do exercício da docência em meio rural?
Como desenvolve sua prática no contexto do Programa EMItec? Como os saberes
experienciais contribuem para a (re)orientação de sua prática? Assim, pretende-se
nesse artigo discutir a construção do saber docente, tendo em vista a exposição oral
citada.
Como aporte teórico será abordado à visão de Tardif que considera o saber
docente como essencialmente social adquirido no contexto de uma socialização
profissional onde é incorporado, modificado, adaptado em função dos momentos e
das fases da carreira, ao longo de uma história profissional na qual o professor
aprende a ensinar fazendo o seu trabalho. Logo, mesmo que o saber docente esteja

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 604


inter-relacionado às subjetividades, esse está sempre correlacionado com a situação
de trabalho com outros (alunos, colegas, pais), ancorados numa situação complexa –
ensinar – situado num espaço de trabalho – a sala de aula, escola - plantado numa
instituição e numa sociedade (TARDIF, 2013, p.15).
A produção textual se fundamenta na concepção de teóricos como o já citado
Tardif (2013), como também, Ferreira (2010), Josso (2002), Souza (2006) e Leite (2002)
apresentam o percurso histórico da educação rural brasileira dentro das suas múltiplas
pluralidades, bem como, a ideia de que a experiência formadora nasce da capacidade
de falar de si próprio, sua história, estabelecendo significado ao que foi construído
individualmente e coletivamente.
A partir da análise do relato, é possível compreender que os saberes adquiridos
através da experiência profissional constituem os fundamentos de sua competência,
trazendo nesse viés, as concepções sobre educação rural em diferentes momentos,
tendo em vista, as especificidades das evidências da atuação do Programa EMItec, e os
traços da construção dos saberes experienciais observados através da história de vida
da professora mediadora.

Educação em meio rural: o programa de ensino médio com intermediação


tecnológica (EMItec)

A educação rural no Brasil foi sempre relegada a planos inferiores, tendo como
retaguarda ideológica o elitismo acentuado do processo educacional instalado pelos
jesuítas e a interpretação política-ideológica da oligarquia agrária. Entretanto, esse
tipo de educação tem sido motivado por focos de interesses do capitalismo
contemporâneo e recebe a implantação de modelos urbano-liberais (LEITE, 2002 p.
13).
Leite (2002) aprofunda a questão, destacando as transformações sócio-políticas
fundamentado no capitalismo liberal do pós II Guerra Mundial, que acabaram por
ocasionar rupturas na sociedade campesina, entre elas alterações no processo
educacional rural, urbanizando-a em função da nova ordenação econômica. Assim,
subsidiada por uma ideologia urbanizante ocorreram muitas transformações no
sistema escolar rural, como: a perda de sua identidade sociocultural e
consequentemente o seu enfraquecimento como elemento agregador da prática
campesina.
Todavia, a escola Rural subsiste ao descaso, mantendo-se fragilizada enquanto
organização de ensino e conhecimento. Por causa desse enfraquecimento considero
ser necessário “redescobrir” o significado, o papel e o sentido da escola entre os
rurícolas, e tentar entender até que ponto ela ainda se estabelece como “valor social”,
bem como sua função na formação de mão-de-obra e, como elemento identificador de
uma cultura/práxis campesina (LEITE, 2002, p. 78).
Quanto ao valor social e as mudanças pelas quais o campo está passando são
muitas vezes impulsionadas pela interferência da cidade no campo, a influência das
novas tecnologias dentro da agropecuária, o interesse político no aprimoramento da
mão de obra rural, entre outros. Contudo, mesmo com essas influências, a escola rural
deve proporcionar ao homem do campo a postura de aprendiz, tendo o contexto

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 605


como objeto de estudo, o qual emergem novos conhecimentos, aprendizagens,
saberes e pesquisa.
Nesse sentido, entendo que os conhecimentos prévios do homem do campo,
como também os tipos de variações linguísticas, lógicas aritméticas, conhecimentos
oriundos do senso comum e de experiências de vida - as técnicas de cultivo - e os
diálogos estabelecidos através da convivência com outro e a natureza devem ser
validados dentro do processo formativo e considerados como partes integrantes
dentro do processo de ensino aprendizagem.
Diante disso é necessário dentro ao cenário educacional nacional “Leis”
próprias com intuito sustentar a originalidade da Escola Rural. E para tal, segundo
Leite, são imprescindíveis os seguintes pontos:

a) Exercício da democracia e da cidadania; b) Busca conhecimento técnico e


reconhecimento do saber rural; c) Contextualização da produção e da vida
rural na atualidade social e econômica; d) Formação e profissionalização
rural e do trabalho cooperativo; e) Vivência ecológica e valorização do
habitat rural; f) Intensificação da identidade cultural campesina. (LEITE,
2002, p. 95).

Os seis pontos apresentados representam uma síntese de uma política


educacional para o homem do campo e esses estão intrinsecamente pautados nos
princípios da LDB nº 9.394 de 20/12/1996, quando estabelece no Art.28 as diretrizes
para a educação básica rural, dentre eles, as adaptações necessárias ao meio rural com
conteúdos curriculares, metodologias, calendário contextualizado às fases do ciclo
agrícola e condições climáticas.
Embora a prerrogativa da Lei não abarque todas as especificidades da Educação
Rural, a partir dela foram fundamentadas pesquisas que apontam que educação é uma
só, todavia com políticas diferenciadas, em virtude das múltiplas realidades
socioculturais existentes (LEITE, 2002, p. 110). Diante disso, surgem muitas políticas
públicas que atuam em meio rurais com objetivo de alcançar o homem que vive em
meio a várias ruralidades, um ser político, social, cultural, heterogêneo que reside em
comunidades distantes do meio urbano. Dentre essas, destaco a experiência do
Programa Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (EMItec) pioneiro no Estado
da Bahia desde 2011.
Esse Programa foi instituído pelo Governo do Estado da Bahia, por meio da
Secretaria da Educação, substituindo o Programa Ensino Médio no Campo
(EMC@AMPO) que iniciou o trabalho com intermediação tecnológica em 2008, como o
projeto estruturantes da Secretaria da Educação do Estado da Bahia. O EMItec
constitui uma alternativa pedagógica para atender a jovens e adultos que,
prioritariamente, moram em localidades distantes (ou de difícil acesso) em relação a
centros de ensino-aprendizagem onde não há oferta do Ensino Médio.
Tem uma clientela de mais 80% aproximadamente de alunos de meio rural
abarcando diversas modalidades: indígena, quilombolas, unidades prisionais. Presente
140 municípios, 410 localidades, 759 turmas, tendo cada uma seu professor mediador,
atendendo 15.838 alunos em 2013. Segundo Araujo, Santos, Cunha, Guimarães (2012,
p. 20) o desenvolvimento das aulas das disciplinas que compõe o currículo do ensino
médio conta com utilização de diversas mídias que atuam de modo integrado no

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 606


sentido de favorecer as diferentes formas de aprendizagem, tendo a mediação
tecnológica como cerne deste processo.
Dentro dessa conjuntura tem-se uma metodologia que utiliza multimeios,
pautada na concepção colaborativa de aprendizagem, contando com aulas
teletransmitidas por videostreaming, atividades presenciais realizadas individuais e em
grupo.A dinâmica das aulas se efetiva através dos professores especialistas, presentes
em uma sala/estúdio, na qual são desenvolvidas atividades pedagógicas de forma
interdisciplinar e contextualizada.
Os educandos, por sua vez, ficam em salas de aula/espaços de construção da
aprendizagem, localizadas em suas comunidades e são orientados por um professor
mediador de base. Assim, conectados com o estúdio interagem com o professor
especialista, posicionado diante de uma câmera nas respectivas salas de aula, com
transmissão de imagem, voz e dados, do que resultará um diálogo efetivo, garantindo
a completa comunicação em tempo real, entre educandos, professores especialistas e
professores mediadores de base no processo de ensino e aprendizagem.
Os professores especialistas têm formação específica por área de estudo, na
sua maioria com Especialização, alguns com Mestrado e até Doutorado. Residem na
capital do Estado da Bahia (Salvador), onde se localiza a sede do Programa. Já os
mediadores têm formações diferentes, mas as exigências do Programa fazem com que
tenham pré-requisitos básicos, como: residir nos limites dos territórios, conhecimento
nas especificidades metodológicas e tecnológicas, preferencialmente possuir
licenciatura plena – conforme a LDB 9.394/96, conhecimentos sobre as questões
relacionadas à sua realidade local.
Esses recebem formação inicial sobre concepção e Diretrizes do Ensino Médio
com Intermediação Tecnológica por área de conhecimento, princípios da
contextualização e interdisciplinaridade, conhecimentos da tecnologia adotada,
estratégias de pesquisa, aprendizagem e avaliação. A docência do Programa EMItec é
protagonizada por esses dois profissionais em educação. E esses exercem funções
diferentes dentro da dinâmica das aulas.
Esses atores dividem entre si atividades pedagógicas inclusive as atividades
avaliativas. As avaliativas são apresentadas por Araujo, Santos, Cunha, Guimarães
(2012, p. 23) descrevendo todo o processo de construção do sistema avaliativo, que é
iniciado com a estruturação do calendário da unidade elaborado pela equipe
pedagógica. Assim, dentre os diferentes tipos de instrumentos avaliativos elaborados,
destacam-se: Atividade Dirigida (AD) Avaliação Presencial por Área - (APA) Avaliação
Qualitativa (AQ) Prova Final - (PF)
O sistema avaliativo busca desenvolver um diálogo entre as disciplinas,
utilizando questões interdisciplinares e com isso possibilita intercruzamento dos
conteúdos. A adoção dessa metodologia favorece a contextualização e não
fragmentação de conteúdo. Em comum todas as atividades do sistema avaliativo são
construídas pelos professores videoconferencistas e são supervisionado e avaliado
pelos professores mediadores.
Assim, o referido mediador atua de forma presencial articulado com estas
ações, pois após a validação pela equipe pedagógica das avaliações e postadas no
Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), esses arquivos são baixados pelo o
professor mediador, impressos e posteriormente aplicados junto aos alunos,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 607


conforme a orientação pré-estabelecida no plano de aula do Mediador, documento
orientador da práxis pedagógica, e também, na disponibilização de gabaritos
comentados pertinentes a cada instrumento adotado durante a unidade letiva, e
executado o ato de correção.
Observamos que a docência do EMItec é executada pelos professores
videoconferencista e mediadores, cada um tem configurado seu espaço e função
dentro do Programa. Em suma, O primeiro é responsável pelas aulas, tirar as dúvidas e
confeccionar as atividades avaliativas e material de apoio adotando o ensino à
distância. De outro lado fica o segundo que atua direto junto aos alunos, desenvolve
funções técnicas, administrativas, gerenciado situações especifica da comunidade,
estabelece o intercâmbio com o Programa, a comunidade, escola e gestão municipal
atuando de forma presencial.

Professora/mediadora em meio rural: história de vida, relatos, memórias.

A reflexão a que se propõe neste artigo contempla a análise de uma entrevista


narrativa na qual a mediadora rememora suas vivências como estudantes e
professora. Com intuito de fundamentar esse estudo será utilizada a concepção de
Tardif (2013) que considera o saber docente um saber plural, proveniente de várias
fontes: disciplinares, curriculares e experiências. Os disciplinares são aqueles que
emergem da tradição cultural e dos grupos sociais produtores de saberes. Os
curriculares apresentam-se concretamente sob a forma de programas escolares
(objetivos, conteúdos, métodos) e o experiencial que incorpora a experiência
individual e coletiva.
Iremos nos ater ao último, partindo de seus três objetos, segundo Tardif (2013, p. 49):
“1) as relações e interações que os professores estabelecem e desenvolvem com os
demais atores no campo e na prática. 2) As diversas obrigações e normas às quais seu
trabalho deve submeter-se; 3) A instituição enquanto meio organizado de funções
diversificadas.” Assim de posse da transcrição da entrevista da mediadora do
Programa EMItec e partindo do contexto de atuação docente pretendo questionar
como se sente essa professora/mediadora? Como desenvolve sua prática no contexto
do Programa EMItec no meio rural? Como os saberes experienciais contribuem para
(re)orientação de sua prática?
Enfatizamos que a decisão de optar pela abordagem (auto)biográfica, é
justificada porque os textos autobiográficos, tanto na forma escrita ou oral,
possibilitam questionar os sentidos das experiências de vida, aprendizagens e saberes,
e, através das memórias de si, permitem o entendimento da formação. (SOUZA, 2006).
Esse fato favorece observar através da exposição oral recortes sincrônicos, nos quais
perpassam fatos, memórias, lembranças, e acabam por traçar a trajetória dessa
docente ao longo dos vinte e nove anos do exercício profissional.
Essa ação é possível também porque o sujeito, através das narrativas, tem
oportunidade de se posicionar com relação a sua maneira de estar no mundo, de agir
sobre ele, de gerir sua vida e suas relações com o mundo (JOSSO, 2002, p.68). Dentre
as lembranças que a mediadora apresenta pretendo fazer um recorte salientando
nesse artigo a experiência da mediadora após ingressar no Programa. Ela adentrou no
EMItec desde o início de sua estruturação, atuando na cidade São Sebastião do Passé,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 608


no distrito Banco de Areia (meio rural). Teve a oportunidade de mediar aulas nas três
séries do ensino médio exercendo a docência de forma diversificada.
Ainda no que cerne a análise serão considerados três períodos correspondentes
aos últimos anos (2011, 2012, 2013) em que a mediadora exerce à docência de forma
e funções diferentes, partindo das orientações do referido Programa. No ano de 2011,
a mediadora iniciou a docência dando aulas de fato. Ela recebia todo o material de
apoio do Programa EMitec e com base nesse, ministrava suas aulas. Conforme o relato
apresentado:
[...] o EMItec pra mim foi uma grande experiência eu só ensinava Língua
Portuguesa e então me deparei com quatro disciplinas diferentes e me
convidaram para ser mediadora e no primeiro momento não estava sendo
mediadora eu estava sendo professora. [...] você tinha que estudar
conteúdo e aplicar, então pra mim eu não sabia, tinha que ficar o primeiro
para não fazer feio em sala de aula , aquelas crianças, não tinham culpa,
porque o projeto ainda não tinha chegado de fato. [...] (mediadora A)

Nesse ínterim exerceu a docência em sua inteireza, mas, necessitava de mais


pré- requisitos e domínio de conteúdo para exercer a docência, emanando estudo e
pesquisa, pois só tinha experiência com Língua Portuguesa de ensino fundamental.
Mas, quando se trata de meio rural é preciso que o professor, como profissional que
trilha o caminho da mudança e das incertezas, seja formado de maneira que adquira
conhecimentos pedagógicos comuns, especializados e habilidades específicas
(FERREIRA, 2010, p. 109).
Assim, percebemos que o mediador contava apenas como um material de
apoio construído dentro dos moldes de uma ideologia urbana com o currículo
compatível ao ensino médio padrão nacional. Então, esse educador se vê desafiado a
lecionar quatro disciplinas em meio a heterogeneidade e especificidades rurais sem
registro de nenhum tipo de formação disponibilizada pelo Programa. Durante o
exercício da prática pedagógica percebemos que o saber experiencial, do professor
que atua no meio rural como também o urbano é resultante de interações, visto que,
raramente trabalha sozinho.
Eles ficam em contato direto com outras pessoas, seus alunos, colegas, pais,
gestores e membros da comunidade, e assim é criada uma rede de interações, onde o
elemento humano é preponderante, exigindo dos professores não só o conhecimento
sobre o objeto de estudo, mas a capacidade de se comportarem como sujeitos, como
atores e de serem pessoas em interação com outras pessoas.
Dessa interação são criadas estratégias metodológicas que favorecem o
desempenho coletivo do mediador que se dividem por área do conhecimento,
cabendo a essa professora, em particular, ensinar as disciplinas Língua Portuguesa,
Literatura, Educação Física, Artes e Inglês. Assim, nota-se que ato de ensinar ocorria de
fato, pois o mediador embora supostamente recebendo algum tipo de orientação era
o único que estabelecia contato com os alunos, conforme relato:

[...] Éramos três mediadores, cada uma numa área, a gente não conseguia
fazer outra coisa estudava, aplicava. A gente conseguiu no primeiro
momento desenvolver todo o trabalho embora fosse muito exaustivo, mas
no fim do ano aprendi muito. [...] (Mediadora A)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 609


O relato em questão cristaliza uma concepção sinalizada por Tardif quando
coloca que a relação mediada pelo trabalho lhes fornece princípios para enfrentar e
solucionar situações cotidianas. Essa experiência constitui um sentimento de
competência entre os professores de profissão, fazendo que esses considerem o saber
experiencial a base do saber ensinar (Tardif, 2013, p. 23). O segundo ano (2012) foi um
período transitório, as aulas foram iniciadas no formato do ano anterior, sendo que, o
grau de complexidade desse é maior, visto que, a mediadora deixa de trabalhar uma
série para trabalhar com duas (1º e 2º ano). Conforme relato:

[...] No segundo ano do EMItec no meu entender começou a gente


dentro de sala de aula, aplicando aula mais difícil ainda porque só
era uma turma de manhã outra a noite e passaram a ser três
turmas diferentes, com conteúdo diferentes. Meu Deus, ainda foi
mais trabalhoso! E segundo ninguém acreditava que realmente
funcionava e que esse projeto desse certo. Primeiro, se o Estado
não trouxer o projeto para cá, não vai dar certo eram duas turmas
de 1º e de 2º. (Mediadora A)

Assim, enquanto sujeito da sua ação, o professor apesar das condições


precárias pedagógicas cria mecanismos docentes que contribuem para aprendizagem
dos seus alunos, entretanto a situação em questão reflete uma discrepância entre
formação recebida e atuação profissional. E esse fato a meu ver compromete o
desempenho dos professores e aprendizagem dos alunos, pois concordo com Ferreira
(2010) que uma formação condizente com o contexto em que o professor vai atuar
pode contribuir mais e melhor para a mudança da prática pedagógica e da escola. E no
que diz respeito ao professor do meio rural, como docente de um contexto plural e
que lida com sujeitos heterogêneos, devem ser melhor preparados para atividades
docentes. (FERREIRA, 2010, p. 113). Conforme o trecho do relato:

[...] eles dormiam muito e nós começamos agitar um pouco mais, a gente
começava a mediação a gente tinha o material antes, estudava aquele
material e quando ia pra sala de aula nós sabíamos como tudo ia acontecer.
Os slides vinham para as mãos da gente, mesmo quando a aulas não
acontecia ou eles aplicavam a aula ou mesmo quando os alunos não
entendiam, a gente sabia a aula toda, porque antes a gente tinha acesso a
tudo, a gente aplicava a aula e revisava todo conteúdo com eles, e aí a aula,
fluía, acontecia de verdade, o segundo acontecia assim, nós começávamos
agindo mais com eles e eles pegavam legal, principalmente matemática, por
ser de zona rural não tem livro, então muitos tinham anos sem estudar, não
tinha noção, voltava estudar porque ali era uma oportunidade de ter o
Ensino Médio ali, mas de conteúdo eles não tinham mais nada. Então, pra
voltar a adaptar a matemática, química e física que nunca viram, antes pra
eles foram muito difícil. Por isso a gente preparava as aulas por área, o
professor biólogo tinha curso de química e física já trabalhava com outras
escolas. Com isso foi muito bom por que ele revisava com esses alunos e
discutia era muito rico.[...] (Mediadora A)
A seguir, aproximadamente, no final do primeiro semestre de 2012 é
implantado na sua completude o Programa EMItec. Configurada a nova conjuntura do
Programa as aulas passam a ser dadas pelo professor especialista/videoconferencista
que atuam no estúdio interagindo com os alunos pelo sistema IPTV - é um sistema que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 610


reúne todas as tecnologias de comunicação: videoconferência em tempo real,
mensagens públicas e privadas, visualização coletiva de aplicativos, desenhos no
quadro digital, transmissão de áudio e vídeo, realização de enquetes apresentando
resultados em forma de gráfico instantaneamente e transferência de arquivos.
O mediador passa a ser “coautor” dentro do processo de transmissão de aulas
fazendo intercâmbio entre alunos e professor videoconferencista. Desenvolve a
docência de forma paralela, pois de posse do material de apoio proporciona aulas de
revisão e aprofundamento de conteúdos a fim de facilitar aprendizagem de seus
alunos. Entretanto, no que cerne ao sentimento e prática da mediadora, noto que
embora esteja imersa as diversas obrigações e normas às quais seu trabalho deve
submeter-se, ela se posiciona de forma contrária aos princípios, não como uma mera
executora de atividades estabelecidas, mas protagonista do ato docente, inclusive
subestima a interferência da professora videoconferencista transformando sua ação
em recurso pedagógico, conforme sua fala:

[...] como sujeito mediador sinto-me um professor que ajuda que auxilia
porque eles não veem a gente como mediadores, primeiro eles morrem de
medo do mediador, eles tem assim, porque sabem, quem avaliar, quem vai
dar as contribuições é o mediador. Os professores do EMItec estão só para
dar aula a título de conteúdo mas quem vai avaliar de ponta a ponta é o
mediador, eles tem muito respeito pelo mediador e isso facilita a vida da
gente no trabalho [...] (Mediadora A)

Com base no trecho da narrativa, ressalvo que uma leitura superficial sobre a
nova configuração do perfil da docência exercida pelo mediador do EMItec, pode
sugerir que esse, por não dar aula, se afasta da essência do exercício do magistério.
Todavia, ela dentro desse cenário atípico, potencializa suas funções técnicas,
administrativas e pedagógicas. Exerce a mediação não só dentro da sala de aula, mas
também na comunidade escolar e extraescolar, imprimindo no contexto traços
identitários que lhes são peculiares e esses repercutem na dinâmica do trabalho
apresentado pelo Programa, tanto de forma positiva ou negativa a depender do perfil
revelado pelo referido mediador.
O último período a ser abordado no ano de 2013, retrata o momento de
plenitude do programa com a estrutura física consolidada, sala ambiente instaurada.
Mas, quanto ao mediador, observamos que ele se reconfigura novamente, pois deixa
de trabalhar só com uma área do conhecimento e disciplinas especificas e passa a
mediar todas as disciplinas. Isto é, passam de três mediadores por turma para ser um
por turma. Suponho que esse fato favoreça a percepção interdisciplinar desse
profissional, visto que faz com que ele perpasse por todas as áreas do conhecimento.
Conforme o relato a seguir:

[...] Eu faço vários pesquisas, pesquiso todo material, xeroco e deixo para
que eles possam ir folheando, lendo aí dou a cada equipe todo o material. É
porque tem uma localidade chamada Riacho Claro é mais distante. Lá
entrou na INTERNET através do celular, então é muito difícil é uma
comunidade muito pobre a maioria são caseiros. Essas pessoas já ganham o
salário mínimo e nessa comunidade, a gente fornece todo material, papel
metro, cartolina, cola, tudo. Para que eles façam, aí quem estuda de manhã
fica para tarde fica para noite e quando não tem alimentação a gente faz
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 611
merenda na escola, faz o almoço na escola. Eles ficam com o carro que fica
pela manhã , então, eles ficam o dia todo porque o carro da tarde não pode
levar todo mundo os da tarde e eles da manhã. Eles ficam o dia todo a
gente faz comida para eles e eles ficam fazendo os trabalhos. Aí eu faço
assim se não for assim eles não tem como fazer [...]. (Mediadora A).

As situações apresentadas exigiram do profissional em educação uma postura


autônoma, com o desenvolvimento de habilidades pessoais e a capacidade de
enfrentar situações atípicas e inusitadas. Assim, a mediadora ao se deparar com esses
obstáculos, desenvolveu ações que exigiram muito esforço, estudo e estratégia
metodológica, fazendo com que no exercício da formação desenvolvesse aquilo que
Tardif chama habitus - certas disposições adquiridas na prática real - que lhes
permitem enfrentar esses condicionantes. (TARDIF, 2013, p. 49).
Ainda, com vistas no saber experiencial construído a partir das atividades
cotidianas, notamos durante a trajetória da mediadora que por várias vezes ela
reorienta sua práxis movida pela instituição EMItec. Contudo, seu registro oral mostra
que em nenhum momento deixa de sentir-se docente, e como conhecedora do
contexto rural em que está inserida, busca estratégias de ensino que favoreçam a
aprendizagem dos discentes, transcendendo a função que lhe é apresentada pelo
Programa, a qual propõe que mantenha a imparcialidade, busque orientações sempre
junto aos professores videoconferencista conduzindo suas atividades a mercê das
decisões estabelecidas pela coordenação pedagógica.
Na prática não ocorre dessa forma, a todo tempo vemos impregnada as ações
da mediadora que extrapolam o ato de motivar os discentes, antes mesmo, estão
presentes na articulação pedagógica que é desenvolvida paralelo ao que é estipulado
pelo Programa, como a disponibilização de materiais diversos, alimentação,
cronograma de locomoção, instituição de parcerias locais, esclarecimento de dúvidas,
avaliação quantitativa e qualitativa dos alunos com critérios próprios, orientação nas
tarefas, entre outros.
Portanto, entendemos que todas as atividades permeiam o espaço do exercício
da docência. Mais especificamente, quando se trata de meio rurais, essa intervenção
torna-se imprescindível. Todavia, mesmo constatada a relevância dessas ações não há
registro de uma formação continuada e isso dificulta o trabalho do docente,
principalmente, que é no plano institucional onde ocorre a articulação das ciências e
prática docente, só se estabelece concretamente, através da formação inicial continua
dos professores (TARDIF, 2013, p. 12).

Considerações finais

Atualmente, em todo território do Estado da Bahia, o Programa Ensino Médio


com Intermediação Tecnológica (EMitec) se tornou uma alternativa de estudo para
muitas pessoas que moram distante, na sua maioria em meio rurais. Essa estratégia
pedagógica utiliza um currículo compatível ao ensino regular, com intuito de promover
equidade de possibilidades entre os discentes, oferecendo a todos as mesmas
condições de acesso aos conteúdos programáticos, assim como, o uso da tecnologia
como ferramenta de apoio que possibilita diminuir a distância geográfica aproximando
as pessoas.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 612


A realidade descrita corresponde a uma experiência inovadora de ensino em
meio rurais, visto que, existe uma busca exacerbada de uma escola de qualidade que
utilize as tecnologias digitais, pressionada pelas novas exigências de autoformação,
mão de obra qualificada que atendam as demandas ao estilo de trabalho desenvolvido
dentro da agropecuária/agronegócio. Todavia, quem deve pensar a educação rural são
os professores que se identificam com esse contexto (FERREIRA, 2010, p. 111).
Nesse sentido a (auto) biografia constitui uma possibilidade de pesquisa
significativa, pois “a fertilidade das histórias de vida”, como prática de formação,
contribui efetivamente para o desenvolvimento pessoal, propiciando o exercício
compreensão e análise da dimensão pessoal, da valorização de si enquanto pessoal e
profissional. (SOUZA, 2008, p. 150).
Ao analisar os relatos da mediadora do Programa EMItec, visualizamos através
da sua exposição oral, a construção do saber experiencial ao longo do percurso
formativo, visto que durante os três períodos relatados ela reconfigura sua função
várias vezes, no intuito de atender as prerrogativas do Programa. Assim, notamos que
independente das mudanças atitudinais, a mediadora mantêm a sua postura de
educadora, apresentando uma práxis dinâmica que dialoga com o contexto do meio
rural.
Para Tardif (2013) o objeto do saber experiencial é evidenciado dentro do
contingente das interações. Portanto, compreendo que a mediadora no exercício de
seu trabalho desenvolve uma relação próxima com todos os envolvidos dentro do
contexto escolar. As diversas obrigações e normas estabelecidas são também
incorporadas a metodologia de ensino, mas especificamente, a instituição, no caso
EMitec apresenta, conforme a fala da mediadora, uma lacuna, pois embora seja
adotado um currículo tipicamente urbano, não há registro de implantação eficaz de
formação continuada.
Esse fato faz com que não ocorra diálogo contínuo com o mediador,
comprometendo o andamento do seu trabalho, pois os saberes não são estáticos e
acabados, para serem renovados, faz-se necessário uma interrelação entre teoria e
prática (FERREIRA, 2010, p.113). Assim, os mediadores que atuam em meio rural
precisam de uma formação diferenciada em serviço, que valorize os saberes
adquiridos na prática, pois esses definem o tipo do professor, o tipo de prática, a
qualidade e eficácia do desempenho desse profissional constituído no processo
permanente de construção/desconstrução/reconstrução que ocorre no exercício da
docência.

Referências
ARAUJO, H.; SANTOS L.; CUNHA S.; GUIMARÃES.; Sistema de Avaliação do Programa
Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (Emitec): Possibilidades efetivas na
construção do conhecimento. SANTOS, Letícia M. (Org.). Educação básica com
Intermediação Tecnológica: tendências e práticas. v.1; Salvador Fast Design,2012.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDBEN nº 9.394 de 20/12/1996. Brasília: Ministério da Educação, 1996.
______. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Parâmetros
Curriculares Nacionais. Brasília: MEC, 1996.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 613


Leite, Sérgio Celani. Escola rural:urbanização e políticas educacionais.2 ed. São
Paulo,2002.
JOSSO. Marie Christine. Experienciais de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2002.
SOUZA. Elizeu Clementino. (Auto)biografia,identidades e alteridade:Modos de
narração, escritas de si e práticas de formação na pós-graduação. Ano 2, Volume 4-
p.37-50-jul-dez de 2008.
FERREIRA, Lucia G. Professores da Zona Rural: para pensar a formação. LEIRO, A.;
SOUZA. E. (Org.). Educação Básica e trabalho Docente: políticas e práticas de
formação. 2. ed. Salvador: EDUFA, 2012.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 15 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 614


Os professores licenciados em Ciências Biológicas e suas histórias formativas – o que
os escritos nos contam

Talamira Taita Rodrigues Brito


UESB
taitadoc@gmail.com
Maria Soares da Silva Teixeira
UESB
mssteixeira@yahoo.com.br

Este texto é fruto de pesquisa bibliográfica construída a partir de nossos estudos sobre a vida formativa
e de trabalho de professores licenciados em biologia no interior da Bahia, cidade de Guanambi. As
perguntas de nosso trabalho de mestrado, que se encontra em fase inicial, são: Como os professores de
ciências, dos anos finais (6º ao 9º ano) do ensino fundamental, das escolas públicas do município de
Guanambi – BA se forjam na profissão a partir de suas bases formativas e de trabalho? O que os
professores elegem como elementos de encontrar-se na profissão professor na sua caminhada de
trabalho na escola? A quais condições de trabalho que estão submetidos tais professores? Para
responder a estas perguntas lançamos como obejtivos: Conhecer como os professores licenciados em
ciências, dos anos finais (6º ao 9º ano) do ensino fundamental da Educação Básica se reconhecem na
profissão professor a partir de suas experiências formativas e de trabalho; Apresentar quais elementos
são apontados pelos professores que os fazem permanecer na profissão a partir de suas condições de
trabalho e experiências vividas na profissão. A busca bibliográfica e organização de quadro teórico nos
têm proporcinado uma imersão na literatura que trata da formação, do trabalho e também das
trajetórias que estas pessoas/professores fazem para se constituirem e se manterem na profissão
professor. Para este momento apresentamos o que a literura nos conta sobre este personagem e como
os estudos (auto)biográficos estão se/nos desenhado nos caminhos para responder às nossas questões
de pesquisa.
Palavra-chave: Professores licenciados em Ciências Biológicas; Formação; Estudos (auto)biográficos.

Introdução

Este texto é fruto de pesquisa bibliográfica construída a partir de nossos


estudos sobre a vida formativa e de trabalho de professores licenciados em Biologia,
no interior da Bahia, cidade de Guanambi.
A pesquisa surge a partir de uma proposta de mestrado em Educação Científica
e Formação de professores, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, do qual
fazemos parte. Como o objetivo do Programa é fomentar pesquisas que elucidem as
áreas de formação de professores da Matemática, Física, Química e Biologia. Nossa
proposta de trabalho se situa na trama que envolve o professor de Biologia por uma
questão de afinidade da orientadora e orientanda, com trabalhos envolvidos já
desenvolvidos na área.
A nossa relação com o objeto de conhecimento se inicia em março de 2012.
Estávamos tentando aliar interesses, considerando que a formação inicial da Teixeira
em Biologia, juntamente com sua experiência à profissão professor se aproximasse da
vocação de pesquisa iniciada por Brito em seus trabalhos de pesquisa voltada para o
mundo do trabalho, o desenvolvimento profissional de professores e as narrativas de
pessoas que fazem parte dessa trama.
Nesta tessitura, verificamos um fenômeno muito comum das escolas do
interior de nosso estado – o professor que se forma em uma licenciatura e termina se

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 615


constituindo professor em outra área de conhecimento. Este fenômeno conhecido
como “o problema do professor excedente” 110, tem sido ponto de muita intensidade
de discussões entre o universo de diretores de escolas públicas, coordenações e,
naturalmente, pelos próprios professores que estão sujeitados a organizar sua carga
horária de trabalho de acordo com que se tem para dar aula.
Por professor excedente, devemos entender como aquele professor que fez
concurso para ensinar Ciências Naturais ou Biologia, no caso de nossa pesquisa, e,
devido a falta de carga horária para fechar suas 40 horas semanais de trabalho, fica
“sobrante”, fica sem ter “o quê fazer” (Considerando a sala de aula como o único veio
de entendimento de fazer docente para o estado e/ou município). Por esta razão é
obrigado a pegar outras disciplinas para “preencher” sua carga horária semanal ou,
caso contrário, ele poderá ficar à disposição do estado para até ser disponibilizado
para outra cidade ou até mesmo sofrer um processo de exoneração, caso sua carga
horária fique por mais de um ano ociosa, ou ele não aceite ministrar outras disciplinas.
Esse tem sido um dos desafios que os professores da Educação Básica – Anos
Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio têm enfrentado para se manterem e ao
mesmo tempo se constituirem na profissão. Por esta razão passamos a pensar nessa
situação como um terreno fértil para gestar uma pesquisa que tratasse de entender as
contradições que esses professores vivenciam em seu dia a dia de permanência na
profissão, considerando que reconhecemos a condição do professor como algo que é
construído por um repertório de saberes, de condições de trabalho, de entendimento
dos poderes públicos do que é a condição docente e, como isso se traduz nas vozes
dos professores sobre si, sobre seu grupo, sobre suas condições formativas, a partir
dessas relações construídas nestes entrecruzamentos.
Reconhecendo que tudo isso posto, transbordado de possibilidades
argumentativas, de olhares angulares diferenciados, e passíveis de vários
atravessamentos, é que focamos nosso objeto, assumindo três perguntas de partida
para nosso trabalho de mestrado, que se encontra em fase inicial: Como os professores
de Ciências, dos anos finais (6º ao 9º ano) do Ensino Fundamental, das escolas públicas
do município de Guanambi – BA se forjam na profissão a partir de suas bases
formativas e de trabalho? O que os professores elegem como elementos de encontrar-
se na profissão professor, na sua caminhada de trabalho na escola? A quais condições
de trabalho que estão submetidos tais professores?
Para responder a estas perguntas lançamos como objetivos: Conhecer como os
professores licenciados em Ciências, dos anos finais (6º ao 9º ano) do Ensino
Fundamental da Educação Básica se reconhecem na profissão professor a partir de
suas experiências formativas e de trabalho; Apresentar quais elementos são apontados
pelos professores que os fazem permanecer na profissão a partir de suas condições de
trabalho e experiências vividas na profissão.
Para este artigo, apresentamos nossa caminhada na literatura da área – o que
os escritos nos contam, considerando para este momento os textos que anunciam
abordagens (auto)biográficas, uma vez que nos apropriamos deste ambiente de

110
Excedente: No universo das escolas públicas é muito comum ouvirmos esta terminologia, dada por
aqueles professores que não fecharam a carga horária. Aqui estamos fazendo uso do que, comumente,
eles se apropriam.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 616
estudos teóricos/metodológicos como o princípio norteador de nossos achados e
construtos de pesquisa.
Para isso, organizamos o texto em duas partes: a primeira que anuncia o que as
dissertações e teses abordam, nos contam sobre a vida formativa e de trabalho desses
professores; e a segunda, uma reflexão, do que para nós neste momento, nos
proporcionou em termos de entender nossos processos investigativos, entender o
grau de contribuição de nossa pesquisa e entender mais sobre nossas opções
metodológicas.
Esperamos que este fragmento de pesquisa anuncie, contribua e fomente
outras redes e investigação sobre a vida de professores no interior de nosso país.

Dos escritos sobre processo formativo de professores licenciados em Ciências

A busca bibliográfica e organização do quadro teórico têm nos proporcionado


uma imersão na literatura que trata da formação, do trabalho e também, das
trajetórias que estas pessoas/professores fazem para se constituirem e se manterem
na profissão professor.
Nossos colaboradores de pesquisa são os professores da rede pública municipal
e estadual da cidade de Guanambi, interior do estado da Bahia. Cidade que,
atualmente, possui 14 escolas públicas que atendem ao Ensino Fundamental II (6º ao
9º ano), sendo que dessas, 10 são municipais e 04 são estaduais 111.
Com a Lei 11.274/2006 é estabelecido o Ensino Fundamental de nove anos,
com matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade. Nas escolas municipais de
Guanambi, por exemplo, já foi implantado o ensino de nove anos. Quanto às escolas
estaduais, estas se encontram em fase progressiva de extinção dos anos finais do
Ensino Fundamental, até então de responsabilidade da Unidade Federativa. O Estado
permanece com a responsabilidade do Ensino Médio, as prefeituras com o Ensino
Fundamental I e II e a Educação Infantil. Conforme os Pareceres do Conselho Nacional
de Educação/Câmara de Educação Básica - CNE/CEB nº 5/2007 e nº 7/2007, “[...]
deverão coexistir, em um período de transição, o Ensino Fundamental de oito anos
(em processo de extinção) e o de nove anos (em processo de implantação e
implementação progressivas).” (CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA, 2007, p.1).
Com a progressiva extinção do Ensino Fundamental, a preocupação ainda
persiste com a formação de professores, pois os docentes estão migrando para o
Ensino Médio, nas escolas públicas estaduais. Por meio das pesquisas realizadas nas
escolas estaduais e municipais, constatamos que 34 professores ministram aulas nas
111
Para lembrar, as Escolas Estaduais, que até então ofereciam os anos finais, estão em processo de
transição, em ofertar apenas o Ensino Médio. Exemplo: O Colégio Estadual Governador Luiz Viana Filho,
a Unidade de Ensino Monteiro Lobato, o Colégio Estadual Idalice Nunes e o Colégio Estadual Gercino
Coelho. O Centro de Educação Estadual de Educação Profissional em Saúde e Gestão (CEEP) ofereceu a
última turma de Ensino Fundamental em 2013.
Estas informações foram coletadas em visitas realizadas nas quinze escolas visitadas em Guanambi –
Bahia, sendo estas, 05 Escolas Estaduais: Os Colégios Estaduais Governador Luiz Viana Filho, Gercino
Coelho, Idalice Nunes, a Unidade de Ensino Monteiro Lobato e o Centro de Educação Estadual de
Educação Profissional em Saúde e Gestão (CEEP). 10 Escolas Municipais: Anísio Cotrim Fernandes,
Colônia Agrícola de Ceraíma, Dr. José Bastos, Getúlio Vargas, José Neves Teixeira, Maria Regina Freitas,
Professora Enedina Costa de Macedo, Professora Josefina Teixeira de Azevedo, Professor Pedro Barros
Prates e Rômulo Almeida.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 617
disciplinas de Ciências, dos quais 14 são licenciados na área de Biologia e Ciências
Biológicas. Os outros 20 professores são licenciados em Pedagogia, Normal Superior,
Letras, Matemática, Geografia, História, Química, Educação Física. Isso nos aponta uma
situação preocupante com a vida de trabalho desses professores que atuam em uma
área de formação, uma vez que consideramos o repertório de formação condição para
o ingresso no fazer docente/fazer docência.
Na organização de nosso quadro teórico fizemos duas trilhas distintas e
dialogadas: uma listagem de textos em formato de artigo, capítulos de livro e livros
sobre o assunto e outra trilha mais particular só com as dissertações e teses que
abordam sobre a vida de professores, numa perspectiva investigativa (Auto)biográfica.
Daí o foco de nosso artigo – apontar quais são os trabalhos, o que pesquisaram, o que
apresentam como resultado de trabalho e de metodologia.
Por meio do banco de teses da Capes, de 2001 a 2012, sobre formação de
professores de Ciências (Considerando as áreas de Física, Química, Matemática e
Biologia) foram publicadas 901 teses e dissertações; 221 sobre formação inicial de
professores de Ciências; 651 sobre formação continuada de professores de Ciências;
152 sobre história de vida e formação de professores de Ciências; 09 sobre história de
vida formativa e profissional de professores de Ciências; 09 sobre professores de
Biologia e história de vida112.
Os temas de investigação, as pesquisas realizadas versam sobre formação de
professores de Ciências; ciclo de vida profissional dos professores de Biologia; a
necessária renovação do ensino das Ciências; o ensino de Ciências na educação
brasileira. Cita, também, sobre Ser professor de Ciências no Brasil; desenvolvimento
profissional dos formadores de professores de Ciências no contexto da inovação e de
formação de professores de Ciências; mudanças sociais na educação. Faz referência à
carreira, prática de formação dos professores e as histórias da sua vida; (Auto)
biografias, trajetórias de formação e profissionalização.
Quando redefinimos a forma de nossa busca, de teses e dissertações, durante
os meses de janeiro e fevereiro de 2014, no banco de teses da Capes, utilizando a
palavra-chave “formação de professores de Ciências Biológicas”, encontramos 76
registros. Desses resultados, deparamos com 25 trabalhos direcionados
especificamente para os professores de Ciências Biológicas e/ou de Biologia, que estão
relacionados com nossa pesquisa.
Por considerar esses escritos relevantes, apresentaremos alguns trabalhos
pontuais, de pesquisadores que versam sobre os professores de Ciências e suas
histórias de vida formativa e profissional. Ressaltamos que nem todos trabalharam
dentro da perspectiva dos estudos (Auto)biográficos. Porém, trouxeram as narrativas
de entrevistas como ponte de acesso à vida, à formação, ao universo de trabalho
desses professores.
As teses e dissertações expressam sobre os professores de Ciências Biológicas, a
relevância da formação inicial e continuada desses professores, em serviço,

112
A busca no Banco de Dados da Capes foi realizada por meio das palavras chaves, tais como: formação
de professores de Ciências, formação inicial de professores de Ciências, formação continuada de
professores de Ciências, história de vida e formação de professores de Ciências, história de vida
formativa e profissional de professores de Ciências, professores de Biologia e história de vida. Os dados
foram coletados entre os meses de maio e dezembro de 2013.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 618
considerados espaços formais, e por meio dos clubes de Ciências, qualificados como
espaços não formais, para essa formação. Para além desses, fazem referência sobre a
relação pesquisa e ensino na prática docente, as percepções dos professores em
formação, o letramento científico e as aprendizagens significativas no ensino de
Biologia, o uso de textos alternativos para o ensino de Ciências, as representações
sociais dos licenciandos em Ciências Biológicas. É enfatizado, ainda, sobre o processo
de formação, a configuração da prática como componente curricular nos cursos de
licenciatura em Ciências Biológicas e a constituição das identidades na formação dos
professores de Ciências, saberes e práticas docentes.
Das pesquisas realizadas, destacamos 11 teses e dissertações, a saber:
Ambrósio (2012), Baratella (2012), Zaneti (2012), Brito (2011), Longhini (2011),
Chapani (2010), Martínez Pérez (2010), Melo (2010), Soares (2010), Paixão (2008),
Reale (2008), que descrevem sobre a formação de professores de Ciências Biológicas,
Ciências Naturais, Biologia, Matemática, Química e suas histórias de vida e de
formação.
São enfatizadas, nas teses e dissertações pesquisadas, sobre trajetórias de
formação e profissionalização de professoras, pesquisa-formação; a construção e o
conhecimento de si, a escuta do outro, através das narrativas de formação; a vida de
estudante, de professora, de mãe e sua formação docente; a formação do formador de
professores de Matemática no contexto das mudanças curriculares; história de vida de
professoras e ensino de Biologia no Brasil: formação, socialização, saberes e práticas
docentes; Também, a ação docente no ensino de Ciências; narrativas autobiográficas
de formação, processos de vir a ser professor de Ciências; formação de professores em
espaços diferenciados de formação e ensino. Nesse contexto, inclui, mais ainda,
análise do percurso de formação e trabalho de docentes na Educação Básica; trabalho
docente e as repercussões na escola e na sala de aula; Políticas públicas e história de
formação de professores de Ciências.
Esses trabalhos publicados e de diversos outros autores nos permitem refletir
sobre a docência como base formativa da profissão professor; a constituição histórica
desse grupo social, bem como a história de vida e formação de professores de
Ciências, como meio de entender os processos que os docentes passam e constroem
ao se tornarem professores.
As leituras descritas sobre formação de professores de Ciências, suas histórias
de vida, desenvolvimento profissional, carreira, trabalho e profissão docente vêm
propiciando entender o processo de formação dos professores de Ciências. Essa busca
tem acontecido, no decorrer dos estudos, das discussões nas disciplinas de mestrado,
das informações e sugestões nos grupos de estudos. Um aprendizado que demanda
leituras diárias, programação de tempo, acesso às varias fontes de informação, à
internet. Estes conhecimentos acumulados vêm provocando o pensar sobre a docência
e a construção histórica dos professores de Ciências.
Das pesquisas por nós efetivadas, sobre o professor de Ciências, o que vem
provocando atenção é a perspectiva de formação inicial e continuada; as reclamações
da precariedade da formação nas licenciaturas; o professor e o currículo das Ciências;
as funções impostas à escola com as transformações sociais, afetando as condições de
trabalho dos professores (KRASILCHIK, 1987), ensino de Ciências: fundamentos e
métodos (DELIZOICOV; ANGOTTI; PERNAMBUCO, 2009), as lacunas nas metodologias,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 619


que resultam em professores despreparados para ensinarem o aluno a pensar, a
pesquisar, a refletir, a desenvolver a criticidade diante do trabalho e da carreira
docente. Esta falta de criticidade quanto à (des)valorização do professor em sua
profissão, carreira e trabalho docente precarizado (ANTUNES, 2011, 2002), vem
ocasionando uma baixa qualidade no trabalho docente.
Das pesquisas e leituras efetuadas, de teses e dissertações, sobre professores
licenciados em Ciências Biológicas e suas histórias formativas, a história do ensino de
ciências, suas peculiaridades, dos trabalhos esboçados por diversos pesquisadores,
salientamos que as contribuições estão sendo valiosas para o nosso conhecimento
como pesquisadoras.
Essa imersão, com as leituras e pesquisas, estão, cada vez mais, nos
possibilitando ter um olhar mais crítico e passível de estudarmos perspectivas de
mudanças nos processo de formação docente. Mais ainda, entendermos como vem
ocorrendo esse processo, ao longo da carreira, profissão e trabalho docente, por meio
das narrativas (Auto)biográficas e de diversas outras metodologias utilizadas pelos
pesquisadores, que ora estamos nos apropriando dessas leituras.
Portanto, esses trabalhos de pesquisa se constituem como mais um campo de
conhecimento sobre a formação acadêmica, pessoal e profissional dos professores
licenciados em Cências Biológicas, seus desafios e caminhadas docentes. Para além de
conhecer os vários escritos dos autores sobre os professores licenciados em Ciências e
suas histórias formativas, também encontrarmos trilhas para ajudar a refletir sobre os
problemas e possíveis soluções para a melhoria do exercício da profissão docente.

De suas contribuições para os estudos (auto)biográficos e o desdobramento da


pesquisa

Os estudos (auto) biográficos vêm fornecendo aportes sobre o entendimento,


de forma reflexiva, sobre nossos processos investigativos, o grau de contribuições de
nossa pesquisa e sobre nossas opções metodológicas. Esses estudos apontam para a
formação de professores em Ciências Biológicas e suas histórias formativas.
Professores que atuam nos anos finais (6º ao 9º ano) do Ensino Fundamental da
Educação Básica, seduzidos para serem colaboradores da pesquisa.
Essa pesquisa biográfica realizada, parcialmente, tem contribuído no sentido de
situar nossos olhares investigativos sobre a área. Entender o que se tem feito nas
pesquisas, as necessidades que ainda temos de ampliação de linhas de pesquisas não
só para as Ciências Biológicas, mas também para as áreas de Matemática, Química e
Física, até então espaços voltados para pesquisas de cunho mais experimental, de
análises de métodos e conteúdos escolares. É necessário explorar mais a vida de
nossos professores para entender cada vez mais.
Dos vários trabalhos visitados de teses e dissertações, colhemos frutos
relevantes para desenhar nossa pesquisa. Constatamos que a dissertação de Ambrósio
(2012) fala sobre os aspectos relacionados à formação da identidade, profissão e
saberes docentes dos professores de Ciências e de Biologia, do município de Porto
Alegre. O objetivo foi verificar a presença de traços característicos do estatuto
epistemológico das Ciências Biológicas desses professores. Caracteriza como pesquisa
qualitativa. A metodologia foi balizada na orientação teórica da investigação, numa

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 620


perspectiva do interacionismo simbólico. Ambrósio sugere que a utilização de uma
metodologia mais detalhada como a entrevista ou história de vida dos professores
pode captar melhor a complexidade do seu trabalho proposto sobre a identidade
docente.
A dissertação de Baratella (2012), fala sobre as representações sociais dos
licenciandos em Ciências Biológicas, na modalidade educação à distância, por meio do
portfólio. O objetivo foi identificar e analisar as Representações Sociais que os alunos
do curso de Ciências Biológicas, na modalidade a distância, de uma Universidade
mineira, estavam construindo sobre a realização do Portfólio, como instrumento de
avaliação formativa. A metodologia envolvida foi a pesquisa bibliográfica e a pesquisa
de campo, com utilização de questionários. O portfólio foi considerado como
instrumento difícil de ser construído pelos participantes da pesquisa, que envolveram
150 professores.
Esse trabalho nos possibilitou perceber o processo de conhecimento que vem
sendo posto como uma das alternativas de propiciar aos professores uma licenciatura,
especialmente aos professores que moram longe dos institutos superiores e
universidades, por meio do ensino à distância. Um proposta de ensino que está
ampliando, no intuito de minimizar a situação alarmante de professores sem
licenciatura no país, e que estão atuando na Educação Básica. Circunstância essa
vivenciada pela orientanda dessa pesquisa, em sua formação como professora de
Biologia e de Ciências Biológicas.
Zaneti (2012), em sua dissertação, se insere na área de pesquisa em formação
inicial de professores. O objetivo foi investigar, especificamente, a licenciatura em
Ciências Biológicas e o currículo. Este, fruto de uma reestruturação, que visava atender
às Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação
Básica. A pretensão é a superação do antigo modelo de organização curricular
conhecido como 3+1, no qual a formação de professores figurava como
complementação do bacharelado. Faz crítica à formação de professores e a
necessidade do desenvolvimento de uma epistemologia adequada à identidade
docente. A orientação metodológica se delinea a partir de duas fontes – a análise
teórica dos textos estudados (tradição consagrada nos estudos de filosofia de
influência francesa) e os estudos históricos de documentos. A pretensão, ao procurar
identificar a concepção de professor que subjaz o Projeto Político Pedagógico (PPP) e
os planos de ensino, foi delinear a epistemologia do professor (licenciado) subjacente
ao currículo que está posto.
Desses trabalhos salientamos os escritos de Brito (2011), em sua tese de
doutorado, que relatam as trajetórias e construções dos ciclos de vida profissional dos
professores de Biologia, sua carreira, trabalho e o processo de reconhecimento de ser
professor na caminhada profissional desses professores. Apropria-se da História Oral
Temática como lastro teórico-metodológico. O meio de interlocução utilizado, com os
seis colaboradores da pesquisa, foi a Entrevista Temática. Narra às descobertas dos
caminhos percorridos, o processo de construção da profissão docente, o encontro com
o ser professor na universidade.
Expressa a utilização de instrumentos como os registros escritos, o roteiro de
entrevistas, gravação e transcrição das falas dos onze colaboradores envolvidos na
pesquisa, as estratégias de condução, procedimentos, questões éticas e legais e suas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 621


finalidades científicas. Nessa caminhada profissional, o professor se forma e torna-se
formador, na construção pessoal e na ressignificação de suas próprias práticas e
experiências escolares, ao narrar suas histórias de formação docente na universidade.
Brito assinala, também, sobre as histórias de formação profissional dos
professores da universidade pesquisada. Apresenta os saberes e as práticas adquiridas
no exercício da docência dos professores de Biologia e o método de pesquisa utilizado
em seu trabalho científico. Possibilita-nos apreendermos o conhecimento do outro, na
aprendizagem da docência, através das narrativas das trajetórias de escolarização, da
profissão docente. Por meio do dispositivo, história oral temática, apresenta os
caminhos de formação mediante as narrativas dos professores de sua vida formativa e
profissional, as experiências construídas e os espaços de mudanças, na compreensão
de si e do outro, no processo de formação profissional. Enfatiza, mais ainda, sobre a
construção da identidade pessoal e profissional ao se constituírem professores. Cita
que as histórias narradas pelos professores de Biologia o passado é lembrado,
contextualizado no tempo, no espaço e no cenário de cada colaborador, na
compreensão de sua natureza multifacetada e na interpretação das relações espaciais
e temporais de cada participante da pesquisa.
A proposta do trabalho de Longhini (2011) expressa a formação, saberes e
práticas de professoras e ensino de Biologia no Brasil, por meio de suas histórias de
vida. O objetivo de sua tese foi relacionar as histórias de vida dos professores de
Biologia, saberes profissionais e práticas docentes aos diferentes contextos políticos
educacionais, no período de 1960 a 2010. Pautou sua pesquisa na narrativa biográfica.
Numa abordagem qualitativa de pesquisa, a autora se apropriou da metodologia da
história de vida,. Relata a influência dos aspectos pessoais e profissionais docentes,
revelados a partir das histórias de nove colaboradoras pós-graduadas em mestrado
e/ou doutorado, que atuam ou atuaram profissionalmente em distintas regiões
geográficas do país.
Esse trabalho de pesquisa de Longhini, nos permite entender o adentramento
dos processos formativos de professores, que atuam e atuaram nas instituições de
ensino, as pesquisa realizadas e os encruzamentos da profissão, carreira, trabalho e
vivência com os alunos, colegas, com a própria trajetória e itinerário docente.
Em sua tese de doutorado, Chapani (2010) discute sobre as políticas de
formação docente, com direcionamento aos professores de Ciências, da região de
Jequié - Bahia, suas histórias formativas e o papel do professor nesse contexto. Parte
das seguintes questões: como se entrelaçam as políticas, a formação emancipatória,
participação ativa na vida política e sua formação. Busca uma abordagem crítica. O
referencial teórico-metodológico utilizado é a teoria social de Habermas. Os
procedimentos metodológicos são constituídos por meio de levantamento
bibliográfico (legislação, documentos e estudos acadêmicos) e de campo (histórias de
formação, obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas com quinze
professores de Ciências). Como resultado, obtém um quadro geral das políticas de
formação docente nas últimas décadas, o enredamento destas políticas com as
histórias pessoais dos entrevistados, bem como uma análise interpretativa de como os
docentes têm participado da construção das políticas referentes à sua própria
formação e de como isto poderia se dar de maneira mais democrática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 622


Uma trajetória de formação que vem contribuir para complementar o nosso
entendimento e nossa interpretação da construção da história dos professores de
Ciências de Jequié – BA, do nosso país, as perspectivas de formação, a consciência
exercida da profissão docente e seu papel nas atividades exercidas na profissão
docente.
Na tese de doutorado de Pérez (2010), o objetivo foi estudar as contribuições e
as dificuldades da abordagem de questões sociocientíficas (QSC) para a Formação
Continuada de Professores de Ciências, desenvolvida em um curso de mestrado em
ensino de Química. A metodologia envolvida foi a qualitativa de corte crítico, sobre o
trabalho dos professores de Ciências em serviço.
O trabalho de Perez foi relevante para entendermos o processo do ensino de
Ciências na profissão docente, do ponto de vista da Ciência, Tecnologia, Sociedade e
Ambiente no Ensino de Ciências (CTSA). Vale-se da Análise do Discurso Crítico como
dispositivo analítico. Ao ressaltar a construção da autonomia e as interações dialógicas
entre os próprios colegas de profissão, alunos que participaram da pesquisa, no
processo da profissão docente, nos faz pensar sobre o nosso próprio desenvolvimento
de nossa formação profissional. Esse processo vai acontecendo em nossas trajetórias
formativas, nos espaços formais e não formais da profissão professor.
Para além de suas contribuições, Pérez (2010) cita a importância do
planejamento do ensino, a participação ativa dos professores, as reflexões e análises
do desenvolvimento de seus trabalhos e os dos colegas. Considera a inserção das
questões sociocientíficas como uma alternativa de renovação curricular para o ensino
de Ciências.
José Ronaldo Melo (2010), em sua tese, fala sobre a formação do formador de
professores de Matemática. o objetivo foi investigar como uma comunidade aprende e
transforma suas práticas, sobretudo seus discursos e saberes sobre formação de
professores de Matemática num contexto de mudanças curriculares. A abordagem
teórico-metodológica foi a biografia de histórias de vida de nove professores. Melo
analisa o currículo, o professor formador e sua formação, a partir da perspectiva das
relações de poder-saber presentes nos estudos foucaultianos. Seu trabalho possibilita
inteirarmos como ocorre o processo de formação dos professores, suas experiências
de vida e formação, suas memórias narrativas, itinerários de vivência em vários
espaços formais e não formais percorridos.
Na dissertação de Soares (2010) são traçados os saberes experienciais no
contexto da ação docente dos professores de Ciências Naturais. O objetivo foi
investigar a ação docente dos professores de Ciências Naturais, do 6˚ ao 9˚ ano, do
Ensino Fundamental da rede pública municipal de Teresina – PI, no sentido de situá-la
como lócus de mobilização e de produção de saberes experienciais, com licenciatura
plena em Ciências e em Biologia. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa.
Soares esboça os caminhos metodológicos, fazendo uso do método (auto) biográfico
ou história de vida dos professores, a partir da década de 1950. A pretensão foi
contribuir para a ressignificação do processo de formação docente, dando voz a quinze
professores, a relação da teoria e prática, revelando as especificidades da experiência
docente.
O interessante da dissertação de Paixão (2008) é que ela inicia sua pesquisa na
perspectiva de entender sua própria formação. O objetivo foi investigar suas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 623


experiências formativas, na perspectiva de compreender em que medida se
configuraram contribuições importantes para sua formação, bem como para a
formulação de princípios teóricos de formação docente. A metodologia desenvolvida
se baseia em uma modalidade narrativa, de natureza autobiográfica e memorística.
Recorre à sua própria história de vida, analisando seu percurso de formação e as
experiências formadoras em diferentes momentos e episódios narrativos distintos.
Evidencia sua autonomia progressiva e identidade profissional docente, que se
caracterizam por importantes aprendizagens efetuadas, princípios de ação pedagógica
e capacidades profissionais desenvolvidas. Como autoconhecimento e como proposta
de práticas de formação nas licenciaturas.
Em seu trabalho de pesquisa, Reale (2008) fala sobre a formação de seis
professores em dois “Clubes de Ciências”, no estado do Pará, considerados espaços
diferenciados e não formais de formação e ensino. O objetivo foi investigar, por meio
das histórias de vida profissional dos professores, os fatores diferenciais de sua prática
pedagógica, nesses espaços, e compreender que sentidos formativos foram expressos
pelos colaboradores investigados.
Reale fez uso de entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio, cujas
transcrições serviram de análise dos saberes formativos, formação e identidade
profissional, através dos Clubes de Ciências. Aponta as contribuições para a formação
de professores na área de ensino de Ciências e de Matemática por meio da iniciação à
docência e formação profissional. Pesquisa essa, que nos faz pensar sobre a nossa
própria história de vida e nosso processo formativo e profissional, como percurso de
reflexão inicial e continuado, nessa caminhada docente e o desenvolvimento de nosso
trabalho dissertativo, que ora estamos construindo.
Tivemos a oportunidade de nos inteirar das várias abordagens, análises e
interpretações propostas em teses e dissertações pesquisadas, que enfatizam sobre a
escolha de pesquisas e importância das histórias de vida e de formação dos
professores licenciados em Ciências Biológicas, em Biologia e em várias áreas afins.
Acreditamos que essas abordagens podem contribuir para entendermos as nossas
trajetórias e as histórias dos nossos colaboradores, os processos de formação docente,
no intuito de proporcionar produções e resultados relevantes para a comunidade
científica. Pensando nas potencialidades de pesquisa, através dos estudos
(auto)biográficos e sua aplicabilidade para entendermos a formação docente,
inteiramos dos escritos de vários autores que descrevem sobre o percurso e a
temporalidade histórica das histórias de formação dos professores.
Percebemos, portanto, que as metodologias propostas nas teses e dissertações
constituem uma caminhada evolutiva de conhecimento e reflexão das diversidades de
métodos de pesquisa. Um processo que vem contribuir para situarmos o método que
mais se identifica com a nossa perspectiva de trabalho. Na intenção de atender às
nossas perspectivas de, através das narrativas das histórias de vida dos colaboradores,
entender o processo de formação docente que vem acontecendo nas trajetórias de
vida dos professores de Guanambi-BA, e de vários outros espaços formativos. Cremos
que as narrativas de formação dos colaboradores, dos trabalhos de pesquisa, são
peculiaridades, que podemos identificar em cada espaço formativo docente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 624


Evidenciamos que ainda temos que caminhar, investigando mais trabalhos
científicos, nos contextos das teses e dissertações, que utilizam os estudos (auto)
biográficos, pois temos pouco trabalho nesta linha, em nossa área de investigação.
Acreditamos que as pesquisas sobre os professores licenciados em Ciências
Biológicas e suas histórias formativas, por meio dos estudos (auto)biográficos e outros
processos metodológicos possibilitam conhecer a história do outro, suas
especificidades, em seus momentos históricos na apresentação da experiência
humana, social, formativa e profissional do professor. Um terreno fértil de
informações, de histórias narrativas, que não podem ser quantificadas, mas requer
uma reflexão e conhecimento mais apurado sobre os métodos e sua aplicabilidade nas
pesquisas, que envolvem a formação de professores.
O encontro com as várias metodologias apresentadas nas teses e dissertações
lidas, por meio das entrevistas narradas pelos professores pesquisadores e
colaboradores nos permitiu caminhar para os nossos questionamentos sobre o que os
professores elegem como elementos de encontrar-se na profissão professor, na sua
caminhada de trabalho na escola. Também, o que os fazem permanecer na profissão a
partir de suas condições de trabalho e experiências vividas que estão submetidos.
Cremos que, o acesso e reflexão das práticas de formação inicial e continuada
dos professores e do próprio pesquisador, licenciados em Ciências Biológicas, tendem
a contribuir na produção de conhecimento e de posicionamento do professor, de si e
do outro.
A apresentação das histórias dos professores colaboradores, das pesquisas
produzidas postulam na ética profissional, nos critérios de cientificidade, na
transcrição dos roteiros de entrevista, de fontes orais e escritas, no cuidado e
originalidade dos escritos. Estudos atravessados de literaturas de autores que
escrevem sobre as várias abordagens metodológicas. Construtos de formação de
professores de Ciências Biológicas, de Biologia, Matemática, Física, Química,
constituidas em suas trajetórias formativas e profissionais. Narrativas de formação,
construídas com as próprias experiências e os conhecimentos do outro, ao longo da
formação docente, no campo de trabalho dos professores pesquisadores.

Algumas considerações

Propomos-nos ao escrever este texto falar do que os escritos nos contam


sobre o professor licenciado em ciências, localizando dissertações teses e apontando
quais se apropriam dos estudos (auto)biográficos para agregar novas descobertas
sobre a formação do professor e suas narrativas sobre si e sobre o mundo.
Temos um universo de pesquisas que trazem o ensino de ciências,
entendendo este campo como a física, química, matemática e biologia. Nas buscas,
isso termina nos mostrando que já temos um rol de trabalhos dentro desta grande
área – embora, sob nosso ponto de vista, considerados embriões no que tange a
formação e vida de professores. Estamos no começo de nossas investidas em escutas e
práticas (auto)biográficas.
Os trabalhos de dissertações e teses que localizamos através do banco da
CAPES, nos mostra que há uma apropriação das entrevistas como meio de conhecer o
universo formativo, as histórias de vida e trabalho dos professores, porém ainda

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 625


distante de uma apropriação maior de uma metodologia (auto)biográfica. Os trabalhos
no campo das Ciências Biológicas timidamente aparecem.
Por esta razão a nossa investida em conhecer o universo formativo e de
trabalho dos professores licenciados em ciências biológicas no interior da Bahia nos
parece uma possibilidade de agregar estudos nesta perspectiva, bem como, fomentar
através destes olhares diferenciados para as práticas do uso das narrativas orais como
fontes para contar uma história.

Referências
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Ciências e Biologia, atuantes na rede pública estadual do município de Porto Alegre,
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 626


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 627


Aprendizagem da docência – aprender o saber-fazer: um estudo a partir de
narrativas de professores de música da educação básica

Tamar Genz Gaulke


UFRGS
tamargenzgaulke@hotmail.com

Esta comunicação é um recorte de uma dissertação de mestrado que teve como objetivo geral
compreender como se aprende a ensinar música na educação básica. A visão conceitual de
aprendizagem e de docência de Christine Delory-Momberger, Marie-Christine Josso e António Nóvoa,
bem como a pesquisa biográfica, especialmente as narrativas de formação, constituíram meu referencial
teórico-metodológico. O estudo foi realizado com oito professores licenciados em música que atuavam
em escolas municipais de Porto Alegre-RS. Tendo em vista os objetivos da pesquisa, todos os
professores estavam em início de carreira na educação básica (até três anos de carreira). Os resultados
sinalizam que para aprender a docência, o professor precisa integrar-se à escola e aprender o saber-
fazer, que inclui tanto o ensinar quanto o ensinar para fazer aprender. Incialmente, como segurança, os
professores recorrem às experiências anteriores na docência para desenvolver suas aulas. Percebem,
porém, que é preciso reconstruir e reconfigurar essas experiências, fazendo a transição à escola de
educação básica. A partir desse movimento, é possível compreender as dificuldades, a frustração e a
insegurança que acompanham os professores nessa inserção. É possível, também, perceber que buscam
ajuda para conseguir desenvolver as aulas e aprender o que fazer nas aulas de música e como fazê-lo. É
com o tempo, com a repetição, com tentativas, erros e acertos, que os professores amadurecem ideias
e procedimentos, o que os conduz a entender melhor como lidar com as atribuições de ser professor de
música e como conduzir seu trabalho na escola de educação básica. A construção da docência de música
de cada professor acontece num tempo e num espaço, docência que é única na sua singularidade, mas
faz parte da pluralidade de uma categoria profissional.
Palavras-chave: Aprendizagem da docência; Narrativas de profesores; Educação Musica

Introdução

Esta comunicação é um recorte de uma pesquisa de mestrado concluída113 que


teve como objetivo geral compreender como se aprende a ensinar música na educação
básica. Como objetivos específicos busquei: compreender como o professor iniciante
lida com as dimensões dos fenômenos educativo-musicais escolares; entender como
lida com os sujeitos escolares em seu trabalho diário; e identificar as principais
dificuldades e desafios que enfrenta.
A minha intenção de pesquisa partiu das minhas vivências como professora de
música na escola de educação básica, onde percebi que apenas os conhecimentos que
construía no curso de licenciatura não me bastavam para atuar na sala de aula.
Revisei a literatura da área de educação musical procurando compreender
como o tema aprendizagem da docência era visto na área. A literatura sugere que a
aprendizagem da docência tem sido discutida principalmente pelo viés da formação.
Nesse sentido, destaquei trabalhos que me ajudaram a compreender a formação como
construção da docência.

113
Pesquisa de mestrado em Música concluída e defendida no início de 2013 na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul sob orientação da Prof. Dra Luciana Del-Ben.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 628
Referencial teórico-metodológico

Ao revisar a literatura de educação, busquei referências que pudessem me


orientar para a condução da pesquisa. Dentre essas, encontrei a expressão
“aprendizagem da docência” que define o período inicial de atuação na sala de aula, o
momento de inserção na prática profissional. A aprendizagem da docência é definida
por Isaia (2006, p. 377) como um: “[...] processo interpessoal e intrapessoal que
envolve a apropriação de conhecimentos, saberes e fazeres próprios ao magistério [...]
que estão vinculados à realidade concreta da atividade docente em seus diversos
campos de atuação e em seus respectivos domínios”.
Busquei também entendimentos da palavra aprendizagem que, a partir do
dicionário Michaelis (WEISZFLOG, 2011), pude destacar os termos ação, tempo e
mudanças como centrais para embasar o meu entendimento sobre aprendizagem da
docência. Outro entendimento parte das ideias apresentadas por Josso (2010, p. 35,
grifos da autora) em que:

Formar-se é integrar numa prática o saber-fazer e os conhecimentos, na


pluralidade de registros [o psicológico, o psicossociológico, o sociológico, o
político, o cultural e o econômico]. Aprender designa, então, mais
especificamente, o próprio processo de integração.

A partir da revisão de literatura e das bases teóricas, compreendo então, que


aprendizagem da docência é ação e tempo do processo de integrar na prática o saber-
fazer com o conhecimento, o que envolve constantes mudanças num contexto
específico e por meio da interação pessoal.
Os caminhos metodológicos utilizados na pesquisa foram a pesquisa
(auto)biográfica e as narrativas. Busquei os princípios dos estudos biográficos que
trabalham com “narrativas de formação”, que não remetem à formação acadêmica,
mas, sim, à formação do indivíduo até o que ele é agora.
As narrativas de formação realizadas neste trabalho foram entrevistas
narrativas individuais que, entendidas a partir de Delory-Momberger (2012), advinham
de professores narrando suas histórias em andamento, em que a “narrativa de
formação” serviu, principalmente, como matriz de interpretação e de projeção e não
como modelo de reconstrução da existência. As entrevistas foram realizadas com oito
professores de música atuantes em escolas públicas municipais de educação básica de
Porto Alegre-RS, licenciados em música e com até três anos de docência de música.
Com o cuidado de não fragmentar a vida dos sujeitos, mas, ao mesmo tempo,
procurando relacionar as narrativas umas com as outras, percebi, durante a análise
dos dados, uma trama no processo de aprendizagem da docência, que definiu o rumo
da escrita da minha narrativa, a partir da minha experiência com os dados. A trama
procura teorizar a vida deles em busca de uma lógica da construção da docência. Essa
lógica não determina uma sequência de acontecimentos na aprendizagem da
docência, mas sugere um processo complexo em que as dimensões aqui destacadas
vêm à tona concomitantemente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 629


Aprender o saber-fazer: ensinar

Os professores aprendentes percebem que não são mais alunos e nem


estagiários na escola de educação básica, portanto, sinalizam reconhecer suas
responsabilidades na escola, sendo a principal delas ensinar. Eles buscam aprender o
saber-fazer cada um com o seu jeito.
Josso, referindo-se à dialética do conhecido/desconhecido, auxiliou-me na
compreensão da adaptação necessária para administrar o que é novo ou
desconhecido.

[...] a relação entre o processo de aprendizagem e o processo de conhecimento


permite atualizar ao mesmo tempo os recursos e as resistências afetivo-cognitivas
em torno da dialética conhecido/desconhecido. Em particular, as dificuldades de
reajustes epistemológicos e pragmáticos necessários para a nova aprendizagem, pois
ela obriga, por um lado, a desaprender o que tinha sido precedentemente integrado
e, por outro, a recompor uma coerência existencial. (JOSSO, 2010 p.108-109)

Parece que os professores aprendentes, como segurança, recorrem,


inicialmente, às experiências anteriores na docência para desenvolver suas aulas.
Percebem, porém, que é preciso reconstruir e reconfigurar essas experiências, fazendo
a transição à escola de educação básica. A partir desse movimento, é possível
compreender um pouco das dificuldades, da frustração e da insegurança que
acompanham os professores aprendentes na inserção na educação básica. É possível,
também, perceber que buscam ajuda para conseguir desenvolver as aulas e aprender
o que fazer nas aulas de música e como fazê-lo.

Experiências anteriores na docência

Preocupados em construir seu saber-fazer, os professores buscam referências


nas suas experiências anteriores. Além de alunos e estagiários, também já foram
professores e é a essas experiências anteriores que eles recorrem para aprender o
saber-fazer.
Os professores aprendentes narraram, em vários momentos, experiências
anteriores à sua inserção na escola de educação básica como professores concursados,
que carregam consigo para a escola de educação básica.
Durante a entrevista com Jorge, pedi que contasse como foi o seu começo na
docência na escola de educação básica. Jorge contou:

[...] ela (uma professora) falou assim: olha, vai sair concurso pra prefeitura, vocês deviam
fazer. Daí eu: concurso pra prefeitura? Me deu aquele medo já, porque sala de aula dá um
medo, é natural. E aí eu: tá bom. Daí, passaram alguns meses, daí veio o concurso e daí eu:
ah, vou fazer e tal. E foi assim na verdade, foi por ter feito o concurso que eu entrei em sala
de aula regular. [...] E outubro, dia 20 de outubro de 2009, eu comecei lá, entrei nas turmas
e... o que eu tinha tido de experiência, [foi] um estágio curto de quatro aulas nas aulas de
uma professora. E, como estagiário de outra professora que eu fui na época, eu tive a
realidade de oficineiro, eu dei aula na escola com turma pequena e tal, que foi tribom, porque
eu aprendi a ser oficineiro, eu aprendi a... Em parte, eu reproduzi um pouco o jeito que eu
ganhei das minhas primeiras aulas de violão do colégio, que era uma coisa de grupo, uma aula

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 630


em grupo, como se fosse oficina. Mas alterando algumas coisas, mas foi bem bom mesmo.
(Jorge, junho 2012)

Jorge diz que “é natural ter medo”, porque é algo novo para ele. Enfrentar o
desconhecido, ou, no caso dele, a escola que é conhecida de uma forma diferente, é
algo que desperta medo. Para enfrentar o ainda desconhecido, Jorge revive as
experiências anteriores e, inicialmente, embasa sua atuação na reprodução da
experiência que teve durante o estágio do curso de licenciatura em música. Ele
também recorre a um princípio que construiu durante a licenciatura.

[...] tem uma coisa que fica sempre na minha cabeça, que é a seguinte, que isso eu aprendi
[...] lá na coisa da faculdade, que é que a aula de música tem que sempre ter música. Que
vem lá do Swanwick, da metodologia prática, que é execução, criação e apreciação. Tem que
ter uma das três atividades práticas, eu não abro mão disso. Ou a gente vai escutar música, e
não é só botar o rádio e tchau. Aí é escutar. (Jorge, junho 2012)

A licenciatura em música, para Jorge, proporcionou a construção de uma base


de conhecimentos muito importante para a sua prática como professor. A partir da
licenciatura, Jorge se lembra de outras influências de experiências anteriores que teve
na construção do seu jeito de ser professor, experiências nas quais consegue buscar
apoio, informações e referências para conduzir suas aulas de música.

[...] Volta e meia eu me lembro da referência de ter aula de música da Tia Zenia, que era
minha professora quando eu tinha, sei lá, era da 2ª série, quando estudava na 2ª série. Que a
gente cantava, eu me lembro que ela tinha uma sala grande e aí botava a gente pra brincar, aí
brincava de barraca, de não sei o que, acho que também tinha uma questão de daqui a pouco
as crianças cansam e daí tu: ah, vamos brincar. E eu me lembro da gente aprendendo o hino
nacional brasileiro, e as... o jeito que ela estava nos ensinando. Então, volta e meia, eu me
lembro disso como uma imagem mental, e até uma imagem mental calma, pra pensar numa
coisa boa e tentar transportar. (Jorge, junho 2012)

As lembranças das aulas de música quando aluno da escola regular, hoje,


inspiram Jorge a conduzir seu trabalho como professor e a pensar como pode torná-lo
significativo para seus alunos. Segundo Flores (2008), as experiências mais relevantes
na escola estão intimamente relacionadas com os professores que se destacaram, e
inclusive esses professores, muitas vezes, influenciam o aluno (futuro professor) na
escolha da profissão. O que os alunos guardam como lembrança dos antigos
professores refere-se, principalmente, à maneira como os professores atuam, ou seja,
o modo como os professores atuam tem mais impacto nos alunos do que o que eles
ensinam.
José também lembrou de suas vivências como aluno e de como utiliza essas
referências em sala de aula como professor. Para ele, o modo como aprendeu música
é o que o orienta na construção de suas aulas com as crianças e na sua maneira de
pensar a aula de música.

Aprender música de uma forma prática, porque aí é uma coisa que eu acho que tem que ser
prática, porque foi assim que eu aprendi e eu, posso estar errado, mas eu creio que a
aquisição do aprendizado da música, pra mim, é como a aquisição da linguagem. A criança
fala, você não dá um livro pra criança, ela vai, sem os códigos os livros não são nada. Mesma
coisa com a música. Eu aprendi música assim, foi tocando, foi experimentando e vejo que o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 631
aprendizado pode ser assim, experimentando, tocando e depois também pode ver a parte
teórica dos signos, dos símbolos. Mas você tem que experimentar. (José, julho 2012)

A construção da docência de música na educação básica, para José, está


pautada, fundamentalmente, nas suas experiências anteriores. A imagem de professor
que acompanhou José em grande parte de sua vida foi a de professor de instrumento,
principalmente em aulas particulares e individuais. José contou que a sua “história
com a educação sempre foi no ensino particular de acordeão”. Ele começou muito
cedo a dar aulas atendendo alunos particulares na sua residência. Chegando na escola,
José precisou reconstruir sua ideia de professor, mas, ainda assim, carrega as
experiências de ensino de instrumento para a atuação como professor da escola
regular.
O professor Judai também contou sobre o seu início na docência de música que
foi, também, com o ensino de instrumento.

Bah, essa é uma longa história. Eu [então com 32 anos] já trabalho com docência desde os
meus 18 anos, em aulas particulares e em coro. Eu tive uma formação em conservatório de
música, que precedeu a minha formação acadêmica, e essa formação já me proporcionou, já
me possibilitou a dar aula em escolas de música e aulas particulares. E eu me espelhei muito
nos meus mestres, nas pessoas de que eu fui o pupilo, pessoas que eu aprendi com eles.
Então, na verdade, e claro... eu fui me adaptando a cada experiência que eu fui vivendo. Na
verdade, eu sempre fui professor desde que eu me lembro. (Judai, julho 2012)

A narrativa de Judai indica que ele recorre às suas experiências anteriores para
embasar suas aulas de música na educação básica. Ao referenciar suas vivências como
aluno e professor, pude perceber que, para Judai, foi muito presente a formação em
conservatório e, conforme ele diz, parece que carrega para sua atuação,
principalmente, o modo de atuação de seus antigos professores (ver Flores, 2008).
Sobre como aprendeu a ser professor ele responde:

Basicamente com os meus mestres. Eu tive grandes mestres na minha vida de música, e
mesmo aqueles que eu não me identifiquei com a didática, eu aprendi alguma coisa pra...
evitar certas formas de abordagem e desenvolver as minhas. (Judai, julho 2012)

O professor Tiago contou que carrega a experiência de dar aula de instrumento


para a educação básica, bem como a influência do seu trabalho em um projeto social.
Assim como José, Tiago, a partir da narrativa, pareceu perceber o que o fez tornar-se
professor, bem como o que está levando-o a aprender a ser professor (o que ocorre
continuamente). Pelo que Tiago conta, o trabalho nesse projeto social também o
influenciou na escolha de cursar licenciatura em música.
Tiago disse que o trabalho em projeto social “moldou” o que ele é “como
professor hoje”. “Porque ele [o projeto social] era um trabalho que [...] precisava estar
todo dia com muita sensibilidade conversando com os alunos, bolando formas de
trabalhar um tema”, e, para Tiago, a base das experiências ajudou na construção da
sua “personalidade como professor”.
Para Tiago, o projeto social tem alguns procedimentos e vivências bem
diferentes das que encontra na escola, porém, ele ressaltou que essa vivência

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 632


proporcionou a ideia de ter vínculo com as crianças e compreender a realidade do
aluno.

[...] essa experiência em projetos sociais é bem importante, porque, mesmo tendo essa
diferença de eu sempre, nos projetos, ter turmas pequenas e ter um foco bem... por exemplo,
tem o projeto que eu tenho a oficina de violão, tem o foco ali. A gurizada vai sabendo que lá é
oficina de violão e pronto. Já na sala de aula, não, é diferente. Mas mesmo com essa
diferença, o projeto social, com ele, eu me acostumei a conversar, a ter o vínculo com
crianças e adolescentes que estão em situação de vulnerabilidade social, que é a realidade
em, sei lá quanto, mas eu acho que em 90% das escolas municipais, dos alunos das escolas
municipais, sabe? Ah 90, não sei se são 90, eu não sei, é uma questão de estatística, mas é
boa parte. Então, trabalhos em projetos sociais ajudam bastante. [...] E daí ele consiste em tu
trabalhar aquele conteúdo, mas o conteúdo não é a finalidade principal, que, através daquele
conteúdo, tu vai trabalhar questões humanas. (Tiago, julho 2012)

As experiências que Tiago revisita para pensar a sua prática em sala de aula,
além do trabalho no projeto social, são as aulas que ministrava como professor de
instrumento musical. Para Tiago, as suas experiências com aula de instrumento são
muito importantes e influentes na sua didática como professor da escola de educação
básica.

É... bom, eu comecei dando aulas de instrumentos, de violão e depois de guitarra, mais ou
menos na mesma época em que eu tava entrando na graduação. Porque eu já tocava, daí eu
sempre gostei de ensinar, de fazer esse trabalho e até de escrever material didático. Essa é
uma coisa que... A forma como eu estudo o instrumento, ela já é uma forma onde que eu
tento sistematizar as coisas, sabe? Uma coisa que eu gosto e sempre gostei, a parte didática.
E eu tenho muito mais experiência e facilidade em dar aula de instrumento. (Tiago, julho
2012)

Lorenzo começou trabalhando com aulas de canto. Ele cantou em grupos


corais, trabalhou com ensino de violão e depois começou o curso de licenciatura em
música. Ele contou que retoma na prática muitas de suas vivências anteriores, mas
comenta que as experiências que teve no curso de licenciatura poderiam ter lhe dado
bases mais concretas para a chegada em sala de aula, para conseguir conectar melhor
o que estudou no curso superior com o que encontra na prática.
Assim como Lorenzo, João comenta que as suas vivências de estágio do curso
de licenciatura com oficinas de instrumento em grupo foram “distantes da realidade”
que ele encontra na escola de educação básica. Ele remete-se a experiências
anteriores, baseia-se em vivências que teve nas aulas de instrumento, mas essas não
parecem suficientes, já que as turmas e o formato da aula são muito diferentes.
O professor Santos teve diversas vivências com o ensino antes de vir a ser
professor de música da educação básica. Ele teve contato com outras áreas do
conhecimento, trabalhou com ensino particular, com oficinas de canções e também
desenvolve outras atividades musicais. Para ele, parece que o mais importante para
aprender a ser professor é ser músico.

[...] tudo passa pela minha experiência musical. Eu fui músico, a minha formação musical... 6
anos de idade eu comecei a trabalhar com música, eu fui baterista dos 6 a 12 anos, dos 12 aos
14 eu fui flautista, a partir dos 14 anos eu passei a trabalhar com o violão, que é o meu
instrumento de trabalho efetivo. Eu gosto, continuo tocando flauta, flauta doce
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 633
principalmente, o que mais gosto. E, em relação a bateria, toda aquela parte de... uma
independência corporal, de tu ter essa, de poder pensar a rítmica no corpo, tendo a
independência de pé, mão, tudo isso. Isso tudo me facilitou muito pra eu poder pensar esse
tipo de didática. Isso me auxiliou muito mas pela minha experiência de vida. (Santos, julho
2012)

Para Santos, sua formação como músico exerce grande influência na sua
atuação como professor. Ele contou que a sua atuação em sala de aula com percussão
corporal e ritmo parte da sua vivência como baterista.
Assim como com outros professores, a experiência como professor de
instrumento musical é importante para a atuação de Cláudio como professor da
educação básica.

[...] eu dava muita aula particular [...] foi aí que eu acho que eu aprendi a ser professor.
Dando aula particular, sabe? Que, mesmo dando aula particular, você tem que ter
flexibilidade. Vem o aluno que quer tocar uma música do Zezé Di Camargo e Luciano, que
você tem que ensinar porque você perde o aluno. [...] Eu entrei nesse meio porque alguém
um dia disse: ah, estão precisando de um professor de música lá num lugar tal. Daí me
indicaram e entrei em contato. Comecei por uma necessidade de ter que ganhar uma grana,
pra essa necessidade. Que muita gente sobrevive dando aula, né? Você pode ver [...] o
pessoal está sempre dando aula pra cá e pra lá. Ou dá aula particular, numa prefeitura, ou dá
pra um aluno particular em casa, ou começa a reger um coral, ou os mais diversos, eu acho.
Foi daí, eu acho que o aprendizado foi aí. (Cláudio, junho 2012)

Cláudio destaca a importância de ter a vivência musical. Ele entende que o


professor precisa ter experiências fora da escola e fora do curso de licenciatura para
poder ter uma ampla opção de vivências a serem revisitadas durante o ensino na
educação básica.

Outra coisa que ajudou muito pra mim foi o fato de o meu instrumento ser o violão. O violão
é uma coisa... Outros instrumentos eu acho que teriam mais dificuldade. É problemático, eu
acho. Isso também é um problema. O violão é mais aquela coisa, senta e toca, faz rodinha e
canta, acompanha lá e vai, é uma beleza, vai. Mas outros instrumentos acho que têm mais
problemas pra isso. É, isso aí. [...] E eu acho que a universidade tem que sair a campo,
conversar com quem toca na noite. Você tem que sair pra noite, tem que dar aula, você tem
que ir [...] Você tem que ter essa vivência musical de participar de, sei lá... grupo de choro,
banda de rock, quanto mais você tiver essa coisa, mais fácil vai ser pra trabalhar em escola, se
teu objetivo é trabalhar em escola, sabe? Se você é muito acadêmico, você vai ter muita
dificuldade. (Cláudio, junho 2012)

Para Cláudio, o fato de trabalhar já durante a graduação e antes de entrar na


escola de educação básica fez com que ele desenvolvesse habilidades que são
importantes também no ensino de música na educação básica.
A aprendizagem da docência narrada pelos professores aprendentes está
ilustrada, principalmente, por meio de vivências – que tornam-se experiências quando
narradas reflexivamente (ver Josso 2010) – anteriores à docência na educação básica.
Os professores aprendentes retomam suas vivências para construir e pensar a aula de
música na escola de educação básica. Para Josso:

São as experiências que podemos utilizar como ilustração numa história


para descrever uma transformação, um estado de coisas, um complexo

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 634


afetivo, uma ideia, como também uma situação, um acontecimento, uma
atividade ou um encontro. E essa história me apresenta ao outro em formas
socioculturais, em representações, conhecimentos e valorizações, que são
diferentes formas de falar de mim, das minhas identidades e da minha
subjetividade. (JOSSO, 2010, p. 37)

Por meio das narrativas, os professores aprendentes contam suas vivências e,


principalmente, a aprendizagem construída a partir delas. A aprendizagem da
docência, para esses professores, está ligada aos fatos e às situações que os conduzem
ao aprender o saber-fazer, o qual ocorre através das experiências vivenciadas. Para
Josso:

Os contos e as histórias da nossa infância são os primeiros elementos de


uma aprendizagem que sinalizam que ser humano é também criar as
histórias que simbolizam a nossa compreensão das coisas da vida. As
experiências, de que falam as recordações-referências constitutivas das
narrativas de formação, contam não o que a vida lhes ensinou, mas o que se
aprendeu experencialmente nas circunstâncias da vida. (JOSSO, 2010, p. 40)

As experiências revisitadas, a partir das narrativas, são importantes, mas não


suficientes. Elas precisam ser transformadas em função das características do novo
espaço de atuação profissional dos professores.

Reconfigurar e reconstruir experiências

Os professores aprendentes narraram experiências anteriores que tiveram em


diferentes espaços e como levam essas para dentro da sala de aula. Porém, como o
espaço de atuação é outro, percebem que é preciso reconfigurar e reconstruir essas
experiências.
Santos demonstrou estar consciente das diferenças de uma escola específica de
música para uma escola de educação básica. Ele percebe a diferença de formato de
aula e das turmas e a diferença de trabalho nesses dois contextos, por isso sabe que as
aulas serão diferentes e que terá que reconfigurar suas experiências anteriores para
atuar na educação básica.

Bom... O que é que acontece? As minhas experiências anteriores, tanto no Projeto Alfa
quanto trabalhando em instituições de ensino voltadas especificamente pro ensino de
música, me davam uma referência muito tranquila, sabe? No sentido de que uma coisa é tu
trabalhar com o ensino de música com público que está com interesse totalmente voltado pra
esse aprendizado. Por exemplo, na [escola de música em que eu trabalhei] ou até mesmo
quando eu trabalhei como oficineiro de música na prefeitura, eu tinha turmas, no máximo, de
10, 15 alunos. Na escola de música eu tinha um, dois alunos por hora, hora/aula. Ali no
projeto Alfa eram 12, 13, no máximo, por turma. Agora, na escola, eu tenho 23 alunos em sala
de aula, 23 a 25. Então tu imagina: tu tá com 23, 25 crianças nessa faixa etária que não tem
noção nenhuma do que é o ensino de música [...] (Santos, julho 2012)

Santos narrou um dos momentos de transição e a sua conscientização sobre as


mudanças decorrentes do novo contexto, com uma realidade diferente em termos de
alunos, interesses e funcionamento. Nesse recorte Santos relatou algumas dificuldades
de lidar com situações características da escola e do funcionamento do sistema:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 635
Pelo fato de estar trabalhando com o aluno nessas situações, nessas condições, por exemplo,
no Projeto Alfa eu tinha toda uma condição, espaços, instrumentos, tudo isso à disposição pra
um grupo de 13, 12, 13 alunos. Numa sala de aula tu tem 20 e poucos alunos, e tu tá
chegando exatamente nesse contexto final, praticamente final de ano, sendo o quarto
professor da disciplina pra eles, que, na cabeça deles, é artes. [...] Porque eu peguei o bonde
andando, quando eu entrei já tinham passado três professores antes de mim. Então tinha
uma... essa era uma situação problemática, porque... o aluno, esse aluno, eu imagino que o
aluno, de modo geral, acaba se sentindo assim, mas o aluno, esse aluno de periferia, dessa
clientela, ele se coloca num nível de rejeição muito grande, ele entende que ninguém gosta
dele. Ele começa a ler as coisas dessa maneira. Ele projeta isso, cada um que chega ali: bah!
Mais um que vem aqui pra daqui a pouco não aguentar e ir embora e porque ele não gosta de
nós. Ninguém quer ficar com a gente. Na cabeça desse aluno isso vai rolar direto. Então tem
que contornar, como administrar isso. Quando eu entrei, a primeira coisa que eles me
perguntaram foi: quanto tempo tu vai ficar professor? E eu: como assim, quanto tempo vai
ficar? Ah, todos, ninguém fica com nós, ninguém aguenta muito tempo aqui com nós,
ninguém quer ficar com nós. (Santos, julho 2012)

Ele contou que sua grande dificuldade foi lidar com essa situação nova,
especialmente, com a diferença de interesses e objetivos dos alunos e com a
infraestrutura da escola.

[...] O aluno da escola, ele nem sempre tem esse... ele até gosta de música, mas a relação dele
com a música não é a mesma, por exemplo, que a relação de alguém que queira aprofundar o
conhecimento musical. Então... esse foi o maior desafio, como lidar com isso, como lidar com
essa realidade, com esse nível de demanda totalmente diferente... e de interesses, né? Isso
logo foi uma experiência totalmente nova. E com poucos recursos. Uma escola, dificilmente...
aliás, eu vou te dizer: eu não acho que o recurso, até questiono um pouco isso, ele ajuda
assim, assado, mas não adianta tu ter um monte de instrumento na tua mão se tu não tem
essas questões anteriores bem preocupantes com o aluno, sabe? (Santos, julho 2012)

Cláudio também percebeu a diferença dos contextos da escola de educação


básica e de onde ocorreram as experiências anteriores. Ele enfatizou também o
tamanho das turmas da escola de educação básica. Ele contou que tinha consciência
de que não seria possível trabalhar do mesmo modo que trabalhava em outros
contextos, ele sabia que teria que pensar e agir de outro modo.

Porque trabalhar com adolescente é complicadíssimo. É terrível. É uma coisa que eu acho,
olha, que não vai funcionar muito bem. Porque lá eu tinha turmas muito grandes, eu tinha
turmas de 25, 30... 30 alunos numa sala de aula. E aí você imagina uma turma de 35 alunos
numa sala de aula, de adolescentes de 11, 12, 13, 14 anos. Então você não vai pra uma sala de
aula e vai ensinar violão pra eles. Não tem como. Como você vai chegar numa sala de aula
com 30 alunos e exigir que tenha 30 violões? Não, não existe isso. Ou você vai exigir 30
teclados? Pra comprar um caderno pautado foi uma briga. Imagina se eu tivesse... e você não
pode levar só um instrumento lá e passar pra todo mundo, sabe? Não adianta, você sabe
como é que é. Se for uma aula com instrumento, a pessoa tem que ter o seu instrumento em
casa, a pessoa tem que fazer aula etc. Então esse tipo de coisa eu já sabia que não funcionava
e nunca tentei. Isso ficou pras oficinas. E as oficinas então eram alunos selecionados, eram só
aqueles que tinham instrumento, que queriam, etc. e tal. (Cláudio, junho 2012)

O professor Judai percebeu que mudou sua postura como professor. Para ele,
essa reconfiguração do seu ideal de professor foi uma das suas principais dificuldades
e desafios nos primeiros momentos na escola.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 636
Essa questão de me mudar no sentido do... da... minha postura. Como eu disse antes, eu
sempre fui um professor calmo. Eu nunca precisei elevar minha voz com os meus alunos.
Porque era diferente, eu trabalhava com aulas particulares, e, mesmo que eu trabalhasse com
coro, aquelas pessoas estavam ali pr’aquilo. E dentro da escola, às vezes... aquelas crianças,
elas estão ali porque elas têm que estar na escola e não que elas estão ali fazendo aula de
música. Elas não escolheram estar ali fazendo aula de música. Algumas nem gostam da
escola, pra outras crianças a escola é só um momento de recreação, e é o momento de
socialização com os colegas. Então ter que lidar com essas crianças foi o mais difícil. (Judai,
julho 2012)

Judai contou não estar satisfeito com a sua nova postura como professor, com
o jeito que teve que assumir em sala de aula. Ele explicou: “as crianças exigem que tu
seja mais enfático no teu posicionamento. Em outras palavras, tu tem que gritar
eventualmente, porque as vezes eles só te ouvem se tu é exatamente dessa forma”.
Para Judai, a “postura mais severa” “foi a grande modificação” no seu jeito de
professor. Foi o que mais impactou a fase de transição para professor da escola de
educação básica. Judai passou a perceber que cada turma é diferente, “pra cada
público tem uma forma diferente de atingir, uma forma diferente de lidar, uma forma
diferente de abordagem”.
As narrativas indicam uma mudança de status profissional. Delory-Momberger
denomina essas mudanças como transição psicossocial:

[…] transição psicossocial, isto é, de fases de mudança que correspondem à


passagem de um status ou de um estágio social a outro e que interessam,
de forma significativa e duradoura, ao processo e ao ambiente da existência.
Essas fases de transição, portadoras de desequilíbrio, de perturbação, de
incerteza e, em certos casos, de sofrimento, são marcadas pelas
reconfigurações e pelas reconstruções que elas acarretam, tanto no que diz
respeito à posição do sujeito dentro da coletividade como na sua relação
consigo mesmo e com os outros. (Delory-Momberger, 2012, p.79)

As mudanças demandadas pelo diferente espaço de atuação do professor de


música envolvem um movimento de reflexão do passado, do repensar o presente e de
projetar o futuro. Os professores a partir de suas narrativas fazem esse movimento e
mostram como as mudanças de status profissional interferem no seu jeito de ser
professor. Para Josso:

A perspectiva que favorece a construção de uma narrativa emerge do


embate paradoxal entre o passado e o futuro em favor do questionamento
presente. É porque nos identificamos com nossas experiências, que nos
fixamos nelas. Essa civilização me oferece outra perspectiva a partir da qual
reconheço, com uma lucidez ainda maior, o fato de que a formação
descreve os processos que afetam nossas identidades e nossa subjetividade.
Ela indica, assim, um dos caminhos para que o sujeito oriente, com lucidez,
as próprias aprendizagens e seu processo de formação. Se a aprendizagem
experiencial é um meio poderoso de elaboração e de integração do saber-
fazer e dos conhecimentos, o seu domínio pode tornar-se um suporte eficaz
de transformações. As experiências que descrevem concretamente um
processo de formação podem assim ser perspectivadas pela maneira como
o autor da narrativa compreende a sua humanidade por meio das
transações nas quais ela se objetiva. (JOSSO, 2010, p. 38-39)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 637
A aprendizagem da docência compreende várias mudanças que levam o
professor aprendente a aprender o saber-fazer e a construir-se como docente. O
processo de transformação de experiências anteriores não é necessariamente solitário,
é algo que, como entende Josso (2010), depende da experiência de cada sujeito, que
busca diferentes caminhos que possam auxiliar sua própria aprendizagem e seu
processo de formação.

Buscando ajuda

Os professores aprendentes, a partir do momento em que se inserem na escola


de educação básica, precisam lidar com muitas situações novas ou desconhecidas.
Como entende García:

Os professores iniciantes têm, segundo Feiman (2001b) duas tarefas a


cumprir: devem ensinar e devem aprender a ensinar. Independentemente
da qualidade do programa de formação inicial que tenham cursado, há
algumas coisas que só se aprendem na prática, e isso faz com que o primeiro
ano seja um ano de sobrevivência, descoberta, adaptação, aprendizagem e
transição. As principais tarefas que enfrentam os professores iniciantes são:
adquirir conhecimentos sobre os alunos, o currículo e o contexto escolar;
planejar adequadamente o currículo e o ensino; começar a desenvolver um
repertório docente que lhes permita sobreviver como professores; criar uma
comunidade de aprendizagem na sala de aula, e continuar desenvolvendo
uma identidade profissional. E o problema é que devem fazê-lo, em geral,
encarregados das mesmas responsabilidades que os professores mais
experientes. (GARCÍA, 2008, p. 15 – tradução minha)114

Os professores aprendentes contaram diferentes maneiras que buscam para


cumprir o que García denomina como “tarefas” dos professores iniciantes e superar
dificuldades. João contou que foi difícil saber como lidar com a turma e como colocar
limites e a partir disso procurou observar e entender como os outros professores
interagem com os alunos.

Uma coisa que tá sendo legal pra mim, eu tô pegando meus blocos vagos e, conversei com os
professores, e tô observando eles, como um estagiário ali, digamos assim. Eu tô observando
as aulas, tô entrando e vendo, e isso tá sendo muito bom. [...] Essa coisa de estar observando

114No original: Los profesores principiantes tienen, según Feiman (2001b) dos tareas que cumplir:
deben enseñar y deben aprender a enseñar. Independientemente de la calidad del programa de
formación inicial que hayan cursado, hay algunas cosas que sólo se aprenden en la práctica y ello
repercute en que el primer año sea un año de supervivencia, descubrimiento, adaptación,
aprendizaje y transición. Las principales tareas con que se enfrentan los profesores principiantes
son: adquirir conocimientos sobre los estudiantes, el currículo y el contexto escolar; diseñar
adecuadamente el currículo y la enseñanza; comenzar a desarrollar un repertorio docente que les
permita sobrevivir como profesores; crear una comunidad de aprendizaje en el aula, y continuar
desarrollando una identidad profesional. Y el problema es que esto deben hacerlo en general
cargados con las mismas responsabilidades que los profesores más experimentados. (GARCÍA,
2008, p. 15)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 638


aulas tá sendo muito legal, porque tem a ver com a coisa do ser professor mesmo, que vai
além da disciplina. E eu tenho uma dificuldade grande com essa coisa da disciplina. É uma
dificuldade grande pra mim. Porque eu sou um cara bastante afetivo, eu vejo que, nesse lado,
os alunos, eu consigo estabelecer um vínculo com todos, mas eu tenho que ser aquele cara
também que impõe a coisa, sabe? Eu tava assistindo uma aula sexta agora. A professora, eu
via que ela tinha, bah, a turma totalmente sob controle. E é legal ver um professor bom
dando aula, eu acho. Como quando eu... por mais que a gente estude música, um
instrumento, ou... enfim, tem coisas a melhorar na nossa prática, por exemplo, eu vou dar
uma boa aula, vou fazer um bom planejamento, ou eu vou tocar bem uma música treinando a
música, estudando o meu instrumento. Quando eu vejo um cara tocando muito bem, que é
uma referência pra mim, e digamos que ele me inspira ou, enfim, eu tô vendo na prática
aquilo, né? Com dar aula é a mesma coisa. Ver alguém dando aula bem, vendo como a pessoa
usa a voz dela, como ela resolve conflito. (João, julho 2012)

Além de observar os colegas, João recorre às leituras e à sua própria


experiência em sala de aula:

Mas tem muita coisa das observações que eu tô vendo que tá me ajudando, as leituras que eu
estou fazendo. E da própria experiência, ver o que funciona e o que não funciona. Tem que
ter tranquilidade. Tem que, eu acho, que, conciliar a coisa afetiva com a coisa da disciplina, e
te colocar como uma figura diferente dos alunos. (João, julho 2012)

A narrativa de João indica um entendimento de que a aprendizagem da


docência ocorre num processo e que ele precisa começar a se assumir e a agir como
professor. Isso envolve não somente uma desenvoltura do professor mas um vínculo e
uma relação de respeito e confiança entre alunos e professor.

Então eu vejo assim, vou dar um exemplo: às vezes, atividades que eu imaginava propor, mas
que não davam certo comigo e, às vezes eu via professores que não são professores de
música, são professores referências, mas, o fato de eles terem uma relação com os alunos, já
ter conquistado uma relação de confiança e de respeito, eles iam lá e faziam e dava certo. É
engraçado isso, né? São coisas que vão além do conhecimento musical. (João, julho 2012)

Para Cláudio, foi importante observar e conversar com os outros colegas


professores como meio de buscar auxílio para aprender como se relacionar com os
alunos em sala de aula.

Tem que ter um jogo de cintura. Com esse tipo de coisa. E aprendi com outros colegas... ah,
tinha uma outra professora de música que ela tinha um talento incrível pra isso. [...] Ela
trabalha lá. Nossa! Ela tem um jogo de cintura incrível. Ela diz assim... fala de verdade
brincando com eles, e eles não têm coragem de se levantar contra ela. Ela domina [os alunos]
de uma maneira incrível. É uma questão muito de psicologia de saber lidar, sabe? (Cláudio,
junho 2012)

O professor Judai buscou ajuda de outros colegas professores para entender


como poderia se portar na sala de aula, que postura deveria seguir frente aos alunos
com problemas de indisciplina. Ele contou que precisou tomar uma postura mais
severa, que não lhe agrada, mas que é necessária, já que sente que precisa, em alguns
momentos, ser mais enfático com os alunos. Em uma conversa com a coordenadora,
ela explicou: “é a única forma que alguns deles ouvem, é através de um... de uma certa
rigidez; senão, eles não conseguem seguir as regras”. Por outro lado, ao responder o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 639


que para ele foi importante no desenvolvimento como professor de música, Judai
ressaltou a importância de o professor aprender a ouvir os alunos, disse: “Tem que
saber ouvir. Eu conheço muitos profissionais que acreditam tanto naquilo que leram,
ou no que aprenderam que não tem abertura as vezes pra ouvir o que o aluno
precisa”.
Já Lorenzo e Tiago recorreram aos colegas professores em busca de atividades
a serem desenvolvidas em sala de aula:

Porque na faculdade a gente aprende muito a pedagogia, muita teoria, mas eu acho que falta
um pouco assim: que tipos de atividades eu posso fazer, entendeu? Que gama de opções eu
posso levar pra eles, pra eles realizarem que seja de forma prática, que seja de forma usual?
Muita coisa eu vi de outros professores, eu fui pegando. (Lorenzo, julho 2012)

Sem deixar de lado suas ideias e princípios, a busca de ajuda parece ser no
sentido de conseguir concretizar o que acredita.

O que mais...? Até uma coisa que me ajudou bastante, por exemplo, foi ver colegas
trabalhando em projetos sociais com musicalização. Porque lá eu tenho oficina de violão, e aí
tem uma colega que entrou pra trabalhar musicalização. Daí eu vejo o que é que ela tá
fazendo ali, eu acabo trocando bastante, aprendendo [...]. (Tiago, julho 2012)

Para Tiago, também foi importante buscar materiais didáticos da educação


musical para ter fonte para buscar atividades e práticas.

Eu tenho comprado todos os materiais, livros, DVDs, que eu encontro sobre educação
musical, práticas. [...] Livro que vem com CD, com músicas e atividades, e como... o que fazer
com aquela música, com os objetivos e tal. É... muitos, eu vejo assim, eu leio e já imagino que
não se aplicam tanto, mas que eu posso adaptar a partir da ideia que vem dentro do livro,
adaptar pro contexto lá da escola. (Tiago, julho 2012)

O professor Santos também buscou auxílio em materiais para poder


desenvolver melhor suas aulas de música, porém ele disse que sente falta de materiais
que possam, efetivamente, auxiliar o professor de música em sua prática em sala de
aula.

Eu sinto falta disso, eu acho que tá faltando uma produção efetiva de... esse tipo de coisa,
que um professor de música, ele, quando [pega], ele tem... exemplos que auxiliam ele a
trabalhar efetivamente. Olha, esse aqui é um caminho, isso aqui é uma história legal, isso aqui
pode ser interessante, isso aqui eu posso adaptar coisa e tal, ali pa pa pa, entendeu? Esse tipo
de coisa. E, a partir daí, tu começa a construir as tuas didáticas, os teus recursos de trabalho,
as tuas formas de... construir vínculos com os alunos e fazer a tua aula. Mas... eu sinto falta
disso, que acaba ficando assim: ah, porque essa teoria tal diz isso, coisa e tal, porque a
cognição daquilo.... Tá legal, isso tudo ajuda, vai ser complementação de toda uma
experiência, uma complementação reflexiva que deve ser feita, evidentemente, a partir de
uma experiência real de algo que tu está lidando ali no dia-a-dia.
[...]
Eu sinto falta de uma produção, sabe? Que comece a trazer experiências reais de trabalho em
sala de aula. Eu encontrei, tem poucos livros em torno disso, mas que trabalha com material,
pegar aquilo que tá acontecendo em sala de aula e trazer aquilo pra um livro, trazer essas
coisas, por exemplo, um exemplo. Tu acaba tendo que construir isso efetivamente. Teve um
trabalho que eu vi, naquela Revista Nova Escola. Esse exemplo eu acho que é um exemplo
bacana. (Santos, julho 2012)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 640
Para construir seu trabalho em sala de aula, Santos, como outros professores,
também conta com a ajuda de colegas mais experientes, mas, como indica ao final do
depoimento a seguir, é importante contar também com suas próprias convicções e
princípios como professor de música:

Mas... o que eu vejo é que muitos colegas professores de muito mais tempo... e outra coisa
também, é um adendo, o quanto eles também, com os aconselhamentos que eles dão, os
mais experientes, o quanto eles têm a dizer. Olha presta atenção pra isso, olha não é bem
assim, coisa e tal. Ajuda muito, sabe? Por isso eu te digo a questão da humildade. Então isso
tudo é o desafio mesmo, de chegar ali, te deparar com uma realidade totalmente nova, e com
poucos... tu não sabe exatamente com o que contar, tu não tem muito com o que contar, mas
tu tem poucas coisas e essas coisas são determinantes, entre elas, aquilo que tu realmente
considera como determinante, sabe? No meu caso, como eu te falei, de pensar a música a
partir da... baseada no corpo. (Santos, julho 2012)

Ter clareza dos seus princípios, observar e conversar com os colegas, recorrer a
leituras e materiais didáticos são estratégias usadas pelos professores para lidar com
uma “realidade totalmente nova”, como disse Santos, e para ampliar seu repertório
docente (GARCÍA, 2008).
Mas aprender envolve tempo e, para “aprender a ensinar” (GARCÍA, 2008) é
necessário esperar esse tempo “para crescer”, como sinaliza o depoimento de Jorge,
em que ele relata como tem buscado concretizar em sala de aula o princípio de tornar
a prática como centro da aula de música.

[...] mas tu tem que fazer a parte prática e tem que estar relaxado pra fazer isso, senão, tu
enche o saco, tu pira, porque tu vai começar a cantar, vão começar a conversar, e tu vai ter
que parar a música duas ou três vezes, chamar a atenção, voltar ao fato de que tu não tem
música enquanto não tem silêncio. Essas coisas todas acontecem, daí tem que ter,
principalmente [calma] pra crescer como professor. (Jorge, junho 2012)

Considerações finais

Os resultados sinalizam que para aprender a docência, o professor precisa


integrar-se à escola e aprender o saber-fazer, que inclui tanto o ensinar quanto o
ensinar para fazer aprender. Incialmente, como segurança, os professores recorrem às
experiências anteriores na docência para desenvolver suas aulas. Percebem, porém,
que é preciso reconstruir e reconfigurar essas experiências, fazendo a transição à
escola de educação básica.
A partir desse movimento, é possível compreender as dificuldades, a frustração
e a insegurança que acompanham os professores nessa inserção. É possível, também,
perceber que buscam ajuda para conseguir desenvolver as aulas e aprender o que
fazer nas aulas de música e como fazê-lo. É com o tempo, com a repetição, com
tentativas, erros e acertos, que os professores amadurecem ideias e procedimentos, o
que os conduz a entender melhor como lidar com as atribuições de ser professor de
música e como conduzir seu trabalho na escola de educação básica. A construção da
docência de música de cada professor acontece num tempo e num espaço, docência
que é única na sua singularidade, mas faz parte da pluralidade de uma categoria
profissional.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 641
Referências
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si na modernidade avançada. 2012. Tradução de Carlos Galvão Braga, Maria da
Conceição Passeggi, Nelson Patriota. Natal: EDUFRN, 2012
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lecturas e Implicaciones. In: GARCÍA, Marcelo. El profesorado principiante – Inserción
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GARCÍA, Carlos Marcelo. “Políticas de inserción a la docencia”: de eslabón perdido a
puente para el desarrollo profesional docentee.In: GARCÍA, Marcelo. El profesorado
principiante – Inserción a la docência. Barcelona: Octaedro, 2008. Disponível em:
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ISAIA, Silvia Maria de Aguiar. Trajetória pessoal; Trajetória profissional; Aprendizagem
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v.2. Brasília: Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Trad. CLÁUDIO, José;
FERREIRA, Julia. São Paulo/Natal: EDUFRN/Paulus, 2010.
WEISZFLOG, Walter (Editor). Michaelis: moderno dicionário da Língua Portuguesa.
Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=aprendizagem. Acessado em 11 de outubro de 2011.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 642


Escritas autobiográficas e autoformação: a construção de sujeitos atores/autores

Valterci Ribeiro
UFRB
val.rib@hotmail.com
Jessica Santana Bruno
UFRB
jessicabruno2@hotmail.com

Esta pesquisa resulta da experiência realizada no Programa de Educação Tutorial - PET Conexões de
Saberes-UFRB e Recôncavo em Conexão, que busca conectar e valorizar histórias de vida, vivências
culturais, itinerâncias formativas dos estudantes, dialogando com suas experiências pessoais, com as
vivências dos currículos nos cursos de licenciatura. Objetivando a formação de estudantes para
exercerem suas atividades acadêmicas em consonância com os âmbitos culturais, econômicos e sociais
da região, construindo sua formação profissional de forma critico reflexiva. Nesse sentido, foram
produzidas escritas referentes às histórias de vida universitária, as vivências familiares, comunitárias, às
experiências, os saberes relativos às populações locais, que são tradicionais e populares, conforme
registro histórico e cultural do Recôncavo. Essas escritas fizeram emergir uma série implicações
curricular-formativas dos discentes, assim como aos aspectos relacionados às políticas institucionais da
universidade, a saber: às políticas afirmativas, de acesso, de permanência e de pós-permanência no
ensino superior. As narrativas produzem sentidos contextualizados nos âmbitos sociais e educacionais,
ressaltando aspectos significativos das trajetórias de formação estudantil. De forma resumida os
dispositivos metodológicos foram: produção de história de vida, socialização das narrativas
autobiográficas, análise dos documentos institucionais de currículo e formação. As narrativas
autobiográficas, quando compartilhadas entre os estudantes favorecem a produção de identidades
individuais e coletivas, a exemplo de noções étnicas, de gênero, de orientação sexual, de origem
popular, dentre outras. Essa perspectiva do estudo sustenta uma noção de currículo e formação
pautada na construção de conhecimentos a partir das experiências sociais, culturais e pessoais dos
sujeitos. Para socialização e compartilhamento dos resultados da pesquisa com a comunidade
acadêmica, bem como forma de contribuir na formação com qualidade sociocultural, as produções
autobiográficas resultaram no lançamento de um livro intitulado ‘Currículo, formação e universidade:
Autobiografias, permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular.’
Palavras-chave: Escritas autobiográficas; Autoria; Narrativas de formação.

Introdução

O trabalho baseia-se na experiência realizada no Programa de Educação


Tutorial - PET Conexões de Saberes – Ministério da Educação –Secretaria de Educação
Superior- MEC-SESu, um projeto institucional, interdisciplinar de formação
universitária de estudantes de origem popular, mediante ações integradas de
educação tutorial, pesquisa e extensão, relacionadas às políticas e práticas de currículo
e formação que busca conectar e valorizar histórias de vida, vivências culturais,
itinerâncias formativas dos estudantes, dialogando com suas experiências
pessoais/profissionais realizadas nas famílias, nas comunidades de origem, com as
vivências dos currículos nos cursos de licenciatura da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia.
Como forma de colaborar com a formação de qualidade dos discentes o PET
investiga e põe em questão as políticas e práticas curriculares formativas
desenvolvidas nos cursos de Licenciatura. O Programa compreende ações pró-
diversidade e regionalidade, conforme nos inspiram a Res. 01/2007 CONAC, o Fórum

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 643


das Licenciaturas, o histórico e experiência do Programa Conexões de Saberes, no
tocante a ideia de currículo e formação produzidos no diálogo entre a universidade e
as comunidades populares e na permanência/pós-permanência de estudantes de
origem popular no ensino superior (entre a UFRB e o Recôncavo em Conexão). Com
enfoque, especialmente, às questões abordadas nas nossas atividades de extensão e
formação política, permeadas por diversos eixos voltados para as políticas e práticas
de currículo e formação inicial de professores abordada através dos projetos de
pesquisa e extensão. Como grupo buscamos contribuir com a qualidade e a
democratização educacional, notadamente, nas ações de inclusão e educação das
relações étnico-raciais nos currículos oficiais das escolas de ensino básico e no âmbito
das instituições federais de ensino superior.
As abordagens produzidas neste trabalho trataram das temáticas das histórias
de vida, das narrativas autobiográficas, das vivências culturais, das itinerâncias e
experiências formativas dos discentes, tanto nas suas famílias, escolas, comunidades
de origem, quanto nos cenários universitários. Essa proposição de formação em
dialogia, realizada com os estudantes dos cursos de licenciatura da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB implica em assumir a condição de sujeitos-
atores-autores dos processos de formação, numa perspectiva contextualizada,
compartilhada, registrada e socializada com os demais discentes da Universidade. A
pesquisa investiga a construção identitária dos estudantes no processo de formação e
profissionalização docente, centrando-se na análise de narrativas autobiográficas,
através da escrita de textos autobiográficos por estudantes que compõem o programa
PET Conexões. A pertinência da pesquisa autobiográfica tem possibilitado aprender
características dos modelos biográficos do trabalho, marcas das identidades e
subjetividades dos sujeitos considerados atores/autores em processos de
aprendizagens e desenvolvimentos pessoais e coletivos.
A relevância do trabalho desenvolvido evidencia-se pela abrangência e riqueza
do material organizado para a análise e, consequentemente, publicado em um livro em
contraste com a profundidade que a construção das Histórias de Vida e suas relações
com os contextos sócio-político culturais pertinentes, bem como pelo eixo de pesquisa
desenvolvido sobre as memórias acadêmicas e pessoais de estudantes de origem
popular. São em ações como estas que ficam evidentes que a educação tutorial integra
às atividades de pesquisa, extensão e políticas afirmativas, visando contribuir com os
Projetos Políticos Pedagógicos da Universidade, com ações de permanência e de pós-
permanência, com as potencialidades formativas e cidadãs dos estudantes, tanto em
nível institucional da UFRB, quanto nos cenários socioculturais do Recôncavo, assim
como valorizando as experiências curriculares e formativas exitosas nos cursos de
licenciatura.

Desenvolvimento

O desenvolvimento desta pesquisa consiste em dialogar acerca do processo


que envolve a formação do sujeito, em colaborar com as políticas e práticas
curriculares dos cursos da UFRB, através da socialização das autobiografias escritas
pelos estudantes com a comunidade, com ênfase a atender aos estranhamentos dos
estudantes universitários recém-ingressos, objetivando a formação de estudantes para

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 644


exercerem suas atividades acadêmicas em consonância com os âmbitos culturais,
econômicos e sociais da região, e que assim, possam realizar múltiplas atividades
dentro do leque de saberes do campo de conhecimento, construindo a sua formação
profissional de forma crítico reflexiva.
O estudo demonstra uma diversidade de ideias, dentre elas a ideia de pertencimento
a uma comunidade, com costumes, crenças, saberes e cultura valorizada, que nem
sempre fazem parte da lógica de formação universitária, nem do currículo acadêmico,
ou seja, as experiências adquiridas ao longo da vida estudantil não são valorizadas e
contempladas na instituição.
Ao pensarmos nas dificuldades enfrentadas e compartilhadas nas socializações
das escritas e nas rodas de saberes, percebemos que um dos fatores que influenciaram
alguns estudantes na opção dos seus cursos foi à comodidade. Segundo Zago (2006), a
seleção do curso pelos alunos das camadas populares, normalmente incide nos cursos
menos disputados e que representam para eles, maior oportunidade de aprovação.
Segundo a autora, os recursos econômicos dos pais representam uma importante
influência no que se refere ao acesso dos filhos no ensino superior em cursos de mais
prestígios e mais seletivos. Por isso para Zago (2006), quando abordamos o fator
escolha, ocultamos temas fundamentais como a condição social cultural e econômica
dos jovens e seus familiares, bem como a história escolar do aluno, “para a grande
maioria não existe verdadeiramente uma escolha, mas uma adaptação, um ajuste às
condições que o candidato julga condizentes com sua realidade e que representam
menor risco de exclusão” (ZAGO, 2006).
De acordo com o sociólogo Alain Coulon (2008), a entrada na vida universitária
é separada em três tempos: o tempo do estranhamento, onde o estudante ingressa
num mundo desconhecido, desconhece a linguagem, as pessoas, a dinâmica, o espaço
físico; o tempo de aprendizagem, o qual seria uma construção lenta do conhecimento
e; o tempo da afiliação, onde o estudante passa a sentir-se parte da universidade
como um todo. Desta forma percebe-se a importância de um ensino de qualidade
voltado para as questões do currículo e da formação, aqui entendidas também como
ações de valorização do sujeito, de inclusão e acesso à educação superior.
Considerando as atividades realizadas no âmbito das atividades desse grupo PET,
entendemos que a nossa participação é extremamente importante para a formação e
vivência na universidade, pois, temos como desafio a articulação das políticas de ações
afirmativas e assistência estudantil (moradia, alimentação, transporte, creche e saúde)
em prol da diversidade, ou seja, que assegurem o acesso, a permanência e a pós-
permanência das diferenças na universidade. Principalmente na composição dos
indicadores da qualidade da educação superior, sobretudo, por contemplar a
participação, as visões e experiências dos estudantes nas políticas de currículo dos
cursos e nas práticas de (auto) formação profissional, política e sociocultural.
Na trajetória dos cursos de licenciatura percebemos a importância e as
responsabilidades demandadas ao professor, pois ele além de mediar o conhecimento,
possibilita e gera debates entorno de questões sociais, questões essas que aguçam o
senso crítico dos estudantes. É importante que o educador permaneça num processo
de formação continuada, e que esteja voltado para as novas tecnologias educacionais,
para que suas práticas e que desperte nos alunos o interesse e a curiosidade de saber
mais, sair da sala de aula, extrapolar os muros das escolas e levar o conhecimento para

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 645


a comunidade a qual ele pertence, ou esta inserido. Nesse percurso de formação para
a docência fica evidente a desvalorização do professor, que desanima a classe em
querer investir na sua formação, pois na maioria das vezes com uma renda familiar
baixa, outras prioridades como saúde, por exemplo, que tem custos elevados, acaba
inviabilizando o processo de formação continuada do educador.
Buscando entender os currículos das licenciaturas da UFRB, nessa pesquisa
também nos propomos analisar o processo de construção de um livro e da pesquisa
baseada na trajetória acadêmica de estudantes integrantes do grupo, sendo que um
dos eixos discutidos é a formação do currículo, buscando melhorias para os currículos
sugeridos pela universidade. Essa perspectiva do estudo sustenta uma noção de
currículo e formação pautada na construção de conhecimentos a partir das
experiências sociais, culturais e pessoais dos sujeitos. Assim o Currículo precisa ser
compreendido como um processo de construções sociais, atravessado por relações de
poder, que faz com que nos referenciemos a uma dada definição de Currículo e não
outra, que fizeram e fazem com que o Currículo inclua em um processo de formação
um determinado tipo de conhecimento e não outro. (SILVA, 2002, p. 135).
O Currículo é definidor dos processos formativos, em termo de concepção e
construção da formação, define em muito a qualidade e a natureza das opções
formativas, indo além de um legislador e regulador educacional. É importante
compreender e levar em consideração todo um campo político, ideológico, histórico,
social, cultural e econômico no qual se insere o currículo. Para não cair na armadilha
de reduzi-lo a um documento que contém componentes para serem rigorosamente
atendidos para consolidação de um processo formativo. O campo curricular está
carregado de intenções, de valores, de conteúdos, de atitudes, de experiências, de
conflitos. Para Rossi (2005), esse campo comporta várias visões de mundo, crenças,
afetos e significados, conflitos de interesse, dado a diversidade de atores envolvidos.
O currículo pensado apenas para a formação de sujeitos singulares não revela,
e até segrega atores sociais, ao negligenciar a importância das práticas sociais,
culturais e pessoais do indivíduo para a formação. Faz com que o sujeito assimile
conteúdos distantes da sua realidade de vida, tornando suas pretensões de trabalho
também distantes dessa realidade. (MACEDO, 2012) afirma que a formação do sujeito
pedagógico se relaciona de maneira intrínseca com o existencial e com o sociocultural.
A adequação de um currículo que tenha referenciais, que iniciem com pressupostos
de uma escala, faz com que os estudantes se sintam comtemplados com o currículo.
Essa prática resulta na formação de indivíduos mais conscientes e atuantes, com
experiências para trabalhar nas mais diversas situações, favorecendo assim, a
formação de profissionais competentes e críticos. Para reconhecer a importância
dessas políticas curriculares faz-se necessário para que se tenha como resultado
sujeitos cada vez mais atuantes e conscientes do seu papel na sociedade.

Dispositivos metodológicos

Para os procedimentos metodológicos foram utilizados a pesquisa-ação-


autoformação, vivências, experiências curriculares e formativas dos membros do
grupo. Os estudos que se apropriam da abordagem experiencial e que tomam as
histórias de vida como prática de formação, no âmbito do grupo têm se configurado

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 646


como uma vertente de pesquisa-formação. A pesquisa-Ação-formação tem o propósito
de promover discussões com estudantes do ensino superior a cerca do currículo, das
ações afirmativas e do êxito acadêmico, através de diálogos direcionados e da
experiência na construção de escritas autobiografias dos estudantes do grupo PET-
Conexões de Saberes – UFRB e Recôncavo em Conexão, bem como intenciona
demonstrar que os saberes e experiências de vida no âmbito social e cultural são
formativos e devem ser valorizadas, direcionando uma reflexão por parte dos
estudantes acerca das origens, trajetória estudantil, comunidade a qual pertencem,
fomentar a valorização das experiências e troca de saberes. Contamos também com
rodas de saberes e formação como dispositivo para produzir a pesquisa de forma
dialógica, colaborativa, além de leituras direcionadas.
O trabalho valoriza os processos e itinerâncias formativas dos estudantes.
Nesse sentido, foram produzidas escritas referentes às histórias de vida universitária,
as vivências familiares, comunitárias, às experiências, os saberes e fazeres relativos às
populações locais, que são tradicionais e populares, conforme registro histórico e
cultural do Recôncavo. De forma resumida os dispositivos metodológicos foram:
produção de história de vida, socialização das narrativas autobiográficas, análise dos
documentos institucionais de currículo e formação.
Neste trabalho de cunho qualitativo empreendemos o método de pesquisa (auto)
biográfico. Dessa forma o aspecto qualitativo da pesquisa não se refere à ação de
qualificar simplesmente seu objeto, mas por ser composta por outros pressupostos e
superar as dicotomias clássicas: sujeito/objeto; ciências humanas/ ciências da
natureza. Galleffi (2009) nos alerta que produzir pesquisa qualitativa só tem sentido se
seus efeitos trouxerem modificações para o meio onde ela acontece. Trata-se,
portanto, de uma investigação pautada num fenômeno contemporâneo da vida real
uma vez que tais sujeitos fazem parte de uma minoria sócia historicamente excluída.
As escritas autobiográficas reunidas estão sendo publicadas num livro no qual
evidenciam as vivências, competências e situações de êxito dos estudantes que
definem sua identidade de origem popular (classes C e D, negros, negras, quilombolas,
oriundos de comunidades populares, nascidos e criados no interior do estado ou em
bairros periféricos da capital); Evidenciando as solidariedades, os projetos
comunitários, as histórias culturais, as lutas pessoais e coletivas. Optar por explorar as
histórias de vida dos sujeitos pesquisados é uma característica do PET Conexões visto
que compreendemos a história de vida enquanto uma unidade, uma síntese, que
permite a análise da complexidade e múltiplas determinações de suas vidas. Aqui, os
sujeitos constroem suas autobiografias com os relatos, escritas e socializações das suas
histórias de vida e dos seus percursos escolares, em vez de dar voz aos sujeitos,
ganhamos espaço para compartilhar nossas vidas e lembranças e assim quebramos o
paradigma de que os estudantes de origem popular são pessoas historicamente
silenciadas.
Logo as autobiografias tratam de tópicos e posicionamentos críticos relativos à:
A- Identidade de origem popular (incluindo referenciais positivos coletivos e
individuais); B- A Vida Estudantil na Educação Básica (infantil até ensino médio); C- O
acesso a universidade, e também o que a família, a comunidade e a Universidade
contribuíram para esse êxito?; D- A construção da Permanência com êxito acadêmico:
o que você faz? O que faz em grupo? E a Universidade compreende e favorece sua

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 647


condição de estudante de origem popular? Como? Como poderia melhorar? Fale das
etapas/ ciclos da sua vida estudantil na universidade; E-Que sugestões você teria para
os currículos, conhecimentos e saberes trabalhados nos cursos e na sua Formação?
Como a UFRB poderia estar em conexão com o Recôncavo, tendo em vista a história, a
cultura, o desenvolvimento local das cidades,os saberes tradicionais, as tecnologias
sociais; F-As causas da evasão e das repetências ( de quem? E por quê? Quais os
semestres em que mais ocorre? O que pode ser feito para diminuir as evasões e
repetências?); G- A defesa da universidade popular? Como seria?; H- Aspectos da
Educação Superior de qualidade socialmente e culturalmente referenciada. Como
seria? Que conhecimentos, saberes, experiências sociais, culturas e práticas do
recôncavo já estão incluídos e podem ser incluídos mais ainda?; I- Posicionamento
sobre os cursos e as formações interdisciplinares.

O método biográfico

Considerada por alguns autores como método, técnica ou ainda, como método
e técnica, porque exige fundamento teórico e uma determinada maneira de conhecer
a realidade, a abordagem biográfica ou história de vida, tem variações de
denominações entre diferentes estudiosos, os quais acreditam e defende seu uso na
pesquisa socioeducacional como uma alternativa capaz de resgatar a riqueza e a
importância das histórias narradas por pessoas anônimas ou desconhecidas,
devolvendo às mesmas o seu lugar fundamental de fazedores da história, mediado por
suas palavras. Para Nóvoa:

as histórias de vida e o método (auto)biográfico integram-se no movimento


atual que procura repensar as questões da formação, acentuando a idéia
que 'ninguém forma ninguém' e que a formação é inevitavelmente um
trabalho de reflexão sobre os percursos de vida (1988, p. 116).

Segundo Souza (2008), os modelos biográficos e, mais especificamente, os


memoriais de formação ou acadêmicas revelam modos discursivos construídos pelos
sujeitos em suas dimensões sócio-históricas e culturais numa interface entre memória
e discursos de si. Os modelos biográficos assentam-se na inserção individual e coletiva
da memória e nas histórias de Vida. Por isso que na construção dos textos
autobiográficos foi de fundamental importância à socialização das escritas entre os
membros do pet nas rodas de saberes. Pois as discussões sobre as histórias de vida
como processo de conhecimento e de formação (SOUZA, 2008), como dimensão do
trabalho e dos modelos biográficos, inscrevem-se na biografia individual, quando
reunimos situações, experiências, acontecimentos da vida e partilhamos na
configuração narrativa, modos de dizer de si, sejam através da escrita ou da oralidade,
ao destacar percursos, trajetórias e transformações narrativas da nossa história.
No campo da educação, conforme aponta Josso (2002) estamos vivenciando, a
partir dos últimos vinte anos do século vinte, o desenvolvimento de uma sensibilidade
à história dos aprendentes. Através da abordagem biográfica o sujeito produz um
conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da
subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes. A centralidade do
sujeito no processo de pesquisa e formação sublinha a importância da abordagem
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 648
compreensiva e das apropriações da experiência vivida, das relações entre
subjetividade e narrativa como princípios, que concede ao sujeito o papel de ator e
autor de sua própria história.
Almejamos que o reconhecimento da legitimidade dessas fontes para a
pesquisa em História permita que vozes, até então silenciadas pela História tradicional,
reivindique o direito de falar, o que expôs o fato de que a História é, também, um
campo de tensão e disputa. Concordando com (SOUZA, 2008) que transcreve:

Assim os negros, as mulheres, os índios, os homossexuais vão buscar na


indagação do passado, a partir de suas memórias individuais e coletivas, as
circunstâncias sociais e culturais que os conformaram no tempo presente e
que permitem pensar em projetos para o futuro.

A pesquisa com histórias de vida inscreve-se neste espaço onde o ator parte da
experiência de si, questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens. Dessa
forma nós como atores nos tornamos, construtores e por consequência autores de
episódios de nossas próprias histórias no momento em que passamos a relatadas,
transcreve-las e socializa-las. Reafirmamos essa ideia inspirados em Souza (2007) que
nos relata que a construção da narração inscreve-se na subjetividade e estrutura-se
num tempo, que não é linear, mas num tempo da consciência de si, das
representações que o sujeito constrói de si mesmo.
Nessa perspectiva, a pesquisa narrativa adquire uma dimensão dupla: de
investigação e de formação, o que consideramos uma das principais fortalezas dessa
estratégia. Sobre a dimensão dupla da pesquisa narrativa, Souza (2006) esclarece que:

essa perspectiva de trabalho, [...] configura-se como investigação porque se


vincula à produção de conhecimentos experienciais dos sujeitos adultos em
formação. Por outro lado, é formação porque parte do princípio de que o
sujeito toma consciência de si e de suas aprendizagens experienciais quando
vive, simultaneamente, os papéis de ator e investigador da sua própria
história. (p.26)

Embora esta estratégia investigativa seja para nós considerada uma novidade, a
utilização das nossas escritas, em outras palavras das narrativas (auto) biográficas, não
é recente; pelo contrário é uma tradição bastante antiga, que se originou com os
primeiros gregos, especialmente com a Poética de Aristóteles. Em seu livro Confissões,
Santo Agostinho, que viveu na transição da Idade Antiga para a Idade Média, narra em
relatos e diários sua conversão ao cristianismo. (RICOUER, 1997).
Séculos depois, na Idade Moderna, um outro livro também chamado
Confissões, de Rousseau, dedica-se às escritas sobre si. Nele, o filósofo narra suas
experiências e vivências, além de descrever sua personalidade e seus hábitos. Na
contemporaneidade, a Sociologia, a História, a Filosofia, a Psicologia e a Antropologia
foram às primeiras ciências a utilizarem as narrativas em seus campos de estudo. Na
área da educação, em especial na formação de educadores, as pesquisas com
narrativas vêm crescendo no Brasil a partir de meados dos anos 1990 do século
passado (SOUSA, 2006). Sobre a pesquisa narrativa, Catani et al.(1997) explica que:

o que se convencionou chamar de pesquisa narrativa, no campo


educacional, enfatiza a variedade de práticas de investigação e formação
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 649
assim agrupadas, como iniciativas que vêm se firmando no campo desde a
década de 80, principalmente na Europa, e que deve muito às tentativas de
recolocação do sujeito no centro das interpretações das ciências
humanas.(p.20)

Sobre a pesquisa narrativa, Bolívar (1997, p. 2) afirma que “contar as próprias


vivências e ler, no sentido de interpretar, ditos feitos e ações, a luz das histórias que os
atores narram, se converte em uma perspectiva peculiar de investigação”. Kramer
(1998, p.23) contribui afirmando que “resgatar a história das pessoas significa vê-las
reconstituírem-se enquanto sujeitos e reconstituir também sua cultura, seu tempo,
sua história, reinventando a dialogicidade, a palavra”.
Os registros memorialísticos não são tão valorizados como os registros
científicos, principalmente no meio acadêmico, porém ao narrar e registrar o vivido
entendemos como o individuo construiu sua história e de que forma sua convivência
influenciou na sua formação e na construção de sua identidade pessoal. Nos registros
autobiográficos percebemos a formação pessoal do sujeito, de como ele encara e
narra à visão de si próprio, seja de forma real ou imaginaria dentro d e momentos
marcantes da sua vida enfocando em alguns ou que relembram momentos vividos,
informação essa, que estão guardadas na memória e são resgatadas de acordo com o
que lhe foi mencionado num determinado momento, pois somos seres inteligentes e
constituídos de experiências (JESUS, 2010).
Concordando com Jesus (2010) consideramos que todos os passos da nossa
caminhada são importantes e colaboram na nossa formação como cidadãos, porém na
transcrição das nossas histórias relatamos apenas alguns trechos considerados
pertinentes para a discussão de temáticas especificas, principalmente quando se fala
em educação e em estudos direcionados para o público. Compreendo que não se trata
apenas de entrar em contato com o que a vida ensina, mas com aquilo que se aprende
através das experiências que são vivenciadas e/ou desperdiçadas, considerando que
elas têm uma maior possibilidade de terem sido geradas, escolhidas ou preteridas,
para serem contadas pelos próprios indivíduos em formação, o que potencializa o seu
poder de formação. São estudos que permitem captar as dimensões em que as
histórias individuais se conectam a processos históricos e sociais, onde processos nos
planos micro e macro, objetivos e subjetivos podem ser examinados (JESUS, 2010).
A temática das “histórias de vida” tem se tornado recorrente nos dias atuais, a
partir da reabilitação do sujeito e do ator, e da Teoria dos Sistemas (Bertalanffy),
descortinando uma forma de centramento nos sujeitos aprendentes, na auto-
formação, especialmente quando se trata da formação de professores/as, girando em
torno de dois eixos: um projeto teórico de compreensão biográfica da formação e da
auto-formação através das perspectivas de pesquisa-formação e o uso de abordagens
biográficas a serviço de projetos. (JOSSO, 2004, p. 22).

Resultados e discussões

Essas escritas fizeram emergir uma série implicações curricular-formativas dos


discentes, dando ênfase aos referenciais da região, assim como aos aspectos
relacionados às políticas institucionais da universidade, a saber: às políticas
afirmativas, de acesso, de permanência e de pós-permanência no ensino superior.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 650
As autobiografias abrangem estudantes dos cursos de licenciatura e graduação, deste
grupo pet comporta estudantes do curso de licenciatura em biologia, história e
pedagogia, de campis diferentes fazendo a conexão e interagindo com as
singularidades destes que contribuem, reforçam, se apropriam e colaboram nas
escritas próprias e dos demais colegas. Para melhor organização dos textos tivemos
aulas de língua portuguesa bem como atendimento individualizado da professora na
organização da ordem cronológica e das ideias contidas nos textos, de forma que
facilitasse a concordância entre as falas.
As narrativas produzem sentidos contextualizados nos âmbitos sociais e
educacionais, ressaltando aspectos significativos das trajetórias de formação
estudantil. Tais aspectos pautam a comunidade acadêmica, no sentido de questionar
sobre a pertinência dos saberes dos sujeitos da aprendizagem, ou melhor, dos sujeitos
do conhecimento.
Os estudos realizados no âmbito institucional realizados pelo PET aponta que
políticas de acesso à universidade possibilitam aos estudantes uma vaga no ensino
superior através das cotas e programas de aceso a faculdades particulares com o
Prouni. As políticas de permanência têm o auxílio de bolsa que os estudantes recebem
para e os discentes fazem atividades de pesquisa relacionadas à cultura afro- brasileira
e dentre outras, e também interagem com outros grupos relacionados aos programas
de acesso, permanência e pós-permanência. Exemplo de políticas de acesso é o PET,
conexões de Saberes que proporciona troca de informações de diversas culturas,
conhecimento regional, interação com outros grupos, tal programa é de extrema
importância para os discentes ter uma visão global de universidade e saber conviver
com as diferenças.
Sendo assim, para que esses ingressem e permaneçam na universidade são
necessárias políticas afirmativas que garantam a permanência qualificada desses
estudantes. Pois, essas têm como missão garantir à comunidade acadêmica condições
básicas para o desenvolvimento de suas potencialidades, visando à inserção cidadã,
cooperativa, propositiva e solidária nos âmbitos cultural, político e econômico da
sociedade e o desenvolvimento regional.
As ações desenvolvidas pelo PET-Conexões defendem e buscam assegurar
políticas publicas que contribuem para a redução dos efeitos negativos das
discriminações no meio educacional, possibilitando a fruição de direitos para membros
de segmentos excluídos na sociedade representados na presença marcante da
diversidade de forma a “Assegurar a execução de Políticas Afirmativas e Estudantis na
UFRB, garantindo à comunidade acadêmica condições básicas para o desenvolvimento
de suas potencialidades, visando à inserção cidadã, cooperativa, propositiva e solidária
nos âmbitos cultural, político e econômico da sociedade e o desenvolvimento
regional”. Assim no âmbito das lutas defendidas pelos Programas de Extensão Tutorial-
Conexões dos Saberes defendemos que as Ações Afirmativas vão além de políticas de
equiparão de direitos socioeconômicos, culturais e políticos, assume também o
sentido de reparação do conhecimento, ação de afirmação identitária, revelando o
valor da identidade afirmativa, problematizando a Identidade Popular, não como uma
identidade inferior estigmatizada.
Pretendemos corroborar com as políticas e práticas que constituem a
institucionalidade e a gestão da UFRB, tendo como eixos articuladores e estratégicos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 651


os campos do Currículo, da Formação, da Permanência/Pós-permanência e do
desenvolvimento regional. Buscamos contribuir com a qualidade e a democratização
educacional, notadamente, nas ações de inclusão e educação das relações étnico-
raciais nos currículos oficiais. As politicas curriculares devem garantir a interação entre
os saberes intrínsecos do indivíduo e os saberes acadêmicos. Essa relação é
fundamental para que o processo de formação fomente a auto identificação do
indivíduo com tal processo formativo e, consequentemente, uma ascensão e êxito na
formação, através de uma experiência pautada na construção de conhecimentos, a
partir das práticas sociais, culturais e pessoais do sujeito. Assim, possibilita uma
postura crítica e atuante no exercício da sua cidadania.
De acordo com as experiências curriculares dos cursos da UFRB, os sujeitos da
pesquisa demonstraram consciência e implicação para contribuir e modificar a
realidade da universidade monorreferencial, baseada numa lógica elitista de
conhecimento. As narrativas autobiográficas, quando compartilhadas entre os
estudantes favorecem a produção de identidades individuais e coletivas, a exemplo de
noções étnicas, de gênero, de orientação sexual, de origem popular, dentre outras. Por
fim, esta visão, essa perspectiva de currículo e formação se interessa pelas questões de
identidade, de diversidade e, fundamentalmente, pelas alterações e novas relações de
poder.

Conclusões

As escritas autobiográficas demonstraram os níveis de relação dos estudantes


com os contextos. Destaca-se também as associações feitas com as experiências
curriculares implementadas nos seus respectivos cursos, o que pode ser entendido
como aberturas e disposições para realizar conexões de saberes no âmbito da
universidade, assumindo novas perspectivas de currículo e formação. Com base nos
estudos compreende-se a importância de se vivenciar uma experiência curricular
pautada na construção de conhecimentos a partir das práticas sociais, culturais e
pessoais, com a valorização da historia de vida e da formação. Tal compreensão
evidência que as variadas etapas da vida são também processos de formação.
Em consonância com as experiências autobiográficas partilhadas dos
estudantes do grupo PET, além dos debates relacionados à democratização,
interiorização e melhoria nas políticas publicas e institucionais percebemos a
necessidade de investigar os programas institucionais de acompanhamento dos
estudantes ingressantes com a finalidade de promover mecanismos de afiliação e
acolhimento na universidade buscando melhorias e adequação as metodologias
relativas ao currículo e nas relações com pesquisa, extensão e a formação protagonista
dos estudantes, como forma de aplicabilidade e com essa intensão percebemos na
escrita dessas autobiografias que reunidas se tornarão um instrumento ou ferramenta
de ajuda e aproximação da realidade de estudantes que superaram os desafios iniciais
e hoje tem o orgulho de assumirem sua condição denominada de origem popular.
O compartilhamento das experiências proporcionaram debates acerca dos
diversos pontos, tais como as questões políticas, sociais, educacionais, culturais,
dentre outras. As implicações levaram-nos a reflexões como, por exemplo: a
mobilização como estudante ativo na sociedade com posicionamento critica frente às

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 652


questões políticas e sociais; os momentos de estranhamento vividos na universidade; o
aprendizado em grupo; a conexão entre os saberes empíricos e os saberes científicos,
acadêmicos; democratização do acesso ao ensino superior, com seus prós e contras; as
politicas públicas implantadas nas instituições de ensino superior para a garantia da
permanência do estudante na instituição.
Os discursos autobiográficos contribuem para o estudante se tornar ator-autor,
ser intérprete de si mesmo e do outro diferente de si, influenciando positivamente na
dinâmica de construções de alteridades de formação e de diversidades socioculturais.
Observamos que os alunos que ingressam na universidade, e tem a oportunidade de
vivenciar um currículo pautado no multiculturalismo acabam se apropriando de um
novo conhecimento, uma noção de episteme social e, sobretudo, se autorizam a
construir sua história e destino de formação. As descobertas do estudo mostram a
pertinência dessa experiência autobiográfica, faz-se necessário a construção de um
currículo que priorize os conhecimentos culturais existentes e disponha-os em conexão
com outras formas de conhecimentos acadêmicos. As autobiografias dos jovens de
origem popular atestam os níveis de protagonismos referentes à suas formações.
Cientes da relevância da valorização das relações entre os saberes extra-
acadêmicos adquiridos no âmbito social, cultural e pessoal do indivíduo, as políticas
curriculares e a formação acadêmica dos estudantes, para um maior e mais completo
desempenho acadêmico-formativo, assim também como forma de compartilhamento
dos resultados da pesquisa com a comunidade acadêmica, bem como forma de
contribuir na formação com qualidade sociocultural, para a socialização dos resultados
as produções autobiográficas resultaram no lançamento de um livro intitulado
CURRÍCULO, FORMAÇÃO E UNIVERSIDADE: Autobiografias, permanência e êxito
acadêmico de estudantes de origem popular. Este livro traz para seus leitores o
resultado de um trabalho formativo desenvolvido por tutores e petianos do Programa
de Educação tutorial, no qual nós nos tornamos atores/autores de nossas narrativas
autobiográficas, o qual se caracteriza como um forte indicativo de êxito acadêmico de
estudantes de origem popular.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 655


Memória, identidade e leitura: o professor José no Vozes Literárias do Portela

Vanusia Maria dos Santos Oliveira


UFS/ Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela
vanusiaol@yahoo.com.br
Denise Porto Cardoso
UFS
denipoc@uol.com.br
Tatiane Oliveira da Cunha
UFS/ Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela
tatianehistoria@yahoo.com.br

Todo ser humano é importante. É na soma da biografia de cada um que a história da humanidade é
construída. A leitura é um dos caminhos viáveis à pesquisa biográfica e, portanto, um dos suportes para
o resgate de memórias. Em 2011, integrantes do Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela, em
Aracaju-SE, fizemos uso da pesquisa biográfica e dos textos produzidos pelo professor José dos Santos,
que falecera, para homenagear o ser humano que conosco convivera. A atividade fez parte da terceira
versão do projeto Vozes literárias ecoam no Portela: leitura, escrita, arte e tecnologia a serviço da
educação. Tal atividade consiste em fazer pesquisas calcadas na literatura e divulgá-las artisticamente à
comunidade escolar. Alunos de todos os turnos participaram. A família do professor e amigos também
estiveram presentes, a biblioteca da escola foi reformada e recebeu o nome dele no dia da culminância.
Os trabalhos dos pesquisadores Michael Pollac, Maurice Halbwachs e Eclea Bosi deram a
fundamentação teórica para refletirmos como o Professor José dos Santos contribuiu para o coletivo e
teve olhares voltados para ele. Com isso, tentamos desvendar, nas entrelinhas da vida, as tessituras que
contribuíram para a construção do ser humano-professor-escritor-sindicalista e a importância de suas
práticas para o universo fascinante da leitura, bem como para a melhoria do sistema de ensino da rede
pública.
Palavras-chave: Memórias; Práticas de leituras; Pesquisa biográfica.

Introdução

Doe leitura de bons livros poemas


Textos jornais revistas... são para
A escuridão da vida lamparina...115
(José dos Santos)

A leitura e a escrita são essenciais à comunicação moderna. Por isso são


alicerces da atividade educacional. A arte é uma das mais antigas formas de expressão
do ser humano, e a tecnologia, desses quatro tópicos, mesmo sendo o mais recente, é
o que mais tem atraído o interesse dos alunos. Deixa-os fascinados devido à
diversidade de possibilidades que conquistam a todos, principalmente, as crianças e os
adolescentes que, vislumbrados com esse universo da navegação virtual, acabam
usando a tecnologia de maneira não muito criativa para o universo escolar. Várias são
as reclamações de professores e pais acerca do desvio de atenção dos discentes que
parecem não perceber que, ao se comunicar eletronicamente, leem e escrevem. O que
os educadores podem fazer, então, para conciliar a prática educativa e o uso da mídia?
Com o intuito de responder a essa angústia e colocar em prática um projeto
que despertasse nos alunos o interesse pela leitura e pela escrita a partir da arte e da

115
SANTOS, José dos. Utopia peregrina. Aracaju, Sintese, 2008, p. 16.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 656
tecnologia, as professoras Jeuzinete Paula de Oliveira (Inglês), Lígia Monteiro da Silva
(História), Maria José Azevedo Santos (Língua Portuguesa), Valéria Melo Mendonça
(Laboratório de Tecnologia Educacional) e Vanusia Maria dos Santos Oliveira (Língua
Portuguesa), em 2009, reuniram-se no Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela, em
Aracaju-SE, para discutir e elaborar atividades que conciliassem esses quatro tópicos.
A partir dessa reunião, surgiu um projeto do qual participou - e posteriormente
nele foi homenageado - um professor da Escola: o Professor José dos Santos. A leitura
é um dos caminhos viáveis à pesquisa biográfica e, portanto, um dos suportes para o
resgate de memórias. Resgatar a memória acerca do Professor José para homenageá-
lo a partir da pesquisa biográfica e dos textos por ele produzidos é resgatar parte da
identidade da Instituição, uma vez que, estando inserida numa engrenagem maior, a
parte contribui para o todo e o todo para a parte, já dizia Gregório de Matos Guerra116.
Por isso, tentamos desvendar, nas entrelinhas da vida, as tessituras que
contribuíram para a construção do ser humano-professor-escritor-sindicalista e a
importância de suas práticas para o universo fascinante da leitura, bem como para a
melhoria do sistema de ensino da Rede Pública.
Para Michael Pollak, a memória é construída socialmente e individualmente. Ao
relacioná-la com a identidade podemos dizer que a memória é um “elemento
constituinte do sentimento de identidade tanto individual como coletiva, na medida
em que ela é também um fator extremamente importante do sentido de continuidade
e de coerência de uma pessoa e de um grupo em sua reconstrução de si”.117 Para
Pollak a memória coletiva de um determinado grupo “ao definir o que é comum a um
grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de
pertencimento e as fronteiras sócio-culturais”.118 Nesse sentido, a comunidade
Portela, ao resgatar as memórias de um professor que agia cotidianamente em prol de
uma Escola Pública de qualidade, reforça seus laços de pertencimento e continua
trabalhando em busca desse objetivo.

Os primeiros passos do “Vozes literárias”

No projeto inicial pensou-se em abordar com os alunos dos primeiros anos, do


ensino médio, das turmas “C “e “D” o texto “Os bruzundangas” de Lima Barreto. Os
alunos iriam analisar a obra, contextualizá-la, fazer uma adaptação do gênero narrativo
para o dramático, registrar de maneira radiofônica a contextualização e as
dramatizações, divulgar o resultado da atividade radiofônica aos outros alunos do
ensino médio e em uma reunião de pais e mestres, na qual seriam apresentados três
roteiros radiofônicos selecionados pelos próprios alunos.
A então coordenadora da escola Ana Jarves Gardênia Deda Torres, ao saber o
que se pretendia fazer, sugeriu que se expandisse a atividade a outras turmas; e Maria
Sueli Ferreira de Araújo, à época secretária, que o resultado fosse divulgado em uma

116
O fragmento diz respeito ao poema “Ao braço do mesmo menino Jesus quando apareceu” do
barroco brasileiro Gregório de Matos Guerra.
117
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 5, nº 10,
1992.
118
POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº
3, 1989, p 3.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 657
mostra científica da Instituição criada especificamente para tal tarefa. Em reunião, os
demais professores aceitaram as propostas, conversaram com os alunos e, dessa
forma, surgiu o “Vozes literárias ecoam no Portela: leitura, escrita, arte e tecnologia a
serviço da educação” (“Vozes”). Nessa nova perspectiva, as equipes, professores e
alunos, escolheriam como trabalhar um paradidático por eles adotado. As pesquisas,
como se pode constatar, seriam calcadas na literatura, e os resultados divulgados
artisticamente à comunidade escolar.
A execução da primeira versão do “Vozes” fora um sucesso. Turmas de todos os
turnos participaram, e todos os professores também. Para facilitar o diálogo entre os
turnos no que diz respeito à tomada de decisões, o projeto contou com uma
coordenação geral, que ficou sob a incumbência da professora Vanúsia. Cada turno
também tinha seu coordenador. A responsável pelo turno da manhã foi a professora
Luenilza Silva de Araújo (Língua Portuguesa); a professora Vanusia coordenou o que
ocorrera à tarde; o professor José dos Santos (Língua Portuguesa), as atividades
executadas pelos alunos que estudavam à noite e a professora Valéria (Laboratório de
Tecnologia Educacional), tudo o que precisava da mídia como suporte. É interessante
ressaltar que um desses coordenadores, o professor José, deixou evidente que o Vozes
não era um projeto para ser executado em um ano e nunca mais se ouvir falar nele. Ele
captou na essência do projeto uma riqueza que precisava ter continuidade, pois
motivar o aluno a ler é uma das principais funções de quem atua na educação. E
quando ele fala em quem atua na educação não está pensando apenas no professor,
seu posicionamento denota que todo o sistema educacional deve ter como foco criar
condições para que o fazer pedagógico seja “exitoso”. O professor José sentiu-se
honrado ao ser convidado a coordenar as atividades dos alunos do turno no qual ele
trabalhava. Observe-se a sua opinião acerca do projeto:

Pobre escola pública, como anda na penumbra, com ‘reordenamento de


rede’ e outras mazelas, cuja consequência desastrosa é o professor/a
descartado/a à maneira de coisa, sem sala de aula para desempenhar a
contento sua missão, ou como nômade rodando de escola em escola, lhe
sendo negado o sagrado direito de desenvolver um trabalho consequente
com seus estudantes.
Mas ainda bem que há um alento, uma luz no horizonte, que é o Projeto
‘Vozes Literárias do Petrônio Portela’, em que a escola retoma o seu papel
principal de reduto onde a leitura ainda tem a chance de ser desenvolvida,
pois o fracasso dela nessa área significa a morte dos leitores através dos
mecanismos de repetência, evasão, desgosto, frustração e/ou alienação do
saber sistematizado.
O ‘Vozes Literárias...’, sem dúvida, é um projeto arrojado que, se levado
adiante, muito tem a contribuir para ‘educar em uma dimensão ética,
formar para a cidadania e consolidar a democracia, vigorando assim as
relações escolares’.
Portanto, todos os que fazemos o Petrônio Portela, num gesto de grandeza
de alma e compromisso com a Educação Pública, devemos abraçar o
Projeto, apoiando e empenhando nossos préstimos à busca de que ele seja
exitoso!119

119
Disponível em: http://portela02.blogspot.com.br Acesso em 28 de mar de 2014.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 658
E, dessa forma, com o envolvimento de todos, um evento fora planejado para
o momento da culminância que, por conta da abrangência de participantes, fora
executada em momentos diferentes. No dia 14 de novembro de 2009 houve a
apresentação dos alunos do turno diurno (manhã e tarde), pela manhã, e no dia 27, do
mesmo mês e ano, os alunos que estudavam à noite exibiram o resultado de suas
pesquisas. Em ambos os eventos, vários gêneros textuais foram abordados dentre eles
romances, cartilhas, fábulas, crônicas e poemas. A leitura uniu ainda mais os
integrantes da Instituição, pois, como não havia competição, uma equipe ajudava a
outra. Houve vários momentos de diálogo, troca de material e principalmente um
construtivo labor nas oficinas nas quais o rico trabalho dos professores orientadores
merece destaque. Riqueza ampliada na troca de experiência e conhecimento nas
oficinas e multiplicada nos momentos de culminância. A Secretaria de Estado da
Educação de Sergipe ofertou uma oficina de rádio na própria escola para os alunos que
se interessassem. As aulas eram ministradas no próprio laboratório da escola por uma
funcionária enviada pela secretaria da educação. Participaram do curso dezenove
alunos - do oitavo ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio - o
funcionário José Aquino Vieira Melo e as professoras Valéria e Vanusia. Aliás merece
destaque também o envolvimento dos funcionários da escola. Colaboraram em tudo
que era necessário e que estava ao seu alcance, ora participando ativamente das
oficinas, ora motivando e dando sugestões aos alunos.
Apesar de desenvolverem trabalho com outras turmas também, as professoras
idealizadoras mantiveram o interesse em abordar “Os bruzundangas” com os alunos
dos primeiros anos “C” e “D” e, com acréscimo do auxílio dos professores Jefson dos
Santos (Matemática) e José Roberto dos Santos (Arte), os alunos destas turmas
produziram programas de rádio, telejornal, dramatização e paródia.
Um blog foi criado pelos alunos da escola para que um documentário do
projeto fosse produzido.120 A equipe responsável pela produção e edição do material
eram os discentes Alan Guerra Santos, Claélber Adson Santos e Milka Conceição dos
Santos. A filmagem ficou sob a responsabilidade do próprio Alan e do aluno Alisson da
Conceição Oliveira Coelho. Assim, há o olhar do aluno sobre suas próprias práticas de
leitura e o registro dessas práticas sob essa ótica. Alunas foram escolhidas para serem
as apresentadoras do evento nos dias da culminância: Milka, dia 14 de novembro, e
Paula Valesca Jeremias Nogueira, dia 27 do mesmo mês.
A avaliação do evento ocorreu por turno por não ter sido possível o encontro
de todos. Em cada um houve duas reuniões. Uma dos professores e outra dos alunos.
Para que os discípulos ficassem mais à vontade, os professores não participaram da
reunião deles. Depois as anotações foram analisadas e constatou-se que o principal
ponto negativo citado foi a falta de recursos para a execução do mesmo. Os próprios
integrantes da Instituição precisaram providenciar. Também fora comentado que o
fato de unir os turnos da manhã e da tarde em uma só manhã de apresentação
impossibilitou que todos vissem tudo. Parecia, como está no próprio projeto, um
“Festival de Leitura”.121 Enquanto as apresentações ocorriam, estandes eram visitados.
Participavam desse momento vinte e duas turmas. Foi citado que se um auditório

120
Idem.
121
Projeto Vozes literárias ecoam no Portela: leitura, escrita, arte e tecnologia a serviço da educação,
2009.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 659
fosse construído, as apresentações seriam melhor visualizadas e ouvidas. Já nos pontos
positivos, foi ressaltado o foco na leitura, a criação do blog, a interação entre os
turnos, a oficina de rádio, a fila para visita a um dos standes, a participação do músico
José Carlos Carvalho de Mendonça, Muskito, que, a convite do professor José, não só
orientou os estudantes do turno da noite quanto às apresentações musicais, mas
também participou ativamente do momento de culminância.
O sucesso foi tão grande que, no ano seguinte, houve a segunda versão do
“Vozes”. Quanto à coordenação das atividades, apenas a do turno da manhã e da
tarde permaneceram intactas, respectivamente Luenilza e Vanúsia. O professor José
dos Santos continuou orientando as atividades executadas à noite, só que, dessa vez,
auxiliado por Williane Cruz Lucas (Língua Portuguesa); a professora Maria de Lourdes
dos Santos (Laboratório de Tecnologia Educacional) coordenou as atividades que
tinham a mídia como suporte; o grêmio estudantil também participou da coordenação
das atividades, tendo como principais representantes Alan Guerra Santos e Luiz Morais
de O. Júnior; e a coordenação geral do projeto foi dividida entre a professora Vanúsia e
a então coordenadora da escola Jane Suely Araújo de Azevedo. Houve reunião
pedagógica nos três turnos para discussão do que seria executado e escolha do
paradidático.
Optou-se por realizar uma Semana Literária. Dessa vez, vinte e duas obras
foram abordadas. A culminância ocorreu do dia 16 ao dia 19 de novembro de 2010. No
dia 16 houve a abertura nos três turnos, com apresentação da banda marcial escolar -
sugestão da professora Luenilza - e divulgação dos livros que as equipes tinham
analisado, como motivação para que todos quisessem conhecer o que seria abordado
durante a semana. Esta atividade consistia em um desfile do qual, ao toque da banda
marcial escolar, três representantes de cada turma participava, e, ao final, diziam seus
nomes, a turma que estavam representando e mostravam o livro que estudaram. Nos
outros dias da semana, pela manhã e à tarde, quatro turmas faziam apresentações em
seus respectivos turnos, e a cada noite duas turmas se apresentavam122. A escola
possuía doze turmas em cada turno diurno e seis à noite.
O músico Muskitu continuou auxiliando o pessoal à noite. Entre as demais
ações, cordelistas proferiram palestras nos momentos de abertura; um psicólogo
orientou a equipe que trabalhou o livro “Mentes perigosas”; um delegado concedeu
entrevista, na delegacia, a um grupo de estudantes que trabalhariam o paradidático
“Vida de droga”, bem como um agente da polícia civil veio à escola proferir palestra
sobre droga, antes do dia da culminância do evento, para que os alunos
aprofundassem a análise do drama de quem passa por essa situação e conseguissem,
assim, compreender melhor o enredo contido no livro; a turma que trabalhou o
paradidático “E agora, mãe?”, orientada pela professora Vanusia e pelo professor Irani
Bila da Silva (Matemática), fez uma enquete na escola com questões relativas à
sexualidade.
A edição e a produção do documentário ficaram sob a responsabilidade dos
alunos Alan, Rafael dos Santos Siqueira e Robyelson Augusto da Silva.
No momento de avaliação do projeto, fora citado que a segunda versão foi
melhor que a primeira. Os alunos que estavam à frente do evento elogiaram as
122
Disponível em: http://portelaaju.blogspot.com.br/2010/11/comeca-o-ii-vozes-literarias.html Acesso
em 12 de mar. de 2014.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 660
professoras Elissandra Silva Santos (História) e Vanusia por estarem no feriado de 15
de novembro com eles na escola resolvendo alguns imprevistos para que no momento
da abertura tudo ocorresse a contento. O pessoal gostou da participação da banda, do
envolvimento do grêmio estudantil, aliás estes é que pediram à professoras citadas
para irem à escola, com os mesmos, no feriado, pois gostariam de deixar tudo
organizado. Quanto aos pontos negativos, os avaliadores, professores e alunos,
citaram o fato de ter sido cansativo, pois durou uma semana; a falta de um bom
equipamento de som e, mais uma vez, sentiu-se a falta de um auditório.

A poesia do professor José no Vozes literárias

Em 29 de janeiro de 2011 o professor José faleceu.123 Durante a missa de


sétimo dia, amigos sindicalistas prestaram alguns depoimentos acerca do ilustre
militante, nesse momento, a professora Vanusia ficou sabendo que ele era escritor.124
A docente conversou com o professor Adailton Almeida de Novais (Física) e sugeriu
que a terceira versão do “Vozes” fosse dedicada ao Professor José. Ele aceitou
imediatamente e, junto à professora Vanúsia, liderou a homenagem. A comunidade
escolar também abraçou a ideia. Nesse ínterim, por conta de problema no circuito
elétrico do ar condicionado, a biblioteca fora incendiada. Era necessário, uma reforma.
Ilka de Azevedo Silva (professora, à época, responsável pela biblioteca) sugeriu, então,
que, após a reforma, a biblioteca passasse a ter o nome do Professor José. Assim se
procedera. A terceira versão homenageou-o e, no dia da culminância, dentre outros
acontecimentos, a biblioteca escolar passara a se chamar Biblioteca Professor José dos
Santos.
Quem é o professor José? Por que homenageá-lo? Todo ser humano é
importante. É nas relações sociais que a história da humanidade é construída. Por que
não unir textos escritos, por alguém com quem os integrantes da comunidade escolar
convivera, aos pilares do ‘Vozes”? Melhor ainda seria se ele ainda estivesse vivo. Mas
nunca é tarde para executar um desejo plantado no coração de alguém, muito menos
quando há tantos corações envolvidos.
Ele nasceu em Arauá-Sergipe no dia 15 de maio de 1956, a formação era em
Pedagogia pela faculdade Pio X (Aracaju-SE, 1982); pós-graduado em Literatura
Brasileira pela Universidade Salgado de Oliveira (Rio de Janeiro, 1999) e técnico em
Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Sergipe – UFS (Aracaju-SE, 1982).
Era um dos diretores do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica da Rede
Oficial do Estado de Sergipe: SINTESE; integrava o SINTSEP, Sindicado dos
Trabalhadores do Serviço Público, e o SINTUFS, Sindicato dos Trabalhadores Técnico
Administrativo em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Como se pode
observar, o professor José era amante da luta diária por uma sociedade mais justa.
Atente-se para o orgulho que tinha de ser sindicalista, nos versos do poema Opção
óbvia:

123
Disponível em: http://www.sintese.org.br/j25/index.php/educacao/rede-estadual/3341-morre-
professor-jose-dos-santos Acesso em 12 de mar de 2014.
124
O contato entre os dois era mínimo, pois ela trabalhava pela manhã e à tarde; e ele, à noite.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 661
Na minha práxis permanente a
pelejar
O meu trabalho é processo em
Construção
Rigorosamente ético-coletiva
Essencialmente sócio, político-ped-
agógico,
Sou professora,
Sou professor,
Sou eterno aprendiz
Que vive a estudar
Qual o caminho de homens e
Mulheres emancipar
À luz do conhecimento
E da ação-reflexão-ação
Na luta consequente contra
Pedagogias de resignação e conformismo.
Assim é que no mundo
E com o mundo estou
Teimosamente a cultivar
“À sombra desta mangueira”
“As pedagogias da Esperança e
da Autonomia”
sou com certeza d’Essa escola
chamada vida”...
Por isso,
Me sei S I N T E S E,
Isto sim!125

Denota-se, a partir da leitura, o seu amor às causas sindicais, bem como a sua
erudição e o seu labor poético, ao conciliar a luta, o orgulho de pertencer a um grupo
sindical e o que move esse grupo ao gênero lírico com tamanha maestria. Os títulos de
algumas publicações, bem como citações de outros autores são constantemente
invocados em seus textos. Basta verificar que em apenas um fragmento já
encontramos referência a três obras: “À sombra desta mangueira”, “A pedagogia da
esperança” e “A pedagogia da autonomia”, todas escritas por Paulo Freire. A escolha
das palavras e a inserção delas neste poema corroboram a admiração do professor
José pelo pensamento e pelo posicionamento daquele educador.
“Opção” óbvia é um dos poemas que integram o livro ‘Utopia peregrina” de
autoria do professor José. A obra foi publicada pelo SINTESE em 2008. Na
apresentação do livro, Franklin Magalhães Ribeiro escreve que

O cantar do poeta professor – que como os outros poetas consegue


enxergar onde não enxergam os comuns – não é um livro para ser jogado e
esquecido num canto da estante, é mais um de seus tantos gritos em defesa
da igualdade, da justiça, da solidariedade e da construção da libertação, não
pode ser emudecido. É também um convite a tomarmos consciência que o
plantio do novo tempo já começou. E nos manda sinais... e implora a nos
engajarmos em sua concretização.126

125
SANTOS, 2008, op. cit., p. 09.
126
Idem, p. 03.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 662
Assim a ‘Utopia peregrina”, livro escrito pelo professor José, passa a ser a
principal fonte de leitura da terceira versão do “Vozes”. O que dizer, então, de uma
obra cujo título possui as palavras utopia e peregrina? Como se pode perceber, o
próprio título é provocador. E a obra segue esta linha. A linha da busca da construção
de uma escola humanizadora e libertadora que só será concretizada por meio da luta
sindical e de uma postura de doação daquilo que há de melhor em cada um para que
na troca todos possamos crescer. Um convite à mudança para melhor. É a utopia que
pode e deve acontecer, mas que para isso precisa ser peregrina. As quatro estrofes a
seguir são fragmentos do poema “Doe...”127 que consta na mesma obra.

Doe-se à Chance Única de Mudar para


Melhor teu jeito de ser professor, professora,
Amigo, companheiro, profissional, leitor...
“só quem já morreu não muda”.

Para compreender a obra do professor, é preciso ter várias outras leituras. O


termo entre aspas, citado anteriormente, por exemplo, pode nos remeter a Clarice
Lispector a nos anunciar que uma vida sem riscos “não vale a pena”.128 O leitor vai
construindo o significado à medida que analisa as citações, os nomes, o porquê das
maiúsculas, as palavras construídas a partir de outras, a simbologia presente entre as
gravuras e os textos.129

Doe Olhar de Gente para quem


É gente, nunca veja as pessoas como
Se objeto fossem...

Aqui o olhar humano do professor se faz presente. É como se quisesse chamar


a atenção para o fato de que quem olha as pessoas como se elas objeto fossem, não as
visse com olhar gente, por isso quem assim age é que não é gente. Perceba-se que ele
personifica o olhar dado às pessoas, bem como torna próprio o substantivo gente,
especificando-o. Nas estrofes a seguir, do mesmo poema, os tipos de arte e a palavra
cultura são personificados, bem como as palavras vida e povo. É a sensibilidade
reivindicando sensibilidade. Sensibilidade esta que deve ser dispensada à arte para
dela receber cultura e, como fruto, colher a vida:

Doe sensibilidade a uma obra de arte


Presente na Literatura, Música, Teatro,
Escultura, Dança... como ajudam a
Suportar o peso do desumano mundo

Doe e receba Cultura incessantemente,


Porque o objeto primeiro desse cultivo
É a própria Vida, que exige a preservação
Da identidade de um Povo.

127
Ibidem, p. 16.
128
Disponível em : http://frases.globo.com/clarice-lispector/5105 Acesso em 28 de mar de 2014.
129
Cada poema, no livro, está acompanhado de uma ilustração: retratos do movimento sindical, de fatos
corriqueiros e de pessoas com as quais ele conviveu.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 663
E foi essa sensibilidade que impulsionou os integrantes do Petrônio Portela a
estudar os poemas do professor, buscando nesse estudo o entrelaçamento memória,
identidade e leitura. O resultado da pesquisa foi divulgado artisticamente à
comunidade escolar.
Um documentário foi produzido por um grupo de alunos dos primeiros anos “C” e
“D”. O material foi editado pela aluna Rafaela Guerra. A atividade foi feita sob
orientação da professora Eliane Ramos Gonzaga (Geografia) e contou com o apoio da
coordenadora Roseane Vieira de Almeida. Eis alguns fragmentos citados nas
entrevistas:

José dos Santos foi uma pessoa que eu amei muito. Nós fomos muito felizes,
e eu agradeço a Deus por ter colocado ele na minha vida. A chegada dos
nossos filhos foi um momento marcante para nós. É... a dificuldade que ele
teve foi quando a irmã dele, Josefa, faleceu, que ele considerava... Ju... é...
irmã-mãe. A infância dele foi difícil. A mãe dele faleceu muito cedo. Ele
teve... Ele cresceu num orfanato até... e ficou até 18 anos. Sua existência
deixa ensinamento de vida para os seus familiares [...]. Ele estudou aula de
violão, de piano [...] de tudo ele sabia um pouco [...]. 130

Dona Lucinalva, esposa do professor José, disse que ele gostava de se expressar
escrevendo. Ela comentou que estava agradecida pela homenagem. A esposa do
professor José não apenas esteve presente nos três momentos da culminância, mas
auxiliou nas pesquisas, principalmente, na construção do documentário. Também
fizeram parte da homenagem os depoimentos da filha Caroline Silva Alves e de alguns
amigos, a exemplo, do professor Adailton e do professor Bruno.

Meu pai, ele era uma pessoa muito especial, ele era realmente aquele
paizão que sempre buscava dar o melhor pra gente, e nos incentivava
sempre a estudar pra que a gente tivesse um futuro digno, e eu costumo
dizer que se eu for metade de tudo aquilo que meu pai foi, eu já vou ser
muito feliz, porque meu pai era uma pessoa batalhadora, um homem
honesto que buscava sempre o melhor, ele lutava muito pelos ideais dele e
ele amou muito a família dele, e nós ... nós agradecemos demais pelo pai
que Deus nos deu, que ele realmente foi um pai muito, muito especial. 131

[...] seu José dos Santos [...] foi um admirável educador [...] com um legado
de dedicação ao magistério sempre na perspectiva de uma vida melhor para
todos os homens e mulheres [...]. Além de tudo isso [...] foi assim um... um
cidadão exemplar, uma pessoa que tinha grande lisura com a coisa pública,
uma grande preocupação com as questões sociais um... um... homem que
foi um exemplo [...] exemplo certamente de pai, de esposo, de colega [...],
de amigo [...]132

O professor Adailton dá continuidade ao seu depoimento citando a tristeza que


tomou conta dele ao saber do falecimento do amigo e colega de profissão. Disse que
se lembrou logo do engajamento dele no “Vozes literárias”.

130Lucinalva Alves. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011.


131Caroline Silva Alves. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011.
132Adailton Almeida de Novais. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 664


E o professor Bruno (Biologia) ressaltou o fato de que o professor José não só era
apaixonado pela poesia, mas também entusiasmava os outros a se apaixonarem.

[...] me lembro dele com seu entusiasmo, com a sua dedicação, com a sua
paixão pela poesia, como é de todos os poetas, me recordo dele aqui,
sempre conosco nos momentos que podia declamando o poema de “Mãos
dadas” de Drummond, uma coisa que me marcou muito a forma enfática
como ele fazia isso por mais de uma vez ele nos fez dar as mãos todos para
poder declamar esse poema [...]133
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.134

A participação do professor José na coletividade escolar do Portela não se


restringe a seu ativo trabalho na sala de aula, muito menos à sua participação como
coordenador do Vozes. Sua relevância enquanto sujeito histórico ultrapassa as
barreiras da escola, visto que, enquanto ser humano participava ativamente de outros
grupos sociais, a exemplo, da família, do sindicato, dentre outros. Sendo assim, a
biografia desse professor é relevante para compreendermos questões mais complexas
relacionadas ao universo da memória, da identidade e da leitura.
Ao desenvolver o projeto, as equipes selecionaram o texto a ser estudado;
analisaram a obra; realizaram a pesquisa bibliográfica; estabeleceram contato com a
família do professor José, com os amigos, com os integrantes do Sintese (tanto houve
visita ao sindicato, por um grupo de alunos, como um representante do Sintese veio à
escola para proferir uma palestra sobre o professor José e o sindicato); foram a alguns
lugares abordados nos textos, por exemplo a visita a determinados pontos de Aracaju (
trabalho desenvolvido pelas professoras Ana Maria Menezes Santos de Almeida,
Língua Portuguesa, Mírian Guedes Nascimento, Geografia, e Tatiane Oliveira da Cunha,
História, ao analisar, junto aos discípulos do 6º A e 6º B, o poema “Aracaju
arrebatadora”. Elas organizaram uma excursão pelos principais pontos históricos de
Aracaju conforme apresenta a poesia, iniciaram na colina Santo Antônio - um dos
pontos mais altos de Aracaju, onde residiam pescadores antes mesmo de a capital
existir -, em seguida partiram para os Mercados Antônio Franco e Thales Ferraz,
localizados no centro de Aracaju, nos quais os discípulos puderam conhecer um pouco
mais da cultura sergipana através da visita aos estandes dos cordelistas, das barracas
de artesanato, de ervas medicinais, entre outras variedades apresentadas nesse

133Bruno de Silva Lima. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011.


134
Disponível em http://letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/460648/ Acesso em 25 de abr. de
2014.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 665
universo fascinante dos mercados de Aracaju e, por fim, levaram os alunos ao Museu
Palácio Olímpio Campos onde puderam conhecer um pouco mais da história de
Sergipe); divulgaram as análises por meio de dramatização, exposição, paródia,
programação de rádio, coral, estande, jornal, produção literária dos próprios alunos,
mural, musical, maquete, fantoche, documentário e, como ele participava ativamente
da luta sindical, os alunos também simularam uma marcha135 na quadra da escola,
palco das apresentações na noite de abertura (durante o dia, as apresentações
ocorreram no pátio). A comunidade escolar pôde contar com o apoio e o incentivo do
Sintese que, entre outras ações, contribuiu com material para a pesquisa, distribuiu
alguns exemplares de Utopia peregrina, bem como camisas, faixas e panfletos para a
encenação da marcha. Além disso, o coral da Instituição esteve presente no momento
da abertura.
A professora Vanusia dividiu a coordenação geral das atividades com o
professor Adailton, este, por sua vez, com o auxílio da professora Salveline (Espanhol),
coordenou as atividades executadas à noite; as coordenações do turno da manhã e da
tarde continuaram respectivamente com as professoras Luenilza e Vanusia. Um ensaio
geral fora executado para que as pendências fossem resolvidas. Além disso, optou-se
por realizar o evento em dois dias. No dia 5 de dezembro de 2011, houve a abertura,
com divulgação dos trabalhos dos alunos que estudavam à noite e, no dia seguinte, 6
de dezembro, os alunos que estudavam durante o dia divulgaram o resultado de suas
pesquisas, cada qual em seu turno. Houve acordo para que, em cada turno, tudo
ocorresse num prazo de 4 horas, ficando cada momento com uma hora para execução:
no primeiro, os estandes eram organizados e equipes ensaiavam; no segundo,
aconteciam as apresentações; no terceiro, os estandes eram visitados e, por fim, no
quarto, ocorria a limpeza e a organização das salas para que as equipes do outro turno
encontrassem a escola como elas mesmas a encontraram.
Na maioria das vezes, as equipes eram formadas por duas turmas da mesma
série e tinham no mínimo dois professores orientando os trabalhos. As equipes que se
apresentariam no dia seguinte ao da abertura, exibiram vídeos que divulgavam a obra
e o trabalho desenvolvido. Esta atividade consistia em motivação à visitação à escola
para assistir às demais atividades também. Apenas três equipes trabalharam textos
que não foram escritos pelo professor José. 136 As demais analisaram “Anjo
comunista”, “Sintese sempre”, “Este sindicato”, “Educação do campo”, “Aracaju
arrebatadora”, “UFS 40 muitos anos de vida”, ‘Doe...”, “Pão e paz”, “Cinzas”, “Sintese
amordaçado” “e quem se HABILITA? (auto de natal)”.137
Os versos do Professor José conclamam o leitor a uma tomada de atitude.
Metaforicamente, é como se as palavras puxassem o leitor pelos braços e dissessem:
venha às ruas comigo, vamos à peregrinação por tempos melhores! No poema “quem
se HABILITA? (auto de natal)”138, o autor tanto provoca ao iniciar o título com letra

135
A marcha encenada personificava a “Utopia peregrina” no evento.
136
Os textos abordados por essas equipes foram: Era uma vez minha primeira vez, O menino que caiu do
buraco e Os sete poderes. O foco eram os textos escritos pelo professor, mas não havia obrigatoriedade.
Todas as equipes formadas no turno noturno trabalharam textos do professor.
137
Alguns poemas foram analisados por duas equipes, de diferentes turnos, por isso foram abordados
sob duas perspectivas: Aracaju arrebatadora e Educação do campo.
138
SANTOS, 2008, op. cit., p. 28.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 666
minúscula, ideia de continuidade de algo já iniciado (alguém já se habilitou), como ao
destacar a palavra habilita. Vejamos o sentido de habilitar e de habilitar-se139: habilitar
significa “tornar hábil, apto, capaz para alguma coisa”, portanto, habilitar-se é
“preparar-se para algo”. E que dizer do emprego da palavra auto cujo significado é
“obra dramática de âmago ou essência moral ou pedagógica”140 em um texto
compacto, composto por 84 versos dos quais em 82 há 34 interrogações. Dentre elas:

A seguir as pegadas de Cristo?


A repartir melhor o pão?
A desarmar o espírito para acolher o
Irmão?
A reverenciar a Paz como o único
caminho seguro para o progresso da humanidade?
A protestar contra a guerra e os projetos de
países que alicerçam seu desenvolvimento
às custas da exploração e da denominação dos
povos?
A virar o jogo em nome da vida em abundância
para todos?

A palavra Cristo justifica o termo natal. Um novo tempo. Nascimento de uma


nova era. Quem se habilita nasce novamente. Nos dois últimos versos, encontramos a
resposta:

Nós nos habilitamos!


Disto depende o futuro do Brasil!

O projeto mais uma vez foi um sucesso. Porém agora com um gostinho de
saudosismo. O músico Muskitu, amigo do professor José que participou das versões
anteriores a convite do professor, participou ativamente da homenagem. A diretora
Célia Rejane Oliveira Rodrigues auxiliou em tudo que foi necessário. No momento da
abertura contou-se com um cerimonialista vestido a caráter (voluntário). Ao produzir
textos avaliando o evento, os alunos citaram como ponto positivo a segurança (a
polícia escolar esteve presente), a arrumação das salas, a organização do evento, a
presença da família do Professor José, as apresentações, as camisas que algumas
equipes encomendaram, o fato de que uma equipe ajudava a outra, a leitura. Já como
ponto negativo, a fila na hora do lanche, a falta de mais microfones, a ausência de um
som melhor, a proibição da entrada de pessoas que não estudassem na escola, o
atraso no início das apresentações à noite e, principalmente, a ausência de um espaço
apropriado ao evento (um auditório).
De acordo com Michel Wieviorka, identidade e memória, tanto individuais
quanto coletivas, são inseparáveis. Nesse sentido, para o autor “a identidade só é
possível porque há memória.” 141 Segue essa mesma linha de pensamento, José
Antonio Martinuzzo ao destacar que a identidade deve ser compreendida como “o

139
Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/habilitar/ Acesso em 25 de abr. de 2011.
140
Disponível em: http://www.lexico.pt/auto/ Acesso em 25 de abr. de 2011.
141
WIEVIORKA, Michel. A Diferença. Tradução de Miguel Serras Pereira. FENDA EDIÇOES, Lisboa, 2002,
p. 200.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 667
autoconhecimento e a diferenciação em relação ao outro”. 142 Sendo assim, também
corrobora a ideia de que a memória é o único elemento responsável pela construção
da identidade ao afirmar que “a memória é o que nos dá elementos para nos
conhecermos e demarcarmos nossas peculiaridades no mundo, individual e
coletivamente. Identidade é memória em ato.” 143
Nesse sentido, a comunidade escolar Portela vem executando o Vozes com
dinamicidade, criatividade e atraindo cada vez mais os alunos para adentrar de
diversas maneiras no universo fascinante da leitura.

Considerações finais

Dessa maneira, a memória, a identidade e a leitura uniram-se para dar suporte


à terceira versão de um projeto executado em uma Instituição de Ensino. Em 2011,
homenageou-se um integrante da comunidade escolar que participara das versões
anteriores do projeto e falecera no início do ano citado. Neste mesmo ano, a
comunidade escolar do Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela realizou pesquisas
calcadas na biografia e na poesia do Professor José dos Santos, para homenageá-lo, na
terceira versão do “Vozes literárias ecoam no Portela: leitura, escrita, arte e tecnologia
a serviço da educação”144.
Em 2013, o projeto teve continuidade145. Textos de Vinícius de Moraes e de Luiz
Gonzaga foram estudados por todas as equipes. O formato adotado em 2011, abertura
à noite e continuação das atividades durante o dia, foi mantido. A culminância ocorreu
nos dias 16 e 17 de janeiro de 2014.146 Além disso, a culminância da quinta versão já
tem data marcada: 11 e 12 de dezembro deste ano. Das cinco professoras que
participaram da primeira reunião apenas duas continuam na escola: Lígia e Vanusia. E,
quando as duas não mais estiverem lá, espera-se que o projeto tenha continuidade.
Pois todos que no Petrônio Portela têm trabalhado, desde 2009, têm participado do
projeto cuja autoria passa a ser desta Instituição.
Nesse trabalho, utilizamos a noção de memória em permanente construção e
interação social a partir de um dos maiores estudiosos nessa área, o sociólogo francês
Maurice Halbwachs que aponta como caráter central da memória é que ela é social.
Assim, a memória é compreendida como um fenômeno coletivo e social, construído na
coletividade e submetida a mudanças constantes. Sua função conforme Halbwachs é
criar identidade para o grupo, reforçando a coesão social.147

142
MARTINUZZO, José Antonio. Mídia e Memória – Estudantes de Jornalismos da Universidade Federal
do Espírito Santo escrevem a historia da Comunicação Capixaba. UFES.
143
Idem.
144
Atualmente a professora Vanusia está cursando mestrado (Profletras/UFS – São Cristóvão) e hoje
sabe a importância de se publicar uma atividade como essa. Por isso a divulgação ocorre neste
momento.
145
Não houve execução do projeto em 2012. Por motivos pessoais, a coordenadora geral do “Vozes”
não pôde liderar as atividades. As pessoas participariam do projeto, mas não houve quem fizesse as
articulações.
146
Disponível em: http://www.seed.se.gov.br/noticia.asp?cdnoticia=8063. Acesso em 28 de mar. de
2014.
147
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Edições Vértice, 1990.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 668
Nesse sentido, podemos compreender que o Vozes é muito relevante também
no processo de construção da identidade da comunidade escolar Portela através da
criação de referências próprias em busca de um futuro melhor para a Educação
Pública, como destacara o professor José ao vislumbrar a importância do projeto na
sua primeira versão. Esse projeto pode ser considerado como um dos lugares de
memória do Portela importante para reforçar os sentimentos de pertencimento que
são fundamentais na construção da identidade.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: introdução à pesquisa
qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembrança de velhos, SP: Cia das Letras, 1994.
Disponível em: http://portela02.blogspot.com.br Acesso em 28 de mar. de 2014. Blog
do projeto “Vozes Literárias”.
Disponível em: http://frases.globo.com/clarice-lispector/5105 Acesso em 28 de mar.
de 2014.
Disponível em: http://www.sintese.org.br/j25/index.php/educacao/rede-
estadual/3341-morre-professor-jose-dos-santos Acesso em 12 de mar. de 2014.
Disponível em: http://www.lexico.pt/auto/ Acesso em 25 de abr. de 2011.
Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/habilitar/ Acesso em 25 de abr.
de 2011.
Divulgação da quarta versão do Projeto Vozes. Disponível em:
<http://www.seed.se.gov.br/noticia.asp?cdnoticia=8063 > Acesso em 28 de mar. de
2014.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1994.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Edições Vértice, 1990.
MARTINUZZO, José Antonio. Mídia e Memória – Estudantes de Jornalismos da
Universidade Federal do Espírito Santo escrevem a história da Comunicação
Capixaba. UFES.
POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de
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____. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 5, nº 10,
1992.
PROJETO VOZES LITERÁRIAS ECOAM NO PORTELA: leitura, escrita, arte e tecnologia a
serviço da educação, 2009.
SANTOS, José dos. Utopia peregrina. Aracaju, Sintese, 2008.
WIEVIORKA, Michel. A Diferença. Tradução de Miguel Serras Pereira. FENDA EDIÇOES,
Lisboa, 2002.
Fontes orais:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 669


Lucinalva Alves. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011.
Caroline Silva Alves. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011.
Adailton Almeida de Novais. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de
2011.
Bruno de Silva Lima. Entrevista realizada em Aracaju em 05 de dezembro de 2011

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 670


Diários de leitura na sala de aula: narrativas de formação

Zélia Malheiro Marques


UNEB–Campus VI
zeliacte@yahoo.com.br
Ginaldo Cardoso de Araújo
UNEB–Campus VI
araujoginaldo@ig.com.br

Este trabalho está vinculado à experiência formativa de alunos da graduação e de ensino médio, na
cidade de Caetité-BA, especificamente, no Departamento de Ciências Humanas – Campus VI – e no
Instituto de Educação Anísio Teixeira – IEAT. A partir do contato mais efetivo com o processo teórico e
metodológico de estudiosos da Memória e da (Auto) Biografia, passamos a utilizar os diários como
instrumentos de registro das leituras em sala de aula. Essas narrativas de formação têm sido elaboradas
por alunos que, além de produzirem o texto, também, fazem sua apresentação, procurando usar uma
modalidade textual bem diversificada, combinando o verbal com o não verbal e intercalando com outras
leituras que falam não somente do cotidiano escolar, mas também das experiências de si. Com essa
possibilidade, leituras que são apresentadas expressam situações de sala de aula e outras relacionadas
às experiências pessoais, fazendo com que formadores e formandos se conheçam melhor pela troca de
leituras, dando suporte à conquista de maior pertencimento e das relações solidárias. Para o aporte
teórico, estudos como os de Nóvoa (1992), Josso (2004), Passeggi (2008), Chartier (2001), Souza e
Cordeiro (2007), Abreu (2007), dentre outros, estão proporcionando ideias de como entrelaçar ensino e
pesquisa ao pensar práticas de formação que têm favorecido maior sentido social e pessoal a alunos que
estão se preparando para serem formadores e os que estão em processo formativo. Essas narrativas
singulares estão dando visibilidade à diversidade cultural de uma região com dificuldades com a leitura a
partir dos impressos.
Palavras-chave: Diários de leitura; Experiência Formativa; Pertencimento.

Introdução

A escrita memorialística pode assumir outras denominações, como


romances pessoais, diários intimistas, crônicas memoriais e romances
autobiográficos, embora todas elas sejam sobreposições da trilogia clássica
ou mais conhecida: diário - memória – autobiografia. O que diferencia
basicamente essas formas literárias de outras são as marcas da escritura do
eu e os modos de inscrição de si mesmo [...] (LACERDA, 2003, p. 38).

Como sabemos, modos de manusear a leitura e a escrita memorialística vêm


nos favorecendo, nos diversos tempos e lugares, uma especial maneira de conduzir a
vida pela simples e complexa magia de favorecer textos aos que deles precisam. Como
precisar os que, de fato, os merecem?
Na busca pela resposta, importante mediar leituras e encontrar leitores, em
ambientes de sala de aula, ou fora dela. Lugares que vêm para nós, como uma
necessidade de cumprimento de tarefa pelo exercício docente em cumprimento a uma
proposta curricular. Ao vivenciá-los, eis que aparecem as possibilidades de formação.
Nesse propósito, um mergulho pelas experiências formativas, coloca-nos diante de
situações em que leitores aceitam realizar atividades demonstrando significativa
familiarização com as práticas memorialísticas.
Denominamos esse exercício como uma boa resposta que nos chega e,
munidos de diversificados textos, estamos tentando mediar leituras, incentivando

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 671


práticas formativas pelo contato mais efetivo com o processo teórico e metodológico
de estudiosos da Memória e da (Auto) Biografia. Ao entrelaçarmos narrativas pessoais
e sociais caracterizadoras das leituras culturais, as teorias eleitas como aporte da
pesquisa se entrelaçam e o resultado aparece em forma de divulgação das histórias e
memórias do lugar, as experiências das pessoas, suas marcas que vão expressar ações
de formação e de leitura da região.
Ao relatar experiências vivenciadas num processo de formação, estamos
percebendo que o leitor vai acumulando experiências e conhecimentos que foram
adquiridas em processo de formação e, assim, poderá relembrar e relatar sua própria
história. Com essa ideia, podemos afirmar que a narrativa pessoal se torna um
fomento no qual o próprio autor da história investiga e forma seu leque de
conhecimentos.
A vida constitui experiência marcada pelas muitas narrativas, como destaca
Sousa (2004), as que ouvimos, as que falamos, favorecendo possibilidade de pesquisa
para identificação de conhecimentos através da história de vida ou pelo menos parte
dela:

[...] enquanto atividade formadora, a narrativa de si e das experiências


vividas ao longo da vida caracterizam-se como processo de formação e de
conhecimento, porque se ancora nos recursos experienciais engendrados
nas marcas acumuladas das experiências construídas e de mudanças
identitárias vividas pelos sujeitos em processo de formação e
desenvolvimento (SOUZA, 2004, p. 136).

Com essa constatação, enfatizamos o valor de requisitar as narrativas


autobiográficas como processo de formação de si, da auto formação profissional, de
construção e manutenção de histórias pessoais e sociais. Sendo assim, por meio das
narrativas de leitura, dos diários escritos no processo de prática pedagógica estamos
promovendo o desenvolvimento da constituição leitora de alunos em formação.
Para isso, utilizamos, dentre outros, teóricos como Nóvoa (1992), Josso (2004),
Moraes (2000), Chartier (2001), Souza e Cordeiro (2007), Abreu (2007) e, assim,
incentivamos a produção de diários como instrumento de registro das leituras em sala
de aula, as narrativas de formação leitora, as quais têm sido elaboradas pelos alunos
que, além de produzirem o texto, também, fazem apresentação desses textos,
procurando revelar o prazer em criar, inventar e apresentar histórias que, muitas
vezes, vêm surpreendendo quem as acompanha e quem as produz.
Das variadas formas de ler, fomos identificando o material autobiográfico
presente nas narrativas memorialísticas dos alunos em formação e observando em
outra instância o desprezo pela leitura, quando se referia à imposição posta no
período escolar, como acena Cordeiro (2006), em relação à formação dos leitores que
se dá desde a infância, passando pela adolescência indo ao ingresso na vida
acadêmica, ressaltando que o fato dos estudantes não gostarem de ler têm relação,
em parte, com as práticas de leituras impostas pela escola em que o caráter avaliativo
é preponderante.
Assim, alguns estudantes, apesar de não deixarem explícito, nos textos
narrativos essa questão, esclareceram que não gostam e não têm vontade de ler o que
é recomendado pela escola. Com o auxílio de estudos com as histórias de vida, fomos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 672


inserindo as leituras memorialísticas e já percebendo significados e algumas revelações
importantes.
Nessa linha de discussão, Mindlin (2007), reforça o pensamento de amor ao
livro e à leitura, valendo-se de suas menções sobre os livros lidos e o fato da sua
biblioteca pessoal ser composta por exemplares já lidos e relidos. Nos relatos
recolhidos, não há reminiscências ou declarações de estudantes que mantêm uma
biblioteca, mas cabe ressaltar que este fato não é empecilho para realizar o trabalho,
pois, como já foi explicitado, a leitura realizada por estes estudantes reside na
curiosidade e no apreço pelo ato de ler que têm significados para o leitor.
Nesta perspectiva, notamos as narrativas como um material efetivo para
compreendermos o processo formativo de conhecimento, de aprendizagem, de leitura
não somente de livros. Assim, lembramos Josso (1988) que remete a constituição da
narrativa que pressupõe a narração de si mesmo, sob o ângulo da sua formação, por
meio de recordação, constituindo referências para a vida pela possibilidade de
construção de caminhos, da moral individual, das leituras de si e de outros mundos.
Outras contribuições puderam ser notadas na construção da narrativa no que diz
respeito ao leitor ao direcionar-se a uma reflexão pessoal e social, o que Halbaswahs
(1990), vem nos revelar que é preciso haver pontos de contato entre as pessoas que
estão em processo de reconstrução memorialística.
De uma história que busca outras, estamos vendo que uma simples leitura
narrativa tem instigado leitores em formação e revelando suas marcas, que são
consideradas relevantes. A reação do grupo leitor nos diz que a ação livre para projetar
e construir está se associando à escolha autônoma pela integração verbal com a não
verbal, combinando o que se faz possível conforme diversidade de leituras e de
leitores:
[...] a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir
textos que são inscritos na mesma memória eletrônica: todos esses traços
indicam que a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas
do suporte material do escrito como nas maneiras de ler (CHARTIER, 1998,
p. 13).

Aproximar o leitor dessas possibilidades conquistadas, leituras serão feitas e


socializadas o que poderá favorecer melhor relação entre formadores e formandos
pela promoção do conhecimento de si e pela troca de leituras, dando suporte à
conquista de maior pertencimento e das relações solidárias pela teia discursiva em que
novas propostas leitoras estão conquistando mais pessoas em diversos lugares,
inclusive, podemos dizer, nesse Alto Sertão da Bahia148.
Nesse processo formativo, histórias como o conhecimento regional estão
sendo produzidas pelos colaboradores da pesquisa, quando se desdobram motivados
em busca de conhecer o lugar em que vivem, suas memórias e histórias. Importante,
pois, pensarmos a descrição que os leitores fazem da região, indicando o município de
Caetité, como lugar onde vivem e o vínculo pela busca da escolarização, como assim
expressa o leitor:

148
Cf. Ref., o alto sertão baiano configura-se como “[...] região semi-árida, demarcada pelos fenômenos
climáticos; região do sertão, caracterizada pela morfologia da vegetação; região do alto sertão da Bahia
referenciada na posição relativa ao curso do rio São Francisco na Bahia e ao relevo baiano, que ali
projeta as maiores altitudes” (NEVES,1998, p. 22).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 673
Caetité é um município brasileiro da Bahia, sua história é diversificada e
interessante; inicialmente foi um território habitado por indígenas, existindo
muito mato, depois se torna vila e mais tarde foi elevada a cidade. [...]
sendo conhecida por sua educação e foco civilizador [...].

As leituras trazem o cenário da pesquisa, região de fortes histórias em que as


dificuldades estão como marcas do modo de viver que levaram o povo sertanejo,
também, a resistir: “No decurso do século XIX, verifica-se uma vida econômica
dinâmica na região. Alternativas econômicas regionais lograram, em muitas ocasiões,
contornar problemas advindos com a secas [...]” (PIRES, 2009, p. 286).
Como se verifica, a região foi assegurando conquistas e, desde a sua origem, a
terra que teve os índios como seus primeiros habitantes, vem insistindo em construir
como a sua marca de lugar referência em educação regional. Essas experiências, como
estamos constatando, revelam certa ideia de pertencimento, mas também o que tem
sido muito comum no lugar, sua elevação à ideia de ufanismo.
Isso nos chega, fazendo-nos motivados ao encontro do cenário da pesquisa em
que se visualizam situações paradoxais, como a leitura da oralidade e de impressos, o
popular e a elite, a prática docente e discente em que se espera desempenho padrão
ou que se espera muito mais:

O que os educadores não sabem é que muitos dos alunos continuam


querendo uma ultrapassagem cultural de seu mundo e não apenas uma
pequena melhoria econômica. Fui um desses pardais que sonhavam com
alturas e não com migalhas caídas no chão. E o lugar onde pude exercer este
projeto foi a biblioteca pública. Nela, não havia conteúdos predefinidos,
nem o desejo de me moldar (SANCHES NETO, 2004, p. 17).

Entre o público que é o lugar de formação, leitores buscam ler pela utilidade,
mas também para outros fins, fazendo com que o cotidiano pedagógico seja
experiência de significado como aborda a aluna de graduação, quando vivenciava os
primeiros contatos com a sala de aula e se questionou sobre uma boa aula:
[...] E qual segredo de uma boa aula? NÂO SEI! E talvez aí esconda a grande
(des) GRAÇA, abrigue a grande magia, porque não sabemos, ou pelo menos
a maioria não saberia dizer. Podemos acatar algumas dicas das mais
experientes, podemos estudar muito tal assunto... Mas no fundo não
sabemos e nem temos a fórmula para uma boa aula [...] E como dizem os
mais sábios, o tempo e a experiência vão ajudar muito aqueles que estão
passando pelo estágio. Nessa perspectiva, podemos nos esforçar para que
dê tudo certo, mesmo sabendo que o esforço não é garantia do sucesso,
entretanto, sabe-se que pode ser um bom caminho para se tornar um bom
professor.

A ideia de não ter resposta surge para a estagiária como fator positivo e
instigador para prosseguir em busca do segredo de uma boa aula e de ser uma
professora aceita pelos alunos. No exercício profissional, mesmo diante de rápida
experiência vivenciada através do estágio supervisionado, visualiza o caminho de
pensar respostas para seu questionamento. Pensamos ser interessante essa busca de
saídas para vencer desafios identificados. Pelo depoimento de outra estagiária,
identificamos o receio diante das situações desafiadoras:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 674


[...] Por motivos da vida tive que optar pelo estágio noturno, a dificuldade
para conseguir um horário foi imensa, e quando consigo as pessoas se
dirigem a minha pessoa ‘você vai estagiar lá naquela escola? Lá só tem aluno
perigoso!’ Confesso que essas não foram boas palavras para quem estava
praticamente com o coração na mão. A situação estava tensa já não dormia
direito, não comia só pensando no terror do estágio [...].

No acompanhamento do trabalho pedagógico, vimos que os desafios


encontrados serviram para impedir certa acomodação por parte de quem estava em
processo de formativo. O que parecia motivo para desistir passou a ser encarado com
proposta pedagógica eficiente, acreditando ser possível a realização das aulas:

Então, busquei dentro de mim e tentei recomeçar sem pensar no que ouvi e
na possibilidade de deparar com os ‘alunos perigosos [...]. A regência: de
pesadelo a um dos momentos mais significativos da minha vida, cheio de
tropeços e acertos, aprendi que a vida não é repleta de assertivas, mas de
desacertos que nos levam aos acertos [...].

A vivência docente favoreceu compreensão do que é o processo formativo,


uma integração de situações diversas, que, ao serem assumidas de forma educativa,
propicia transformações que trazem importantes significados para quem se encontra
nesse processo: “Agora vou contar/ meu ambiente escolar/ Dá para relacionar/ Pois foi
aqui que comecei a estagiar/ se voltar fico grata/pois aqui de história é farta/ dá até
para se emocionar [...]”.
Assim, ora com alunos da graduação, ora com os de ensino médio, estamos em
contato com as narrativas de formação, tanto as que evidenciam a experiência
docente, quanto as que falam das leituras de si e do social e incentivando as histórias
de vida para pensar possibilidades formativas: “As histórias de vida em formação, por
sua vez, têm como pano de fundo o projeto de emancipação do sujeito, preocupado
com a reflexão sobre a experiência, como uma prática libertadora [...]” (PASSEGGI,
2010 p.31). Importante, pois, mediarmos essas narrativas formativas como forma de
libertar-se de possíveis amarras que impedem a vivência de uma prática autônoma.
Para isso, nada melhor que conhecer histórias de vida, histórias de formação:

Era uma vez... Uma bela menina, [...] vivia numa casa simples e confortável.
Certo dia sua vida começou a mudar, pois um príncipe ela conheceu, mas
um príncipe não era como os outros que mudaria sua vida do dia para noite.
Esse príncipe ela teve que ir conquistando dia, após dia, e até hoje, ela o
conquista, pois esse príncipe que se chama aprendizagem ainda a dá muito
trabalho, pois cada dia ela se depara com ele. No entanto, aos seus 16 anos,
ela descobriu um de seus dons, que é a importância do ato de educar [...] O
estágio, por meio de suas etapas, desde a observação, passando pela
coparticipação até a sua culminância na regência, eu pude verificar quão
complexo e cheio de detalhes é sua consumação pois são muitos papeis,
planejamentos, planos de ação, tudo isso se torna um tanto complicado,
porém de grande valia. Portanto, apesar das falhas ocorridas, o estágio se
concluiu da melhor maneira possível, uma vez que, diante dos resultados
nas atividades finais realizadas pelos alunos, quanta saudade que ficou.
Acreditamos que foram recíprocas, pois todos demonstraram um carinho
muito grande [...] E com esse príncipe que esta menina conheceu, cada dia d

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 675


sua caminhada ela vai conquistando várias coisas, crescimento pessoal,
intelectual e profissional. Já tendo uma creche como campo de trabalho, foi
aprovada num concurso, aguarda ser convocada. E com isso ajuda seus
familiares a melhorarem de vida também [...].

Acompanhamos a associação do conto de fada de outrora com o ato de


encontrar o processo formativo e ficamos pensando essa ideia da colaboradora da
pesquisa. Dentre muitas situações, constatamos ser a narrativa uma possibilidade de
expressão singular, o que gerou curiosidades das mais diversas pelo caráter íntimo,
subjetivo e memorialístico desta ação nas primeiras experiências docentes,
constituindo uma boa forma de inserção no processo de formação.
Podemos dizer que a escrita dos diários configurou para os leitores uma
maneira de libertar-se, constituindo mola propulsora para o conhecimento humano. O
diário íntimo tornou-se instigante para desvendar segredos, para aproximar as
pessoas, para compreensão da escolha profissional. Em diálogo com Hess (2006), em
seu texto “Momento do diário e diário dos momentos”, as definições sobre diários, a
estrutura de cada um deles, os momentos propícios para escrever, as formas
particulares desta escritura foram sendo sistematizadas e esclarecedoras através de
questões: o que é, como e o porquê de um diário.
Fomos compreendendo o processo de construção do diário e o que se tornou
possível realizar. Com esquema desta escrita cotidiana, portanto, fez-se pertinente sua
construção. Pelos encontros de leitura com os estudantes do IEAT, reafirmamos essa
ideia de valorização das experiências leitoras, quando se deu a elaboração de diários
de aula para exprimir as impressões deixadas na vivência das aulas. Além disso, os
diários de aula também se apresentavam como escape para pôr em evidência os
talentos relacionados à escrita (poemas, acrósticos), dentre outras habilidades
artísticas e culturais.
Essas questões são instigadoras de problematizações das próprias histórias de
vida, como vimos durante a produção e apresentação dos diários de formação.
Percebemos os questionamentos dos leitores diante da necessidade de escrever sobre
si, sobre as inferências vividas na escola, em casa, na rua, com amigos e parentes,
enfim, quando lhes era solicitado rememorar fatos vitais para a compreensão do
processo formativo.
Envolvidos nos encontros de leitura, escrevendo, paulatinamente, suas
recordações, atitudes vivenciadas na infância e na adolescência, as brincadeiras, as
leituras realizadas, os momentos em família, as dificuldades enfrentadas, esses leitores
escreveram sua história. Ajudados por questões mediadoras, foram refletindo e
relembrando fatos guardados na memória, os quais, geralmente, são relegados em
função de conteúdos da escola, e assim, visualizamos os processos formativos,
especialmente, aquele voltado para a constituição leitora desses estudantes.
Assim, fomos identificando o leitor, falando do prazer das leituras dos
impressos, suas preferências, suas lembranças das primeiras vivências com o mundo
letrado, como aborda aluna do ensino médio: “[...] Não me lembro muito bem do
primeiro livro que li, mas acho que foi “Cinderela”, aquelas coisas de príncipe,
princesa, bruxas, feiticeiras, madrastas, etc. [...]”.
No processo de escrita do diário, os leitores abordaram seu vínculo atual com a
leitura já falando de suas preferências como os livros que têm enigmas, os românticos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 676
e as histórias em quadrinhos. Essas narrativas foram evidenciando o quanto se faz
necessário mediar leitura, desde a época infantil. Os que tiveram essa experiência
fizeram leituras críticas de si e do lugar social onde vivem.
O contexto local aparece como uma realidade em que empreendimentos
econômicos vêm sendo implantados com a ideia de progresso para a região. Dessa
relação, no entanto, fortes impactos, também, evidenciaram as modificações do
patrimônio histórico, cultural, ambiental que já compromete, por exemplo, a
diversidade cultural da região. Os diários construídos, portanto, expressam essas
situações e os novos costumes que passam a ser incorporados já sinalizam que muitas
pessoas estão desvalorizando as leituras oriundas da oralidade local, cujas marcas
sobressaem em relação às impressas.
Suas preocupações, por exemplo, contemplam situações de desafios
regionais, como a necessidade de militância pela preservação patrimonial de espaços
históricos, culturais e ambientais da região:

[...] No centro da cidade existem patrimônios históricos ainda preservados,


mas alguns já estão sendo transformados e destruídos. Um problema que
atualmente está sendo muito questionado em Caetité é a respeito dos
impactos causados pelas atividades de mineração [...].

Ao identificarmos que, somente uma parte dos alunos, vem demonstrar essas
preocupações, muitas vezes os que estão envolvidos com projetos que visam
formação, nossa defesa pela ampliação de projetos de formação se intensifica, pela
ampliação e integração cada vez maior das práticas culturais que favoreçam leitores,
leituras, suas experiências de formação, a exemplo dessas que estamos realizando com
alunos da graduação e de ensino médio, na cidade de Caetité-BA, especificamente, no
Departamento de Ciências Humanas – Campus VI – e no Instituto de Educação Anísio
Teixeira – IEAT149, município de Caetité, cuja escola, desde sua criação, baseada nos
ideais de Anísio Teixeira, teve preocupação em acolher gente do povo que apreciava
trabalhar com as muitas histórias lidas, contadas e produzidas, ora em prosa, ora em
versos, como expressa este acróstico colhido no momento de formação:

Facilidade de expressar os sentimentos/Ajuda da professora/Zombaria por


parte de alguns/Experiências adquiridas na vida/Novidades apresentadas
com disposição/Dúvidas frequentes/Opiniões expostas a respeito de si
mesmo/Histórias engraçadas e interessantes/Inquietações dos
alunos/Sensibilidade ao falar de si mesmo/Troca de idéias/Objetivos e
sonhos realizados/Reflexões, ações e emoções/Inspirações e influências
musicais/Agradável: palavra chave.

149
De acordo com Santos (1976), considera-se a história de formação docente em Caetité/BA a partir de
1896, época da instalação da Primeira Escola Normal, fechada por razões políticas. A Segunda Escola
Normal foi criada, em 1926, funcionando até 1955 e, com a construção de um espaçoso prédio,
incluindo escola anexa e o auditório, em 1962, surge o Instituto de Educação Anísio Teixeira (IEAT) com
o propósito de dar continuidade à formação de professores, segundo a filosofia do educador Anísio
Spínola Teixeira.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 677


A construção do diário se fez num clima de alvoroço, que favoreceu o
envolvimento de memória e da imaginação leitora. O resultado são as narrativas
reflexivas de si e do social, catalogadas em diários confeccionados, conforme a
criatividade dos leitores. Estas narrativas foram apresentadas com criatividade,
provocando, nos diversos leitores, certa expectativa: “[...] O diário, por excelência, é
um ato metodológico centrado no registro reflexivo da e sobre a prática, tendo como
foco a consciência pedagógica, despertando curiosidade, percepções, descobertas,
mudanças [...]” (SOUZA e CORDEIRO, 2007, p. 48).
Pelas narrativas de leitura, os diários produzidos evidenciaram conhecimento
de si, leituras pessoais e sociais, incentivando o leitor a compreender a relação
significativa entre passado, presente e futuro e a relevância das lembranças
memorialísticas em que memória e leitura têm relação direta com as muitas histórias
dos leitores, como acena Chartier (2001), nessa circunstância, a constituição leitora dá-
se pelo entrelaçamento entre leitura, cultura e sociedade e pode revelar que as
práticas de leitura dão significados diversos.
Por envolver essa diversidade leitora, também, há que se considerar, não
somente o autor do texto, mas também o leitor e as condições de realização da leitura.
É a leitura que se constitui como prática cultural, inventiva e criativa, não
necessariamente a partir dos impressos, mas também pela ausência deles. Como falar
em leitura pela ausência de impressos? Considera-se nessa circunstância, os muitos
lugares desse imenso país que constituem seus leitores pelas leituras culturais em que
narrativas da oralidade, por exemplo, são importantes para a expansão da leitura,
mediando leitores e facilitando novas formas de ler, inclusive incorporando
instrumentos de leitura como os impressos que são mais acessíveis ao meio popular:

[...] há uma seleção implícita de um conjunto de obras que tornam “bom” o


ato de ler e que justificam outras tantas afirmações, também bastante
comuns, como “os jovens não têm o hábito da leitura”. Na verdade, lê-se
muito livro de auto-ajuda, de vulgarização científica, história em quadrinho,
lê-se muito livro sobre hobby, sobre astros de música e do cinema, muitas
recolhas de piadas [...] (ABREU, 2007, p. 14).

Estamos falando de formação leitora, não necessariamente, de leitores do


cânone universal. Numa visão mais ampliada de constituição leitora, pelo
conhecimento da singularidade do leitor, suas experiências, suas histórias contadas de
pai para filho, as brincadeiras, as lendas e as parlendas, as festas locais, enfim, as
leituras da cultura local, estão sendo registradas para conhecer, também, formas
singulares de propagação da leitura.
Nesse campo leitor bem mais alargado, experiências de leitura, muitas
adquiridas fora do contato com os impressos, vêm expressar práticas leitoras,
legitimadas ou não, para contribuir pela expansão da constituição leitora, tanto em
espaços citadinos, quanto rurais. Desse intuito, tem-se maior visibilidade às narrativas
de leitura das diversas regiões caracterizadoras do contexto diversificado dos leitores e
das leituras pessoais e sociais.
Pela abordagem autobiográfica, especificamente, as narrativas apresentadas
em forma de diários apresentados dentro e fora de sala de aula há o registro das
impressões que se tem dos lugares e das relações sociais: “[...] leitura herdada

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 678


engendra novos padrões de comportamento, novas práticas culturais [...]” (MELO,
2007, p. 161).
E assim, os leitores vão apresentando o ato de ler, às vezes, sendo tarefa
prazerosa; às vezes, com marcas de dificuldades, falando dos poucos impressos e do ir
e vir entre os tempos vividos em ambiente rurais e os urbanos: “[...] morava uma
fazenda em que pela manhã se ouvia o cantar do galo, o mugido da vaca, e, ainda uma
voz que vinha de longe, das crianças que começam a gritar no terreiro [...]” “[...] Hoje
moro numa cidade grande onde não se brinca mais, porque já virou adolescente, já
tomando conta da casa [...].
Trazem as lembranças de um tempo infanto-juvenil que parece não existir
mais: “Onde está minha infância eu não sei, mas deve estar em algum lugar muito
especial, pois ela me proporcionou alegrias que jamais terei novamente [...]”. “[...]
Costumava brincar com meus amigos de: cantigas de roda, boneca, esconde-esconde e
várias outras. Meu primeiro livro que li foi “Chapeuzinho Vermelho” pelo fato da
história trazê-la como heroína. Eu me identificava muito com essa personagem [...]”.
Talvez não exista de forma clara como uma ação cotidiana que se expressa
nos rituais da vida, mas as lembranças trazem possibilidades de leituras que o novo
leitor poderá escolher lê-las ou não. Nesse tempo atual, há muitos textos e o leitor
poderá mesclar essa diversidade pela condição da escuta de si, das histórias contadas,
ouvidas, lidas, guardadas: “Hoje gosto de ler mais que antes e prefiro romances e
contos. Essas histórias me ajudaram a viajar por mundos e lugares onde me sinto livre
de todos os problemas do meu mundo [...]”. “[...] Nos dias de hoje, eu gosto de ler
livros que no final de cada história tem uma moral, um exemplo de vida, gosto
também de ler gibis e revistas [...]”.
De uma leitura que puxa outras, realizamos práticas culturais em espaços
como a Feira de Educação do IEAT, evento anual, que conta com apoio da direção, dos
professores e dos alunos envolvidos com o projeto. Nesse espaço mais amplo e com
temática específica, a situação exigiu novo planejamento e ajustes para adequação de
propostas com as diversas áreas.
Entrelaçamos atividades que integraram o ensino, a pesquisa e a extensão.
Realizamos ações além da sala de aula, considerando o propósito já em execução do
IEAT ser lugar de registro da memória e da história da antiga Escola Normal de Caetité.
Pensando a preservação do acervo, ações de divulgação dos bens duráveis e não
duráveis que fazem parte da Escola Normal de Caetité foram construídas com essa
ideia de pensar a formação docente, em tempos anteriores e atuais.
Pensamos uma exposição com acervo documental do IEAT e montamos a sala
de leitura “Saúde, por que te quero”. Nesse lugar, diversas práticas de leitura
envolvendo música, dramatização, coreografias, dentre outras favoreceram a
discussão das temáticas “drogas e doenças sexualmente transmissíveis”. Procuramos
pensar os modos de agir de jovens estudantes na região em épocas anteriores e no
momento atual. Quais problemas? Quais diversões? Havia drogas? Quais? Como
agiam os professores e alunos? E hoje?
Pensamos o trabalho em caráter interdisciplinar e, pelas ações em
desenvolvimento, percebemos significados de formação para os docentes, discentes e
a comunidade em geral. Por esses colaboradores do projeto, nossa motivação veio
intensificar as ações de preservação da memória histórica educacional e social,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 679


considerando que os documentos históricos produzidos nessas escolas permitem
múltiplas abordagens e vêm agregando diversas pessoas, como as que estão ligadas à
docência atual e outras que vão se sentindo envolvidas com essas discussões.
Com os esclarecimentos dos teóricos especialistas na área de formação e de
leitura, a autobiografia e a leitura favoreceram caminhos para adentrarmos em
mundos singulares e plurais dos envolvidos com as narrativas de formação. Vimos
possibilidades de constituição leitora para discussão de valores e para a construção de
leitores, tanto para o docente, quanto para o discente, ao pensarmos o alicerce das
histórias de vida possíveis de serem reconstruídos pelos diários pessoais e profissionais
em diálogo com as referências literárias ou teóricas.
Cabe ressaltar, ainda, que, quando estas leituras passaram a ser rememoradas
na construção de narrativas autobiográficas, elas foram se tornando mais significativas
para o leitor, fazendo-o apreciar a prática de ler e estimular as pessoas em sua volta e,
entre experiências formativas, os leitores, além de escrever diários que abordaram
suas leituras pessoais e sociais, fizeram troca de experiências, favorecendo diálogo em
busca de uma prática pedagógica imbricada.
Dessa parceria, leitura e leitores e suas atitudes de pertencimento e de
compromisso com a memória já sinalizaram uma diversificada história da educação
regional que está sendo ressignificada para produção de novos trabalhos. É importante
destacar também como as leituras das narrativas na sala de aula despertam emoções,
interações, autoconhecimento, provocando uma tomada de consciência do processo
de aprendizagem e seus significados para a vida. Pode-se dizer, enfim, que os diários
de formação constituem-se como recurso didático no processo pedagógico.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 681


Eixo temático II:
MEMÓRIA E (AUTO)BIOGRAFIA:
QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 682


A vocação memorialística de Isaías Alves: variantes (auto)biográficas

Carla de Quadros
UNEB/PUCRS
quadros.carla@yahoo.com.br

A escrita (auto)biográfica é comumente marca significativa de questionamentos, ou seja, ao lermos


propostas com tal temática, caminhamos de pronto para dois lugares absolutamente comuns: os
investimentos sobre a verdade ou o percurso histórico que acompanha toda e qualquer pesquisa sobre
o gênero, e que se tornam, de fato, releituras históricas para um mesmo gênero.Nossa tentativa de
incursão não se pretende melhor. Apenas caminha para um diálogo já existente entre áreas
consideráveis: a Literatura, a História e o Jornalismo. Assim sendo, nosso percurso fica caracterizado
como uma travessia transdisciplinar, predisposta a discutir as fronteiras do texto de escrita
memorialística num autor baiano, o pedagogo Isaías Alves de Almeida. Inicialmente, lançamos o olhar
para uma proposta metodológica que, num primeiro momento, supera a discussão em torno do mero
autobiografismo e suas formas de representação. Ou seja: queremos pensar a escrita (auto)biográfica
na perspectiva também do leitor, pois não intentamos descobrir a verdade da vida do (auto)biografado,
nem do biógrafo, mas investigar, através de uma organização metodológica, as variadas formas de
interpretar e representar a (auto)biografia através de uma escrita narrativa que assume, muitas vezes,
características comuns à narrativa ficcional, o que se dá com as figuras do narrador, personagem, tempo
e linguagem. Para abordar tais questões elencamos para estabelecer diálogos os autores: Clara Crabbe
Rocha (1977), Luiz Costa Lima (1986), Philipe Lejeune (2008), Diana Klinger (2012) e Wayne Booth
(1980), entre outros.
Palavras-chave: Narrador; Memória; Biodiograma; Biografismo.

Primeira variante: Novas experiências narrativas

Pretendemos, com este artigo, investir num terreno sobre o qual se constrói a
escrita (auto)biográfica em três obras do autor pedagogo Isaías Alves: Vida e obra do
Barão de Macahubas (1942), Vocação pedagógica de Rui Barbosa (1959) e Matas do
Sertão de Baixo (1967), obras que se organizam a partir da voz do autor-narrador-
personagem principal, suscitando uma série de questões quanto ao gênero
(auto)biográfico e suas naturezas identitárias. Dessa maneira, a metodologia de
trabalho assentou-se em leituras das obras acima mencionadas, estabelecendo
possíveis ligações com teóricos que reconhecem o entrecruzamento existente entre os
discursos narrativos categorizados com rubricas específicas de História ou de
Literatura, confluindo, assim, para a análise detida e comparada num exercício plural
das narrativas aqui perfiladas.
O objetivo maior deste trabalho surgiu, portanto, de perguntas que nortearam
a pesquisa: até que ponto podemos separar e definir gêneros na escrita de Isaías
Alves? Como afirmar a inscrição da obra quanto ao se (auto)biografismo ou
memorialismo? Os pactos apresentados por Philippe Lejeune (2008) darão conta de
situar as obras em análise quanto ao seu formato? Adotaremos, como recurso, quando
estivermos tratando dessas obras, o termo assim grafado (auto)biográfico, já que
estabelecemos como proposta evidenciar que o escritor e pedagogo Isaías Alves
recorre à sua memória particular, mesmo quando se habilita a escrever ensaios
biográficos e memórias de expoentes da educação e da cultura brasileiras. Estaria a
escrita (auto)biográfica assim desprovida totalmente de conteúdo ficcional?

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 683


Face ao texto de Isaías Alves, percebemos o alto grau de literariedade presente
em sua (auto)biografia, além de tornar evidente um narrador absolutamente sagaz e
com disfarces independentes da pessoa pronominal que assume o discurso. Seria,
então, o narrador, um elemento-guia através do qual o escritor conseguiria inserir a
sua história de vida nos relatos a outros destinados, evidenciando uma prosa com
caracteres de verdade, transplantada a importantes elementos ficcionais? São
perguntas de difíceis respostas, posto que os limites entre o fato e a ficção, num texto
(auto)biográfico, tornam-se muito tênues.
Reconhecidamente, a escrita de si diversifica nomenclaturas que se formam ou
se renovam conforme seus diferentes estudiosos: biografia, hagiografia, psicobiografia,
autobiografia, memória, memorialismo, autorretrato, literatura confessional, escrita
autobiográfica, escrita memorialística, literatura de testemunho, escrita-testemunho,
autorrepresentação, autoficção, bioficção, autobioficção, otobiografia, doxografia e
fabulações de si são possíveis categorizações que avultam na tentativa de conceituar a
escrita que documenta o entorno do indivíduo, para nós a tônica da escrita de Isaías
Alves circunscreve-se no que chamamos de variantes, já que ele se vale das memórias
para biografar ao tempo que se biografa.
No início do século XXI, a narrativa de caráter intimista experimenta certo
crescimento entre os gêneros discursivos e surge como um grande sintoma midiático,
seja através das constantes produções (auto)biográficas, seja pelos realities shows,
febre em todo o mundo. Em outros termos, ela está presente nos mais diversos
suportes textuais: nos impressos, nas transposições midiáticas feitas pelo cinema, pela
televisão e pela internet e, por fim, nos espaços acadêmicos, que reorientaram sua
atenção para as narrativas do eu, parcialmente desprestigiadas no referido cenário,
sempre os últimos a reconhecerem as vozes periféricas - quando deveria ser o
contrário.
Tais narrativas se expandiram consideravelmente nos espaços de saber das
chamadas ciências sociais, com ênfase para a história, a antropologia, o jornalismo e a
teoria literária, produzindo reflexões acerca da presença e do uso de relatos sobre
ações e emoções dos sujeitos individuais. Se ainda há o que discutir e analisar quanto
aos usos sociais alargados e às características intrínsecas de histórias de vida dos
sujeitos, suas individualidades e representações, nas mais variadas formas de escrita
pessoal - e certamente há - mais se adensam e complexificam-se os conceitos,
principalmente no Brasil, num contexto em que emergem organizações, como, em
2013, a Procure saber, composta por expoentes da música popular brasileira que
discordam das interpretações do STF, o qual assegura a publicação de biografias não
autorizadas, a fim de garantir a liberdade artística. Se percebíamos um hiato do ponto
de vista organizacional, teórico e metodológico, quanto às variações da escrita de si,
somemos ao fato as novas discussões jurídicas que se avolumarão frente ao novo
ordenamento. É certo que, independente das celeumas que circundam esse tipo de
inscrição, esta adquiriu um lugar reconhecido entre os mais diferentes meios culturais
viabilizadores dos fenômenos estéticos. Muitos consideram que a linguagem em
primeira pessoa torna a narrativa mais leve e com encadeamento subjetivo, resultado
do poder que ela confere, pois a escrita de si nos aproxima da história de um sujeito,
sensibilizando-nos e orientando-nos como leitores, independentemente de nossa
formação acadêmica.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 684


É importante ressaltar que o fato de somente agora a escrita sobre si ostentar
uma notável evidência não significa pensar que se trate de uma novidade. Muito pelo
contrário, basta uma simples revisitação à história formal para percebermos, de
maneira intensa, a busca de inscrição de si e de outros, nos mais diferentes formatos,
durante toda a evolução histórica do indivíduo.
No intuito de contribuir para as reflexões acerca da (auto)biografia, interessa-
nos reinventariar um pouco a sua história, num diálogo conceitual com aqueles que
assim o fizeram em momentos outros, empenhados que estavam em estabelecer para
as histórias de vida um status particular entre gêneros familiares como a
(auto)biografia e a memória, tendo como elementos principais para nossos estudos a
“voz que narra, a mão que escreve” (TEZZA, 2008, p. 7) e o leitor que se acumplicia
através do pacto referencial, por se tratar de uma escrita que circula entre a
pressuposição da verdade formal e os elementos formadores da ficção, conforme nos
assegura Verbena Maria Rocha Cordeiro:

Nos estudos literários contemporâneos, as escritas biográficas e


autobiográficas são tomadas em seu movimento de narrar o outro ou de
narrar-se. Tais produções são tidas como narrativas ficcionais, por
compreenderem processos de seleção e combinação de elementos da
realidade de ordem psíquica, social ou histórica. Assim, ganham relevância
as histórias de vida dos sujeitos, expandindo-se as possibilidades de
compreensão dos seus processos criativos. As pesquisas sobre a produção
autobiográfica de escritores, dos mais aos menos consagrados, têm
fertilizado as contribuições teóricas que se produzem nesse campo,
sobretudo quando se abrem a novas indagações e interpretações de suas
diferentes expressões de subjetividades e alteridades (CORDEIRO, 2012, p.
27).

Há importantes afirmações teóricas, distintas da acima apresentada,


reconhecendo certa relativização, reconhecendo os traços formais que diferenciam a
narração factual, que pode ser verificada e comprovada documentalmente, em relação
àquela produzida pelo imaginário. No entanto, verifica-se um consenso de que, tanto a
narrativa de caráter histórico, quanto a ficcional, são produções em maior ou menor
grau de imaginário e, portanto, ambas estão suscetíveis aos processos de seleção de
fingimento. O que irá determinar o estatuto de ficção ou não é o pacto de leitura
estabelecido antecipadamente entre autor e leitor, tal como se observa na
interpretação de Leonor Arfuch:

Há relativo consenso em assinalar que ambas compartilham os mesmos


procedimentos de ficcionalização, mas se distinguem, seja pela natureza dos
fatos envolvidos- verdadeiramente acontecidos ou produtos da invenção,
seja pelo tratamento das fontes e do arquivo (ARFUCH, 2010, p. 117).

Seguindo essa intervenção de Arfuch (2010), a inscrição de si pode ser


compreendida como uma voz narrativa que pode se presentificar em diversos gêneros
literários. Esse caráter distintivo, entretanto, não deve ser considerado apenas para
gerar reagrupamentos teórico-metodológicos em torno do uso, ou não, da primeira
pessoa, como voz das ações narrativas. Uma vez que o debate em torno do sujeito
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 685
empírico e do sujeito enunciador é polêmico, e tentar equacioná-lo significará
reencaminhar para uma nova discussão a querela atributiva entre autor e narrador
que, por mais que pensemos ter sido extinta, sempre provocará o surgimento de novas
formas narrativas, principalmente naquelas com caráter biográfico ou autobiográfico,
quando a voz narrativa assume a primeira pessoa ou a alterna, configurando o que nos
assegura Arfuch:

Entretanto, se essa proposta aponta para a definição de novos valores


comunitários, também insiste na possibilidade de autocriação no mundo
privado, a partir desse reconhecimento maior da vida dos outros. Inverte-se,
assim, o percurso habitual; é a partir do nós que se amplia a potencialidade
do eu. A postura é interessante para o nosso tema, já que assinala um
amplo território de vigência do espaço biográfico, a possibilidade de pensá-
lo inclusive em termos filosófico-políticos (ARFUCH, 2010, p. 107).

Face à dificuldade em equacionar um repertório que dê conta do nosso objeto


de estudo, ou seja, uma produção que inicialmente se institua como ensaio biográfico,
mas que se estilhaça em constructos que se aproximem da escrita (auto)biográfica
surgem-nos os mais variados problemas que vão desde nossa escolha de nomenclatura
utilizada à determinação do gênero específico a que o autor está filiado. Decidimos,
portanto, por reconhecer, através de mapeamentos teóricos diversos,realizados que,
independente da forma apresentada - literatura de cunho intimista, literatura
confessional, literatura testemunhal ou produção intimista -, todas essas formas usam
como estratégia narrativa o eu da identidade e a memória, ratificando o que nos
assegura Philippe Lejeune (2008) de que a identidade não se configura
necessariamente em semelhança.
Ao apresentarmos tais termos, definindo-nos por um deles, estaremos
também reconhecendo que, em certas circunstâncias, eles se dicotomizam. Por isso,
em nossa proposta, pensamos ser a biografia inconscientemente adotada por Isaías
Alves como um gênero de fronteira, e levando em conta que tudo que é literário não
admite rubricas herméticas que o engesse ou o subordine a determinadas filiações
rígidas, seria mais adequado pensarmos a biografia como um gênero que assume
vozes narrativas plurais, que se desdobram em uma tentativa de inscrever-se, ainda
que a proposta inicial tenha sido a de narrar o outro. Conforme expressa Diana Klinger,
“a partir dos estudos culturais e dos gêneros, a crítica cada vez mais tende a refletir
sobre o próprio sujeito da escrita” (KLINGER, 2012, p. 13).
Costuma-se afirmar que uma das características da produção literária com
marcas de inscrição de si, quanto à metodologia construtiva, é a forma final da
narrativa, que aponta para o hibridismo. Este se manifestaria na junção de
preocupações de referencialidade documental com uma linguagem específica para a
elaboração de uma escritura que, ao tempo em que narra uma história individual,
pode estar narrando uma coletividade. Tal concepção, entretanto, possui uma
metodologia que se organiza em topois, e é esse o ponto que pretendemos situar no
presente artigo. Por isso, intentamos o registro de um repertório comum à produção
biográfica, mapeando conceitos sobre memória e (auto)biografia, importantes para o
compreensão do constructo narrativo por nós percebido na produção de Isaías Alves.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 686


Por falta de respostas (de algumas editoras) ao nosso pedido de que indicassem
os livros mais vendidos sob essas rubricas, não conseguimos concluir dados estatísticos
comprobatórios de nossa observação quanto ao franco crescimento em torno das
produções bio ou autobiográficas. Tais dados poderiam retratar mudanças no
comportamento do público leitor que, de alguma forma, se sente contemplado por
essas histórias que narram vidas mais ou menos semelhantes à sua, com fracassos e
vitórias, ou porque o indivíduo sempre estaria sujeito a experimentar a tendência
voyeur proclamada pela psicanálise. Basta, porém, percorremos os olhos pelas listas
dos livros mais vendidos segundo as revistas semanais para notarmos a preferência
leitora por biografias, principalmente de celebridades, autobiografias e memórias.
Inúmeros estudos teóricos se avolumam na tentativa de justificar esse crescimento
editorial. Valendo-nos do pensamento de Edgard Cavalheiro, a escolha se daria antes
de tudo em razão do “valor documental e humano que obras como essas possuem”
(CAVALHEIRO, 1943, p. 13).
Arriscamos, então, a elaboração reflexiva de que a curiosidade natural do
indivíduo, somada ao crescimento populacional (e o aumento do número de pessoas)
proporcionam o reconhecimento do valor da intimidade do indivíduo naquilo que ele
tem de singular. Tais fatos pertencem ao universo das principais causas responsáveis
por nossa curiosidade e conhecer as diferentes histórias de vida, elemento
significativo que movimenta o mercado editorial, fazendo com que livros de memória
e as autobiografias – sobretudo aqueles que prometem um desnudamento total dos
sujeitos envolvidos, embora impossível, que escreve ou se inscreve – sejam campeões
de venda. Dessa maneira, a literatura confessional (e aqui, reconhecemos a biografia
como também uma confissão do outro), seja biográfica ou autobiográfica, antes
apartada da literatura canônica, agora é objeto de desejo dos mais variados públicos,
apresentando-lhes diversas configurações, unindo-se às literaturas consideradas
canônicas.
A problematização em torno dos gêneros e dos modos literários é ampla, antiga
e controversa, como nos afiança François Dosse:

Com mais frequência, porém, a pluralização é confrontada com um


documento de características únicas: a autobiografia escrita pelo
biografado. Importa então saber que lugar será conferido a essa escrita do
eu, por muito tempo indiferenciada da escrita do outro-será preciso
aguardar o século XVIII para distinguir esses dois gêneros com a publicação
de Jean-Jacques Rousseau, certidão de nascimento da autobiografia (DOSSE,
2009, p. 68).

Reconhecemos não haver necessidade de se buscar uma explicação conceitual


para as questões relacionadas a gênero, uma vez que já é possível estabelecer algumas
distinções teóricas, ou simplesmente reconhecer que as fronteiras textuais nunca
estiveram tão balizadas como agora. Isso também ocorre com os cânones
estabelecidos no transcorrer do tempo: e o que víamos como subgênero transmuta-se
para gênero e vice-versa, e, portanto, biografia, autobiografia, diário, memórias,
enfim, literatura confessional, são todas possibilidades de representação literária que
reafirmam a crise e o hibridismo dos gêneros literários, sendo implausível classificar

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 687


literariamente de forma exclusivista uma obra, pois não há parâmetros rígidos para
determiná-la, como afirma Maria Luiza Ritzel Remédios:

Literatura centrada no sujeito, pois o sujeito é objeto de seu próprio


discurso, denomina-se confessional ou intimista e adquire configurações
diversas. Os textos que a constituem são agrupados, segundo suas
semelhanças, em conjuntos diferentes, os quais dão origem a um
determinado gênero da literatura íntima. O limite entre um gênero e outro é
bastante tênue, assim como o entrecruzamento desses gêneros é comum
(REMÉDIOS, 1997, p. 9).

Nosso intuito, aqui, não se configura como uma proposta de categorização da


literatura considerada confessional, intimista, ou (auto)biográfica. Intentamos, antes,
organizar uma gramática narrativa para a produção de Isaías Alves, que recorre a tais
gêneros, mas de fato encaminha-se para uma narrativa memorialística. Procurando
dar conta das análises que faremos, para isso buscando, no autor estudado, traçar
reflexões sobre esse tipo de construção narrativa, atentamos para elementos
importantes, como memória e narrador, na construção de uma proposta
(auto)biográfica e seus desdobramentos em escritos que assumiram rubricas apenas
de memórias ou biografias.

Segunda Variante: O narrador memorioso

O percurso seguido, com o fim de desenvolver uma categoria


metodologicamente aplicada ao narrador memorioso, e ajustada à produção de Isaías
Alves, passa por importantes contributos teóricos aos quais nos aproximaremos, ao
menos para melhor refletir sobre a maneira invidualizada do memorialismo que
abastece o fulcro da obra do escritor baiano. Os distanciamentos e as oposições entre
memória e História, no discurso memorialista, nem sempre serão explícitos, tampouco
fáceis de serem detectados, uma vez que, na lógica do discurso memorialístico, a
fronteira estabelecida para o binômio tende a se diluir de um modo sutil, visto que a
teoria da literatura, por meio de seus recursos, não tende a empregar as
categorizações de narrador ajustadas a esse tipo de produção, ficando sempre
destinado ao autor de memórias a sua categorização como narrador memorialista.
Em nossa análise, tal classificação tornou-se ainda mais problemática, restando-
nos transitar da História para a memória e, a partir daí, talvez podermos configurar o
espaço de uma narrativa que insiste na abordagem dos tempos idos, constituídos
individualmente, mas revelados, sob a textura do coletivo, por um narrador a quem
não caberia apenas a condição de memorialista. Primeiro, porque duas das obras de
Isaías Alves, aqui estudadas, ultrapassam a classificação memorialística, conquanto o
perfil narrativo seja mesmo o do professor e do pedagogo Isaías Alves. Segundo,
porque o tipo de narrador alvesiano autoimplica nas obras através de disfarces
narrativos, a exemplo das conversas com leitor, as notas de pé de página e, por fim,
assumindo uma das categorias defendidas por Wayne Booth em A retórica da ficção
(1980) o desenvolvimento de reflexões atípicas numa obra não-didática, nem ficcional.
Utilizando-se da arte da comunicação entre os leitores, bem como de recursos
próprios de escritores em outros gêneros narrativos, Isaías Alves impõe um outro
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 688
modelo de mundo não fictício ao leitor. Discorrendo sobre a intensidade da ilusão
realista Booth (1980) reflete sobre o papel do autor na obra de arte, a função do
criador e seu comportamento ante a criação, ou seja, se ele deve estar presente na
obra, representado ou não pelo narrador, ou se deve ausentar-se por completo, para
melhor descrever o mundo narrado. Tais hipóteses nos interessam, pois se
analisarmos a prosa memorialística de Isaías Alves a partir da teoria proposta por
Booth (1980), particularmente no que tange à voz que fala em notas de rodapé, torna
o narrador um autor implícito, eleito por Isaías Alves para tratar dos aspectos
relacionados a dados que remetem à sua vida pessoal e ao transcurso de suas
evicções. Pensamos nessa possibilidade por conta de, como já tratamos, não haver
uma teoria específica que abarque essa multiplicidade de vozes que frequentemente
se infiltram na narrativa biográfica. Isaías Alves parece querer presentificar-se, o
tempo todo, para o leitor, e não apenas como biógrafo ou narrador. Em suas
(auto)biografias ou nas suas memórias, ele se apresenta com a mesma identidade
narrativa do biografado, ou seja, imprime-se como pensador e pedagogo através do
autor implícito, inclusive repetindo episódios, repassados de um a outro livro.
Para se comunicarem através da arte, os autores precisam criar e assumir
formas estilísticas diversas. A retórica da ficção proporciona formas ao criador para
que este possa comunicar-se com seu leitor. São vários os mecanismos através dos
quais o autor pode se expressar (o conto, o romance, a poesia, a crônica, dentre
outros) e todos eles oferecem dificuldades para que o real se exprima, seja contando,
seja demonstrando. De acordo com Booth,

[...] a maior parte dos escritores que tentaram tornar os seus temas reais
viu-se, mais tarde ou mais cedo, em busca também de uma estrutura ou
evolução de acontecimentos realistas e em luta com a questão de como
fazer dessa forma um reflexo provável das formas que a própria vida revela
(BOOTH, 1980, p. 74).

Ele ainda advoga que, ao escrever um romance, o autor deve assumir a


retórica como condição indispensável ao desenvolvimento do livre arbítrio estilístico,
de forma a escolher um determinado tipo de discurso e tirar proveito dele. São
numerosos os tecidos textuais que o autor pode compor, e através dos recursos
discursivos, desenvolver modelos de acordo com as necessidades e escolhas
primordiais que vier a fazer. Existem muitas formas narrativas desenhadas para tramar
uma história, ficcional ou não.
Ao observarmos os vários procedimentos narrativos adequados aos mais
diferentes relatos, voltamos a avaliar o quão inadequada é a classificação tradicional
de pontos de vista em apenas três ou quatro tipos de narradores, não mais que
variantes de pessoa e grau de onisciência. Dentre tais formas, talvez a mais solicitada
seja a de pessoa, embora também a consideremos a mais frágil, no que se refere a
uma proposta de análise. Mencionar que uma história é narrada em primeira ou
terceira pessoa não nos basta e, no nosso caso, não resolve a problemática inicial de
nossa análise: a de que Isaías Alves narcisicamente se inscreve nas biografias de Rui
Barbosa e do Barão de Macaúbas, a não ser que entremos em detalhes e
“descrevamos o modo como qualidades e particularidades de cada narrador se

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 689


relacionam com efeitos específicos” (BOOTH, 1980, p. 166). Somente assim
poderíamos reconhecer e identificar o quanto a utilização da tradicional pessoa
pronominal é um dos disfarces do autor implícito, que os tem como algumas de suas
artimanhas narrativas.
Tentando sair de uma aporia, cunhamos o termo narrador memorioso150 para
o tipo de narrativa memorialística identificável na produção de Isaías Alves. Nas três
obras citadas, por acreditarmos que ele aciona a memória para nelas inspirar o tom da
escrita, na grande maioria das vezes, saudosista, e com olhos voltados para si mesmo,
Isaías Alves é um evocativo que repõe imageticamente apenas o que lhe é
conveniente. Diferencia-se, assim, do narrador apenas memorialista, o qual, através de
um método histórico alusivo, redefine limites entre História e ficção e, nessa fronteira
porosa, assegura o lugar possível da memória, por meio de textos de constituição
poética. Isaías Alves pratica, ao contrário, uma poética da memória que, ao mesmo
tempo, e não contraditoriamente, imiscui-se no terreno da História e dele se distancia,
por sua própria vontade, mais interessado por ritos de conformação do passado do
que em sua percepção, no momento em que faz relampejar os logos de suas
evocações.
Essa poética, que se define no apuro de uma linguagem adequada à fixação das
referências passadas e na articulação entre temporalidades de que se compõe a
memória, também é, na prática, um trabalho da memória, no sentido de estabelecer o
margeamento da História, e de saber, para transpô-lo, o espaço mental entre passado
e presente. Intercomunicando-os convincentemente e explorando os relatos históricos
com coerência interpretativa, mas perigosa (afinal, todo sujeito fala desde um lugar
ideológico e Isaías Alves não seria diferente), mesmo conferindo uma performance
narrativa que o narrador abre espaço às vozes periféricas, o autor baiano sentencia,
com seus comentários, ou com seus silenciamentos, o que em princípio caberia ao
leitor interpretar.
Tentando, a todo custo, dirimir as materializações de um passado prestes a ser
apagado, e que são compostas na tensão entre o individual e o coletivo, Isaías Alves
aposta no resultado inevitavelmente coletivo, mesmo partindo, muitas vezes, de um
projeto memorialista supostamente individual, como parece ser o seu caso. Se toda
escrita memorialística se comporta como um entrecaminho, uma fronteira, ao mesmo
tempo, por meio da qual pertence a um e a todos pertence, esse entrelugar se amplia,
o que faz com que, ao ouvirmos histórias alheias, pareça que nos conhecemos melhor
e nos sintamos parte de uma mesma existência, redesenhada por um projeto de
memória que se recusa a ser meramente histórico, mas requer sempre uma
pessoalização.
Nas obras em análise, o tempo e as experiências de Isaías Alves interpenetram-
se e acumulam-se, formando um consistente arcabouço para a existência una e plural.
A tentativa de estabelecer as possíveis relações entre o vivido e o narrado permite-nos
afirmar que esse escritor, já numa idade avançada, continuava arrogando a si o ofício
de arquivista, retirando dos acontecimentos anteriores os conteúdos para a feitura do
texto. É o que subjaz na instigante observação de por Maria Antônia Ramos Coutinho:

150
O termo é empregado tomado como base o conto de Borges: Furnes
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 690
A escrita memorialística forja-se na intersecção de dois planos: o histórico,
onde geralmente se dá a incidência do tempo passado, evocando-se certa
realidade dentro de uma configuração espaço-temporal, e o plano do eu
pessoal, onde prevalece a subjetividade do narrador, que se diz a si mesmo
enquanto sustenta uma conexão com o real, submetendo-se à injunção
histórica (COUTINHO, 2012, p. 95).

Constituindo-se no relato de um momento específico da vida do autor-


narrador-personagem, Isaías Alves, nas memórias, voluntárias ou não, toma esse
momento como o fio da meada para o balanço de uma vida inteira. As situações
outrora vividas suscitam frequentes reflexões sobre elas. É, portanto, uma escrita dele
mesmo, gestada no pensamento do velho que se distancia dos fatos da juventude, e
que se estende como um convite, ao longo da narrativa, para o ingresso na avaliação
sobre a organização educacional e suas formas de representação na Bahia,
explicitamente abordadas pelo escritor que conhece profundamente o passado e que
a ele sobreviveu, ao longo de noventa anos. Através das memórias de outrem, a
própria memória rende-se à seleção das recordações e impõe, através de artifícios
narrativos, a memória por procuração. É como se Isaías Alves estivesse condenado a
viver por procuração, tornando-se arauto da glória alheia (DOSSE, 2009, p. 115).
Nas três obras em análise, as experiências vitais do escritor Isaías Alves, ao
longo do tempo, compõem o eixo sobre o qual a narrativa se desenvolve, num tipo de
escritura consciente e reflexiva sobre o passado vivido. Afirmamos que a escrita de
Isaías Alves é demarcadamente memorialística sendo a recordação da experiência
experimentada, o conhecimento da história que conta, partindo, portanto, do
problema já resolvido na memória habitada, que estabelece uma ponte entre passado,
presente e futuro, e está vinculada a um portador, de que nos fala Assman (2011). Essa
memória habitada é constantemente acionada por Isaías Alves, que adota como marca
de sua escrita um estilo de narrar memorioso, uma vez que ele, por questões que
supomos (o fato de ser irmão do então interventor do Estado da Bahia, e ocupando
cargo público), ter acesso a documentos históricos valiosos, até hoje guardados nos
arquivos da Universidade Federal da Bahia.
Ao rememorar lugares, datas e nomes, enfim, alguns eventos significativos de
sua vida – como a infância, marcada pelas mesas fartas do Recôncavo, viagens, a
passagem do cometa Halley e o prazer de escrever as memórias, ainda que mesmo
muito doente, cumpre a entrega de Matas do Sertão de Baixo (1967) para publicação,
já extremamente debilitado, por exemplo, é essa memória (habitada) que emerge e
revela as significativas marcas que o autor carrega em relação a seu povo e sua gente.
A lembrança dos mesmos fatos recorrentes, tanto nas memórias quanto na biografia,
sugere que Isaías Alves se transmuda de forma implícita num narrador dramatizado,
revelando, de forma voluntária, memórias que, no momento em que narra o tempo
vivido, evidencia uma habilidade fantástica para recordar, o que para nós, é instante
superior ao de simplesmente contar a História. Não que isso seja o mais importante,
pois as recordações, postas em forma de experiência narrativa de vida, permitem-nos
e permitem aos outros entenderem o formato que assumimos, quem somos e quem
gostaríamos de ser. Retomando as palavras de Jürgen Straub (2009), nosso eu, no
fundo de sua dimensão temporal, deve ser entendido como uma identidade narrativa.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 691


As experiências, vividas pelo autor, parecem que são a memória habitada
sempre agilizada por Isaías Alves processando-se num constante ato de recordação,
que se realiza num movimento retrospectivo, em direção ao passado, que o
memorialista, a todo o momento, tenta atualizar como forma de superação do
esquecimento.
Não posso recordar151 grande coisa, da vida da nova cidade, mas recolho, de
alfarrábios, as lembranças dos cauassús ocupando as casas e bombeando-
as; dos Delegados de Terra servindo de orientadores sociais, econômicos e
políticos. Um procura um posseiro que não julga dever medir a terra. Após
intimação sem resultado, vai pessoalmente, recebido gentilmente. A
conversa tornou-se menos cordial e o engenheiro apelou para a sua
autoridade. O posseiro firma, senhor de si: “ O senhor é filho, é sobrinho, é
neto de Pedro II, para ter autoridade? Como fala em Autoridade?” Isso
ocorreu em 1917152 ( ALVES, 1967,p.102).

Muitas impressões ditadas e vividas por Isaías Alves parecem não habitar a
consciência autoral, permanecendo, portanto, armazenadas em suas camadas mais
profundas, formando uma espécie de memória inabitada, menos evidentes que em
suas próprias memórias, assim evocadas:

Das minhas recordações de meninice que tenho nítidas, a figura da avó não
me ficou memória, pois morreu antes dos meus quatro anos. Nem mesmo a
cena em que minha mãe conseguiu ver a velha no esquife, à porta, em
caminho do cemitério de Santo Antonio de Jesus, me lembro absolutamente
(ALVES, 1967, p. 58).

Ao longo da narrativa alvesiana podem ser identificadas dadas situações,


emocionais, especialmente nos momentos em que o narrador parece capitular
desabafando ao leitor que, “como tantos outros teria sido grande professor, se as
condições sociais do Brasil, nos primeiros decênios do século tivessem carreiras
abertas às vocações” (ALVES, 1942, p. 296), ou, por exemplo, no episódio em que o
escritor rememora o despovoamento das Matas do Sertão de Baixo e as reformas
promovidas pela República. Esse ato de memoriar faz com que ele se veja ancião,
sofrendo com a possibilidade da perda da memória, sendo necessário voltar a
experiências pretéritas vivenciadas no Recôncavo, embora admita que “o simples
aroma da bisteca de porco” traz à tona, involuntariamente, a vida da infância, fazendo
refluir à evocação proustiana dos biscoitos Madeleine, no mesmo instante em que o
escritor relembra a necessidade de os novos fazerem pesquisas e registros, evitando
assim, a amnésia memorial.

Variante Final

Reiteramos que a escrita memorialística exige o transcurso do tempo, e o


distanciamento dos fatos acontecidos. É necessário, portanto, esquecer para poder

151
Grifo nosso.
152
Grifo nosso. Vale salientar que em 1917 o autor tinha 29 anos e ele está narrando o fato por volta de
em 1960.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 692
retornar a lembrar, a fim de que, assim, a memória cumpra o seu papel, revivendo a
experiência através das construções narrativas. Isaías Alves parece temer o
esquecimento e nos impõe uma constante rememoração, mesmo em gêneros que, a
princípio, dispensariam essas características, a exemplo dos livros teóricos sobre testes
educacionais, em que o autor se rememora, utilizando uma mescla de pessoa
pronominal, valendo-se de um ele-outro para narrar vidas alheias quando, na verdade,
é ele próprio que se narra, terminando por se mascarar em diversas personalidades,
criando a ilusão da unidade. Alternando o uso do eu e do ele, Isaías Alves acumula
variantes do narrador memorialista, pois o uso do ele, substituindo o eu, e vice versa,
possibilita, como num jogo de espelhos, que tais vozes reflitam a identidade profunda
em obras destinadas a outros, convocando o leitor sempre a perceber as semelhanças
entre os biografados e ele mesmo. Como sentencia Arfuch (2009, p. 113), “escrever a
vida, viver na escrita, assumir um eu de inúmeras facetas ou um ele, que pode ser eu
mesmo convertido em ninguém”, tudo isso põe a nu as dificuldades de classificação
das vozes em gêneros de fronteira, como o que aqui analisamos. Marca-se, assim, a
necessidade de ultrapassarmos os gêneros (auto)biográficos canônicos para, desse
modo, abranger a multiplicidade das formas atualmente adotadas pela narrativa
vivencial.

REFERÊNCIAS
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ALVES, Isaías. Vida e obra do Barão de Macahubas. São Paulo: Nacional, 1942.
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1959.
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de Janeiro: UERJ, 2010.
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cultural. Unicamp. Campinas, São Paulo, 2011.
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Dias Sobral Maria Cleuza (org.).Territorialidades: imaginário, cultura e invenção de si.
Natal, Porto Alegre, Salvador. EDUFRN, EDIPUCRS, EDUNEB, 2012.
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In:___(Org.). Literatura confessional-autobiografia e ficcionalidade. Porto Alegre:
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 693


STRAUB, Jürgen. “Memória autobiográfica e identidade pessoal. Considerações
histórico-culturais, comparativas e sistemáticas sob a ótica da psicologia narrativa”. In:
Em primeira pessoa: Abordagens de uma teoria da autobiografia. (org) GALLE,
Helmut. ANNABLUME, São Paulo, 2009.
TEZZA, Cristovão. “Literatura e biografia”. Conferência apresentada no IX Congresso
Internacional da ABRALIC – Tessituras e Interações, Convergências. São Paulo,USP,16
de julho de 2008. Acessado em 14 de outubro de 2013.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 694


A trajetória de vida como percurso metodológico e epistemológico

Cláudia Moraes da Costa


UnB
claudia.moraesdacosta@gmail.com
Cláudia Pato
UnB
claudiap@unb.br

O presente trabalho apresenta a trajetória de vida como processo metodológico e epistemológico que
define a constituição dos sujeitos sociais, seus saberes e a demarcação dos seus territórios. Participaram
desta pesquisa vinte catadores de material reciclável, os quais a média de idade era de 33 anos. Para a
constituição das fontes biográficas foi o utilizado a entrevista semi-estruturada, o diário de campo e a
análise documental. O método biográfico na modalidade trajetória de vida se constituiu como fio
condutor de todo o processo a metodológico. A trajetória de vida foi compreendida como um dos
espaços e dos tempos em que as relações aconteciam, sejam materiais ou simbólicas. A hermenêutica
se instituiu como base orientadora para a análise e interpretação das fontes biográficas no qual forma
compôs inúmeros elementos que possibilitaram a construção dos mapas biográficos que contribuíram
para o reconhecimento da identidade narrativa destes sujeitos sociais. Assim, pode-se afirmar que ao
vivenciar a complexidade do trabalho com a trajetória de vida na perspectiva epistemológica e
metodológica fez com que se materializasse a compreensão da construção de um espaço reflexivo, no
qual o vivido é sentido, reinventado e refletido. Neste movimento a trajetória de vida passa a se
constituir também como um espaço de formação pelo sentido dado a reflexão da própria vida no
processo do relato, que pode possibilitar a sua reinvenção e no qual os territórios são identificados e
saberes são desvelados, constituindo-se assim a identidade narrativa do referido grupo.
Palavras-chave: trajetória de vida, territórios, mapa biográfico, identidade narrativa.

Introdução

O movimento biográfico vem se constituindo como um espaço no qual se


entrelaçam as diversas ideologias e concepções, fazendo com que as representações
dos sujeitos sociais, os projetos, os saberes advindos da sua própria existência, as
relações pessoais, temporais e sociais se constituam como territórios.
Pensar na trajetória de vida de outras pessoas e de como elas vivenciam seu
cotidiano remete a curiosidades e questões intrigantes no sentido de como os seres se
constituem. É aventurar-se num universo composto por um conhecimento inacabado
que causará estranhamentos e reconhecimentos. Em determinado momento o
desconhecido e também o conhecido nos reportam à possibilidade da compreensão de
nós mesmos e do outro num movimento de circularidade.
Neste sentido, o presente artigo pretende abordar as trajetórias de vida dos
catadores de material reciclado como percurso metodológico e epistemológico da
constituição deste sujeito social.
Refletir sobre a construção desse processo na perspectiva epistemológica
constituiu-se em um contexto de conflitos e contradições, construções, recomeço e
encontros. Esse contexto é permeado de subjetividades, o que requer um cuidado na
abordagem, sobretudo quando já se tem contato prévio com a comunidade que será
investigada, como o caso em questão.
De que forma não naturalizar-se pelo já visto, vivido e conhecido? Como
lançar um olhar científico em algo que já fazia parte deste cenário cotidiano? Uma
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 695
questão tornava-se inquietante: como definir uma metodologia que encaminhasse a
uma análise desse fenômeno e que não o limitasse em sua complexidade, respeitasse
a ação norteadora de não perder o eixo, da compreensão desses sujeitos como
sujeitos da história?
Com isso alguns autores subsidiaram esta discussão. Lüdke e André (1986)e
Ruscheinsky (2005) que afirmam que as concepções e as visões do mundo do
pesquisador irão influenciar e nortear as escolhas referentes ao caminho da pesquisa.
Assim, a pesquisadora, assumindo sua implicação diante do processo da
pesquisa, considerou esses catadores como também sujeitos implicados que, ao contar
sua trajetória no decorrer da entrevista, pesquisados e pesquisadora constroem
possibilidades de refletirem, reconstruírem e criarem situações de atuação como
sujeitos sociais.
Neste caso, a opção por utilizar o conceito: trajetória de vida estabelece o
diálogo com as ideias construídas por: Giddens (1989), Carvalho (2000), Bourdiê (1998)
e Luz Arango (1999, apud BUENO, 2007). O relato da história de vida leva a construção
de trajetórias, nas quais os sujeitos ocupam uma série de posições na diversidade do
campo social, tanto no percurso individual como no percurso do grupo, no qual o
sujeito é submetido a transformações e influências.
As trajetórias de vida são construídas por sujeitos reais, que vivem situações
concretas, sujeitos imersos no mundo e que atuam no cenário da vida com todas as
contradições que esta existência exige.
Neste sentido, foram adotados os recursos do método biográfico na
modalidade trajetória de vida como possibilidade da construção destas narrativas
(MARRE, 1991; CARVALHO, 2000). O método biográfico para Marre (1991) é um
processo dinâmico no sentido de ser capaz de reconstruir o passado, fazer articulações
com o presente, conviver com processos de rupturas e descontinuidades. O sujeito vai
relatando sua história, se identificando com um determinado grupo, com o qual tem
relações de pertencimento. Ele constitui o grupo e se constitui pelo grupo, e traz
singularidades da sua vida e da vida do grupo nas narrativas construídas.
No entanto a biografia, aqui, consiste no sentido de sujeitos atravessados pela
história e pela cultura (CARVALHO, 2000). Por isso, a contribuição de Carvalho (2000)
quando aponta para o cuidado meticuloso com a análise biográfica, pois os dados
foram construídos numa relação dialógica em que sujeito pesquisado e sujeito
pesquisador participam do processo. Segundo a autora, a complexidade de lidar com
estes dados, está no contato com a descrição, a argumentação, a narração e as
relações que estes sujeitos sociais estabelecem com as suas trajetórias de vida.
Com isso, a avaliação deste estudo o indicou como um fenômeno complexo e
multifacetado em que os sujeitos são considerados intérpretes de sua própria
trajetória constituída no decorrer dos relatos orais, em seus próprios campos sociais.
Devido a este fato, foi feito a escolha pelas contribuições ontológicas e
epistemológicas da hermenêutica moderna para a análise e compreensão dessas
trajetórias (GADAMER, 1999; RICOEUR, 1994; CARVALHO, 2000).
A preferência se deu pelo ato interpretativo da hermenêutica moderna
(CARVALHO, 2000). Como contribuição para a compreensão do fenômeno que foi
pesquisado e se buscou o entendimento da perspectiva da abertura do processo
interpretativo e o seu caráter circular, como um movimento de circularidade

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 696


compreensiva, movimento este não vicioso, para não caracterizá-lo como o
movimento de tautologia.
A interpretação não se deu na perspectiva da tradução da fala do sujeito social,
mas na busca por compreender o relato da trajetória de vida como um texto
(RICOUER, 1990). O texto foi o elemento que constituiu o paradigma do
distanciamento na comunicação e mostrou o processo de historicidade da experiência
humana dos catadores, no qual o texto tomou a ficção como caminho para descrever a
realidade.
A hermenêutica, então fez seu caminho na própria vida, quando a vida passou a
ser uma história, a vida com sua própria exegese (GADAMER, 1999). A exegese
compreendida como esta busca constante de elevar a interpretação no seu sentido
mais amplo, retirando a perspectiva somente da decodificação. Foi este o caminho
trabalhado na busca de analisar as trajetórias de vida dos catadores, em que a
objetividade se deu no fato das obras da vida, formada pelas histórias que a própria
vida produziu e só foram experimentadas pelos sujeitos que viveram o processo.
Para Carvalho (2000) “as forças organizadoras da ordem da concordância, as
forças da discordância, do caos, da surpresa, do inesperado e do arbitrário do destino”
(CARVALHO, 2000, p.128). Estes elementos se encontram no contexto da existência
narrada, experiências socialmente compartilhadas que aproximam o sujeito social das
condições de pertença ao contexto vivido e sua vinculação com o espaço e o tempo,
tanto individual como social, bem como apontam a entendimento dos seus ideários e
seus valores próprios.
Na análise das trajetórias de vida dos catadores foi identificada a constituição
de uma identidade narrativa (RICOUER, 1997). Contexto de estrutura e significados,
nos quais se produziram sentidos e questões próprias de um determinado grupo.
Neste processo se materializou o movimento dialético da união da história e da ficção
em que o sujeito foi tido como um sujeito relacional.
Para Ricouer (1997) esta identidade não é estável, está centrada na ipseidade,
em que o sujeito envolvido nesta ação, refletiu sua trajetória, deu sentidos a ela e
criou possibilidades de recriá-la. Carvalho (2000) a ipseidade é um processo estrutural
formador, em que o sujeito envolvido nesta ação, refletiu sua trajetória, buscou
reinventá-la e constituiu a história individual e a história do grupo ao qual pertence.
Assim, o método biográfico na modalidade da trajetória de vida possibilitou à
construção mapa biográfico, formado a partir das trajetórias de vida. Para Carvalho o
mapa biográfico é compreendido: “como experiências de história de vida de pessoas,
destacando o modo como essas experiências são produzidas pela interação social, ou
pelo menos são interpretadas e sedimentadas no curso desta interação”.
Procedimento que contribuiu para o reconhecimento da identidade narrativa deste
grupo.

Os sujeitos sociais da pesquisa

Os sujeitos sociais desta pesquisa moravam em uma comunidade de catadores


de material reciclável, situada entre as regiões administrativas de Taguatinga e Águas
Claras, no Distrito Federal-DF.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 697


Estes catadores ocupavam esta área há pelo menos dez anos e sobreviviam da
coleta e venda do material reciclável. Eram aproximadamente cento e cinquenta
catadores adultos e oitenta e cinco crianças que viviam em uma área sem nenhuma
infraestrutura, sem saneamento básico, cujos locais de moradia eram construídos de
madeiras, lonas, arames e papelões.
Ao chegar ao local, há seis anos, foram identificados alguns fatores que, para
padrão de civilidade e de humanidade que se têm, algumas famílias se encontravam
em situações inumanas, sem terem supridas necessidades consideradas mínimas,
como: crianças de pés no chão, muitas delas sem roupas, circulando entre os barracos
de lona, em meio a animais, lixos e restos de comidas. Crianças e adultos dirigiam os
seus olhares desconfiados e ao mesmo tempo distantes. Os adultos eram cabisbaixos e
conversavam muito pouco, respondiam as perguntas de forma rápida sem oferecer
muitos detalhes. As crianças vinham ao encontro ainda que receadas.
Nessa área se localizava a Cooperativa Reciclo composta de sessenta catadores,
entre eles, os cooperados e os agregados. Os agregados eram considerados os
catadores, que devido à dificuldade ou à burocracia dos processos de regularização de
documentação pessoal ou por decisão própria de não ser cooperado, prestavam
serviços à cooperativa sem um vínculo efetivo. No ano de dois mil e sete, a cooperativa
foi registrada junto ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ.
Na época de sua constituição formou-se uma rede de apoiadores na qual se
destacaram: o movimento das Pastorais Sociais da Igreja Católica da Arquidiocese de
Brasília, Fórum Lixo e Cidadania, as Cáritas, a Central das Cooperativas, Movimento
Nacional dos Catadores de Material Reciclável, Instituições e Fundações de cunho
econômico e financeiro do Governo Federal, uma Instituição de educação superior e
uma instituição escolar confessional.
A comunidade dos catadores era conhecida pelo mesmo nome da cooperativa,
Reciclo, mas como já mencionado anteriormente, nem todos os catadores pertenciam
à cooperativa. Existiam catadores que pertenciam à comunidade, não eram
considerados agregados, pois moravam no local, participavam de algumas atividades
em conjunto com os outros moradores, mas que trabalhavam e sobreviviam de forma
independente da cooperativa.
Um dos fatores considerado pela pesquisadora como fator de benefício da
escolha desta comunidade para a análise das trajetórias de vida dos catadores de
material reciclável foi à própria localização da comunidade, uma área de constante
entrada de novos catadores e esses se abrigavam pela região, por determinados
períodos em especial nos meses que antecediam o final do ano, no qual o grupo
aumentava seu contingente.
Para a definição inicial do perfil desses sujeitos foi utilizada uma ficha cadastral
da própria Cooperativa Reciclo do ano de dois e sete e também uma ficha de
identificação dos moradores da comunidade de um dos apoiadores que registrava os
dados dos anos de: dois e quatro, dois mil e cinco, dois mil e seis , dois mil e sete. A
ficha de identificação do apoiador continha dados dos catadores que trabalhavam de
forma independente, ou seja, sem vínculo com a cooperativa. Alguns itens foram
destacados:
1. Idade: varia de dezoito a sessenta e sete anos;
2. Estados de origem: Bahia, Alagoas, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais e
Distrito Federal;
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 698
3. Escolaridade: dezesseis se consideraram analfabetos ou frequentaram
algum projeto de alfabetização realizado pelos apoiadores; dez cursaram
entre a primeira e quarta série do ensino fundamental; oito cursavam ou
estão cursando entre as quintas e oitavas séries do ensino fundamental;
quatro catadores pararam de estudar no ensino médio e um conclui o
ensino médio no ano de dois mil e oito;
4. Aspectos que os levaram a morar ali: o desemprego; a falta de moradia; o
desemprego dos pais; a facilidade de acesso a escola; a sobrevivência; a
seca;
5. Filhos: de 01 a 05 filhos (a grande maioria das famílias), constando que
algumas famílias (três somente) a quantidade de filhos varia de seis a onze
filhos.

Assim, a opção feita foi a de definir quatro critérios para a escolha dos sujeitos
sociais da pesquisa. Os três primeiros critérios de escolha tiveram o local da
comunidade e a cooperativa como pontos definidores: primeiro grupo - catadores que
chegaram primeiro no local, estes eram indicados por seus pares, ou seja, pelos
próprios catadores; segundo grupo – os catadores que chegaram durante o processo
da constituição da cooperativa Reciclo; terceiro grupo – catadores que eram
cooperados ou agregados e que não se incluíam nos itens anteriores. O último critério,
o ponto diferencial foi não ter vínculo com a cooperativa: catadores que trabalhavam
independentes, sem vínculo com a cooperativa, mas que faziam parte da comunidade.
Cada um dos grupos agregou cinco catadores que deram origem à amostra de vinte
catadores.

O cuidado partir da coleta de dados

A base da coleta de dados foi referenciada em Carvalho (2000), Marre (1991)


para focar o pesquisado na produção do relato sobre sua trajetória de vida. Ao
contarem suas histórias foram construindo momentos de descrição, argumentação e
reinvenção. Os sujeitos sociais materializaram os fatos, as situações, os problemas e os
momentos significativos ocorridos em sua história.
Neste sentido, pela complexidade do fenômeno estudado: a trajetória de vida,
foi utilizado para a coleta de dados a entrevista semi-estruturada (LÜDKE E ANDRÉ,
1986), o diário de campo (MACEDO, 2006) e a análise documental (PHILLIPS, 1974) e
para verificar a validação dos dados coletados se utilizou a triangulação (LÜDKE e
ANDRÉ, 1986; e MOROZ e GIANFALDONI, 2002).
Para isso, no processo inicial, foi feito a escolha pela utilização da entrevista no
sentido de uma estratégia aberta ao diálogo entre pesquisador e pesquisado.
Szymanski define: “a entrevista face a face é fundamentalmente uma situação de
interação humana, em que estão em jogo às percepções do outro e de si, expectativas,
sentimentos, preconceitos e interpretações para os protagonistas: entrevistador e
entrevistado” (SZYMANSKI, 2004, p.12). A entrevista face a face pode possibilitar além
do diálogo dos interlocutores a compreensão do contexto e do simbólico que o
constitui.
Assim, uma das concepções pautadas foi a da entrevista semi-estruturada. Para
Lüdke e André (1986, p.34) a entrevista semi-estruturada “se desenrola a partir de um
esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 699


as necessárias adaptações”. Para estas autoras a entrevista como estratégia não se
conclui ao terminar o processo de elaboração, mas passa a estabelecer um diálogo
vivo entre entrevistador e entrevistado, se inserindo algumas adaptações que foram
necessárias ao processo, para a retomada do objetivo daquele momento.
Com base na entrevista semi-estruturada, elaborou-se um roteiro que passou a
ser o fio condutor dessa conversa. Este roteiro foi baseado nos estudos de Gonçalves e
Lisboa (2007), mas com algumas adaptações em relação ao universo da pesquisa.
As entrevistas foram marcadas com antecedência com os sujeitos sociais da
pesquisa e coletadas de forma individual, na própria comunidade, nas suas moradias
ou no espaço coletivo denominado de galpão comunitário. Esta escolha do lugar a
onde seria realizada a entrevista se deu de acordo com a negociação entre
pesquisador e pesquisado. No princípio da coleta se experimentou a inquietação, tanto
por parte da entrevistadora como dos entrevistados. Uma delas caracterizou-se pela
curiosidade própria da situação de lembrar e relatar sobre os aspectos da vida.
Ao iniciar o processo de coleta das narrativas, foi produzida uma orientação
inicial aos catadores, para que eles compreendessem que iriam contar a história de
suas vidas, relembrando fatos e chegarem até o momento presente em que se
encontravam ali, naquele local.
Uma questão foi identificada logo no percurso das primeiras entrevistas: foi
notado que eles iam identificando um determinado fato, que lhes parecia significativo,
para dar início ao relato, iam agregando e compartilhando a esse outras situações, sem
que houvesse a necessidade de interferências da pesquisadora. Mas em algumas
situações, no decorrer do diálogo, não ficava claro um nome ou um dado transmitido,
era necessário que a pesquisadora pedisse uma nova explicação ou eles próprios iam
repetindo palavras para verificar se houve a compreensão clara do fato narrado.
Com isso, a interferência com a utilização do roteiro como fio condutor era
feita para retomar a entrevista, em alguns casos, quando era percebida a dificuldade
de alguns catadores de se recordarem de episódios na narração das trajetórias de vida,
mas em diversas vezes se percebia a preocupação do próprio pesquisado em ser
compreendido, que o levava a questionar a pesquisadora, como forma de verificar a
compreensão do que havia falado.
Uma situação comum a uma parte dos catadores foi a de iniciarem o seu relato
a partir da infância e, em alguns casos, questionavam a possibilidade de iniciar o relato
por esta etapa da vida. Outros já iniciavam o relato com uma síntese breve do percurso
de suas vidas, citando e enumerando aspectos significativos da trajetória dessa
história.
No decorrer das entrevistas a pesquisadora foi levada a desenvolver a escuta
na perspectiva do acolhimento, demonstrada por meio do olhar, dos gestos e do
silêncio, em especial nos momentos das lembranças que vinham acompanhados de
choros. Nestes momentos, a aceitação não se concretizava na história ali relatada
como aspecto isolado, mas na aceitação daquele sujeito como um todo, na sua
subjetividade, trazendo contextos e histórias de outros grupos nos quais esteve ou
estava inserido. Ali a escuta sensível foi exercitada, de acordo com a afirmação de
Barbier (2002, p.24): “A aceitação incondicional do outro” (BARBIER, 2002, p.24). Os
gestos e o silêncio eram materializados como forma de legitimar que aquele sujeito
seria ouvido independente do que ele trouxesse para o relato.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 700


As entrevistas tiveram duração de quinze minutos à uma hora e treze minutos,
sendo que, em alguns casos, foi necessário desligar o gravador. Isto se deu
especialmente quando quiseram relatar alguns fatos vivenciados, mas que queriam
manter resguardados e não concordavam que fossem registrados. Assim, constituiu-se
um diálogo em que o interesse maior foi o da alteridade, o da escuta e o do cuidado e
o da libertação de poder dizer algo ainda não revelado. Para a entrevistadora este
momento foi o do encontro com o desconhecido, elemento diferenciador e que iria ser
mais uma parte a integrar-se na compreensão da constituição daquele sujeito.
O fato inicial da pesquisadora já ter proximidade com este determinado grupo
de catadores, fator considerado anteriormente como um aspecto de dificuldade, no
momento da entrevista, este fato passou a materializar-se em um elemento
importante na constituição da confiança estabelecida entre os sujeitos, que
possibilitou o relato de acontecimentos antes não revelados.
O diário de campo, outra estratégia usada para a coleta de dados, foi utilizado
como forma de registrar as impressões, expressões, gestos, questões que estiveram
presentes no universo existencial da entrevista e do contexto dos sujeitos sociais da
pesquisa, os catadores de material reciclável. Para Macedo R. (2006), o diário de
campo é considerado uma estratégia reflexiva que contribui para o pesquisador
compreender o contexto vivido pelos pesquisados.
Neste processo, o diário de campo serviu para o registro dos diferentes
momentos da pesquisa, desde a reunião para pedir autorização para o trabalho, o
contexto das entrevistas, como também as reuniões e encontros ocorridos na
comunidade.
No decorrer da entrevista [...] se emocionou diversas vezes em especial
quando relatou a venda de balas nos sinais e o assédio para a prostituição.
Instante de vários expressões corporais que sugeririam a lembrança de
momentos de sofrimento. Na hora que era relatado, no momento presente,
se expressava como indignação, braços, mãos e face davam vida a outra
linguagem. Lembrou-se dos diversos momentos de brigas na comunidade,
algumas trazendo agressões físicas e a sua mudança de postura [...]. Na
noite anterior houve vários conflitos em relação às diversas brigas, acredito
que tenha sido pelo excesso de bebida de um determinado grupo de
catadores. A comunidade neste dia estava agitada e várias pessoas
comentavam sobre o fato da noite anterior (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

No decorrer das entrevistas foi redobrado a atenção e o cuidado de não se


fazer anotações no momento do relato, para garantir a escuta. Ao concluir este
momento, faziam-se os registros, organizando-os entre os momentos: anteriores, os
presentes e os posteriores a entrevista. No diário de campo, foi tomada a decisão por
preservar o nome real dos sujeitos sociais.
Outra possibilidade utilizada foi à análise documental como propósito de
conhecer um pouco mais o contexto social daquele grupo e os problemas vivenciados
naquela localidade, bem como os seus registros. Para Phillips: “quaisquer materiais
que possam ser usados como fonte de informação sobre o comportamento humano”
(PHILLIPS 1974, p.187). Neste caso, foram utilizados jornais que noticiavam fatos sobre
o grupo, revistas e registros de atas e de documentos produzidos pelos catadores no
decorrer de reuniões da Cooperativa Reciclo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 701


O diálogo entre a análise e a interpretação dos dados

No decorrer da pesquisa, foi observado que os dados foram se multiplicando de


uma forma rápida, constituindo-se densos e valiosos na acepção da análise das
trajetórias dos pesquisados e na significação da pesquisadora, ocasionando ao
processo um início complexo de análise e de interpretação dos dados. Miranda, já
apontava este fenômeno:

O movimento gerado levou à elaboração de uma série de asserções que


durante o percurso foram se confirmando ou, como um excelente desafio,
não se confirmando. Desta forma, essas asserções conduziram, desde o
primeiro instante de coleta de dados, a um processo valioso de análise, que
se concretizou por meio do diálogo que estabeleci entre o lido, o visto e o
vivido (MIRANDA, 2006, p.75).

Iniciou-se assim o processo de aproximação com uma das entrevistas, em que


esta foi ouvida na íntegra antes da transcrição. Neste primeiro momento, emergiram
as questões relacionadas às trajetórias dos sujeitos sociais que foram desenhando um
cenário próprio daquele grupo e outros dados foram sendo acrescidos pelo diário de
campo e pela a análise documental.
Com isso, iniciou-se a compreensão do que representaria este processo, um
trabalho cuidadoso, meticuloso, sistemático e paciente com os dados. Este percurso
apoiou-se em Carvalho (2006) e na aproximação dos estudos de Weller (2008) na
perspectiva da complexidade dos dados no sentido da subjetividade.
Abaixo, buscou-se representar a circularidade do momento em questão, as
etapas seguiam uma certa regularidade e sequencia inicialmente e ao passo que se
constituiam as etapas iam se visualizando a constituição da trajetória de vida e um
movimento circular das etapas.

Figura 01153

153
Representação do trabalho de análise e interpretação dos dados coletados.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 702
Nesse contexto, todas as entrevistas foram registradas por meio de digitação,
na íntegra, tal qual era a mensagem ouvida. Após esse procedimento fez-se a primeira
leitura como forma de contato com o texto e também para que pudesse verificar a
autenticidade do material escrito com a gravação ouvida.
Na etapa subsequente, foi feito uma leitura já com registros pontuais das
impressões, significações, contextos e o levantamento de temas que iam emergindo da
própria narrativa dos pesquisados.
Os dados foram constituindo-se relatos biográficos dos sujeitos pesquisados.
Observou-se a ênfase que foi dada nos processos de chegada e partida de
determinados lugares, bem como a materialização dos processos migratórios, as
situações, as acepções e as relações que o catador constituía neste percurso.
A partir daí, deu-se início a construção de um mapa, no primeiro momento, o
chamamos de mapa temático por considerar como temas as informações significativas
para a trajetória do pesquisado, mas logo o foi renomeado como mapa biográfico, por
perceber que foi constituído por meio de narrações biográficas. Carvalho os considera:
“como experiências de história de vida de pessoas, destacando o modo como essas
experiências são produzidas pela interação social, ou pelo menos são interpretadas e
sedimentadas no curso desta interação” (CARVALHO, 2006, p. 09).
Uma questão destacou-se na análise dos primeiros mapas, determinados
indicadores também estavam presentes nos mapas biográficos de outros sujeitos.
Entre eles: os processos de exclusão em que os catadores estavam imersos no
decorrer dessas trajetórias; o Outro como possibilidade de aproximação e
Reconhecimento de seus pares na perspectiva da construção do projeto; o movimento
do Eu Individual ao Eu Coletivo - História da comunidade articulada a história da
Cooperativa e também ao início da constituição da Central das Cooperativas no
Distrito Federal - DF.
O mapa biográfico traçava ali o percurso feito não só pelo catador (indivíduo),
mas apontava a construção da trajetória do grupo social ao qual pertencia, definia o
seu território como também, deixava claro os conflitos e as lutas vivenciadas ali, tanto
nas suas relações com o Estado e com a sociedade, como também definia o como ele
interpretava os olhares externo lançados ao grupo ao qual pertencia. Isso explicava a
forma de como eles eram vistos, em determinadas épocas e lugares e de como eles
interpretavam estes olhares.
Os catadores ao relatarem a sua trajetória iam de certa forma construindo o
contexto da situação econômica, social e política da cidade que habitavam. Traçavam
um panorama local e individual, iam trazendo para o diálogo os grupos e os seres que
habitavam naquela localidade e que representavam uma autoridade e ou um
significado para aquele espaço, época ou para sua trajetória.
Alguns fatos iam constituindo o cenário social do grupo e suas singularidades
tanto locais, sociais como individuais: as frentes de trabalho no nordeste na época da
seca; o trabalho infantil e precário; O projeto Limpeza a Galope do Governo do Distrito
Federal - GDF, em que os catadores recolhiam lixos e entulhos em troca de cestas
básicas, projeto denominado de Limpeza a Galope; as experiências de uma cultura
nômade desde a infância e as suas relações com a extrema miséria; a chegada a
Brasília e todo o contexto da época; as dores de famílias constituídas ainda na infância
e os diversos papéis assumidos no decorrer da trajetória individual e social.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 703


A história do catador ia se articulando a história das cidades por onde ele
passava, trazia clareza nas descrições das imagens, apontava espaços geográficos e a
forma de sobrevivência daquelas pessoas ali. Iam desenhando o contexto e detalhando
a maneira pela qual as pessoas se comportavam em determinadas épocas e suas
contradições diante a realidade de suas famílias.
Os relatos biográficos dos processos migratórios vinham carregados de
expectativa e projetos. A cada mudança do espaço geográfico representava ali, um
novo sonho, a constituição de novas relações, conflitos e possibilidades de solidificar
utopias.
Quando se referiam a situações que de certo modo lhe causava dor, ou até um
determinado constrangimento, ali criavam uma nova estratégia para a situação, eram
definidos novos critérios e possibilidades, relacionados à como enfrentariam aquela
situação se ela ocorresse na atualidade. Era uma busca constante pela reflexão do
passado e uma projeção do futuro e do presente.
Ao refletir sobre o passado e o presente definiam o atual e traziam relatos da
constituição da Cooperativa, mesmo aqueles que trabalhavam de forma
independente. A grande diferença entre os dois relatos era a de que os pertencentes à
Cooperativa traziam em suas histórias a constituição dos seus fóruns representativos e
suas significações tanto individual como social.
As vidas iam se entrecruzando, grupos de catadores de outras localidades iam
sendo tragos para o diálogo, em especial seus conflitos, suas contribuições e seus
sofrimentos. Em determinados relatos ao se referirem a sua trajetória lembravam que
em determinado grupo de catadores aquilo ali também acontecia.
A trajetória de vida se constituía ali um espaço de encontro com o individuo,
seu espaço de reflexão, de busca por dar sentido a sua vida, mas também com a
trajetória do seu grupo, ou seja, sua própria identidade narrativa (RICOUER, 1978).
A figura a baixo busca demonstrar a construção do mapa biográfico como
espaço do diálogo entre os movimentos individuais e sociais dos catadores no decorrer
das suas trajetórias de vida, ou seja, sua própria constituição.

Figura 02154

154
A representação da construção do Mapa biográfico do sujeito social da pesquisa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 704
O mapa biográfico materializou assim, o movimento da trajetória e identificou
os caminhos percorridos, as relações construídas e apontou os momentos
significativos e também aqueles percursos que ainda poderiam ser construídos. Estes
pontos iam se encontrando com as demais trajetórias constituindo um cenário
complexo em que se visualizada os diálogos entre a vida do sujeito, a vida do grupo e
suas relações do cotidiano presente, do cotidiano passado e a projeção de um
determinado cotidiano futuro.

Discussão

A análise e a interpretação da trajetória de vida como processo metodológico e


epistemológico produz uma articulação entre o movimento individual do sujeito e a
construção da identidade do grupo ao qual pertence.
Ao narrar à trajetória de vida o catador foi elencando os tempos vividos
articulados aos momentos significativos que identificavam os tempos, os espaços e
suas relações tanto internas como externas com uma carga de aspectos simbólicos. O
sujeito social foi dando sentido a sua trajetória, como autor e interprete. Esta é uma
das possibilidades centrais de se trabalhar com as trajetórias de vida, o sujeito fala por
si e assim constitui uma história individual e social.
Neste sentido, o trabalho com o método biográfico na modalidade da trajetória
de vida exige uma atitude cuidadosa, no sentido de lidar com experiências existenciais,
são as próprias vidas que estão sendo relatadas, vidas sociais, individuais, locais,
simbólicas e dos grupos. Produzem dados que se acumulam tanto no sentido da
quantidade como na perspectiva do sentido e significado.
Desde o momento da coleta este cuidado é necessário, no sentido do exercício
de da escuta sensível no momento da entrevista, e esta escuta vai acompanhar
também a construção, a análise e a interpretação dos mapas biográficos, no aspecto
de articular e evidenciar as diversas vozes que compõem o sujeito social.
Assim, pode-se afirmar que ao vivenciar a complexidade do trabalho com a
trajetória de vida na perspectiva epistemológica e metodológica fez com que se
materializasse a compreensão da construção de um espaço reflexivo, no qual o vivido
é sentido, reinventado e refletido. Neste movimento a trajetória de vida passa a se
constituir também como um espaço de formação pelo sentido dado a reflexão da
própria vida no processo do relato, que pode possibilitar a sua reinvenção e no qual os
territórios são identificados e saberes são desvelados, constituindo-se assim a
identidade narrativa do referido grupo.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 705


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 706


Memórias de cantigas de roda: percurso teórico-metodológico na construção de
saberes e de fazeres de mulheres quilombolas

Cristiane Andrade Fernandes


UESC /UNEB/PPGEduC
crisuesc@gmail.com
Arlete Vieira da Silva
UESC/UNEB/PPGEduC
arletevs@gmail.com

A pesquisa (auto)biográfica em suas possibilidades teórico-metodológicas explicita o exercício da


memória como uma atividade de inventividade do sujeito que, no movimento de evocações de fatos,
situações e vivência traz à tona subjetividades que o formam em sua humanidade de sujeito. Este
trabalho se constitui no aparato das cantigas de roda que evocadas no percurso de desenvolvimento de
um projeto social com mulheres quilombolas tornou-se a fonte teórico-metodológica para que os
saberes e fazeres dessas mulheres fosse ressignificado no movimento da evocação e de socialização
dessas cantigas, assim como nossos entendimentos sobre a comunidade e suas especificidades
quilombolas foram ampliaram. Na forma de um projeto social, cujo objetivo principal estava na
promoção da troca de saberes e de experiências na comunidade quilombola, a utilização da
autobiografia, retratada nas memórias das cantigas de roda demonstrou que entre os saberes e fazeres
que atualmente cerceiam o cotidiano das mulheres quilombolas pode ser reconhecido nas memórias
quando repetem as mesmas cantigas para seus filhos e netos como forma de ensino e de manutenção
da cultura, reforçando dessa forma, a questões de pertencimento e identidades e patrimônios culturais.
Para tanto, o referido projeto articulou a temática da identidade cultural de mulheres quilombolas na
transmissão de saberes tradicionais entre as gerações e na presença das mulheres mais idosas da
comunidade, que sabiam retirar o barro, pilar o barro, amassar o barro e construir os utensílios, gerando
nesse saber geracional o fio condutor para os momentos de evocações das memórias trazidas nas
cantigas de roda.
Palavras-chave: Memórias; Cantigas de roda; (Auto)biografia.

Saberes geracionais e autobiografia: o lugar das cantigas de roda

Ao nos apropriarmos do termo identidade geracional, entendido como


perspectivas de saberes e fazeres perpetuados de geração a geração, queremos
resgatar os saberes que as cantigas de roda como instrumento de pertencimento de
uma respectiva geração se fazem presentes no convívio de idosos e de idosas –
mulheres quilombolas na comunidade rural quilombola da Lagoinha, município de
Nova Canaã, Ba.
A evocação das memórias através de cantigas de roda mostra a atualidade
deste patrimônio cultural e também o potencial da autobiografia ao se constituir como
o caminho para a consolidação desse patrimônio cultural.
Dessa forma, a autobiografia se insere no campo da investigação oral e escrita e
que, no caso das evocações das cantigas de roda, confirma a história oral como
possibilidade de adentramento no universo das produções que determinam as
identidades culturais de determinado grupo.
A memória como prática social e gênero literário (BOSI, 1994; LACERDA, 2000),
é marcada pelo discurso-verdade, evidenciado em fontes de estudos e pesquisas
autobiográficas que demarcam a vida nas subjetividades que lhe é original e concebida
em seus saberes geracionais. Neste trabalho é oportuno definir que nossos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 707


entendimentos acerca desses saberes, no movimento da pesquisa autobiográfica,
pode ser concebido como:

[...] vivências e histórias contadas em épocas distintas dentro da tradição


cotidiana da comunidade que se junta, entrecruza, marca, singulariza, fala
sem ser unicamente por palavras verbalizadas ou grafadas. É ainda uma
“pedra filosofal” negra que prefere falar também pelo silêncio, pelo que
dizem os símbolos, gestos, expressões faciais, dança, bandaias, cortejos
afrodescendentes, expressão dos corpos, estética negra, trançados de
cabelos, tambores, cultivo das plantas medicinais, formas de plantar, se
alimentar e cuidar da terra (VIDEIRA, 2204, p. 229).

Os saberes geracionais que se perpetuam através das cantigas de rodas e de


outras atividades articuladas com as mulheres quilombolas tem sido reveladores da
fertilidade das memórias, das biografias e das oralidades como campo de pesquisa, de
extensão e de ensino em propostas que tratam do resgate das identidades culturais e
de patrimônios materiais e imateriais.
O projeto social, aqui descrito, cujo objetivo foi a construção dos saberes e de
fazeres das mulheres quilombolas transcendeu à pesquisa e ao estudo de um objeto
específico ao se configurar em desdobramentos teórico-metodológicos que dão
suporte para propostas em diferentes campos de conhecimentos como a antropologia,
a sociologia e, especialmente, da história de nosso povo.
Este trabalho se constitui no aparato das cantigas de roda que evocadas no
percurso de desenvolvimento de um projeto social com mulheres quilombolas tornou-
se a fonte teórico-metodológica para que os saberes e fazeres dessas mulheres fossem
ressignificado no movimento da evocação e de socialização dessas cantigas, assim
como nos entendimentos sobre a comunidade e suas especificidades quilombolas
Na forma de um projeto social, cujo objetivo principal estava na promoção da
troca de saberes e de experiências na comunidade quilombola, a utilização da
abordagem autobiográfica, retratada nas memórias das cantigas de roda, demonstrou
que entre os saberes e os fazeres que atualmente cerceiam o cotidiano das mulheres
quilombolas pode ser reconhecido nas memórias quando repetem as mesmas cantigas
para seus filhos e netos como forma de ensino e de manutenção da cultura,
reforçando dessa forma, a questões de pertencimento e de identidades e de
patrimônios culturais.
A foto abaixo retrata um momento de fazer dos potes de barro e, as mulheres
em círculo participando desse momento de troca.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 708


Figura: 1 Comunidade Lagoinha: momento de oficina e cantiga de roda
(Fonte: Imagens registradas durante o Projeto – arquivo pessoal)

Para a cultura negra (no singular e no plural), o círculo, a roda, a


circularidade é fundamento, a exemplo das rodas de capoeira, de samba e
de outras manifestações culturais afro-brasileiras. Em roda, pressupõe-se
que os saberes circulam, que a é invocado e assim saberes compartilhados
podem constituir novos sentidos (SECAD. 2006, p.63)

Compreender este processo do saberes e dos fazeres da cantiga de roda é


antes de tudo valorizar o homem e seu modo de vida, de trabalho e de cultura em
práticas cotidianas, que devem ser dialogadas para a construção do sujeito
protagonista de sua história e de seu estar no mundo como afirma Paulo Freire (1986).
Boaventura (1995), afirma que a nova cidadania tanto se constitui na obrigação
vertical entre os cidadãos e o estado, como na obrigação política horizontal entre os
cidadãos. Para este autor, essa ação redefine os princípios da comunidade construindo
assim uma relação do coletivo de autonomia, de igualdade e de solidariedade em que
se propõe a emancipação. Estes valores pressupõem a caminhada pelo
desenvolvimento local e sustentável da comunidade da associação e dos sujeitos
inseridos nestes contextos.

Comunidade Remanescente Lagoinha: o projeto social com mulheres quilombolas

A comunidade Remanescente do Quilombo da Lagoinha está situada na zona


rural, distribuída entre fazendas, morros e montanhas incrustadas no alto da região do
distrito de Nova Canaã – BA. Nesta comunidade vivem cerca de 350 pessoas em
diversas casas distribuídas em um total de 86 famílias, em 300 hectares.
Para entendermos como se constitui as comunidades remanescentes de
quilombo hoje, recorremos ao passado para distinguir “Quilombo” de ontem e as
comunidades de quilombo de hoje. Ilka Boaventura Leite (2000, p. 348), afirma que “o
conselho ultramarino português de 1740, definiu quilombo como toda habitação de
negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida, ainda que não tenha
ranchos levantados nem se achem pilões neles”
O pesquisador Munanga (1995, p.58) relaciona o quilombo com a África e
denomina que o quilombo brasileiro “é sem dúvida, uma cópia do quilombo africano
reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela
implantação de outra estrutura na qual se encontravam todos os oprimidos”.
Hoje se observa nas comunidades remanescentes de quilombo a mesma
resistência dos quilombos de outrora, entretanto com outras especificidades. Através
da Constituição de 1988 em seu artigo 68 emerge a expressão “remanescente de
quilombos”, trazendo assim novamente ao debate para se refletir sobre a dívida que a
nação brasileira tem com os afro-brasileiros devido à escravização e à exclusão social,
econômica e cultural em que estes povos vivenciaram e ainda estão inseridos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 709


A partir da Constituição Federal promulgada em 1988, cujo artigo 68 das
Disposições Transitórias prevê o reconhecimento da propriedade das terras
dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”, o debate ganha o
cenário político nacional. Por trás de algumas evidências, pistas e provas,
surgem novos sujeitos, territórios, ações e políticas de reconhecimento
(LEITE.2000, p335.)

.
Retomando o artigo 68 da constituição federal (BRASIL, 1988), que ao constituir
aos remanescentes de quilombo o reconhecimento das propriedades definitivas com a
emissão de títulos não tem contemplado outros direitos sociais que estão além do
reconhecimento de suas propriedades, como o acesso à educação, à qualidade na
saúde, a habitação, ao emprego e geração de renda, ao lazer e principalmente do
respeito e da aceitação dos seus valores e identidades negras, aliado ao
desenvolvimento local sustentável, o que pode propiciar a permanência dos
quilombolas neste espaço rural em contraposição ao êxodo significativo para as
periferias das cidades.
Mesmo passado várias décadas de resistência e reivindicações os negros que
residem nas comunidades remanescentes de quilombo ainda vivenciam o processo de
exclusão social nas longínquas comunidades rurais.
Uma das autoras desse trabalho, Cristiane Andrade Fernandes, ao estar
inserida no grupo como coordenadora voluntária e teve a oportunidade de
experiênciar, através da acolhida de mulheres e adolescentes, a elaboração, a
construção e os (em) caminhamentos do projeto, definindo pelas participantes como
uma Ciranda da Vida.
Este projeto recebeu o apoio de vários parceiros entre eles, Fundo Elas155 ,após
ter desenvolvido algumas ações nesta comunidade, sentimos a necessidade de
promover algo relacionado à geração de renda, à sustentabilidade e à preservação do
patrimônio cultural deste grupo. Com o apoio do colaborador Ruiter Andrade Vieira e
Suzy Mary Vieira e Iraci Souza Andrade, elaboramos o projeto e encaminhamos ao
edital do Fundo Elas, que aprovou e financiou nossa proposta, na área de valorização e
de difusão de bens culturais, materiais e simbólicos.
Dentre os objetivos propostos no projeto destacamos a construção do espaço
para a confecção do artesanato de barro, a construção de fornos para a queima do
material, oficinas sobre identidade, racismo e discriminação, empreendedorismo e
geração de renda, e de transmissão de saberes tradicionais entre as gerações, com as
mulheres mais idosas da comunidade, que sabiam retirar, pilar e amassar o barro e
construir os utensílios, gerando então mais um saber a ser transmitido e construído
entre as gerações.
Nas palavras do pesquisador Magalhães (2007) trata-se de um saber- fazer que
ao ser identificado e construído demanda:

155
Fundo Elas – Fundo de Investimento Social (missão: Promover e fortalecer o protagonismo das
mulheres mobilizando e investindo recursos em suas iniciativas).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 710


[...] sensibilidade popular (valoração dos saberes populares) e cientifica
(valorização dos saberes sistematizados), a fim de manusear
sustentavelmente os princípios, os fundamentos, os objetivos, e as diretrizes
de uma estratégia educativa que requer atenção particular para instruir e
educar o homem local no meio ambiente imediato, para que ele
compreenda o homem global e o meio ambiente distante. (MAGALHAES,
2007, p.127).

Compreender este processo do saberes e fazeres da cantiga de roda é antes de


tudo valorizar o homem e seu modo de vida, de trabalho e de cultura e de práticas
cotidianas, que, como afirma Freire (1988) devem ser dialogadas para a construção do
sujeito protagonista de sua história e de seu estar no mundo.

Saberes geracionais e autobiografia: das cantigas de roda ao encontro da


comunidade

No percurso do projeto e na forma de oficinas, na construção de mutirões e de


demais fazeres do cotidiano da comunidade quilombola os saberes e fazeres foram-se
entrelaçando, mesmo que ainda pelo seu processo de exclusão social, não sejam
respeitados e incluídos como saberes relevantes dignos de cientificidade na academia.
Observando na imagem abaixo vemos que a circularidade faz parte da roda e do
fazer desta comunidade da Lagoinha, em que a história de antigas canções que esteve
presente nos momentos de infância, das labutas e das festas comemoradas na
comunidade. Nas falas das mais idosas da comunidade, as cantigas estavam presentes
nos casamentos e nas novenas, nos batizados e enquanto brincavam e ouviam suas
mães trabalhando na roça, lavando roupa no rio, fazendo seus utensílios de barro, e
nos momentos que embalavam seus filhos para dormir.

Figura: 2 Comunidade Lagoinha: momento da oficina cantiga de roda


(Fonte: Imagens registradas durante o Projeto – arquivo pessoal)

No encaminhamento das atividades do projeto foi constante a observação de


como se constitui no imaginário da comunidade o respeito e a valorização de cantigas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 711


como a de Dona Julia que traz nos versos saberes de outrora, que identificam os
amores de adolescência, ou a imagem do trabalho no cotidiano de suas vidas.

Oh! Maria, Oh Maria! O dia não amanheceu. Sem o galo não canta. O
galo cantou / o dia amanheceu. No meio dia de tanto amor. Eu não
sei quem é o meu (jogar versos) (O dia amanheceu. Dona Julia, 2011).

Seu Mané Nicolau Tirador de cipó. Eu também sei tirar, Pra fazer
caracol. Faz o nome do pai, nome do filho. E bota a mão nas cadeiras.
Pra fazer reboliço. (Mané Nicolau, Dona Ana,2011)

Durante as oficinas que as cantigas de roda se materializaram na circularidade


ancestral destas mulheres, que trouxeram para os mais jovens a suas cantigas
carregadas de memórias e de cultura que fazem parte de seus saberes – dentro, no
interior, de cada uma das mulheres mais velhas da Lagoinha. Para Carlos Rodrigues
Brandão este saber esta:

Dentro da cultura do povo há um saber: no fio da história que torna este


saber vivo e continuamente transmitido entre pessoas e grupos, há uma
educação. É a partir destas redes de trabalho popular que o educador
popular deve situar seu trabalho através da cultura. Ele não tem o direito de
invadir, como um coloniza-dor bem intencionado, estes domínios de
educação e saber da cultura do povo (BRANDÃO, 2004, p.97).

Segundo Dona Julia, as festas na comunidade da Lagoinha, eram muito


animadas com tambor, sanfona, pandeiro, samba bumba com as cantigas de roda, a
festa durava a noite inteira do casamento. Os utensílios domésticos eram artesanais,
as casas eram iluminadas através de candeias de azeite, tiradas da mamona, a
construção era de barro batido e rebuçado de palha coqueiro e às vezes cercada de
palha. Há nas troca de experiência entre os saberes e fazeres desta comunidade do
campo, interações e conhecimentos, nas suas memorias da infância, e dos momentos
em que partilhavam nas brincadeiras com outras meninas na sua infância, ou
observando nas cantigas, nos momentos do trabalho nas lavouras, ou nos momentos
de lavagem de roupas em que se podiam ouviam as cantigas de roda das mulheres que
se distraiam, durante a labuta do trabalho diário.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 712


Figura:3 Comunidade Lagoinha/ oficina transmissão de saberes – o trato com o barro
(Fonte: Imagens registradas durante o Projeto – arquivo pessoal)

Na comunidade percebemos como mostra a foto acima, que as mulheres


ensinavam para as meninas e adolescentes da comunidade da Lagoinha a fazer os
potes e as panelas e, enquanto isso cantando traziam à memória as narrativas de
ontem que constroem o hoje, resgatando dessa forma uma cultura esquecida no
tempo da modernidade.
Houve também nos momentos de construção do salão, como espaço para fazer
os utensílios, a observação de muita alegria, de solidariedade e do espírito de
coletividade, manifestado entre elas. Nestes momentos, eram trazidas as canções que
estavam na memória, com a de Dona Vitória e de Dona Júlia e que eram
(re)apresentada para as várias gerações que estavam ali presentes.

E balai do imã meu, eu não fico sem balai Nem balai fica sem eu.
(jogar os versos) ( Imã meu. Dona Vitória, 2011).

Papai cadê Chiquinha. Chiquinha foi passear. Esse passeio de


Chiquinha. Fez papai e mamãe chorar. Levanta a mão pra cima.
Ponha o lenço na cintura. Bate, bate cavaleiro. Cada um com sua
figura. (Cadê Chiquinha Dona Julia, 2011).

Figura:4 Comunidade Lagoinha/ oficina transmissão de saberes – o trato com o barro


(Fonte: Imagens registradas durante o Projeto – arquivo pessoal)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 713


Nesse contexto e, por acréscimo, podemos confirmar com Habermas (apud
Gomes (1999):

Os sujeitos capazes de linguagem e ação só se constituem como indivíduos


porque ao crescer como membros de uma particular comunidade de
linguagem se introduzem no mundo da vida intersubjetivamente
compartilhado. Nos processos comunicativos de formação se constituem e
mantém originariamente a identidade do indivíduo e do coletivo
(HABERMAS, 1990, p.151).

Exatamente e como afirma Habermas a comunidade da Lagoinha tem suas


intersubjetividades que estão representadas nos momentos do samba de bumba e em
demais cantigas de roda. São os saberes de gerações que ainda se concretizam nas
ladainhas e nos “ofícios” que elas oferecem no momento que antecede ao samba, que
se efetivam na cultura indenitária e no desenvolvimento local e tem-se concretizado a
partir do patrimônio material e imaterial da comunidade como observa - se na imagem
abaixo.

Figura 5: Comunidade Lagoinha/ Momento das cantigas de roda na comunidade dia da criança
(Fonte: Imagens registradas durante o Projeto – arquivo pessoal)

Durante a festa do dia das crianças as mulheres e adolescentes


cantaram para as crianças e foram momentos de narrativas e de memórias
evocadas que foram relembradas pelas mulheres mais idosas e conhecidas
pelas crianças, e também, cantadas com elas.

Eu mandei te chamar. Pra tu ser meu amor. Passa pra lá não encosta
– me Torna passar deixa ela vadiar (bis). (Vai vadiá. Dona Idalia,
2011)

Dona da casa me apareça. Eu vou embora antes que eu amanheça


Olho pra cima não vejo nada. Só vejo céu, oh! que noite serenada.
(jogar versos)(Noite serenada .Dona Vitória, 2011)

Eu só tenho uma camisa. Eu tirei minha camisa


Todo dia eu visto ela. Todo dia eu vou na missa. Todo dia eu vou com
ela. (jogar versos)( Vou com ela. Dona Cheiro, 2011)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 714
O Iaiá é hoje que a paia da cana voa .
Iaiá é hoje mesmo que ela tem que avuá (jogar versos)
(Paia avoa. Dona Julia, 2011)

Estes momentos, conforme argumenta Mutim (2007) há um grande


desafio acerca da articulação para a gestão compartilhada e os espaços de formação
na gestão do saber que são necessários tanto nos espaços formais ou não formais, e
que podem levar à implementação de uma sociedade sustentável na
contemporaneidade.
Nesta imagem abaixo nas cantigas citadas, observa – se que há uma outra
forma da cantiga acontecer com os versos jogados pelos homens da comunidade que
fazem parte do samba de bumba, outra cultura de oralidade que se manifesta no saber
da comunidade como patrimônio imaterial riquíssimo, pois se encontra em todas as
gerações de avós, dos pais, dos filhos e dos netos, que partilham não só palavras, mas
cantigas e também corporeidade e a cultura quilombola singular.

Figura: 6 Comunidade da Lagoinha: momento da oficina cantiga de roda


(Fonte: Imagens registradas durante o Projeto – arquivo pessoal)

Pássaro preto avoo. Oh iá iá Eu também quero avoar.


Oh! iá iá Anda ligeiro com a figura
Oh! iá iá. Eu também quero avoar (bis)
( Pássaro preto.Dona Julia, 2011).

Oh! Pavão dourado bateu asa e avoo.


Eu vou cantar pai.
Que eu aqui não tenho amor.
Xô pavão dourado (jogar versos)
(Oh pavão dourado) Dona Cheiro, 2011)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 715


Nestas cantigas de roda estão subjacentes a ideia do sujeito sociológico de Hall
(2011), haja vista que a relação da identidade das pessoas da comunidade com as
outras pessoas que mediam os valores sentidos e os símbolos da cultura dos mundos
que ele habita. A identidade que é formada na interação entre o eu e a sociedade, são
forjadas no diálogo e vão se modificando com as culturas “exteriores” e as outras
identidades que estão naquela sociedade.
Na comunidade da Lagoinha estas identidades se constituem, nos interiores e
exteriores, na relação com os de fora e os de dentro da comunidade. Para Hall (2011),
estas modificações e reconstruções das identidades vão se produzindo em sujeitos não
mais unificados, mas fragmentados, constituindo o que se tem definido como o sujeito
pós-moderno, pois não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente.
Historicamente é na sociedade que o sujeito assume diferentes identidades, em
diferentes momentos, na dinâmica da sociedade dos sistemas de significados e nas
representações culturais que se multiplicam e se identificam em cada um de nós
construindo então múltiplas identidade temporárias.
Mesmo sem a necessidade de conceituar, a partir da cientificidade, a
identidades para as mulheres e as meninas da Lagoinha, durante o projeto foi
proposto a compreensão e a valorização destas múltiplas identidades, negras,
quilombolas, de gênero e de pertencimento ao um grupo que se respeita e se admira -
caminhada inicial para o empoderamento de jovens e de meninas, que através de
suas, mães, tias, madrinhas e avós, sentem – se pertencentes a este grupo.

Figura 7: Painel confeccionado na oficina identidade(s)


(Fonte: Imagens registrada durante o Projeto – arquivo pessoal)

Segundo Berman (1986) a ‘modernidade’ pode ser denominada a partir das


experiências de tempo e de espaço, de si mesmo, dos outros e das possibilidades e
perigos da vida, no compartilhamento de homens e de mulheres. Para o referido autor
há uma dualidade constante na modernidade, no que concerne aos nossos saberes, o
que possuímos e o que somos. Apesar da ‘modernidade’ propiciar a união da espécie
humana ela nos anula geograficamente em todas as fronteiras, sejam raciais, de classe,
de religião, de nacionalidade e de ideologias.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 716
Neste aspecto perdemos nossas identidades individuais e coletivas, forjadas
nas relações de poder e que o capitalismo, na vida moderna intensificou – se nas
grandes descobertas, das ciências, da industrialização, da produção gerando também
um mercado capitalista mundial drasticamente flutuante.
Neste mundo quilombola e negro emerge então cantigas de um passado
geograficamente que não é reconhecido em seu entorno, em que as identidades estão
dispersas e sem reconhecimento. Construir este “lugar” de dentro de uma comunidade
tem sido um dos desafios da comunidade em relação à crianças e jovens da
comunidade e a cantiga de roda tem se constituído em uma narrativa que produz
saber, alegria e restitui elos geracionais tão necessários a esta nova geração.

O caminho da (auto)biografia se fez cantando

A metodologia utilizada neste projeto foi fundamentada a partir dos estudos e


na proposta de círculo de cultura de Paulo Freire (1996), e nas estratégias utilizadas
como as rodas de conversa e as oficinas em que as ações foram construídas através do
diálogo entre as mulheres, os adolescentes e as meninas. Nas oficinas de identidades
cada participante pode expor suas opiniões, sobre o tema exposto em forma de painel,
nos momentos de reuniões e de confecção das panelas e potes de barro e nos
mutirões para construção de um espaço para a confecção dos utensílios. Da mesma
forma, estão inerentes a esta metodologia a cultura específica trazida pelos povos
negros, conforme dispõe os pressupostos teórico-metodológicos propostos pela
Secretaria da Educação Continuada Alfabetização e Diversidade:

Para a cultura negra (no singular e no plural), o círculo, a roda, a


circularidade é fundamento, a exemplo das rodas de capoeira, de samba e
de outras manifestações culturais afro-brasileiras. Em roda, pressupõe-se
que os saberes circulam, que a é invocado e assim saberes compartilhados
podem constituir novos sentidos (SECAD. 2006, p.63)

Acrescente-se que nas estratégias propostas e vividas pelo grupo de mulheres


quilombolas esteve contemplada a abordagem experiencial que, com base na
autobiografia, demarca o trabalho com as histórias de vida como sendo pressupostos
para, no conhecimento de si, de sua cultura se caracterizar como instância de
formação.
Dessa forma, para Passeggi (2000) as narrativas alcançam um estatuto
formativo porque,

[...] são concebidas como processos de intervenções férteis que podem


potencializar a transformação dos sujeitos, visto que entrelaçam processos
de autoria e de construção identitários [...] é um ato, portanto, formativo,
no qual ‘dizer’ é ‘ser’ (PASSEGGI, (2000, p. 15),

Com possibilidades de reinvenção de si, construído aqui como uma direção que
possibilita a sobrevivência subjetiva através da arte, ou seja, no movimento revisitado
pelas mulheres quilombolas em trazer sua arte manifestada no grupo com as cantigas
é superação de suas subjetividades culturais desde o vivido em sua infância ao

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 717


reconstruí-la nos ensinamentos singulares naturalizados para as crianças e
adolescentes quilombolas.
É preciso destacar que, enquanto prática didático-pedagógico inserida em
trabalhos com a pesquisa e a extensão, buscamos também os pressupostos da
pesquisa etnográfica com base nos estudos de caso (Ludke & André, 1986), para
descrever os significados culturais do grupo. Dessa forma, a abordagem etnográfica foi
o pressuposto para a descrição dos saberes e das práticas culturais manifestadas nas
comunidades quilombolas.
O projeto social, portanto, percorreu um caminho metodológico com
estratégias onde os sujeitos envolvidos são todos participantes e esteve estruturado
nas conversas com os mais idosos e as mais idosas da comunidade. Ilka Boaventura
Leite (2000) ao se referir a um dos militantes (dos estudos sobre os quilombolas)
confirma a necessária construção cultural de um grupo a partir do contato e
envolvimento com este grupo

Abdias do Nascimento, um dos militantes pioneiros, [...] não deixa dúvida


quanto ao fato de que é o grupo, e não o indivíduo, que norteia a
identificação destes sujeitos do referido direito. O que viria a ser
contemplado nas ações seria então o modo de vida coletivo, a participação
de cada um no dia-a-dia da vida em comunidade. Não é a terra, portanto, o
elemento exclusivo que identificaria os sujeitos do direito, mas sim sua
condição de membro do grupo. (LEITE 2000, p. 344).

A temática do saber geracional manifestado no patrimônio cultural


manifestado nas cantigas e em outras manifestações culturais determinam a
identidade e o pertencimento do grupo. Esse pertencimento, caracterizado na
identidade do grupo traduz os saberes e fazeres do cotidiano.
Considerando a Caminhada: considerações da experiência

Participar deste projeto nos possibilitou diversas aprendizagens, entre elas o


entendimento e a troca de experiências entre os saberes e fazeres da comunidade
quilombola de Lagoinha, no município de Nova Canaã - BA.
Do campo de atuação do projeto, com suas especificidades e singularidades,
podemos perceber que a diferentes maneiras de interagir com os conhecimentos do
grupo, seja através das atividades no grupo, nas rodas de samba com as mulheres
artesãs na lembrança de sua infância e dos momentos em que partilhavam
brincadeiras com outras meninas no afazeres de suas mães, demarcam a identidade
cultural e os saberes desse grupo.
Sobre os saberes e a sustentabilidade na comunidade confirmamos que se dá através
do reconhecimento das identidades e do conhecimento dos espaços e do significado de
território para estes grupos.
Este conhecimento vai muito além do conceito e ou definição de Terra, enquanto
propriedade ou bem natural, mas na compreensão da cultura dos grupos, acolhendo sua
corporeidade e sua religiosidade, percebendo a arte, com sua musicalidade e suas diferentes
linguagens.
Dentre os resultados do projeto podemos citar o fortalecimento e a preservação do
patrimônio cultural e imaterial, o resgate da tradição da cultural e do artesanato.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 718


A visibilidade da comunidade quilombola conquistada para si e para seu entorno
possibilitou também a auto definição e o reconhecimento de suas potencialidades de ser
quilombola e a reinvenção de si, como mulheres formadoras e reconstrutoras de sua cultura,
no caso da arte das cantigas de roda.
Este pertencimento demonstra que os saberes e os fazeres em torno da
sustentabilidade, das possibilidades de geração de renda do grupo de mulheres - adolescentes
e meninas, é o manejo de uma semente que certamente trará mais força e motivação a esta
comunidade.

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Letras, 1994.
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 719


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 720


Memória social: contando e recontando histórias sobre Lampião

Geralda de Oliveira Santos Lima


UFS
geraldalima.ufs@gmail.com
Maristela Felix dos Santos
UFS
maristelaufs@yahoo.com.br

Na tradição oral, em que o jogo da memória se realiza com maior intensidade, os fatos culturais e/ou
históricos se manifestam de forma mais expressiva e direta do que na modalidade escrita, infiltrando-se,
assim, na consciência de dado grupo social e nela se reordenando ou se reelaborando no imaginário
social, isto é, no conjunto de discursos em que cada elemento atribui sentido aos demais. As práticas
orais de linguagem se constituem em locus privilegiado para a observação do fenômeno da construção
conjunta da memória por parte dos falantes. Isso se deve à natureza do processo de construção do texto
falado em que as atividades de verbalização e interação ocorrem simultaneamente. A atividade
discursiva aparece, portanto, como uma possibilidade de inserir a memória como fonte do trabalho de
investigação do linguista. À luz de uma articulação entre teorias sociais, históricas e linguísticas, esta
comunicação tem como proposta trazer alguns resultados e discursões sobre a pesquisa “Linguagem,
história e memória: processos de referenciação em depoimentos sobre Lampião” (Projeto de Iniciação
Científica CNPq/UFS-2012), realizada na região centro-oeste do Estado de Sergipe com moradores do
município de Frei Paulo, cujo objetivo era investigar como esses cidadãos, ainda, constroem e
reconstroem a memória discursiva (e/ou social) do referente Lampião, via o uso de processos de
referenciação. Para tanto, tomamos como aporte teórico os estudos de Halbwachs (1990), Sternberg
(2008), Van Dijk (2004), Mondada e Dubois (2003), entre outros.
Palavras-chave: Memória social; Lampião; Tradição oral.

Introdução

Na tradição oral, em que o jogo da memória se realiza com maior intensidade,


os fatos culturais e/ou históricos se manifestam de forma mais expressiva e direta do
que na modalidade escrita, infiltrando-se, assim, na consciência de dado grupo social e
nela se reordenando ou se reelaborando no imaginário social, isto é, no conjunto de
discursos em que cada elemento atribui sentido aos demais.
As práticas orais de linguagem se constituem em locus privilegiado para a
observação do fenômeno da construção conjunta da memória por parte dos falantes
de uma dada comunidade linguística. Isso se deve à natureza do processo de
construção do texto falado em que as atividades de verbalização e interação ocorrem
simultaneamente.
A atividade discursiva aparece, portanto, como uma possibilidade de inserir a
memória como fonte do trabalho de investigação do linguista. À luz de uma articulação
entre teorias sociais, históricas e linguísticas, este trabalho tem como proposta trazer
alguns resultados e discussões sobre a pesquisa “Linguagem, história e memória:
processos de referenciação em depoimentos sobre Lampião” (Projeto de Iniciação
Científica CNPq/UFS-2012) desenvolvida nas regiões do semiárido e do centro-oeste
do Estado de Sergipe com moradores dos municípios de Poço Redondo, Nossa Senhora
da Glória e de Frei Paulo,cujo objetivo era investigar o modo como esses cidadãos,por
meio da prática de contar e recontar histórias, recategorizam, na atualidade, a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 721


memória discursiva (e/ou social) do referente Lampião a partir do uso de processos de
referenciação (MONDADA; DUBOIS, 2003).
Para tanto, tomamos como aporte teórico os estudos de Halbwachs (1990),
Bergson (1999), Sternberg (2008), Van Dijk (2004), Koch e Cunha Lima (2005), Lima
(2008), entre outros.Tendo como hipóteseo fato de que as atividades de referenciação
desenvolvidas pelo sujeitoenunciador nas suas práticas sociais não só possibilita
areconstrução de imagens e/ou acontecimentos de todo um passado armazenado em
sua memória, mas também condensa uma multiplicidade de informações e de pontos
de vista sobre o rei do cangaço.
Na fundamentação teórica, trouxemos uma breve apresentação sobre embates
de memórias sociaisfocada na prática de recontar histórias na medida em que
recontarpressupõe a remissão a um texto, a uma situação, ou mesmo a um
acontecimento já existente, tendo como objeto de discurso (MONDADA; DUBOIS,
2003) o cangaceiro Lampião. Para isso, selecionamosalguns fragmentosde
textos/discursos156extraídos de histórias (re)contadas por pessoas que foram
entrevistadas para a realização da pesquisa. Fatos esses já cristalizados na memória
discursiva de homens, mulheres e crianças da região. Isto é, esses episódios se
encontram enraizados, armazenados na memória coletiva da comunidade, o que vai
ser evidenciado nas análises aqui desenvolvidas.
Analisamos, depois, algumas cadeias de expressões referenciais (sintagmas
nominais definidas e indefinidas), mostrando como esquemas coerentes de produção
e de interpretação dos fatos ocorrem no interior das histórias contadas pelos cidadãos
do sertão sergipano. A partir dessas histórias, eles projetam e realizam suas vidas.
Rememoram os acontecimentos passados, imagens míticas de entidades da nossa
história.

Breve apresentação de embates da memória social sobre o cangaço na região do


semiárido de sergipe

Na região do Baixo São Francisco, em Sergipe, encontra-se, entre outros, o


município de Poço Redando. Esta cidade, situada na região do semiárido sergipano,
tem sua trajetória sócio-histórica marcada por conta da intensa presença do bando de
Lampião nessa região. Vejamos como Costa (1994) relata a entrada do herói do
cangaço, pela primeira vez, nesse pequeno espaço geográfico.

O lugarzinho está adormecido. No primeiro raiar do dia, as mulheres estão


despertas, vão para o jacaré apanhar água. Não sabe aquela gente que o dia
19 será um dia histórico na vida de Poço Redondo e, por que não dizer de
Sergipe? Pois foi nesse dia que o chão sergipano viu pela primeira vez as
alpercatas do cangaço ferir a sua terra. [...] Com efeito, naquele dia 19 de
abril de 1928, a velha e pequena igreja, assentada no lado esquerdo das
poucas casas da pracinha, recebe o famigerado pernambucano, tornando
aquela data e aquele dia um acontecimento histórico da era cangaceira no
Estado de Sergipe (Costa, 1994, p.39).

156
Aqui tomamos o termo discurso como equivalente a texto. Daí o uso da expressão texto/discurso
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 722
Esses sertanejos de vida tranquila, em consonância com o autor, escondidos
nas distâncias do sertão sergipano, jamais poderiam imaginar que o rei do cangaço
estava, àquela época, a caminho de Sergipe e vindo, justamente, para as caatingas e
cerrados desse município. Da mesma forma, um dos entrevistados da nossa pesquisa,
ao se referir à chegada de Lampião nesse “lugarzinho”, reporta-se, nos mínimos
detalhes, aos acontecimentos ali vivenciados. Para ele, tudo está guardado,
cristalizado na memória dessa gente como se fosse ontem. Vejamos como se posiciona
diante de tais fatos:

1)Aqui no Poço [cidade de Poço Redondo], Lampião entrou em 1928 quando


tinha uma festinha de Nossa Senhora da Conceição. Ali bem no centro da
pracinha da Igreja Matriz. É o que conta ainda hoje o pessoal mais velho.
Essas pessoas não esquecem aqueles acontecimentos vividos aqui naquele
dia que marcou a história do Poço. Bem ali na pracinha tinha uma venda de
Teotônio de China e foi bem ali aonde ele chegou. O pessoal se assustou, aí,
Lampião desce do cavalo numa calma e diz: “eu vim na paz, eu vim só
dormir na casa de Teotônio de China”. Os mais velhos contam que aquela
paz e aquele sossego que existia aqui no Poço, nesse dia, desapareceram.

Para Halbwachs (1990), é, sobretudo, nas lembranças das pessoas mais idosas
que se pode verificar uma história social bem definida na medida em que elas já
vivenciaram e/ou experimentaram determinados tipos de acontecimentos com
características bem marcadas e conhecidas, enfim, a memória atual dessas pessoas
pode ser desenvolvida sobre um pano de fundo definido. Sendo assim, não é difícil
identificar, no comentário do pesquisado, a referência a uma memória coletiva (ou
social) que se estabelece em torno dos acontecimentos vivenciados com a chegada de
Lampião à cidade, como podemos ver neste fragmento: “essas pessoas não esquecem
aqueles acontecimentos vividos aqui naquele dia que marcou a história do Poço
[Redondo]”.
Mais que uma lembrança, esse evento torna Poço Redondo um local de
memória. Além disso, a reconstrução do fato histórico da primeira vez em que
Lampião entrou nessa cidade inclui não apenas a descrição do local (“a pracinha da
Igreja Matriz”), mas também detalha que exatamente naquele dia estava acontecendo
uma festa da padroeira da cidade. A rememoração desse cidadão inclui, também, uma
fala atribuída a Lampião: “eu vim na paz, eu vim só dormir na casa de Teotônio de
China”. O uso do discurso direto para formatar a fala de Lampião, a avaliação feita no
meio do depoimento (“Essas pessoas não esquecem aqueles acontecimentos vividos
aqui naquele dia que marcou a história do Poço”) e o uso do discurso indireto para
produzir um fechamento para este episódio (“Os mais velhos contam que aquela paz e
aquele sossego que existia aqui no Poço, nesse dia, desapareceram”) mostram que o
enunciador (CAVALCANTE, 2003) é um mediador de várias memórias ao articular
discursos de outrem que rememoram o passado para construir o seu próprio discurso
de rememoração de um dado objeto de discurso (MONDADA; DUBOIS, 2003) e dos
fatos e/ou acontecimentos.
De acordo com Halbwachs (1990), para que se atinja a realidade histórica é
preciso que o indivíduo saia de si mesmo e se coloque conforme o ponto de vista do
grupo social no qual está inserido, para que possa ver, com mais detalhe, como os
acontecimentos marcam uma data, marcam um momento. Isso por que penetrou num
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 723
círculo das preocupações e dos interesses coletivos. “A história não é todo o passado,
mas também não é tudo aquilo que resta do passado” (HALBWACHS, 1990, p. 67). Para
o sociólogo, ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se perpetua ou
se renova através do tempo, em que é possível encontrar um grande número dessas
histórias que podem ser contadas e recontadas, visto que recontar pressupõe a
remissão e/ou recategorização a um texto/discurso (uma situação, um evento) já
existente.
Como sabemos, o processo comunicativo demanda a ativação e a reativação de
conhecimentos adquiridos por meio de outros discursos e de outras situações
experimentadas. Acontecimentos anteriores (passados) potencializam o surgimento de
outros textos/discursos (presentes), de outros pontos de vista quer imediato quer mais
distante. A reconstrução desses fatos passados se opera na memória do indivíduo que
reconta como outros sujeitos fizeram e continuam fazendo parte de uma mesma
sociedade em cuja memória as lembranças se cristalizaram.
Para isso, não basta que outros indivíduos do grupo lhe tragam seus
depoimentos, contem suas histórias, é preciso, também, que sua memória não tenha
cessado de concordar com as memórias dos outros, e que haja bastante pontos de
contato entre uma e outras para que as lembranças recordadas possam ser
reconstituídas discursivamente sobre um fundamento comum. Podemos verificar isso
nas palavras de Halbwachs (1990, p. 78), ao postular que “a memória dos outros
contribui para reforçar e completar a nossa”. É preciso, então, que as lembranças dos
grupos sociais devem estar sempre em relação com os eventos que constituem o
passado do indivíduo.
O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as
imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. A
menor alteração do ambiente atinge a qualidade íntima da memória. Por essa via,
Halbwachs (1990) amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última à
esfera maior da tradição, que é a memória social (ou coletiva) de cada sociedade. Por
isso, ele postula que é preciso que se valorize o universo em que o indivíduo se desloca
fisicamente ou no pensamento. A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são
mais pessoais, explica-se, sobretudo, pelas mudanças que se produzem em nossas
relações com os diversos contextos (social, linguístico, cognitivo, cultural, histórico,
interacional), isto é, pelas transformações desses universos, de forma conjunta,
compartilhada.
Segundo a postulação desse sociólogo, há dois tipos de memórias: uma interior
e outra exterior, ou então, uma pessoal (autobiográfica) e outra social (histórica). A
memória pessoal se apoia na memória social, pois toda história da vida do homem faz
parte da história, em geral, da sociedade, embora a memória histórica, mesmo sendo
bem mais ampla que a pessoal, não representa o passado do indivíduo senão sob uma
forma resumida, encapsulada (CONTE, 2003) e esquemática, enquanto a memória de
vida do indivíduo apresenta um quadro bem mais contínuo e mais denso.
A título de ilustração, podemos ver agora parte de uma história, envolvendo
ações mais fortes da passagem dos cangaceiros nessas regiões que marcaram e, ainda,
marcam a memória do povo do sertão de Sergipe. Estamos nos referindo à batalha de
Maranduba em 1932. Marcas estas materializadas, cristalizadas na memória (e/ou
memórias) desses cidadãos, as quais podem ser confirmadas por meio deste recorte

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 724


extraído do texto reconstruído na entrevista concedida por um dos entrevistados.
Vejamos o que fala a respeito do confronte:

(2) Estão frente a frente os inimigos mortais: Nazarenos e Lampião. E é


Lampião quem dá o grito de guerra: “cuidado meninos, os macacos
cercaram a gente”! Para os homens da volante a vitória parecia certa, mas a
situação era inversa. Do outro lado, estava o herói, o titã, o guerreiro dos
sertões. Numa manobra inteligente e envolvente o rei do cangaço deixa os
atacantes sem saber como e por onde dirigir o combate [...] o domínio da
situação pertencia a Lampião. Nesse momento, não tinha nada comparado à
violência e aos estrondos do tiroteio. Os tiros ecoavam longe, muito longe,
parecia que o inferno tinha desabado e se transportado para aquela
esturricada terra. [...] a Batalha de Maranduba foi e continua sendo um dos
maiores pesadelos da história do povo do sertão sergipano. [...] Esse
combate nunca vai ser esquecido porque está gravado na história do
cangaço nordestino.

O enunciador, nesse trecho de seu depoimento, nomeia diretamente os dois


lados do conflito, “Nazarenos” e “Lampião” e, em seguida, traz uma fala de Lampião
por meio do discurso direto: “cuidado meninos, os macacos cercaram a gente!”. É
interessante pensar que as falas atribuídas a Lampião podem ser consideradas como
pontos de cristalização que contribuem para a estabilização das várias rememorações
de um mesmo acontecimento. O próprio episódio da Batalha de Maranduba é, de fato,
rememorado, recontado, em várias entrevistas de nosso corpus. Isso mostra que o
pesquisado retém na sua memória lembranças que ainda continuam vivas na
consciência de vários grupos, ou seja, são lembranças vivas tanto para o falante como
para a comunidade (Halbwachs, 1990). Tanto, em (1), como em (2), seus produtores
procuram reproduzir uma formulação detalhada do contexto quando falam,
respectivamente, “ali bem no centro da pracinha da Igreja Matriz” ou “nesse momento
não tinha nada comparado à violência e aos estrondos do tiroteio. Os tiros ecoavam
longe, muito longe... Parecia que o inferno tinha se transportado para aquela
esturricada terra”.
Esse processo de contextualização ou de discursivização também contribui para
a estabilização dos acontecimentos tanto na memória dos sujeitos que produzem as
formulações, como na memória social daqueles que formam o grupo. A maneira como
se deram as (re)construções discursivas dessas lembranças mostra por meio da
interpretação do sujeito enunciador(o que conta ou reconta) que os fatos históricos
continuam presentes não só na sua memória (do falante), mas também na memória
social (coletiva), na vida das pessoas comuns, ou na memória vivida em torno da
história do lugar. Por outro lado, também mostra que a memória é reativada, mantida,
e modificada (KOCH, 2004) sociocognitivamente. Por exemplo, esse sujeitoda pesquisa
relata e interpreta os fatos da Batalha de Maranduba, ao (re)criar a situação discursiva:
as entidades Nazarenos e Lampiãosão introduzidos, recategorizados e modificados
continuamente por meio de expressões nominais como “os macacos”, “os homens da
volante”, “os atacantes”, de um lado; e, de outro, “o herói”, “o titã”, “o guerreiro dos
sertões”, “ o rei do cangaço”.Portanto, o enunciador constrói e reconstrói, a partir de
sintagmas nominais coerentes, toda uma memória em torno da figura de Lampião.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 725


É, pois, na memória do indivíduo que se encontra essa riqueza cultural, em que
a história aparece intimamente ligada à memória social, na medida em que há uma
continuidade entre as recordações, os acontecimentos do passado e o presente da
vida da comunidade em relação a esse universo discursivo. Os trechos acima mostram
como o passado é recategorizado no presente por intermédio do uso da memória, em
suas múltiplas funções culturais, políticas, sociais e discursivas. Outra imagem que
ainda está viva na consciência do povo da região dosertão é a da morte de Lampião.
Esse episódio se encontra enraizado na memória da comunidade, o que pode ser
evidenciado nosfragmentos, abaixo, retirados de histórias vivenciadas já
materializadas, cristalizadas no discurso de homens, mulheres e crianças da região:

(3) No tempo de Lampião, eu era mocinha muito nova e não tinha medo
deles, porque Lampião chegava lá em casa e eles não judiavam ninguém.
Mais o povo [...] sabe como é! Conta muitos causos por aí de Lampião e sua
gente. Um dos causos é o da morte desse cangaceiro ali no Poço Redondo
na Grota do Angico onde ele morreu, não, onde a volante acabou com a vida
dele. Esse acontecimento foi triste porque mataram o homem bem aqui no
Estado de Sergipe. Isso não dar pra esquecer não, e todo ano no dia da
morte dele sempre tem alguma coisa lá no lugar e muita gente vai até daqui
de Glória porque o povo tem muito respeito por Lampião. Um cara muito
valente, muito corajoso [...]. Eu era menina naquele tempo mais eu me
recordo. Mas uma coisa é certa, só mataram ele porque ele foi traído num
emboscada [...]. Porque ele não pode se defender dos macacos, era assim
como ele chamava a polícia. E dessa vez a volante foi mais esperta.

(4) Lampião não se entregava a ninguém, o futuro dele era morrer. Ainda se
conta que teve policiais que botaram veneno na bebida dele. Esse mesmo
coronel mandou dizer a ele que não estava com raiva dele não e que ia
mandar um vinho pra ele, só que a garrafa não ficou bem tampada e que o
vinho era pra ele tomar e o bandido tomou não lhe deu dor de barriga, mas
deu pra dormir, então a volante pegou o chefe dos bandidos de surpresa lá
na Gruta do Angico. Ali no município do Poço, aí, então, acabou com ele e
seu bando. Foi uma desgraça, uma tragédia aquilo. Sabe moça, eu nem
gosto de me lembrar da maneira que ele morreu. Lampião era malvado, né?
Mais não precisava acabar com aqueles cangaceiros daquele jeito, não.

(5) Da morte de Lampião na Grota do Angico pelo capitão Luiz Bezerra que
comandava a volante que acabou com Lampião mais os outros que estavam
com ele lá, o povo do sertão ainda se lembrabeme eu acho que vai ser difícil
de se esquecer, sabe? Quem é que nunca ouviu falar de Lampião? Do modo
como acabaram com ele? Sempre tem gente interessado em saber dos
acontecimentos passados na Gruta de Angico naquela madrugada que
marcou muito essa região, ainda vem muita gente de fora de outros lugares
para conhecer o lugar onde acabaram com o homem mais famoso do
sertão, porque ele foi famoso mesmo. Muita gente sabe contar muitas
estórias de sua passagem por aqui, de alguns fatos verdadeiros que
aconteceram.

Ao se referir à tragédia de Angico, Costa (1994, p. 413), por ter convivido com a
realidade de cangaceiros e coiteiros, afirma que é “um privilégio ter nascido e vivido ao
lado de Angico; ter convivido com os que participaram da hora final de Lampião”. E
ainda acrescenta: “possuo uma privilegiada felicidade de conhecer todas as versões

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 726


dos fatos que se relacionam com o trágico dia”. Nesse comentário, o autor deixa claro
seu sentimento de nordestino, de ser sertanejo. Tangido por uma preocupação de
fidedignidade aos fatos contados, faz uma descrição pormenorizada, dentro do
contexto local, dos acontecimentos ali enraizados na memória coletiva dessa
comunidade. Percebe-se a sua preocupação em transmitir uma cultura que possui uma
riqueza peculiar. Faz também referências a madrugada de 28 de julho, uma quinta-
feira, na fazenda Angico, onde o grupo de Lampião foi atacado pela volante
comandada pelo então Tenente João Bezerra da Silva.
Dentro do quadro teórico-analítico desta investigação, verificamos com base
nas histórias recontadas pelos sujeitos pesquisados que para a maioria dos habitantes
das comunidades mais distantes, à época, sem acesso às informações escritas como as
de jornais, por exemplo, as notícias concernentes a Lampião e seu bando chegavam de
outra forma. Isto é, sabia-se das investidas desse cangaceiro por intermédio de
conversas nas feiras de finais de semana, nas festas, com vizinhos e desconhecidos e
no contato com soldados que tinham participado de diligências contra ele. Assim
sendo, as informações corriam de boca em boca, tanto na cidade, como nos povoados
e nas casas mais longínquas, escondidas nas regiões mais distantes, nas matas. Isso
pode ser confirmado no fragmento a seguir:

(6) Quando acabaram com a vida de Lampião, eu ainda não tinha nem
nascido. Mas eu conheço muita estória de sua vida dele [...]. Até essas
estórias ainda se conta hoje. Os homens quando ficam ali na pracinha
conversando lorota, aí lembram e falam daquele tempo de Lampião e de
suas estórias. A história do rei do cangaço o povo nunca esquece. Eles ainda
lembram porque essa história é contada por muita gente daqui ainda. O
assunto pelas aventuras da majestade do cangaço anda por aí afora. Eu era
ainda menina quando eu ouvia muita conversa de vizinhos com outras
pessoas nas feiras dos sábados em Glória, pois a gente ia sempre pra feira aí
ouvia o povo falando das diabruras de Lampião [...]. Meu pai contava que na
casa de minha avó, aonde muita gente que vinha da roça se hospedava no
sábado da feira lá na cidade, era um local aonde o povo se reunia e aí
conversava muito sobre as estórias das estripulias de Lampião e se reunia
para dar notícias do paradeiro dele. Então as notícias chegavam por
intermédio das pessoas. Eu me lembro de que meu pai e minha mãe sempre
falavam daqueles sábados na cidade, daquelas lembranças!

No período do cangaço, era comum após a refeição noturna na frente da casa


da fazenda todos se sentarem para contar e recontar histórias consideradas
“verdadeiras”. Geralmente contadas por pessoas mais idosas que tinham ouvido falar
ou até mesmo participado de algumas das façanhas narradas. Para Halbwachs (1990),
mesmo que o indivíduo não tenha assistido certos acontecimentos, a não ser pelos
jornais ou pelos depoimentos daqueles que deles participaram diretamente, ele se
lembra, pois esses acontecimentos ocupam um lugar na memória discursiva do grupo
social a que pertence. Como é o caso dessa informante que fala no seu depoimento:
“quando acabaram com a vida de Lampião, eu ainda não tinha nem nascido. Mas eu
conheço muita estória de sua vida”. Isso mostra que o enunciador mesmo não tendo
vivenciado ativamente à época de Lampião, sabe das historias, das suas andanças, das
suas ações. Para Koch e Cunha-Lima (2005), os conhecimentos representados na
memória de longo prazo da vida social podem ser socialmente partilhados pelos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 727
membros de uma determinada cultura como conhecimentos individuais, oriundos de
experiências ou vivências pessoais.

Memória social vista sob a perspectiva sociocogniva

Para Koch (2002), a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam, e
fora dos acontecimentos discursivos nos quais eles intervêm e mobilizam seus saberes
linguístico, social, cultural, histórico, cognitivo e interacional. No que concerne aos
estudos da cognição, há muito tempo, os pesquisadores dessa temática têm se
preocupado em distinguir o que é provisório e o que é permanente no funcionamento
da memória.
Nas primeiras teorias do processamento cognitivo do discurso, por exemplo,
era simplesmente assumido que os falantes da língua construíam uma representação
mental do texto na memória episódica. Contudo, “a representação textual, que explica
muito sobre a compreensão do discurso, não permitia tratar de uma dimensão tão
fundamental da coerência como a correferência, nem mais genericamente das
relações condicionais entre fatos” (VAN DIJK, 2004, p.160).
Em razão disso, e com o intuito de resolver não só essa questão, mas também
uma série de outros problemas, a teoria cognitiva da linguagem e da compreensão ou
produção do discurso introduz a noção de “modelo” mental, ou seja, “assume-se que
adicionalmente à representação mental do texto, os usuários da língua constroem um
modelo de situação sobre a qual o discurso versa” (VAN DIJK, 2004, p. 161). Isso
significa dizer que estudiosos da cognição sentiram a necessidade de essa teoria ser
abordada também em uma perspectiva social, bem como apresentar alguns dos
fenômenos que têm ocupado o centro dos estudos nessa perspectiva.
Para Van Dijk (2004), os modelos são parcialmente fabricados a partir do
conhecimento pessoal existente e, também,são o registro episódico de nossas
vivências partilhadas com outros membros da sociedade. Essas experiências podem
ser diretas ou imediatas, como na participação de eventos ou ações ou como na
interpretação do discurso em que são adquiridos conhecimentos sobre uma dada
situação a partir de prévios eventos sociais. Isso se confirma quando Koch (2002, p. 44)
afirma que “os modelos são, pois, estruturas complexas de conhecimento que
representam as experiências que vivenciamos em sociedade e que servem de base aos
processos conceituais”.
Em consonância com aquele autor, grande parte da memória social pode ser
recuperada a partir de modelos já construídos e/ou reconstruídos em outras ocasiões
sobre situações similares. Significa dizer que o processo de recordação envolve a
recuperação de ações do passado ativadas por ocasião de episódios, eventos, também,
constituídos anteriormente. Os modelos mentais desempenham papeis importante na
construção não só de memória social, mas também na reatualização de velhos
modelos. Como podemos ver esse diálogo a respeito dessa abordagem tem se tornado
possível, uma vez que têm surgido espaços de compreensão do processo cognitivo
como fenômenos capazes de oferecer modelos de interação e, ao mesmo tempo,
como fatos que acontecem na vida social do indivíduo ou da comunidade a que
pertence.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 728


A forma como o conhecimento de mundo é armazenado na mente do falante
recebe, além do nome memória, outras denominações diferentes por parte dos
pesquisadores que tomam a cognição humana como objeto de estudo: modelos,
esquemas, frames, cenários, scripts, modelos mentais, modelos episódicos ou de
situação, etc. Esses modelos permitem aos sujeitos fazer uma série de inferências no
curso do processamento textual, assim como em várias situações nas práticas sociais,
por isso, podem ser caracterizados como “estruturas complexas de conhecimento que
representam as experiências que vivenciamos em sociedade e servem de base aos
processos conceituais” (KOCH, 2003, p. 44). Modelos estes que representam o registro
episódico de experiências pessoais, partilhadas com outros membros da sociedade,
como na participação de eventos ou ações ou como na interpretação do discurso em
que são adquiridos conhecimentos sobre uma dada situação a partir de prévios
eventos sociais (Van Dijk, 2004).
É, portanto, na base desse conhecimento que está o reconhecimento do outro
como ente interacional de uma mesma comunidade. Assim sendo, “os eventos
linguísticos não são a reunião de vários atos individuais e independentes. São, ao
contrário, uma atividade que se faz com os outros, conjuntamente”(KOCH; CUNHA-
LIMA, 2005, p 283). Para isso, ativam-se modelos de situação, expectativas sobre
estados de coisas que podem guiar o enunciador nesses processos de contar e
recontar histórias, envolvendo o referente Lampião.
Os modelos de memória fornecem a base do conhecimento referencial de que
se necessita para dar conta de fenômenos referenciais. Isso mostra que os modelos
são relevantes tanto na compreensão como na produção ou reprodução de objetos de
discurso (referentes, entidades), uma vez que eles permitem aos falantes construir
interpretações específicas de um discurso qualquer, podendo, assim, haver
posicionamentos, isto é, opiniões diferentes, pois, o que para um é importante pode
não ser para outro(s). Na verdade, os seres humanos não só recordam, relembram o
modelo e reproduzem informações derivadas dele, mas também constroem modelos
dinâmicos em contínua mutação de contextos social, histórico, linguístico e cognitivo.
Depois de se ter atentado, de alguma forma, para a questão da memória social
vista à luz de perspectivas histórica, cognitiva esocial, achamos que seria pertinente, a
partir das abordagens vistas, mostrar algumas análises de fragmentos extraídos de
textos/discursos construídos pelos sujeitos, constituintes do corpus, desta pesquisa
que veiculamcerto saber sócio-histórico-cognitivo sobre acontecimentos vivenciados
e/ou experimentados àquela época do cangaço, e, que ainda se fazem presentes na
memória discursiva (e social) das comunidades pesquisadas. Fatos estes que retratam
a saga de Lampião. Esta rememoração mostra a capacidade que os sujeitos atuantes
têm na recategorização desses episódiosalusivos a esse cangaceiro. Reelaboração esta
que deve levar em consideração certas restrições impostas pelas condições culturais,
sociais, interacionais, históricas e, finalmente, pelas condições de processamento
decorrentes do uso das atividades da linguagem.
Levando em consideração a multiplicidade de contextos a qual imprime ao
referente uma mutabilidade constitutiva à medida que se constroem e se reconstroem
os significados do discurso, vamos ver como o objeto de discurso, a partir de pistas
contextuais, é reelaborado e/ou mantido no modelo textual. Isso significa dizer que a
recategorização desse referente se opera por meio de cadeias coesivas responsáveis

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 729


pela progressão referencial do texto. Cadeias essas que se formam, em torno do mito
Lampião. Atentemos para os textos seguintes:

(7) Eu acredito que Lampião foi um homem de justiça. Agora eu acredito que
quando começou essa vida dele de entrar no cangaço, Lampião teve seus
motivos. Ele era um jovem digno. Lampião eraum homem novo, um
rapazinho que negociava com redes e outras coisas, até em Sergipe ele
vendia. Quando ele chegava no Estado de Sergipe, ele se arranchava na
fazenda do pai de Chico Meneses. Um sujeito direitotava ali.

(8) [...] por ele ser muito esperto nos combates, recebeu mais tarde o nome
de Lampião, porque ele era realmente um reflexo, uma luz realmente [...].
Foi durante o tiroteio entre a polícia e os cangaceiros que foi observado o
fato de que o rifle de Virgulino de tanto atirar para dar saída para os
cangaceiros [...] parecia um candeeiro ou lampião aceso e, é por isso, que
resolveram dar a ele o apelido de Lampião [...] Para o povo do sertão,
Lampião era um espelho, era um estrategista, como Antônio Conselheiro da
guerra de Canudos. Para o povo sertanejo Lampião era e continua sendo um
grande guerrilheiro[...].

O exemplo (7) mostra como o referente (Lampião)vai sendo recategorizado


textualmente via o uso de expressões referenciais (sintagmas nominais) como “um
homem de justiça”, “um jovem digno”, “um homem novo”, “um rapazinho”, “um
sujeito direito” que retomam o termo genérico “Lampião”, estabelecendo uma relação
de correferencialidade, visto que essas formas linguísticas se referem ao mesmo
referente (Lampião). Ao optar pelos usos anafóricos do indefinido, o falante, durante o
processo de interação, não quis apenas atribuir predicações, mas, reativar seu
objetodediscurso. Dessa forma, o sujeito enunciador, em interação com outros
sujeitos, procede à ativação e reativação dessa entidade por intermédio da
mobilização desses sintagmas que funcionam como pontos discursivos de cristalização.
Formas que desempenham uma série de funções cognitivo-discursivas muito
relevantes na reelaboração da memória social (e discursiva) do cangaceiro.
A escolha das expressões,em itálico, no texto (8), ao construírem imagens
metafóricas (KOCH, 2002) para a recategorização do referente Lampião, realiza
avaliações importantes que permitem novos direcionamentos de argumentação, de
pontos de vista ou de interpretações. O emprego destas sequências referenciais: “um
reflexo”, “uma luz”, “um espelho”, “um estrategista”, ”um grande guerrilheiro”
evidencia a função anafórica que elas podem desempenhar na reconstrução
discursivo-cognitiva desse mito. O que significa dizer que tais expressões contribuem
decisivamente para a elaboração do sentido do enunciado, como já mencionado antes,
indicando pontos de vista e assinalando direções argumentativas. O que nos parece
uma carga avaliativa acerca desse personagem da nossa história e que se dá mais em
função do emprego não só dessa cadeia referencial (8),mas também mediante outras
cadeias. Portanto, o objeto de discurso é inferido pelo emprego de expressões com
base no contexto prévio e/ou no contexto de uso, de modo que sua presença na
memória discursiva do grupo social reforça a ideia de que a constituição da memória
social pode ser produzida discursivamente.
Nas análises feitas, aqui, mostramos como os entrevistados procedem à
recategorização do objeto-de-discurso por meio da mobilização ou utilização de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 730
expressões nominais com função anafórica. Expressões essas que funcionam como
pontos discursivos de cristalização e fazem remissão a toda uma memória social (do
cangaceiro Lampião) construída e reconstruída por esses sujeitos nas suas atividades
de linguagem, contando e recontando histórias, dando origem assim a várias
sequências referenciais responsáveis pala continuidade progressiva dessa
práticatextual/discursiva. Cadeias essas que são decisivas para a reconstrução, a
interpretação e a avaliação dos fatos presentes tanto na memória do falantecomo da
comunidade com a qual interage, de modo quese vão atribuindo ao referente, durante
as atividades de linguagem, caracteres e/ou predicações ancorados no universo
discursivo e em modelos cognitivos. Dessa forma, é por intermédio dessas sequências
coesivas que operam como que uma memória compartilhada, “publicamente”
alimentada (KOCH, 2003) pelo próprio discurso, que o sujeito constrói e reconstrói
discursivamente a figura mítica de Lampião.

Considerações finais

No nordeste brasileiro, esse processo de recontação ou rememoração dos fatos


vividos é um ato recorrente. No estado de Sergipe e, especificamente, na região do
sertão do baixo São Francisco, os acontecimentos ali referidos, por intermédio dos
depoimentos ou relatos das pessoas investigadas sobre o fenômeno Lampião, vêm
mantendo viva a chama da memória desse personagem mítico do sertão nordestino.
Cognominado “O Rei do Cangaço” que se manteve em uma posição de domínio
durante aproximadamente duas décadas. Domínio este que envolveu uma grande
parte do nordeste brasileiro: para alguns, um domínio de justiça e, para outros, um
reinado de terror.
São essas contradições de pontos de vista que possibilitam a construção e
reconstrução da memória socialdo mito Lampião via uso de processos referenciais. É,
portanto, esse cenário rural sertanejo que vai caracterizar e imortalizar a figura do
representante maior do fenômeno cangaço. A prova maior é a Grota de Angico, no
município de Poço Redondo, em Sergipe - cenário da última batalha de Lampião onde
foi executado junto a Maria Bonita e alguns cangaceiros - que é, até hoje, ponto
turístico na região.Assim, nos recantos brasileiros, é comum o indivíduo crescer
ouvindo histórias que impressionam pelo fato de serem narrativas semelhantes,
contadas por diferentes pessoas em universos diferentes.

Referências
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Tradução Paulo Neves – 2. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Expressões referenciais: uma proposta classificatória.
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CONTE,Maria-Elisabeth. Encapsulamento anafórico. In: CAVALCANTE, Mônica
Magalhães; RODRIGUES, Bernadete Biasi; CIULLA, Alena (Org.). Referenciação. São
Paulo: Contexto, 2003. p. 177- 190.
COSTA, Alcino Alves. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angicos. Aracaju:
Sociedade Editorial de Sergipe, 1994.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 731


KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
_____. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
______; CUNHA-LIMA, Maria Luiza. Do cognitivismo ao sociocognitivismo. In:
MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina.Introdução à linguística:
fundamentados epistemológicos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
LIMA, Geralda de Oliveira Santos. O Rei do Cangaço, O Governador do Sertão, O
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construção da memória discursiva sobre Lampião. Tese (Doutorado em Linguística) -
Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Campinas, 2008.
MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Daniele. Construção dos objetos e categorização: uma
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RODRIGUES, Bernadete Biasi; CIULLA, Alena (Org.). Referenciação. São Paulo:
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STERNBERG, Robert J. Psicologia Cognitiva. Tradução Roberto Caltado Costa. - 4. Ed –
Porto Alegre: Artmed, 2008.
VAN DIJK, Teun Adrianus. Cognição, discurso e interação. Organização e apresentação
de Ingedore G. Villaça Koch. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2004.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 732


Existem narrativas infantis?

Herli de Sousa Carvalho


UFRN
herlli@hotmail.com
Gilcilene Lélia Souza do Nascimento
UFRN
lelhinha@hotmail.com
Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi
UFRN
mariapasseggi@gmail.com

Apresentamos neste estudo resultado das reflexões feito no Grupo Interdisciplinar de Pesquisa,
Formação, Autobiografia e Representações – GRIFAR vinculado ao Programa de Pós-Graduação da UFRN
em torno das práticas de narrativas infantis como metodologia de pesquisa com crianças. Partimos das
seguintes questões norteadoras: O que é pesquisa com crianças? Existem narrativas infantis? Quais as
metodologias de pesquisas com crianças? Com isso, objetivamos delinear um estudo que nos possibilite
compreender o processo de construção de narrativas pelas crianças. Para tanto, a metodologia foi
constituída de um levantamento bibliográfico das produções com a temática proposta na tentativa de
verificar em que momentos a criança é ator/autora de sua história, de modo que esta configuração
propicie a reflexividade que faz de si, sua cultura e sua autoformação. Baseamos em Vygotsky (1989;
1991; 1999); Brockmeier e Harré (2003); Piaget (2005); Macedo e Sperb (2007); Cruz (2008); Passeggi
(2010); Bertaux (2010); Rabelo (2011); Passeggi e Rocha (2012); para fundamentar as ideias aqui
expostas. Concluímos que a pesquisa com crianças favorece o desenvolvimento de sua reflexividade que
se consubstanciam em narrativas infantis, que expressam significados criados sobre as experiências
vividas reais e sua imaginação. Neste sentido, a pesquisa com crianças a partir de narrativas infantis
possibilita a superação de obstáculos advindos de sua representação de mundo pela comunicação de
seu pensamento através da linguagem.
Palavras-chave: Narrativas infantis; Pesquisa autobiográfica; Memórias infantis;

Introdução

A pergunta que intitula esse texto se apresenta de forma provocativa com o


objetivo de despertar o interesse pelo estudo sobre o processo de construção de
narrativas pela criança e a utilização dessas narrativas como metodologia e fonte de
pesquisa. Partimos do pressuposto de que a criança possui potencialidades, a partir do
desenvolvimento da linguagem e do pensamento, para narrar fatos e acontecimentos,
assim como, refletir sobre eles. Ora, narrar é uma capacidade inerente ao ser humano
(PASSEGGI, 2010). Podemos falar no ato de narrar não somente como “capacidade” ou
“potencialidade” do humano, mas em necessidade de narrar, de contar histórias,
fatos, acontecimentos. É pela linguagem que o ser humano interage com o mundo,
com o outro e consigo mesmo; e é nessa interação proporcionada pela linguagem e
pelo pensamento que ele se constrói e se reconstrói, que objetiva suas subjetividades,
que objetiva o mundo.
O imaginário da criança é fértil para a contação de histórias. Ela cria histórias a
partir de seu mundo simbólico, das representações que constroem espontaneamente
sobre o mundo ao longo de seu desenvolvimento físico, psíquico e social. Essa
disposição é muito explorada nas crianças durante a aprendizagem da leitura e da
escrita na escola. Mas, em se tratando de narrativas infantis, relacionadas a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 733
experiências pessoais e utilizadas como fonte e metodologia de pesquisa, necessário
se faz pontuarmos o que há de especial no ato de narrar e na narrativa da criança em
pesquisas com crianças. Ressaltamos nosso entendimento de que as crianças
constituem um grupo de sujeitos ativos, que interagem e agem sobre o mundo. Nesse
processo, ela participa da construção de sua história, configurando-se como
ator/autora.
Esse trabalho discorrerá em torno de estudos realizados com a temática que
apresentamos acima na tentativa de verificar em que momentos a criança é
ator/autora de sua história, de modo que esta configuração propicie a reflexividade
que faz de si, sua cultura e sua autoformação, buscando responder as questões:
Existem narrativas infantis? O que é pesquisa com crianças? Quais as metodologias de
pesquisas com crianças? Nossa intenção é refletirmos sobre a relevância das narrativas
infantis para a Pesquisa (Auto)biográfica em Educação, explicitando o sentido
metodológico e ético de se fazer pesquisa com crianças.

A criança e sua predisposição para narrar

O desenvolvimento da habilidade da criança para narrar está relacionado ao


seu desenvolvimento físico, psíquico e cognitivo; além de sua inserção num contexto
social que lhe colocará frente a um mundo simbólico histórico e culturalmente
construído. Vygotsky (1999, 1991, 1989) se dedicou ao estudo do desenvolvimento dos
processos mentais superiores, responsáveis pela ação consciente e intencional do ser
humano em relação ao contexto sócio histórico e cultural no qual se insere. Essa
relação se constitui por meio de ferramentas mediadoras da relação do homem com o
mundo, que se distingui em duas: os instrumentos e os signos. Os instrumentos são os
que o homem utiliza para trabalhar, transformar e controlar a natureza. Os signos
atuam nas estruturas psicológicas superiores, auxiliam no controle das atividades
psicológicas, o que torna a ação intencional, planejada, consciente. Os signos
internalizados constituem-se em representações mentais que substituem os objetos
do mundo real.
A criança ao longo de seu desenvolvimento vai se apropriando desse sistema
simbólico, que lhe insere num campo de interação com o mundo e com o outro. O
nível de interação vai avançando em “superioridade” de acordo com o
desenvolvimento da linguagem e do pensamento. Assim, a criança desenvolve a
habilidade para falar e elaborar pensamentos, necessários para se relacionar com o
mundo material e simbólico.
Nessa perspectiva, entendemos que a criança vai se constituindo como ser
predisposto a contar e narrar, e até criar, histórias, principalmente, pela necessidade
de se comunicar e interagir com o mundo. Brockmeier e Harré (2003) traz a definição,
num sentido mais corrente e geral, para a narrativa como “[...] um conjunto de
estruturas linguísticas e psicológicas transmitidas cultural e historicamente,
delimitadas pelo nível de domínio de cada indivíduo e pela combinação de técnicas
sócio-comunicativas e habilidades linguísticas [...]”. Essa definição dialoga com a ideia
de que a comunicação é uma forma de narrativa que expressa os significados que
construímos e atribuímos à vida. No contexto da comunicação, a criança aprende a
narrar situações e experiências vividas por ela.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 734


As relações construídas entre a criança e o mundo, entre a criança e o adulto e
entre crianças propiciam o desenvolvimento das habilidades narrativas. A criança se
apropria, no contexto dessas relações, das práticas diárias e do sistema simbólico.
Nesse processo de apropriação ela se transforma e transforma aquilo que lhe foi
transmitido pelo outro social. De acordo com Macedo e Sperb (2007), “a condução
ativa dos outros sociais é complementada pela construção feita pela própria criança de
seu desenvolvimento”. Com isso, ressaltamos o pensamento em torno da criança
como ser ativo, que desenvolve seu pensamento (sua reflexividade) quando observa e
participa das atividades sociais mediadas por outra pessoa.
Macedo e Sperb (2007) destacam, citando Dunn (1988), que existe na criança
“[...] um entusiasmo natural por narrativas, que evidencia uma prontidão para explorar
e compreender o mundo social [...]”. Compreendendo dessa maneira, cabe explorar
essa predisposição da criança para narrar, pois, nos processos de conversação, as
crianças aprendem a falar sobre suas experiências pessoais. As quais diferenciam de
outras narrativas que aprendem na escola em contato com outros gêneros narrativos,
que exploram o mundo da fantasia. Na construção de narrativas sobre experiências
pessoais é importante que o adulto identifique o desejo da criança em falar e sobre o
que deseja falar, ajudando-a a prosseguir com a narrativa concordando, questionando,
respondendo a criança. Ou seja, a criança só precisa de estímulo e atenção para falar
de si e das coisas que estão no mundo, do seu jeito próprio.
A habilidade de narrar vai além de simplesmente contar histórias. Nela está
inerente à noção de temporalidade (passado, presente e futuro), a história de suas
vidas e a identidade própria de um grupo. A narrativa da criança é carregada das
representações construídas e transmitidas em seu meio social e cultural. É importante
atentarmos para esse aspecto, pois a criança expressa em suas narrativas àquilo que
vivencia, da forma como ela se apropria e percebe essas vivências. Por isso, é
importante considerar a fala da criança e criar espaços para a construção de suas
narrativas em casa e na sala de aula.
Salientamos, portanto, que enquanto ser social, histórico e cultural, e
considerando as predisposições cognitivas e mentais presentes no ser humano desde a
infância, a criança logo cedo apresenta as predisposições necessárias para se
comunicar e se expressar, seja por gestos ou palavras. Seu desenvolvimento físico e
mental, acompanhado da apropriação da cultura, possibilita o desenvolvimento da
noção de temporalidade e da reflexividade sobre as práticas cotidianas e sobre o
conjunto de símbolos que identificam seu grupo social.
Nesse sentido, as narrativas infantis existem e são potencialmente ricas de
elementos importantes para a pesquisa educacional. O grande desafio lançado está
relacionado aos procedimentos teóricos e metodológicos capazes de captar a fala da
criança, sem fugir dos padrões éticos que a pesquisa com crianças exige.

A pesquisa com crianças – reflexões teórico-metodológicas

O sentido de pesquisar com crianças está relacionado à forma como a pesquisa


é conduzida e aos fundamentos teóricos que lhe norteiam. Trata-se de desenvolver a
pesquisa com a participação da criança, não a respeito da criança. Primeiramente, é
preciso conceber a criança como ser ativo, de interação, que pensa e reflete sobre o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 735


mundo que a cerca. Portanto, não se deve tratá-la como ser passivo e imparcial, ou
“menor”, no sentido de não saber nada. A criança, ao contrário do que prega a ciência
positiva, não é uma “tábua rasa”. É carregada de experiências, desejos, receios,
expressivos do como sentem e vivenciam a vida. Vygotsky (1989) destaca o método
clínico teorizado por Piaget como instrumento valioso para estudar o pensamento
infantil, pois contempla os “todos estruturais complexos” desse pensamento em suas
transformações evolutivas.
As teorizações de Piaget (2005) são importantes para a afirmação de uma nova
concepção de criança, de que a criança não é um adulto em miniatura, presente no
pensamento educacional a partir do século XVIII e que passou a nortear os estudos em
educação. Dessa forma, reconhece a criança como um ser que possui peculiaridades
próprias, especialmente, nos aspectos estruturais que configuram seu pensamento.
Assim, propõe o método clínico como o mais pertinente para a pesquisa e o estudo do
pensamento da criança, que se constitui de testes, observação direta e escuta atenta e
mediada.

[...] o exame clínico participa da experiência no sentido de que o clínico


formula problemas, elabora hipóteses, promove variações nas condições
envolvidas e, por fim, controla cada uma de suas hipóteses no contato com
as reações provocadas pela conversa. Mas o exame clínico participa também
da observação direta, dado que o bom clínico se deixa dirigir ao mesmo
tempo em que dirige, levando em consideração todo o contexto mental em
vez de ser vítima de “erros sistemáticos”, como é muitas vezes o caso do
experimentador puro. (PIAGET, 2005, p. 14).

Piaget (2005) salienta que é necessário desenvolver várias vezes o método


clínico, pois ele só é aprendido com a prática, ressaltando que é sempre difícil não falar
demais quando interrogamos uma criança, assim como não sugestionar. Nesse
sentido, destaca como duas boas qualidades do pesquisador: “[...] saber observar, ou
seja, deixar a criança falar, não calar nada, não desviar nada; e, ao mesmo tempo,
saber buscar alguma coisa precisa, ter a cada momento alguma hipótese de trabalho
[...]”. Entendemos que o método clínico atende e contribui para a perspectiva da
pesquisa com crianças, quando valoriza o processo comunicativo, o pensamento e a
fala da criança, colocando-a no centro das investigações, como partícipe.
Nessa perspectiva, a metodologia da pesquisa com crianças se fundamenta no
pressuposto de que é necessário tomá-la como ser de direito, dando voz e vez a
criança na pesquisa. A valorização da fala da criança e de seus pensamentos, expressos
em narrativas (orais ou escritas) e de suas múltiplas linguagens, é o princípio
primordial da pesquisa com crianças. É preciso compreendê-la como ser de história e
de cultura, e a infância, segundo Cruz (2008), como uma construção social que se
transforma conforme o local, o tempo e a cultura. Essa é a concepção que está
subjacente às metodologias de pesquisas com crianças.
Isso passa pelo reconhecimento da criança como ator social ativo e criativo,
que não só internaliza conhecimentos e práticas construídos socialmente, mas,
participa dessa construção quando se apropria e se reinventa nesse processo. É um ser
de relações e de interação, e dessa maneira, é percebida, nas metodologias de
pesquisas com criança, como sujeito, não como objeto da pesquisa. É necessário

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 736


buscar formas de ouvir o que a criança tem a dizer, captando sua compreensão e
interpretação do seu meio social (CRUZ, 2008).
Ao compreendermos o sentido de pesquisar com crianças e a concepção de
criança enquanto sujeito de direito (que tem voz e vez), refletimos sobre as narrativas
de vida como fonte e procedimento metodológico na pesquisa com crianças. Bertaux
(2010) apresenta a narrativa de vida como um instrumento pertinente na pesquisa,
pois permite apreender as lógicas da ação em seu desenvolvimento biográfico, e como
as relações sociais se configuram em seu desenvolvimento histórico. O uso de
narrativas como instrumento de pesquisa permite a desconstrução e a reconstrução
de experiências dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Para quem narra, especialmente,
promove o empoderamento de si.
Por meio da narrativa de experiências pessoais da criança é possível
compreender e apreender a complexidade das histórias contadas. Isto é possível,
principalmente, em virtude do processo reflexivo que ela desencadeia. Conforme
Rabelo (2011), “no ato de relatar a reflexividade é ativada”. Há uma relação intrínseca
entre narrar e refletir, proporcionada pela apropriação da linguagem e pelo
desenvolvimento do pensamento. A interação dialógica com outras pessoas contribui
para o desenvolvimento dessas habilidades. A criança, em uma interação dialógica
com o adulto, e com outras crianças de seu contexto social, conta histórias que se
traduzem em narrativas e evidenciam suas perspectivas, interesses, percepções e sua
cultura infantil.
Dessa maneira, entendemos que a pesquisa com crianças que privilegia
metodologias interativas e dialógicas, e que promovem a construção de narrativas,
focalizam os significados que a criança atribui a fatos, a acontecimentos, a vida. É
importante atentar para não tirar a criança de seu ambiente natural, para que ela não
seja forçada a falar o que o pesquisador almeja, mas que seja espontânea em seus
enunciados. O pesquisador deverá se preocupar com o processo, com a condução e
mobilização do diálogo, deixando a criança livre para falar. De acordo com Cruz (2008),
a criança gosta da presença do adulto e de tê-los interessados em ouvi-las.
Pensamos como Passeggi e Rocha (2012) que a pesquisa (auto)biográfica traz
princípios teóricos e metodológicos pertinentes a pesquisa com crianças, quando abre
como possibilidades “[...] a da escuta sensível da criança, a do reconhecimento de sua
historicidade e de seu pertencimento social e, sobretudo, na hipótese de que o ato de
narrar as histórias por elas experienciadas é suscetível de promover o empoderamento
de si”. A perspectiva da pesquisa (auto)biográfica nos possibilita pensar com a criança,
uma vez que a narrativa se desdobra em processos reflexivos e de ressignificação das
experiências, tanto por quem narra quanto por quem escuta.
Os pressupostos explicitados aqui demonstram como é relevante a perspectiva
da pesquisa com criança para o estudo no campo educacional. A fala da criança
contribui para identificar problemas estruturais, organizacionais, de aprendizagem e
de políticas públicas em educação. Os princípios teórico-metodológicos da pesquisa
(auto)biográfica em educação se apresentam como pertinentes para os estudos e
pesquisas que se propõem a essa perspectiva. Epistemologicamente, avaliamos ser um
enlaçamento (pesquisa (auto)biográfica e pesquisa com crianças) contundente e
fundamentado para a pesquisa que traz a criança para o centro das investigações
como sujeitos ativos, críticos, criativos e reflexivos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 737


Pesquisa com crianças quilombolas – como as concebemos...

Acreditamos no potencial criador e criativo de crianças que ao longo da vida


tiveram suas capacidades inferiorizadas em qualquer dimensão de sua humanidade.
Escolhemos trabalhar com crianças quilombolas (descendentes de pessoas que foram
escravizadas no Brasil para a realização de trabalhos variados) que, portanto, trazem
um passado de estereótipos traduzidos em preconceitos do ponto de vista biológico e
ideológico, com profundas marcas sociais e culturais como legado nem sempre
positivado de experiências de respeito pelo humano que se constituem.
Estas crianças vivem em Comunidades Quilombolas no Rio Grande do Norte e
no Maranhão, tem saberes específicos de seus grupos de pertença, e falam de si com
muita espontaneidade, é o que temos constatado ao fazermos opções teórico-
metodológicas em realizar pesquisas com crianças. Deste modo, por elas serem
capazes de contar histórias de sua própria vida tão bem quanto qualquer outro ser
humano, é que nos debruçamos em ouvi-las sobre suas construções conceituais em
relação à escola como espaço onde passam grande parte de seu tempo diário em
busca do que chamam de “aprender ler, escrever, contar, brincar e aprender o que
não sabem”.
Consideramos imprescindível compreender em Piaget, segundo Ramozzi-
Chiarottino, (1988) que o conhecimento é o resultado da interação entre o organismo
e o meio, quando o termo conhecer tem o sentido de “organizar, estruturar e explicar,
porém, a partir do vivido (do experienciado)”. Para uma melhor compreensão a autora
ratifica que “conhecer não é somente explicar; e não somente viver: conhecer é algo
que se dá a partir da vivência (ou seja, da ação sobre o objeto do conhecimento) para
que este objeto seja imerso em um sistema de relações” (p. 3). É neste sentido, que
buscamos entender a criança enquanto um “sujeito epistêmico” que fala traduzindo
um corpo de significados aos seus falares e se constituindo um ser de relações em sua
ação no mundo.
Assim, concordamos com Alarcão (2005) de que as narrativas enquanto,

O acto de escrita é um encontro conosco e com o mundo que nos cerca.


Nele encetamos uma fala com o nosso íntimo e, se quisermos abrir-nos,
também com os outros. Implica reflexões a níveis de profundidade variados.
As narrativas revelam o modo como os seres humanos experienciam o
mundo [...] serão tanto mais ricas quanto mais elementos significativos se
registrarem para serem compreensíveis, é importante registrarem-se não
apenas os factos, mas também o contexto físico, social e emocional do
momento.

Neste viés buscamos nossa metodologia de pesquisa com crianças observar e


apreender em suas falas, registradas a partir de instrumentos que elegemos como
dispositivos para provocar o diálogo, os momentos de reflexividade que são evidentes
nas pausas (nem sempre valorizadas por nós, pesquisadoras) para que recuperem
saberes expressos na maioria das vezes com palavras monossílabas, todavia,
carregadas de significados internos e externos. São expressões de si, de seu mundo e
das percepções que construíram de si e dos outros. Traduzem a profundidade de que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 738


são capazes de externar. Revelam-se e revelam seu espaço social e cultural como
contextos.
As crianças que falam em nossas pesquisas revelam tantas nuances de nossos
objetos de investigação que nos permitem termos um leque de possibilidades de
categorizar os dados importantes que se mostram e se desnudam diante daquilo que
elegeremos como prioridades para uma análise conceitual e vivencial. Elas se revelam
com muita espontaneidade desde que encontrem eco em nós, pesquisadoras.
Corroboramos com Passeggi e Rocha (2010, p. 108) quando nos fazem refletir
que “cada história narrada por uma criança traduz múltiplas significações do contexto
em que ela vive e se constitui a partir de suas partes, que provocam no ouvinte a busca
de interpretações possíveis”. Mais adiante confirmam que:
Interpretar uma narrativa configura-se como um ato duplo, visto que,
depreende-se o enredo da história de que trata a narrativa a fim de extrair
significados de suas partes constituintes, para ao mesmo tempo relacioná-
los ao enredo. A significação é assim extraída da sucessão dos
acontecimentos que compõem a trama da história.

Percebemos cada vez mais a valoração que devemos dar a cada história
narrada, assim como, aguçar nossa sensibilidade em dimensionar os objetos e
significados que são dados pelas crianças que narram e por nós que acolhemos estas
narrativas infantis com uma concepção destas como protagonistas de suas histórias
carregadas de sentidos, e de vida.
Igualmente entendemos como Passeggi e Rocha (2010, p. 111) que:

Se adotarmos a perspectiva da pesquisa (auto)biográfica, devemos admitir


que as histórias narradas pelas crianças conduzem a processos reflexivos e
de reinvenção de si, não apenas para as crianças que contam suas
experiências, mas também para o pesquisador em formação, pela
reflexividade que se desencadeia tanto no ato de ouvir, quanto no ato de
narrar.

Assim, reafirmamos que ‘existem narrativas infantis’, sim, e estas ganham um


incomensurável espaço na comunidade científica ao entenderem que as crianças são
sujeitos de direitos de seus lugares de pertença, e legam experiências diárias como
‘fontes preciosas’ para nossas reflexões ao se dar valor ao que narram como dados de
pesquisas, e igualmente como respeito por suas vivências emocionais.
Desta forma, a metodologia de pesquisa com crianças buscam uma maneira de
valorizar cada fala da criança no sentido de que sejam respeitados os valores próprios
de sua idade e do ambiente em que vivem. Para tanto, tem aumentado o número de
pesquisadores que se interessam por linhas de pesquisas que propiciem metodologias
e procedimentos que coloquem em evidência as crianças que falam como porta vozes
de suas realidades sociais.
Conhecer a infância do ponto de vista legal e educacional tem proporcionado
mudanças de paradigmas relacionadas às pesquisas com crianças considerando os
aspectos éticos que envolvem pessoas que coordenam tal atividade.
Urge suscitar em estudantes que se encontram em processo de formação o
desejo de olharem com para um dos públicos de suas futuras práticas como seres que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 739


se colocam como aprendizes ativos, criativos e, portanto, construtores de linguagens
expressivas de seus desejos, de conhecedores de suas realidades, e colaboradores na
realização de projetos concretos que modifiquem os espaços onde vivem.
Neste intuito, estudantes na área da educação, terão a oportunidade de
conhecerem a infância e seus atores permeados de significados e legados de vivências
singulares entre o ser, está e o vir a ser. A ressignificação proposta para as práticas de
pesquisa com crianças se dará devido o conhecimento que se tem do mundo da
infância, e se puder ser pelo olhar e fala das próprias crianças, garante-se uma
autonomia de dar voz e vez ao protagonismo infantil. Dar o lugar que lhe é próprio,
inerente, está na constituição de sua natureza intrínseca em construção no coletivo
com seus pares.
É importante considerar que nem todas as crianças gostam de falar muito, o
que seguramente seria uma excelente possibilidade aos pesquisadores/as de terem
muitos dados para manipularem, mas, o jeito da criança ser e estar nas rodas de
conversas se esforçando para evidenciarem suas linguagens, denota um jeito de
participar que lhe é específico. Deste modo a criança se revela e revela saberes que
conseguiu construir a partir de movimentos que participam na constituição da cultura
pela oralidade, escrita, pelos gestos e, consequentemente pelas manifestações de suas
crenças em dados do ambiente em que estão inseridas.
Desta forma, a criança protagoniza histórias em que reincide com formas novas
de percepção de seus falares prenhes de suas experiências comunitárias. E, assim, se
fazem e se refazem no cotidiano que as envolvem em novas histórias de vida pessoal e
coletiva.
A convivência com pessoas que tem mais idade permite às crianças novas
aprendizagens na apreensão de novas realidades informacionais e virtuais que mais
parecem serem específicas de seu mundo, e interagem de forma tranquila com novas
tecnologias, o que as pessoas adultas contemplam com certa resistência, elas veem
como naturais em suas interações com as pessoas e com as coisas na geração de
prováveis novos conhecimentos.
Neste sentido, fazer pesquisas com crianças exige uma concepção de infância e
de crianças que permita fazer interações com os novos tempos que se apresentam
como espaços de aprendizagens, e que trazem às narrativas infantis modos de ser e
compreender estes sujeitos em seus direitos básicos: o uso de linguagens como
expressão de si.
Neste mesmo patamar de discussão, encontramos o texto de Macedo e Sperb
(2007) que fala sobre “o desenvolvimento da habilidade da criança para narrar
experiências pessoais: uma revisão da literatura” refletindo que “a participação dos
pais no desenvolvimento de habilidades cognitivas e comunicacionais dos filhos vem
sendo analisada, nos últimos quinze anos, especialmente a partir de uma perspectiva
sociointeracionista”, de modo que as autoras asseguram que “pesquisas recentes
indicam que as crianças aprendem a falar sobre suas memórias de eventos passados
de maneira organizada”, e ratificam que “alguns autores propõem que o
desenvolvimento das formas narrativas possibilita à criança criar um significado para
as experiências vividas” (p. 233). Elas conseguem compreender a si, aos outros e a
viverem com mais autonomia e segurança sua vida de criança, e consequentemente,
as outras fases da vida.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 740


Por fim, acreditamos que as crianças quilombolas vivenciam um processo de
protagonismo próprio do respeito que seus pares têm pelas construções pessoais que
realizam cada dia no coletivo de suas comunidades de pertença.

Considerações finais

Esse trabalho não esgota as discussões sobre narrativas infantis e seu uso como
fonte e metodologias de pesquisa com crianças. Apresentamos aqui apenas algumas
reflexões que vimos realizando em nosso Curso de Doutorado em Educação através do
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Autobiografia e Representações –
GRIFAR vinculado ao Programa de Pós-Graduação da UFRN em torno das práticas de
narrativas infantis como metodologia de pesquisa com crianças. Salientamos que o
interesse pela temática surge por desenvolvermos pesquisas com crianças quilombolas
no Estado do Rio Grande do Norte e no Maranhão, mais especificamente, e, por isso,
necessitarmos compreender como as narrativas vêm sendo utilizadas na pesquisa com
crianças, e conhecer as várias pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no campo
educacional com crianças.
Concluímos que a pesquisa com crianças favorece o desenvolvimento de sua
reflexividade que se consubstanciam em narrativas infantis, que expressam
significados criados sobre as experiências vividas reais e sua imaginação. Neste
sentido, a pesquisa com crianças a partir de narrativas infantis possibilita a superação
de obstáculos advindos de sua representação de mundo pela comunicação de seu
pensamento através da linguagem.
Avaliamos que esse trabalho trouxe muitas contribuições, principalmente, no
campo conceitual para nossas pesquisas de doutorado. Esperamos com ele também
contribuir com outros estudos que se situam nessa perspectiva de pesquisa. Ademais,
abrimos possibilidades para que outros/as pesquisadores/as deem continuidade a
outros vieses de pesquisa no campo educacional envolvendo outros locais, tempos e
espaços que evidenciem uma cartografia das pesquisas que trazem as crianças como
sujeitos de direitos.

Referências
ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. 4 ed. São Paulo:
Cortez, 2005.
BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal/RN: EDUFRN;
São Paulo: Paulus, 2010.
BROCKMEIER, Jens; HARRÉ, Rom. Narrativa: problemas e promessas de um paradigma
alternativo. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 16, n. 3, p. 525-535, 2003.
CRUZ, Silvia Helena Vieira (Org). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São
Paulo: Cortez, 2008.
MACEDO, Lídia; SPERB, Tania Mara. O desenvolvimento da habilidade narrativa da
criança para narrar experiências pessoais: uma revisão da literatura. Estudos de
Psicologia, 12(3), p. 233-241, 2007.
PASSEGGI, Maria da Conceição. Narrar é humano! Autobiografar é um processo
civilizatório. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; SILVA, Vivian Batista da (Orgs.).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 741


Invenções de vida, compreensão de itinerários e alternativas de formação. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2010, p. 103-130.
PIAGET, Jean. A representação do mundo na criança: com o concurso de onze
colaboradores. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2005.
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Zélia. Psicologia e epistemologia genética de Jean Piaget.
São Paulo: EPU, 1988.
ROCHA, Simone Maria da; PASSEGGI, Maria da Conceição. Inclusão escolar pela classe
hospitalar: o que nos contam as crianças sobre suas experiências educativas no
hospital. In: SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGGI, Maria da Conceição; VICENTINI,
Paula Perin. (Orgs.). Pesquisa (Auto)Biográfica: trajetórias de formação e
profissionalização. Curitiba, PR: CRV, 2013.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
processos psicológicos superiores. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 742


Leituras literárias memorialísticas: em cena as escritoras alagoinhenses Maria Feijó,
Joanita Santos e Luzia Senna

Maria José de Oliveira Santos


UNEB/Campus II
marmano@oi.com.br

Com as transformações socioculturais as mulheres foram abrindo caminhos e ocupando espaços. Na


década de 60 (século XX) há crescente aumento de escritoras que problematizaram a liberdade
individual e /ou coletiva e é nesse contexto de efervescência que elas se expressaram não apenas
através de grupos de protestos, mas por meio de publicações, sobretudo em periódicos desnovelando
sentimentos configuradores de um novo tempo. Logo, o engenho literário possibilita trazer à tona
informações de épocas passadas daí a pertinência dos estudos memorialísticos, sobretudo os realizados
pelas mulheres face sua condição histórica. Crônicas, poemas e romances possibilitam rememorar
cenários e esta forma de (re) lembrar é recorrente na historiografia literária nacional. Através da
Literatura as escritoras transmitem seus pensamentos e anseios, utilizando a escrita como forma de
difundir e propagar ideias e imagens, que funcionam como guias que ajudam a perceber as diferenças
do mundo cotidiano. A memória empurra ao passado configurando uma viagem que traz à tona os
encadeamentos históricos de uma vida. Quem narra histórias (re) lembra, busca explicações e se integra
aos acontecimentos edificadores da vida. Narrar a própria história implica tornar familiares sentimentos
que se confrontam e se interligam com as experiências, quer no sentido prazeroso quer no que
transmite indignação e sofrimento. As produções literárias de Maria Feijo, Joanita Santos e Luzia Senna
sugerem imagens que rememoram, melancólica e saudosamente, a Alagoinhas do Século XX, trazendo
cenas da sociedade da época em meio a ruas, rios e praças que se entrelaçam com as pessoas e os
acontecimentos da cidade.
Palavras-chave: Leituras literárias memorialísticas. Narrativas de si. Inquietação.

Estudos memorialísticos – auto(biográficos) e narrativas de si entram em cena

É interessante, neste início de texto, destacar a diferença de olhar, atualmente,


para as produções literárias de mulheres, ou seja, o antes e o depois dos estudos
culturais e sua ramificação em estudo de gênero e narrativas memorialísticos. Antes
desse acontecimento lia os textos escritos por mulheres sem identificar situações e
detalhes determinantes para a interpretação desses textos nem sempre aceitos por
causa da origem de escrita.
Para que tomasse conhecimento desse importante aspecto, que “faz a
diferença” fez-se necessário que relesse textos literários apoiada em discussões
teóricas que discutem o assunto. Antes desse movimento revolucionário a mulher não
era dona de si, não tinha direito ao uso da palavra. Melhor, não tinha direito ao uso da
palavra a fim de manifestar seus sentimentos, ideias, preocupações, alegrias, tristezas,
conflitos, enfim tudo que era permitido apenas ao homem.
Com as transformações socioculturais as mulheres foram abrindo caminhos e
ocupando espaços. Na década de 60 (século XX) há crescente aumento de escritoras
que problematizaram a liberdade individual e /ou coletiva e é nesse contexto de
efervescência que elas se expressaram não apenas através de grupos de protestos,
mas por meio de publicações, sobretudo em periódicos desnovelando sentimentos
configuradores de um novo tempo. Logo, o engenho literário possibilita trazer à tona
informações de épocas passadas daí a pertinência dos estudos memorialísticos,
sobretudo os realizados pelas mulheres face sua condição histórica. Crônicas, poemas
e romances possibilitam rememorar cenários e esta forma de (re) lembrar é recorrente
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 743
na historiografia literária nacional. Através da Literatura as escritoras transmitem seus
pensamentos e anseios, utilizando a escrita como forma de difundir e propagar ideias e
imagens, que funcionam como guias que ajudam a perceber as diferenças do mundo
cotidiano. A memória empurra ao passado configurando uma viagem que traz à tona
os encadeamentos históricos de uma vida. Quem narra histórias relembra, busca
explicações e se integra aos acontecimentos edificadores da vida. Narrar a própria
história implica tornar familiares sentimentos que se confrontam e se interligam com
as experiências, quer no sentido prazeroso quer no que transmite indignação e
sofrimento. As produções literárias de Maria Feijo, Luzia Senna e Joanita Santos
sugerem imagens que rememoram, melancólica e saudosamente, a Alagoinhas do
Século XX, trazendo cenas da sociedade da época em meio a ruas, rios e praças que se
entrelaçam com as pessoas e os acontecimentos da cidade.
Para Norma Telles (2008) o século XIX, no mundo eurocêntrico, foi marcado por
acontecimentos, perdurando o poder branco, masculino, letrado e cristão. Porém, não
se pode esquecer que foi sombrio para a classe trabalhadora europeia, as mulheres e
as (os) colonizadas (os). Porém, nesse século surgiram os movimentos sociais, o
socialismo, o feminismo, o sufrágio, enfim uma nova mulher nasce. Esse século é
também o momento da literatura romântica coincidindo com a ascensão da burguesia.
Enquanto os textos literários anteriores manifestavam a coletividade no texto
romântico o lirismo orientava-se pelo individualismo, as tramas familiares cotidianas
são as preferidas. Nessa nova configuração a mulher passou a ser a ajudante do
homem, educadora dos filhos, o anjo do lar, configurando-se o discurso sobre a
“natureza feminina”. Mesmo nessa situação de inferioridade a mulher começa a
escrever e publicar na Europa e nas Américas, ultrapassando as dificuldades a ideia
que foi formada apenas para a casa e as lições de catecismo.
Nesse século, no Brasil, modificações lentas aconteceram, mas não foram
suficientes para abalar as estruturas que lutava para igualar-se às transformações do
mundo eurocêntrico. Em Salvador e no Rio de Janeiro a base era a França. Com a vinda
da família real novo hábito se impôs, o público leitor amplia-se e começa a ler
romances e folhetins estrangeiros. Mas, a produção da mulher brasileira ainda não se
fez presente de modo explícito, embora pesquisas posteriores localizassem seus
escritos espalhados em periódicos. Nísia Floresta é um exemplo a ser lembrado dentre
outros.
A conquista da escrita para as mulheres brasileiras foi longa e difícil. E essas
lembranças e recordações podem ser identificadas nos textos perpassados e
entrelaçados por episódios que memorizam infância, juventude, famílias, cidades, ruas
e outros. Em Alagoinhas três escritoras, através de suas produções literárias
permitiram-me identificar cenários alagoinhenses nas suas escritas de si, pois ao
tempo que ficcionalizam sugeriam fatos interessantes, instigantes e intrigantes da
cidade.

Narrativas memorialísticas deslindam cenários alagoinhenses

O alecrim do tabuleiro de maria feijó

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 744


Maria Feijó1, em Alecrim do tabuleiro (escrito entre 1970, 1971 e 1972 e
publicado no Rio de Janeiro – 1972), constituído por trinta crônicas, descortina
Alagoinhas do começo do século XX, ressaltando conflitos e prazeres em meio a
descrições de ruas, praças, rios e pessoas. A leitura das crônicas permite adentrar em
cenários lembrados pela recepção leitora contemporânea ao período – e a atual – que,
na maioria das vezes, desconhece acontecimentos passados. O que percebo na escrita
de Maria Feijó são inquietações pessoais de uma professora primária que não se
conforma com a real situação do Magistério.
A escritora inicia o livro explicando a razão da escrita de onde imagino trechos
sugestivos de suas inquietações:

Se a cada um de nós fosse permitido o direito de fotografar a vida nas suas


mais ditosas etapas e colecionarmos num grande álbum como painéis do
tempo para, nos momentos de necessária meditação nele nos fixarmos em
gostoso retrospecto tal uma fuga aos dias agitados do presente, de buscas
e procuras incansáveis, que bom seria!

As crônicas que se seguem bem, poderiam chamar-se de... mosaicos de um


tempo que passou, estórias em quadrinhos, ou melhor, estórias em
quadros grandes e médios e até REMINISCÊNCIAS, pois grafadas no papel
da maneira que as vi e senti, tão unas e reais como uma colcha de retalhos.

Nas duas citações é perceptível a necessidade da escritora em reter um tempo


(álbum do tempo) como painéis (mosaicos de um tempo que passou) para que
futuramente pudesse meditar comparando-os aos agitados momentos presentes. As
reminiscências podem manifestar as ansiedades de uma mulher que vê na escrita a
possibilidade de uma realidade melhor para a cidade.
A memória de Maria Feijó volta-se, com frequência, as ruas por onde passou e
morou enfatizando as preferências, necessidades e moradoras/es. A crônica “Os
caprichos de uma rua” (1972, p. 17) presta homenagem a Rua do Catu, rebatizada
como Conselheiro Junqueira, pois “Fala de perto às minhas memórias e cala profundo
às minhas evocações, porque quando muito profundo não me calasse, é personagem
do meu romance, do romance que a vida me fez escrever e, uma grande parte da vida

1
Maria Feijó de Souza Neves nasceu em 1918 (Alagoinhas) e faleceu a 04 de junho de 2001 (Rio de
Janeiro), mas seus restos mortais se encontram sepultados em Alagoinhas. Sua posição social não
impediu que passasse pelos conflitos das mulheres: morando parte da juventude em confortável sítio
afastado do centro sua adolescência foi marcada pelo controle da mãe orientada pelo pai. “Em Aleluia,
Alagoinhas!” (1972, p. 89-93) sugere sua realização profissional: em 1949 realiza o Curso Intensivo de
Biblioteconomia para Professoras Primárias (Salvador) para cuidar da Biblioteca Escolar Rui Barbosa
instalada no prédio da Escola Brazilino Viegas. Ressalta transformações locais, citando duas ações
educativas na cidade: Centro Integrado de Educação e o projeto da Biblioteca Pública localizada na
Praça Rui Barbosa. No campo da educação influenciou a juventude quando as jovens saíam apenas para
a igreja e quermesses em campainha das famílias e suas iniciativas provocaram insatisfação das
mulheres, tornando-se a primeira mulher da cidade a comandar um programa de rádio (1950), além de
ser editora de um jornal masculino na década de 30. Escreveu em periódicos espalhados na Bahia e no
Brasil e o resultado de seu trabalho rendeu-lhe menções e títulos. Publicou mais de vinte livros
destacando-se: Bahia de todos os sonhos (livro de estreia em 1966), O pensionato, Paraíso das moças,
Alecrim do tabuleiro, Pelos caminhos da vida de uma professora primária, Perfil da Bahia, Velejando,
Panorama de Alagoinhas, Minha doce Alagoinhas, dentre outros.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 745
nela vivi” (1972, p. 17). Ao longo da crônica descreve os prazeres de conviver com o rio
Catu que “[...] quando ‘cismava’ de engordar suas águas, espalhando-se por toda a
largura da rua, fazendo subi-las, barrentas e lodosas, até passarem uma velha ponte
existente...” Mas, ao lado desse lado que considera negativo aponta como ponto
positivo “[...] o silêncio” (1972, p. 19). A Rua do Catu do período a que Maria Feijó se
refere já não se encontra mais localizada afastada do centro da cidade, antes “[...] rua
pacata, distante, suburbana, simples, arenosa, lamacenta, pobre, esquecida pelo resto
da população da Cidade” (1972, p. 20). Ao final da crônica sugere Rua do Catu como
uma mulher:

[...] você queria coisa melhor, vestido mais caro, mais em vigor, mais na
moda. E veio. E teve. E você ganhou seu asfalto. Satisfez os seus caprichos,
que não deixam de ser... caprichos de mulher [...] de uma mocinha que se
fez mulher no longo de seu vestido, no seu vestido de baile, de debutante,
bem feminina é sua história... (1972, p. 21).

“Psicologia de duas ruas – A do Jacaré e a Tupy Caldas” – 1972 p. 45 – marca os


períodos vividos pela escritora nesses locais, ressaltando que a Rua do Catu foi a
última onde residiu, seguindo-se pela Rua do Jacaré (atual Visconde do Rio Branco) e
posteriormente Caminho do Rio ou Tupy Caldas, justificando a mudança de nome
porque Caminho do Rio é sem estética. Não esquece Santa Terezinha localizada para o
lado da rodagem velha rumo ao Riacho da Guia, Inhambupe, etc. Descreve a Rua do
Jacaré como velha e feia e quando chovia “[...] os buracos proliferavam, ‘enfeitando-a’
e as enxurradas barrentas (para nossa alegria infantil) nela achavam campo, descendo
grossas no leito construído de barro e areia” [...] “[...] um primitivismo sem limites

nada possuía de atrativo, nem digno de nota”. A Rua Tupy Caldas, ao contrário, de
nome pomposo,
[...] desempenha grande, importante papel na minha vida: foi nela, num
sítio muito querido e memorável, em que nasci. De gratas recordações,
pois lá vivi os melhores tempos da vida – toda a infância e um pouco de
adolescência –, junto a meus entes queridos, num mundo adorável só de
doçuras feito, longe da malquerença do mundo dos outros... dos
GRANDES. (1972, p. 45).

Pela convivência mais demorada nessas ruas ressalta aspectos interessantes


das duas no contexto das relações sócio-econômicas:
As duas quase se confundiam na insignificância que as revestia, sendo a
TUPY-CALDAS muito pior, não somente pelo desconhecimento por parte
dos habitantes do ‘outro lado da cidade’, como, e muito mais, pela falta
total de conforto, mínimo que fosse, vinda do Poder Executivo local, para
os moradores humílimos que nela habitavam em todo o meu tempo de
residência ali. Para a do JACARÉ, pessoas pobres, operários da Estrada de
Ferro, pedreiros, alfaiates, fogueteiros [...] costureiras de segunda
categoria, etc. formavam sua população humilde, modesta, sem projeção
nenhuma no âmbito citadino.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 746


A escrita critica o poder público municipal de não lhes dá a devida atenção, a
primeira pela localização (do outro lado da cidade) e a segunda pela população que
habitava (pessoas pobres). A crônica também apresenta uma feição recente das ruas: a
Rua do Jacaré foi calçada de paralelepípedo, enfeitada com canteiros e bonitas
residências. A Tupy Caldas ainda conserva laivos de provinciana, porém não mais cheia
de velame, desabitada e suburbana como quando a conheceu e desabafa:
(Se eu um dia fosse PREFEITA de Alagoinhas, garanto que daria uma roupa
nova e bonita a essa rua. Ela bem que merece. Tem esperado tanto... E com
que paciência!). [...] Para mim, sempre valeu até mais que ouro, se existir o
quê, pois foi lá que aprendi a viver a vida, engatinhei os primeiros passos,
usufrui do mundo, suas vantagens, enfim, onde fui feliz em intensidade e
amei os momentos mais doces e ternos que deveriam ter na vida todas as
criaturas: a infância e o amanhecer da adolescência... (1972, p. 47).

Suas relações afetivas com a Tupy Caldas relacionam-se à infância e


adolescência que são épocas quase sempre inesquecíveis pelas transformações e
inquietações, por isso é incansável ao lembrar sua infância registrando como um
tempo inesquecível inclusive como fuga aos contratempos presentes. A infância é um
momento da vida que, mesmo diante de dificuldades é esquecida embora as sequelas
possam surgir futuramente:
Coisas de infância permanecem latentes, nítidas, em nosso subconsciente
e, lá um dia, sem que o queiramos, tomam um impulso, enchem-se de
força e vêm à tona, emergindo do seu emaranhado e distante mundo, para
retratar-se do seu emaranhado mundo adulto, como uma fuga às
atribulações rotineiras. (1972, p. 26).

Em “Coisas de infância” (1972, p. 26) as memórias da escritora sugerem de


forma emocionante as escolas tradicionais à época (‘Escola Jesus, Maria, José’), bem
como as ruas (“Situava-se na Rua José Olímpio, num amplo casarão que, de muito até
aqui, foi transformado talvez numa das bonitas moradas de que se pode orgulhar o
bairro residencial de Alagoinhas”).
“... Porque não vou a futebol” inicia-se descrevendo a Alagoinhas da infância,
informando que morava distante do centro e o campo de bola localizava-se ao final da
Rua Luis Viana ponto extremo da rua onde morava, mas, que, ao tomar uma bolada na
cabeça promete não mais comparecer a um campo de futebol. De vez em quando
aparecia um time da “Bahia” e a cidade se alvoroçava em torno da pacata, sóbria e
fechada Luis Viana, que dava continuidade a Rua 13 de Maio, mais proletária que
nobre:

Aliás, dessa espécie, em Alagoinhas de meus verdes anos, havia poucas


ruas no seu leito, ao que me lembre: a do Cruzeiro, onde se destacavam
algumas famílias importantes, tradicionais da terra, como as do Sr. Vitor
Farani, cujo palacete lá se encontra até hoje com legítimos representantes,
ainda, inclusive, a única professora de música – Ines Farani – que resistiu ao
tempo [...]; a do Dr. Pedro Dória, vindo já, da tradição do genitor, Sr. Zé
Dória; a do Sr. Vicente Argelo, Dr. Chaguinhas [...], Dr. Carlos Azevedo [...],
Sr. Mario Cravo [...] são as que me vêm à memória: a do Teresópolis e a
Luis Viana. (1972, p. 55).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 747


“Recordando eleições passadas” (1972, p. 13-16) deixa clara sua ideia a
respeito da relação entre os detentores do poder e as professoras primárias e destaca:
“Posteriormente, já no meu tempo de professora, mesmo com a evolução democrática
[...]” (1972, p. 15) muita coisa acontecia na área estadual e municipal. Menciona que,
enquanto professora não podia manifestar-se e, se assim procedesse a perseguição
viria em forma de transferências:
Eu mesmo sofri na pele, alta perseguição, transferida segundo quiseram
que eu fosse, para lugares dantes nunca povoados, muito pior, em
setratando de professoras. Isto porque sempre fui teimosa e não conseguia
esconder minhas simpatias... Achava que democracia era isto: livre escolha
e nada mais. Logo...

“Férias de verão” (1972, p. 22-24) rememoram os três meses de férias que a


classe do Magistério gozava e ela os passava em Salvador, aproveitando o Farol da
Barra. Em meio a lembranças do sol, mar e praia refere-se à saudade do tempo de
professora primária, enfatizando que, atualmente, a situação mudou, tanto no que se
refere à estação do ano, quanto ao período, que correspondia ao verão, e, quase
sempre, pós-carnaval. Mas, não deixa de ressaltar a continuação dos trabalhos em
casa como se a professora não tivesse outros afazeres e prazeres a não ser a atividade
escolar. Assim, defende a ideia de vocação para exercício do Magistério:

Férias alongadas você terá (pelo menos mais do que em qualquer outra
profissão), momentos de aula com intervalos descansáveis para a devida
pausa repousante, necessária (embora o prosseguimento dos deveres
escolares em casa. Mas em casa, no seu lar, à sua vontade, até mesmo
servindo de uma higiene mental, um nobre espairecimento), tema esse que
caberia, se possível, uma tese em sua defesa.

Continuando, suscita a ideia de maior dedicação ao Magistério: “(‘FÉ,


SACERDÓCIO MUITO SÉRIO, AMOR À ARTE para AGUENTAR os ESPINHOS [...] (e... por
que enganar?, financeira também) para a luta encetada”, mas sem esquecer a
remuneração, acrescento”. Mesmo defendendo a “bandeira” da vocação, ideia
discutível na atualidade, não se esquece da remuneração, o que pode ser contemplado
como avanço. Isto é importante, porque Maria Feijó pertencia à classe privilegiada e,
deste modo, poderia considerar a remuneração dispensável, o que não acontece. Em
meio as idealizações se permite aconselhar:
[...] Mocinhas. Rapazinhos, sem (dúvida...) do meu tempo, de minha
geração. É um apelo, sim, apelo da voz da experiência e você endereçado
[...] Broto amigo, mais ainda da parte feminina, ouça-me, por favor, e... se
puder siga o meu conselho: quiera ser PROFESSORA PRIMÁRIA. SEJA
PROFESSORA PRIMÁRIA, profissão quão espinhosa, mas também... tão
nobre, indicada, ajeitável, ajustável, amoldável à alma, à vida da mulher,
principalmente em Cidade de Interior, dando continuidade à quele clássico
“esposa-e-mãe”, a ele, perfeitamente acrescentável: MESTRA! (1972, p.
23).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 748


“Começam as aulas” (1972, p. 34-37) é iniciada pela epígrafe “– Para você,
MÃE-AMIGA” – contemplando práticas que antecedem as aulas, desde a pasta escolar
aos uniformes. Melancolicamente, lamenta o término do carnaval (“Uma música
evocativa que se ouve... Uma fantasia que se guarda... [...] ”) ao tempo que anuncia a
chegada das matrículas e do ano letivo com início no mês de março desde o Jardim até
a Faculdade. Destaca a prática de repassar livros aos irmãos mais novos, pessoas
carentes e bibliotecas e que isto não acontece se a mãe não colaborar com a
professora, e, mordazmente, insinua acontecimentos nas escolas particulares: “[...]
Para cada ano que passa, um livro especial é providência que, se não for estudada para
ser refreada e substituída” e vai chegar o momento de não mais poder se continuar
estudando. Contempla os deveres de casa e sua relação com o caderno de férias,
lembrando que a mãe é responsável por lembrar às filhas e filhos essa responsabildade
e que o cuidado com o “Português” era importante:
Apenas, temos ciência [...] nos nossos tempos de professora, no
encerramento das aulas, antes dos exames finais, quando os alunos faziam
as escritas para o ‘Caderno de Férias’ [...]. E quando outra coisa não entrasse
em vigor, em se tratando de aprendizagem, entraria o Português, língua-
mãe para todos nós e Disciplina Básica [...] no curso primário.

A crônica confere à mulher a obrigação de cuidar da família, incluindo casa,


marido, filhas e filhos, pois o “Trabalho doméstico é visto como inerente à natureza
das mulheres [...] naturalmente destinadas ao ‘cuidado’ das crianças e, dentro deste
cuidado entraria a tarefa de educá-las”. (FERNÁNDEZ, 1994, p. 109). Não se refere à
responsabilidade do homem, pois é dever da mulher e por isto apela a fim de que
auxiliem as professoras nessa árdua tarefa:
[...]... MÃE-AMIGA, é imprescindível a sua colaboração. [...] Você TEM e
DEVE participar, lembrando, durante as férias, isto à criança, que por índole
só entende ser esse período dedicado exclusivamente à brincadeira,
jogando lá trancafiado todo e qualquer estudo; todo e qualquer material de
escola, que não é bem assim... Você deve colaborar com a Professora. Isso
se chama, indiretamente, mas... eficazmente, aquela GRANDE, ÚTIL e
PROVEITOSÍSSIMA ‘ALIANÇA entre PAIS e PROFESSORAS...’ – Digamos de
passagem: entre MÃES e PROFESSORAS. – – Pais aqui aplicamos no sentido
genérico, porque sabemos, em verdade, que esses cuidados
imprescindíveis à educação integrada da criança, cabem é a VOCÊ, MÃE-
AMIGA. [...]
Você está colaborando com elas, pois, sobrará um pouco mais de tempo à
Professora para se dedicar ao aluno menos favorecido, em casas que não
possuem, absolutamente, quem o oriente.

“Os carnavais que se foram...” relembram os carnavais passados na Praça J.J.


Seabra (Praça do Jardim) onde se viam cenários distintos no que se refere as classes
sociais como seus aparatos e comportamentos distintos:

[...] Os automóveis abertos, dos ‘magnatas’ da Cidade, com suas


respectivas famílias, geralmente, geralmente mocinhas e rapazinhos (por
enquanto não havia ‘play-boys...’) fantasiados com fantasias iguais – para
moças, umas, e rapazes, outras. – Saias enormes, rodadas, quais flores
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 749
abertas, de dentro surgindo o miolo em rostos joviais de lindos sorrisos,
cobrindo quase toda a parte anterior do carro da capota arriada, hoje
totalmente desaparecido, adornavam mais ainda a mocidade daqueles
sorrisos [...] Os da classe ‘média alta’ alugavam um ‘carro de praça’ e no
domingo e ‘terça feira gorda’ faziam seu belíssimo carnaval...

Esse tipo de recordação apresenta possibilidades interpretativas, haja vista, que


suas crônicas resvalam entre o consensual e o conflituoso, complicando-se, sobretudo,
pela sua condição/situação de mulher:

Os estudos sobre memória são uma rubrica geral de investigação que tem
por objetivo a análise das diferentes formas pelas quais somos moldados
pelo passado, consciente ou inconscientemente, na esfera pública ou na
esfera privada, de forma material ou comunicativa, e de modo consensual
ou conflitual. (OLICK; ROBINS, 1998, p. 24).

A vida da escritora pode ser considerada mista de valores patrióticos e religiosos


Reforçados pela formação que vigorava em uma pequena cidade baiana, ao lado da
irreverência de quem defende a educação como “salvadora da pátria.” Em Senhor do
Bonfim, para onde foi designada, a diretora do Prédio Escolar a nomeou “professora
de música”, confiando-lhe ensinar hinos a toda escola. Esclareceu “não possuir voz” e,
além disto, acumulou a função de organizar as festividades escolares. Ao ser
transferida para a então Vila de Aramari, foi advertida pelo Delegado Escolar:
“Professora, as datas cívicas aqui são religiosamente [...] comemoradas”, ao que
respondeu:
Ora! Senhor Delegado Escolar” – quase lhe respondi – [...] se não posso ver
uma Bandeira Brasileira ao vento tremulando, muito menos ouvir o Hino
Nacional, que não sinta vibrar em mim toda a brasilidade trazida dos longes
do meu curso primário, desde tenra idade [...] (1972, p. 50).

A crônica “O Eterno Sacrificado?... Não, Mártir” (1972, p. 66-70) tem como


sugestão uma matéria publicada pelo jornal A Tarde e que foi lida pela escritora, no
Rio de Janeiro, cuja manchete é a seguinte: PROFESSORES DO INTERIOR ESTÃO
REIVINDICANDO MELHOR TRATAMENTO... Sua leitura provoca indignação:
Meu Deus, então o professor primário do Interior da Bahia ainda carrega
um peso de sua cruz [...] Não é possível que nesta década consagrada à
educação em todos os seus graus [...] que o educador, isto é, o PRIMÁRIO
PRINCIPALMENTE (e do INTERIOR mais ainda), fique em segundo plano, em
plano tão ínfimo e tão desproporcional, não condizendo [...] com o
exercício das funções que desempenha no seio da família humana. A
educação existe [...] em função do educador. E não somente o fator
educativo na sua parte material tende a melhorar. O material humano é a
sua mola-mestra. Daí minha esperança.

A esta época o discurso de Maria Feijó já transparecia a situação da classe


(ressalta a situação financeira da professora primária), o que a leva à indignação e, ao
mesmo tempo a ideia de “boato de jornal”: “Como pode ficar à margem de suas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 750


reivindicações sociais, financeiras e profissionais e continuar parado no tempo e no
espaço como há 18 anos quando daí saí?:
[...] quero crer que vocês [...] não vençam, tão logo, nesta era, a da
EDUCAÇÃO. – Isto espero e nisto confio. Porque um lema proporciona a
vocês todos, meus colegas, professores do Interior, ficarem de pé e se
manterem unidos e confiantes, e que é o lema, a bandeira de nossa classe:
LABOR OMNIA VINCIT. (1972, p. 70).

Maria Feijó defende a linha patriótica ressaltada pelas lições: “[...] de amor,
lições de moral, lições de Pátria, lições de civismo. Amor às pessoas, amor às coisas,
amor a terra, amor aos animais. Amor às aves, amor à vida, amor ao Mundo. Amor a
tudo.” O amor é apregoado sem analisar conflitos e revezes, tratando-se, portanto, de
um sentimento idealizado. Talvez, por essa idealização tenha se decepcionado com a
recepção a sua produção literária – periódicos esparsos divulgam que Maria Feijó
mostrava-se ressentida nesse aspecto e transcrevem palavras da escritora: “Alagoinhas
não tem memória”. A crônica inicia-se com uma epígrafe que faz jus ao assunto:
Campanha Cultural em prol da biblioteca na cidade: “Lutar por uma causa justa,
propugnando-se por um ideal, é vitória alcançada, desde que a voz pugnante não se
deixe abater pelo desânimo dos muitos tropeços advindos pelas veredas do
caminho...” Considera 1949 anos da “ressurreição” e “redenção” da Bahia (comemora
quatrocentos anos de existência), quando descobriu vontade de ser professora e inicia
campanha favorável à instalação de uma biblioteca pública ou escolar. Nesta época,
envolvida com o rádio (Hora da Biblioteca, manhãs de domingos, e, em outros dias
Escola de Brotinhos) e alto falantes (A Voz da Liberdade) prevê a chegada do ano dois
mil (“O ano 2000 aproxima-se em ultra-sônica velocidade, com toda veemência, todos
os arrojos, todos os impossíveis transformados em possíveis”), chamando a atenção
para o fato que Alagoinhas acompanhou as transformações do mundo, acompanhando
as arrancadas do século, sobretudo na educação com o número de Ginásios e escolas
de outros níveis que construiu.
“Lembranças de formatura” (1972, p. 103-105) é dedicada às professoras de
1971 e culmina com a asssertiva: “[...] só a educação faz um povo totalmente feliz. Ela
é a religião das raças em todos os tempos”. Escrita em dezembro de 1971, relembra
sua formatura no Ginásio de Alagoinhas, no velho casarão da Rua 15 de novembro,
ressaltando que o ato foi triste, sem vida, vazio, mas que, no seu coração de “menina-
moça” permaneciam os sonhos coloridos que esvoaçavam no seu cérebro. Quando se
refere à colação de grau, sem solenidade, chama atenção para solenidades de
formaturas do Magistério comuns nas famílias de classe média e alta.
Uma narrativa memorialística possui peculiaridades. Em se tratando de mulher,
Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão (2004, p.15) ressaltam:
Diferença [...] se percebe nos textos femininos, nos quais as fantasias e
sonhos se fazem encenar na superfície em que ganham forma, a qual se
reveste de novas e inéditas aparências, nem sempre confortáveis; às vezes
plenas de um inquietante sentido gerador de novas significações. É no [...]
texto ficcional que elas revelam sua potencialidade criadora de novos
caminhos, imprevistas soluções, inesperadas veredas.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 751


Maria Feijó cantou, como nenhuma outra escritora ou escritor alagoinhense,
sua terra natal. Ao longo das crônicas selecionadas e analisadas destaco momentos
reforçadores da ideia patriarcal e, segundo Fagundes (2005, p. 112): “[...] grande parte
de estudos sobre a ‘educação feminina’ evidenciam tênue relação entre ‘ser mulher’ e
escolha de cursos com conteúdos humanísticos e estigmatizados como femininos”.
Assim, neste texto apresento fatos narrados que sugerem a cidade em meio aos
conflitos da população que vive suas transformações às quais nem sempre são aceitas
por todas as pessoas do local. Maria Feijó indigna-se e se muda para o Rio de Janeiro
em busca de outras realizações pessoais e profissionais.
A escrita de Maria Feijó mostra-se saudosista quando afirma que Alagoinhas
não pode fugir da sua vida, pois em sua cidade natal palmilhou a infância e parte da
adolescência. Nas crônicas apresentadas e analisadas aconselha professoras e políticos
– a maioria formada por homem, salvo diretoras e delegadas escolares cuja maioria
era mulher – sempre focando na criança e adolescente, preocupada com a formação
escolar e, deste modo, com a qualidade da educação. Trata-se de uma escrita que
pode ser considerado rico celeiro de informações sobre a educação alagoinhense
aliada ao amor à profissão: professora primária. Portanto, como ressalta Lacerda
(2003), a atividade de ou com memória significa que as mulheres puderam tornar
públicas suas lembranças, embora a educação recebida tenha sido perpassada pela
negação de desejos e sonhos. No afã de celebrar a educação e a classe do Magistério
indigna-se, muitas vezes, pelo fato de os acontecimentos não acontecerem do modo
que desejava. E é neste momento que observo a ambiguidade provocada pelo texto:
ao tempo que almeja o melhor para as professoras também as coloca no espaço
privado, liberando o homem de responsabilidades domésticas e familiares.
Literatura e História não se confundem enquanto gêneros de escrita, mas se
imbricam em meio ao mundo da imaginação. Deste modo, memória e ficção aliam-se,
muitas vezes, para representar fatos e sentimentos diversos. Por isto, compreendo as
palavras finais do Alecrim do tabuleiro e para Alagoinhas dedica “[...] uma braçada,
repito, de... alecrim do tabuleiro... Em teu colo a deposito com um perfume de
passado...”.

A estrada por onde passou Luzia das Virgens Senna

O livro de crônicas A estrada por onde passei (2011), escrito por Luzia Senna,
resplandece uma época em que a escritora, sertaneja, colocava seu traje apropriado e
se encaminhava à lavoura ao tempo em que alimentava o sonho de morar em uma
cidade grande para melhorar sua vida e da futura família. Luzia Senna narra façanhas
alegres e tristes entre as fazendas São Joaquim, São Miguel, São Bento, Encantada,
Alegrete as cidades de Aramari e Alagoinhas, breve passagem pelo Rio de Janeiro e o
retorno a Alagoinhas onde reside até a atualidade. Os trinta e nove capítulos sugerem
acontecimentos sociais, culturais, educacionais, econômicos e religiosos que
enriqueceram sua vida em meio a histórias de famílias, ruas, praças, cidades, festejos e
mudanças.

O livro apresenta como abertura um poema de sua autoria:


Quem é ele
Aqui estão alguns trechos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 752
Da estrada por onde passei
É uma estrada bonita,
Cheia de curvas
Mas muitas planícies ela tem
Não sei para onde vou
Também não sei de onde venho
Só sei dizer que caminho
Procurando um alguém
Que neste planeta sofrendo
Ele caminhou também
Estou falando daquele
Que veio pregar o amor
E todos sabem quem é ele,
Ele é o Cristo Redentor.

Em seguida escreve um texto narrativo explicando seu romance:

A estrada por onde passei


No Brasil existem muitas fazendas, algumas são tão bonitas que até parece
um paraíso. Nelas vive o homem do campo, o caboclo caipira, que vive
sossegado longe das cidades onde a vida é agitada, confusa, e as pessoas
não têm tempo para contemplar a natureza, à noite na fazenda o céu é
mais bonito, as estrelas mostram mais brilho, a lua é mais formosa.
Durante o dia, também podemos ver melhor a beleza do céu, suas cores
são mais alegres, as nuvens alvas se parecem com algodão deslizando num
tapete azul.
Quando a noite não tem luar o zumbido dos insetos parece zoar mais alto
enquanto podem ser apreciados e os pirilampos demonstram seu balé.

Começo este livro comentando sobre fazendas, porque é numa delas que
estão minhas raízes. E, por esta razão sinto-me uma pessoa honrada,
motivo pelo qual me faz desabrochar o desejo de descrever a estrada da
minha vida.

No primeiro texto “Fazenda São Joaquim” a escritora informa seus dados


pessoais2 citando avós, família enfim.
Em “Uma boa lembrança” conta sobre seu nascimento e seu amor por Vovô
Dindinho Telésforo, que foi quem escolheu seu nome. Luzia Senna cresceu, mas nunca
esqueceu a cantiga que ele lhe entoava:

2
Luzia das Virgens Senna nasceu no município de Queimadas, estado da Bahia, em 26 de junho de 1946,
na Fazenda São Joaquim, filha de Irineu Gomes das Virgens e Cândida Ferreira das Virgens. Poeta,
contista, cordelista e dona de casa dedicada a família é como se descreve. Sempre gostou de escrever,
mas nunca teve a pretensão de se tornar uma escritora famosa, reconhecida, pois pensava que não
possuía condição/estudo para tanto. Relata que muitas vezes quando escrevia algo e mesmo achando
bonito escondia para que ninguém visse. Conta que um dia um dos seus familiares encontra algo
escrito por ela e ressalta: “Que lindo! Por que a senhora não escreve um livro?” E assim dá inicio a sua
vida como escritora, em 1987, realizando seu sonho de tanto ouvir a frase “Minha vida dá um romance”
proferida por sua mãe. Ao longo de sua vida de escritora já publicou Te amo, Brasil - poesia – 2006; O
casamento - conto – 2006; A estrada por onde passei - conto – 2011. Literatura de cordel: Tudo passa –
2006; Rio Catu – 2006; Mandacaru – 2006; A história de Deraldo – 2012; A vida de Luiz Gonzaga –
2012; A lagoa da feiticeira – 2012; O casamento de João sem braço e Mikilina – 2012, dentre outros
poemas publicados em periódicos locais.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 753


Ó negra perigosa só é Luzia
Ela dá no coice, ela dá na guia.
O cavalo dela é uma nivilha
O cachorro dela é uma cutia,
A sela dela é uma rodilha... (2011, p. 16-17).

Na sua imaginação a Fazenda São Joaquim é “Um jardim do Éden”, título de


outro texto que compõe o livro, pois nela se vivia “[...] uma felicidade sem fim. (2011,
p. 20). Em “Uma gota d’água” assim se expressa sobre a Fazenda:
A Fazenda São Joaquim não existe mais, porém, como uma gota d’água no
oceano seus grãos de areia fazem parte do Planeta Terra. Apesar de
algumas lembranças tristes sinto-me feliz por ter nascido na Fazenda São
Joaquim e guardo boas lembranças dos meus primeiros anos de vida.
(2011, p. 26).

Na “Fazenda São Miguel” a família de Luzia passa por transformações, mas,


quando a escritora vai a passeio ao sertão relembra “[...] banhos de rios, brincadeiras
com as primas, caçadas aos ninhos de passarinhos [...] Todas essas aventuras deixavam
minha mãe com cabelos brancos, eu guardo na memória e sei que jamais esquecerei”.
(2011, p. 28):
Face dificuldades a família da escritora passa por Alagoinhas para ir a Fazenda
São Bento em vez de ir para São Paulo que era o habitual à época. Em
“Estação de São Francisco” a sensação de viajar de trem mexe com suas
emoções e a chegada a Alagoinhas é assim descrita: Pouco antes do por do
sol chegamos ao destino, Estação de São Francisco, em Alagoinhas. O
movimento era intenso, abraços pra lá, abraços pra cá dos que chegavam e
dos que partiam, alguns choravam as despedidas porque mais uma vez o
trem partiu com destino a Salvador. [...] Quando a noite chegou acenderam-
se as luzes, fiquei admirada! Nunca tinha visto luz elétrica, só conhecia luz de
candeeiro, quantas coisas maravilhosas têm uma cidade! (2011, p. 36).

Na “Fazenda São Bento” matriculou-se em uma escola, pela primeira vez, para
sua felicidade. A escritora alimentava o desejo de estudar daí seu contentamento
embora não tenha conseguido formar-se professora, que era seu sonho. Porém, não
desistiu de outro sonho: escrever e publicar livros.
Sua vida foi instável no que se refere a mudanças e seu pai resolve mudar para
“Alegrete”: “Quando estávamos aclimatados na Fazenda São Bento meu pai resolveu
se mudar para outra localidade, por isto mais uma vez sentimos a dor da saudade, a
dor de uma despedida, porque partimos levando conosco lembranças de um passado”.
Do Alegrete seu pai resolve mudar para Alagoinhas e morar em um sítio
localizado no Jacaré de Dentro, depois para a Rua do Catu e por fim no Riacho do Mel,
nessa fase.
Em meio a idas e vindas conheceu Osmar (1962) com quem se casou (1964) e
constituiu família não sem antes trocarem cartas de amor. Depois de casada foi morar
em Aramari e ficou feliz por morar em uma cidade. Mas, com a morte trágica de seu
pai Osmar convida Luzia para morar em Feira de Santana e posteriormente para o Rio
de Janeiro.
A família gosta do tempo vivido no Rio de Janeiro, mas resolvem voltar para a
Bahia, conforme o texto “Meu aconchego”:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 754


Mas, como todo tempo passa e tudo tem seu dia, passou também o tempo
do Rio de Janeiro e chegou o dia de voltarmos para Bahia. Quando meu
marido decidiu voltar pra Bahia vendeu a Kombi e, ao chegar em
Alagoinhas não tinha mais casa, nem carro, nem emprego.. Só o que não
lhe faltava era coragem pra lutar, trabalhar, porque sempre foi e será um
verdadeiro ‘herói’ (2011, p. 74).

O romantismo de Luzia Senna derrama-se nas descrições e sugestões oriundas


de metáforas que proporcionam conflitos de uma mulher que começa a estudar
sozinha, pela imitação, e no desenrolar de sua vida consegue atingir seu desejo:
escrever livros. Ressalte-se que suas publicações acontecem por meio de ajuda da sua
família. Graças a esta generosidade conseguiu rememorar as cidades e fazendas que
passaram pelas suas estradas de vidas e experiências marcantes.
Com uma linguagem coloquial, mas utilizando-se de palavras de forte
significado, a narrativa de Luzia Senna nos convida a conhecer sua história e através
dela parte da história das estradas por onde andou sua família e parentes entre
fazendas, sítios e cidade de grande porte (Rio de Janeiro). Os micros contos são
narrados em linguagem clara e simples e o discurso de Luzia Senna configura-se em um
lugar privilegiado no qual ela assume sua voz, sua cultura, e lança ao encanto das
narrativas sua condição de mulher silenciada e oprimida pela cultura patriarcal desde
menina.

Traços alagoinhenses de Joanita da Cunha Santos

Em Traços de ontem (1987) Joanita da Cunha Santos contempla o cenário


citadino alagoinhense misturando seis poemas e vinte e nove narrativas em temas que
contemplam a cidade em suas transformações; as narrativas rememoram locais que
não mais existem, em sua totalidade e os aborda com saudade, tanto nos cenários
físicos como humanos. No texto “Ao leitor” assim se expressa a alagoinhense residente
em Belo Horizonte:
‘Traços de Ontem’ são, pois, episódios que surgiram do passado – de um
passado anônimo e quase esquecido – que vieram à tona em forma de
lembranças. São partes de uma coisa inteira; metade de uma outra
metade, que chegaram ao presente gravadas nas páginas de um livro assáz
(sic!) despretensioso, convenhamos, apenas sugerindo uma história no
contexto de uma vida.
Acreditamos que as lembranças fazem parte da bagagem de todos nós, e
que, num entrelaçamento natural e espontâneo, estão inseridas na história
de um lugar.
Alagoinhas foi o nosso berço. Lá vimos o sol nascer e morrer todas as
tardes incendiando o céu no horizonte. Lá corremos de pés no chão pelas
ruas, e andamos depois, numa sequência natural de vida. Lá sonhamos
como sonha a mocidade feliz.
A ‘Terra da Laranja’ não tem mais laranjas. Pelo menos que lhe dê direito
ao nome... Mas tem um fascínio que une, em corrente, o pensamento de
seus filhos ausentes. (1987, p. 14).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 755


A primeira crônica “Viajando no ‘Pirulito’” vislumbra o desenvolvimento da
cidade: “Voltava de uma viagem cheia de novidades para mim, que nada conhecia
além da cidade que morava. Regressava à Alagoinhas depois de alguns dias passados
em Salvador.” (1987, p. 17). No trajeto, aos poucos enxerga a Rua 2 de Julho coberta
pela luz da lua e se encaminha a Estação de São Francisco. O trajeto também percorre
atrás da Rua 15 de Novembro. No caminho da Estação até sua casa foi relatando sobre
o Plano Inclinado e o Elevador Lacerda em meio ao silêncio da noite até chegarem até
a Praça do Cruzeiro, “[...] onde existia uma enorme cruz [...]. Foi remodelada na
ocasião da inauguração da luz elétrica em 29 [...] recebendo o nome de Praça Ruy
Barbosa” (1987, p. 21). A crônica informa que a escritora morava na

Rua 24 de Outubro, nome colocado depois da Revolução de 30, data da


vitória das forças revolucionárias. Anteriormente em 24 de Fevereiro. Na
mesma época, a cidade de Alagoinhas passou a ser oficialmente: ‘Cidade de
Joaquim Távora’, em homenagem ao herói da revolução e irmão do Gal.
Juarez Távora. [...] A nossa cidade voltou a ter seu antigo nome, quando,
por questões políticas, foi revogado o decreto assinado pelo Prefeito.
Voltou a ser ‘Alagoinhas’, cujo nome já se completava: a ‘Terra da Laranja’.
(1987, p. 22).

Na crônica “A terra da laranja” preocupa-se em narrar a história de Alagoinhas


chamando a atenção para ruas paralelas principais de Alagoinhas Velha, onde a cidade
começou.

Em “Vida sócio-cultural” vislumbra-se a vida cultural da cidade comparando o


bar de Salvador, “Café das meninas” ao Salão Moderno de Alagoinhas animado pelas
tocatas de piano em meio a discussões políticas ou palestras informais entre amigos. O
Salão Moderno localizava-se perto da Praça do Comércio, à Rua Anísio Cardoso, quase
em frente à Prefeitura Municipal, antigo “Palácio da Municipalidade, onde existia um
Salão Nobre que mantinha uma exposição de quadros, inclusive o do Comendador
Moreira Rego, um dos fundadores da cidade, destacando a Igreja de Santo Antonio
elevada a Matriz em 1871. Além da Matriz havia a Capela de Santa Terezinha e a
Capela de Nossa Senhora das Candeias “Ambas muito simples; mas bastante
freqüentadas” (1987, p, 36). Outro ponto de destaque é dado a Santa Casa de
Misericórdia, localizada em uma das cabeceiras da Praça Ruy Barbosa. As festas
geralmente aconteciam na Praça J.J. Seabra e Praça Ruy Barbosa, onde as bandas
Euterpe Alagoinhense e Ceciliana tocavam e animavam a população, causando
confusão quando as duas se apresentavam ao mesmo tempo nas duas praças
populares:
[...] será que, em Alagoinhas, alguém esqueceu essas bandas que tanto
brilho deram às festividades da cidade? Não acredito. Creio que, das belas
coisas de um tempo que passou, ficaram essas autênticas expressões sócio-
culturais, fazendo parte do acervo do lugar. (1987, p. 40)

“Nossa família” narra sobre seus componentes, localiza a casa de seus avôs
maternos à “Rua Conselheiro Saraiva próximo à Praça Ruy Barbosa, e vizinha à
residência da família de Suzana Melo Barreto, que foi professora na cidade durante
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 756
muitos anos, ocupada depois pela ‘Escola Santíssimo Sacramento”. Seu pai casou-se
duas vezes, provocando transformações em sua vida, mas foi uma bela cerimônia:
Foi uma festa bonita. A casa estava feericamente iluminada a gás acetileno.
Uma luz azulada... Cheirava a tinta fresca, e a pintura era clara e suave. [...]
Na sala de jantar, havia uma barra larga pintada a óleo com quadros de
frutas coloridas.
Foi um esmerado trabalho de João Hilário, um pintor de parede que, na
época, embelezou muitas residências em Alagoinhas. (1987, p. 54).

Não sai da sua memória sua casa daí a crônica “A velha casa” adquirida por seu
pai ainda solteiro. Era grande, alegre,
[...] embora com as deficiências decorrentes da falta de infra-estrutura da
cidade que, na época não tinha serviços de águas e esgotos e nem energia
durante o dia. Lá em casa não havia cisterna, e ficava-se na dependência
dos aguadeiros que vendiam água da Fonte do Lima, em barris carregados
por jegues e jumentos. (1987, p. 57).

“O caminho da feira” descreve as ruas largas e planas de Alagoinhas constituída


por construções baixas e o “[...] sol batendo nas suas terras arenosas, reflete uma luz
acinzentada, uma claridade estranha, um quê de tristeza e magia das cidades nuas na
cidade mal iluminada”. A rua onde se localizava a casa de Joanita Santos era
movimentada e o caminho para Alagoinhas Velha por onde passavam os feirantes nas
suas montarias carregando seus artigos para vendas em caçuás e carros de bois
guiados por feirantes que passavam pitando cigarros de palha e cuspindo no chão. Pela
rua onde morava também residiam os filhos de Vitor Viana, Cid Bastos, os Alfredo
Magalhães, os Batista “Todos nos davam ‘adeuzinho’ (sic!) mexendo os quatro dedos
da mão direita, como mandava o figurino da época, um meio de extrapolar um
cumprimento gentil sempre acompanhado de um sorriso”. (1987, p. 71).
Na crônica “Menina moça” expressa seus sentimentos de menina e os
interesses da época incluindo namoradas, coleções de fotos de artistas de cinema e
outras curiosidades:

E num comportamento de acordo com a idade que tinha, comecei a


idealizar alguns sonhos ou situações felizes, antes que a vida levasse-me de
roldão. E eu tentei! Andava alheia as coisas que se passavam ao meu redor.
Adorava o silêncio que propicia a reflexão... e foi assim que desejei, um dia,
morar com ‘alguém’, numa casinha toda branca, na beira da estrada,
silenciosa e acolhedora. (1987, p. 79).

Não escapa da sua memória “Férias na fazenda”, “Coisas de estudante”, “O


cartório”, “A advogada”, “Nasce o Rotary de Alagoinhas”, “As festas dançantes”,
“Veraneio”, “Um ‘Oh!’ desanimado”, “O novo ginásio”, “Viagens pelo sertão”, “A
fiscal”, “Momentos de reflexão”, “O noivado”, “A futura família”, “O término da
guerra”, “As últimas compras”, “A cabocla Salomea”, “O casamento”, culminando com
“Primeira filha”.
Pelas crônicas perpassa um desejo de retorno ao passado, haja vista, as
sugestões de que a cidade e sua população eram felizes e estavam satisfeitos com a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 757
realidade vigente. Porém, a leitura atenta deixa perceber o desejo que aconteçam as
transformações que pululam em outras cidades. De condição financeira privilegiada a
escritora detinha-se criticamente sobre a cidade mesmo envolvida pela saudade.

(In) conclusões

Narrativas memorialísticas associam-se a histórias carregadas de tradições e


experiências ao evocar e avaliar fatos, aprendizagens, experiências e padrões que
precisam de superação em prol de uma forma de vida mais intensa. Sob o pensamento
patriarcal as escritoras foram regadas e através da escrita manifestaram (in)
satisfações e desejos diante da cidade que, perto ou longe, não conseguem esquecer.
Pois, evocar, narrar e atribuir sentido às experiências permite ao sujeito interpretar
suas recordações em duas dimensões: como etapa vinculada à formação a partir da
singularidade de cada história de vida e segundo como processo de conhecimento
sobre si que a narrativa favorece. (SOUZA, 2008).
A pesquisa (auto) biográfica traz à tona o pensamento de Paul Ricoeur (2007):
deve-se considerar a história do tempo, situada entre memória arquivada e história
escrita, porque seu objeto pode deixar de ser lembrança retida em uma relação de
continuidade quando revisitada. As produções literárias de Maria Feijó, Luzia Senna e
Joanita Cunha Santos contribuem para esses estudos, porque sugerem passagens das
vidas de mulheres cujas representações resultaram de memórias da infância,
meninice, adolescência e vida adulta no contexto familiar e profissional incluem-se as
histórias vividas em praças, ruas, escolas, rios, pontes, estação ferroviária e trens,
permitindo desenhar cidades dos períodos e contextos demarcados e relacioná-la aos
tempos atuais.
As escritoras baianas permitem através de suas produções memorialísticas que
sejam analisadas situações reveladoras de episódios marcantes para as cidades e seus
cenários multiformes e diversificados em tempos ainda de submissão das mulheres.

Referências
BRANCO, Lúcia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2004.
FEIJÓ, Maria. Alecrim do tabuleiro:... Crônicas evocativas de Alagoinhas. Rio de
Janeiro/Guanabara: Max, 1972.
FERNÁNDEZ, Alicia. A mulher escondida na professora: uma leitura psicopedagógica
do ser mulher, da corporalidade e da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas,
1994.
LACERDA, Lilian de. Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras. São
Paulo: UNESP, 2003.
OLICK; ROBINS. Estudo da memória social: da memória coletiva para a história
sociológica da memória prática. Revista anual de sociologia. 1998. n. 24, p. 105-140.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François.
Campinas, SP: UNICAMP, 2007.
SENNA, Luzia das Virgens. A estrada por onde passei. São Paulo: Scortecci, 2011.
SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de ontem. Belo Horizonte: Graphilivros, 1987.
SOUZA, Elizeu Clementino de. Pesquisa narrativa e escrita (auto) biográfica: interfaces

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 758


metodológicas e formativas. In: Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2006.TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: História das
mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del. (org.). 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 759


Autobiografia: práticas de leitura e de escrita no ensino fundamental

Maristela Felix dos Santos


UFS
maristelaufs@yahoo.com.br
Geralda de Oliveira Santos Lima
UFS
geraldalima.ufs@gmail.com

A presente comunicação tem por objetivo discutir o projeto de pesquisa, intitulado “autobiografia:
exercendo o protagonismo na sala de aula”. Este trabalho é, portanto, parte da nossa pesquisa do
mestrado profissional – PROFLETRAS, que se encontra em andamento na Escola Estadual Poeta José
Sampaio, em nossa Senhora do Socorro/se, e consiste em uma proposta de letramentos para alunos do
7º ano do Ensino Fundamental, centrada no gênero textual autobiografia, cuja proposta é contribuir
para o aprimoramento das habilidades de práticas de leitura e de escrita no ambiente escolar. O tema é
relevante devido às dificuldades apresentadas pelos discentes durante essa etapa da educação básica e,
sobretudo, porque o texto é objeto de ensino não somente da disciplina Língua Portuguesa, mas
também de todas as outras ministradas na escola. Segundo Bakhtin (2010), a narração de sua própria
vida pode ser uma forma de conscientização do sujeito. Assim, o gênero autobiográfico pode auxiliar
esses estudantes em uma construção identitária no processo de ensino/aprendizagem, levando-os a
assumir o papel de protagonistas na produção textual. A proposta de letramento será desenvolvida a
partir de uma sequência didática, conforme o modelo proposto por Schneuwly e Dolz (2004), na qual os
alunos farão como produção final uma autobiografia, em uma perspectiva multimodal (CAVALCANTE,
2012). Para abordarmos o conceito de gênero textual, nos embasamos nas ideias teóricas de Bakhtin
(2010) e Marcuschi (2008). Ao tratarmos do texto como lugar de interação, reportar-nos-emos a Koch
(2009) e Hanks (2008). Com a aplicação dessa proposta de intervenção, espera-se que os alunos
ampliem sua competência linguística e melhorem seu desempenho na escola. Os dados obtidos na
pesquisa serão analisados através da metodologia qualitativa e do método indutivo.
Palavras-chave: Autobiografia; Práticas de leituras; Escritas.

Introdução

Este artigo faz uma discussão sobre o projeto de pesquisa intitulado


“Autobiografia: exercendo o protagonismo em sala de aula”. O projeto é parte de
nossa pesquisa no Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS e consiste em uma
proposta de letramento centrada no gênero textual autobiografia para alunos do 7º
ano do Ensino Fundamental. A proposta encontra-se em desenvolvimento no Colégio
Estadual Poeta José Sampaio, localizada no município de Nossa Senhora do Socorro,
em Sergipe, em um bairro periférico.
Ao desenvolver este projeto de letramento, pretendemos contribuir para o
aprimoramento das habilidades de leitura e escrita dos alunos. Tais habilidades
abrangem não apenas a capacidade de inferir informações explícitas ou implícitas no
texto e deduzir significados de palavras a partir do contexto, mas também a
capacidade de explorar a micro e a macroestrutura do texto para construir sentidos
para a leitura, identificar a finalidade dos gêneros textuais e produzir textos coerentes
e coesos.
Para atingir esse objetivo, escolhemos o gênero discursivo autobiografia,
conforme já foi explicitado, para contextualizar nossas práticas de leitura e escrita em
sala de aula. Esta escolha intenciona também situar o aluno como protagonista em sua

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 760


produção textual. Através de atividades com esse gênero, estamos também
explorando elementos textuais e linguísticos para dar subsídios ao aluno na atividade
de produção e compreensão de sentidos.
Além disso, procuramos desenvolver as atividades de leitura explorando a
multimodalidade, isto é, a multiplicidades de signos, de linguagens. A leitura e a escrita
de textos multimodais, em nossa pesquisa, pretendem contemplar uma formação de
leitor/escritor competentes para interagir com os multiletramentos a que os alunos
estão expostos no seu meio social, na contemporaneidade.

Aporte teórico

Nosso trabalho está embasado nos pressupostos teóricos da Linguística


Textual. Entre esses pressupostos, trabalhamos as questões relativas ao texto a partir
das ideias teóricas de Koch (2002) que define texto como lugar de interação para a
construção de sentidos. Nessa interação, o leitor age, procurando interpretar e
compreender as intenções do autor, mas seu conhecimento de mundo também é
acionado para produzir tais sentidos.
Seguimos, também, o posicionamento de Mondada e Dubois (2003) de que o
mundo não é dado previamente, mas é construído por meio de práticas discursivo-
cognitivistas situadas social e culturalmente, ou seja, os sujeitos constroem versões
públicas do mundo que são coletivas e variáveis. Aplicando esta teoria na história de
vida de nossos alunos, podemos afirmar que a referência que eles fazem de si mesmo
ao produzir uma autobiografia é uma versão distinta daquela que outros escritores
fariam.
Em nossa proposta de intervenção, o trabalho de leitura e escrita centra-se na
autobiografia enquanto um gênero discursivo. Bakhtin (2010, p. 54) define-os como
gêneros “relativamente estáveis de enunciados marcados sócio-historicamente e
relacionados às diferentes situações” sociais. Schneuwly e Dolz (2004) afirmam que o
gênero pode ser um instrumento concreto e poderoso tanto para os professores
quanto para os alunos, na medida em que funcionam como articuladores entre os
objetos escolares e as práticas sociais comunicativas, sobretudo, em práticas de leitura
e escrita. É essa articulação que pretendemos aplicar em sala de aula com a leitura e a
escrita de autobiografias dos alunos.
Nosso trabalho com a leitura e escrita de texto em sala de aula, também, está
embasado nas ideias de Hanks (2008) que nos alerta para o fato de que os sentidos do
texto são construídos não apenas com elementos que estão dentro do texto, mas
também com os fatos extratextuais. Em outras palavras, podemos afirmar que a
construção dos sentidos de um texto, tanto no processo de leitura quanto de escrita,
mobiliza o cotexto e o contexto. O primeiro abrange a estrutura linguística do texto,
enquanto o segundo se refere a um espaço mais amplo, incluindo dimensões
linguística, social, cultural, interacional, cognitiva, histórica, entre outras. Interpretar o
texto é, portanto, compreender as informações explícitas e implícitas com as quais o
leitor interage.
Outro conceito importante para o trabalho escrito em sala de aula é a
textualidade. Hanks (2008) a define como “a qualidade de coerência ou de
conectividade que caracteriza o texto”. O autor acrescenta que a textualidade de um

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 761


texto é estabelecida pela adequação entre a forma do signo linguístico e o um
contexto mais amplo que determina sua coerência em última instância. A apropriação
desse conceito e de sua funcionalidade torna-se relevante à medida que propicia ao
professor o embasamento necessário para orientar seus alunos a produzir a
textualidade e a coerência de suas produções textuais. Além de saber escrever um
texto com coerência, a contemporaneidade exige do leitor a competência de
interpretar e produzir um texto utilizando diversas formas de linguagens, várias
semioses (palavras, imagens, vídeos, links etc.). Isso faz do texto contemporâneo, nas
palavras de Cavalcante (2012), um objeto multifacetado. Logo, a construção de
sentidos na leitura e na produção textual já não mobiliza apenas os elementos
linguísticos, tendo em vista que a linguagem verbal já não é a única existente nesse
processo. Essa variedade de semioses que constitui o texto é o que se denomina de
multimodalidade.

As práticas de leitura e escrita na escola

Na escola, ler e a escrever são práticas de grande importância, pois, embora


muitos discentes realizem essas atividades em processos informais de educação,
sabemos que eles aprimoram tais habilidades no espaço escolar. Por esta razão,
Bortoni-Ricardo (2004) afirma que a escola é o lugar no qual os alunos adquirem,
sistematicamente, recursos comunicativos necessários para um desempenho
linguístico satisfatório nos usos sociais da língua.
A escola é, também, o lugar no qual a leitura e a escrita ocorrem de modo
peculiar, não só devido à função que estas ações assumem no ensino/aprendizagem,
mas também porque propõe ao leitor/escritor uma reflexão sobre o que lê e escreve.
Tal reflexão inclui entre outros questionamentos: por que e para que ler ou escrever
certos textos? Que sentidos nós podemos atribuir aos textos que lemos? Isso confere
sentido ao papel do sujeito nas interações comunicativas e esclarece a finalidade dos
textos que circulam em diferentes esferas sociais.
Assim, dentre as inúmeras demandas presentes em salas de aula,
especificamente nesta fase da educação básica, escolhemos práticas de leitura e
escrita porque entendemos que estas são uma das principais necessidades de nossos
alunos, tendo em vista as dificuldades apresentadas por eles para ler, compreender ou
produzir um texto. Não é difícil encontrarmos com alunos cursando o 6º ano do ensino
fundamental, sem saber ler e escrever; alunos com extrema dificuldade de relacionar
linguagens variadas para compreender o sentido do texto. Em síntese, alunos que
estão alfabetizados, mas não estão letrados157.
Somado isso, o texto é o principal objeto de ensino de todas as disciplinas
escolares e não apenas da Língua Portuguesa. Deste modo, faz-se necessário que o
aluno domine as habilidades de leitura e escrita para conseguir êxito em seu percurso
escolar e não se evadir da escola. Neste contexto, este trabalho é muito importante,
pois está contribuindo para que os discentes que já são letrados aprimorem seu estado
de letramento e os que ainda não são letrados, consigam fazer uso da leitura e da
escrita como prática social. Acreditamos que, no interior da escola, uma das principais
157
Segundo Soares (2012), o indivíduo alfabetizado é aquele que capaz de decodificar textos; já o
indivíduo letrado é aquele que consegue fazer uso social das práticas de leitura e escrita.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 762
funções do ensino de Língua Portuguesa é contribuir para formar escritores e leitores
proficientes.
De acordo com as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o
ensino de Língua Portuguesa, formar um leitor proficiente “supõe formar alguém que
lê; que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos
implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros já lidos; saiba que
vários sentidos podem ser atribuídos a um texto [...]” (BRASIL, 1998, p. 36). Todas
essas habilidades permitem que o leitor realize com competência tanto a leitura dos
livros, quanto a leitura de mundo. E a escola é um importante veículo para a promoção
e a ampliação de tais habilidades.
Para que isso aconteça, precisamos construir instrumentos para que os alunos
desenvolvam estratégias de leitura. Baker e Brown (1984), citados por Souza e
Rodrigues (2008), listam três estratégias que o leitor pode adotar para ler um texto. Se
houver, dificuldades de compreensão, a primeira a estratégia, a mais simples, consiste
na releitura do segmento textual. A segunda estratégia é o prosseguimento da leitura,
visando à produção de sentidos a partir das seções textuais subsequentes. A última
fundamenta-se na utilização de inferências. A aplicação dessas estratégias pode
auxiliar o aluno a solucionar suas dificuldades mais imediatas para ler um texto.
Souza e Rodrigues (2008) acrescentam que tais estratégias estão relacionadas a
aspectos da cognição, letramento, intenção, gênero do discurso e situação de leitura.
Por isso, em nossa proposta de letramento, elegemos o gênero autobiografia como
instrumento de ensino para criarmos situações de leitura em sala capazes de propiciar
aos nossos alunos uma aprendizagem significativa. As atividades que estamos
propondo para aprimorar as habilidades de leitura e de escrita dos nossos alunos
consideram o nível do desenvolvimento cognitivo em que eles se encontram. Respeitar
o nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos é essencial para não os desestimular
a ler e escrever.
Schneuwly & Dolz (2004), defendem que a organização do ensino por meio de
gêneros ocorre por uma progressão organizada em função de agrupamento de
gêneros. Logo, um mesmo gênero pode ser estudado em ciclos e séries diferentes,
elevando-se o grau de complexidade dos objetivos, conforme a variação dos níveis de
aprendizagem a serem atingidos. Os autores observam que essa progressão tem como
referência pesquisas em Psicologia e em Didática, e o fato de que a aprendizagem do
indivíduo é uma condição para o seu desenvolvimento. Enfim, as atividades propostas
devem ser determinadas pelas necessidades apresentadas pelos alunos na fase inicial
da sequência didática.
Vale ressaltar que a leitura e a escrita são atividades que devem ser
indissociáveis na escola, de modo que escrever pressupõe a realização prévia de
leituras acerca do tema da produção textual. Nisto concordamos com a afirmação de
Antunes (2003, p. 80) de que, na escola, “qualquer atividade de escrita deveria, pois,
ser convertida em atividade de leitura, para que os alunos pudessem vivenciar essa
dimensão de interdependência existente, de fato, entre a atividade de escrever e a
atividade de ler e compreender”. Um bom leitor geralmente escreve com fluência, pois
ele consegue articular, com mais facilidade, os elementos discursivos para dar sentido
aos textos orais e/ou escritos que produz. Cabendo ao professor conscientizá-los sobre
essa mútua relação entre essas duas competências, leitura e escrita.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 763


Essas discussões levam-nos a refletir sobre o papel do docente no processo
ensino/aprendizagem de práticas de leitura e escrita em sala de aula, uma vez que ele
é o principal orientador dessas práticas. Segundo Gebara (2012), o professor pode
atuar de duas formas distintas em práticas de leitura na escola: como mediador desses
alunos, ampliando seus horizontes, ou como bloqueador da ação de ler, causando
ofuscamento do texto. Assim, o trabalho do professor deve produzir um ambiente
propício, ao desenvolvimento de práticas de leitura e de escrita, e estimulante para
seus aprendizes. Além de contribuir para a construção de habilidades de leitura e
escrita do alunado, o docente não pode desprezar o caráter social da leitura. Segundo
Kleiman (1989), o processo de leitura envolve dois fatores importantes: os
conhecimentos prévios do leitor e os sentidos construídos por ele ao ler o texto. A
autora afirma ainda que a compreensão do texto é um processo cognitivo, mas
também é um ato social, pois mobiliza leitor e autor, em uma interação que obedece a
finalidades socialmente definidas.
Em nossa proposta de ensino, partimos do pressuposto de que a dimensão
social da leitura e da escrita ressalta a importância do domínio dessas habilidades para
que o indivíduo exerça sua cidadania com plenitude. Esse domínio, de acordo com
Soares (2012, p. 20), implica “saber responder às exigências que a sociedade faz
continuamente” das competências de leitura e escrita. Assim, além de codificar e
decodificar palavras, o indivíduo precisa conhecer, entender, refletir e criticar os textos
que circulam em nosso cotidiano. Discutindo a importância do letramento na vida do
sujeito, Gebara (2012, p. 12) acrescenta que,

na sociedade letrada, o domínio e o posterior uso das estruturas textuais


capacitam o sujeito. Esse domínio [...] é formado não só pelas habilidades
desenvolvidas na alfabetização, mas também pela inserção deste sujeito e
do texto que ele lê no tempo e no espaço em que vivem.

Nessa perspectiva, ratificamos que uma das principais funções da escola é


formar alunos capazes de ler e atribuir sentidos ao que lê, sendo também escritores
competentes dos mais variados gêneros textuais orais e escritos. Para tanto, é preciso
que as práticas de leitura e de escrita, em sala de aula, sejam criativas, produtivas e
significativas para os alunos.

Práticas de leitura e de escrita centradas no gênero textual autobiografia

No período letivo, anterior à implementação deste projeto, desenvolvemos


algumas atividades de leitura e de escrita com vários gêneros textuais para
verificarmos quais, dentre esses, tinham melhor receptividade entre os alunos. Nessa
primeira análise, observamos que os gêneros relato de experiência e autorretrato
tiveram uma aceitação muito significativa entre os alunos. Com relação à produção de
texto, eles demonstraram bastante interesse em escrever sobre si mesmo. Essa foi
uma das razões pelas quais escolhemos o gênero autobiografia para embasar nossa
proposta didática.
Ressaltando a importância do ensino baseado em gêneros textuais, Marcuschi
(2008) afirma que, no estudo dos aspectos linguísticos do texto, esta prática
pedagógica evita o tratamento abstrato da língua em sala de aula, uma vez que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 764
representa uma situação de uso real da linguagem. Dolz & Schneuwly (2004, p. 172)
acrescentam que “o gênero se integra facilmente em projetos de classe e permite, por
isso, que se proponham aos aprendizes atividades que, a um só tempo, são específicas
e fazem sentido”.
Bakhtin (2010) observa que a escrita de sua própria vida é uma forma de
conscientização do sujeito. Por isso, em nosso projeto de intervenção, temos a
hipótese de que a escrita autobiográfica pode contribuir para construção identitária
dos alunos no processo de ensino/aprendizagem, situando-os como sujeitos ativos em
suas produções textuais e como protagonistas em sala de aula. Assim, o
reconhecimento de si, de seu papel no espaço escolar, em outros meios sociais, no
mundo, é um percurso muito produtivo para o sujeito delimitar quem é ele e quem
são seus interlocutores nas interações sociais e comunicativas.
Nesse aspecto, a escrita autobiográfica em sala de aula é importante não
apenas para os alunos, mas também para o professor. Isso porque, quando o educador
tem a oportunidade de conhecer o público com quem trabalha, também tem maiores
possibilidades de alinhar sua proposta de ensino ao perfil e às necessidades deste
público. Em síntese, a autobiografia pode ser um canal de aproximação entre alunos e
professores, além de ser um espelho para esclarecer muitas questões ocultas na
aprendizagem dos alunos. Como vemos, o texto autobiográfico pode ser um objeto de
reflexão sobre a aprendizagem e, também, sobre nossa maneira de valorizar e
significar o mundo. Aqui ocorre o entrelaçamento entre o individual e o coletivo, pois
“o indivíduo sempre está inserido dentro de um contexto social e, sendo assim, sua
história é marcada por fatos, pessoas, organizações e relações com as quais o mesmo
estabelece com o outro”. (MIRANDA et al., 2014, p. 4).
A atuação dos alunos no espaço escolar reflete sua realidade cotidiana, pois
aquilo que eles trazem para a escola é o que vivenciam em outros espaços. Por isso,
Miranda et al (2014), citando Camargo (1984), observa “que o melhor caminho para se
compreender a experiência de vida do indivíduo, juntamente com sua ideologia e
ações é por meio da história de vida. Além disso, também possibilita a “compreensão
de significados implícitos em suas ações”. A história de vida dos alunos também
permite transparecer aspectos de experiências subjetivas, demonstrando suas
perspectivas sobre o presente, o que eles pensam do passado e o que esperam do
futuro. Sobre essa relação do tempo na escrita, nas memórias narrativas Bosi (1994, p.
55), afirma que

na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas repensar, com imagens
e idéias de hoje, as experiências do passado. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão agora à nossa disposição no conjunto
de representações que povoam nossa consciência atual.

Tudo isso demonstra que o gênero autobiografia tem uma potencialidade


significativa como objeto de ensino/aprendizagem. Suas contribuições para a formação
do aluno não se limitam ao aprimoramento das competências de leitura e escrita, mas
também os situam como sujeitos ativos no âmbito escolar, através de suas vivências.

Gêneros textuais e a sequências didáticas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 765


A proposta de intervenção discutida neste texto está sendo aplicada em sala de
aula por meio de uma sequência didática, conforme o modelo proposto por Schneuwly
& Dolz (2004). Esses autores definem sequência didática como “um conjunto de
atividades escolares, organizadas de maneira sistemática, em torno de um gênero
textual oral ou escrito” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 82). Ao adotar essa perspectiva,
pretendemos articular às práticas sociais de comunicação dos alunos os objetivos de
ensino, tornando as atividades de leitura e de escrita, nas aulas de língua portuguesa,
mais produtivas.
Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 109), a aplicação dessa abordagem em sala
de aula “permite que o estudante aprenda a representação da situação comunicativa,
o trabalho sobre os conteúdos e a estrutura dos textos”. Ao focalizar um gênero
textual, a sequência didática, pode ser um meio eficaz de ampliar as competências de
leitura e de escrita dos nossos alunos. Assim, o trabalho com o gênero textual e
sequência didática, nesta proposta de letramento, visa propiciar aos alunos uma
aprendizagem com estratégias de ensino que privilegiam situações comunicativas
favoráveis à ampliação de suas competências linguísticas.
Os módulos que compõem uma sequência didática propiciam ao aprendiz uma
visão ampla do gênero no qual ele produzirá seu texto final, ao tempo que o faz
perceber a interdependência existente entre a escrita e a leitura de que fala Antunes
(2003). Somando isso ao trabalhar com sequência didática, o professor pode promover
debates, estudos linguísticos, análises de texto, entre outras atividades que promovam
a ampliação das habilidades comunicativas dos alunos.
Em nossa proposta de letramento, a sequência didática é composta por quatro
módulos. No primeiro módulo, selecionamos os textos modelares do gênero
autobiografia que iríamos trabalhar em sala de aula. Decidimos trabalhar com dois
textos autobiográficos e um autorretrato. Este último texto, intitulado “O jovem
Frank”, escrito por Carlos Queiroz Telles, apresenta uma autoanálise estética do
personagem, como podemos perceber nos fragmentos abaixo. A escolha deste texto
se justifica pela necessidade de levar os alunos a refletir sobre a imagem que
constroem de si, uma imagem que, às vezes, espelha-se em padrões estéticos.

Graças a Deus, meu espelho Cheio de cravos e espinhas,


não é daqueles que falam... pode não ser um modelo
Diante dele, com cuidado de perfeição ou beleza,
posso até reconhecer mas com certeza é alguém
este rosto que é só meu e esse alguém...sou eu, sou eu!
e sorrir aliviado

No segundo módulo, apresentamos aos alunos o projeto de comunicação que


irão realizar na produção de texto, no final do desenvolvimento da sequência didática
e, em seguida, apresentamos os textos modulares. A partir da leitura e análise desses
textos, os alunos tiveram a oportunidades de conhecer as características textuais, a
forma composicional e o estilo do gênero autobiografia, a fim de ter subsídios para
escrever seu texto, nas etapas seguintes. Nesta etapa também definimos o suporte de
escrita da produção final dos alunos e sugerimos a leitura de autobiografias disponíveis
em PowerPoint e em vídeo na internet.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 766


No terceiro módulo, os alunos produziram uma primeira versão de sua
autobiografia, em sala de aula. Essa primeira produção textual demonstrou tanto para
nós professores quanto para os próprios alunos a representação que eles já têm do
gênero autobiografia. A partir dessa produção, também, observamos as dificuldades
de escrita dos discentes e os ajustes necessários para estruturar tais produções,
conforme as características do gênero textual.
Como a nossa proposta de letramento encontra-se em desenvolvimento, ainda
não concluímos o quarto módulo, no qual trabalharemos os problemas de escrita
verificados no terceiro módulo e os alunos produzirão o texto final, que será
construído por meio da multimodalidade. Dessa forma, ao relatar sua história de vida,
os discentes poderão se utilizar de linguagens variadas (palavras, imagens, vídeos,
desenhos). Com isso, pretendemos contemplar a multiplicidade de signos linguísticos
empregados nas interações comunicativas contemporâneas, de que falamos em nosso
embasamento teórico.
Análise desses dados está baseada em uma metodologia qualitativa de
dimensão exploratória e no método indutivo analítico. Estamos aplicando, portanto, o
pressuposto da reflexibilidade presente na pesquisa qualitativa que permite que o
professor enquanto pesquisador reflita sobre o mundo em que atua e sobre si mesmo
e também sobre a aprendizagem dos seus alunos (BORTONI-RICARDO, 2008).

Resultados da aplicação de uma sequência didática em sala de aula

O projeto de intervenção encontra-se em andamento em uma turma do 7°,


composta por 27 alunos, que estão em uma faixa etária de 12 a 14 anos. Metade
desses alunos é repetente, alguns estão cursando o 7º pela terceira vez; os demais
estão na idade série regular. Em nossa avaliação diagnóstica, verificamos que a turma
apresenta uma homogeneidade quanto ao nível referente às habilidades para as
práticas leitura e escrita.

Resultados esperados

Sendo uma proposta de intervenção, a conclusão deste projeto tem algumas


expectativas mais amplas em relação àquelas que estamos apresentando nos
resultados parciais. Os índices de repetência na escola no ensino fundamental, na qual
a pesquisa está sendo aplicada, encontram-se bastante elevados. Esse problema está
vinculado às dificuldades de leitura e de escrita dos alunos. Logo, com o
aprimoramento das habilidades de leitura e escritas desses discentes, esperamos que
esses índices sejam reduzidos significativamente.
Além dos índices de repetência escolar, esta proposta de letramento também
pretende contribuir para reduzir o número de alunos evadidos da escola devido à falta
de domínio da leitura e da escrita. Quando o aluno tem dificuldade para ler os textos
escolares, ele não aprende com fluidez, a escola passa a ser um lugar desinteressante e
sem estímulo para a permanência dele, que se evade deste espaço. Contudo,
acreditamos que a leitura e a escrita são instrumentos eficientes para modificar esse
contexto.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 767


Enfim, pretendemos fazer do ensino de Língua Portuguesa um instrumento
eficaz de/para formação de leitores e escritores competentes tanto das historias do
outro como da sua própria história. Esperamos que os pequenos relatos de vida de
cada aluno os auxiliem na construção de uma identidade no âmbito escolar,
ultrapassem os limites da escrita.

Resultados parciais

As primeiras produções textuais demonstram que os alunos tiveram uma boa


apreensão da estrutura, do estilo e da situação comunicativa relativa ao gênero textual
autobiografia. Isso mostra que as leituras dos textos modulares e incentivadores foram
proveitosas para eles. Alguns contam sua história de vida de maneira mais sucinta,
outros foram mais profundos em seus escritos, mas todos falam de si.

(1) “Sou uma menina de cabelos castanhos de olhos castanhos claros sou alta sou
magrinha sou branca adoro entrar nas redes sociais”.

(2) “Eu sou muito brincalhona adoro estar sempre com as minhas amigas adoro um bom
passeio em família, não gosto de mentiras muitas pessoas tem raiva de mim
porque eu falo tudo na cara e não gosto de pessoas que falem pelas costas...”

(3) tenho13 anos e moro com a minhas irmã e meu pai, sou branca sou auta sou
magra, eu me pareço com minha mãe. Gosto das minhas irmãs so delas. Todo dia
de manham tenho que acordar cedo pra ir pro colégio..”

Os fragmentos mostram que os alunos compreenderam a situação


comunicativa do gênero autobiografia e embora falem dos amigos e familiares,
colocam o foco na escrita. É seu mundo, gostos e (des)gostos, seu modo de ser e de se
relacionar com o outro que aparecem nos textos produzidos por eles, caracterizando a
escrita autobiográfica.
Quanto às questões de escrita, nas quais estão incluídas dentre outras:
ortografia, concordância, estruturação textual, pontuação, regência, a maioria dos
alunos apresentam problemas, uns mais complexos outros mais simples. Os erros
ortográficos, por exemplo, são mais recorrentes nas palavras que não são tão comuns
ao vocabulário dos alunos. Ainda com relação à ortografia, podemos observar
interferência da fala na escrita dos alunos, conforme exemplifica o fragmento de texto
(5). Já podemos observar que tais questões serão uns dos nossos principais focos no
próximo módulo desta proposta de intenção.

(4) “Adoro quando tar minha familia toda toda reunida que todos nós aumoçamos
juntos eu adoro comer bolo, pipoca e etc. Uma coisa que não gosto em mim é que
sou uma muito emsistente. [...] . Bom se eu podesse modificar alguma coisa no
mundo eu modificaria a poluição e a violência”.

(5)”Eu não gosto de estudar de malham ainda bem que prosimo ano eu vou estudar de
tarde junto com minhas irmã eu acho melhor. [...] Eu tenho treis irmã a mais
venha tem 20 anos ela fais facudade de noite trabanha de tarde e fais cuço dia de
Sabado dimanha.”
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 768
Todavia, entre os problemas de escrita citados anteriormente, aqueles mais
recorrentes nas produções textuais dos alunos são falta de pontuação e de
organização do texto em parágrafo. Abordaremos essas questões com os alunos para
evitar que elas comprometam a coesão, a coerência e a textualidade da produção
final. E, consequentemente, ampliem suas competências de escrita, atingindo assim
um dos nossos objetivos principais.
Com relação às habilidades relativas à interpretação e à compreensão dos
textos, podemos perceber que o nível da turma ainda baixo para o sétimo ano do
ensino fundamental. Alguns alunos ainda não conseguem reconhecer processos de
intertextualidade ou ultrapassar as informações presentes na superfície do texto para
construir sentidos de sua leitura. Quando perguntamos, por exemplo, a qual espelho
falante o personagem do texto “O jovem Frank” fazia referência, apenas alguns
conseguiram associá-lo ao objeto mágico presente no conto de fadas “Branca de Neve.
Isso demonstra que eles ainda não conseguem mobiliza os conhecimentos
intertextuais para ler um texto.
A análise do conteúdo das produções textuais revela algumas imagens
interessantes que os alunos têm de si, imagens estas que, em alguns casos não são
naturais, mas foram construídas por influências de preconceitos de outras pessoas. Em
outras palavras, uma característica física do aluno que é desvalorizada, estigmatizada
pelas pessoas passa a ser vista de forma negativa também por ele. E isso aparece
ressaltado na escrita autobiográfica.

(6) “[...] eu não gosto dos meus dentes eu não gosto [...] meu apelido e
coelinho da páscoa...”
(7) “[...] quando as pessoas me chamam de Justin Biber é pura ofença eu gosto
do meu cabelo assim e se eu fosse loiro eu me odiaria [...]”

Assim, a escolha do gênero autobiografia para trabalhar habilidades de leitura e


escrita em sala de aula está sendo muito satisfatória para nossa proposta de
letramento. Além de podermos trabalhar leitura e escrita, estamos dando voz aos
alunos para que eles, através da escrita, revelem não apenas seus ideais, mas também
suas angústias e perspectivas.

Considerações finais

O processo de letramento a partir de textos autobiográficos mostra uma


experiência bastante enriquecedora para o contexto escolar. Isso porque ao incentivar
o aluno a ser protagonista em sua produção textual e não encerra as práticas de leitura
e escrita si mesmas ou apenas no aprimoramento de competências e habilidades.
Criam-se novos sentidos para o processo de ensino/aprendizagem, motivando o aluno,
na medida em que ele está situado como sujeito ativo em tal processo.
Os textos autobiográficos dos alunos podem ainda funcionar não apenas como
um material de análise linguística, mas também como lugar no qual emergem
questões implícitas no cotidiano escolar, como bullying, diferenças étnico-raciais,
preconceitos. Esses temas que aparecem nos discursos dos alunos sob forma de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 769


protesto ou negação de si mesmo devem ser discutidos em sala de aula, enriquecendo
as práticas de leitura e escrita.
O tratamento da autobiografia como gênero textual auxilia o aluno a
compreender mais facilmente a situação comunicativa representada por esse texto.
Isso facilita o processo de escrita do aluno e o auxilia a perceber a função social que
esta competência tem. Certamente o bom êxito das práticas de leitura e escrita
autobiográficas depende de uma metodologia eficiente, que abrange tanto a
organização do trabalho do professor como o aprendizado do gênero textual pelo
aluno. Neste aspecto, aplicação da sequência confirmou a potencialidade desta
metodologia para o ensino de gêneros textuais.

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Cortez, 2008. p. 119-168.KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à linguística
textual: trajetória e grandes temas. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
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sentidos do texto. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2008.KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor:
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KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K.S. (orgs.). Gêneros textuais: reflexões e
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História de Vida Para Estudos Sobre Identidade: O ExemploMONDADA, Lorenza;
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processos de referenciação". In CALVACANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B; CIULLA, A.;
(org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p 17-49

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 770


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processamento cognitivo da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Disponível em:<
http:// www.revel.infor.br > Acesso em 20 de mar/2014.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1999.
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TELLES, Carlos Queiroz. O jovem Frank. In: Sementes de Sol. São Paulo: Moderna, 1992.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 771


Memória e verdade: a importância da pesquisa documental para o nosso resgate
histórico

Monica Cristina Carneiro Simplício


Centro Municipal de Educação Infantil José da Silva Tavares
mmsimplicio@yahoo.com.br
Andrea Tourinho Pacheco de Miranda
Faculdade Ruy Barbosa (FRB)
andreatourinho@gmail.com
Nair Patrique Matos Silva Lima
Centro Municipal de Educação Infantil José da Silva Tavares
nair_matos@hotmail.com
Nilton Oliveira
Colégio Estadual Professor Nogueira Passos
niltonde@uol.com.br

Este trabalho tem por objetivo demonstrar a importância da documentação coletada durante o período
da ditadura militar brasileira, no período de 1964 a 1985, no Estado da Bahia, para colaborar com os
trabalhos da Comissão Baiana pela Verdade, que se destina a formalizar a memória histórica do nosso
Estado. O trabalho documental de Memória e Verdade, teve a colaboração de diversos órgãos e
Instituições, tais como: a Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia, (OAB-BA), depoimentos de
vítimas e familiares do período da repressão da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos,
informações de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Justiça Comum e Militar, além de
depoimentos e documentos do trabalho do Grupo Tortura Nunca Mais, do Arquivo Nacional, dos
Comitês de Memória Estaduais de diversas instituições que se formaram antes da respectiva Comissão,
bem como dos trabalhos da Comissão de Anistia. Esse trabalho de resgate da memória brasileira,
permitirá, à partir dos dados levantados, uma interpretação diversa da nossa verdade histórica, outrora
contada através de livros de história do período ditatorial, mediante disciplinas como OSPB
(Organização Social e Política do Brasil) e EMC (Educação Moral e Cívica,) todas estas, disciplinas
obrigatórias do período ditatorial. A memória e verdade, como pilares da justiça de transição, são
fundamentais para que nossos filhos e netos não tenham uma formação desvirtuada do que realmente
ocorreu durante aquele momento histórico, através de livros escolares que recontavam uma história
mentirosa, que transformava heróis em vilões. Nomes de logradouros e escolas, de vultos que
cometeram violações de direitos humanos, devem ser trocados para que nunca mais injustiças
aconteçam, além de ser necessária a identificação de nomes de torturadores e locais de torturas. Assim,
a importância da pesquisa de memória documental e bibliográfica poderá contribuir para a consolidação
do Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave: Ditadura Militar- Comissão Baiana pela Verdade- Trabalho documental-Memória-
Verdade

I-Introdução:

O período de mudanças, de um regime ditatorial para o democrático é


denominado pela doutrina internacional como justiça de transição ou justiça
transacional e tem a importante tarefa de estabelecer estratégias e mecanismos para
enfrentar o legado de violência do passado, para atribuir responsabilidades aos
Estados no presente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 772


Assim, a justiça de transição, enquanto marco histórico das duas realidades
políticas, do passado e do presente, além de exigir a efetividade do direito à memória
e à verdade, deve iniciar a persecução dos agentes do Estado que violaram direitos no
regime ditatorial, estabelecer a comissão da verdade, além de outras formas de
investigação do passado, desenvolvendo um conjunto de reparações, para que
violações de direitos humanos não tornem a se repetir.
O trabalho documental de Memória e Verdade, coletado pela Comissão da
Verdade, teve a colaboração de diversos órgãos e Instituições, tais como: a Ordem dos
Advogados do Brasil Seção Bahia, (OAB-BA), depoimentos de vítimas e familiares do
período da repressão da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, informações
de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Justiça Comum e Militar, além
de depoimentos e documentos do trabalho do Grupo Tortura Nunca Mais, do Arquivo
Nacional, dos Comitês de Memória Estaduais de diversas instituições que se formaram
antes da respectiva Comissão, bem como dos trabalhos da Comissão de Anistia.
Esse trabalho de resgate da memória brasileira, permitirá, à partir dos dados
levantados, uma interpretação diversa da nossa verdade histórica, outrora contada
através de livros de história do período ditatorial.
A memória e verdade, como pilares da justiça de transição, são fundamentais
para que nossos filhos e netos não tenham uma formação desvirtuada do que
realmente ocorreu durante aquele momento histórico, publicadas nos livros escolares
e que recontavam uma história mentirosa, a qual transformava heróis em vilões.
A importância de trocar nomes de logradouros e escolas ou de vultos que cometeram
violações de direitos humanos, teve como sustentáculo a pesquisa documental, além
dos depoimentos dos familiares e vítimas da ditadura. Assim, aqueles que cometeram
grandes violações de direitos humanos não merecem ser homenageados. Um caso
ilustrativo ocorreu aqui na Bahia, quando uma escola no bairro do Stiep, na Capital
baiana, antes denominada de Garrastazu Médici, foi trocada para Carlos Marighella.
Isso só foi permitido com o trabalho da Comissão Baiana pela Verdade e pelas
informações outrora ocultada sobre o homenageado do passado.
Algumas ações no Brasil, merecem destaque para o resgate da nossa história,
tais como: abertura de arquivos do período; a atuação da Comissão Especial de
Mortos Desaparecidos (Lei 9.140/95), a pesquisa realizada pela Comissão de Anistia,
do âmbito do Ministério da Justiça (Lei 10.559/02), a publicação do livro Direito à
Memória e à Verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República em 2007; e recentemente, em 2009, a criação do Centro de
Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado Memórias Reveladas,
institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo
Nacional; e a instituição, criada por Decreto Presidencial, do 3º Programa Nacional de
Direito Humanos – PNDH (Instituído pelo Decreto Presidencial nº 7.037/09.
As Comissões da Verdade são um importante instrumento para garantir a
sociedade o direito a ter conhecimento dos motivos dos crimes cometidos no passado,
num regime distante do atual, como forma de resgate da cidadania. Além de apontar
os agentes do Estado que praticaram violações de Direitos Humanos, também tornou
público os lugares onde ocorriam as prisões arbitrárias e a tortura, como o Forte do
Barbalho, em Salvador, na Bahia.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 773


As Comissões da Verdade são instituídas mediante iniciativas oficiais, cujo
objetivo é trazer à tona e contextualizar as violações ocorridas no passado para
reparar as vítimas, famílias dos militantes mortos ou desaparecidos e tornar pública a
história do período ditatorial.
As reparações são instrumentos de suma importância para a Justiça de
Transição, e podem ser feitas por meio de benefícios financeiros, de assistência
psicológica ou de outras medidas. A decisão de como implementar essas medidas e
que tipo de vítimas, varia de País, não devendo ser vista como mero revanchismo.
A coleta de provas é realizada a partir do depoimento das vítimas, dos violadores e de
pessoas, que de alguma forma, estão relacionadas com os acontecimentos daquele
período. Assim, além de estabelecer a verdade, outro desafio dessas Comissões é fazer
com que a sociedade e os próprios violadores reconheçam as injustiças cometidas. O
pedido de perdão pelo Estado a vítima ou familiar, tem grande significado por aqueles
que sofreram para uma mudança de regime.
A memória e a verdade não podem ser afastadas do conhecimento da nova
geração, sobretudo para que as atrocidades do regime totalitário não voltem a se
repetir. A pesquisa documental, mediante a abertura dos arquivos da ditadura, no
Brasil, serve como fonte para prevalecer a verdadeira história e, após todo o trabalho
da Comissão da Verdade, devem fundamentar os livros didáticos de uma nova
geração, que outrora transformaram heróis em vilões.
Documentos confidenciais do governo, podem esclarecer a história de muitas
vidas, confirmar as violações dos direitos humanos e indicar os nomes dos autores
dessas atrocidades e com o apoio da Comissão da Família de Mortos e Desaparecidos
Políticos, para enriquecimento do trabalho de pesquisa, trará a esperança para que
estas famílias saibam a verdade sobre o desaparecimento e mortes dos “anos de
chumbo” e possam reivindicar uma reparação.
A Comissão de Anistia continua desenvolvendo a pesquisa documental, através
do processo de digitalização do seu acervo. Essa digitalização consiste em um processo
de transformação de documentos físicos (papel) em imagens scaneadas, seguido por
um processo de classificação de documentos.
O procedimento de digitalização e inteligenciamento de nosso acervo visa a
preservação dos documentos e informações e permitirá a pesquisa e a rápida
localização das informações, através de busca de palavra-chave, aumentará a
produtividade com acesso rápido às informações, reduzirá os custos com cópias e
impressões e conferirá maior celeridade, qualidade, segurança e transparência ao
trâmite processual de requerimentos de anistia.
Outro aspecto importante é que todo esse processo, com versões digitais de
requerimentos deverão estar organizados, indexados e disponíveis para consulta no
Memorial da Anistia Política do Brasil e no site do órgão.
Ademais, vale salientar que toda essa informação tem consequências jurídicas
importantes, que contribuem para a concessão de direitos aos familiares,
demonstrando, por exemplo, a verdadeira causa mortis dos seus parentes, como no
caso do jornalista Vladimir Herzog, morto por tortura, mas antes registrado em sua
certidão de óbito como suicídio.
Atualmente, a pesquisa documental pode ser vista em diversos sites públicos,
como o Projeto Memória Reveladas, Memorial da Ditadura ou pelo site das diversas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 774


Comissões da Verdade, que através da pesquisa de todo acervo da época,
disponibilizou documentos digitalizados, fotos e diversas informações que antes eram
sigilosas.

Conclusão

A ditadura militar no Brasil, pertence ao passado. Mesmo com as dificuldades


que a justiça de transição tem encontrado para se firmar, a memória e a verdade não
podem ser afastadas do conhecimento da nova geração, sobretudo para que as
atrocidades do regime totalitário não voltem a se repetir.
Esse trabalho de resgate da memória brasileira, permitirá, à partir dos dados
levantados, uma interpretação diversa da nossa verdade histórica, outrora contada
através de livros de história do período ditatorial, mediante disciplinas como OSPB
(Organização Social e Política do Brasil) e EMC (Educação Moral e Cívica,) todas estas,
obrigatórias do período ditatorial.
A memória e verdade, como pilares da justiça de transição, são fundamentais
para que nossos filhos e netos não tenham uma formação desvirtuada do que
realmente. Nesse diapasão, nomes de logradouros e escolas, de vultos que cometeram
violações de direitos humanos, devem ser trocados para que nunca mais injustiças
aconteçam, além de ser necessária a identificação de nomes de torturadores e dos
locais de torturas.
Assim, a importância da pesquisa de memória documental e bibliográfica
poderá contribuir para a consolidação do Estado Democrático de Direito e
consolidação da cidadania, e formar uma geração informada sobre o passado
ditatorial, " para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça".
Pode demorar algum tempo, mas a verdade sobre um passado sangrento, onde
centenas de pessoas sacrificaram suas vidas por um ideal, deve ser verdadeiramente
recontada. A pesquisa documental e as ações de reparação podem confirmar que a
luta existiu, pessoas morreram porque acreditaram que poderiam mudar o País.
Documentos confidenciais do governo, podem esclarecer a história de muitas vidas,
confirmar as violações dos direitos humanos e indicar os nomes dos autores dessas
atrocidades.
A medida em que os governos são surpreendidos com a memória revelada,
podem conceder compensações financeiras às famílias, e o conhecimento do que
realmente ocorreu naquele período. Embora essa reparação não traga seus parentes
mortos de volta, ao menos contribuem para tornar pública a verdadeira história
brasileira.

Referências
ARNS, Dom Paulo Evaristo ( Org.). Brasil: nunca mais. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 775


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Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,1988.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 776


A voz da oralidade vinda da “mãe das águas” – memória performática dos
narradores de Icoaraci

Nailce dos Santos Ferreira


UFPA
eclian_35@yahoo.com.br

O presente escrito pretende descrever o meu trabalho de pesquisa, ainda em processo, no PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇAO EM ARTES-PPGArtes, se vincula à Linha de Pesquisa Processo de Criação e Atuação
em Artes, na Universidade Federal do Pará, no Instituto de Ciências das Artes. Nele, exponho minha
trajetória e envolvimento com os contadores de histórias de Icoaraci. O objetivo principal é o registro
das narrativas, com ênfase na memória dos contadores, bem como, a performance dos mesmos ao
narrar os fatos. Outro objetivo é demonstrar e destacar a importância dessa memória enquanto
elemento construtor das identidades das pessoas do lugar. As narrativas coletadas em “Rodas de
Conversas” demandam diversos olhares e falares sobre o local; muitos saberes, curiosidades,
particularidades e pontos comuns foram revelados pelas histórias. Todos que participaram das Rodas
materializam, através da palavra, dos gestos, das expressões corporais e faciais, acontecimentos,
vivências reais ou imaginárias, que na maioria das vezes se relacionam com a identidade amazônida de
nossa gente. Expressaram com a voz, os gestos, o corpo, todas as sensações que essas reminiscências
afloram. A memória lembrada e esquecida eterniza as experiências de sujeitos que vivem no presente
com as lembranças da vida passada. Emana através da performance do corpo, da voz, dos gestos, do
silêncio. Toma forma, traz para o momento presente as lembranças/imagens de épocas e
acontecimentos passados, que somente este narrador sensitivamente narra oralmente e em alto e bom
tom.
Palavras-chave: Narrativas Orais; Memória; Performance; Icoaraci.

Introdução

Todos sabiam contar histórias. Cantavam à noite, de vagar, com gestos de


evocação e lindos desenhos mímicos com as mãos. Com as mãos amarradas
não há criatura vivente para contar uma história [...]. Os contos tinham
divisões, gêneros, espécies, tipos, iam às adivinhações, aos trava-línguas,
mnemonias, parlendas. Ia eu ouvindo e aprendendo. Não tinha
conhecimento anterior para estabelecer confronto nem subalternizar uma
das atividades em serviço da outra. Era o primeiro leite alimentar da minha
literatura. Cantei, dancei, vivi como todos os outros meninos sertanejos do
meu tempo e vizinhanças, sem saber da existência de outro canto, outra
dança, outra vida. (CASCUDO, 2006, p. 13-14)

“A voz da oralidade vinda da ‘Mãe das Águas’. Memória performática dos


narradores de Icoaraci”. Este é o tema escolhido para esta pesquisa. ‘Mãe das Águas’
é de origem Tupi-Guarani, Icoara= água e Ci= mãe. “Cortada por riachos, igarapés, pela
Baia do Guajará e pelo Furo do Maguari a Vila de Icoaraci tem em sua localização o
significado de seu nome” (FIGUEIREDO & TAVARES, 2006, p.28).
Pesquisar Narrativas Orais ou História Oral, tem sido um dos grandes temas
daqueles que adentram à academia encantados com as manifestações vindas da
sociedade, das culturas que perpassam por, e, entre todos, uma vez que não vivem
em outra dimensão deste planeta mas sim aqui na terra, envoltos em meios sociais e
que deles fazem parte. A grande busca da ciência dos últimos séculos tem sido
exatamente descobrir, pesquisar, investigar todos os movimentos da humanidade,
visto que esta espécie viva da terra é a grande responsável por transformar, modificar,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 777
intervir no meio em que vive, seja ele geográfico, politico, econômico, social. Cria
culturas, as modifica de acordo com seu livre arbítrio. Mesmo porque a ciência não
existiria sem a humanidade.
Não tenho a pretensão de conceituar os temas acima citados, mesmo porque não é o
objetivo desta pesquisa, mas sim o de dissecar a narrativa oral de Icoaraci. Apesar de
concordar com Gallo (2007) quando descreve o que, segundo ele, seria o conceito para
o filósofo: “o conceito é um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar.
O que significa dizer que o conceito não indica, não aponta uma suposta verdade, o
que paralisaria o pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que nos
põe a pensar”.158
O interesse pelas Narrativas Orais ocorre exatamente pela mudança de
conceitos, a quebra de velhos e o estabelecimento de novos paradigmas no campo da
oralidade, da voz, da poesia, da história. O sujeito/narrador é visto, ouvido, percebido
como importante para a ciência, para a história da humanidade. “O respeito pelo valor
e pela importância de cada individuo é, portanto, uma das primeiras lições de ética
sobre a experiência com o trabalho de campo na História Oral”. (PORTELLI,1997, p.17).
Quando tudo neste século é informação, as pessoas se veem por canais de
comunicação impensáveis antigamente. Onde até mesmo Deleuze (1992, apud GALLO,
2007, p. 23) declarou que a filosofia vive ameaçada pela informática, pelo consumo
desenfreado, pela propaganda que visa somente o lucro e com isso utiliza-se de
‘conceitos’ para convencer os consumidores:

“Hoje é a informática, a comunicação, a promoção comercial que se


apropriam dos termos “conceito” e “criativo”, e esses “conceituadores”
formam uma raça atrevida que exprime o ato de vender como o supremo
pensamento capitalista, o cogito da mercadoria. A filosofia sente-se
pequena”.

As Narrativas Orais159 surgem como um sopro de vento, um fôlego que emerge de


dentro daqueles que permanecem vivos para contar as sua vivências, contar os
acontecimentos de um lugar, de uma época, de uma comunidade que aqui e acolá
existiu. Elas Surgiram em uma época em que não havia a tecnologia que hoje existe;
onde os meios de comunicação mais acessíveis eram os verbais; os meios de
transporte eram em sua maioria, de origem animais; a informação demorava algum
tempo para chegar ao receptor. O que ouvimos é a narração de admiração, surpresa,
desconfiança com o progresso que surgiria diante dos olhos. “A memória das
sociedades antigas se apoiava na estabilidade espacial e na confiança em que os seres
de nossa convivência não se perderiam, não se afastariam.” ((BOSI, 2004, p. 19).
Este local chama-se Icoaraci, é dele, com ele e a partir dele que surgem nossas
inquietações, nosso desejo de transformá-lo em história, não que outros já não
158
Deleuze e a Educação GALLO Sílvio, ARQ 5612 – Estética. www.arq.ufsc.br/esteticadaarquitetura.
Prof. Cézar Floriano. Este texto faz parte da disciplina ARQ 5612 do Departamento de Arquitetura e
Urbanismo Da Universidade Federal de Santa Catarina e é reproduzido e distribuído com fins
educacionais. Digitalização: João Serraglio. Ilha de Santa Catarina, outono de 2007, p. 28
159
Minha preferência em usar o sintagma Narrativas Orais e não História Oral, por pensar que os
sujeitos da pesquisa narram as suas histórias, envoltos em sua reminiscências, como o conceito de
narrativa, de criação, criatividade sem compromisso com a verdade dos fatos. No entanto não há
discordância com a História Oral, já que a segue o mesmo viés de pensamento.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 778
tenham querido e feito, mas acredito que nunca é de mais pesquisar e registrar os
acontecimentos e o povo desse Distrito que fica, geograficamente, perto do centro de
Belém, mas que, mantem uma certa distância no modo de ver, pensar e sentir a vida
na área urbana.
Como manter viva a oralidade, a memória desses narradores pertencentes a esta
comunidade chamada Icoaraci? Mas que isso, como fazer conhecer pelos mais jovens,
os fatos, os acontecimentos que não estão registrados nos livros, sobre esse local?
Porque eles só existem na memória, nos sentidos e no corpo desses sujeitos que
viveram e ainda vivem em Icoaraci e que possuem grande potencial narrativo e
performático para falar desses acontecimentos, por sinal, diversos acontecimentos.
Portelli nos explicita. “se considerarmos a memória um processo, e não um depósito
de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social,
tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas”.
(PORTELLI, p.16)
O objetivo é o de registrar, evidenciar e valorizar a história de Icoarci e tornar
conhecidos e emancipados os narradores que desta pesquisa fazem parte, uma vez
que são eles, os detentores das memórias, dos acontecimentos externados através das
narrativas orais, onde evidenciou-se a linguagem verbal e gestual, a performance
corporal, oral, sensitiva dos mesmos. Esses sujeitos/narradores, são os grandes
responsáveis pela pesquisa aqui registrada.
A pesquisa teve início bem antes de minha inserção no Mestrado em Artes. Foi
fruto de um Movimento que participo em Icoaraci, como muitos que já participei.
MOVA-CI (mais adiante explico sobre o mesmo). “Bate-Papo Café com Pupunha”,
nome que demos para as rodas de encontro nos diversos bairros que nós articulamos.
Talvez por isso entenda o que diz Bourdieu, quanto a tarefa de entrevistar:
Para que seja possível uma relação de pesquisa o mais próxima possível do
limite ideal [...] não é suficiente agir, como o faz espontaneamente todo
‘bom’ pesquisador, no que pode ser consciente e inconscientemente
controlado na interação, [...]. Deve-se agir também, [...] sobre a própria
estrutura da relação [...], portanto na própria escolha das pessoas
interrogadas e dos interrogadores (BOURDIEU, 1997, p. 696).

Nossos encontros não foram entrevistas: foram, de fato, encontros desprovidos


de pretensão acadêmica. “Não basta simpatia (sentimento fácil) pelo objeto da
pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão sedimentada no trabalho comum, na
convivência, nas condições de vida muito semelhantes”. (BOSI, 1999, p.38).
A pesquisa aqui apresentada se estrutura formalmente em dois capítulos
subdivididos entre si. O primeiro, não poderia deixar de ser sobre a memória, as
nossas próprias memórias, que se relacionam com a pesquisa, pois, em se tratando de
um trabalho onde a memória conduz os demais pontos da pesquisa, como expressa
Lang:
O relato de uma vida, ou mesmo o depoimento sobre um fato, não significa
tão somente a perspectiva do indivíduo, pois esta é informada pelo grupo
desde os primórdios do processo de socialização. A versão do indivíduo tem,
portanto, um conteúdo marcado pelo coletivo ao lado certamente de
aspectos decorrentes de peculiaridades individuais. Se há uma memória
coletiva, é certamente porque a forma da vivência teve também um
determinante coletivo. (LANG, 1996, p. 45).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 779


Inicio descrevendo o Distrito de Icoaraci, lugar em que moro atualmente, mas
especificamente na Ilha de Caratateua (mas conhecido como Outeiro). Em seguida,
creio ser importante relatar de onde surge a pesquisa, faço conhecer o que foi o ‘Bate-
Papo Café com Pupunha’, os bairros que fizeram parte da pesquisa bem como os
moradores que ali estiveram; também a dinâmica dos encontros, inclusive ilustrando
com fotos.
Penso que a metodologia a ser seguida deve ser aquela que não oprima,
engesse o pesquisador, mas que dê condições de construir a partir de sua experiência
no campo da pesquisa em questão, fazendo com que o trabalho desenvolvido seja
prazeroso e de relevância, não só para academia, mais principalmente para os sujeitos
envolvidos na mesma:
A metodologia da pesquisa não consiste em um rol de procedimentos a
seguir, não será um manual de ações do pesquisador nem mesmo um
caminho engessador de sua necessária criatividade. A metodologia organiza-
se em torno de um quadro de referências, decorrente de atitudes, crenças e
valores que se configuram como concepções de mundo, de vida, de
conhecimento (GHEDIN & FRANCO, 2008, p. 108).

A História Oral foi a metodologia utilizada, como amostragem foram escolhidos


depoimentos transcritos de cinco narradores, um de cada bairro de Icoaraci, a saber:
do Paracuri Seu Cipriano; da Ponta Grossa, D. Maria Palheta; do Furo do Maguari, D.
Nazaré; e do Cruzeiro seu Nelson; e do Tenoné, Seu Nonato. Estes, foram destaque por
serem detentores de um volume significativo de narrativas oralizadas; pela
expressividade da performance do corpo, da voz, do gesto; pela dinâmica e interação
com o grupo presente, o que inclusive chamou muita atenção durante as rodas de
conversas.
A idade desses narradores varia, em média, entre setenta e oitenta anos. São
pessoas socialmente conhecidas em seus respectivos bairros e com certa influência
local. Pertencem à classe média-baixa. Apresentam profissões e ocupações variadas,
indo de ceramistas a aposentados. Alguns são Mestres da Cultura popular (ama de Boi-
bumbá, coordenador de festa de santos).
As transcrições foram feitas e mantidas tal qual foram ouvidas. O que significa
dizer que:
A responsabilidade pela interpretação, é obvio, não chega a reivindicar, para
nossas interpretações, acesso completo e exclusivo a verdade. Tem sido
praxe, desde o inicio, na História Oral, reproduzir as palavras textuais das
fontes, com empenho muito maior do que em outras disciplinas. (PORTELLI,
p.27)

Memória identidade. O encontro com minhas reminiscências: o passado e o presente


no locus da pesquisa.

É importante mostrar, nesta pesquisa, de onde vem minha relação com as


narrativas orais, com a memória. Surge a partir das minhas próprias lembranças, desse
ego que se relaciona com outro, com o nós, criando assim as relações sociais que
alicerçaram minha escrita, como declara Rodrigues, “a construção da identidade, seja
individual ou social, não é estável e unificada – é mutável, (re) inventada, transitória e,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 780


às vezes, provisória, subjetiva; a identidade é (re)negociada e vai-se transformando,
(re)construindo-se ao longo do tempo”.160
É isso que ocorre com as pessoas que vivem em sociedade, que ao longo de
suas existências trocam experiências no convívio social, e, portanto, mudam suas
identidades. Vir de um lugar chamado Marapanim, com todas as características de
uma cidade amazônica, urbana e rural, para outro situado na capital paraense,
portanto, urbana, mas que sua população e localização possuem as mesmas
características de cidade rural, ainda criança, é, construir uma identidade baseada no
passado, mas, obviamente, com uma militância centrada no presente, e com o
pensamento e as ações direcionadas ao futuro. Ou seja, em um eterno devir
rizomático.161

Icoaraci: Onde a história continua. Mãe das águas.

Mapa de Icoaraci (Figueiredo & Tavares, 2006, p. 28). (Fig. 1)

Na época em que cheguei em Icoaraci, tudo me causou um certo


estranhamento. No entanto, aos poucos a paisagem, o local, as pessoas foram
ganhando simpatia e admiração e, então, fui à escola, para cursar a segunda série do
Ensino Fundamental. Comecei, paulatinamente, a ir à igreja; ao teatro; participar dos
movimentos políticos, sociais e culturais da chamada Vila de Icoaraci. Andava pelas
ruas com a sensação de estar passeando por entre bosques encantados, sem pressa
para chegar. Ia e vinha das minhas atividades sempre a pé, não havia necessidade de
ônibus e não possuía bicicleta, transporte bastante conhecido na vila que ganhou
carinhosamente o apelido de “Pé Redondo”, pelo uso excessivo do mesmo.
160
Ibdem, p.3
161
Introdução: Rizoma. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Texto extraído de Mil Platôs (Capitalismo e
Esquizofrenia) Vol. 1 Editora 34, 1ª Ed. (1995) (Esgotado) Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto
Costa. p. 15
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 781
Era tudo normal, poético, pensava eu. Passei parte de minha adolescência e
juventude envolvida nos movimentos religiosos, na “Igreja da Matriz”, como é
conhecida, até hoje, a igreja católica de São João Batista. Minha liderança e formação
religiosa se devem a essa época. Muito tempo depois é que aprendi que os iluminados
não estão somente nos templos, nas religiões, mas também nas esquinas, nos bares,
nos teatros, nas comunidades, nas lutas pela efetivação dos direitos humanos, na
resistência política e cultural. Foi guiada por esse acreditar que cheguei aos
movimentos culturais de Icoaraci: ‘Pé Redondo’, ‘Taetro’, ‘Palco Meu’, ‘Clama,
Declama, Reclama’, ‘Mova-ci’, neste último permaneço fazendo valer a resistência
citada.
Como professora, acredito ser a escola um espaço de manutenção e
preservação do patrimônio cultural material e imaterial, da arte educação, bem como
um lugar de troca de experiências, de conhecimentos, do fazer cientifico. O que,
infelizmente, muita das vezes, não ocorre. Mergulhar nessas reminiscências, me fez
pensar na escrita de Ecléa Bosi, ao se referir a Walbwachs (2003, apud BOSI et al., 2004,
p.54), quanto a memória e a reconstrução do passado:
Halbwachs não estuda a memória, como tal, mas os “quadros sociais da
memória”. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já
não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre o corpo e o
espirito), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A
memória do individuo depende de seu relacionamento com a família, com a
classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os
grupos de convívio e os grupos de referência peculiares esse indivíduo.

Icoaraci é hoje um Distrito de Belém que tem uma grande mistura de cores,
rostos, movimentos, credos, produções, ritmos, classes, comércio, poluição, cultura,
cenário difícil de ver no século XIX. Sempre ouvia-se alguém dizer que havia vindo de
trem a Icoaraci, ou ainda atravessado de “barquinho” para a ilha de Caratateua, onde
todos se encantavam com as belas praias, quase desabitadas do lugar. O que se via
eram muitas bicicletas, carroças puxadas por bois, cavalos, animais tão presentes na
história dos transportes dos brasileiros.
Cercada por rios e florestas a Vila de Icoaraci, como é conhecida, possui
característica própria, mas parecidas com as cidades típicas da Amazônia. Ocupada
pelos portugueses na época da colonização: “[...] por ser uma área, mas elevada, era
estratégica para Castelo Branco que logo tratou de ocupá-la” (FIGUEIREDO & TAVARES,
2006, p. 28).
O primeiro nome recebido de Icoaraci foi Fazenda Pinheiro ou Pinheiro.
Recebeu, depois, várias outras denominações até chegar ao nome atual de Icoaraci,
que significa de frente para o sol ou mãe de todas as águas, (Icoara= águas e ci= mãe),
na língua Tupi-Guarani. Esse distrito abrigou, assim como todo o território brasileiro,
diversos povos da Europa, principalmente os portugueses que predominaram na
ocupação das terras desse lugar. As ruas, praças, quarteirões foram dispostos,
observando-se os moldes da Belle – Époque. Seus casarões, chalés, estação, são
construções que lembram o apogeu da borracha no Pará, inicio do século XX
(FIGUEIREDO & TAVARES, 2006). Os senhores da borracha construíram aqui suas casas
de veraneios, de passeio para a família e convidados ilustres. Suas senhoras podiam
passear nos córregos dos rios em canoas ao estilo romântico.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 782


Quando o ciclo da borracha decaiu, os casarões se fecharam, viraram
monumentos estáticos de uma época que não beneficiou toda a população paraense,
mas que manifestou, assim como a colonização forçada, a dominação dos europeus,
da colônia portuguesa, sobre os habitantes nativos desse lugar e dos que vieram de
outros lugares, vender sua mão de obra barata.
O centro comercial ficava “lá na frente”. Divisavam-se, ali, o mercado de peixe,
o cinema, as lojas, (esperava-se o peixe fresquinho vindo das ilhas próximas). Quanto
boi-bumbá, quadrilhas, pássaros juninos, festas e celebrações se faziam neste lugar.
Nossos mestres estão vivos para contar. Quanta gente ilustre residira aqui! Do Paracurí
ao Furo do Maguari, tudo era festa, tradição, muita devoção; respirava-se o verde das
mangueiras; sentia-se a brisa mansa das marés, o cheiro de barro do Porto do Uxi, o
odor forte da manada da fazenda Pinheiro; ouvia-se o barulho do trem que vinha
trazendo os entes queridos; o agonizar dos bois no matadouro; as vozes em ladainha;
os conjuntos musicais; o farfalhar do povo.
Com o crescimento populacional do distrito (consequência da imigração do
povo do campo para as cidades, do crescimento da natalidade, do desemprego em
outras cidades, e outros fatores), a Vila Sorriso, como é carinhosamente chamada,
perdeu parte do seu encantamento. O bucolismo cedeu lugar ao crescimento frenético
e urbano das capitais. Crescimento que traz consequências negativas para os lugares,
por não ser algo planejado e ocorrer de maneira desordenada. Consequentemente,
não beneficia a todos, destrói o meio ambiente, causa insegurança nas pessoas,
aumenta a violência.

“Bate-papo café com pupunha”. Espia que lá vem história.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 783


Participante do Café com Pupunha- Tenoné (Fig. 2)

Talvez a primeira experiência do pesquisador de campo, esteja na


domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em
que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre
o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio
modo de visualizá-lo. [...]É nesse ímpeto de conhecer que o ouvir,
complementando o olhar, participa das mesmas precondições desse último,
na medida em que está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe
pareçam insignificantes. [...]Se o olhar e o ouvir podem ser considerados
como os cognitivos mais preliminares no trabalho de campo, é,
seguramente, no ato de escrever, portanto na configuração final do produto
desse trabalho, que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais
crítica.162

Tudo começou em 2005 quando um grupo chamado MOVA-CI (Movimento de


Vanguarda da Cultura de Icoaraci), planejava a IV MOSTRA de CULTURA, intitulada,
“Mestre Cabeludo”, um grande ceramista do bairro do Paracurí em Icoaraci. Foi
quando pensamos ser possível fazer várias atividades, entre elas, algumas “rodas de
Bate- Papo” com moradores antigos dos diversos bairros do Distrito. O encontro seria
para os envolvidos contarem as histórias, reviverem a Icoaraci do passado, “beberiam
na fonte” da memória desse lugar.
Mas essas rodas teriam que ter um tema, uma denominação. Então, pensamos:
“porque não ‘Café com Pupunha’?” Sim, faríamos as rodas no período da pupunha,
entre os meses de novembro a maio, quando encontramos o fruto da pupunheira
(popularmente chamada), em grande quantidade. Selecionamos os bairros do Distrito;
fizemos as visitas aos moradores referência desses lugares para que nos ajudassem
com a escolha do local para as rodas e em convidar os moradores antigos e novos da
comunidade. As rodas de “Bate- Papo Café com Pupunha”, foram realizadas em seis
bairros do Distrito: Paracuri, Ponta Grossa, Furo do Maguari, Cruzeiro, Vinte e Três e
Tenoné. Durante seis sábados nos meses já citados, sempre no final da tarde, regadas
à pupunha, café, farinha, tapioca e muita, muita história.

162
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: Olhar, ouvir e escrever.
Brasília/São Paulo: Paralelo Quinze/Ed. UNESP, 1998. p. 19.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 784
Artista Plástico Faeli, ilustrando as histórias e os contadores.Convidados e moradores de Icoaraci
(Figs.nº.3)

Histórias que foram registradas em fita K7, fotografadas, ilustradas por artistas
plásticos, transcritas pelas pessoas do MOVACI, guardadas na mente de cada pessoa
que ali se fez presente. Com objetivo de coletar diversas falas dos moradores antigos
de Icoaraci e também preservar uma Vila Sorriso não mais existente no presente,
apenas na memória dos moradores e posteriormente divulgá-las através de livretos e
performances teatrais. Como lembra Zumthor, (2000, p. 275): “a obra transmitida nas
narrativas orais, desenroladas no espaço, escapa de certa maneira, ao tempo.
Enquanto oral, não é jamais reiterável”.
A metodologia da história oral, foi assumida pelo Movimento por acreditarmos
que na fala que narrava as histórias, estava presente o registro de memória mais
precioso sobre Icoaraci. E apesar das narrativas se repetirem em alguns bairros, elas
mantinham suas caraterísticas próprias, mesmo porque a maneira de narrá-las foi
sempre diferente, peculiar a cada narrador que se dispunha a emprestar seu corpo,
sua voz para as suas reminiscências que afloravam no momento dos encontros.

Narrativas orais de icoaraci. Memória e performance.

Imagem Da Praia Do Cruzeiro Icoaraci (Fig. 6)

Por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque tenha decaído a
arte de trocar experiências. A experiência que passa de boca em boca e que
o mundo da técnica desorienta. A Guerra, a Burocracia, a Tecnologia
desmentem a cada dia o bom senso do cidadão; ele se espanta com sua
magia negra, mas cala-se porque lhe é difícil explicar um Todo irracional163.

As narrativas orais da memória, por longos períodos têm sido a grande


testemunha e precursora da história da humanidade. Surgindo a margem da
linguagem oficial aceita pela sociedade, utiliza-se da voz, que é o principio de tudo,

163
BOSI,op. cit., p. 84
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 785
concretiza-se pela palavra, materializa-se a linguagem no outro que a ouve,
construindo assim sua resistência. Porque então se nega a importância desse
fenômeno humano para a ciência? Ou ainda, a pesquisa de uma determinada
comunidade a partir das narrativas orais? Sabe-se que o interesse das diversas áreas
das ciências em estudá-la é recente e ainda há muito o que se descobrir a respeito.
É comum escutarmos na fala dos moradores antigos do lugar a história de
origem, as impressões que eles, trabalhadores, artesãos, mestres da cultura
popular, mulheres, homens, têm desse Distrito.

O primeiro ônibus o nome dele era Brasil. Era uma confusão porque todo
mundo queria ir de ônibus, e não queria mais ir na Maria Fumaça. Eu sei que
foi evoluindo ai Icoaraci. E, eu, como sempre tava no meio. Quando era
véspera de círio assim: quem é que vai tirar toada? Eu tiro!164

São relatos de vida que comprovam várias situações: a grande imigração de


pessoas dos interiores do Pará; a predominância dos dominadores donos dos casarões,
das fazendas, das atividades econômicas mais bem vistas; a variedade de
manifestações populares como ladainhas, bois, pássaros, festas tradicionais; os mitos e
lendas que assombravam nas noites de lua cheia aqueles que teimavam em ficar fora
de hora pelas largas ruas da Vila Pinheiro; o crescimento populacional; as
transformações ocorridas nos espaços físicos, no comportamento e na mentalidade
dos habitantes desse lugar.
As atividades econômicas são variadas: dispomos de um polo industrial, com
atividades madeireiras; outro, que produz a cerâmica icoaraciense, se podemos assim
chamar, originadas da cerâmica Tapajônica e Marajoara, segundo os artesãos de
Icoaraci.165; o comércio informal; as feiras livres; os trabalhadores do setor público e
privado; as lojas de produtos variados.
Essa mistura, formando um significativo e diversificado mosaico, é típica dos
centros urbanos do século XXI, e Icoaraci, por estar localizada em uma área urbana um
pouco mais afastada do centro da cidade, locais conhecidos como periferias da cidade,
não poderia deixar de ter características comuns a de outras localidades. Por isso, o
trabalho de valorizar o patrimônio imaterial existente aqui é de suma importância e
urgente de se fazer, pois as sociedades pós- modernas, com suas frenéticas corridas
contra o tempo, se atropelam e tornam-se indiferentes ao sensível.
Não estabeleço aqui o conceito de identidade como algo perfeito, mas creio ser
ele vivido, pensado, refletido pelo ser humano. O que segundo Halbwachs (1992, apud
RODRIGUES, p. 5), a identidade reflete todo o investimento que um grupo faz, ao longo
do tempo, na construção da memória. Portanto, a memória coletiva está na base da
construção da identidade. Esta reforça o sentimento de pertença identitária e, de certa
forma, garante unidade/coesão e continuidade histórica do grupo.
A voz é anterior à palavra e a linguagem parece ser a metáfora expressiva do ser
humano. Ela cala ou fala quando necessário ou quando conveniente. Ela expressa o
que o corpo em sua limitação, não consegue fazê-lo. Permite, assim, que diversos
jogos se realizem. O corpo vocal estaria relacionado às fontes antropológicas do

164
FIGUEIREDO & TAVARES, op. cit., p.37
165
Ibdem., p. 59.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 786
imaginário. (ZUMTHOR, 2010, p.12). Uma existência regada ao imaginário, às
reminiscências que esse corpo pode deixar transparecer pelos gestos, mas
principalmente pela voz; que materializada na palavra, no grito, no sussurro; deixa
mostrar esse orador-contador que, segundo Paul:

Não nomeia o que está falando, ele o prenomeia, num discurso prévio e singular.
Capturando tal acontecimento, tal objeto para lhe conferir existência, ele os torna
prováveis, aptos a despertar o desejo ou a esfriá-lo, a causar dor ou prazer; mas
não os ex-plica; ao contrário, os im-plica.166

A voz, fazendo uso da memoria de seu Cipriano Lima, lembra e relata o dia que
viu a Matinta Perera: “Arriou bem pertinho de mim, mas bem perto mesmo! Parece
assim um avestruz; ah, minha filha, é Matinta-Perera! Que começou a apitá e aquilo
faz um frio na pessoa. O negócio é feio, é feio! Ela é igual um peru...” (Seu Cipriano,
morador de Icoaraci- Bairro Paracuri)
Ou, ainda, dona Maria Palheta lembrando da época de sua juventude, com certo
saudosismo na voz:
Então era assim. Era a maior festa aqui, tinha um arraial, a animação daqui
era o carrossel. Do lado do carrossel tinha um homem que vendia garapa
com aqueles pastelão. A gente andava no carrossel com o namorado, ai saía
dali, tomava um copo de garapa, comia um pastel daqueles, pastel e pão-
doce, nera? A gente vinha satisfeita, era a única bebida que tinha aqui, era!
Um carrossel que chega a gente ficava tonta, nera Rita? O cara empurrando
e a gente só rodando, mas abraçada com o candidato. Quando a gente
descia ainda ofereciam um copo de garapa e um pão-doce. Agora não, a
gente sai e vai logo tomar cerveja.167

Vozes advindas da memória ou memória, retomadas pela voz que se veste dos
acontecimentos daqueles que dela fazem uso, ou precisam para transmitir valores,
saberes, culturas, que talvez, jamais serão perpetuadas pela história ou outra ciência
do conhecimento. A voz também informa sobre quem a usa, ela o denuncia, deixa-o à
mostra. O contador emprega em seus relatos as suas marcas, sejam elas orais,
gestuais, corporais, para externar os fatos vividos ou imaginados por ele. São fatos que
não estão entrelaçados com os valores de verdades ou inverdades. Isso não é
importante para ele: o que lhe importa é mergulhar em um passado que lhe remete
aos acontecimentos de sua vida que lhe fizeram experimentar diversas sensações e,
cujo protagonista, é ele próprio.
A performance se faz presente nos acontecimentos narrados. É a performance
da vida, da memória e, junto com esta, vem, então, a performance corporal, expressa
pelas lembranças que tomam conta da voz, que se espraia pelo corpo desses
narradores. Na figura de seu Cipriano, pegamo-nos, conjuntamente, lembrando já que

166
Ibid., 2010, p.295
167
Dona Maria Palheta, moradora de Icoaraci- Bairro Ponta Grossa. Livreto “Café com Pupunha Em
Contos”. Organizado pelo MOVIMENTO DE VANGUARDA DA CULTURA DE ICOARACI. MOVA-CI. Ponto de
Cultura Em Movimento. Belém, 2011, pp.27-28.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 787


somos sujeitos da pesquisa. Como ele nos fazia rir a cada vez que contava uma
história. Estávamos diante de uma performance de um contador nato, uma
representação autêntica e natural, que não foi treinada, tampouco ensaiada. Uma
performance que nunca se ateve a técnicas teatrais, formais ou acadêmicas para o
contar dessas histórias.
O mesmo ocorre quando evocamos as narrativas de dona Maria Palheta,
senhora elegante, sempre “paramentada”, como costuma dizer. Em suas narrativas,
emprega um tom de ensinamento, de medida entre o passado e o presente. Deixa
claro que os tempos idos foram bem melhores que este presente. Sua performance
diante dos acontecimentos lembrados nos hipnotiza, demostra segurança, dá
veracidade à narrativa, traz certeza na voz, firmeza nos gestos, clareza no olhar. Já
dona Nazaré, ao narrar os fatos, se cobria de humildade, leveza e simplicidade. Mas
era sempre muito enfática em suas lembranças, narrando minuciosa e
cronologicamente os fatos, de acordo com o tema sugerido. Uma voz calma, com
timbre bem regional, aliás, não há como não notar que a maioria dos sujeitos possuem
naturalmente esse timbre, trazem consigo a característica do falar ritmado,
cadenciado e sonoro do caboclo paraense.
Os contadores das narrativas orais não inventam personagens nem histórias
alheias, tiradas da imaginação. Eles e elas rememoram suas lembranças, revivem todos
os acontecimentos que lhes são possíveis lembrar na performance sentida. São, via de
regra, motivados por um pedido, ou por outros narradores... deixam fluir as
lembranças individuais, mas tais lembranças sempre vêm interconectadas com
acontecimentos coletivos do lugar. Trata-se da performatização da memória social que
vem à tona e se externaliza através da linguagem. (BOSI, 2004, pp.54-55).
O estudo da performance permite a quebra da noção de aproximação entre a
teoria e a prática, um acontecimento vindo da história oral torna-se objeto de estudo
da ciência. Os conhecimentos surgidos a partir de grupos ou indivíduos pertencentes à
determinada comunidade e transmitidos pela oralidade, até há pouco tempo, não
apresentavam valor cientifico. A linguagem escrita sempre obteve o maior prestigio
em detrimento da linguagem falada. Muitos saberes foram negados, julgados sem
valor para a humanidade por não terem sido escritos, não terem adentrado ao mundo
letrado.
A performance, aqui, é entendida como ação, como reflexão, como espaço de
troca de conhecimentos, como possibilidades de aproximação entre o escrito e o
falado, entre o imaginário e o real, entre espetáculo e vivências, entre passado e
presente, entre identidade e sujeitos, entre narrador e narrativa. Em fim, ela abrange
todo esse processo de entender e fazer a história oral. A performance e o
conhecimento, intrinsicamente ligados, se cruzam nas vozes desses sujeitos. Dona
Nazaré, seu Nonato, seu Cipriano são pessoas que, através de seus ofícios
empiricamente construídos, passados de pai para filho, lideram, são mestres de
manifestações culturais conhecidas por estas bandas de nossa região. Ama do “Boi
Resolvido”, boi bumbá do Pará, dona Nazaré em seus relatos, como mostraremos mais
adiante, não esconde sua paixão pelo que faz e diz de onde veio. Seu Nonato, que
coordena a festa de São Pedro no Tenoné, descreve como assumiu essa tarefa e todas
as dificuldades que vem enfrentando para manter viva esta tradição. Seu Cipriano,
mestre ceramista, não tem mais condições de trabalho. Seu oficio já se espalhou por

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 788


entre os que chegaram, mas em seus relatos fala com orgulho e propriedade dessa
terra, que como diz quando chegou aqui se chamava Fazenda Pinheiro. Fazem de seus
saberes, como mestres, uma forma de se inserir na sociedade, de se constituírem
como seres atuantes, como formas de existir, formando, assim, a identidades sociais.
Eles e outros mais anônimos compõem uma rica história cultural, social, religiosa,
profana, popular de Icoaraci. É o que José Magnani (1984, apud, FIGUEIREDO, 2006, p.
35) descreve. Trata-se de “um conjunto fragmentado de normas e valores onde
coexistem tradições de origem rural, crenças religiosas, conhecimentos empíricos,
valores próprios da sociedade industrial”. Esses mestres fazem de sua sabedoria
empírica a transmissão e a manutenção das tradições populares, sem que, com isso,
usufruam de qualquer melhoria na vida urbana e social.
Há uma performance teatral desses mestres quando querem mostrar o
espetáculo do que sabem fazer artisticamente, o que aprenderam com seus pais,
tradições performáticas que lhes foram transmitidas através do oral e da convivência
social. Muitos mestres continuaram as tradições deixadas por seus pais com o objetivo
de manter aquela manifestação, com o intuito de não deixá-la morrer. Trata-se,
indubitavelmente, uma forma de pensar o saber, a cultura, a perpetuação e afirmação
do que chamamos tradição. A identidade performática e social, tomam forma nesse
modo de ver a vida, a sociedade. Não há uma consciência do que se está fazendo, há,
não resta dúvida, uma intenção, uma preocupação, uma relação afetiva e de
pertencimento do saber. É o que também conceituamos como Patrimônio cultural:

O património faz recordar o passado; é uma manifestação, um testemunho,


uma invocação, ou melhor, uma convocação do passado. Tem, portanto, a
função de (re)memorar acontecimentos mais importantes; daí a relação
com o conceito de memória social. A memória social legitima a identidade
de um grupo, recorrendo, para isso, do património (Martins 2011, apud,
RODRIGUES, p. 4)

O lúdico reúne elementos capazes de anunciar e denunciar situações


socioculturais, promovendo a interação entre sujeitos de um grupo, uma comunidade
que comunga uma mesma história, o mesmo espaço. A dinâmica é sempre fluente. O
jogo se faz presente tomando forma, no corpo e na voz do outro. A oralidade se torna
o objeto e fio condutor das narrativas contadas. Nesse sentido, podem ser comparadas
à poesia oral no que tange à descriminação pela forma do falar do narrador. Foram
deixadas de fora de circulação oficial, desacreditadas academicamente e se tornaram,
em algumas camadas da sociedade por algum tempo, motivos de preconceito
linguístico.
O trabalho da história oral é talvez aproximar a linguagem oral da escrita,
associá-las de alguma maneira, não engessar a uma em detrimento da outra, mas
buscar um ponto comum, harmônico entre esses dois universos linguísticos distintos.
O textocentrismo168 – fazendo uso uma expressão de Rodrigues - é que precisa deixar
de exercer o papel centralizador da linguagem, o dominador do saber letrado. Há
segundo o mesmo autor, uma relação entre o oral e escrito, entre a performance e
texto impresso.

168
Op. Cit., p. 91
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 789
Isso nos remete aos nossos encontros do Café com Pupunha em dois bairros,
Paracuri e Cruzeiro. Dois moradores, participantes ativos dos encontros, levaram
documentos escritos para comprovar o que falariam, talvez como prova irrefutável do
que iriam dizer se porventura fossem, de alguma forma, questionados, ou, talvez para
demonstrar a todos que eles tinham registros escritos comprobatórios da história de
Icoaraci. As informações que continham nesses documentos estavam sob seus
domínios, o que significa dizer que mantinham um certo predominância, embora
aparente, sobres os demais que ali estavam. Recordamo-nos, também, que eles
também se utilizavam da linguagem culta se esforçando para mantê-la durante seus
relatos.
Esses narradores pareciam presos aos documentos, às informações neles
contidas, e nos davam a impressão de estarem em desarmonia com os outros que,
somente pela memória, sem o aval das comprovações, narravam a história de Icoaraci
que lhes vinham à lembrança e eram saborosamente compartilhadas com os relatos
dos outros participantes do encontro. Havia testemunhos de uma mesma lembrança,
de um mesmo fato. E aí, os relatos, harmoniosamente, completavam a memória e o
relato do outro. É que caracteriza a memória coletiva, a formação da identidade social
dessas pessoas ligadas por um passado comum, numa mesma comunidade.
Não se trata de dizer que os documentos impressos não foram ou não sejam
importantes para a historiografia do lugar. O que queremos ressaltar são as
performances dos narradores, os contrastes porventura existentes entre elas e o
quanto tudo isso deixa claro as posturas sociais, politicas e econômicas, haja vista que
tais pessoas exercem papeis sociais importantes na sociedade icoaraciense, e a posse
desses documentos simbolizava, ainda que tacitamente, esse poder. O prazer que
existe em ouvir, em falar, em rememorar o passado, torna o relato oral pura poesia. O
que não ocorre com o conteúdo escrito que estes senhores levaram para os encontros.
Com isso, puseram fim, ou, pelo menos deixaram em segundo plano, o prazer da
escuta e do falar performántico. O texto escrito possui, segundo Zumthor (2000), outra
natureza.

Uma das preocupações da contemporaneidade é o desaparecimento por


completo de algumas línguas, línguas que surgem e são renegadas, daquilo que
Zumthor (2010, p. 316) chama de “memória sem defesa”. As narrativas coletadas em
Icoaraci são importantes para a emancipação da história oral, da voz como
protagonista da história desse lugar, com suas singularidades e sujeitos que nunca
haviam sido ouvidos como mentores e transmissores desses acontecimentos do lugar.
Uma língua que em vez de desaparecer, aparece com especificidades da fala, do oral.
Isso nos encoraja a defender as narrativas orais desse lugar, a transcrevê-las para que
o escrito sirva de registro para os que ainda virão a Icoaraci.
“A narração exemplar foi substituída pela informação da imprensa, que não é
pesada e medida pelo bom senso do leitor. [...]. A arte de narrar vai decaindo com o
triunfo da informação.” (BOSI, 2004, pp. 85-86). Nossa sociedade, na nossa época, vive
a era da informação excessiva, da rapidez vertiginosa da tecnologia; tudo é virtual,
efêmero, desimportante; o outro é visto pelo visor de um celular, pela tela de
computador e por outros meios digitais. O jogo virtual tomou o lugar do jogo real em
muitas situações. A presença física já não é mais necessária.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 790


A educação formal ainda não consegue discutir a emancipação do patrimônio
vivo que existe em cada lugar, principalmente o patrimônio amazônico. Essa prática
ainda é uma realidade longínqua a ser discutida no ambiente escolar e fora dele. Como
a cidade se modifica, as pessoas não são eternas, materialmente falando, a vida é
dinâmica, a sociedade, a cultura, os hábitos mudam-se cotidianamente e
aceleradamente. O Patrimônio, nesse raciocínio:

É a herança cultural do passado, vivida no presente, que será transmitida às


gerações futuras. Trata-se de um conjunto de símbolos significativos
sacralizados, no sentido religioso e ideológico, que um grupo, normalmente
a elite, política, científica, económica e religiosa, decide preservar como
património coletivo. Portanto, há uma legitimação social e política do que é
(ou não) património.169

Quase sempre se tem alguém disposto a contar a história baseado em suas


impressões e vivências, narrar suas memórias. Mas devemos ficar atentos ao que
afirma Portelli:
O principal paradoxo da história oral e das memórias é, de fato, que as
fontes são pessoas, não documentos, e que nenhuma pessoa, quer decida
escrever sua própria autobiografia [...], quer concorde em responder a uma
entrevista, aceita reduzir sua própria vida a um conjunto de fatos que
possam estar à disposição da filosofia de outros. 170

Esse fato ocorre porque os sujeitos narradores não são personagens de uma
narrativa de ficção sem relação com seu tempo, sua vida, sem uma identidade. Por
isso, a ética, o respeito aos entrevistados devem ser os condutores da pesquisa com
história oral. Tudo o que narram faz parte da história dos mesmos e deve ser tratado
com respeito, sem ideologias de valores do que vira a ser patrimônio. Quem deve
definir ou estabelecer tais critérios é a própria comunidade envolvida, os sujeitos que
dela fazem parte. Assim teremos não uma representação das identidades
socioculturais de um povo, mas, ao contrário, a legitimação do mesmo.171

169
RODRIGUES, op. cit., p.
170
A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Este
texto foi publicado na revista espanhola Fundamentos , tendo sido traduzido para o português por
Ingeborg K. de Mendonça e Carlos Espejo Muriel. Foi base da palestra proferida em 23 de agosto de
1996, no Departamento de História da UFF. (PORTELLI, 1996, p.2).
171
RODRIGUES, op. cit., p.4 (grifo meu).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 791
Casa do Poeta Tavernard em 2005, situada a Rua Siqueira Mendes-Icoaraci. Fig. nº. 10.

O que nos faz lembrar que toda memória é social, possui relatos de um passado
que envolve outros que dele fizeram parte. Mas que estabelece critérios seletivos de
lembranças, como afirma Rodrigues172, “a memória social é dinâmica, mutável e
seletiva; seletiva porque nem tudo o que é importante para o grupo fica «gravado na
memória», fica registado para as gerações futuras”.
As narrativas orais nos remetem ao imaginário, nos fazem pensar como foi
aquele passado que se apresenta pela voz da memória, nos transporta para o passado,
tirando-nos desse mundo presente que pouco ouvi, sente, os acontecimentos a sua
volta, não procura o sossego para a alma, para o silêncio, para a subjetividade. Nos
fortalecemos das lembranças nossas e de outros pelo silêncio, pela voz e pela
performance social (EWALD)173, para agirmos no mundo.
As narrativas orais são ações carregadas de subjetividade e estética, elas dão
forma ao que é dito pela voz e pelo corpo, criam uma imagem passível de mudança a
todo instante que mergulha no passado. É o que sinto quando lembro-me da minha
infância em Marapanim e ao mesmo tempo quando escuto as narrativas de Icoaraci
lembro uma outra infância. Outras lembranças juntam-se as minhas e construo a
minha própria imagem do passado.

Referências
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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.
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2006.
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Coleção Saberes Pedagógicos, coord. Antônio J. Severino e Selma G. Pimenta. São
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uma proposta”. In: MEIHY, José Carlos Sede Bom (Org.) (Re) introduzindo História Oral
no Brasil. São Paulo: Xamã, 1996.

172
Ibdem., p.5
173
op. cit., p.86
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 792
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: Olhar, ouvir e escrever.
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Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. p.354
_______________ Performance, Recepção, Leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira,
Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 793


“A educação antes e depois da ditadura militar: breve análise sobre a formação do
sujeito como ser pensante”

Osimara de Barros
UNEB/FVC
osimarabarros@gmail.com
Andrea Tourinho Pacheco de Miranda
UNEB/ FRB
andreatourinho@gmail.com

Historicamente, a educação brasileira foi pautada na lógica da modernidade, que se baseia em divisão
de classes, de poder e do lucro. Esse modelo de educação, que vigorou por muito tempo durante a
ditadura militar no Brasil, visava formar pessoas apenas para repetir informações, fazendo da educação
aparelho ideológico do estado. A partir do golpe militar houve uma ruptura na evolução educacional
que buscava reverter esse quadro. A educação serviu as ideologias do estado pautado na proposta
militar que por sua vez era autoritária e antidemocrática, tornando-se pior que o inicio da história. Em
consequência foram formando pessoas que não exercia cidadania nem pensamento crítico, sujeitos
submissos, oprimidos e posteriormente opressores. Nos dias atuais busca-se pensar a educação como
instrumento para a formação integral do sujeito como ser pensante, autor de sua própria história e
especialmente como elemento potencializador da cultura de valorização da dignidade humana. Nesse
sentido, a educação se torna fundante para quebra de paradigmas e construção da democracia, a partir
da compreensão da cidadania como o direito a participação política e não a aceitação do que está posto.
Disciplinas como OSPB (Organização Social e Política do Brasil) e EMC (Educação Moral e Cívica) eram
obrigatórias no ensino fundamental, o que demonstra que o conceito de civismo não era exposto de
forma construtivista. Ao contrário, a metodologia durante a ditadura era pautada muitas vezes em fatos
e informações inverídicas, fortalecendo a formação de um sujeito tolhido ideologicamente.
Hodiernamente, com a nova pedagogia do sujeito livre e participativo, o diálogo se constitui peça
fundamental na formação de sujeitos ativos, que se dispõem a aliar memória e verdade de forma
compassada para a concretização da verdadeira democracia.
Palavras-chave: Educação; Ditadura militar; Sujeitos oprimidos; Nova pedagogia.

Introdução

Esta pesquisa tem por objetivo demonstrar o projeto para a educação brasileira
durante período de Ditadura Militar (1964-1985). Esse modelo de educação, que
vigorou durante a ditadura militar no Brasil, visava formar pessoas apenas para repetir
informações, fazendo da educação aparelho ideológicas do estado.

À partir do golpe militar houve uma ruptura na evolução educacional,


apresentando drásticas mudanças para a liberdade de pensamento, servindo para
fomentar as ideologias repressivas do estado, autoritária e antidemocrática, que
refletiu na educação brasileira.
De acordo com a nova ideologia política e econômica, o ensino brasileiro,
mudou para um modelo de educação tecnicista. Esse novo quadro teve como
conseqüência a insatisfação social, oriunda principalmente das revoltas estudantis.
Nesse momento histórico, vários Atos Institucionais foram impostos, restringindo a
liberdade de expressão e de pensamento, e impossibilitando as manifestações
populares. De igual maneira, os direitos fundamentais do cidadão foram violados,
contribuindo para a censura a qualquer liberdade de pensamento.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 794


Os presidentes militares, Castello Branco e Costa e Silva, respectivamente,
juntamente com os americanos concretizaram acordos através da parceria entre MEC
e United States International for Development (USAID) realizando doze acordos
responsáveis por reformas de leis no sistema educacional. Consoante esses entre
MEC/USAID, estabelecidos no território nacional novos rumos à educação foram
tomadas, com características autoritárias e repressoras. Dessa maneira, foi instalada a
educação tecnicista, inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e
produtividade, com a formação de um sistema voltado a uma mentalidade empresarial
tecnocrata.
É certo que o legado da ditadura militar, no tocante a esfera educacional,
resultou na impossibilidade de promover uma educação qualitativa e igualitária à
população brasileira, devido às determinações a ela destinadas, deixando lacunas no
modelo de gestão educacional, com carências as quais resistem até os dias atuais.
No contexto educacional, destaco que na Primeira República existia um grupo
de intelectuais de classes dominantes que criaram dois movimentos: o “Entusiasmo
pela Educação” (voltado para a educação popular), e, o “Otimismo Pedagógico” o qual
insistiu na melhoria das condições didáticas e pedagógicas da rede escolar.
Para Gustavo Capanema, Ministro da Educação durante o período estado-
novista, a educação deveria tornar-se um dos principais “instrumentos do Estado” e
dirigir-se por um sistema de diretrizes morais, políticas e econômicas, totalmente
voltado ao discurso político e ideológico do Estado Novo.
Por influências da Segunda Guerra Mundial, foi instituída a educação militar
para os alunos do sexo masculino (com diretrizes pedagógicas impostas pelo
Ministério da Guerra), o que ocasionou a obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica.
Nas universidades criou-se a disciplina OSPB (organização social e política do Brasil)
com objetivo de ensinar aos estudantes o amor à pátria de forma subordinada às
decisões do estado.
Após esse período a educação começou a buscar suas mudanças, a partir da
literatura de Paulo Freire que discutia a pedagogia da libertária, onde o estudante é
tratado como ser pensante com direito a direcionar sua própria história.

A educação pré e durante e pós ditadura militar

A educação no Brasil se inicia com a chegada dos jesuítas, padres que vieram
catequizar negros e índios com objetivo de introduzir a todos os habitantes a religião
católica como única verdade e obter dessas pessoas obediência e submissão aos
princípios impostos por ela.
Desse modo, a igreja era fortalecida, os padres obtinham ajudantes
gratuitamente e também beneficiaria a coroa que por sua vez era parceiro da igreja e
também seguia seus dogmas. As crianças foram escolhidas para implantar a educação
católica, pois eram consideradas tabulas rasa, ou seja, como estavam vazias absorviam
os ensinamentos com mais facilidade e posteriormente passavam aos seus pais.
Nesse momento se institui o Ratio studiorum para normatizar a forma de
ensinar, implementando a educação, em especial o ensino da religião católica, depois a
gramática, latim em progressivo crescimento do currículo. A metodologia era a
memorização com castigos severos para os que se rebelassem ou não aprendesse com

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 795


facilidade. A educação se inicia no Brasil servindo literalmente a um projeto
civilizatório.
Durante a primeira guerra mundial houve o declínio europeu e a ascensão dos
Estados Unidos, a partir daí as elites brasileiras buscavam copiar a forma de viver
norte-americana, por meio principalmente de literatura, mídia e filmes. Nisto acontece
um sentimento de patriotismo nacional que propiciou um olhar específico nos
problemas educacionais (GHIRALDELLI, 2000).
A educação brasileira na primeira república experimentou movimentos criados
pelos intelectuais da elite em direção ao crescimento e desenvolvimento educacional,
o primeiro educação popular o “Entusiasmo pela Educação” nessa progressiva em
relação a construção do pensamento crítico houve o “Otimismo Pedagógico” que
objetivava avanço das condições pedagógicas e didáticas de toda rede escolar
(GHIRALDELLI, 2000).
Em 1930 segundo Ribeiro (2000), surgem novas impeles sociais com o declínio
da forma de poder oligárquico, acontece o “manifesto” documento este que tendia a
defesa de uma “nova educação” voltada para a educação tecnicista industrial,
promovendo o desagrado aos setores conservadores volvidos ao campo (GHIRALDELLI,
2000).
Já em 1935, começar a se discutir a respeito do sistema educacional brasileiro,
que se inicia com a luta entre os defensores do ensino religioso católico com total
autonomia e sem nenhuma interferência do Estado e os educadores do intitulado
movimento escolanovista, que representavam a educação igualitária com a total
responsabilidade do Estado.
Cria-se o Ministério da Educação e Saúde aspirado pelos educadores
escolanovistas, se tornando um organismo central da educação, caracterizado pelo
forte controle e fiscalização do ensino. Para Gustavo Capanema, Ministro da Educação
durante o tempo estado-novista, a educação necessitaria se instituir como um dos
fundamentais “instrumentos do Estado” e apontar um sistema de normas morais,
econômicas e políticas, completamente direcionado a alocução ideológico e político do
Estado Novo.
Nesse período surge também o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos
(INEP), estabelecido por Capanema no ano de 1938, funda-se a Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil, que influenciou basicamente o Ensino Médio e
Superior. Na sequencia são decretadas gradativamente as Leis Orgânicas da Reforma
Capanema que reestruturam o ensino primário, secundário, industrial, comercial,
normal e agrícola; que teve um caráter necessariamente elitista opositores as
mudanças e inovações políticas (GHIRALDELLI, 2000).
A partir da Segunda Guerra Mundial, constitui-se a educação militar para os
alunos do sexo masculino (com diretrizes pedagógicas impostas pelo Ministério da
Guerra), o que ocasionou a obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica e a OSPB
(organização social e política do Brasil) com objetivo de ensinar aos estudantes o amor
à pátria de forma subordinada às decisões do estado, um ser humano que não tome
atitudes por si, mas sempre se limite aos ditos do sistema.
Com a oposição entre defensores dos ideais da escola pública e os ideias da
escola privada Clemente Miriani então ministro da educação promove a formação de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 796


uma comissão de educadores para organizar e formar a estrutura de um projeto, que
propunha à reforma da educação no Brasil conforme (VEIGA, 1989),

Na década de 1950, influenciados pelo ideal socialista,


desenvolvem-se pensamentos progressistas que conquistaram
apoio de um grande grupo de intelectuais e passaram a atuar
com partidos de esquerda ou, até mesmo, servindo como
teóricos para motivações de vanguardas políticas e culturais,
fortalecendo, assim, o compromisso com a problemática do
ensino público.

Em 1964 deu-se o golpe militar que derrubou o governo do então presidente


do Brasil João Goulart, que tinha seu governo considerado nacional reformista pela
característica distributiva. Com ações que restringiam as remessas dos lucros das
multinacionais as suas bases fora do país, incomodando assim a classe dominante do
Brasil, a elite.
O presidente não pode reagir a rebelião militar e partiu para o Rio Grande do
Sul depois para o Uruguai como político exilado (COTRIN, 1999). Foi eleito o Marechal
Humberto Castelo Branco como presidente porque atendia a interesses das
multinacionais em sua maioria norte americanas consolidando a política de opressão a
população e abertura para crescimento do capital internacional em terras brasileiras.
Desse modo, o golpe militar causou uma ruptura nos avanços das discussões e
reformas educacionais, não se permitia mais pessoas que se debruçassem sobre os
problemas da educação brasileira, mas tudo iria se restringir ao controle militar.
O golpe se constitui num ato antidemocrático e autoritário, nesse momento
diversos estudantes são mortos e torturados, acusados muitas vezes por pensar
criticamente e exercer o direito a liberdade, esses eram os crimes cometidos pelos
estudantes nesse período.
Para a legitimação das ações arbitrarias dos militares, foram instituídos
gradativamente, os chamados Atos Institucionais (ROSA, 2006). Este dava ao executivo
o direito de suspender mandatos, modificar a constituição e interromper direitos
políticos a qualquer cidadão. Na educação diversos funcionários públicos foram presos
e punidos com tortura ou morte no caso de serem contrários ao sistema militar.
A pedagogia baseia-se simplesmente na reprodução e memorização de tudo
que é imposto pelo regime, a educação como fomentadora das ideologias repressivas
do estado. Ensino bancário como diz (FREIRE, 1996) pautado na visão do sujeito como
depósito de informações.
A partir daí se fortalece a educação tecnicista profissionalizante, voltada para
formação de trabalhadores para as industrias implantadas no Brasil. Se praticava uma
pedagogia opressiva, valorizando o saber fazer. A educação a serviço da reprodução de
classes sociais, trabalhadores geram trabalhadores e elite gera elite.
Após ditadura militar educadores tem buscado mudar a lógica educacional
brasileira, a começar pela LDB (Lei de diretrizes e bases da educação) de 1996, que tem
como propósito garantir ao cidadão brasileiro o direito a educação de qualidade,
estimular a participação consciente, o exercício da cidadania e a qualificação para o
trabalho.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 797


Valorização do ser pensante a partir de paulo freire

A literatura de Paulo Freire, das décadas de 1950 e 1960, foi e é base para se
pensar a Pedagogia Libertadora, concepção que tem como fundante uma educação
baseada na construção da autonomia daquele que aprende, uma quebra de paradigma
de toda construção histórica, ditadora, que visibiliza o sujeito apenas como
reprodutor do sistema imposto. A formação sujeito como autor “sujeito da história” e
não como “objeto”.
Paulo Freire caminha a partir do princípio da realidade em que vivemos: uma
sociedade repartidas em classes, na qual as imunidades de uns, em desfrutar os
benefícios da produção, opõe-se com a condição da grande população (ARANHA,
1996). O autor faz uma afirmação a respeito do desejo de liberdade do oprimido, por
meio da justiça e da intensa busca pelo recobramento do valor humano e do altruísmo
outrora severamente sufocado.
A educação é um direito primordial longe da abrangência de ampla parcela da
população brasileira, por isso, Paulo Freire se menciona dois tipos de pedagogia: a
pedagogia dos dominantes, em que a educação permanece como método de controle
social e dominação da população, e a pedagogia do oprimido, onde a pedagogia nasce
como prática da liberdade.
Freire buscou, então, adaptar-se com os oprimidos, ou seja, os que não têm vez
e também “não têm voz” na sociedade que está inserido, destacando que estes,
mesmo em condição diferente, têm competência para produzir cultura (GHIRALDELLI,
2000). A Pedagogia Libertadora procurava redesenhar um novo panorama educacional
envolvido com os dificuldades sociais do Brasil (ARANHA, 1996).
A Pedagogia Libertadora rotulou a educação convencional (tradicional) como
“bancária”, uma educação baseada numa ideologia de ensino através de “coação”, que
ponderava o estudante como um ser despossuído de qualquer saber, por essa razão, o
educando era direcionado a se tornar depósito de práticas educacionais equivocadas,
e sua educação completamente contaminadas por intenções políticos e econômicos
direcionadas ao sistema educacional, que lhes traria um “ensino autoritário e
profissionalizante” e não uma troca de ciência entre educando e educador.
A prática da educação pregada por Freire, 1996 retrata que “Convivam com
outros saberes virando sabedoria. Exercitaremos tanto mais e melhor a nossa
capacidade de aprender e de ensinar quanto mai sujeitos e não puros objetos do
processo nos façamos.” Se o sujeito se envolve e se descobre aprende senão apenas se
preenche papeis e em nada se educa, e isso precisa ser uma decisão do sujeito
aprendente “Convivam com outros saberes virando sabedoria. Exercitaremos tanto
mais e melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mai sujeitos e não
puros objetos do processo nos façamos.” (p.58-59).
Como diz Sant’ana, 1995 a respeito da avaliação “A avaliação na perspectiva de
uma pedagogia libertadora, é uma prática coletiva que exige a consciência crítica e
responsável de todos na problematização das situações.” Ou seja, no regime
autoritário a avaliação constitui-se exame que tem por objetivo classificar melhores e
piores, na visão da educação de Freire isso é mudado, Pensa-se uma avaliação que faz
parte do processo de diagnóstico do ensino e da aprendizagem.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 798


Assim, a perspectiva atual da educação se desenvolve a partir dos resultados
obtidos em seu processo histórico, nas ideias de Freire que nos conduz a uma
pedagogia da troca e da valorização humana, da valorização do sujeito como ser
pensante e atuante em sua própria história.

REFERÊNCIAS:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. Moderna, São Paulo, 1996.
BRASIL. LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394, 1996. 6. ed. –
Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011. 43 p.
CAMPOS, Flávio. A escrita da História / Renan Garcia Miranda. São Paulo: Escala
Educacional, 2005.
COTRIN, Gilberto. História do Brasil: um olhar crítico. São Paulo: Saraiva, 1999.
DOCKHORN, Gilvan Veiga. Quando a Ordem é Segurança e o Progresso é
Desenvolvimento (1964 – 1974). Editora: EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa.
Coleção Literária, Editora Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.
9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
GHIRALDELLI, Paulo, História da Educação. São Paulo: Cortes, 2000.
HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL / Mary Del Priore organizadora. 6. ed. – São Paulo:
Contexto, 2007.
NAPOLITANO, Marcos. O Regime Milita Brasileiro: 1964 – 1985. Atual, São Paulo,
1998.
PELLANDA, Nize Campos. Ideologia e educação & Repressão no Brasil Pós 64. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1986.
PILLETI, Nelson. História da Educação no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1990.
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da Educação Brasileira: A Organização Escolar.
Campinas: Autores Associados, 2000.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. Petrópolis:Vozes,
1978.
ROSA, Juliano de Melo. As Vozes de um Mesmo Tempo: a educação física
institucionalizada no período da Ditadura Militar em Cacequi. Dissertação de Mestrado
em Educação/UFSM. Santa Maria: UFSM, 2006.
SANT’ANA, Ilza Martins. Por que Avaliar? Como Avaliar? Critérios e Instrumentos. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1995.
TRINDADE, Virgínia. História: Assim caminha a humanidade. Belo Horizonte,
Brasil,1993.
VEIGA, Ilma Passos (coord.). Repensando a Didática. Campinas: Papirus,1989.
VICENTINO, Cláudio. Viver a História: ensino fundamental. São Paulo: Scipione, 2002.

Lista de anexos

ANEXO 01 – Manifestações de estudantes no Rio de Janeiro em 1968 .


ANEXO 02 – Manifestações dos artistas contra a Ditadura Militar.
ANEXO 03 – Estudantes carregando o caixão com o corpo de Edson Luís Lima Souto.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 799


ANEXO 04 – Manifestantes viram uma Kombi durante a Passeata dos Cem Mil.
ANEXO 05 – Passeata de estudantes em 4 de julho de 1968, no Rio de Janeiro.
ANEXO 06 – Conflito entre estudantes e policiais em 21 de junho de 1968.
ANEXO 07 – Manual de tortura ensinava como os agentes deveriam agir para
retirar informações dos presos.
ANEXO 08 – O General João Baptista Figueiredo, que governou o país entre 1979 e
1985.
ANEXO 09 – Acordos MEC/USAID.

ANEXOS
ANEXO 01

FONTE: http://www.une.org.br/home3/ubes_on-line/imgs/historia_ubes_02_jpg.jpg

ANEXO 02

As manifestações de ruas contra a ditadura onde aparece Gil com Torquato Neto e sua então mulher e
parceira Nana Caymmi na Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro. FONTE:
http://www.gilbertogil.com.br/images/fotos_2/31_g.jpg

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 800


ANEXO 03

Estudantes carregam caixão com o corpo de Edson Luís Lima Souto, morto em confronto com a polícia
militar em 28 de março de 1968, no Rio de Janeiro. (28.03.68). FONTE:
http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2007/imagens/brasil28_5.jpg

ANEXO 04

Foto: O Globo.
Manifestantes viram uma Kombi durante a Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, no Rio de
Janeiro.
FONTE: http://www.memoriaestudantil.org.br/data/documents/storedDocuments/%7BAE8652BB-
103B-4151-ADF7-B3F0EA1E913
5%7D/%7B33963687-BC8D-422B-9E06-B317D50E6FF0%7D/2001-038200_th.jpg

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 801


ANEXO 05

(04.07.68)
Passeata de estudantes em 4 de julho de 1968, no Rio de Janeiro.
FONTE:http://images.google.com.br/images?gbv=2&hl=pt-
BR&q=Passeata+de+estudantes+em+4+de+julho+de+1968%2C+no+Rio+de+Janeiro.

ANEXO 06

Foto: O Globo
Conflito entre estudantes e policiais em 21 de junho de 1968, no Rio de Janeiro. (21.07.68)
FONTE:Http://www.memoriaestudantil.org.br/data/documents/storedDocuments/%7BAE8652BB-
103B-4151-ADF7-B3F0EA1E9135%7D/%7B9D23A3B0-C6C2-4195-8DC9-07DACFA5E143%7D/1997-
040747_pop.jpg:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 802
ANEXO 07

Manual de tortura ensinava como os agentes deveriam agir para retirar as informações dos presos.
FONTE: http://www.jornalcomunicacao.ufpr.br/files/images/manualtortura.materia.jpg

ANEXO 08

O General João Baptista Figueiredo, que governou o país entre 1979 e 1985, foi o último presidente do
regime militar.
FONTE:http://images.google.com.br/images?gbv=2&&hl=pt-
BR&q=Jo%C3%A3o+Baptista+Figueiredo&&sa=N&start=40&ndsp=20

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 803


ANEXO 9

1º - 26 de junho de 1964 – Acordo MEC/USAID para Aperfeiçoamento do Ensino Primário.


Visava ao contrato, por 2 anos, de 6 assessores americanos;
2º - 31 de março de 1665 – Acordo MEC-CONTAP -USAID para melhoria do ensino médio.
Envolvia assessoria técnica americana para planejamento do ensino, e o treinamento de
técnicos brasileiros nos Estado Unidos;
3º - 29 de dezembro de 1965 – Acordo MEC-USAID para dar continuidade e suplementar com
recursos e pessoal de primeiro acordo para o ensino primário;
4º - 5 de maio de 1966 – Acordo do Ministério da Agricultura - CONTAP-UDAID, para
treinamento de técnicos rurais;
5º - 24 de junho de 1966 – Acordo MEC-CONTAP-USAID, de Assessoria para a expansão e
aperfeiçoamento do Quadro de Professores do Ensino Médio no Brasil, Envolvia assessoria no
Brasil. Envolvia assessoria americana, treinamento de técnicos brasileiros nos Estados Unidos e
proposta de reformulação das Faculdades de Filosofia do Brasil.
6º - 30 de junho de 1966 – Acordo MEC-USAID de Assessoria para a Modernização da
Administração Universitária. Em vista da reação geral, esse acordo foi revisto 10 meses depois.
7º - 30 de dezembro de 1966 – Acordos MEC-INEP-CONTAP-USAID, sob a forma de termo
aditivo dos acordos para aperfeiçoamento do Ensino Primário. Nesse acordo aparece, pela
primeira vez , que seus objetivos, o de “elaborar planos específicos para melhor entrosamento
da educação primária com a secundária e a superior’. Envolve igualmente, assessoria
americana e treinamento de brasileiros.
8º - 30 de dezembro de 1966 – Acordo ME-SUDENE-CONTAP-USAID, para criação do Centro de
Treinamento Educacional de Pernambuco;
9º - 6 de janeiro de 1967 – Acordo MEC-SNEL - USAID de Cooperação para Publicações
Técnicas, Científicas e Educacionais.Por esse acordo, seriam colocados, no prazo de 3 anos, a
contar de 1967,51 milhões de livros nas escolas. Ao MEC e o SNEL incumbiram apenas
responsabilidades de execução, mas os técnicos da USAID, todo o controle, desde os detalhes
técnicos de fabricação de livro, até os detalhes de maior importância como: elaboração,
ilustração, editoração e distribuição de livros, além da orientação das editoras brasileiras no
processo de compra de direitos autorais de editores não-brasileiros, vale dizer, americanos.
10º - Acordo MEC-USAID de reformulação do primeiro acordo de assessoria à modernização
das universidades, então substituídos por Assessoria do Planejamento do Ensino Superior,
vigente até 30 de junho de 1969. Nesse acordo, a tática da justificativa foi mudada e houve
determinação de uma ação mais ativa do MEC nos programas, o que, na realidade, não
aconteceu. A estrutura do antigo acordo permanecia, no entanto;
11º - 27 de novembro de 1967 – Acordos MEC-CONTAP-USAID de Cooperação para a
continuidade do primeiro acordo relativo à orientação vocacional e treinamento de técnicos
rurais;
12º - 17 de janeiro de 1968 – Acordos MEC-USAID para dar continuidade e complementar o
primeiro acordo para o desenvolvimento do Ensino Médio (Planejamento do Ensino
Secundário e Serviços Consultivos). Envolvia e ampliava a mesma cooperação assinalada nos
acordos anteriores e reafirmava a necessidade de “melhor coordenação entre os sistemas
estaduais de educação elementar e média”. (ROMANELI, História da Educação no Brasil,
1978, p. 21)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 804


Escuta no plural: grupo de discussão – possiblidades intercambiáveis das narrativas
com adolescentes

Rita de Cássia Magalhães de Oliveira


UNEB/PPGEduC - SEC/BA
rcmagal@yahoo.com.br

O presente texto resulta do processo de um estudo em andamento que utilizou o grupo de discussão
como escuta das narrativas de adolescentes – sujeitos participantes/colaboradores da pesquisa. Embora
o grupo de discussão, seja pensado e aplicado como um procedimento teórico-metodológico – numa
relação com a etnometodologia, o interacionismo simbólico e fenomenologia, neste estudo com bases
metodológicas da abordagem biográfica, o grupo de discussão foi usado como instrumento de coleta de
informações, numa perspectiva de intercambiar as narrativas das interações coletivas vivênciadas e
experiencidas nas práticas cotidianas de um contexto social. O contexto social narrado pelos sujeitos,
está materializado num território rural, mais precisamente em uma escola de ensino fundamental da
rede municipal de educação - localizada no distrito de Matinha dos Pretos em Feira de Santana – Ba. A
investigação busca compreender a relação que se estabelece entre as produções culturais da
comunidade e as práticas pedagógicas presentes na escola desse território. As narrativas (des)velaram e
revelaram que o grupo de discussão enquanto instrumento de coleta de informações, possibilitou uma
imersão nos habitus coletivo de uma comunidade - crenças, valores, complexo das artes, conflitos,
resistências, enfretamentos e negociações foram narrados e pensados frente as condições materiais e
sociais desses sujeitos. Desta forma, o grupo de discussão oferece contribuições significativas para a
escuta de jovens nas pesquisas com narrativas.
Palavras-chave: Grupo de Discussão; Narrativas; Produções culturais; Território rural.

Introdução

O presente texto é um recorte de um estudo em andamento que utilizou o


grupo de discussão como escuta das narrativas de adolescentes – sujeitos
participantes/colaboradores da pesquisa. Embora o grupo de discussão seja pensado e
aplicado como um procedimento teórico-metodológico – numa relação com a
etnometodologia, o interacionismo simbólico e a fenomenologia, neste estudo com
bases metodológicas da abordagem qualitativa de cunho biográfico, o grupo de
discussão foi usado como instrumento de coleta de informações, numa perspectiva de
intercambiar as narrativas das interações coletivas vivenciadas e experiencidas174 nas
práticas cotidianas de um contexto social.
O contexto social narrado pelos sujeitos está materializado num território175
rural, mais precisamente em uma escola de ensino fundamental da rede Municipal de
Educação - localizada no distrito de Matinha dos Pretos em Feira de Santana – Ba. A

174
Compreendemos a ideia entre vivência e experiência a partir dos estudos de Josso (2010) que nos
diz: “[...]: vivemos uma infinidade de transações, de vivências; essas vivências atingem o status de
experiência a partir do momento que fazemos certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o
que foi observado, percebido e sentido.” (JOSSO, 2010, p. 48)
175
Neste estudo tomamos por base a ideia de território de Giuseppe Dematteis, que responde aquilo
que pensamos acerca dessa categoria: O território é construído social e politicamente, contrapondo-se
ao pensamento iluminista no qual a Terra significa um fato natural. A Terra, como formação territorial,
contém a natureza e a sociedade humana, ou seja, formas de comunicação, troca, cooperação, tensões,
conflitos, crises, mudanças e técnicas. O território, assim, indica uma realidade material, resultante das
relações sociais e das relações sociedade e natureza. Há um processo de socialização regulado,
sobretudo pelo mercado e pelo Estado. (DEMATTEIS, apud SAQUET, 2011, p. 37)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 805
investigação busca compreender a relação que se estabelece entre as produções
culturais da comunidade e as práticas pedagógicas presentes na escola desse território
rural-quilombola.
As narrativas (des)velaram e revelaram que o grupo de discussão enquanto
instrumento de coleta de informações, possibilitou uma imersão nos habitus coletivo
de uma comunidade - crenças, valores, complexo das artes, conflitos, resistências,
enfretamentos e negociações foram narrados e pensados frente às condições
materiais e sociais desses sujeitos. Desta forma, o grupo de discussão oferece
contribuições significativas para a escuta de jovens nas pesquisas com narrativas.

A escolha metodológica

Pesquisar exige do/a pesquisador/a uma devotada relação com a ação


reflexiva. Essa reflexão constate, se aproxima do objeto pesquisado, dos diálogos
epistemológicos e empíricos, dos caminhos metodológicos como questões vitais no/do
processo de pesquisa. Tudo tem seu lugar na reflexão, mas ao mesmo tempo, tudo
precisa se imbricar em uma cadência imprescindível ao rigor e flexibilidade (GALEFFI,
2009) que envolvem a pesquisa científica. Neste momento, estou a me aproximar da
reflexão que aborda os caminhos metodológicos de uma pesquisa.
A reflexão acerca da metodologia no processo de pesquisa deve ser um
continuum em todas as etapas de investigação, tanto no que se refere à interpretação
da informação colhida, quanto na abordagem da situação perquirida com métodos e
técnicas empregadas. Tudo deve ser articulado numa coerência produtora de sentidos
e significados, nada é inalterável, porém a análise e o cuidado científico são questões
primordiais e constantes. Em relação à metodologia Thiollent (2009) aponta que:

[...]. Seu objetivo consiste em analisar as características dos vários métodos


disponíveis, avaliar suas capacidades, potencialidades, limitações ou
distorções e criticar os pressupostos ou as implicações de sua utilização. Ao
nível mais aplicado, a metodologia lida com a avaliação de técnicas de
pesquisa e com a geração ou a experimentação de novos métodos que
remetem aos modos efetivos de captar e processar informações e resolver
diversas categorias de problemas teóricos e práticas de investigação. Além
de ser uma disciplina que estuda os métodos, a metodologia é também
considerada como modo de conduzir a pesquisa. (THIOLLENT, 2009,
p. 27-28)

Não vou dialogar neste momento com Thiollent (2009) acerca da metodologia
enquanto disciplina (embora traga a convicção da pertinente discussão que ela nos
remete para a esfera das aprendizagens em pesquisa), meu diálogo se estabelece nas
possibilidades que a metodologia nos proporciona no que se refere à análise e
avaliação do processo de investigação. Ela instrumentaliza o/a pesquisador/a na
experiência científica, desempenha o papel de fazer o objeto tornar-se compreensível.
Por isso, é de extrema importância que a sua escolha tenha aderência ao objeto
pesquisado. Assim, vamos entendendo que sua opção nos diversos níveis/aspectos,
requer uma profunda reflexão, compreensão e rigor científico. Essa é uma condição
que deve ser estabelecida pelo/a pesquisador/a das ciências sociais e das ciências da
educação (e para além dessas ciências).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 806
Na vertente das pesquisas que utilizam a abordagem biográfica como escolha
metodológica, a compreensão e rigor científico não podem estar dissociados de todos
os processos. Desta forma, fiz a escolha metodológica que proporcionaria os caminhos
a serem trilhados na pesquisa, tanto para compreender/interpretar as informações
colhidas, como nos métodos e técnicas para colher essas informações.
A necessidade de pensar a metodologia da pesquisa dentro da perspectiva dos
métodos e técnicas de coleta de informações me impulsionou para dois caminhos: O
primeiro foi trilhado para compreender/interpretar a comunidade e os docentes,
assim, a escolha foi direcionada para as entrevistas narrativas. O segundo para a busca
de informações a partir da escuta das narrativas de adolescentes – alunos e alunas
matriculados no 8º e 9º ano das séries finais do ensino fundamental.
Desta maneira, o grupo de discussão (GD) enquanto instrumento de coleta de
informações, possibilitou uma imersão nos habitus coletivo de uma comunidade -
crenças, valores, complexo das artes, conflitos, resistências, enfretamentos e
negociações foram narrados e pensados frente às condições materiais e sociais desses
sujeitos. Aqui, as informações seriam captadas numa coletividade de narrativas, a
partir das perspectivas dos/as adolescentes. “Nos últimos anos, observa-se um
crescente interesse por técnicas de entrevistas grupais no campo da pesquisa
qualitativa nas Ciências Sociais e na Educação, [...]”. (WELLER, 2011, p. 54).

Grupo de discussão

Prosseguindo no diálogo com Weller (2011), ela nos coloca que foi na
Alemanha que o grupo de discussão (GD) passou a ser utilizado na pesquisa social
empírica, mais precisamente pelos pesquisadores da Escola de Frankfurt, a partir dos
anos de 1950. Contudo, esse processo recebeu tratamento teórico-metodológico
apenas na segunda metade da década de 1970 – com forte ligação ao interacionismo
simbólico, a etnometodologia e a fenomenologia social. Deste modo, deixou o lugar
apenas de técnica de pesquisa de opiniões para incorporar o status de metodologia de
pesquisa. E neste caminho, o grupo de discussão foi utilizado de maneira incipiente, a
partir da década de 1980 nas pesquisas acerca da juventude. Assim, (idem) continua a
dizer que:

[...]. Segundo Bohnsack (2007), para que os grupos de discussão adquiram a


propriedade de método, é necessário que os processos interativos,
discursivos e coletivos que estão por detrás das opiniões, das
representações e dos significados elaborados pelos sujeitos sejam
metodologicamente reconhecidos e analisados à luz de um modelo teórico
ou, em outras palavras, quando interpretados com base em categorias
metateóricas relacionadas a uma determinada tradição teórica e histórica.
(WELLER, 2011, p. 56)

Vou dialogando com Weller e compreendendo que o grupo de discussão (GD)


se constitui como um método de investigação científica. No entanto, nesta pesquisa
com bases metodológicas da abordagem qualitativa de cunho biográfico, procuro
aproximações e vizinhanças com esse método de investigação. Aqui o grupo de
discussão foi utilizado como instrumento de coleta de informações, numa perspectiva
de intercambiar as narrativas com os/as adolescentes.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 807
Essa escolha fundamentava-se na perspectiva de que os/as adolescentes
poderiam revelar e desvelar as experiências comuns ao meio social da comunidade, e
as experiências das práticas cotidianas da escola. Tanto os sujeitos da comunidade,
quanto os sujeitos docentes poderiam contribuir com as informações, mas acreditava
que o grupo de adolescentes, potencializava essa questão, por viver suas experiências,
nestes dois espaços.
No processo de pesquisa, o grupo de discussão atendia a uma proposta
metodológica que utilizaria as interações do grupo como instrumento de coleta das
narrativas de experiências biográficas individuais e coletivas. Neste sentido, Fabra et al
(2001, apud SANTOS, 2008) nos aponta que:

O grupo de discussão é constituído por um conjunto reduzido de pessoas,


reunidas com o propósito de interactuar numa conversa sobre temas
objecto de investigação, durante um período de tempo que oscila entre uma
hora e hora e meia. É precisamente essa interacção que distingue o grupo
de discussão e o que proporciona o seu interesse e a sua força. A discussão,
efectivamente, não tem como objectivo à busca de consenso entre os
participantes; o que permite é recolher um grande leque de opiniões e
pontos de vista que podem ser tratados extensivamente. A situação de
grupo produz a deslocação do controlo da interacção desde o investigador
até aos participantes, o que dá uma maior ênfase [...] aos pontos de vista
dos participantes, facto que permite um aprofundamento dos temas
propostos à discussão, o que dificilmente se consegue de outra maneira.
(Fabra et al., 2001, apud SANTOS, 2008, p. 3)

No diálogo com Fabra et al (2001), vou compreendendo que o grupo de


discussão, através das narrativas, revela e desvela as relações que se
estabeleciam/estabelecem entre a(s) cultura(s) daquela comunidade rural-quilombola
e as práticas cotidianas da escola. As narrativas que trouxeram o contexto da
comunidade e o contexto da escola nos seus mais variados movimentos.

A experiência (com)partilhada

O trabalho com o grupo de discussão (GD) foi organizado seguindo um


calendário de encontros no espaço da escola. Alguns encontros ultrapassaram esse
calendário, pois determinados eventos das diversas dimensões da(s) cultura(s) dessa
comunidade, nos impulsionaram para além do estabelecido inicialmente. As festas, os
movimentos de produção da agricultura (derivados da mandioca e polpas de fruta das
cooperativas), a bata de feijão, etc., foram sendo incorporados ao processo de
trabalho no grupo de discussão, conforme a indicação dos/as próprios/as
adolescentes. Para que esses encontros fossem realizados foi necessário estabelecer
cuidados éticos e organizacionais, como:
• Apresentação do termo de consentimento institucional para a realização
da pesquisa na escola, seguido de autorização da gestora;
• Solicitação de reserva de um espaço físico na/da escola para realização
dos encontros no contraturno de matrícula/aula176 do grupo de
adolescentes;
176
Todos os participantes estão/estavam matriculados/as regularmente no turno matutino.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 808
• Solicitação de autorização do pai, ou mãe e ou responsável. Esse
caminho foi trilhado com a explicação do trabalho de pesquisa para
eles/elas, apresentação do termo de consentimento para que o
adolescente participasse da pesquisa, seguido de consentimento via
assinatura do mesmo. Este foi um movimento dos preceitos de ética em
pesquisa com seres humanos;
• Explicação e autorização dos/as adolescentes para participarem da
pesquisa, assim como do uso do material produzido no contexto do
grupo de discussão;
• Análise e escolha de um filme que seria utilizado no processo de
trabalho com o grupo de discussão;
• Busca, análise e escolha de algumas imagens que representavam a
comunidade a partir do exposto na internet;
• Preparação de máquina fotográfica, filmadora e gravadores de áudio;

O primeiro encontro foi a visita da pesquisadora nas salas de aula do 8º e 9º


ano do ensino fundamental177, convidando para uma reunião com todos/as
adolescentes que se disponibilizassem a ouvir a proposta.
O segundo encontro foi a explicação do trabalho, seguindo da coleta dos nomes
que queriam participar. Neste encontro, vinte adolescentes se dispuseram a participar
do grupo de discussão, assim foram convidados pai, mãe e ou responsável para
explicação da pesquisa. Com o desenvolver do processo, o grupo de discussão foi
composto por catorze alunos e alunas – treze adolescentes do sexo feminino e três do
sexo masculino, com as seguintes idades: 02 com treze anos, 07 com catorze anos, 03
com quinze anos, 01 com dezesseis anos e 01 com dezessete anos. Os encontros foram
realizados (grande parte das narrativas discursivas) na sala disponibilizada pela escola.
Além desse espaço, utilizamos o pátio da escola, a praça da comunidade de Matinha
dos Pretos, a igreja católica e outros espaços externos - sugeridos pelo grupo.
No terceiro178 encontro houve a exibição de um filme: Os Croods (2013),
seguindo um roteiro de análise feito a partir das perspectivas dos adolescentes. No
roteiro, alunos e alunas adolescentes iriam discutir sobre os aspectos apresentados no
filme numa analogia à vida da comunidade que eles/elas vivem, aí estava livre para
que fossem colocadas todas as questões que a observação e imaginação dos/as
mesmos/as quisessem trazer para o grupo.
Esse trabalho foi realizado em subgrupos, formados a partir da
vontade/afinidade dos/as adolescentes. Além das discussões, os subgrupos
produziram desenhos que articulavam questões do filme com a vida na/da
comunidade.
Os demais encontros consistiram na projeção de imagens da/na comunidade,
feitas por alunos/as em máquinas fotográficas, câmera de celular e filmadora, alguns
desses equipamentos foram disponibilizados pela pesquisadora, outros, foram dos
colaboradores do grupo.

177
Em 2013 havia uma turma para cada ano citado.
178
Os três primeiros encontros não foram gravados em vídeo. A gravação em áudio só foi realizada a
partir do segundo encontro.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 809
Em alguns momentos, as imagens foram realizadas por alunos e alunas, sem a
presença da pesquisadora, outras, foram feitas nos eventos realizados pela
comunidade. Algumas dessas imagens de vídeos e fotos foram feitas segundo os
critérios dos alunos, outras, foram feitas pela pesquisadora.
Em cada encontro eram sugeridas temáticas sobre a comunidade, e os
participantes produziam as imagens a partir de seu ponto de vista sobre os aspectos
da(s) cultura(s) do lugar, essas imagens eram trazidas para a escola, projetadas numa
tela e os/as colaboradores/as faziam a imagensnarrativas do que era captado pelas
lentes. As narrativas do grupo de discussão foram gravadas por áudio e vídeo e sua
interpretação teve como base a análise apresentada por Bohnsack & Weller (2011),
baseada no próprio trabalho de interpretação de Bohnsack (1987 e 2007). Para os
pesquisadores uma análise intensiva nunca pode ser realizada numa única etapa.
Além das imagens das produções da comunidade (para além da escola), houve
também a produção de imagens a partir das diversas práticas cotidianas da escola,
imagens que captavam os movimentos de alguns momentos da escola, nela não só
eram apresentadas questões concernentes às turmas de 8º e 9º anos, mas das demais
turmas (ensino fundamental – séries iniciais e finais). Comemorações, apresentação de
trabalhos das disciplinas, recreios/intervalos, campanhas realizadas pelo posto de
saúde, apresentação da festa junina, apresentação de samba de roda, brincadeiras,
etc.
Muitas temáticas foram discutidas. Os/as adolescentes colocavam seu ponto de
vista, suas perspectivas, suas discordâncias, conversavam sobre a vida na comunidade,
dialogavam sobre: Ser jovem e viver na comunidade de Matinha dos Pretos; trabalho
na roça; composição e relações familiares; papel da escola nas suas vidas; relações
conflituosas na escola; discriminação etnicorracial no espaço da escola; as produções
culturais da comunidade; como a escola trata as produções culturais da comunidade;
perspectivas de vida; etc..
Cada imagem narrada revelou a multiplicidade nos/dos sujeitos que vivem a
ambivalência de lugares. Os/as alunos/as do 8º e 9º anos do ensino fundamental
formaram o grupo de discussão, coletivizando/partilhando as narrativas. Eles/as
compartilharam os tempoespaços de suas vidas, na comunidade e na escola. Para
Delory-Momberger, “O modo como os alunos vivem, representam e significam a
escola e o que fazem ali não podem deixar de corresponder, sob ângulos e formas
diversas, ao modo como eles próprios “se narram” e o que eles narram sobre si
mesmos. [...]” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 114). Esse modo como os/as alunos/as
“se narram” acontece não só no espaço da escola, mas também nas suas vivências na
comunidade. No grupo de discussão, a escuta da narrativa de si foi transformada numa
narrativa de partilha de experiências. Desta forma, Weller afirma que:

Os grupos de discussão realizados com pessoas que partilham de


experiências em comum reproduzem estruturas sociais ou processos
comunicativos nos quais é possível identificar um determinado modelo de
comunicação. Esse modelo não é casual ou emergente, muito pelo
contrário: ele documenta experiências coletivas assim como características
sociais desse grupo, entre outras: as representações de gênero, de classe
social, de pertencimento étnico e geracional. Nesse sentido, os grupos de
discussão, como método de pesquisa, constituem uma ferramenta
importante para a reconstrução dos contextos sociais e dos modelos que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 810
orientam as ações do sujeito. […]. Portanto, os grupos de discussão
representam um instrumento através do qual o pesquisador estabelece uma
via de acesso que permite a reconstrução dos diferentes meios sociais e do
habitus coletivo do grupo. O objetivo principal é a análise dos epifenômenos
(subproduto ocasional do outro) relacionados ao meio social, ao contexto
geracional, às experiências de socialização no contexto escolar e
extraescolar, às experiências de discriminação e de exclusão social entre
outros. [...]. (WELLER, 2011, p. 58)

Concordando com Weller (2011) o grupo de discussão se apresentou como


uma ferramenta de reconstrução desse contexto social, pois os/as adolescentes
partilhavam/partilham esse contexto. Lugar onde suas vivenciadas tornam-se (ou não)
experiências. Crenças, valores, práticas, saberes, fazeres (com)partilhados na relação
dos habitus coletivo.

Compreendendo e interpretando as informações do grupo de discussão

As narrativas do grupo de discussão foram gravadas em áudio e vídeo e sua


análise teve como base a análise apresentada por Bohnsack & Weller (2011), baseada
no próprio trabalho de interpretação de Bohnsack (1987 e 2007). Para os
pesquisadores uma análise intensiva nunca pode ser realizada numa única etapa.
Assim, ele/ela sugere etapas de análise que são: Organização temática (fazer relatório
de cada encontro com o grupo de discussão, anotar informações sobre o contexto para
a realização do grupo, como realizou o contato com os/as participantes; aplicar
questionário sobre o perfil dos participantes do grupo para posteriores identificações
das vozes na discussão; identificação dos temas que surgiram durante os encontros,
verificar o grau de envolvimento de cada participante e fazer a transcrição apenas das
questões relacionadas ao objeto da pesquisa (nessa pesquisa, transcrevemos o
material gravado integralmente). Depois dessa etapa, seguimos com a Interpretação
formulada que consistia em saber se a temática foi sugerida pelo pesquisador ou pelo
grupo, aqui buscava-se descobrir o sentido das discussões – o que foi discutido, “[...]
busca-se compreender o sentido imanente das discussões e decodificar o vocabulário
coloquial” (BOHNSACK & WELLER 2011, p. 81). Na etapa seguinte, fizemos a
Interpretação refletida que objetivava “a reconstrução do modelo de orientação
coletiva, do habitus coletivo” (idem) – nisto procurava-se analisar o conteúdo da
entrevista e as ações dos indivíduos, assim como o que está por trás dessas ações. Na
última etapa de análise os pesquisadores sugeriram a análise comparativa, mas como
só trabalhamos com um grupo de discussão, não realizamos essa etapa.
Nesse processo, o diário de campo foi um significativo dispositivo para as
anotações que aconteciam antes e depois dos encontros. Nele foi grafado o roteiro de
cada encontro, assim como as avaliações do que ocorreu. Tanto o previsto como o não
previsto, foi anotado. Olhares, gestos, sorrisos, protestos, denúncias, declarações de
conflitos familiares e da/na escola, tiveram seu lugar de escrita. Em um deslocamento
conceitual das palavras de Bertaux (2010), onde ele escreve sobre: “administrar o
inesperado” (BERTAUX, 2010, p. 85) na condução da entrevista narrativa, nos
avizinharemos dessas palavras, para marcar os momentos das anotações no diário de
campo, onde também podemos refletir com as palavras que ele nos aponta:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 811


Você aprenderá pouco a pouco a controlar os silêncios prolongados, as
emoções fortes que acompanham a evocação dos momentos dramáticos, as
confidências sigilosas, os momentos de dificuldades de um e de outro. [...]. É
necessário que a realidade afete não só seu intelecto, mas seus nervos, sua
sensibilidade para que possa abalar, mesmo em pequeno grau, os
preconceitos e pressupostos que você traz no inconsciente. (BERTAUX,
2010, p. 85)

Embora o diálogo de Bertaux (2010) fosse conduzido para a entrevista narrativa


individual, ele pode der deslocado para muitas das anotações que foram grafadas no
diário de campo. Nos momentos em que os/as adolescentes denunciaram racismo na
escola e para além dela e preconceitos familiares, fomos afetados por aquela
realidade, que de certa forma, pode ter uma analogia com tantas outras histórias dos
grupos que foram historicamente subalternizados.
Uma questão que foi significativa no trabalho com o grupo de discussão foi o
fato de a pesquisadora ter experiência no trabalho docente com adolescentes, isto foi
um aspecto muito relevante. A partir dessa experiência, foram montadas estratégias
para que os encontros não tivessem a formalidade e tensão tão comuns nas conversas
entre alunos/as e professores/as. Era um trabalho que não tinha a relação marcada
pelo/a professor/a como avaliador/a, ainda que não possa ser negada toda a relação
de poder que marca os encontros na instituição escolar entre o adulto – professor/a e
o adolescente – aluno/a.

Finalizando essa conversa

As escolhas que fazemos num processo de pesquisa, não é uma tarefa das mais
fáceis. Contudo, ao fazê-las dentro do rigor e flexibilidade necessárias à pesquisa
científica, adentramos as etapas da investigação - principalmente na sua fase
exploratória, com as probabilidades de está num continuum processo de avaliação.
Cada imersão/emersão no campo da pesquisa é acompanhado de uma circularidade
fecunda que permite avanços no tempoespaço, assim como no recuo que possibilita
novos movimentos.
Neste estudo, o grupo de discussão (GD) formado por adolescentes foi uma
excelente oportunidade para a escuta das narrativas de jovens, já que as dimensões do
objeto a ser estudado, estavam entre a(s) cultura(s) da comunidade e suas relações
com as práticas cotidianas da escola. Era/foi uma oportunidade de discutir o universo
escolar, a partir das narrativas de adolescentes.
A experiência com esse grupo foi bastante fecunda, eles e elas estiveram
dispostos a participar, tanto nos encontros previamente agendados pela pesquisadora,
como nos encontros sugeridos pelo grupo.
Neste grupo como em outros é previsível que alguns adolescentes sejam mais
participativos, outros menos. Todavia, a experiência nos aponta para que não se faça
necessário o “calar” os mais falantes, nem tão pouco forçar os menos falantes a
estarem se pronunciando. Utilize sempre no inicio de cada encontro, dispositivos
dinamizadores, mas de preferência inicie com o contexto dos sujeitos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 812


O trabalho com escuta das narrativas de adolescentes requer uma preparação
prévia e uma constante avaliação para as mudanças ou permanência do que foi
previamente planejado.
Nesta pesquisa o grupo de discussão (GD) foi um dispositivo de coleta de
informações que aderiu de forma satisfatória e produtiva a uma metodologia de
abordagem qualitativa de cunho biográfico. As narrativas coletivas traziam as
(inter)subjetividades dos sujeitos que se (entre)cruzavam com os contextos da
comunidade e da escola. Foi/é uma experiência significativa para o trabalho de escuta
de narrativas com adolescentes. Enquanto técnica de coleta de informações dinamizou
a pesquisa de campo, produzindo significativas narrativas que revelaram e desvelaram
a(s) cultura(s) da comunidade e suas relações com o cotidiano da escola em território
rural-quilombola.

Referências
BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Trad. Zuleide Alves
Cardoso Cavalcante, Denise Maria G. Lavallé. Natal, RN: EDUFRN, São Paulo. Paulus,
2010.
CROODS, Os. Direção: Kirk De Micco; Chris Sanders. Produção:Kristine Belson, Jane
Hartwell. 1 DVD (99 min), NTSC, color. Gênero Animação. EUA, 2013. Distribuidora: Fox
Film do Brasil. Título original: The Croods.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto;
tradução de Maria da Conceição Passegi, João Gomes da silva Neto e Luis Passegi. –
Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.
GALEFFI, Dante. O rigor nas pesquisas: uma abordagem fenomenológica em chave
transdisciplinar. In: MACEDO, Roberto Sidnei. Um rigor outro sobre a qualidade na
pesquisa qualitativa: educação e ciência humana. Salvador: EDUFBA, 2009, p. 13-74.
SANTOS, Cecília. O grupo de discussão e os estudos sociológicos em contextos
escolares. In: VI CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA. Mundos sociais: saberes e
práticas. Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Lisboa, 2009, p. 1-12.
WELLER, Wivian. Grupos de discussão: aportes teóricos e metodológicos. In: WELLER,
Wivian.; PFAFF, Nicole. (Orgs.). Metodologia da pesquisa qualitativa em educação. 2.
ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 55-66.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2009.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 813


A narrativa em Paul Ricouer: relendo Heidegger e acionando sentidos e significados
para o mundo

Rony Henrique Souza


UFRB / Colégio Estadual Professor Edgard Santos (CEPES)
rhsacaminho@hotmail.com

Emaranhado em uma rede de significâncias somos interpelados a compreender a narrativa como um


processo epistemológico e ontológico. Estamos diante de dois conjuntos narrativos: a narrativa histórica
e a narrativa de ficção. Sendo assim este trabalho compreende a narrativa como um processo de
conhecimento de si mesmo, dos outros e do mundo; mas também de um ser inconstante que se mostra
escondendo uma hora de forma fatídica outrora de forma ficcional. A narrativa é como o ser individual
conta a história. A história configura-se como um conjunto de narrativas. Neste trabalho focalizaremos a
obra “O si mesmo como outro” que ver a constituição da pessoa ética como um resultado/resposta da
história. O objetivo principal é tecer uma reflexão, a partir de uma análise literária de Paul Ricouer,
sobre as peripécias de um dasein que fala e ao falar se mostra e, ao se mostrar, revela traços e tantas
significâncias da história e da cultura. Dentre tantas interpretações possíveis, colhemos um dasein
inserido na história que também faz história. Trata-se de um desinstalar-se de um lugar tradicional de
pensar e fazer história para perceber o kairós que a muito tempo foi engolido pelo kronos. NO kairós
história e ficção compartilham o mesmo espaço. Embora dentro de uma temporalidade Paul Ricouer
também entende a história como atemporal. Outra mudança de postura é leitura da verdade como
alethéia e não mais como um processo de adequação, mas fenomenológica. Buscamos compreender um
ser que se desvela. O dasein é sempre um “ser aí”. Um aí presente na conjuntura do tempo, do espaço,
do sentir e do viver. É nesta perspectiva que percebemos Paul Ricouer, relendo Heidegger e acionando
sentidos e significados para o mundo.
Palavras-chave: Narrativa; Kairós; Aletheia.

Um olhar desconfiado...
Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo.
(Fernando Pessoa)

A vida é feita de encontros. Em uma perspectiva heideggeriana, a vida só se


realiza no encontro. Esta é uma característica que também nos diferencia dos outros
seres. Estamos diante de encontros agradáveis ou não, mas que sempre nos afeta.
Encontros que nos transforma, edifica ou decepciona. Nestas idas e vindas da vida
deparei-me com Paul Ricoeur, um pensador contemporâneo, que a princípio não me
deixou com boa impressão. O primeiro contato com a obra de Paul Ricoeur foi
pautado por uma desconfiança. Percebi, ao ler Bona 2010 que não era infundado o
meu posicionamento pois, o mesmo, entendia que Paul Ricoeur buscava conciliar
opostos extremos da filosofia, pois “Todo o seu pensamento é um esforço constante
de promover o diálogo entre posições antagônicas, mostrando em que elas se
complementam. Qualquer tema que tenha tratado, o fez buscando posições rivais para
fazê-las dialogar (BONA 2010, p. 43). Paul Ricoeur reúne contrários para discutir um
único assunto, mas que todavia tem concepções totalmente diferentes e, muitas
vezes, opostas. Na verdade eu ainda não compreendia que estava imbricado por um
contexto positivista que não me propiciava compreender o que propunha Paul
Ricoeur em sua obra. A lógica ricoeuriana se instala em uma perspectiva hermenêutica
e fenomenológica. Não dá para compreender sua obra, seus escritos e seus achados
fora desta perspectiva.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 814


Para Bolivar (2012, p. 44) “El conocimiento narrativo, em contraste com el
científico de la tradición positivista, se preocupa más por la intenciones humanas y
significados que por lo sucesos o hechos discretos, más por la coherencia que por la
lógica, la comprensión em lugar de la predicción y control”. Contudo, ao desconfiar,
conheci e ao conhecê-lo nasceu o desejo de me ver em suas intrigas para pensar este
trabalho.

Desvelando o caminho: novas construções são necessárias.

O primeiro passo seria uma mudança de postura, pois, “A pergunta já não é


mais como sabemos?”, mas “qual é o modo de ser daquele que só existe
compreendendo”? (BONA 2010, p. 71). Precisava mudar a princípio o que entendia por
verdade. Pois para Passeggi (2010, p. 112), no campo das narrativas, das escritas
autobiográficas “Não se busca obstinadamente a “verdade objetiva”, pois se tem
consciência de que a “realidade” passa, obrigatoriamente, pela mediação dos sistemas
simbólicos, constitutivos do imaginário social, que é, por sua vez, subjetivo dos
indivíduos”. A verdade já não seria um processo de adequação, mas de desvelamento
do ser: alethéia. Parafraseando Heidegger 2001, entrava em uma floresta
desconhecida com uma clareira nas mãos. O ser mostrava se escondendo. Ao iluminar
algo muitas coisas ficavam escondidas. Sendo assim,
Ao nos propormos a esse trabalho, não houve a pretensão de esgotar as
muitas análises que esse conjunto de trabalhos comporta, ao contrário, a
perspectiva foi a de oferecer um primeiro mapeamento, na tentativa de dar
uma primeira ordenação a essa produção com vistas a suscitar novos
exames (BUENO, CHAMLIAN, SOUSA e CATANI 2006, p. 388).

Trata-se de um trabalho introdutório, porém profícuo. Não se trata de um


trabalho artificial por não esgotar o ser, mas, ao mesmo tempo, caminha no limite do
tempo e das nuanças que a vida me apresenta neste momento. Tenho plena convicção
que esta pesquisa nos lança em um mar de questões, frutos de trabalhos vindouros.
Diante de uma multiplicidade de temáticas e discussões, estou aqui
empenhado em discutir um tema específico que intitula este projeto “A NARRATIVA
EM PAUL RICOEUR: RELENDO HEIDEGGER E ACIONANDO SENTIDOS E SIGNIFICADOS
PARA O MUNDO”. Penso comigo que ambos os autores, Heidegger e Paul Ricoeur,
dialoga com a tradição e o estado da arte e se configura como mais uma ferramenta
para debruçarmos diante das narrativas de vida. Entramos em um rio que já está
distante de sua nascente, pois já há muitos materiais sobre narrativas de vida, mas
também nos situamos com um modesto objetivo de contribuir com uma lacuna
apresentada por Passeggi,

O baixo escore das comunicações no eixo temático Dimensões


epistemológicas e metodológicas (6,2%) ilustra a necessidade de mais
trabalhos teóricas, métodos de pesquisa e de análise dos dados empíricos.
Há quase 20 anos, Nóvoa (1992) chamava a atenção para as críticas cerradas
de correntes da Psicologia e da Sociologia, sobre a validação científica das
fontes autobiográficas e o esvaziamento das lógicas sociais (PASSEGGI 2010,
p. 109).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 815
O próximo passo seria adotar um modo avesso de abordar esta temática, uma
vez que a história atual é marcada pela objetividade, fruto de uma classe dominante,
uma história que não houve quem faz a história, os sujeitos. Narrativas que não abriam
espaços para outras construções possíveis. O que vale é o que está dito, suprindo
interesses de uma minoria da sociedade. Para Stephanou,

tornamos reféns das narrativas, ou de uma narrativa com sentido de


verdade. Inversamente, incumbe indagar: que verdades as narrativas que
anunciamos em nossos estudos se põem sistematicamente a produzir
verdades sobre nós mesmos? Por que estas e não outras verdades
(STEPHANOU 2008, p. 34).

Aprendemos uma história de reis e rainhas, príncipes e princesas. Uma história


de coronéis e senhores: história esta contada por quem tinha o chicote nas mãos.
Vivíamos uma história de terceiros, estranha a nós mesmos. Só uma história de
senhores entendem os “índios” como indios e não como nativos. Só uma história de
senhores utiliza-se do termo escravo para dizer do negro e não menciona como este
povo foi tragicamente escravizado.
Caminhando na contramão deste processo entenderemos que “A prática de
histórias de vida em formação fundamenta-se sobre a ideia de apropriação que o
indivíduo faz de sua própria história ao realizar a narrativa de sua vida (DELORY-
MOMBERGER 2006, p. 361). O ser que entra dentro de si para dizer sobre si. O ser que
ao falar de si toma consciência de sua vivências e se empodera daquilo que é, daquilo
que se busca; um ser em diálogo constantes com seus princípios. Neste sentido, falar
de si também é carregado de uma axiologia.
Por outro lado, RICOEUR 1995 me parece um tanto quanto pessimista a
princípio sobre esta abordagem,

Talvez estejamos no final de uma era em que contar não tem mais lugar
porque, dizia, os homens não têm mais experiência para compartilhar. E ele
via no reinado da informação publicitária o signo desta retirada sem volta da
narrativa (RICOEUR 1995, p. 45).

A impressão que temos é que falar sobre si realmente caiu em desuso. O


espaço positivo não abre brechas para o narrar. Por ser científico positivista é sempre
objetivo, mesmo sabendo que a vida não comunga desta objetividade. Em segundo
plano por que não aprendemos a falar da gente. Como Salienta Agostinho, em plena
Idade Média, “ Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos” A escola
é especialista em formar para a inautenticidade. Ainda são poucos os espaços
escolares que permitem que o outro possa falar de si. O indivíduo já entra na escola a
partir dos dois anos de vida com uma educação toda projetada. Como sugere o próprio
nome o ser se fecha em uma grade curricular.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 816


Na verdade vivemos mesmo em uma escola/prisão. Podemos aprofundar um
pouco esta discussão e perceber como nossas escolas levam estas características. O
indivíduo usa uniformes, a merenda é distribuída na conta. O que chama para a sala de
aula é uma sirene. Não pode sair e entrar a hora que quer. E a avaliação, na maioria
das vezes, é violenta e punitiva. Aprova-se o “bonzinho” e pune aquele que não está
dentro destas regras pré-estabelecidas. Trabalho atualmente na Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia/UFRB, lugar onde os prédios de aulas levam um nome nada
sugestivo: pavilhões. Pergunto, neste espaço onde o professor é visto como carcereiro,
o indivíduo tem liberdade para falar de si? Mesmo diante disso devemos admitir que
as coisas acontecem e precisam ser ditas, pois “Vivemos em um mar de histórias, e
como peixes (de acordo com o provérbio) são os últimos a enxergar a água, temos
nossas próprias dificuldades em compreender o que significa nadar em histórias
(BRUNER 2001, p. 140).
Decidi transitar da seguinte forma ao percorrer este caminho: partir da
compreensão do termo dasein para Heidegger para, interpelado por esta forma de
pensar o dasein, ir ao encontro do conceito de narrativa em Paul Ricoeur. No intuito de
descobrir qual o sentido do termo narrativas mediante o que afirmou Paul Ricoeur? As
cortinas se abrem, o ser se desvela e estamos diante da arte de pensar a narrativa: o
discurso da vida como ela é, sem acabamentos e sínteses. Miro um ser incompleto e
sem lugar. O foco aqui não é emitir um conceito sobre a vida, mas uma configuração
hermenêutica sobre a existência. Neste sentido esta pesquisa é ontológica e
epistemológica. Pintamos um ser que ao se manifestar, diz.

As peripécias de um dasein que fala

“Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa.


Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa”. (Fernando Pessoa)

Mais uma vez nos apropriamos das palavras de Bona (2010, p. 62) que reafirma
que “a compreensão de si é parte da compreensão do mundo e a compreensão do
mundo é parte da compreensão de si”. Sendo assim a busca não é de uma postura
narcísica, de um pensar só em si, mas de reconhecer que o ser é permeado de
fragmentos do mundo e o mundo não é o mesmo com a presença do ser. O humano
sempre se faz com o outro e nunca sozinho. Para Heidegger 2002 vivemos em meio a
uma rede de significâncias. Ao nascer ganhamos um nome, aprendemos traços da
cultura, carregamos marcas do espaço, hoje principalmente o espaço virtual. O certo é
que ao longo do caminho por hora damos sentidos e ganhamos significados e outrora
damos significados e atribuímos sentidos para a vida e o mundo que nos cerca. Para
Passeggi (2010, p. 123) “A narrativa serve para justificar mesmo o injustificável e
chegar com ela ao equilíbrio perdido. Contar sua história significa, assim, dar formas
ao que antes não tinha”.
Este ser para Heidegger é mencionado como dasein, termo de origem alemã
que comumente se traduz como um ‘ser aí’, o “sujeito que pergunta e deve poder ser
tocado em seu ser-aí. O ser do ente se revela por meio do histórico do exercício da
existência humana de maneira que a própria conexão conceitual é realizada pelo ser aí
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 817
histórico” (STEFANI 2006, p. 29). Quando mencionamos sobre o ser aí histórico,
estamos falando de um ser que foi lançado ai, que é aí com os outros e que carrega
consigo inúmeras possibilidades, inclusive a possibilidade ultima que a anula todas as
outras possibilidades: a morte. Tudo isto pensado numa perspectiva fenomenológica
que nos lança no instante de manifestação do ser ao longo do tempo.
Torna-se importante neste momento pensar a dinâmica do tempo. Para Prado
e Soligo (2007, p. 48),
Uma narrativa não segue o tempo do relógio mecânico, mas o desenrolar
dos acontecimentos tidos como importantes para o narrador. Dessa
perspectiva, viola a sequência cronológica, organizando-se segundo o que o
pensamento do narrador expõe/impõe enquanto tempo da narrativa.

O tempo em questão não é o cronológico, linear, mas o Kairós, tempo


oportuno, tempo interior. O Kairós é extremamente subjetivo: dura muito mais um
minuto encima de uma chapa quente do que uma hora ao lado da pessoa que você
ama. Para Passeggi (2010, p. 119) “não são os fatos vividos em si mesmos que
importam, mas a simbolização desses fatos pela ação das narrativas, sua circulação
entre os membros do grupo, o modo como são contadas para si mesmo e para o
outro”. Neste sentido a linearidade é o que menos importa. O kairós é a configuração
da liberdade extirpada pelo kronos. O sentido, o mais importante, quem diz é o sujeito.

Para Bolivar (2012, p. 38) “ Una historia de vida se construye integrando todos
aquelos elementos del pasado que El sujeto considera relevante para describir,
entender o representar la situacion actual y enfrentar propesctivamente El futuro”. O
ser se manifesta no intervalo do nascer, conviver e morrer. Um ser que nasce, é
lançado em um mundo permeado por outros e que carrega uma grande certeza:
vamos todos morrer. A morte nos lança no instante do viver. Nascemos, convivemos,
mas não sabemos até quando viveremos este instante ultimo da existência, o que
torna mágico este intervalo. Heidegger pensar o ser diante da materialidade da vida.
Para Stefani 2010 Heidegger nos remete a um logos originário que traz consigo
em um novo conceito de verdade:

Heidegger desenvolve a ideia de um logos originário, que remete o sujeito à


pertença, como um lugar comum ao qual se pertence e através do qual se
compreende o mundo. O logos é o oikos, a morada do ser. O homem então
é o ser aí, e é nele que o logos do ente se revela. O logos de que fala
Heidegger é o logos heráclitiano de dimensão originária e que leva a coisa a
mostrar-se, desvelar-se (STEFANI 2006, p. 31).

Aqui o ser não se adéqua, mas se manifesta. Trata-se de uma postura


fenomenológica diante do vivido. Não vamos até a vida para adequá-la em uma
fórmula ou uma definição, mas permitamo-la que ela se manifeste em sua
originalidade: “O ser não se deixa objetivamente representar e produzir à semelhança
do ente. O absolutamente outro relativo a todo ente é o não-ente [Nicht-Seiende].
Mas esse nada [Nichts] vigora [west] como o ser” (HEIDEGGER 2002, p. 101-2). O ser
estar sempre diante do não ser. O que sou é sempre um processo dialético diante

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 818


daquilo que não sou, que pretendo ser, ou até mesmo naquilo que deixei de ser. O ser
não se mostra na sua inteireza, mas aos poucos se desvela.
Algumas luzes acendem, outras apagam. A vida também não é assim? O que
faço agora é um aspecto do meu ser, mas não é de forma alguma minha totalidade.
Outrora ouvia um promotor de justiça pronunciando a seguinte afirmação ao réu: não
estamos julgando você, mas o seu ato. O ato faz parte da história do indivíduo, mas
não é capaz de sintetizar a vida da pessoa. Nós não temos uma dimensão real de nossa
totalidade.
Diante da constante fatalidade de sempre ter que deixar de ser para ser,
Delory-Momberger nos convida a refletir sobre o campo das possibilidades, do projeto
que menciona Heidegger:

Heidegger formulou mais precisamente essa relação determinante da


existência em direção ao futuro e ao possível: nós não podemos chegar a
nenhuma forma de existência a não que estejamos voltados para o nosso
possível, a fim de antecipá-lo, de temê-lo, ceder-lhe, de assumi-lo. Nós
estamos constantemente em um ativismo que nos põe às voltas com nossa
implicação no real – nosso ser-no-mundo – e nossa orientação para o futuro
– nosso estar-diante-de-si (DELORY-MOMBERGER 2006, p. 364).

Esta é uma outra propriedade e contribuição do pensamento heideggeriano. O


ser é em si dialético, ser algo consiste em deixar de ser. Lembro-me de Heráclito, o rio
da vida sempre está em movimento. Sempre sou um outro ser em potência. Um
determinismo certo é afirmar que estou sempre, obrigatoriamente, em formação. A
liberdade nesta perspectiva é angustiante, pois ela nos desestabiliza a todo momento
inserindo-nos no não ser. Somos sempre uma possibilidade real. Nesta
possibilidade/fatalidade certa de mudar o que somos, o convite é que façamos um
projeto. Se isto, de certa forma, nos tira o chão, também nos tira do risco de ficarmos
estáticos. O conservadorismo do ‘sempre foi assim’ não é o que prevalece. A vida é um
constante devir. Estamos sempre construindo diante de nossa desconstrução. Neste
sentido sinaliza Bolivar (2012, p. 34) “ Narrar a sí mismo o a otros ló que há sido o va a
ser El proyeto personal de vida es uma estrategia para construir uma identidad”.
Deixamos de ser feto para ser bebê, de ser bebê para ser criança, adulto, e... O convite
constante é que na dialeticidade do ser, pensemos o possível na contingência do
tempo, pois,

Apenas se o próprio questionar filosófico-investigativo for


existenciariamente assumido como possibilidade de ser de cada ser-aí
existente, haverá a possibilidade de uma abertura da existencialidade da
existência e, com isso, a possibilidade da apreensão conceitual de uma
problemática em geral suficientemente fundada em sentido ontológico
(HEIDEGGER 2012, p. 13-14).

O ultimo passo aqui seria compreender um ser inserido no mundo da vida. Em


uma perspectiva existencialista, estamos sempre permeados por outros. Somos outro
para os que são outros para nós. Este outro me afeta e é afetado por mim. Só sou por

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 819


causa do outro. O outro me gera, o outro me nomeia, me produz, mas ao mesmo
tempo muda constantemente seu itinerário em ocasião de minha presença.
Trocando em miúdos percebemos que Heidegger nos inseriu na verdade nas
inúmeras possibilidades e formas em que o ser se desvela. As dimensões factuais do
dasein é sempre “ser ai”, “ser com” e “ser para a morte”. O ser nasce, relaciona e
morre. A vida é entendida na dinâmica do intervalo, das possibilidades e projetos.
Heidegger nos propõe olhar para nós, revistar a nós mesmos na dinâmica do devir,
deste ser dasein que é único que pode angustiar e perguntar sobre ele mesmo. Aliás,
esta é uma das características principais que diferencia-o dos outros seres.
Trouxe Heidegger neste contexto do artigo por dois objetivos: primeiro por que
entendo que é imprescindível conhecer Heidegger para entender Paul Ricoeur e
segundo para demonstrar, de forma sintética algumas contribuições do pensamento
heideggeriano para a discussão das narrativas. Tendo percorrido este caminho,
podemos agora centrar e ir de encontro ao nosso objeto inicial de estudo que é a
“Narrativa em Paul Ricoeur”.

A narrativa em Paul Ricoeur


“Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo”.
Fernando Pessoa

Indo direto ao ponto, saliento o que disse Delory-Momberger (2006, p. 362) “O


efeito-narrativa tem sido descrito, segundo a análise e os termos de Paul Ricoeur,
como uma reconfiguração, uma síntese do heterogêneo, obedecendo a um
movimento de discordância-concordância”. Nesta breve citação encontrar-se três
conceitos ricoeuriano que precisa ser discutido.
O primeiro ponto é a reconfiguração que carrega em si três significados:
repetir, fazer novamente, configurar, dar novo formato, nova forma a uma coisa ou
situação. Não falamos o que foi vivido, mas interpretamos de acordo com os limites da
linguagem, segunda a rede de significados que estamos inseridos. Falamos do vivido
com os olhos e os sentimentos de hoje. Falamos do passado estando no hoje: “No final
da análise, dizemos que o historiador não conhece de forma alguma o passado, mas
apenas seu próprio pensamento sobre o passado” (RICOEUR 1997, p. 248). E o mesmo
continua nesta perspectiva ao afirmar que “Uma vez que queremos marcar a diferença
entre ficção e história, sempre invocamos a ideia de certa correspondência entre a
narrativa e o que realmente aconteceu”. (RICOEUR 1997, p. 255). Para Delory-
Momberger (2006, p. 365). Entre o que se vive e o que relatamos tem diferença, pois
relatamos o ontem vivendo o hoje. A história de vida não é a história da vida, mas a
ficção conveniente pela qual o sujeito se produz como sujeito de si mesmo”. O ontem
das narrativas é dito pelos signos do presente. Passeggi (2010, p. 123) conclui que “A
vida transformada em texto é possível de interpretações mais acuradas, pois é sobre o
texto que se praticam, sem cessar, novas e permanentes exegeses”.
O segundo ponto é a questão da síntese do heterogêneo. Podemos parafrasear
isto como um meio que encontrar uma forma de conciliar os diferentes. Como foi
afirmado já no início deste trabalho Paul Ricoeur dialoga com os diferentes: “A
narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 820
narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a
identidade da personagem” (RICOEUR 1991, p. 167). Encontra assim um meio termo
entre a tese e a antítese:

[...] a narrativa constrói o caráter durável de um personagem, que se pode


chamar a sua identidade narrativa, construindo o tipo de identidade
dinâmica própria a intriga que faz a identidade do personagem. É pois, em
primeiro lugar, na intriga que é necessário procurar a mediação entre
permanência e mudança, antes de poder aplicá-la a personagem (RICOEUR
1997, p. 181).

Por fim o terceiro ponto trás uma perspectiva dialética de discordância-


concordância, a diacronia do devir. O deixar de ser é uma característica do ser como já
foi mencionado anteriormente. Paul Ricoeur é também aquele que partilha de uma
nova construção que devolve o eu, o sujeito para a história. É o eu que diz de si mesmo
e ao dizer de si mesmo tece a sua exegese. A hermenêutica é construída
primeiramente por que aquele que não se adéqua, que não simplesmente repete o
que foi dito. O sujeito aqui toma em suas mãos a sua história, transveste de uma
terceira pessoa, sai de si para olhar para si. Vai , como já foi dito anteriormente, na
contramão da história. Fala em um sistema silenciador, é convidado a ser autêntico em
um contexto escolar onde paira a inautenticidade. Não se define, mas diz de si mesmo.

A significação do eu somente se forma no instante em que aquele que fala,


se apropria do sentido para se designar a si mesmo de modo único, pois,
fora desta referência a um indivíduo, o pronome pessoal, é um signo vazio
ou um instrumento disponível, para ser apropriado no discurso por quem
fala (RICOEUR 2000, p. 33).

Em síntese a narrativa trás em seu bojo uma interpretação do vivido, um meio


termo entre o ser e o não ser, a tese e a antítese e caminha nesta inconstância do ser.
Entre o que se viveu e o narrado estar o escritor, as mãos que escrevem, pois, “Se a
vida é contada é uma construção de si” (DELORY- MOMBERGER 2006, p.365). Para
Souza (2011, p. 54) “a própria narrativa é um processo de aprendizado, pois remete o
indivíduo a buscar em sua historia vida, aquilo que foi singular, que trouxe marcas
significativas em seu processo de vida-formação-profissão”. Não se trata aqui de
simplesmente mais uma axiologia, mas também. É a sua singularidade que trás a
diferença. Barros aprofunda esta proposta de Paul Ricoeur ao falar deste aspecto
diacrônico das narrativas:

Narrar é configurar ações humanas específicas, mas é também discorrer


sobre significados, analisar situações. Inversamente, discorrer sobre
significados e analisar é também uma forma de narrar, e é por isto que, tal
como já foi ressaltado anteriormente, as modalidades historiográficas que
se propõem a ser analíticas não conseguem escapar de serem também
narrativas. Escolher elementos para constituírem uma “série” e comentá-
los, conforme já foi exemplificado, é também narrar; e discorrer
sistematicamente sobre a “exploração” de um sujeito coletivo, a classe
operária ou um grupo historicamente localizado de camponeses, é também
uma narrativa que, de resto, já continha uma narrativa prévia no próprio
verbo “explorar” (BARROS 2011, p. 7).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 821


O foco não é só o que se tem vivido pelo sujeito, mas as narrativas que fizeram
do vivido: as narrativas das narrativas. Conceitos que são aprimorados, reinventados e
desvelados. Nasce aí outro aspecto da narrativa de Paul Ricoeur, que é o círculo
hermenêutico que é em síntese entender que aquele que diz, diz de alguém em um
contexto pra este ou outro alguém.

Considerações Finais

Em síntese Paul Ricoeur nos lança em uma aventura. As narrativas para ele é
uma forma de devolver, ver a presença do sujeito na história. Mas do que isto minha
história também é valorizada a ponto de ser escrita e narrada para ser um objeto de
formação contínua que se dá ao longo da vida. Para Delory-Momberger ( 2006, p. 361)
“Essa importância dada à experiência individual está inserida em um movimento global
que associa intimamente os formandos aos processos formativos e os considera como
os autores responsáveis por sua própria formação”. O rico é perceber que não é um
movimento do externo para o interno, mas externalizamos o que realmente
vivenciamos para novamente, de uma forma emancipadora internalizar. Olhamos para
nós percebemos nossos achados e traçados e temos a possibilidade específica do
dasein de rever o que outrora vivemos. Para Bolivar (2012, p. 37) “Esta
autointerpretación de la própria vida permite hacerla inteligible o darle significado”.
A narrativa emerge do vivido e,

Emergindo do vivido, a narrativa a ele retorna, transformando-o e


transformando-se em um único movimento, de tal maneira que se pode
dizer que a narrativa histórica é uma reflexão do Vivido sobre si mesmo,
através das imprescindíveis mediações do historiador que constrói o texto e
da atividade recriadora do leitor que recebe e ressignifica a obra
historiográfica, compreendendo, através dela, a si mesmo e ao mundo
(BARROS 2011, p. 15).

Tenho a plena convicção que este artigo é mais uma provocação do que uma
conclusão. Entendo que, tanto Heidegger como Ricouer pode contribuir muito para o
processo de fundamentação teórica, metodologia e como um instrumento de análise
muito eficiente. Heidegger ao refletir sobre o dasein, pensa a vida/existência na
dinâmica do intervalo entre o nascer, conviver e morrer. Já Ricouer adota uma postura
mais hermenêutica, sem do um grande referencial, condição necessária, mas não
suficiente para refletirmos sobre as narrativas de vida.
O convite é que tomamos a nossa história nas mãos e, ao fazer isto,
assumirmos as rédeas de nossa carruagem neste intervalo que é a vida. Abramos a
boca, a mente e o coração, façamos narrativas, pois, “O reconhecimento dos seres
humanos como pessoas plenas de possibilidades ainda não realizadas, antes de ser um
posicionamento epistemológico, é um engajamento ético” (PASSEGGI 2010, p. 127).
Por fim, Passeggi (2010, p. 127) nos remete a reconhecermos o nosso poder,
pois para a mesma “o retorno sobre si torna o sujeito consciente de seu poder e do
poder e do querer do outro sobre a sua vida e, por esse viés, a reflexividade
autobiográfica constitui-se num projeto emancipador”.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 822


Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 823
Genealogia do sobrenome: uma análise autobiográfica

Rosa Maria da Motta Azambuja


UCSAL
psicoazambuja@hotmail.com

A genealogia é conhecida como a ciência da história da família e tem como objetivo desvendar as
origens das pessoas e famílias por intermédio do levantamento sistemático de seus antepassados ou
descendentes, dos locais onde nasceram e viveram e dos relacionamentos inter-familiares, através do
poder da nomeação. Em princípio, não se escolhe o próprio sobrenome: é um nome que já existe de um
grupo de pessoas às quais se pertence. O sobrenome inscreve a pessoa em uma linhagem, em uma
história e em uma comunidade que o nomeia. Em linha ascendente, traz a memória das gerações
precedentes; em linha descendente, está dirigido ao futuro. A história da família, percorrendo os marcos
dos sobrenomes, abrange necessariamente os cenários e as circunstâncias nos quais viveram os
personagens, enfrentando os seus desafios e assumindo suas aventuras. A reconstrução histórica da
formação familiar conduz a interpretações capazes de estabelecer uma ponte entre o passado e o
presente, entre os ancestrais e seus descendentes. O presente estudo tem como objetivo analisar a
genealogia do sobrenome atraves de pinturas de telas encontradas em ambiente familiar; oferecendo
subsídios para esclarecer algumas dinâmicas encontradas na relação entre o nomeado e o seu
sobrenome em um percurso de reconhecimento de si próprio e do outro numa análise autobiográfica.
Palavras-chave: Genealogia; Sobrenome; Pinturas de telas.

Introdução
Os cientistas dizem que somos feitos de átomos,
mas um passarinho me disse que somos feitos
de histórias. (Eduardo Galeano)

A geneologia, conhecida como a ciência da história da família, tem como objetivo


desvendar, por meio do levantamento sistemático dos antepassados ou descendentes, dos
locais onde nasceram e viveram e dos relacionamentos interfamiliares, através do poder da
nomeação, as origens das pessoas e famílias (BARATA; BUENO, 1999). Nesta perspectiva,
Guérios (1994, p. 25) assevera que, na maioria das culturas, as pessoas têm apenas um
sobrenome, geralmente herdado do pai. No entanto, em nomes de origem anglo-saxônica, é
comum a utilização, entre o nome próprio e o sobrenome, de um nome do meio, sendo, por
vezes, escolhido o sobrenome materno.
A existência dos antropônimos, nome próprio da pessoa, está documentada em
todos os povos, em todas as línguas, em todas as culturas, em todos os tempos, desde
os primórdios da humanidade. Estes, quando surgiram, traziam consigo um significado
que, em geral, traduzia uma realidade condizente com os seus portadores. Porém, as
pessoas recebiam apenas um nome, o nome individual, como acontece ainda hoje
entre diversos agrupamentos humanos (GUÉRIOS, 1994).
Para o referido autor, o aparecimento do segundo nome, ou sobrenome, em
certos povos, se verificou em tempos relativamente recentes, algumas vezes por
obrigação de dispositivo legal.
Assim, conhecer a origem dos sobrenomes poderá indicar o local de origem de
determinada família, a sua ocupação ou revelar algumas características dos seus
ancestrais, segundo Polanah, que considera dois tipos básicos: os que eram dados, ou
chamados, pelos “de fora” a alguém; e aqueles que eram escolhidos pela própria
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 824
pessoa para se afirmar ou se distinguir perante os outros; assim, o sobrenome começa
por ser um apelido individual: “[...] mais tarde, constituída a família, os filhos poderão
herdá-lo, independente de cada descendente possuir um hipocorístico ou alcunha que
os companheiros de rua ou da escola lhe tenham posto” (1986, p. 133).
Devido à necessidade de identificar pessoas que têm o mesmo nome, a
sociedade criou mecanismos para diferenciá-las através da utilização de um nome
atribuído que pode estar ligado à ocupação, localidade de origem ou de residência,
filhação, características físicas ou psicológicas, religião e/ou natureza. Porém, ainda
para Polanah (1986), a imposição de um sobrenome geralmente reflete uma expressão
verbal grosseira, inconveniente ou zombeteira, exceto no caso daqueles ligados à
profissão do indivíduo ou dos que indicam uma relação geográfica de origem da
família. Vejamos alguns exemplos:
Ocupação  por exemplo, sendo um indivíduo carpinteiro, cozinheiro, moleiro,
alfaiate, por exemplo, a ocupação exercida por ele poderia ser acrescida ao nome, de
acordo com o seu ofício.
Filhação  Simões (filho de Simão); Guimarães (filho de Guímaro); Fernandes
(filho de Fernando); Henriques (filho de Henrique); Nunes (filho de Nuno); Martins
(filho de Martim); Rodrigues (filho de Rodrigo); Peres (filho de Pero); Antunes (filho de
Antonio).
Características físicas ou psicológicas  um homem humanitário poderia ser
chamado de Bom, Leal, Amado; um homem rígido, inflexível, de Severo. Outras
pessoas que possuíssem uma característica semelhante à de um animal receberiam o
nome em função desta semelhança como, por exemplo: uma pessoa astuta, que
consegue obter privilégios para si, poderia ser chamada de Raposa; um homem
nadador, de Peixe; uma personalidade mansa era apelidada de Cordeiro; alguém bravo
recebia a alcunha de Leão, e assim por diante.
Religião  nos países em que a religião mais influente é o Cristianismo, é
habitual o uso de designações religiosas nos apelidos. Exemplos: Aleluia, Anjos,
Assunção, Baptista, Espírito Santo, Graça, Luz, Jesus, Santos, Trindade.
Natureza  no caso de moradores ou lenhadores que residiam nas
proximidades de alguma espécie de árvore que podia servir como referência para
diferenciá-lo de um seu homônimo, estes poderiam ser chamados por um codinome
referente a esta árvore, tais como Carvalho, Oliveira, Pereira; pessoas que trabalhavam
com seda, retirada do bicho-da-seda, que dá em pés de amora, eram chamadas de
Moreira; moradores que residiam nas proximidades de uma selva ganhavam o apelido
de Silva.
Localidade  pessoas que moravam próximo a uma fonte seca eram chamadas
de Fonseca; se próximo a uma colina ou montanha, podem ter ficado conhecidas como
Monteiro ou do Monte ou da Motta (POLANAH, 1986; GUÉRIOS, 1994; MANTESSO
NETO, 2011).
Meu sobrenome materno, da Motta, por exemplo, originalmente designava um
certo tipo de lugar, sendo, portanto, um topônimo. Em escocês, em irlandês e em
baixo latim, “mota” e/ou “motta” designava uma edificação rodeada por um fosso ou
situada em uma elevação artificial de terra, que servia como obstáculo aos invasores.
Em Portugal, alguns genealogistas defendem a ideia de que Mota como nome de
família vem de um sobrinho do rei de França, Rui Gomes de Gondar, que, morando na
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 825
“Terra da Motta”, decidiu acrescentar “Mota” ao seu sobrenome, dando início à
família com esta denominação toponímica.
Meu sobrenome paterno, Azambuja, também tem origem geográfica. Segundo
Barata e Bueno (1999), os ingleses que povoaram uma pequena vila de Portugal no
distrito de Lisboa, puseram-lhe este nome em função de um grande zambujeiro ou
oliveira brava que havia ali e que podia servir como referência.
No Brasil, numerosas famílias com este sobrenome chegaram a diversas partes
do Rio Grande do Sul, em várias ocasiões. A família Azambuja teve início com Francisco
Xavier de Azambuja e seu irmão Manoel de Azambuja (1683), ambos filhos de Manoel
de Azambuja, natural de Ribatejo, Vila de Azambuja, Portugal. (BARATA; BUENO,
1999).

Caminho Metodológico

Neste trabalho, busco analisar a genealogia do sobrenome através de pinturas


de telas encontradas em ambiente familiar, que podem oferecer subsídios para
esclarecer algumas dinâmicas encontradas na relação entre o nomeado e o seu
sobrenome, em um percurso de reconhecimento de si próprio e do outro em uma
análise autobiográfica.
Segundo Souza (2006, p. 23), em Ciências Sociais, as pesquisas com história de
vida têm utilizado terminologias diferentes e, embora considerem os aspectos
metodológicos e teóricos que as distinguem como constituintes da abordagem
biográfica que utiliza fontes orais delimitam-se na perspectiva da História Oral.
Autobiografia, biografia, relato oral, depoimento oral, história de vida, história oral de
vida, história oral temática, relato oral de vida e as narrativas de formação são
modalidades tipificadas da expressão polissêmica da História Oral.
Dentro dessa mesma perspectiva, o autor trata a história de vida como arte de contar
e trocar experiências que dá vida e credibilidade à pesquisa social e, neste sentido, afirma:

As histórias de vida são, atualmente, utilizadas em diferentes áreas das


ciências humanas e da formação, através da adequação de seus princípios
epistemológicos e metodológicos a outra lógica da formação do adulto, a
partir dos saberes tácitos ou experienciais e da revelação das aprendizagens
construídas ao longo da vida como uma metacognição ou metareflexão[sic]
do conhecimento de si. (SOUZA, 2006, p. 25).

Quando criança, eu escutava um primo português de meu pai, de nome


Joaquim Manoel, descrever a origem do povoado fundado por Fernão Gonçalves, que
abandonou o apelido Tavares e passou a adotar o sobrenome Azambuja por residir
naquela localidade onde havia esta árvore.

Olhando através de imagens: a história da minha família

Certa ocasião, analisando as telas de minha mãe percebi que ali ela havia
retratado a sua autobiografia e a nossa história. O impressionante é que ela não havia
premeditado fazê-lo, pois, certo dia, cheguei a lhe perguntar como interpretaria cada
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 826
cena e pude, então, perceber que ela não as relacionava com a família, não imaginava
que aquelas gravuras haviam partido de uma história real. Tudo aconteceu quando ela
foi tomar um curso de pintura e a professora lhe apresentou algumas imagens para
compor a sua tela, o que resultou em três telas, que apresento a seguir,
acompanhadas de uma análise realizada por mim.
Minha mãe era uma linda jovem camponesa de pele clara e cabelos pretos que
se casou muito cedo com meu pai, um homem maduro e dezoito anos mais velho cujo
temperamento era do tipo sanguíneo-colérico, mas de um coração compassivo e
afetuoso. Com o seu jeitinho dócil e sereno, a moça acalmou “o leão”, o marido, que
era uma fera e que morreu dócil como um cordeirinho em seus braços.

Tela 2

A segunda tela retrata uma cidade pequena, banhada por um rio com
quatro barquinhos a vela em sua margem. O que esta cena representaria?

Ela representa, uma pequena cidade de 30.000 habitantes banhada pelo


Rio Jaguarão, na fronteira do Brasil com o
Uruguai, na qual o casal se estabeleceu e
onde permaneceu por trinta e quatro anos,
até que a morte do marido veio a separá-los.
Ali tiveram quatro filhos e se estabeleceram
como empresários no ramo hoteleiro.Dois
dos quatro filhos do casal faleceram. Ao
contemplar a Tela 2, penso que os dois
barquinhos que se aproximam do cais do
porto representam os meus irmãos que estão
enterrados naquele município e os dois
barcos singrando o rio, são as outras filhas, eu e minha irmã.
Tela 3

Na terceira e última tela, duas aves muito comuns no nosso Estado. O som
que elas emitem ecoa no ar o canto de “quero-quero”, nome que receberam na região
do extremo sul do país. As duas aves
representam, para mim, os remanescentes
da família, mas tenho dificuldade de
discernir se elas representam as duas irmãs
ou se eu e a minha mãe, pois tenho
desfrutado de sua companhia há muitos
anos! Mas uma coisa é clara em minha
análise: a ave menor pode representar
tanto a minha irmã quanto a minha mãe,
pois ambas são destemidas, corajosas e
diligentes avançando, sem vacilar, para

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 827


novos desafios na caminhada. Já eu me identifico com a segunda ave, alta e
saudosista. Porém, atualmente, o meu olhar para trás é somente de contemplação e
gratidão por todas as experiências que me fizeram amadurecer ao longo dos anos.

História da família contada por mim

Sou filha de pai brasileiro e mãe uruguaia. Ao se casarem, eles fixaram


residência na fronteira, lá se estabeleceram no ramo de hotelaria e tiveram quatro
filhos. Sou a filha caçula, criança de natureza introspectiva e observadora, interessada
em ouvir histórias de adultos.
Lembro-me que, no hotel, havia serviço de restaurante para os hóspedes e eu
ficava observando as pessoas e escolhia as que eram maduras, com aspectos de avós,
para que me contassem uma história. Ao selecionar alguém, pedia a minha mãe que
preparasse o meu prato igualzinho ao seu pedido e que me servisse a mesma bebida;
caso fosse um cálice de vinho, pedia que me servisse, em um cálice pequenino, vinho
misturado com água e açúcar.
Então, me aproximava da mesa e pedia licença para me sentar e fazer
companhia. Logo em seguida, sem cerimônia, perguntava se sabia contar histórias e
eles, então, narravam algum clássico infantil. Depois que escutava atentamente,
contava-lhes outra, sem nomear: contava a história de minha família. A narrativa que
fazia era assim:
“Era uma vez um casal que teve quatro filhos, a primeira filha era uma menina
que teve paralisia cerebral. Os outros filhos do casal nasceram normais. A mãe das
crianças, um dia, viu três quadros de ternura dos irmãos com a irmãzinha: no primeiro
quadro, a segunda filha que, ao tentar ajudar a menina a se sentar na cama, disse:
‘Quando crescer, eu vou ser médica para te curar’; no segundo, o terceiro filho, que
sempre estava acompanhado de muitos amigos, decidiu retirá-la da cama para a
cadeira de rodas, sem o consentimento da mãe e com o apoio dos colegas, para
passearem; e no terceiro, a quarta filha foi dar comida para a irmã e vendo que ela se
engasgava para engolir, resolveu mastigar e colocar na boca da menina, para auxiliá-
la”.
Quando terminava de narrar, o hóspede chamava a minha mãe e lhe
perguntava por que eu contava este tipo de história e ela, surpresa, declarava que esta
era a nossa história de família.
Essa era a história que contava aos cinco anos de idade: naquele momento, eu
contava o início e o meio. Mas a conclusão desta história é a seguinte: a minha irmã
especial faleceu aos dezenove anos de idade; a segunda se tornou médica; o terceiro
irmão foi gerente do hotel após a morte do nosso pai, mas faleceu cedo, aos trinta e
cinco anos de idade, vítima de um acidente vascular cerebral, ficando o seu filho do
meio em seu lugar; e a caçula escolheu a área do ensino e especialização em
psicopedagogia para atuar com crianças com dificuldade de aprendizagem.
Ter nascido no seio da família da Motta Azambuja foi uma prova do grande
amor de Deus em minha vida. Os meus pais foram exemplos de determinação e
empreendedorismo assim como os meus irmãos, pessoas amáveis, trabalhadoras,
honestas e generosas.
Concordo com Mantesso Neto (2011) quando afirma que o sobrenome de uma
pessoa conta muitas histórias de vida e que o primeiro passo para resgatar a história
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 828
dos antepassados é ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre a família. Somente depois
é que deverá buscar pistas como data, filiação e local do nascimento, casamento e
óbito e prosseguir com os demais ascendentes. Mas, como saber os ascendentes?
O referido especialista esclarece que as pistas para compormos a história dos
ascendentes começam em casa, através das histórias que coletamos com os nossos
familiares. Podemos recorrer à carteira de identidade dos pais e avós, se a elas
tivermos acesso, ou então visitar o Cartório de Registro Civil de nascimento,
casamento, obituário ou cemitério. É importante fazer a ressalva de que, no Brasil, o
Cartório de Registro Civil passou a existir somente em 1879.
Para os ascendentes imigrantes, pode-se recorrer ao memorial de imigrantes
ou buscar o dicionário de nomes e sobrenomes de família, geográficos ou topográficos,
onde viveu o antepassado, para a formação da árvore genealógica.

Considerações Finais

Concordo com o que diz Mantesso Neto sobre a forma de resgatar a memória
dos antepassados, a partir das histórias contadas em família, do sobrenome e daquilo
que os documentos relativos aos ascendentes pode revelar. No entanto, este estudo
revela outra fonte de acesso a esta historia, no caso, fortuito e casual, como pinturas
em telas encontradas em ambiente familiar, consideradas uma reminiscência visual
através da qual o passado fala ao presente. Do ponto de vista temporal, permite a
leitura do passado, como uma mensagem que se processa através do tempo.
Nesse sentido, as pinturas guardam, na sua superfície sensível, a história da
família. Um dia já foram memória presente, próxima àqueles que as possuíam, que as
guardavam como lembranças. Neste sentido, o pesquisador entra em contato com
este presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos
contemporâneos da imagem, para compreender a história de vida.
O percurso aqui realizado evidencia, assim, a complexidade e a riqueza da
autobiografia enquanto método coletado na trajetória de vida a partir da iconografia
transcendendo as narrativas, em geral, elaboradas consciente e racionalmente.
A partir desse encontro entre as pinturas de telas encontradas em ambiente
familiar foi possível encontrar subsídios para esclarecer algumas dinâmicas
encontradas na relação entre o nomeado e o seu sobrenome, em um percurso de
reconhecimento de si próprio e do outro, em uma análise autobiográfica para
compreendermos a nossa origem.

Referências

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sem fim. Rio de Janeiro, t. 1, 2v. Prefácio: Prof. Rui Vieira da Cunha. Posfácio: Luís
Fernando Veríssimo. Capa: Bia Lessa. Arte Genealógica: Fernando Barata Filho [sem
editora]. CD-ROM. v. 1: A-G.
BARATA, Carlos; BUENO, Antonio (1999b). Dicionário das famílias brasileiras: um livro
sem fim. Rio de Janeiro. t. 1, 2v. Prefácio: Prof. Rui Vieira da Cunha. Posfácio: Luís
Fernando Veríssimo. Capa: Bia Lessa. Arte Genealógica: Fernando Barata Filho [sem
editora]. CD-ROM. v. 2: G-Z.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 829


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prédestinent. Paris: Chiron.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 830


“Cartografias de amozades” e “relatos ecobio/gráficos”: a terminologia como poética
do pensamento

Sahmaroni Rodrigues de Olinda


UFC
sahmuray@yahoo.com.br

Neste trabalho, buscamos empreender um percurso de reflexão conceitual e metodológico de nossa


pesquisa de Doutorado em Educação Brasileira intitulada “Artes de fazer-se(r) escritor(a): relatos
ecobio/gráficos de artistas da palavra que margeiam a “ordem dos livros”. Utilizando-se do método de
pesquisa (auto)biográfica, buscamos compreender na narrativa de artistas da palavra que não têm livros
editados a produção de si como escritore/as de gêneros do discurso literário, inseridos em práticas de
letramento literário não legitimadas. Dessa forma, buscamos cartografar eventos de letramento literário
não legitimados/as pelas instâncias de legitimação da arte literária (academias, escolas, prêmios, crítica,
etc.) em Fortaleza. A partir do relato ecobio/gráfico do pesquisador, partimos em busca das relações de
amizade que puderam (trans)formar seu modo de pensar/consumir/produzir gêneros do discurso
artístico-literário. Trata-se de uma cartografia de amizades como modo de vida artístico-literário: as
amozades como lugares-tempos íntimos de leitura/produção de material artístico. Isto posto,
entendendo que “a terminologia é o momento poético do pensamento”, propomos a terminologia
“Cartografias de amozades” para recriar narrativamente os lugares-tempos da amizade e do amor –
enquanto relação afetivo-sexual – que me (trans)formaram em escritor de literatura, e o relato
ecobio/gráfico resultado processual da narração de si, compreendendo “relato” como um movimento
metafórico (Methaphorai: transportes urbanos gregos) entre passado-presente-devir, o “eco” como o
entrelugar tensional e intertextual, portanto, que relaciona indivíduo/social, e “bio/gráfico” como a
tensão sempre presente em sociedades letradas entre vida e escrita e entre escrita e vida. Esperamos,
como conclusão, deslocar nossa compreensão sobre as terminologias – como momentos poéticos da
pesquisa – que empregamos em pesquisas (auto)biográficas.
Palavras-chave: Pesquisa (auto)biográfica; Terminologia; Relato ecobio/gráfico.

Começos: rebentos do pensar

Numa canção composta por Caetano Veloso e entoada por Maria Bethânia em
seu disco Ciclo179, de 1982, temos um verso que pode nos ajudar a abrir caminhos
sobre a página em branco. Eis o verso: “Quanto mais a gente ensina mais aprende o
que ensinou”. Verso simples, mas de uma clareza singular, ele nos ajuda a entender o
que ensejamos neste trabalho: aprender aquilo que desejamos construir em nosso
trabalho de Doutorado intitulado provisoriamente como “Artes de fazer-se(r): relatos
ecobio/gráficos de artistas da palavra que margeiam a “ordem dos livros”. Em nossa
pesquisa de Doutorado, buscamos compreender, a partir do suporte teórico-
metodológico da pesquisa (auto)biográfica, como sujeitos sociais que não dependem
do mercado – a ordem mercadológica dos livros – editorial para fazerem circular seus
trabalhos artístico-literários, tornaram-se escritores/as e como se posicionam ante o
discurso artístico-literário com relação à sua (des)legitimação como artistas da palavra
que não seguem o caminho dos livros que poderia levar à consagração tornada
possível pelos diversos agentes institucionais responsáveis por selecionar e julgar o
que seja literatura do que não seja, assim como a atribuição do “valor literário”.

179
Maria Bethânia. Ciclo. Rio de Janeiro: Polygram, 1982.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 831
Apre(e)nder e burilar a terminologia utilizada como forma de perceber que esta
não é neutra, que as palavras que escolhemos para atribuir sentidos ao mundo com o
qual nos relacionamos, produz realidades, materializa-se em práticas, eventos, algo
como um abracadabra que supostamente vem do aramaico e significaria “eu crio
enquanto falo”. Pensar e repensar a terminologia seria, portanto, um momento
poético, como sugere Agamben, quando escreve que “as questões terminológicas são
importantes na filosofia. Como disse uma vez um filósofo pelo qual tenho o maior
respeito, a terminologia é o momento poético do pensamento” (AGAMBEN, 2009, p.
27).
Podemos entender esta afirmação, como a possibilidade de tensão entre a
escrita dita literária, algo como um estilo literário cuja intenção seria a de produção
escriturística estética, e a escrita acadêmica, que seria mais racionalizada, mais direta.
Esta tensão, poderia produzir a sensação de desconforto necessária à desnaturalização
destes posicionamentos, uma vez que tanto o que se entende como “escrita literária”
e/ou “escrita científica” são invenções sociais arbitrárias, sancionadas por
grupos/comunidades sociohistoricamente hegemônicas. Dessa forma, poderíamos
abrir espaço para uma escrita inventiva, que produzisse outras possibilidades- e
apontasse ao mesmo tempo que se tratam de possibilidades, e não de Verdade
inquestionável – de nomear o mundo, e portanto, de produzi-lo, pois, como nos
lembra Soares “na língua sempre aparecem palavras novas quando fenômenos novos
ocorrem, quando uma nova ideia, um novo fato, um novo objeto são inventados (...)”
(SOARES, 2005, p.34).
Considerar a terminologia o momento poético de uma pesquisa, seria observar
que a pesquisa é uma prática de poiesis, isto é, uma prática de criação, produção,
invenção da realidade que se está observando, conhecendo, estudando. Dessa forma,
chegamos à ideia de que as escolhas teórico-metodológico terminológicas de uma
pesquisa são escolhas políticas. Como exemplo, poderíamos utilizar a discussão de
Soares sobre pesquisas que querem “distinguir pessoas letradas de iletradas ou para
estabelecer diferentes níveis de letramento” (op.cit. p.82). Dependendo da definição
que se tenha de letramento e das práticas entendidas como legitimamente letradas,
teremos uma avaliação que poderá não ser a mesma se entendermos o letramento no
plural – letramentos – e se incluirmos aqueles letramentos que não são legitimados
pelas instituições de manutenção da crença social (LAHIRE, 2003) como o hip-hop, as
pichações, as literaturas que busco conhecer em minha pesquisa: literaturas
subterrâneas que não estão na sala de aula das escolas, universidades, mercados
editorias, páginas de grandes jornais, mas em folhas avulsas, blogs, facebook, livros
manufaturados e entregues a redes de amigos, leitores/as raros/as que acabam sendo
deslegitimados quando este material não é considerado e/ou visibilizado nas
instituições autorizadas/ autorizadoras daquilo que seja considerado letramento
literário.
Assim, as escolhas teóricas, conceituais, terminológicas de nossas pesquisas,
definem também as metodologias e modos de produção de dados de uma pesquisa,
sendo, portanto, um conjunto de escolhas políticas, nem um pouco neutras, em que
há engajamentos sociopolíticos, mesmo que nem sempre totalmente conscientes por
parte de nós pesquisadores/as, uma vez que “toda pesquisa é mesmo um processo
formado por escolhas subsequentes” (RAMALHO, RESENDE, 2011, p. 90), legitimadas e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 832


sancionadas por grupos/comunidades que têm interesses diversos. Importante,
portanto, refletirmos sobre nossas escolhas, pois, como num passe de mágica – a
alquimia de que fala Bourdieu, que silenciosamente domina as tramas sociais – produz
identidades e práticas sociais (i)legítimas.
Justificadas nossas intenções deste trabalho, devemos então justificar o uso,
neste texto, da primeira pessoa do plural que poderia levar alguns/mas leitores/as a
relacioná-lo com o estilo de escrita positivista que propunha uma escrita objetiva,
neutra, utilizando-se, dentre outros recursos estilísticos, este com o qual estamos
produzindo este artigo. Nossa escolha por tal recurso se dá para apontarmos os
agenciamentos que acontecem e se encadeiam em nossa pesquisa: amizades com
autores/as, pesquisadores/as, educadores/as que vêm discutindo questões
relacionadas aos letramentos sociais não legitimados, questões teórico-metodológicas
relacionadas à pesquisa (auto)biográfica, construção de subalternidades etc. Nossa
escrita sendo um afluente de outras escritas, e como o antropófago, se configura a
partir desses “outros devorados” (ROLNIK, 2011, p.24), numa escrita que se assume
singularplural.
Além disso, retém conversas, debates, orientações com nossos professores
orientadores João Batista de Albuquerque Figueiredo e Messias Holanda Dieb, como
também de diversos professores/as com quem temos dialogado nas disciplinas do
Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Programa de Pós-Graduação em História, todos da UFC. Sem esquecer
também dos/as colegas e encontros em bares, corredores, cantinas, bibliotecas,
cinemas etc. Poderíamos dizer que je sommes un autre, para parafrasear Artur
Rimbaud, ou dizermos: meu nome é legião. “Escrevemos o anti-Édipo a dois. Como
cada um de nós era vários, já era muita gente. (...) Não chegar ao ponto em que não se
diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem importância dizer ou não dizer EU”
(DELEUZE, GUATTARI, 1995, p.17, itálicos do autor). Se seguimos a pista terminológica,
portanto política, de Josso (2008), quando esta fala em um singularplural, porque não
chegarmos a um eu-nós, dando ênfase a um nós que constitui o eu? Nossa escolha,
portanto, se deve a esta escolha política de perceber cada um de nós como se
constituindo nas diversas relações sociais, e também constituídos de múltiplas
identidades que emergem e transpassam nossos textos, inclusive acadêmicos.
Após estas justificações de escolhas e intenções, tracemos os movimentos
retóricos que que construirão este artigo: num primeiro momento discutiremos sobre
a pesquisa (auto)biográfica que estamos produzindo em nosso Doutorado como uma
cartografia poética de amozades: os/as narradores/as de si são amigos e amigas que
partilham de alguma forma o modo de vida literário, mesmo que esta partilha esteja se
dando agora no processo mesmo de pesquisar. São, dessa forma, amores (e) amigos,
ou antes, movimentos criativos de amozades. Num segundo momento, discuti sobre a
terminologia “relato ecobio/gráfico” que vimos utilizando em nossas escolhas teórico-
metodológico-políticas de pesquisa, pois entendemos que os movimentos que
compõem nossa pesquisa, entendida como uma prática social entre sujeitos (FREITAS,
2003), produz também gêneros discursivos, e o nome dado a este gênero, pode ser
uma escolha para apontar estes movimentos/deslocamentos discutidos.
Para as discussões que se seguem, utilizaremos fragmentos de nosso relato
ecobio/gráfico produzido em nosso projeto de pesquisa, e que norteou algumas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 833


escolhas prévias – mas não engessadas – para a entrada no campo de pesquisa
empírica: nossos lugares-tempos de (trans)formação e educação literária que nos
constituiu como artista da palavra, como também fragmentos de diário de
(trans)bordo de nossa pesquisa em andamento e excertos de narrativas realizadas
pelos sujeitos interlocutores da pesquisa.

Cartografias poéticas de amozades: pesquisa-formação-(auto)biografia

A pesquisa cartográfica tem o intuito de se contrapor a um ideal de ciência


positivista, que ainda parece pairar nos meios acadêmicos, que visa(va) tudo conhecer,
neutramente, e de forma programada, sem os riscos que o campo empírico impõe,
acreditando que se coletava a realidade, daí a ideia de “coleta de dados”. O escritor
argentino Jorge Luis Borges sintetiza esta perspectiva de ciência em seu conto Sobre o
rigor da ciência”, do qual reproduzimos um trecho:
Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa
de uma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do
império uma província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos
não bastaram e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do
império que tinha o tamanho do império e coincidia com ele
ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações
seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não sem
impiedadeentregaram-no às inclemências do sol e dos invernos (...)
(BORGES, 2001, p. 117).

Insurgindo-se contra esse totalitarismo epistemológico, a pesquisa cartográfica


compreende que à medida que caminhamos pelos lugares-tempos de nossa pesquisa,
nós a poetizamos, isto é, nós a produzimos, a inventamos a partir dos conceitos que já
trazemos e que formam nossa percepção das coisas. Tentando se contrapor a isso, a
pesquisa cartográfica propõe/deseja “olhar com olhos livres” e ir devorando aquilo
que afete e faça afetar no processo mesmo de pesquisa. Neste sentido, trata-se de não
se fechar a ideias preestabelecidas anteriormente ao campo de pesquisa, mas
entender o campo como um lugar de desmoronamento de certezas, um lugar caótico
de produções afetivas constantes, compreendendo que produzimos dados numa
relação de interlocução junto a sujeitos que nos permitem que com eles/as
dialoguemos, doando-nos seus tempos e vidas:
Nada mais distante do que aquele modelo de pesquisa de campo que
consiste em observar e recolher dados, como quando se vai a um
supermercado e se retira da prateleira os produtos buscados, os quais à
nossa espera... Contra a evidência do campo, é nosso olhar que distingue
e que enxerga em meio à poeira das multiplicidades” (PAIVA, 2007, p.
37).

Olhar criador, produtor de realidades múltiplas que parece estar sempre


fugindo ao nosso entendimento, à nossa percepção por vezes tão enquadrada em
determinados moldes de pensar e agir sobre o mundo e com o mundo. A cartografia
aparece então como uma forma de estar no mundo, em meio ao caos criativo tentar se
deixar afetar e afetar os sujeitos com quem dialogamos. Não uma epistemologia, mas
algo como uma epistemolorgia, um saber cuidadoso e multifacetado que não negue o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 834


caos, mas o agregue às suas percepções, “em sintonia com o caráter processual da
investigação” (PASSOS, KASTRUP, ESCÓSSIA, 2010, p. 9). Trata-se de uma outra
orientação perceptual visando lançar nossos olhares, sentidos, olfatos para o mundo:
A cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma
orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo
prescritivo, por regras já prontas nem com objetivos previamente
estabelecidos. No entanto, não se trata de uma ação sem direção, já que
a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da
orientação do percurso da pesquisa. (...) Não mais um caminhar para
alcançar metas pré-fixadas (metá-hodos), mas o primado do caminhar
que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hodos-
metá. A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da
pesquisa sempre considerando os efeitos do processo de pesquisar
sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados (PASSOS,
BARROS, 2010, p. 17).

De que modo nossa pesquisa (auto)biográfica sobre identidades e práticas de


letramento artístico-literário não legitimado apresenta-se como uma cartografia? Num
primeiro momento, trata-se de uma abertura aos espaços180 e tempos múltiplos de
nossa memória, daquilo que emerge como rememorado, o acontecimento mnemônico
que se materializa na página. Quando nos narramos, não tínhamos uma intenção
prévia de criar algo com começo meio e fim que devassasse nosso corpo
memorialístico, mas fomos exercitando afetos, entregando-nos ao que emergia e se
insurgia do exercício de rememorar. Desses exercícios, muita história importante não
foi lembrada, foi deixada para uma outra narrativa, para um outro espaço-tempo.
Entretanto, nessas idas e vindas de nossa razão bio/gráfica, materializou-se um relato
que depois foi burilado, reescrito, mais uma vez movimentado, até configurar-se como
o relato que compõe nosso projeto de pesquisa.
Ali, naquelas idas e vindas por entre memórias revoltosas e outras tantas de
calmaria, produziu-se um desenho móvel, que poderia ser modificado se fosse narrado
em outras circunstâncias. A cartografia torna-se, dessa forma, um acontecimento
cosido de outros acontecimentos. “O acontecimento que sobrevém é um momento,
um fragmento de realidade percebida que não tem nenhuma outra unidade além do
nome que se lhe dá” (FARGE, 2011, p.71). Instantes cosidos por recursos narrativos:
tempos verbais, conjunções, preposições, advérbios etc. mas também por outros
corpos em movimentos: lembranças, ranger de dentes, lágrimas, braços espalmados,
suspiros e idas à janela para tomar ar diante de algo lembrado. Narrar é sempre verbo,
processo aberto a desordens, cartografia.
Além disso, nossa narrativa configurada na página no gênero discursivo projeto
de pesquisa mostrou-nos que é por deslocamentos, que nos (trans)formamos em
artista da palavra: foram relacionamentos amorosos, afetos escolares, encontros com
determinados/as autores legitimados/as que nos fez desejar escrever esteticamente.
As amozades surgem, dessa forma, como lugares-tempos descontínuos de formação
180
Delory-Momberger (2012) chama nossa atenção para o fato de os espaços serem relegados a
segundo plano em pesquisas (auto)biográficas, relembrando-nos de que produzimos espaços e somos,
nós próprios, espaços-corpos em contato/atrito com outros espaços-corpos. Podemos, então, afirmar
que os acontecimentos que encadeamos numa narrativa, são lugares de memória de onde
produzimos/acionamos sentidos sobre nós e os/as outros/as.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 835
artístico-literária. Namorados que exigiam de mim leituras de obras consideradas para
o vestibular, outros que me ensinaram na cama a ler um poema com o corpo,
entonando voz, e não como quem lê uma bula de remédio, coisa que não
aprendêramos no curso de Letras. As amizades de um namorado que nos influenciam
a tentarmos alguma linguagem artística, uma vez que todos/as eram de alguma forma
reconhecidos/as como artistas: poetas, dramaturgos, diretores de teatro, artistas
visuais, performers, atrizes/atores. Em meio a esta orgia afetiva, a volição de sermos
reconhecidos e admirados por esses/as outros/as que admirávamos.
Desta forma, as amozades, entendidas como lugares-tempos (trans)formativos,
podem ser cartografadas, redesenhadas, formando um mapa bio/gráfico de nosso
percurso formativo que desemboca no desejo e ação de produzir para si a imagem de
artista, mais especificamente artista da palavra, filho da pauta. Uma vez que esta
pesquisa se pretende autobio/gráfica, começaremos nosso processo de interlocução
com nossa redes de amozades: amigos/as, namorados, que escrevem e
comunicam/publicizam seus artefatos literários. Se a amizade é este “espaço de
recognição mútua”, no dizer de Foucault (1995, p. 257), este lugar de invenção,
produção de reexistências, partiremos dessas linhas de fuga, destes lugares estéticos e
produziremos “cartografias de amizades artístico-literárias”, isto é: partiremos de
desenhos que visam criar uma paisagem escriturística inserida nas interrelações
cotidianas de leitura/escrita literária e modos de vida artista compartilhados e
invisibilizados no ordinário, que tanto serve para a poesia, como diria Manoel de
Barros (2010). Amizades como modos de partilha estética, criativa, como “potência
política” (AGAMBEN, 2009, p. 91): “A amizade é a condivisão que precede toda divisão,
porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa
partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política” (op. cit., p. 92,
grifos do autor).
Como sugerido em nosso percurso181, nossa sensibilidade artístico-literária
enquanto “repertório compartilhado de valores, ícones e mitos estéticos, afetivos e
perceptivo-sensoriais” (MORICONI, 2002, p. 13) foi sendo (trans)formada em relações,
encontros, sofrimentos, eventos sociais, lugares de encontros que transcendem os
lugares legitimados de formação. Parcerias (trans)formativas como espaços de
formação pela trajetória de vida, percebendo que “a vida é arte do encontro/ Embora
haja tanto desencontro pela vida”, como reza Vinícius de Moraes em seu “Samba da
Benção182”. Estas amizades, portanto, são a produção – e o produto de – política de
laços sociais, de redes de solidariedade e partilha, ampliados a cada novo encontro.
Assim, ao contatar estes(as) amigos(as), tem sido proposto a co-laboração na
produção da pesquisa, pedindo-lhes que nos contem/narrem suas vidas, que se
(re)inventem nas narrativas, que fabriquem seus relatos ecobio/gráficos tendo a nós
como interlocutor privilegiado que assistiremos seus rebentos: como nos tornamos
quem somos? Como alguém começa a escrever literatura? Quais encontros, lugares,
pessoas, etc. foram importantes para que você se tornasse quem você é? Através de
uma pergunta-disparadora, pedimos a estes/as “escritores/as subterrâneos(as)” para
que se narrem para nós, que expressem seus “sentido[s] do ‘eu’”, quem somos e como

181
Percurso cosido em nosso relato ecobio/gráfico inserido em nosso projeto de Doutorado, qualificado
em 28.02. 2014, no Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, UFC.
182
Disponível em: <http://letras.mus.br/vinicius-de-moraes/86496/>. Acesso em: 15 fev. 2014).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 836
ficamos assim” (MAGALHÃES, 2006, p. 77). Por sua vez, o próprio processo de pesquisa
vem se constituindo um espaço-tempo de amozades, em que nos modificamos,
emocionamos, afetamos, alterando modos de perceber o que vínhamos propondo, e
entendendo que este processo de pesquisa vem se constituindo como uma ampliação
dessa rede afetiva, uma vez que temos comprovado aquilo que Ecléa Bosi afirmou em
seu trabalho “Memória e sociedade”: “Uma pesquisa é um compromisso afetivo, um
trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa” (BOSI, 1994[1979], p.38).

De acontecimento em acontecimento se cose um relato ecobio/gráfico

A par destes movimentos cartográficos que visam a produção de um “mapa


móvel”, que produz uma espécie de “escrita urbana” (CERTEAU, 2009), porquanto
localiza e visibiliza os percursos e locais onde estão situados os próprios sujeitos com
quem dialogaremos e estamos dialogando no movimento de pesquisa que estamos em
vias de desenvolver, além de buscar nos espaços-tempos de nossa memória, vimos
observando páginas sociais, e descobrindo publicações de poemas, contos, minicontos,
etc. em páginas de facebook, google+, divulgações de blogs, e temos entrado em
contato com esses escritores/as propondo uma parceria para a construção dessa
pesquisa. De nosso círculo de amozades, a própria movimentação da pesquisa tem
ampliado nossa circunferência afetiva, e temos conversado, dialogado, tomado café
com pessoas que têm aberto suas vidas, gavetas, computadores, para mostrar-nos
seus trabalhos artístico-literários e suas formas/maneiras de visibilizá-los.
Em meio ao burburinho memorialístico – entre árvores e esquecimentos –
surgem acontecimentos que se ligam um ao outro, produzindo-se o
momento/movimento narrativo, geralmente ligado a um momento de troca nos lares,
cafés, ou outro lugar de acordo com a disponibilidade dos sujeitos convidados/as para
participar. Como se pode perceber, em todos os momentos, surge o movimento, o
deslocamento, a junção de acontecimentos espaço-temporais. E é por isso, que
julgamos ser necessário – a par da ideia de que a terminologia não é neutra -, a
discussão sobre o “produto” narrativo que é dado a ler, por exemplo em nosso projeto
de pesquisa e/ou se dará a ler em nossa tese de doutorado.
Discutindo questões referentes à pesquisa (auto)biográfica, Passeggi nos
informa que “para evidenciar o papel da linguagem na elaboração e recepção das
escritas de si” (PASSEGGI, 2011, p.18) Georges Gusdorf gostaria de ter utilizado no
título de seu livro o termo Graphibiauto ao invés de Auto-bio-grafia “colocando em
primeiro lugar a escrita por seu poder constitutivo do eu e da vida” (op.cit. 18). Gaston
Pineau, por sua vez, prefere o termo “histórias de vida” para não vincular diretamente
as narrativas com a escrita, para evitar o território da intimidade, contido no radical
auto, e para acolher as diversas expressões de vida (PINEAU, 2006; PASSEGGI, 2011).
Entretanto, em outros textos seus, Pineau utilizará o radical em expressões como
“auto-bio-história”(PINEAU, LE GRAND, 2012, p.126-127), “auto-eco-reorganização”
(op.cit, p.90), que põem em primeiro plano a questão subjetiva, como se o individual
viesse antes do social.
Ainda que saibamos que não se trata disso, queremos evitar em nossa
terminologia, principalmente no “texto final” - após o retorno ao sujeito e as

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 837


negociações183 em seu material narrado e transcrito, texto que deverá estar contido
em nossa Tese-, este radical [auto] que pode sugerir a ideia de que “diante da
dissolução dos quadros externo, fazer e ganhar a vida obriga, cada vez mais, todo
indivíduo a explicitar [...] A tomar a vida, não apenas nas mãos, mas também na
cabeça, para fazer a sua” (PINEAU, LE GRAND, 2012, p.91).
Ao contrário disso, pensamos que essa injunção à dizer-se, “a tomar a vida nas
mãos” é uma imposição social, que nos obriga a uma “condição biográfica” (DELORY-
MOMBERGER, 2012), e dessa forma, esse desmanche dos quadros sociais, gera outra
configuração social que impõe ao indivíduo que este busque soluções para questões
que, geralmente, são geradas socialmente. Por isso, preferimos o radical “eco” para
priorizar a dimensão social que nos constrange a fazer escolhas que parecem ser
individuais. “Na sociedade individualizada, o indivíduo precisa aprender, sob pena de
um prejuízo irreversível, a reconhecer-se a si mesmo como foco de ação, como agência
de planejamento no que diz respeito à sua própria carreira, às suas capacidades,
parcerias, etc (BECK, 2010, p.199, Negritos nossos).
Trata-se, dessa forma, de percebermo-nos como espécies de microempresas
interessadas em gerar capital cultural válido para nosso desempenho no social, capital
validado por instituições desse mesmo social. Portanto, não se trata do fim do social
ou da sociedade, mas entender que a modernidade avançada “vê a emergência e o
desenvolvimento da autorrealização individual como instituição central da nova
relação que ela instaura entre o indivíduo e o social” (DELORY-MOMBERGER, 2012,
p.29, Itálicos da autora). Dessa forma, quando priorizamos o “eco” em lugar do “auto”,
apontamos para a tensão relacional existente entre a sociedade e o indivíduo, uma vez
que quando nascemos, nascemos em uma sociedade, somos com-formados, trans-
formados socialmente: “a sociedade é sempre a sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1991)
que a compõe, assim como os indivíduos são os indivíduos de uma sociedade,
indivíduos de sociedade” (op.cit. p.22, Itálicos da autora)
Quando nos narramos, narramos relações sociais, lugares, espaços-tempos
compartilhados com outros. Somos sempre “eco”, estamos sempre em relação uns
com os outros, e com nós mesmos, retomando a proposição je sommes un autre,
paráfrase de Arthur Rimbaud. Dessa forma, o material narrativo individual se torna o
locus privilegiado para entender relações sociais e posicionamentos individuais e
sociais, posicionamentos singulares, exatamente por serem sociais. Como propunha
Certeau, apenas uma ciência das singularidades poderia apreender este ato como um
acontecimento social. Falamos em singularidade e percebemos que esta só é possível
socialmente, isto é: apenas enquanto acontecimento social, nos singularizamos,
tornamo-nos diferentes do que somos, do que outros são: ao invés de seguir a lógica
do rebanho, ao invés de seguir os convites à massificação, experimentar modos de
vida singulares, em companhia e amizades traçando linhas de fuga que são
singularmente coletivas. Não há paradoxo, mas heterodoxo: somos singulares
socialmente. Apenas socialmente, em relação com o outro.

183
“O biográfico se define justamente como um espaço intermediário, às vezes como mediação entre
público e privado; outras, como indecidibilidade” (ARFUCH, 2010, p.28).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 838
Privilegiar o “eco” na pesquisa (auto)biográfica nos parece oportuno, na
medida em que permite ouvir184 “a fala” de agentes sociais sobre si, sobre suas
trajetórias (trans)formativas, narrativas que põe “no palco”, “inúmeros artifícios dos
‘obscuros heróis’ do efêmero” (CERTEAU, 1996, p. 342), que rebentam este “ novo
herói da vida [...] o homem comum imerso no cotidiano [...] que no seu pequeno
mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar da eficácia das vontades
individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil” (MARTINS, 2010, p. 52 ). O
“eco”, portanto, aponta para a tensão, para o espaço agonístico social-individual,
apontando esta injunção a “tomar-se e responsabilizar-se por si” como uma injunção
primeiramente social. Propor uma ciência das singularidades, como intentava Certeau
(1996), entendendo a cultura ordinária como “uma ciência prática do singular” (op.cit.,
p. 341) de modo a perceber, apreender e propor como formas de reexistências –
modelos múltiplos de reescrita de suas histórias–, compreender, enfim “os inúmeros
artifícios dos ‘obscuros heróis’ do efêmero” (op.cit., p. 342) em suas “lidas ” diárias
contra a padronização e institucionalização das trajetórias bio/gráficas.
Além dessas razões de ordem políticas, o “eco” no trabalho narrativo, permite-
nos lembrar a operação intertextual que se realiza em cada história narrada:
palimpsesto de outras histórias, uma narrativa como eco de outras narrativas185.
Rememorando a danação da Musa Eco, lembramo-nos que em nossa narrativa somos
constituídos – e tocamos a compor em nossa pesquisa – por múltiplas relações,
histórias, encontros, discursividades, camadas e mais camadas de discursos, que nos
constituíram. Encontramos em nosso relato não apenas o outro, mas um
encadeamento de relações186 que nos faz identificarmo-nos como artista da palavra.
Uma Sociedade “discursivizada” e biográfica que nos convida, a partir de modelos
sociais de narração, narrarmo-nos, a apontar nossas singularidades sociais, apontando
nossos percursos formativos a partir do coro polifônico que se concretiza em nossa
narrativa individual, singularplural.
O relato ecobio/gráfico seria dessa forma o resultado de um processo narrativo
produzido numa situação de interação social, a pesquisa, em que, entre idas e vindas,
chegaríamos a uma materialização numa página, de um percurso de (trans)formação
produzido pelos sujeitos interlocutores da pesquisa. Desta forma, o trabalho
formativo-reflexivo com a pesquisa (auto)biográfica pode ser compreendido como a
criação de relatos bio/gráficos:

No relato não se trata mais de ajustar-se o mais possível a uma


‘realidade’ (uma operação técnica etc.) e dar credibilidade ao texto pelo
‘real’ que exibe. Ao contrário, a história narrada cria um espaço de

184
Aqui realizo outra escolha político-teminológica: trata-se de dar ouvidos às estratégias dos heróis do
anônimo, e não dar voz a estes/as que gritam e sussurram em versos e trovas.
185
“Jamais “habitamos” um lugar único: no lugar onde estamos, trazemos conosco e vivemos uma
pluralidade de lugares. Em outras palavras, na economia de nossa geografia pessoal, dispomos de uma
forma de ubiquidade: relacionando-os uns aos outros, fazendo-os interagir entre si, nós vivemos os
lugares à maneira de uma espacialidade plural, multidimensional” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p.74-
75).
186
Após a apresentação deste trabalho no Simpósio em 08.04.2014, Carla de Quadros da UNEB fez o
seguinte comentário: “Seu corpo é eco de seus amigos, quando você fala são as histórias deles que
ecoam”. Agradecemos esta linda e profunda colocação que nos fez perceber empiricamente o quanto
somos relações e tramas de outros tempos e lugares que se renovam em nossa fala, em nosso corpo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 839
ficção. Ela se afasta do ‘real’ – ou melhor, ela aparenta subtrair-se à
conjuntura: ‘era uma vez...’. Desse modo, precisamente, mais que
descrever um ‘golpe’, ela o faz. [...] O relato não exprime uma prática.
Não se contenta em dizer um movimento. Ele o faz. Pode-se, portanto,
compreendê-lo ao entrar na dança. Assim Detienne. Diz as práticas
gregas narrando as histórias gregas... (CERTEAU, 2009, p. 142-144,
itálicos do autor).

Dessa forma, para o autor, tomando como metáfora o transporte urbano


grego, as methaphorai (op. cit. p. 182-183), o relato leva de um lugar-tempo a outro
lugar-tempo, ele não apenas diz, mas ao dizer, desloca, age, realiza, cria, amplia
realidades, ficcionaliza. O relato eco/biográfico, como “fim” do percurso de pesquisa
que se inicia no convite ao narra-se, passa pelas seguintes etapas, até tornar-se este
movimento-estático que ele é: Primeiro, o encontro narrativo em que o corpo se
agita, se contorce, diz, gesticula, modula a voz, exalta-se, emociona-se ao lembrar de
seus primeiros escritos artístico-literários. Esse momento, torna-se memória do
pesquisador, pois não poderá ser visto pelos/as apreciadores da pesquisa, na medida
que aquele momento performático, aquela body art é uma arte efêmera, um
acontecimento que faz parte das memórias do pesquisador/espectador. Num segundo
momento, temos a gravação em áudio da narrativa de si, gravação que traz o corpo da
voz, outra corporalidade que não mais aquela do corpo no ato de narrar descrito
acima. Ao ser transcrita, esta voz que vem se transformando de “corpo da voz” em
“voz do corpo”, ganha outra materialidade: a escrita não é a representação da fala187,
assim como a fala não é mero jogo fonológico, mas um corpo que se movimenta. A
escrita é outro corpo daquela voz que se deslocou, é o transporte metafórico
ocorrendo e transformando a narrativa em relato: relato ecobio/gráfico.
Dominique Maingueneau utiliza o conceito significante “bio/gráfico” para falar
da relação entre literatura e vida, entre autoria e escritura, como a barra que une e
separa como “uma relação instável”, entendendo a bio/grafia como um fluxo “que se
percorre nos dois sentidos: da vida à grafia ou da grafia rumo à vida” (MAINGUENEAU,
2001, p. 46, grifos do autor). Somos recapturados pela escritura, “a atividade concreta
que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em construir um texto que tem
poder sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado” (CERTEAU, 2009, p. 204).
Poderíamos parafrasear o gênesis, e neste movimento afirmar: tu és página e à página
retornarás, pois somos capturados pelo “tecido escriturístico”: somos registrados ao
nascer, recebemos notas em boletins ao longo de nossa vida escolar, somos
capturados por cartões de vacinação que “acompanham” nossa saúde, enfim: a
escritura está presente em nossa vida. Vivemos em sociedade cujas “letras” nos
marcam, somos filhos da pauta.
Vivemos assim em uma sociedade letrada. Somos atravessados por atividades
de linguagem que nos subjetivam. Diversos gêneros textuais – entendidos aqui como
formas culturais e cognitivas de ação social – nos inscrevem neste imenso turbilhão

187
A própria movimentação que produz o relato ecobio/gráfico aponta para o imbricamento entre oral e
escrito, muito mais do que uma dicotomia ou um antagonismo. Ainda que estas duas modalidades
tenham características próprias, seria mais correto pensá-las em termo de imbricamento, de
hibridização em nossa sociedade, como pode ser percebido em nossas reflexões (ver MARCUSCHI,
2001).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 840
escriturístico, antes mesmo de nascermos. Dessa forma, o movimento narrativo
empreendido em nossa pesquisa aponta para este lugar social da escritura que nos
atravessa: o relato ecobio/gráfico é a produção de uma figuração de si (DELORY-
MOMBERGER, 2008), “imagem de si” materializada na página em branco que tem o
poder sobre nós, pois, cria-se um desenho linguístico de nós, desenho, que esperamos,
seja libertador, proporcionador de linhas de fuga, de potência política junto às
margens artístico-literárias. Mesmo que esta demanda biográfica responda “às novas
necessidades de uma sociedade” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p.22), acreditamos que
este processo de produção de um relato ecobio/gráfico aponte possibilidades
socioindividuais de coletivização e solidariedade artísticas que burlem as normas das
instituições legitimadoras do que seja ou não considerado arte, literatura, letramento
oficial, e proporcione devires estético-políticos que não desconsiderem, ou pior,
desvalorizem o trabalho artístico de outros/as, e não produza, dessa forma,
letramentos e identidades artístico-literárias subalternizados.

Conclusão: movimentos de abertura

O objetivo deste texto era pensarsentir a terminologia de nossa pesquisa de


doutorado que investiga as práticas de letramento artístico-literário não autorizadas
pelo discurso literário legitimador e a produção e identidades subalternizadas ou não,
decorrentes dessa não legitimação, invisibilidade, ou ainda pior, desvalorização do
trabalho artístico-literário de alguns/mas escritores/as da cidade de Fortaleza (CE).
Pensar a terminologia seguindo a ideia de Giorgio Agamben de que a terminologia é a
poética do pensamento. Isto é, o momento em que, de alguma forma, já produzimos,
criamos a realidade sobre a qual gostaríamos de nos debruçar.
Dessa forma, explicitamos, ao longo do texto, a perspectiva do movimento/
agenciamento que perpassa nossa pesquisa. Poderíamos afirmar que nossa pesquisa
será um movimento de escolhas, desejos postos para circular, produzir visibilidades e
tensões entre o legítimo e o ilegítimo, o passado-presente-futuro, a margem e o
centro, para afirmar este compromisso ético-político de tentar ver com olhos livres e
antropofagizar aquilo que pode nos fortalecer e (trans)formar. Por isso, a cartografia
poética de amozades propõe este movimento de ampliação na pesquisa dessa rede de
afetos, dessa ampliação da percepção do artístico-literário situado em espaços-tempos
não visibilizados/legitimados. Por isso, também, a importância de percebermos a
movimentação que produz corporalidades diferenciadas, mas interconectadas, até
desembocar no relato ecobio/gráfico que conterá a figuração dos sujeitos narradores
interlocutores de nossa pesquisa.
Trata-se aqui, não de uma proposta terminológico-política que busque
universalizar-se nos meios acadêmicos. Mas, bem ao contrário disso, buscar confluir
com processos criativos científicos que tensionem arte e ciência, buscando produzir e
ampliar um pensamento-artista, tornando legítimo aquilo que Santos denomina
“racionalidade estético-expressiva” (SANTOS, 2011). Buscar entender a pesquisa em
educação, não apenas como uma repetição terminológica de áreas que “pensam” a
educação, mas propor a pesquisa como um movimento criativo-educativo de si, com
os/as outros/as, entendo que a forma como olhamos para o mundo é a forma como o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 841


vemos e o produzimos em nossa pesquisa, ou como diria o poeta Wally Salomão: “O
olho por onde eu vejo deus é o mesmo olho por onde ele me vê188”.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 843


Arquivos e memórias da Escola de Samba Deixa Malhar: um tipo de samba proscrito
durante o Estado Novo

Sormani da Silva
CEFET/RJ/PPRER
sormanisil@oi.com.br

O objetivo deste artigo é analisar a trajetória da Escola de Samba Deixa Malhar (1934 – 1943). Situada
na antiga Chácara do Vintém, na região da Tijuca, foi da Deixa Malhar que surgiu o primeiro “Cidadão
Samba” da cidade do Rio, em 1936: O lendário “Mano Elói” (Elói Antero Dias), assim como o lugar onde
se realizou as primeiras reuniões para fundação da UGE (União Geral das Escolas de Samba), que teve o
sambista Flávio dos Santos como seu Presidente. Segundo o sambista Calça Larga (Joaquim Casemiro), a
Escola de Samba Deixa Malhar serviu de modelo, enquanto forma de apresentação que começava a se
distinguir em relação aos Ranchos, Blocos e Grandes Sociedades. Forjou uma concepção moderna de
instituição recreativa contribuindo no quesito da sociabilidade da Cultura Negra; contudo constatamos a
partir dos jornais e da memória de alguns sambistas que a agremiação foi misteriosamente eclipsada
durante o fim do Estado Novo. Tal acontecimento é pouco problematizado na literatura sobre o tema. A
proposta não tem a pretensão de cobrir “lacunas”, mas considerar alguns aspectos da trajetória da
agremiação. Nossa hipótese entende que parte da crise da agremiação foi resultado de práticas
ideológicas ligadas ao processo de conversão de um determinado tipo de samba como identidade
internacional do país.
Palavras-chave: Deixa Malhar; Escola de Samb; Diáspora.

Os fios malha de “Mano Eloi ”

Ao falar de experiência biográfica como narrativa histórica, destacamos que tal


formulação teórica e metodológica faz parte de um projeto de construção do
conhecimento já bem sucedido no campo da micro-história. A proposta ao reduzir a
escala de observação num processo de distanciamento em relação ao macro, escolhe
um ângulo de observação que produz efeitos no conhecimento. Segundo Revel (1996)
“variar a escala não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no
visor, significa modificar sua forma e trama” Desta forma o fundamental, durante a
constituição da narrativa, é variar as escalas. Tal abordagem tem constituído um
campo de possibilidades inovadoras no sentido de captar a trajetória de grupos que
tradicionalmente não eram contemplados como sujeitos. Assim através da abordagem
biográfica é possível conectar o individual e o coletivo possibilitando o
questionamento em relação a algumas posições “confortáveis” e homogenizadoras.
(LORIGA. 2011. p.222) Trata-se assim de trabalhar no campo da complexidade social
tentando abordar os sujeitos não reféns de uma linearidade histórica, de questões de
classe social ou de instituições, mas num processo mútuo de negociações. Assim a
micro-história (REVEL,1996), (GINZBURG,1989), (GRENDI,1977) ao articular biografia e
história possibilita a formação de hipóteses que sejam capazes de abarcar as
experiências individuais e coletivas apoiando-se numa diversidade de materiais:
memória oral, escrita, biografia entre outra fontes.
A produção bibliográfica sobre o grupo carnavalesco Deixa Malhar é
praticamente inexistente, sendo assim, a nossa narrativa se articula em breves relatos,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 844


apontamentos dos jornais e alguns aspectos da trajetória do sambista “Mano Elói”:
Eloi Antero Dias, seu principal baluarte.
O livro do pesquisador Ary de Vasconcelos: A Nova Música da República Velha
(1985 p.237) propiciou nossa orientação metodológica inicial ao mencionar a
trajetória de Mano Eloi (1888-1971) com uma breve citação da Escola de Samba Deixa
Malhar. Vasconcelos descreve Mano Elói como compositor, letrista e instrumentista,
entre outras atividades de criação. Porém sobre a questão das composições de samba,
Mano Eloi, em uma entrevista na década de 1970, descartou essa atribuição,
argumentando que na sua época a tarefa de compor era uma forma de arte especifica
para alguns iniciados.189
Nascido em Engenheiro Passos, no Vale do Paraíba, Mano Elói chegou na
cidade do Rio de Janeiro com 15 anos, se fixando como vendedor de balas ao lado do
seu Tio chamado Zé das Colunas, nas imediações do Campo de Santana. Neste
contexto, participou ativamente das rodas de samba dos morros da Favela e de Santo
Antônio, sendo contemporâneo de uma realidade em que o samba era cultuado em
locais secretos em virtude da repressão policial. Sua trajetória na década de 30 pode
ser compreendida também na difusão do jongo na cidade. Foi ele que transformou o
gênero numas das principais características da agremiação carnavalesca Deixa Malhar,
ao comandar inúmeras apresentações da agremiação nas Feiras da Amostra.
Outro aspecto da trajetória do jongueiro surge do testemunho de Geraldo de
Souza, um antigo morador do morro do Salgueiro e praticante do Caxambu. Geraldo
descreveu, para o jornalista Haroldo Costa, que na sua infância procurava se “intrujar”
entre os coroas caxambuzeiros190: “Seu Oscar Monteiro, Tio Antero, Seu Castorino,
Dona Olimpia”. A menção a Tio Antero, provavelmente é uma referência a “Mano
Eloi’ (COSTA,1984 p.25) O jongo no contexto das escolas de samba pode ser entendido
como um arcabouço rítmico de inspiração cultural negra, uma espécie manifestação
musical africana advindas do período colonial, o qual convergindo como outras
manifestações dos setores médios da população. SANTOS (2011 p.124) enfatiza ainda
que os grupos de percussão de rua, onde surgiram os fundamentos das futuras
baterias das escolas de samba eram predominantes apenas nos cordões e blocos de
sujos. Grupos mais organizados naquela época preferiam os conjuntos regionais.
Jota Efegê descreveu “Mano Eloi” como bamba na capoeira, no rabo-de-arraia
e do samba raiado. Segundo o cronista, o sambista participou de uma luta de exibição
com o grande capoeirista Ciriaco, no antigo pavilhão 9. Interessante frisar que embora
talvez haja algum exagero nesta narrativa heróica do sambista, não resta dúvida de
que os capoeiras participaram ativamente nos cordões e blocos carnavalescos.

189
Mano Eloi afirmou que na sua época não era qualquer um que se metia com a composição de
sambas. É uma opinião muito interessante, pois participou da época áurea do rádio, onde desfilavam
nomes como Cartola, Ary Barroso, Noel Rosa, Wilson Batista. No entanto sua reflexão já poderia esta
apontando as transformações do mundo do samba na década de 70. Jornal do Brasil em 20/02/1971.
190
Alguns cultuadores do jongo fazem distinção: Um tipo de jongo mais vinculado à matriz religiosa,
consagrada pelo mestre Aniceto do Império. E uma vertente que se aproxima de um lado mais lúdico,
que seria na realidade a dança, chamada caxambu, praticada por negros que vieram da região das minas
gerais,uma vertente ligada ao Darcy da Serrinha. Ver in: VARGENS. João Batista M.(org) Notas musicais
cariocas. Petrópolis. Editora. Vozes. Rio de Janeiro. 1986. Artigo de Valeria Fernandes: “O jongo no Rio
ontem e hoje” p.139.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 845


TINHORÃO (1972 p.154) destacou que em 1870 suas coreográficas acrobáticas
denominadas “caboclos” abriam os caminhos dos ranchos constituídos pelos baianos
da região da Saúde, após as danças de velho e demais cordões: Rei dos Diabos, Pincês,
Dr. Bruno , o Palhaço. Daí surgiram inúmeros passistas negros e mestiços que em 1920
formaram a base do samba, e sobretudo o fenômeno das escolas de samba. Daí
também podemos compreender o espaço dos valentes na organização das primeiras
escolas de samba, como uma espécie de auto-regulação em virtude das Leis Penais,
que na década de 30 coibiu sua prática em espaço público.( SODRÉ. 2002 p.52). A
capoeira configura-se como uma manifestação da cultura negra que sobrevive até hoje
nas Escolas de samba, embora se apresente para alguns como dança, sua força esta na
luta. Mas retornando ao contexto histórico anterior, o uso da valentia num mundo
semi-urbano foi uma saída muito utilizada na resolução de contendas políticas. (SODRÉ
2002.p 60) observa sobre o uso da violência ritualística ligada a fatores místicos no
sentido de expressar a força masculina, a força do guerreiro. Talvez a força desse
simbolismo seja traduzido por um desejo de potência frente ao ritmo frenético do
processo de modernização consagrado nos processos aparentemente neutros da
regulação do espaço urbano.

“Num dos carnavais da década de 30, a Deixa Malhar foi


campeã de um desfile realizado na Praça XI em virtude de
Mano Eloy intimidado a comissão julgadora quando a escola
fazia evolução em frente ao palanque destinado ao jurados.
Tido como valente, Mano Eloy era homem respeitado na “beira
do cais” (estiva) na roda de samba e nas gafieiras” (Jornal
Correio da Manhã 12/01/1970)

Mano Eloi foi um dos principais incentivadores de rodas de samba na cidade,


sendo também um dos fundadores da Deixa Malhar e Prazer da Serrinha. É
interessante frisar que a Prazer da Serrinha foi contemporânea da Deixa Malhar e
foram os membros dessas duas agremiações que apoiaram o Mano Eloi durante a
polêmica criação da comenda carnavalesca de “cidadão samba”, em 1936. Na época
coordenado pelo jornalista Luiz Nunes da Silva, “O enfiado” do jornal A Rua.191 Ali
constatamos uma verdadeira união entre os jongueiros de Madureira e Salgueiro.
A pesquisadora Helena Theodoro, a partir de entrevista com o jornalista,
compositor e produtor cultural Rubem Confete, descreveu a relação entre o samba em
sua coexistência com as religiões afro-brasileiras. O que nos ajuda a unir parte dos
fios dessa densa malha do samba carioca :

“Samba é um fenômeno que só tem explicação na energia que


vem das casas de omolokô, da tradição religiosa de base
africana, como afirma o radialista Rubem Confete, tendo
juntado o culto ás almas, da gira de Preto Velho e Caboclo e da
energia de Seu Napoleão Nascimento, que era pai de Natal. No
Estácio, foi a energia de Tancredo Silva, grande pai-de-santo de
Omolokô. Na mangueira, Dona Maria de Fé foi estimulada por
Eloi Antero Dias para que criassem uma escola de samba. Antes
de fundar o Império Serrano, o Sr Eloi que fundou o Deixa

191
Jornal Diário Carioca 16/02/1936.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 846
Malhar, no baixo tijuca” (Theodoro, Helena – Guerreira do
samba.V.6/10/09. P. 235)

O texto destaca a atuação de Mano Eloi no morro da Mangueira incentivando a


formação de uma escola de samba. Aspecto que provavelmente antecedeu a data de
fundação do ainda Rancho Escola de Samba Deixa Malhar, aliás localizada numa região
valorizada da Tijuca, uma questão importantíssima a se destacar diz respeito à
ocupação daquele território pela população negra. A “nomeação” pela população local
de parte de morro do Turano, em morro da liberdade, fez parte do processo de luta
pelo território contras às remoções empreendidas pelo arrendatário de terras Emilio
Turano. A ascensão das escolas de samba facilitou esse espaço de negociação com as
autoridades. Outro aspecto que podemos acrescentar, a essa questão, é sobre a
formação de outras sociedades recreativas na trajetória de “Mano Elói” como: Filhos
da Campina, Cordão dos Velhos192, Flor de Romã. Uma campo de experiências que nos
conduz ao tempo dos ranchos. Parte dessa tradição derivou de práticas do baiano
Hilário Jovino, que concebeu uma nova característica em relação à antiga estrutura
religiosa advinda da experiência católica do ciclo natalino chamada lapinha, que surgiu
no Recôncavo Baiano (SANTOS, 2011,p.123). O rancho rei de ouro, um dos primeiros
da cidade do Rio, deixou de desfilar no dia 06 de janeiro, data da comemoração dos
Três Reis Magos. Gradativamente essa estrutura foi sendo transferida para o circuito
do carnaval, condensando o sagrado e o profano, o que acabou dando um formato
definitivo para as Escolas de Samba.
A presença de Mano Elói193 no morro da Mangueira foi destacada pelo
compositor Carlos Moreira, nome artístico “Carlos Cachaça” ( Silva p.28.1980 ) na
época do Racho Pérola do Egito. Neste momento promissor do samba carioca, Elói
com sua fama de jongueiro, entoou na casa de Tia Fé, um partido alto que
provavelmente era de autoria coletiva, uma prática muito comum nos carnavais da
Festa da Penha.

“Nessa época, o samba começava a aparecer em Mangueira,


trazido quase sempre pelo “moleque” Elói – Elói Antero Dais.
Ele morava na famosa estação de Dona Clara, reduto dos
maiores valentes, macumbeiros e batuqueiros. Ele chegava aqui
sempre acompanhado de Pedro Moleque, Pedro Lambança e
outros. O terreiro preferido deles era o da Tia Fé. Eloi era pai de
santo respeitado. Nos terreiros tinha a festa do santo. Quando
terminava, entrava o samba. A música que predominava em
todos os lugares, aqui era de autoria de Elói e foi, por muito
tempo, a coqueluche de vários carnavais e festejos da Penha.”
(SILVA.1980. P. 28)

192
Jornal A Manhã 09/07/1949. P 13. Galeria do Sambista.
193
“Nessa época, o samba começava a aparecer em Mangueira, trazido quase sempre pelo “moleque”
Elói – Elói Antero Dias. Ele morava na famosa estação de Dona Clara, reduto dos maiores valentes,
macumbeiros e batuqueiros. Ele chegava aqui sempre acompanhado de Pedro Moleque, Pedro
Lambança e outros. O terreiro preferido deles era o da Tia Fé. Eloi era pai de santo respeitado. Nos
terreiros tinha a festa do santo. Quando terminava, entrava o samba. A música que predominava em
todos os lugares, aqui era de autoria de Elói e foi, por muito tempo, a coqueluche de vários carnavais e
festejos da Penha.” Ver in Fala Mangueira., Maria T. Barbosa da. Silva, Carlos Cachaça, Arthur L. de
oliveira Filho – rio de Janeiro:J. Olimpio, 1980. P. 28
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 847
Analisando os fios dessa malha não se poderia deixar de imaginar para
diversidade cultural do Morro da Mangueira. Como um espaço de mediação entre a
cidade, o subúrbio ou mesmo zona rural, aspecto facilitado pelas condições de acesso.
O compositor Carlos Cachaça já em 1915, contou que “Mano Eloi” levou para o morro
da Mangueira um tipo de samba batucado que versava: “O padre diz, miseré, misereré
nobis”. Assim diante da presença do sambista na localidade poderíamos muito bem
imaginar que o sambista tenha participado de um jogo da malha; afinal enquanto o
futebol no início do século XX, era uma atividade muito mais voltada para os jovens da
elite carioca, o jogo da malha estava significativamente difundido em todo subúrbio. E
costumava reunir alguns “capadócios”, amantes do batuque: capoeiras, malandros. A
jongueira Nininha,(SILVA, 1980) recordou que no morro existiu um “Clube da Malha”,
que foi levado pelos portugueses que habitaram as proximidades do morro. Em suas
recordações chamou a atenção para a presença de um músico chamado Bataleão, que
tocava neste clube de malha. Ao trazermos essa lembrança façamos dela um fio entre
os clubes de malha e a música, o samba. Seria esse o espaço para inspiração para um
clube de malha, que depois se tornaria bloco, racho e finalmente a Escola de Samba
“Deixa Malhar”? Se o futebol gerou muitas escolas de samba, quem sabe o jogo da
malha tenha nos dado uma de nossas primeiras Escolas de Samba? Não custa nada
deixar a imaginação funcionar quando estamos falando de samba. De qualquer forma
foi no terreiro da Deixa Malhar que aconteceu a primeira reunião para fundação da
UES (União das Escolas de Samba)194. Sendo viável entender aquele espaço como um
dos principais pontos de convergência de sambistas na década de 30. Como isso foi
esquecido é outra questão, mas é muito representativo essa reunião no terreiro da
Deixa Malhar.
O pesquisador Edson Carneiro também notificou a atuação de “Mano Eloi”
como mediador do mundo do samba já nas batucadas da 195Tia Ciata. E defendia uma
discussão que o samba surgiu na verdade nos terreiros. Sobre a participação de Elói, é
importante problematizar, sobretudo no contexto da Deixa Malhar, pois sua atuação
foi de certa forma eclipsada em virtude de sua longa atuação no comando da UGE
(União Geral das Escolas de Samba), que sucedeu a antiga UES (União das Escolas de

194
Foi fundada a União das Escolas de Samba. É designada uma junta Governativa.Ante-ontem estivera
reunidos os delegados de algumas escolas de samba para tratar do interesse das mesma, “assunptos”
que se relacionam com próximo carnaval.Essa reunião teve a assinti-la a “directoria” da Associação dos
blocos, sendo os trabalhos presididos pelo nosso companheiro K.Nos. Falaram os Sr. Flavio Paula Costa.
Alcides Brito, Nicanor Vieira Borges. Ficou deliberada a fundação da União das Escolas de Samba, com
nomeação de uma junta governativa, assim organizada: Nicanor Vieira Borges, Jorge de oliveira, Flavio
Paula costa, José do Espírito Santo, Saturnino Gonçalves, Paulo de Oliveira e Getulio Marinho. Foi ainda
marcada uma reunião para próxima quinta-feira, às 21 horas, na sede do Deixa Malhar, à rua Barão do
Itapagipe, ainda se resolveu a redação de um memorial que seria enviado as autoridades comunicando a
fundação da União e solicitando medidas de interesse para as escolas de samba. Compareceram à
reunião os seguintes delegados de Escolas de Samba –Flavio Paula Costa e Eugenio Athanazio:Deixa
Malhar;Pedro Barcelos, Príncipe da floresta;Jorge de Oliveira, Depois eu te explico;Antonio Rodrigues de
Souza Digo.Sport Club Azul e Branco; Moacyr B.Santos. União da Floresta, e Abner Lopes,B.C. Estação
Primeira. O Radical 29-12-1933.p.4.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 848


Samba) fundada em 1934. E com isso angariou em torno de sí, como aliás acontece
em toda participação política, a divergência e militância de grupos que defendiam
posições diferentes196. Aspecto que de certa forma invisibilizou sua trajetória como
uma das mais importantes personalidades para o mundo das escolas de samba. Um
dos fios mais representativos para o samba entre a primeira e a segunda metade do
século XX.
O encerramento dos desfiles da Deixa Malhar, no carnaval de 1943, e sua
extinção como grupo carnavalesco em 1947 é uma questão para reflexão. Consta que
a bateria foi doada para Escola de Samba Império Serrano fundada em 1947. Deixa
Malhar inseriu-se como um passado que Elói preferiu esquecer. Talvez essa ruptura
tenha obstruído alguns aspectos da trajetória biográfica do sambista, ou quem sabe
foi parte de um processo de negociação em relação a uma nova trajetória do sambista,
a qual articulou uma sabedoria malandra, exercendo o silêncio, negando ser vitima
do autoritarismo para forja-se como sujeito a partir de um novo projeto mais
audacioso em Madureira. A principal fronteira do samba no pós-guerra: Portela e
Império Serrano. “Mano Elói” fez parte de uma geração de sambistas que viveram as
repercussões tanto da Primeira como da Segunda Guerra Mundial.
BISSOLE (2012 p. 193) percebeu a contribuição do sambista como um dos
produtores do samba brasileiro, ao de gente como: Donga, Cartola, Mano Edgar, Mano
Rubem (Rubens Barcelos), Ismael Silva, Baiaco, Carlos Cachaça, Wilson Batista, entre
outros. Sua capacidade de articulação se compara em grau de importância à figura
enigmática da Tia Ciata. Mano Elói deu continuidade à herança da cultura negro-
brasileira, sobretudo no movimento das Escolas de Samba, o qual ele esteve
diretamente envolvido anos 20, momento de formação dessas agremiações e a
metade do século XX, fase de consolidação dessas agremiações como símbolo de
brasilidade. Ao lado de Heitor dos Prazeres, Mano Elói representou as escolas de
samba em algumas cerimônias oficiais do governo Vargas ajudando a pavimentar o
caminho da oficialização dos desfiles na cidade.
A amizade de Eloi com o compositor Getulio Marinho, sobrinho de Hilário
Jovino, resultou no convite para que o sambista registrasse em discos os primeiros
cânticos de umbanda no Brasil. A oportunidade surgiu diante da recusa de alguns
cantores profissionais em gravar os cânticos; sendo assim, como Getulio Marinho
conhecia Mano Eloi, convidou-o por ser ele um grande solista de pontos. A questão foi
resolvida com a gravação que contou inclusive com as filhas de santo Maria e Rosa.
Desta forma em setembro de 1930 a Odeon lançou o disco 10679, em que Eloi canta o
ponto de Inhassã (Santa Bárbara) no lado A e no lado B o Ponto de Ogum. (São Jorge)
O que foi muito bem recebido pelo mercado, segundo o jornal Correio da Manhã:

“Odeon:“Macumba”.Ponto de Inhassan e Ponto de Ogum.- Eloy


Anthero Dias e Getulio Marinho com o Conjunto africano.
Numero 10.679.Nas extranhas cerimônias dessa perturbadora
religião do elemento negro do nosso povo, na qual a base e uma
mistura de crendices africana comsupertições do catholicismo
deturbado encontra-se uma infinidade de assunptos de natureza
musical que são dignos de observação para os estudiosos e
constituem optimo prazer para os apreciadores da verdadeira

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 849


musica popular. Umas vez por outras aparece um disco nesse
genero, sempre recebido justamento com agrado, como não há
muito a explenda chapa também da odeon que traz “orobo”
cantado por Gusmão Lobo e Conjunto. Nenhum porém, faz jus a
tão grande sucesso quando “Macumba”, ora editado pela Odeon,
pois nesta chapa há o que de mais suggestivo existe nesse genero
e ainda para mais, os interpretes são os verdadeiros, os
elementos que compõem um dos mais famosos agrupamentos de
mysteriosa religiãp. É a gente que no “terreiro” se entrega aos
números detalhes do esquisito rito, com espírito agitado por uma
espécie de allucinação coletiva, Aqui estão elles, ora melopea do
ponto de Inhassan, ora no soturno no ponto de Ogum. A odeon
apresenta com este disco trabalho phonografico primoroso que
constitue um dos maiores acontecimentos do anno corrente, por
isso chamamos a attenção para chapa, tanto mais porque Ella é,
surprehendente revelação que se não esquece.”(Jornal Correio da
Manha 24/08/1930 p.5)

A questão da percepção da cultura negra como algo exótico deve ser relativizada
em relação a uma compreensão mais abrangente da diáspora musical. Na realidade, o
Brasil se inseriu nesta época num processo de valorização da cultura negra mundial.
Momento do sucesso da bailarina afro-americana, Josephine Baker, em Paris, como
estrela do espetáculo Reveu Négre no famoso teatro “des Champs – Élysées, no seu
quadro “danse sauvage”. Chamou a atenção do público enfatizando uma certa
mística do primitivismo e da autenticidade africana. A trajetória dos “Oitos batutas”,
da “Companhia Negra de Revistas” e a verdadeira febre que representou o
“Charleston”, gênero dançante norte americano, que tocou fogo nas casas de danças
da cidade do Rio. Tudo isso diz muito daquilo que Domingues (2013) destacou sobre os
“fluxos e refluxos” dos paradigmas comportamentais que cruzaram Atlântico e
aportaram no Brasil”. Sendo essas formas negociadas e interpretadas das formas mais
diversas. Assim os registros dos cânticos de macumba capitaneados por “Mano Eloi” e
“Getulio Marinho” o Amor estão inseridos como um acontecimento de valorização da
música e dança dos terreiros de macumba da cidade. Segundo DOMINGUES (2013
p.182)197 numa sociedade marcada pelo culto a ação, dançar se tornou surto
epidêmico, todavia é bom que se diga que não era um tipo de dança, isto é, vinculada
ao padrão burguês caracterizada por coordenadas pré-concebidas. Os negros,
principalmente, buscaram na dança do samba o espaço de liberdade do corpo não
sendo importante distinguir o religioso do profano. Foram assim fundamentais na
renovação do carnaval carioca. Mano Eloi teve a oportunidade de registrar em
fonogramas “Não vai no candomblé” no lado A do disco 10719 (VASCONCELOS p. 238)
e no lado B um outro samba assinado por Getulio Marinho chamado “Não quero teu
amor”198 acompanhado pelo com conjunto Africano. A atuação de Eloi encerrou-se
com dois jongos: Galo Macuco e Liberdade dos Escravos (10.736). O escritor
modernista Mario de Andrade numa publicação póstuma do livro: Música de
Feitiçaria no Brasil, dedicou significativa atenção às interpretações efetuadas por

197
Artigo “Este samba”:O charleston na arena transatlântica, Domingues, Petrônio in Da nitidez e
invisibilidade:Legado do pós-emancipação org. Flavio dos Santos e Petrônio Rodrigues. Belo Horizonte,
MG. Traço Fino, 2013.
198
Jornal Diário Carioca 28/01/1931
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 850
“Mano” Eloi, sobretudo “Não vai no candomblé" e o ponto de “Ogum”, o qual
destacou como uma “obra prima”, documento precioso do “caráter afro-brasiliero199”.
Essa dinâmica de valorização da cultura negra, na música e na dança se
engendrou no universo do carnaval carioca dando-lhe uma nova feição. Neste aspecto
destaco a parceria entre Mano Eloi, natural do Vale do Paraíba, interior do Estado do
Rio de Janeiro e o baiano Getulio Marinho para o desenvolvimento das Escola de
Samba. Em 1934, Getulio Marinho, que foi também um dos maiores mestre-sala dos
ranchos, tornou-se secretário da primeira Diretoria200 da UES (União das Escolas de
Samba), sendo “cidadão samba” por vários anos na década de 40. Enquanto Eloi,
consagrou-se como o grande nome da Escola de Samba Deixa Malhar, a qual o levou
ao posto de primeiro “cidadão samba” em 1936. A fotografia abaixo caracteriza a
presença de “Mano Eloi” ao centro, entre Diretores da Escola de Samba Deixa Malhar
ao lado do jornalista Luiz Nunes da Silva, o “Enfiado”. A imagem provavelmente
produzida com objetivo de promover Mano Eloi como “cidadão samba” chama a
atenção pela indumentária em que todos aparecem de ternos bem alinhados. Assim,
ao contrário do estilo mais folclórico do chapéu de palha, estilizado pelo “cidadão
momo” Silvio Caldas. “Mano Eloi” se apresenta com estilo muito próximo do
(FERREIRA 2004 p 261) cantor de Jazz Cab Calloway, cuja elegância consistia em
acentuar os ombros e usar calças amplas. Adotava assim uma postura afirmativa e
rebelde que foi incorporada à figura do malandro carioca.

Foto 1 Fonte Jornal O Globo 24/04/09

199
ANDRADE.Mario.Música de Feitiçaria no Brasil.Belo Horizonte.ed.Itatiaia. 1983.Ed.P.43
200
Op. Cit. Jornal O Radical 29-12-1933.p.4.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 851
Através dos jornais que consultamos201 não tivemos condições de determinar
a data fundação da Escola de samba Deixa Malhar que supomos que foi anterior ao
ano de 1933. Talvez já existisse como um clube dançante marcando um período de
ocupação daquela região como bloco ou rancho-escola. De qualquer forma o grupo
carnavalesco de Mano Eloi passou por essas fases. É bem provável que ela tenha se
estruturado em torno do movimento das escolas de samba na década de 30. O
anuncio de atividades da agremiação, publicado no Jornal do Brasil, faz a menção a
uma conhecida escola de samba da Chácara do Vintém. O texto de divulgação também
pode ser interpretado como estratégia de visibilidade ao potencializar um evento no
tradicional espaço do Fenianos, sobretudo naquele momento de ascensão das Escolas
de Samba. A ideia de bloco familiar também procurou captar uma aceitação social, em
que o sambistas buscaram ampliar suas bases de forma justificar a emergência das
escolas de samba no cenário oficial do carnaval da cidade.

“B.C Familiar Deixa Malhar: No próximo domingo. B.C Familiar


“Deixa Malhar”, conhecida “escola de samba” de samba da
“Chácara do Vintém”, realiza uma grande festa nos salões do
clube Fenianos, da Praça da Bandeira. São Cristovão 210.a festa
terá inicio as 14: horas e terminará as 02 horas. As 18 horas será
suspensa a festa para o “grude” que constara de um valente
“rabo de boi com agrião” Jornal do Brasil em 17/05/1934:

Assim a Escola de samba Deixa Malhar, situada na antiga Chácara do vintém


configurou-se espaço de extravasamento de encontro do grupo social, de negociação
do negro (SODRÉ 2002p.78) para continuidade dos valores ancestrais articulando em
torno da sociabilidade diversas formas de expressão: arte negra, esporte e iniciação
nos ofícios. Num tempo em que não existia oferta sistemática de educação o espaço
das escolas de samba configurou-se na feliz expressão de Muniz Sodré: O “terreiro e a
cidade”. A partir da política do recreativismo o lider da Deixa Malhar percebeu com
clareza que o espaço muitas vezes ritualístico do samba necessitava de um processo
institucional para organização dos sambistas.
Mano Eloi exerceu funções na UES, (União das Escolas de Samba) que depois
se transformou na UGES (União Geral das Escolas de Samba) e posteriormente na
FESB (Federação das Escolas de Samba do Brasil). Numa trajetória repleta de conflitos,
mas que foi fundamental para o mundo das Escolas de Samba, afinal no tempo do
carnaval da Praça XI de Junho, ele criticava a falta de apoio dos comerciantes para os
eventos das Escolas de Samba. Encampando um pragmatismo como forma de atuação
em relação aos poderes públicos. Entendia que o apoio aos sambistas deveria ser
convergido tanto no patrocínio de suas atividades como em estrutura. Foi assim uma
liderança moderna.
Nossa intenção neste artigo foi trançar alguns fios que ligaram a trajetória do
famoso sambista Mano Eloi, Eloi Antero Dias, com uma praticamente desconhecida
Escola de Samba que foi “Extinta” em 1947, chamada: Deixa Malhar. Para os que

201
Jornais: Diário Carioca- Manhã -Correio da Manhã –-O Paíz Gazeta de Noticias - A Noite -Diário da
Noite - Diário de Notícias - O Imparcial A Batalha Jornal do Brasil –Ultima hora e O Globo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 852


viveram aquela época consta que foi uma importante Escola de Samba da primeira
metade do século XX. Ao trançarmos alguns de seus fios conduzido pela trajetória de
“Mano Eloi” tentamos reconstituir uma espécie de malha composta por muito samba,
capoeira, jongo, macumba e outros elementos da cultura negro brasileira, mas
sobretudo a capacidade de se organizar diante do frenético processo de modernização
da cidade. Deparamo-nos com gente como Heitor dos Prazeres, Getulio Marinho,
Edson Carneiro, com a jongueira do morro da Mangueira Nininha, com as filhas de
santo Maria e Rosa que auxiliaram Elói, ao lado do Conjunto Africano nos registros dos
cânticos de Ogun e Inhassã. Todos esses elementos configuraram o samba como
símbolo de nossa brasilidade nos refluxos da cultura negra transatlântica.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 854


As tramas narrativas em Ovelhas Negras: os aspectos de memória e autobiografia na
obra de Caio Fernando Abreu

Urandi Rosa Novais


UEFS
urandinovais@gmail.com
Alessandra Leila Borges Gomes
UEFS
allexleilla@gmail.com

Depois de muitas discussões acerca do texto literário, bem como da função da literatura e como ela é
vista em meio à sociedade, desde seus primórdios até os dias atuais, o presente trabalho tem por
objetivo desenvolver um estudo sobre as tramas narrativas do livro de contos, Ovelhas Negras, do
escritor gaúcho Caio Fernando Abreu. Esse livro é uma seleta de textos, que segundo o próprio autor,
foram produzidos entre os anos de 1962 a 1995, é uma espécie de autobiografia ficcionalizada que
representa um panorama das andanças desse autor pelo mundo e pela produção literária. Nesse
estudo, buscamos, com a abordagem dos contos Sobre o Céu de Saigon, Lixo e Purpurina e Anotações
Sobre um Amor Urbano, identificar como os recursos de tempo, memória e dados biográficos, mesmo
que de forma ficaqtdxc vgwwa4w\e3\rzdcionalizada, estão presentes nesses textos, traçando breves
comentários sobre os narradores que nos contam as diversas histórias, algumas, como disse Caio F.,
bastardas e outras verdadeiras ervas daninhas. Para o desenvolvimento desse trabalho, além da análise
do livro em questão, utilizamos também os referenciais teóricos de Walter Benjamin (1994), Antoine
Compagnon (2009), Benedito Nunes (1995), Caldas (2005), entre outros que contribuíram para a
construção desse trabalho, a fim de entender como se deu a construção dessa obra e como ela dialogou
e dialoga com seus leitores ao longo dos tempos.
Palavras-chave: Autobiografia; Caio Fernando Abreu; Memória; Tempo.

Ovelhas Negras e suas Tramas Narrativas

O livro Ovelhas Negras, do escritor Caio Fernando Abreu, é composto por 24


contos produzidos entre os anos de 1962 a 1995, ao longo da construção da carreira
literária do autor entre os 14 e 46 anos de idade, contos escritos nos mais diversos
lugares pelos quais ele percorreu ao longo de sua vida, desde o Rio Grande do Sul à
Europa.
É um pouco curioso se paramos para pensar o porquê desse livro receber esse
título, já que a expressão “ovelha negra” em seu sentido popular se refere às pessoas
que não se enquadram nas normas ditas “normais” dentro de uma determinada
sociedade, mas, e na literatura o que quer dizer uma obra ovelha negra? E mais ainda
no plural, Ovelhas Negras? No entanto, vindo da criativa imaginação desse autor, essa
obra acolhe alguns dos textos dispersos de Caio F. 202 , como ele mesmo afirma na
introdução desse livro que este nasceu justamente de sua obsessão por não jogar fora tudo
aquilo que escrevia, sendo que alguns dos contos presentes nessa obra seriam publicados em
livros anteriores, mas isso não aconteceu devido à censura da época em que foram escritos,
como também, alguns deles foram censurados pelo próprio autor que os considerou
“obscenos, cruéis, jovens, herméticos, etc.; outros ainda simplesmente não se enquadram na
unidade temática e/ou formal que sempre ambicionei em meus livros de contos. Eram e são

¹ Caio gostava de assinar Caio F., ele fazia isso para fazer uma relação entre essa assinatura e a de
Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F, drogada e
prostituída, lançado no Brasil em 1982 (MORICONI, 2002, p. 53).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 855
textos marginais, bastardos, deserdados. Ervas daninhas, talvez, que foi, aliás, um dos títulos
que imaginei”. (ABREU, 2009, p. 03)
Os contos apresentados a nós por Abreu nesse livro reúnem os textos
dispersos em diversas pastas que ele acumulou ao longo de sua produção literária. Ele
escolheu essas 24 ovelhas negras para virem ao campo literário e despertar a
curiosidade de leitores e estudiosos acerca de como se deu a produção literária dele,
principalmente porque, segundo o próprio Caio, esse livro é como uma espécie de
autobiografia ficcionalizada. Além do mais, o próprio autor era um tipo de pessoa que
não se enquadrava nas normas sociais impostas a todos, Abreu sempre teve sua
maneira de ser: punk, dark, hippie, etc., como ele mesmo dizia ser também uma
ovelha negra
Os textos que compõem a obra aqui abordada estão divididos em três seções
que são iniciadas por epigrafes de hexagramas. A primeira parte CH’IEN ( o criativo)
apresenta o princípio, nele nós temos a presença de contos produzidos na
adolescência do autor, como é o caso do conto que abre essa seção: A Maldição dos
Saint-Marie, texto que ganhou um concurso de romance na época em que Abreu ainda
estudava no ginásio em Porto Alegre. A segunda parte K’NA (o abismal), apresenta-nos
contos povoados por personagens desesperados, sufocados por uma atmosfera
tenebrosa, a exemplo disso temos o conto “Creme de Alface”, no qual nos deparamos
com uma personagem ensandecida em meio às loucuras de um grande centro urbano.
A última parte KÊN (a quietude), o autor nos apresenta contos nos quais a linguagem
está arrumada, passando uma ideia de calma depois de uma seção de contos
conturbados.
Mesmo sendo um livro composto por contos diversos, se nos atentarmos à
organização dele, bem como a divisão das histórias que nele estão presentes,
percebemos uma forte relação entre a obra e a vida do autor, pois, como é sabido,
Caio F. Abreu fazia de suas experiências a matéria viva para a sua produção literária.
Por exemplo, a primeira parte nos mostra as experiências do escrever, a construção do
autor; a segunda nos remete as andanças e aventuras dele pelo mundo, bem como os
diversos conflitos pelos quais passou; e a terceira e última parte muda o foco para um
novo pensar sobre o mundo e a vida, uma esperança, uma chama que não se pode
deixar apagar.

Como são muitos os contos que compõem essa obra de Caio Fernando Abreu,
nesse trabalho desenvolvemos o estudo, fazendo uma abordagem de três deles: Sob o
Céu de Saigon, Lixo e Purpurina e Anotações sobre um Amor Urbano, mas isso não nos
impede de fazermos alusão aos demais textos que estão presentes no livro.
Embora o referido autor tivesse seu estilo próprio de escrita literária, podemos
perceber em sua escrita a referência a vários outros autores com os quais ele
simpatizava e lia como, por exemplo, Clarice Lispector, Hild Hilst, Júlio César Cortázar,
Wirgínia Woolf, Ana Cristina César, entre outros; bem como filmes, músicas, e também
a influência até mesmo dos lugares por onde ele havia passado e/ou morado, São
Paulo é um exemplo deles. Abreu viveu uma verdadeira relação de amor e ódio com
essa cidade, ainda jovem ele fez parte da primeira equipe da edição da revista Veja e
foi morar na grande São Paulo, passou por diversas experiências, umas boas, outras
más como quando foi demitido da editora dessa revista, foi perseguido pelo Dops,
todas essas circunstâncias vividas pelo autor estão impregnadas em sua obra.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 856
No livro em questão, temos o conto Sob o Céu de Saigon que, para o autor,
talvez seja a história mais paulistana que ele tenha escrito. Esse conto nos apresenta
um narrador que nos conta a história de um rapaz qualquer e de uma moça qualquer,
personagens comuns nas grandes cidades, que são iguais aos demais, a história é
ambientada nos trechos da Rua Augusta e da Avenida Paulista, trechos em que a
aglomeração de pessoas é muito grande diariamente. Mesmo cada um com sua
individualidade, em meio à multidão todos se tornam iguais.
Ele era um desses rapazes que, aos sábados, com a barba por fazer, sobem
ou descem a Rua Augusta. Aos sábados quase sempre à tarde, pois pelos
óculos muito escuros e o rosto um tanto amassado por baixo da barba
crescida, quem olhasse para ele mais detidamente, mas poucos o fazem,
perceberia que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de
chorar ou coisa assim.

Ela era uma dessas moças que, aos sábados, com uma bolsa pendurada no
ombro, sobem ou descem a Rua Augusta. Aos sábados quase sempre à
tarde, pois pelos óculos muito escuros e o rosto um tanto amassado que a
ausência total de maquiagem nem pensou em disfarçar, quem olhar para
uma delas mais detidamente, e alguns até o fazem, pedindo telefone, ou
dizendo gracinhas sem graça, às vezes grossas, porque elas caminham
devagar, olhando as coisas, não as pessoas, mas quem olhar com atenção
perceberá que dormiu mal ou demais, bebeu na noite anterior, acabou de
chorar ou qualquer coisa assim, sem muita importância. (ABREU, 2009, p.
205,207)

Percebemos claramente que o narrador desse conto é o pós-moderno, aquele


que, segundo Santiago (2002), não se mistura à ação narrada, ele assume a posição
semelhante à de um repórter ou de um espectador, narrando a ação enquanto
espetáculo a que assiste, ou seja, ela não narra enquanto um membro atuante da
história contada. E isso está presente nesse conto, pois em momento algum o narrador
se mostra participante da história, é como se ele estivesse em certa posição e, a partir
daí, conta-nos o que observa: a história desse rapaz e dessa moça na grande
metrópole brasileira.
Esse é um recurso da narrativa pós-moderna: “O narrador se subtrai da ação
narrada e, ao fazê-lo, cria um espaço para a ficção dramatizar a experiência de alguém
que é observado e muitas vezes desprovido de palavra.” (SANTIAGO, 2002, p. 51). E os
personagens presentes no conto, em passagem alguma, têm voz, eles são mudos, e
suas histórias nos são contadas sob a ótica desse narrador que apenas observa,
narrador esse que nos remete à própria imagem de Caio F., ele que esteve
emaranhado nas teias da grande metrópole que é São Paulo, extraindo dela muitas
inspirações para sua produção literária.
Outro conto que também nos remete aos lugares pelos quais o autor passou é
Lixo e Purpurina, que para o próprio Caio F. “tem um substrato bem real. Muitas
daquelas coisas realmente aconteceram. Mas não exatamente naquela ordem,
daquele jeito. Mas, sem dúvida, é um texto que hesitei muito, o que mais hesitei em
incluir em Ovelhas Negras, porque ele é quase uma transcrição literal da realidade”
(ABREU, 1997, p. 11). Texto que foi composto por diversos fragmentos de um diário
do autor, escrito quando ele esteve em Londres na década de 70, nesse conto temos
também os diversos momentos vividos por ele, mas de forma ficcionalizda.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 857
O próprio título é bastante sugestivo: o lixo, representando os momentos
difíceis pelo qual o narrador passou; e a purpurina serve de metáfora que nos remete
aos bons momentos vividos no decorrer da história narrada. O texto todo apresenta
vários fragmentos, alguns datados, outros não. Toda a história começa no dia 27 de
janeiro quando um caderno é encontrado e este é usado como diário onde serão
registradas as passagens dessa estada em Londres.

Encontrei este caderno numa squatter-house em Victoria, ontem à noite. Foi


enviada da Índia para Mr. John Schwyer Gummer, estava ainda dentro do
envelope, mas o endereço na Índia manchou de umidade e mofo, só dá para
ler “Calcutá”. Será um aviso? Sylvia diz “que a Índia está chamando” 203.
Encontramos também um cara chamado Jack especializado em squatters: e
trambiques tipos instalações ilegais de luz, água e gás, o que vai nos ajudar a
descolar a casa. Zé apelidou-o de “Jack, o esquarteador. (ABREU, 2009, p.
97)

No decorrer de todos os fragmentos que compõem esse conto nós, temos a


presença de um narrador personagem, contando as diversas histórias que viveu nessa
temporada que passou na referida cidade, como já foi dito anteriormente, alguns
acontecimentos são datados, outros não, no entanto, a presença ou a ausência das
datas não nos impede de conhecer as experiências vividas pelo narrador em suas
andanças. Este narrador se assemelha perfeitamente com um dos clássicos narradores
de Walter Benjamin (1994), o marinheiro viajante, este viaja muito e das experiências
que vive nessas viagens tem muito a nos contar, como é o caso do narrador presente
nesse conto do Caio F.
No entanto, nesse conto, tanto a experiência coletiva quanto a experiência
vivida, postuladas pela teoria dos clássicos narradores de Walter Benjamin, só nos faz
concluir que o narrador presente nesse conto, ou se adere à essência daquilo que foi
narrado, ou nos confirma a representação estética da impossibilidade de transmitir a
experiência vivida, sendo que isso é evidente, pois, em todo o decorrer da história
contada, o narrador de Lixo e Purpurina, mesmo sendo o personagem principal do
conto, não tem a intenção de transmitir algum ensinamento aos seus leitores.
Além do mais, esse conto nos traz uma espécie de autobiografia do autor, mas
de forma ficcionalizada, pois “a ideia de literatura em Caio é, como definiu Luiz Costa
Lima, uma encontro com a verdade à medida que (se) questiona as práticas da
verdade”. (LIMA, 1991, p. 51 apud LEILLA, 2010, p. 25). E ao analisarmos não só esse
conto, mas vários outros desse autor, ficamos a nos questionar até onde é verdade e
onde temos a ficção nas obras dele? E isso, Ítalo Moriconi nos explica muito bem:

2
Caio F. Abreu pretendia esticar sua viagem da Europa para a Índia, mas não foi possível, pois teve que
retornar ao Brasil, seu livro O ovo apunhalado havia ganhado, em 1973, a menção honrosa do Prêmio
Nacional de Ficção, mas o livro só veio a ser publicado em 1975. E “Calcutá”, parte integrante do
endereço que estava no envelope no qual estava o caderno que ele utilizou para escrever seu diário,
mais tarde veio a compor o titulo de um livro do autor, Pedras de Calcutá, publicado em 1977.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 858
O vínculo vida/obra tanto aparece como projeção ficcional, quanto como
discurso autobiográfico. Ou ambos, misturados. No campo da teoria da
literatura, podemos dizer que a clássica fronteira entre narrador e autor tem
andado bastante embaralhada, para desespero dos professores de literatura
mais ortodoxos. Entre os escritores surgidos recentemente, assim como em
livros recentes de escritores veteranos, tal fenômeno de embaralhamento
tem dado margem a toda sorte de experimentações e brincadeiras. Já são
três décadas de presença forte da auto-ficção na literatura. Entendendo-se
por auto-ficção a criação de um eu através do jogo de verdades deslocadas e
mentiras deslavadas que todo discurso da primeira pessoa implica.
(MORICONI, 2006, p. 01-02)

E nesse jogo de usar ficção e realidade, Caio Fernando Abreu construiu sua obra
“Ovelhas Negras”, livro este, que o próprio autor, em entrevista a Marcelo Secron
Bessa204, para a Revista Palavras(1995), afirmou ser uma obra autobiográfica ficcional,
mas que não seguia uma ordem cronológica, e esse não uso de cronologia exata é
perceptível, pois os contos, como dissemos anteriormente, foram separados por
temáticas semelhantes e não por datas sequenciadas. Segundo o autor, uma ordem
extremamente cronológica não faria sentido na organização desse livro, pois muitos
contos eram da mesma época, o que corria o risco de serem parecidos, então ele em
três linhas distintas: “uma que a loucura das personagens eram lançadas em cena.
Outra de histórias bem depressivas, pra baixo, torturadas, e outra de algumas histórias
que almejam a luz e algumas serenidades”. (ABREU, 1997, p.07-08)

Os Enlaces de Tempo, Amor e Memória em Ovelhas Negras

Como fora afirmado pelo próprio autor, Ovelhas Negras é um livro que fala
sobre o amor, das mais diversas formas, umas até mesmo esquisitas, mas a obra gira
em torno desse tema, a obra nos traz diversas personagens que apresentam diferentes
formas de amar, como explicou Caio F. a Marcelo Secron Bessa, em entrevista
concedida no ano de 1995, quando este perguntou àquele se esse livro, de certa
forma, era sobre o amor.

Completamente! E, às vezes, os personagens se encontram e se matam,


como numa história que acho horripilante “Mas apenas e antigamente
guirlandas sobre o poço”, em que o personagem encontra uma possibilidade
amorosa e fica tão aterrorizado que ele mata isso. Frustrações tipo “Por
uma tarde de junho”, que, no momento em que ele vai fazer uma confissão
amorosa, ele quebra um dente. Ou “Noites de Santa Tereza”, de que gosto
muito, onde aquela escritora e ninfômana. Ela tem um amor impossível em
São Paulo, e no Rio ela exercita freneticamente a sexualidade. Então ela
realiza uma separação. Meio Dama da Lotação, amor sensual – trepar,
trepar, trepar – e amor platônico, impossível e distante. Mas Ovelhas Negras
caminha para o “Depois de agosto”. Chamo este de pós-sexualidade, porque
não há penetração genital, há uma espécie de erotismo solto por todo o
corpo, o tempo todo, mas é depois do sexo. (ABREU, 1997, p. 08)

3
Essa entrevista foi realizada em 24 de setembro de 1995, mas só foi publicada em 1997. In: BESSA,
Marcelo Secron. Quero Brincar livre nos campos do Senhor: uma entrevista com Caio Fernando Abreu.
Revista Palavra. Rio de Janeiro, dez. 1997, p.07-15.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 859
O interessante é que todas as histórias de amor que estão presentes nesse
livro não têm final feliz, suas personagens tentam, buscam, lutam, mas por fim acabam
sozinhas, na ilusão desse amor. E é justamente isso que caracteriza a história do amor
no ocidente, porque o amor feliz não tem história, há apenas os romances de amor
mortal, aqueles que sempre estarão ameaçados e condenados pela própria vida. Além
disso, o lirismo ocidental não contempla o prazer dos sentidos, nem a paz fecunda do
par amoroso. É menos o amor realizado do que a paixão do amor. E paixão significa
sofrimento. (ROUGEMONT, 2003)
E é justamente isso que acontece no conto Anotações Sobre um Amor
Urbano205, onde temos um narrador em primeira pessoa que nos conta sua história de
amor com outro homem. No início da história, já nos deparamos com a dificuldade
que ele encontra para ter seu primeiro contato com o objeto amado. Durante a
narrativa, é perceptível a angústia do narrador por se aproximar do ser amado e
também ser correspondido por ele.

Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a
naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou
apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, é só esta vontade
quase simples de estender o braço e tocar em você, faz tempo demais que
estamos aqui parados conversando nessa janela, já dissemos tudo o que
pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a
sensação impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso
estender o braço e, com a ponta dos meus dedos, tocar você, natural que
seja assim: o toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.
(ABREU, 2009, p. 186)

Percebemos, nesse trecho, a necessidade do toque, o desejo de se fundir ao


outro, buscando se completar, características essas que definem a diluição do mito do
amor nesse conto de Caio Fernando Abreu. Há nesse conto uma das configurações do
mito do amor na figura do Eros, aquele que representa a necessidade de ser
completado por outro ser, como nos afirma Gomes que o mito do Eros:

Está relacionado com o reconhecimento de uma falta, capaz de gerar uma


crença no amante de que o amado possui a chave ou resposta para o seu
problema, isto é, o remédio para sua ferida, a solução para o seu vazio.
Assim, a forma Eros coloca em circulação a ideia de que o amor se orienta,
sobretudo, pelo desejo daquilo que não se tem, pela vontade de
completude — é o que no senso comum chamamos de “crença do amor
romântico”. Essa orientação pela procura da alma gêmea é uma das marcas
da experiência do amor romântico, e antes mesmo que os sujeitos
vivenciem uma relação amorosa, estão em contato com a representação
ideal dela, com os mecanismos que a viabilizariam, como rituais e lugares de
busca, investimentos na aparência e no comportamento, formas de
conquista e todo um arsenal de técnicas em prol de encontros que efetivem
tal experiência (GOMES, 2012, p. 05).

4
Entre 1977 e 1987 este texto passou por várias versões. Três delas chegaram a ser publicadas na
extinta revista mineira Inéditos; no caderno Cultura, de Zero Hora; e no suplemento literário de A
Tribuna da Imprensa. (ABREU, 2009, p. 185)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 860
Há nesse conto a efetivação da experiência amorosa na busca pela completude,
encontrando a parte que lhes falta, eles conseguem concretizar o ato amoroso na
forma corporal quando se relacionam, no entanto, na mesma passagem o narrador já
nos dá pistas de que essa história poderá não ter um final feliz, pois a mesma boca que
o beija no momento da entrega poderá ser a mesma a dizer-lhe não futuramente. E
isso também fica presente no final da passagem do trecho quando eles se questionam
sobre o amanhã.
Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto
tempo dura/ faz pouco despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo
e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi para saber tocá-lo. Você não
me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais
tarde, um dia, depois daqui, poderá me dizer: não. Há uma espécie de
heroísmo então quando estendo o braço, alongo as mãos, abro os dedos e
brota. Toco. Perto da minha a boca se entreabre lenta, úmida, cigarro,
chiclete, conhaque, vermelha, os dentes se chocam, leve ruído, as línguas se
misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo.
Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha coxa, calor rijo
do meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos. (ABREU,
2009, p. 186)

Depois dessa vivência, vem à tona a necessidade de querer mais, e nesse


desejo, o narrador começa a utilizar dos recursos da memória para lembrar-se do ser
amado, de reviver o que outrora, com ele, havia vivido. Pois é a partir da memória que
compomos, num fluxo rítmico de anexação e criação, momento narrativo, momento
textual: determinada ordem “escolhida”, certa maneira de ler e dizer a experiência
com e no vivido: é a experiência singular do sujeito ao dizer-se em movimento e em
relação: é a ficção surgida de uma vivência entre as ficcionalidades do mundo social: é
a maneira singular de dizer e ordenar essas ficcionalidades. ( CALDAS, 2005)
E é justamente isso que acontece, ele utiliza desse recurso da memória para
reviver as cenas: “Pensei em você. Eram exatamente três da tarde quando pensei em
você. Sei por que sacudi a cabeça como se você fosse uma tontura dentro dela e olhei
o digital no meio da avenida” (ABBREU, 2009, p.186-187). São essas lembranças que o
fazem buscar novamente momentos de concretizar esse amor. E isso ocorre
novamente, mas apenas uma vez, eles se reencontram e novamente se completam e
se amam, todavia, depois se dispersam. Essa distância e a ausência do outro fazem as
lembranças se tornarem mais fortes, alguns elementos gravados na memória o remete
para o passado: “O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo
banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu corpo grudado no meu, e basta fechar
os olhos para naufragar outra vez e cada vez mais na tua boca” (ABREU, 2009, p. 187).
E o narrador faz isso, acionando em sua própria memória suas lembranças.

E dirijo-me para as planícies e os vastos palácios da memória, onde estão


tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas
que se sentiram. Aí está escondido também tudo aquilo que pensamos, quer
aumentando,quer diminuindo, quer variando de qualquer modo que seja as
coisas tudo aquilo que viu e viveu no momento que os sentidos atingiram, e
ainda tudo aquilo que lhe tenha sido confiado, e nela depositado, e que o

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 861


esquecimento ainda não absorveu nem sepultou. Quando aí estou, peço
que me seja apresentado aquilo que quero: umas coisas surgem
imediatamente; outras são procuradas durante mais tempo e são
arrancadas dos mais secretos escaninhos; (SANTO AGOSTINHO, 2008, p. 53-
54)

E buscando as lembranças e fazendo uma confluência entre os tempos,


trazendo imagens passadas para o presente, bem como tentando depositar
esperanças no futuro, o narrador tenta viver esse amor. Essa mistura de tempos é
outro recurso utilizado por Abreu na construção não só desse conto, mas em diversos
outros, pois o tempo da ficção tem essa capacidade de ligar entre si, momentos que o tempo
real separa e é isso que acontece em Anotações Sobre um Amor Urbano. Quanto ao tempo na
narrativa: “Ele também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção
entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los indefinidamente ou contraí-los num
momento único, caso em que se transforma no oposto do tempo, figurando o eterno”.
(NUNES, 1995, p. 25)
E, fazendo um elo entre autor-narrador-texto, podemos ver as marcas da
subjetividade de Abreu impregnadas nesse conto, ele que, segundo Lygia Fagundes
Telles, era o escritor da paixão, cultuou muito o mito do amor em suas obras, sejam
esses contos extraídos da sua experiência ou da sua técnica de escrita, mas sempre
prezando por trabalhar todas as características da construção do mito erótico, a dor, o
sofrimento, o desejo da se completar no outro.
Mas, como já dissemos, o conto se trata de uma história de amor sem final
feliz, embora tenham vivido alguns momentos de consumação, de se completarem um
ao lado do outro, aumentado cada vez mais o desejo de estarem próximos, os
personagens não ficam juntos, e o conto é concluído de forma melancólica e triste,
mas sem se culparem pela não continuidade da relação amorosa: “Não temos culpa,
tentei. Tentamos”. (ABREU, 2009, p. 192)

Últimas Palavras

O estudo sobre o livro Ovelhas Negras nos permitiu identificar o quanto a


escrita de Caio Fernando Abreu está pautada na preocupação com o fazer literário, um
autor que, utilizando de diversos textos escritos ao longo de sua carreira literária, traz
aos seus leitores uma obra que abre possibilidades para a exploração de diversos
aspectos da criação literária.
Embora, quando publicado, esse livro de Caio F. não recebeu muita atenção por
parte da crítica literária. Segundo o próprio autor, isso foi pelo fato de essa obra ter
sido publicada tempo depois de Abreu ter se declarado portador do HIV, e o
preconceito, certamente, influenciou nessa não apreciação da obra em questão: “E
acho que Ovelhas Negras não ganhou muita atenção crítica. Ganhou muita nota. Tinha
muita entrevista e aí os caras só queria sabem de AIDS, era um absurdo. Aí parei de
falar. [...] Porque meu trabalho literário continua”. (ABREU, 1997, p. 14).
Mas, com o passar do tempo e, principalmente após sua morte, a obra desse
autor tem sido reeditada e estudada sob os diversos aspectos que ela carrega em sua
composição, ficando claro o um dos poderes da literatura: oferecer-nos as
possibilidades de conhecer e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 862
distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de
vida. (COMPAGNON, 2009)
Destarte, podemos afirmar que o livro em questão é uma obra tecida com os
retalhos da memória, costurada pelos fios do tempo e bordada com temas amorosos e
autobiográficos ficcionalizados, essas são as ovelhas negras de Caio F., contos que,
embora tenham sido escritos e publicados há tempos, traz em sua composição
elementos e temas bem contemporâneos que inquietam seus leitores e estudiosos a
respeito da produção literária dele.

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____________________. In: BESSA, Marcelo Secron. Quero Brincar livre nos campos do
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 863


Relatos e reflexões sobre uma metodologia da pesquisa com crianças

Vanessa Cristina Oliveira da Silva


UFRN
vanvan_cristina@yahoo.com.br
Débora Borges de Araújo
UFRN
debby-borgess@hotmail.com
Maria da Conceição Passeggi
UFRN
mariapasseggi@gmail.com

Abordamos neste trabalho a prática metodológica utilizada nas pesquisas com crianças pelos
integrantes do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Autobiografia e Representações –
GRIFAR/UFRN. Objetivamos apresentar essa prática com foco no uso do “Alien” como instrumento de
mediação nas rodas de conversa voltadas para a produção de narrativas infantis que se tornam fontes
de dados para a investigação da problemática levantada em cada pesquisa (PASSEGGI, 2011). Esta
metodologia coloca a criança como centro da investigação e a partir da interação de sua realidade com
o mundo da imaginação proporcionando um pensar sobre as temáticas educacionais que envolvem
escolas da infância. Apresentamos 4 Projetos de Pesquisa em andamento que trabalham com essa
metodologia cujos estudos abrangem os universos a seguir: 1 O desvelar dos saberes de crianças
quilombolas sobre a cultura escolar: narrativas de si se entrecruzam com seus pares no Município de
Alcântara – MA; 2 A relação entre a representação da escola em crianças quilombolas e seu
desempenho escolar em Portalegre – RN; 3 O acolhimento nas escolas de infância na rede pública
municipal no Bairro das Quintas na Zona Oeste de Natal – RN; 4 O que nos contam as crianças sobre a
violência simbólica e física praticada entre as crianças na rede pública municipal no Bairro das Quintas
na Zona Oeste de Natal – RN. Concluímos que nesta metodologia a criança é contemplada como sujeito
de direitos, de modo que as pesquisas contribuem com um novo pensar sobre as escolas de infância
como espaços de construção de saberes científicos.
Palavras-chave: Metodologia da pesquisa; Narrativas infantis; Escolas da infancia.

Introdução

Nesse trabalho discutiremos uma prática metodológica utilizada nas pesquisas


com crianças pelos integrantes do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação,
Autobiografia e Representações - GRIFAR/UFRN.206 Nessas investigações aceitamos o
desafio de considerar a criança enquanto sujeito de direito, compreendendo a infância
em sua completude e centralizando-a como ator|autor de sua história. Nossa intenção
é legitimar as narrativas infantis como fonte de pesquisa (auto)biográfica, focalizando
uma metodologia que proporcione pesquisar com crianças em escolas regulares.
O objetivo deste artigo consiste em enfatizar a metodologia utilizada nas
pesquisas com crianças seguindo o protocolo do Projeto de Pesquisa: Narrativas
Infantis. O que contam as crianças sobre as escolas da infância207. Esse projeto parte

206
O Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Auto.Biografia, Representações – GRIFAR|CNPq – foi
criado em 1999 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e desde então vem desenvolvendo
pesquisas sobre as narrativas autobiográficas.
207
O Projeto “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre as escolas da infância?”, em
andamento, é financiado pelo Edital de Ciências Humanas [CNPq/CAPES 07/2011-2, Processo nº
401519/2011-2], e desenvolvido por pesquisadores de seis universidades: UFRN, UFPE, UNICID,
UNIFESP, UFF e UFRR. Aprovado pelo Comitê de Ética [Parecer nº 168.818], data da Relatoria:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 864
da seguinte questão: O que diz a criança sobre a pré-escola e a escola é digno de
interesse para a pesquisa educacional e para as Políticas Públicas em Educação? Para
as autoras do projeto “a proposta visa a olhar a infância de modo a levar em conta a
alteridade da criança, legitimando-a como ser capaz de refletir ao narrar suas vivências
e por essa via trazer informações importantes sobre as escolas da infância e sobre a
criança-sujeito”. (Passeggi et al 2014, p.2)
Esse artigo esta organizado em três momentos; na primeira parte abordaremos
os pressupostos teóricos da pesquisa com crianças e sua abordagem (auto)biográfica,
compreendendo as narrativas como fonte de pesquisa; no segundo momento,
traremos o detalhamento da metodologia utilizada em diferentes pesquisas que
utilizam o protocolo comum do Projeto Narrativas Infantis: O que contam as crianças
sobre as escolas da infância; e no terceiro e último tópico sistematizaremos e
discutiremos os resultados obtidos através da metodologia proposta evidenciados em
uma das pesquisas realizadas na Escola Pública de Natal/RN.

Pesquisa com crianças e narrativas – conceitos teóricos

Pesquisar com crianças exige, antes de tudo , uma metodologia que as


reconheça como sujeito de direito, permitindo-as expressarem a sua opinião
livremente, acreditando na sua capacidade de narrar a sua própria história, refletindo
e (re)significando suas experiências. No campo educacional, ainda são raras as
pesquisas que consideram, em sua metodologia, pesquisar com crianças, como
destaca Passeggi (2014):
Ainda são recentes, entre nós, estudos e pesquisas que garantam a
centralidade da criança como sujeito de direito e que busquem
compreendê-la na sua inteireza de pensamento, movimento, ação, emoção
e, especialmente, que reconheçam suas formas de ver e representar o
mundo da vida como modos legítimos de ser e de viver em sociedade.
(Passeggi et al 2014, p. 2)

O reconhecimento da criança enquanto sujeito de direito, se insere na nova


conjuntura universal que entende a infância como uma categoria social, rodeada de
valores e direitos, para isso a Convenção sobre o Direito da Criança da UNESCO (2004)
garante a criança o direito de exprimir livremente sua opinião sobre questões que lhe
digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração. (p.10). Sobre esse
assunto o artigo 12, colabora afirmando que à criança com capacidade de
discernimento tem o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões
que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da
criança de acordo com sua idade e maturidade (p.10). Pode-se perceber que
legalmente os direitos da infância estão garantidos e assegurados. É influenciado por
essa nova ótica social que passamos a considerar a criança como o sujeito principal da
nossa pesquisa, encontrando em suas narrativas a expressão maior de seu
pensamento e linguagem.

23/11/2012. A pesquisa integra um projeto internacional coordenado por Martine Lani-Bayle, na


Universidade de Nantes, desenvolvido em rede com pesquisadores da França, Polônia, Bélgica, Suíça.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 865
Podemos considerar que a utilização das narrativas como fonte de pesquisa
educacional, desponta como uma prática inovadora que legitima a fala da criança
como um sujeito de direito, para Passeggi (2011):

[...] a narrativa é concebida como uma sequência singular de eventos,


estados mentais, ocorrências, envolvendo seres humanos como
personagens da ação. Cada elemento constitutivo da narrativa adquire
sentido a partir do lugar que ele ocupa no enredo e essa sucessão depende
da intencionalidade do narrador em suas relações com quem o escuta ou o
lê. (Passeggi, 2011, p. 7)

Assim, a pesquisa (auto)biográfica implica-se no campo do movimento das


Ciência Humanas e Sociais na medida em que traz para o centro da discussão o homem
como um sujeito-ator-autor da sua história. Para Passeggi e Rocha (2012)

A pesquisa (auto)biográfica em Educação e a narrativa em psicologia,


partilham um princípio comum: adotam as narrativas na primeira pessoa
como matéria fundamental para investigar a complexidade dos modos como
os indivíduos – crianças adolescentes, jovens, adultos – percebem sua
condição humana em diferentes momentos da vida, como eles se inscrevem
em diferentes categorias sociais e geracionais e constituem sua
historicidade, em diferentes situações, enquanto sujeito singular e universal
(PASSEGGI, ROCHA, 2012, p.4)

Assim, sobre a importância do ato de narrar para a compreensão dos fatos,


discutida por Brockmeier & Harré (2003) encontramos que:

Em pouco mais de uma década, a narrativa tornou-se o objeto de interesse


de um grande número de novas investigações. Muitas delas estão de acordo
com a visão segundo a qual não se trata apenas de um novo objeto de
investigação, como as estórias que as crianças contam, discussões em festas
e jantares em diferentes ambientes sociais, relatos de doença e de viagens
ao exterior, autobiografias, as retóricas da ciência. “Trata-se, antes, de uma
nova abordagem teórica, de um novo gênero de filosofia da ciência.”
(BROCKMEIER & HARRÉ, 2003, p.525)

Dialogando com Bruner, os autores Brockmeier e Harré (2003, p.534) enfatizam


que uma das funções essenciais da narrativa como arte é, portanto, subjetivar o
mundo, conforme Bruner formulou: abrir-nos para o hipotético, para o espectro de
perspectivas reais e possíveis que constituem a vida genuína da mente interpretativa.
Bruner (2001), debate sobre a constituição social da mente e chama a atenção para o
papel da escola na atividade compartilhada, da reflexão, do diálogo e da negociação no
contexto educacional. Para Brockmeier e Harré (2003, p. 525) “o espaço ocupado, nas
últimas décadas, pelas narrativas autorreferenciais, orais ou escritas, longe de ser mais
uma abordagem teórica, ou um modismo, a narrativa torno-se ‘[...] um novo gênero de
filosofia da ciência [...]’ um caminho de maior refinamento da metodologia
interpretativa”. Correia (2003, p.506) afirma: “No contexto escolar Bruner tem
procurado verificar a influência da cultura na aprendizagem escolar ou o papel
capacitador desta no desenvolvimento mental”, e assim, “coloca a narrativa como a
moeda comum entre nosso self e o mundo social” (p.510). Para Pino (2005) que deu

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 866


continuidade aos estudos de Vygotsky, em Psicologia, considera o caráter cultural do
psiquismo humano. Quanto a isso, ele afirma: a relação eu outro somente acontece
pelo fato de estabelecerem comunicação. Pois, identifica nessa mediação simbólica a
presença de processos de significação. (PINO, 2005, p.149).
Ouvir a criança e refletir sobre suas narrativas nos remete a uma quebra de
paradigmas não tão confortável, já que para Larrosa (2010, p. 184) “a infância inquieta
a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio
em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento”.
Esses estudos têm norteado as nossas pesquisas na perspectiva que ajudam a
compreender melhor as narrativas com crianças e a importância de ouvi-las narrar
suas experiências escolares. Para Passeggi e Rocha (2012, p.6) “E essa seria uma das
razões para justificar a pesquisa educacional com as narrativas, pois ela nos conduz ‘a
buscar as relações entre viver e narrar, ação e reflexão, narrativa, linguagem,
reflexividade autobiográfica e consciência histórica’”.
Nessa perspectiva, a pesquisa com criança possibilita, segundo Cruz (2008)

Conhecer as crianças permite aprender mais sobre as maneiras como a


própria sociedade e a estrutura social dão conformidade às infâncias; sobre
o que elas reproduzem das estruturas ou o que elas próprias produzem e
transformam através da sua atuação social; sobre os significados sociais que
estão sendo aceitos e transmitidos e sobre o modo como o homem e mais
particularmente as crianças – como seres humanos novos, de pouca idade –
constroem e transformam o significado das coisas e as próprias relações
sociais. (CRUZ, 2008, p.48)

Assim, justificamos a originalidade da pesquisa com crianças no campo


educacional, na medida em que ouvimos e validamos as narrativas infantis como
fontes de investigação e reflexão do contexto escolar. Sobre esse assunto, as autoras
Silva, Barbosa e Kramer (2008) declaram: “Mais do que ‘dar voz” trata-se, então, de
escutar as vozes e observar as intenções e situações, sem abdicar do olhar do
pesquisador, mas sem cair na tentação de trazer os sujeitos a partir desse olhar”
(SILVA, BARBOSA e KRAMER, 2008, p. 95)

Metodologia da pesquisa

A metodologia utilizada no projeto de pesquisa Narrativas Infantis: o que


contam as crianças sobre as escolas da infância, coloca a criança como centro da
investigação e a partir da interação de sua realidade com o mundo da imaginação
proporciona um pensar sobre as temáticas educacionais que envolvem escolas da
infância. Essa pesquisa se insere na abordagem qualitativa, por entender que ela se
fundamenta em descrições detalhadas de situações, sendo importante na identificação
conceitual de valores encontrados entre os sujeitos pesquisados e difíceis de
quantificar, tais como: sentimentos, atitudes individuais, crenças, etc. (BOGDAN;
BIKLEN, 2003).
A metodologia do projeto é entendida a partir de pequenas rodas de conversas,
com no máximo cinco crianças, essa preocupação de pesquisar com crianças em rodas
parte do princípio que esse seria o meio mais democrático onde todas as crianças
pudessem se expressar livremente. Sobre essas rodas de conversas, Leite (2008)
esclarece que são encontros de grupo e não centrados em uma única criança por vez,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 867
o que também ajuda sobre maneira na circularidade de papéis a serem assumidos
pelos diferentes meninos e meninas (p.123) e sobre esse assunto, Leite (2008)
completa:

A opção pelo grupo tem, ainda relação direta com a concepção de


linguagem e com o papel do outro na constituição do sujeito e na formação
da consciência. Palangana (2000, p.30), alicerçada em Vigotski, afirma que,
no contato com o outro, apontamos, discriminamos, explicamos,
estabelecemos relações... “Nas experiências partilhadas, a criança não vai
simplesmente aprendendo a cumprir ordens, a imitar posturas, a seguir
regras e princípios. Mais que isso, interiorizando-os, dominado suas
correspondentes operações e, não raro (re)elaborando-os”. A linguagem é,
sobretudo, reflexiva. (LEITE, 2008, p.124)

O protocolo da pesquisa se desenvolve a partir da presença de um Alien, um


alienígena que veio de um planeta bem distante onde não tem escolas, o qual age
como mediador do mundo real para o universo infantil. Para Passeggi (2014):
A roda de conversa se organiza em função da presença de um pequeno
alienígena que vem visitar a escola. [...] A ideia do alienígena é a de provocar
o distanciamento necessário à imaginação e à reflexão crítica, consideradas
necessárias a um movimento de negociação cultural, de modo a possibilitar
à criança lidar com eventuais conflitos e desenvolver meios de sedução e de
persuasão, ao se situar diante do alienígena, para envolvê-lo naquilo que
diziam. O alienígena desempenhava assim a função de mediador da
construção narrativa, permitindo maior familiarização da criança com o
pesquisador, que tenta se aproximar do universo infantil e das crianças
respeitando as diferenças entre eles. (PASSEGGI et al 2014, p.8)

As rodas foram estruturadas em torno de três momentos: abertura,


desenvolvimento e fechamento. (PASSEGGI et al 2014. p.8) No momento inicial os
pesquisadores dispõe de um pequeno texto, que faz parte do protocolo original do
projeto.
Este é o pequeno Alien, ele vem de outro planeta muito longe daqui. Vocês
o conhecem? No planeta onde ele mora não tem escolas como essa. Então,
ele quer saber como é a escola, para que ela serve, o que a gente faz nela...
Enfim, ele queria que vocês contassem a ele tudo o que vocês sabem sobre
a escola. Quem gostaria de começar a conversa com o Alien e explicar para
ele como é a escola (a pré-escola)?

No desenvolvimento, as crianças são conduzidas a pensarem sobre o cotidiano


da escola, para isso os pesquisadores utilizam de algumas perguntas sugeridas pelo
protocolo da pesquisa, tais como: Como você ajudaria ao Alien a fazer amigos na
escola? Ele quer saber do que é que mais gosta na escola? Quer dizer para ele? Se você
pudesse mudar alguma coisa, você mudaria o quê? O que não poderia faltar na
escola?… Para o fechamento das rodas de conversas as crianças são motivadas a
enviarem cartas, com mensagens e desenhos, para o seu amigo de outro planeta.
Essa metodologia considera as narrativas das crianças como instrumento
desencadeador da reflexão sobre a experiência escolar e legitíma o pensamento da
criança sobre a sua própria história, para isso Passeggi afirma: “A pessoa, ao narrar sua

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 868


própria história, procura dar sentido as suas experiências e nesse percurso, constrói
outra representação de si: reinventa-se.” (PASSEGGI 2011, p.1).
A metodologia é comum aos quatro projetos de pesquisa que são
desenvolvidos em escolas regulares e são objetos de estudo e reflexão do GRIFAR|RN:
O primeiro projeto busca investigar o desvelar dos saberes de crianças quilombolas
sobre a cultura escolar no Município de Alcântara - MA; o segundo projeto busca
identificar a relação entre a representação da escola em crianças quilombolas e seu
desempenho escolar em Portalegre – RN; o terceiro, enfatiza o acolhimento nas
escolas da infância na rede pública no município de Natal-RN e o quarto projeto de
pesquisa busca compreender o que dizem as crianças sobre a violência nas escolas da
infância na rede pública municipal de Natal|RN. Sobre esse último projeto de pesquisa
– Violência na escola – é que traremos, para esse artigo, seus resultados e implicações
no campo da pesquisa com as crianças.

Apresentação e discussão dos resultados

Para evidenciarmos os resultados da pesquisa, utilizaremos como referência


uma pesquisa realizada por SILVA e SILVA (2012) em duas escolas públicas localizadas
em regiões periféricas do município de Natal /RN. Essa pesquisa contou com a
elaboração de duas rodas de conversas, cada uma com três alunos, com idades entre
oito e dez anos. As rodas de conversas foram organizadas na biblioteca da escola por
ser este ambiente, um local ideal para a atividade partilhada e a socialização das
crianças. A partir do pequeno texto sobre o Alien as crianças foram desenvolvendo um
leque de respostas que abrangiam os mais diferentes fatores psíquicos, sociais,
educacionais e econômicos que interferem no cotidiano escolar e que afetam
diretamente a aprendizagem cognitiva das crianças.
A conversa com as crianças se iniciou com narrativas sobre o cotidiano escolar
e sobre o que elas pensavam sobre a escola, porém logo no início das narrativas pode-
se perceber que a violência escolar era uma questão persistente e reincidente nas falas
das crianças. Todas as conversas das crianças sobre a escola traziam a dor e a angústia
sobre a violência sofrida pelos colegas de classe. Enfatizamos mais uma vez que em
nosso roteiro de perguntas não havia nada que remetesse ao tema da violência, porém
entendemos, através da narrativa com as crianças, que esse era o principal fator que
afetava o cotidiano daquela escola. E que, portanto precisávamos ouvi-las sobre a
violência na escola.

Violência escolar – Conceito banalizado

Pesquisar com crianças em um ambiente escolar sempre foi um rico objeto de


estudo na medida em que o ambiente institucional da infância se caracteriza como
espaço democrático. Porém, cada vez mais se observa que a escola enquanto
instituição formadora vem sofrendo os reflexos do aumento desenfreado da violência
social. Não raro, encontramos relatos de comportamentos violentos, agressivos e
criminosos manifestados no entorno da escola, violências na/da/contra a escola.
Segundo a cartilha da UNICEF sobre a violência na escola, pode-se destacar que: A
escola, por excelência é o local dedicado à educação e à socialização da criança e do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 869


adolescente, transformou-se em cenário de agressão, autoritarismo e desrespeito
mútuo (p.31).
Como identificar o fenômeno da violência na escola? Como ajudar crianças a
superarem essa violência? Entendemos que o fenômeno da violência não é exclusivo a
escola, mas é um reflexo de uma sociedade instável e desestruturada em seus valores
sociais. As crianças externalizam na escola as suas angústias e vivencias cotidiana,
dessa forma, encontram na narrativa um elemento regulador para denunciar a
violência, já que na ausência do dialogo a agressividade se materializa, como afirma
Pigatto (2010):
Os problemas da violência, na instituição escolar causam muitos transtornos
em seu ínterim, pois a escola, por si só, “[...] inscreve-se na ordem da
linguagem e da troca simbólica e não na da força física” (CHARLOT, 2002,
p.436). O autor considera ainda que a agressividade e os conflitos nesse
espaço deveriam ser regulados “[...] pela palavra e não pela violência –
ficando bem entendido que a violência será bem mais provável, na medida
em que a palavra se torne impossível”. (CHARLOT apud PIGATTO, 2010, p.
310).

Assim, compreendemos que ouvir as crianças sobre suas experiências com


violência na escola nos ajuda, segundo Imbernón (2000, p.93), a desenvolver
diferentes habilidades além da leitura e da escrita como, por exemplo, o discurso
narrativo, a consciência crítica, o trabalho em conjunto, o debate e o diálogo.
Para compreender essa violência institucionalizada dividimos a análise das
narrativas infantis em categorias que facilitam o entendimento dos três tipos de
violência vivenciados e relatados pelas crianças. Embasamos essas categorias na
perspectiva de Charlot (2002):

Para Charlot (2002), ao retratar a violência na escola, também faz distinção


entre a violência da escola e a violência à escola. O autor caracteriza
violência da escola como a violência institucional, simbólica, através das
relações de poder estabelecidas pelos professores a seus alunos. A violência
à escola é aquela que visa à instituição e aqueles que a representam. A
violência na escola, objeto de nosso olhar, é aquele que se produz dentro do
espaço escolar. (PIGATTO, p. 311)

Identificamos nas narrativas com crianças três tipos de categorias sobre


violências na escola, violência simbólica, discriminatória e física. Traremos agora, as
discussões acerca de cada categoria e suas implicações no diálogo das crianças.

Violência Simbólica

A violência simbólica é exposta nas relações de poder, nas desigualdades


sociais, na descriminação, marginalização, sujeição e na própria violência verbal no
relacionamento entre alunos e alunos, professores e alunos. Nela temos o processo de
dominação econômica imposta culturalmente aos que são dominados, sendo
inculcado a estes padrões já definidos de como perceber o mundo. Apesar de existir, a
violência simbólica por vezes não é notada no campo educacional, porém em
determinadas situações ela é descortinada.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 870


Levando em consideração o que Bourdieu e Passeron (1992) afirmam, todo ato
pedagógico é determinantemente uma violência simbólica, uma vez que se impõem
aos alunos em uma relação de poder aquilo que deve ser apreendido, que tem por
merecimento ser ensinado, dessa forma, a ação pedagógica sustenta a reprodução da
violência simbólica. Para Stoer (2008):

A ação pedagógica reproduz o arbitrário cultural das classes dominantes ou


dominadas. A ação pedagógica (institucionalizada) da escola reproduz a
cultura dominante e, através desta, a estrutura de relações de força dentro
de uma formação social, possuindo o sistema educativo dominante o
monopólio da violência simbólica legítima. Todas as ações pedagógicas
praticadas por diferentes classes ou grupos sociais apoiam objetiva e
indiretamente a ação pedagógica dominante, porque esta última define a
estrutura e o funcionamento do mercado econômico e simbólico. (2008,
p.15)

A partir das análises das narrativas infantis pode-se perceber que de seis alunos
entrevistados, a maioria respondeu que estava na escola para estudar, aprender e ser
alguém na vida. Percebe-se que essa afirmativa não é propriedade do discurso infantil,
contudo esse ensinamento foi internalizado socialmente e (re)significado na criança.
Para Passegi e Abrahao (20012, p.12) “[a criança] justifica a sua ida a escola com o
discurso herdado do projeto de si: ‘para ser alguém na vida’”. Na perspectiva de Cruz
(2008, p.46) “As crianças não só reproduzem, mas produzem significações acerca de
sua própria vida e das possibilidades de construção da sua existência”.
Eu sei. Pra estudar, aprender e ser alguém na vida. Porque se a pessoa não
estudar, ninguém vai querer pra um trabalho. Porque se ninguém saber,
num vai saber ajeitar nada, na vida. E tem que vir pra escola pra aprender e
arranjar um trabalho muito bom. (PEDRO, 2012)

A coisa mais interessante é aprender a ler. Porque se chegar alguma coisa


estranha e for alguma coisa de mal, a pessoa tem que pesquisar para saber
se essa coisa faz mal ou bem. E ela só consegue fazer isso se ela souber ler.
(PEDRO, 2012)

Averiguando as narrativas de Pedro, percebemos a visão de mundo que a


criança tem, de que é necessário estudar para trabalhar e assim ser alguém, ou seja,
para possuir uma identidade e utilidade social é preciso primeiramente estudar, essa
visão está imposta por uma cultura dominante, em que é inculcada a criança desde a
mais tenra idade. Na violência simbólica o dominado não se percebe como vítima e
não combate o domínio do opressor, antes leva as circunstâncias como naturais,
acatando-as como decisivas e não relutantes.
Outro indicio de violência simbólica é obervado na narrativa de Pedro, quando
ele é questionado se os seus pais apoiam a sua permanência na escola.
Sim. Eles sabem que eu vou ser alguém na vida estudando. Eles não brigam
e me ajudam com o dever de casa quando é difícil e deixam eu brincar um
pouco e também me ajudam a lavar a louça. (PEDRO, 2012)

Percebendo que é como aparelho reprodutor da ideologia do opressor é que


funciona a escola, Bourdieu (2001) afirma:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 871


A propensão das famílias, e das crianças para investir na educação, que
constitui por si só um dos fatores importantes do êxito escolar depende do
grau em que dependem dos sistemas de ensino para a reprodução de seu
patrimônio e de sua posição social, bem como das oportunidades de seu
sucesso prometidas a tais investimentos em função do volume de capital
cultural que possuem (BOURDIEU 2001, p. 264).

Sobre essa violência simbólica podemos compreender que ela é socialmente


construída e internalizada nas crianças, os adultos reafirmam as relações de poder
projetando nas crianças suas perspectivas adultocêntricas.

Violência Discriminatória

É notório que a violência nas escolas não é um fenômeno recente.


Anteriormente nas primeiras pesquisas acerca da violência escolar eram apontadas as
depredações e os atos de vandalismo, todavia novas formas de violência escolar
surgem diariamente, sobretudo nas interações entre grupos de alunos. Nas analises
das narrativas infantis verifica-se que há uma constante agressão verbal, há ameaças e
perseguições, as crianças são rotuladas negativamente passando a ser excluídas das
brincadeiras e dos círculos de amizades. Quando perguntadas sobre suas amizades
construídas na escola, Bia relata:
Não tenho. As pessoas são legais, mas eu não sou amiga delas. (BIA, 2012)

Nesse momento da conversa Pedro interviu na fala de Bia, e explicou:

Ela não tem amigos, porque o povo chama a irmã dela de mudinha, e ficam
achando graça dela. (PEDRO, 2012)

Então Bia justifica,

Sim, as pessoas a chamam de mudinha e eu não gosto. Eu falo para elas que
a minha mãe não deixa chamar ela assim. Ela não gosta. Por isso eu não
gosto das pessoas. (BIA, 2012)

Durante toda a roda de conversas Bia demonstrou aversão à violência verbal


sofrida pelos colegas de classe na escola. Em alguns momentos, durante a roda de
conversa, ela expressou essa angústia através de lágrimas ao falar do bullying208sofrido
por sua irmã que é deficiente auditiva. Nessa narrativa Bia expressa à violência
discriminatória vivida por sua irmã, tendo em vista que a ausência da linguagem verbal
é motivo de “chacota” e brincadeiras entre os colegas. Bia não concordando com essa
atitude discriminatória agride os colegas verbalmente e se isola do convívio social,
afirmando assim não ter amigos.

208
“Bullying é um termo inglês utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica,
intencionais e repetidos praticados por um individuo (Bully ou “valentão”) ou grupo de indivíduos com
objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo (ou grupo de indivíduos) incapaz(es) de se defender”.
(WIKIPEDIA, 2014)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 872
Violência física

A violência física é de todas as formas de violência a mais evidenciadas nas


narrativas, concordamos com Charlot (2002) ao afirma que a violência na escola se
passa como se estivesse convertendo-se em fenômeno estrutural e não mais acidental
(p. 434). Em narrativas, como:

Eu estudo. Eu gosto de estudar, escrever... Aí tem o recreio, aí fica todo


mundo batendo nas pessoas, fica chamando palavrão.” (BIA, 2012)

Eu sento, a professora diz bom dia, faço a tarefa, faço o dever de casa... Aí
toca para ir para casa... Aí é o maior barulho, Fica todo mundo brigando e
batendo nos colegas. (BIA, 2012)

Nessas narrativas as crianças descrevem cenas de agressividade entre os colegas,


demonstram medo e insegurança nos horários que deveriam ser para o lazer: o intervalo. A
brincadeira dá lugar para as brigas e discussões. Nesse sentido o documento da UNESCO
discorre:

A violência física é a face mais visível do fenômeno. [...] Em algumas


situações, justifica-se o recurso da violência física como uma fonte de defesa
pessoal, como atitude de proteção aos amigos mais fracos ou como uma
resposta a ação de um sujeito mais forte. Em outras, aparece como uma
atitude impensada diante de uma provocação. Independente da
justificativa, trata-se sempre de uma forma de negociação que exclui o
diálogo, ainda que seja impulsionada por múltiplas circunstâncias e se
revista de uma conotação moral – como a defesa dos amigos. (UNICEF,
p.46)

Durante as rodas de conversas, Pedro (2012) nos trouxe um dado intrigante,


em sua narrativa existe uma dualidade de sentimentos. No primeiro momento ele
discorre que:
Eu tenho um bocado [de amigos]. Eles são legais e me chamam para brincar.
Eles são bons, nunca batem em ninguém, só faz brincar mesmo. (PEDRO,
2012)

Mas ao longo da conversa, Pedro (2012) afirma:

O que eu menos gosto [na escola] é da violência. Porque se um menino tá


brincando com o outro, depois ele pensa que é de verdade e já começa a
bater. Uma vez, um menino bateu no meu nariz e ficou sangrando”. (PEDRO,
2012)

Pedro demonstra uma realidade dual, no primeiro momento ele afirma para o
Alien que sua escola é muito boa, não tem violência e que é muito bom estudar nela,
porém, ao narrar o seu cotidiano escolar ele enfatiza a realidade contraditória.
Quando perguntadas sobre o que as crianças mudariam na escola, a resposta
não poderia ser diferente:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 873


A violência. Colocaria o recreio em ordem, iria dar poucos brinquedos para
brincar porque as crianças perdem, e quem ficasse bagunçando eu ia
colocar de uma hora castigo na biblioteca. (PEDRO, 2012)
Eu ensinaria a eles todos a ler, a escrever, a multiplicar, a dividir. Ensinaria
também a eles a se comportarem, por exemplo, você chega na casa de um
amigo seu, você fica lá perto deles, de uma hora para outra ele fica
machucado com você, você não gosta, você faz aquela atitude: se eu num
gosto não vou ter aquela atitude de briga, como também eu vou sair de
perto dele para evitar briga. (LÉO, 2012)

Eu ensinava eles a ler, a escrita, o comportamento de sala, a obediência e as


tarefas. (ANA, 2012)

Também foram perguntadas quais as estratégias que as crianças utilizam para


se dar bem na escola, e mais uma vez elas reconhecem que as brigas e as “encrencas”
com os colegas prejudicam o sucesso na escola:

Eu não gosto de arrumar encrenca. Obedecer ao professor. Tudo o que ela


mandasse eu fazer, eu fazia. (ANA, 2012)

Obedecer ao professor. Eu não brigaria na escola. Não ia brincar de briga.


Não ia chamar mais palavrão. (LÉO, 2012)

Eu revia o meu comportamento. (MARIA, 2012)

Sobre a narrativa de Maria (2012) É crucial, nesse momento, analisar a sua fala:
“Eu revia o meu comportamento”. Nessa afirmação a criança pensa no seu discurso e o
refaz na fala, percebe-se que ao repensar a sua postura em sala de aula a criança
reconhece que não está “se dando bem na escola”. Como nos diz Fontoura (1992,
p.193) “a tomada de consciência opera-se através do assumir da palavra, do refletir
sobre o seu discurso”. Nessa análise a criança se distancia da figura de si, pensa no
que acredita ser certo, e então conclui que precisa mudar de comportamento.
Quando questionadas sobre a relevância do professor, as crianças enfatizaram
a postura do docente como apaziguador das brigas e restaurados da ordem escolar.
Nos depoimentos colhidos, as crianças demonstram que se sentem seguras na
presença do educador, o que não implica dizer que essa segurança estende-se a todo o
ambiente escolar, pelo contrário, as crianças demonstram medo, insegurança e
ansiedade nas horas do intervalo e na saída da escola. É notória a sutileza com que a
criança descreve as atitudes de sua professora em sala de aula:

Ela faz tarefa, faz dever pra gente fazer na agenda. Ela é legal. Ela não briga.
(BIA, 2012)

Ao falar da professora, a Bia (2012) é enfática ao afirmar “Ela não briga”. A


criança encontra refúgio e segurança na postura da docente em sala de aula. Percebe-
se que a influência do professor é bem mais abrangente do que os conteúdos
ministrados em sala de aula, ela perpassa por valores emocionais e sociais que são
internalizados pelas crianças.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 874


A partir da analise das narrativas, pode-se concluir que o fenômeno da
violência nas escolas, segundo Pigatto (2010)

[...] revela que o comportamento estudantil na atualidade quer, mais do que


nunca, uma política educacional de qualidade, atendendo verdadeiramente
às demandas da escola atual, bem como o envolvimento da sociedade civil
no contexto educacional. [...] Dentro dessa perspectiva, é urgente uma
escola que contemple ações educativas promotoras de aprendizagens
conjuntas e significativas, em que os alunos possam trabalhar em grupos,
inserir-se no meio em que vivem e socializarem os conhecimentos
construídos coletivamente (PIGATTO, 2010, p. 304, 306).

Ressalta-se a relevância desse estudo, de acordo com Hilsdorf (2009, p.26)


“Além de sua pedagogia, o espaço da escola também reflete uma história.” As
inúmeras relações que são construídas e internalizadas no ambiente escolar, torna a
narrativa como um instrumento inovador, denunciador e transformador das
experiências vivenciadas. Portanto, ouvir as crianças, compreender suas experiências
escolares e perceber o quanto isso é significativo, implica em uma profunda análise e
(re)significação do ambiente escolar. Para Peres, Eggert e Kurek (2009, p.65) “as
narrativas evidenciam dimensões subjetivas e cotidianas dos percursos e trajetórias
dos sujeitos em formação”.

Conclusão

Ao longo desse trabalho procuramos discutir de que forma as narrativas


infantis poderiam contribuir para a Educação, na busca de respostas que ajudassem a
compreender os problemas, ou pelo menos alguns deles, que norteiam o sistema
educacional atual. E encontramos na fala das crianças indicações de aspectos sociais,
culturais e afetivos que preenchem as lacunas deixadas, dentre as tais, ressaltamos as
várias formas de violências.
Assim, assumimos o desafio de interpretar a interpretação da criança, de
maneira a considerar todos os fatores envolvidos em suas narrativas, como afirma
Passeggi (2014)
O desafio de interpretar a interpretação da criança, em suas pequenas
narrativas, tem exigido ainda mais cuidado, ainda mais rigor, para nos
aproximarmos de suas culturas, sem nos deixar envolver pelo óbvio ou pelo
espírito de analise e preocupações teóricas que ponham em risco o modo de
pensar da criança. (PASSEGGI, 2014, p.8)

Acreditamos que os resultados encontrados através desse trabalho, nos faz


refletir, enquanto educadores, acerca dos nossos posicionamentos, na busca de
compreender o outro, e assim repensar a nossa prática docente e posicionamento
social.
O que nos contam as crianças sobre as escolas de infância, vai muito além deste
texto. Poderíamos, tem analisado outras dimensões dessas narrativas; o que faz desse
trabalho um impulsor de algo maior que pode ser desenvolvido.
Logo, podemos concluir que as narrativas infantis contribuem como um
instrumento privilegiado para a compreensão do que sentem as crianças na escola e
que podem nesse sentido trazer informações úteis para as políticas educacionais. Há

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 875


muito a se desvendar do mundo vivenciado pela criança através da sua fala, basta
ouvi-las, e empreender a difícil tarefa de melhor entender o que pensam da escola.
Concluímos que nesta metodologia de estudo a criança é contemplada como sujeito
de direitos, de modo que as pesquisas contribuem com um novo pensar sobre as
escolas de infância como espaços de construção de saberes científicos.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 877


Eixo Temático III
DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA,
ESCRITAS DE SI E FORMAÇÃO

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 878


Carta a um jovem poeta e Drummond encantado, de Aleilton Fonseca: a construção
do sujeito no discurso autobiográfico

Adna Evangelista Couto dos Santos


UFBA/CAPES
adnacouto@gmail.com
Silvia La Regina Universidade Federal da Bahia
UFBA/UFSB
silvialaregina@hotmail.com

O escritor Aleilton Fonseca é um autor baiano da geração 80 (1980). Nasceu em Firmino Alves no dia 21
de julho de 1959. Como amante das letras e da poesia, envereda-se pelo caminho da lírica através da
produção de poemas, mas é como romancista que se destaca no cenário da literatura nacional e
também internacional. Suas obras privilegiam as experiências da vida. Isso faz com que a escrita se
aproxime mais do leitor. O texto autobiográfico é uma narrativa centrada no sujeito que a cria, que é ao
mesmo tempo ponto de partida e objeto do texto, a autobiografia apresenta-se também como uma
afirmação do sujeito no espaço da literatura. É como se, ao lado da poesia, do romance, da peça teatral,
da crônica, enfim, se reservasse àquele indivíduo, a suas reflexões e experiências particulares, um
"gênero" literário específico, que permitisse a expressão de sua unidade e autonomia. O autor narra, na
primeira pessoa, acontecimentos que seleciona da sua própria vida, em geral para caracterizar também
sua formação como sujeito social. O relato autobiográfico tem, em geral, um caráter mais expressivo do
que informativo. Nesse sentido, objetiva-se com esse trabalho identificar as marcas deixadas através
dos textos Carta a um jovem poeta e Drummond Encantado, que contribuem para a identificação da
construção de uma escrita de si e da formação de um sujeito. Nestes textos o escritor evidencia
aspectos autobiográficos, pois seleciona um fato marcante em sua vida e o relata em forma de texto
literário. Para esta análise, pretende-se utilizar os pressupostos teórico-metodológicos de Foucault,
Bakhtin e Benjamin, entre outros. A autobiografia traz essa perspectiva cujo assunto tratado é a vida
individual e implica necessariamente a identidade entre autor, narrador e personagem.
Palavras-chave: Discurso autobiográfico; Drummond; Aleilton Fonseca.

Primeiras palavras

O texto autobiográfico é uma narrativa centrada no sujeito que a cria, que é ao


mesmo tempo ponto de partida e objeto do texto, a autobiografia apresenta-se
também como uma afirmação do sujeito no espaço da literatura. É como se, ao lado da
poesia, do romance, da peça teatral, da crônica, enfim, se reservasse àquele indivíduo,
a suas reflexões e experiências particulares, um "gênero" literário específico, que
permitisse a expressão de sua unidade e autonomia. O autor narra, na primeira
pessoa, acontecimentos que seleciona da sua própria vida, em geral para caracterizar
também sua formação como sujeito social.
O relato autobiográfico tem, de forma generalizada, um caráter mais expressivo
do que informativo. Nesse sentido, objetiva-se com esse trabalho identificar as marcas
deixadas através dos textos Carta a um jovem poeta e Drummond Encantado, que
contribuem para a identificação da construção de uma escrita de si e da formação de
um sujeito. Nestes textos o escritor evidencia aspectos autobiográficos, pois seleciona
um fato marcante em sua vida e o relata em forma de texto literário. Para esta análise,
pretende-se utilizar os pressupostos teórico-metodológicos de Foucault, Lejeune,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 879


Benjamin, entre outros. A autobiografia traz essa perspectiva cujo assunto tratado é a
vida individual e implica necessariamente a identidade entre autor, narrador e
personagem, um pacto narrativo que se desenvolve ao longo do texto.

Aleilton Fonseca: o autor e a produção dos textos

O escritor Aleilton Fonseca é um autor baiano da Geração 80 (1980). Suas obras


marcam esse período com textos que revelam uma geração de jovens autores com
qualidade literária e forte representação acadêmica. Como amante das letras e da
poesia, envereda-se pelo caminho da lírica e da produção de poemas, mas é como
romancista que se destaca no cenário da literatura nacional e também internacional.
Nasceu em Itamirim, hoje Firmino Alves - Bahia, em 21 de julho de 1959. É poeta,
ficcionista, ensaísta e professor universitário. Em 1963, sua família se fixou em Ilhéus-
Bahia, onde o escritor viveu a infância e a adolescência, e escreveu e publicou seus
primeiros textos em jornais.
Em 1977 começa a publicar contos e poemas no Jornal da Bahia, de Salvador,
tendo vencido três vezes o seu Concurso Permanente de Contos. Publica também no
suplemento “A Tarde/Novela”, de A Tarde, jornal que tem circulação nacional. Em
Ilhéus passa a assinar a coluna "Entre Aspas", no Jornal da Manhã. Em dezembro de
1977, aos 18 anos, sai sua primeira entrevista, no Jornal da Bahia, quando é
apresentado por Adinoel Mota Maia como um novo escritor que surgia no sul da
Bahia. Ainda neste ano, vence o prêmio de contos da Editora Grafipar, do Paraná.
Como membro da Academia de Letras da Bahia (desde 2005), escritor, professor
universitário na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), está sempre
envolvido com eventos que incentivam a leitura, a produção textual e a pesquisa.
A citação seguinte destaca outra característica significativa do escritor, que é sua
habilidade vocabular, como se apropria das palavras e as apresenta com um aparente
prazer de entendimento e aplicação, a maneira como relaciona determinadas palavras
a lembranças de sua infância, episódios e até fisionomias relacionadas a vivências do
passado.

É sintomático, também, que o contista Aleilton conjugue numerosas


vezes o verbo escavar e os substantivos que lhe estão associados. Ao
escavar, ele seleciona palavras e as saboreia. O contista as toma no
paladar, sente-lhes o gosto, o peso, o nível de expressão. Há nesse
conúbio com as palavras um prazer por assim dizer sensual. O escritor
escava lembranças, que se identificam através de palavras, escava
rostos e episódios da infância – e essa garimpagem permanente lhe
rende histórias (vai esse termo, para mim preferível a estórias) dignas
de reflexão. (PÓLVORA, 2005, p. 4)

A linguagem de Aleilton Fonseca é acessível ao leitor, os enredos são simples,


não no sentido de simplórios, mas no sentido de próximos do leitor. Henrique Wagner,
poeta e contista, reforça esse pensamento na citação abaixo:

A prosa de Aleilton Fonseca tem muito da simplicidade e do lirismo de


um dos ganhadores do Nobel de Literatura, o japonês Iasunari
Kawabata, premiado em 1968. Dele nos lembramos em vários

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 880


momentos da leitura de O desterro dos mortos. Sua primazia pelo que
pode ativar, em sentimentos, determinada palavra, em contraposição
ao preciosismo com as frases ordenadas, é um dos elos entre os dois
escritores [...] Dois mandamentos, dentre outros, são visíveis na prosa
do escritor baiano: “Não comece a escrever sem saber aonde ir. Em
um conto as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que
as três últimas” e “Se quiseres expressar com exatidão esse fato: um
vento frio soprava do rio, não há na linguagem humana palavras mais
exatas que essas. “Seja dono de tuas palavras sem te preocupares com
tuas dissonâncias”. Aleilton dá sobrevida aos clássicos, aos grandes
mestres da estética. (WAGNER, 2005, p. 4)

As observações do contista Wagner (2005) se voltam para a linguagem


simples, intimista e acessível, para a veracidade dos enredos e também para a maneira
como o autor saboreia as palavras e compartilha esse prazer da escrita com o leitor.
Mostram um escritor que prioriza a exatidão das palavras e a objetividade ao expressá-
las. Essas características mostram um perfil que se traça ao longo de sua carreira como
escritor, como também um legado cultural que deixa à sociedade.
Suas obras privilegiam as experiências da vida. Isso faz com que a escrita se
aproxime mais do leitor. A linguagem intimista e de fácil compreensão promove uma
maior acessibilidade e interesse por parte de um grupo da população que não está
ligado ao contexto acadêmico literário.
Em 1979, ingressa no curso de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e se transfere para Salvador, que adota como seu ambiente de formação cultural.
Organiza seu primeiro livro de poemas, que recebe Menção Honrosa no Concurso
Prêmios Literários da Universidade Federal da Bahia – 1980 e é, logo depois,
selecionado para abrir a série de poesia da Coleção dos Novos da Fundação Cultural do
Estado da Bahia, que publicou 14 novos autores baianos no início da década de 1980 e
fixou o perfil da Geração 80 no estado.
Em 1981 publica o seu primeiro livro, Movimento de sondagem (Salvador:
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981) que recebeu, entre outros, a atenção de
Carlos Drummond de Andrade, que lhe escreveu uma carta de incentivo e de Rubem
Braga, que publicou dois de seus poemas na coluna “A Poesia é Necessária”, na Revista
Nacional, semanário que circulava encartado nos principais jornais das capitais.
Ainda em 1981, começa a ensinar língua portuguesa no ensino fundamental,
criando uma oficina literária, cuja produção discente era publicada em murais, em
coletânea e nos suplementos infanto-juvenis de jornais, como o JOBA, do extinto
Jornal da Bahia. Conclui o curso de Letras e passa a lecionar literatura e língua
portuguesa. Em 1984, ingressa como professor no curso de Letras da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), transferindo-se para a cidade de Vitória da
Conquista, e ainda neste mesmo ano publica o livro de poemas O espelho da
consciência (1984).
Em 1988, ingressa no Mestrado em Letras, na Universidade Federal da Paraíba.
Fixa-se com a família em João Pessoa. Em 1990 retorna às atividades na UESB,
trabalhando no curso de Letras, divulgando literatura, incentivando a formação de
leitores de poesia através de cursos preparatórios para professores.
Em 1992 defende a dissertação de mestrado sobre música e literatura
romântica, que foi publicada em livro em 1996, pela Editora 7 Letras, do Rio de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 881
Janeiro, com o título: Enredo romântico, música ao fundo: manifestações lúdico-
musicais no romance urbano do romantismo. Passa a publicar ensaios e resenhas em
suplementos de jornais e em revistas universitárias.
Em 1993 ingressa no Doutorado em Literatura Brasileira, na Universidade de
São Paulo, fixando-se com a família na capital paulista. Após a publicação do livro O
espelho da consciência (1984), o escritor só volta a publicar dez anos depois, em 1994,
em edição artesanal, o metapoema Teoria particular (mas nem tanto) do poema. Em
entrevista cedida ao jornalista Lima Trindade, o escritor esclarece os motivos pelos
quais passou tanto tempo sem publicar. A seguir um trecho da entrevista

Lima Trindade ̶ Depois de O espelho da consciência, 1984, houve um


interregno de dez anos até Teoria particular (mas nem tanto) do poema.
Qual a razão para tamanha ausência?
Aleilton – Em 1984 entrei na vida universitária, como professor da UESB, em
Vitória da Conquista, Bahia. Então me dediquei à formação profissional.
Cursei Especialização, fiz mestrado na Universidade Federal da Paraíba,
residindo em João Pessoa, entre 1988 e 1990, com minha mulher, Rosana
Ribeiro Patricio, e nossos filhos, Diogo e Raul. Aliás, Raul nasceu em João
Pessoa, nessa época, em 1989. Com a família, retornei à Bahia, adiante segui
para São Paulo, em 1994, para cursar doutorado na Universidade de São
Paulo. Foram 10 anos de estudos e aprendizado teórico, crítico e didático.
Em 1994, em plena USP, recuperei o ímpeto da criação. Escrevi e publiquei o
poema Teoria particular (mas nem tanto) do poema. Comecei a escrever os
contos do livro Jaú dos Bois, que recebeu menção honrosa no Prêmio
Nascente 1994, da USP. Em 1996, esse livro, revisto e aumentado, foi
premiado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e editado pela
Relume-Dumará, em 1997. Foi meu retorno à vida literária plena. Entre 1995
e 1997, enquanto escrevia a tese de doutorado, eu ia também escrevendo
poemas e contos que logo saíram em livros e revistas, com muito êxito. Já a
tese, sobre a poesia urbana de Mário de Andrade, deve sair em livro ainda
este ano. A minha ausência de 10 anos, portanto, foi devida a um ciclo de
formação de professor, pesquisador e ensaísta, voltado para a reflexão
sobre questões teóricas e analíticas da literatura. Hoje, produzo poesia,
ficção, crítica e ensaios. Eu era um professor que escrevia; agora sou um
escritor que dá aulas. (TRINDADE, 2011, on line)

No ano de 1996 retorna a Salvador, onde fixa residência até a atualidade.


Retoma suas atividades junto aos demais escritores da Geração 80. Organiza com
Carlos Ribeiro o livro Oitenta: poesia & prosa (Coletânea comemorativa dos 15 anos da
Coleção dos Novos). Salvador: BDA-Bahia, 1996, que serviu de base para a definição da
Geração 80 na antologia A Poesia na Bahia no século XX, organizada por Assis Brasil
(Rio de Janeiro: Imago, 1999).
Concorre aos "Prêmios Culturais de Literatura" da Fundação Cultural do Estado
da Bahia, com o livro Jaú dos Bois, que recebe do jornalista Luiz Ruffato e escritor do
livro: As máscaras singulares, o seguinte comentário no Jornal da Tarde

O livro (Jaú dos Bois) compõe-se de cinco contos, que demonstram uma
virtude poucas vezes encontrada na atual literatura brasileira: o domínio da
técnica formal a serviço de uma sensibilidade aguçada. O autor, também
poeta (dos bons) e professor universitário, consegue resgatar o lirismo das

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 882


histórias comuns, sem em momento algum cair no simplismo nem na
pieguice. (RUFFATO, 1999, on line)

A obra fica entre os vencedores (3o lugar) e é publicada pela Relume Dumará,
no Rio de Janeiro, em 1997. O livro esgota rapidamente, obtendo expressiva acolhida
da crítica, com vários artigos, tornando-se objeto de estudo em cursos de Letras, na
Bahia. O escritor e jornalista Cid Seixas, em matéria do Jornal A Tarde, comenta

O contista Aleilton Fonseca sabe juntar a profusão de sentimentos vivos do


seu universo ficcional num espaço definido e preciso: o espaço da escrita,
pondo as palavras a serviço do seu dizer. Nenhum gesto de personagem se
perde dos olhos, nenhuma palavra se perde do ouvido, tudo conduz ao
ponto indicado pela mão do escritor. (SEIXAS, 1998, on line)

Em 1997 conclui o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com a defesa


da tese intitulada: A poesia da cidade: imagens urbanas em Mário de Andrade. Esse
relato biográfico é pertinente no sentido de visualizar através da fortuna crítica as
marcas que sujeito escritor deixa mediante sua trajetória acadêmica e sua
representatividade na sociedade. Sua obra completa é composta de 32 publicações,
entre elas destacam-se Jáu dos bois (1997), O desterro dos mortos (2001), O canto de
Alvorada (2003), Nhô Guimarães (2006) e Movimento de Sondagem (1981), seu
primeiro livro publicado de poesias, aos 21 anos de idade e de onde se origina a análise
desta proposta de estudo.
Mesmo apresentando uma linguagem intimista e de fácil compreensão, na
maioria de seus textos, as narrativas autobiográficos não são muito frequentes na obra
do escritor, mas um fato significativo para ele, o recebimento de uma carta escrita por
Carlos Drummond de Andrade, o fez escrever os textos em questão: Carta a um jovem
poeta e Drummond Encantado. O contexto da ideia de produção destes textos surgiu
quando o escritor, logo após ter publicado Movimento de sondagem, enviou de
presente este livro a Carlos Drummond, e recebeu deste, uma carta felicitando-o e
parabenizando-o pelo livro de poemas, o qual considerou atingir a melhor expressão
pelo que comunicava. A seguir a carta recebida pelo escritor:

Figura 1. Frente da carta enviada a Aleilton Fonseca

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 883


Figura 2. Verso da carta enviada a Aleilton Fonseca

Figura 3. Texto da carta e transcrição diplomática


Mensagem da carta Transcrição diplomática

Rio de Janeiro, 14 de
dezembro, 1981

Prezado Aleilton Santana da


Fonseca:

Recebi “Movimento de
Sondagem” e agradeço-lhe
não só o oferecimento
amigo como ainda como a
citação em pórtico do livro,
um livro em que sua poesia
alcança a melhor expressão,
pelo que traduz e pelo que
comunica.
O abraço cordial e os
bons votos de

Carlos Drummond de
Andrade

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 884


Após o recebimento desta, embora tenha ficado muito contente, o escritor não
divulgou esse fato, guardou esse contentamento durante dezenove anos, até que em
22 de março de 2000, publicou uma crônica e uma poesia sobre o ocorrido, no Jornal
da Tarde, em São Paulo. Em conversa informal, o autor conta que após a morte de
Drummond, em 1987, sentiu uma profunda tristeza e um vazio por não ter respondido
à carta. O trecho a seguir sugere este sentimento: [...] Em 1987, quando recebi a
notícia de que o poeta havia falecido, senti um choque, uma sensação pontiaguda de
perda irreparável, um abismo me engolia e as lágrimas brotavam de meu olhar
fatigado (FONSECA, 2000).
Então, no ano de 2000, revela, através dos textos em questão, algo que havia
sido significativo à vida por tantos anos. As marcas de texto autobiográfico são visíveis
desde o princípio dos textos. Em Carta a um jovem poeta, logo no primeiro parágrafo a
data corresponde exatamente a que está na carta.

Releio sempre a carta que o poeta Carlos Drummond de Andrade me enviou


em 1981. Naquele tempo eu tinha 22 anos e havia publicado o primeiro livro
de poemas. A idade ardia numa vontade doida de traduzir a vida em versos.
Hoje, após tantos janeiros, as musas me cutucam e esbravejam, mas já sei
que é difícil comover o vasto mundo, este vale de lágrimas, desamor e
enormes cifras. (FONSECA, 2000)

Os dados da realidade se entrelaçam ao texto literário, performatizando a


identidade do sujeito através de sua produção escrita e das revelações que faz de sua
vida pessoal. Para Foucault (2004, p. 435), a autobiografia é uma descrição de si no
desdobramento da própria vida.
Autobiografia é principalmente uma narrativa, com perspectiva retrospectiva e
cujo assunto tratado é a vida individual; implica necessariamente a identidade entre
autor, narrador e personagem. Historicamente, inclusive, a harmonia entre
autobiografia e sujeito moderno é confirmada pelo marco inicial a que se costuma
atribuir o nascimento da autobiografia: as Confissões de Rousseau, texto no qual, pela
primeira vez, o eu se fala na intimidade e se põe a nu, à disposição do julgamento dos
leitores. Quanto a origem do texto autobiográfico, Silva (2014, online) afirma que é
possível apontar os perigos de ceder-se à tentação de situar as origens da
autobiografia na Grécia Antiga, tendo em vista que deste raciocínio poderiam resultar
inúmeras imprecisões ocasionadas pela problemática discussão acerca de débitos e
influências como também por, nesse período, a vivência da individualidade ser
indissociável do pertencimento a uma coletividade. Soma-se a isso o fato de não haver
ficado para a posteridade quaisquer exemplares dessa modalidade narrativa e, o que
se tem, são citações indiretas em outros autores. Prevaleciam, de fato, os modelos de
Heródoto e Tucídides, em que "A apreensão dos acontecimentos vividos pelos homens
consistia no processo de investigação da memória social".
Quando se trilha o caminho de retorno à civilização helenística, encontra-se o
bios grego (de vita sua para os romanos) que tanto servia para a descrição de vidas
individuais quanto se utilizava de experiências individuais para revelar “o retrato de
um povo inteiro” (SILVA, 2014, online). O elemento constitutivo marcante do bios
(indicador de um gênero biográfico grego) era a escolha de episódios emblemáticos da
vida do biografado, bem como o uso da descrição direta e da adjetivação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 885


Escolhia-se portanto, um fato emblemático pessoal, que seria exposto publicamente e
que traria uma representatividade não só individual, mas coletiva, dentro da
perspectiva de um sujeito que demonstrava também uma imagem da sociedade.
Na sequência do texto em questão, utilizado para essa análise, é possível
identificar um momento onde o autor imprime uma marca, um lugar de sujeito que
iniciava suas atividades como escritor, um indivíduo que se representava em um papel
social, que se voltava para questões históricas e culturais dentro da sociedade:

O poeta gostou do livro e me mandou, em sua letra e estilo inconfundíveis,


um voto de confiança, um estímulo, um sopro de vida numa chama que mal
balbuciava. Com o envelope inesperado na mão, fiquei atônito entre a
alegria trêmula e uma súbita responsabilidade. [...] Seria uma situação
constrangedora, – o poeta diante de um jovem desconhecido que vinha de
certa forma importuná-lo, logo ele, tão discreto e avesso aos cultos da
personalidade. Não fui. (grifo nosso) (FONSECA, 2000)

Essas expressões deixam transparecer um perfil que o próprio autor expõe


através da narrativa autobiográfica, em outras palavras, pode-se ver um escritor
iniciante que recebe uma carta de incentivo de um escritor já reconhecido no cenário
da literatura, marcas uma escrita de si que se performatiza na escrita do outro, no
sentido da representatividade do outro, ou seja , que o outro exerce na escrita de um
sujeito.
Ao final desse conflito que se apresenta no texto entre responder ou não a
carta, o autor decide não respondê-la

Planejei responder ao poeta, mas a surpresa me ofuscou as idéias. E agora,


José? Eu lia e relia a mensagem, lembrava de minhas primeiras incursões
por sua poesia no ginásio e na biblioteca pública. Aquele nome tão
longínquo agora me parecia estranhamente tão próximo. Não consegui
inventar palavras para expressar o meu estado de espírito. No final daquele
ano fui ao Rio e planejei fazer uma visita de surpresa ao poeta. Um dia, saí
com o endereço anotado, decidido a ir bater em sua residência. Mas, à
medida que avançava pelas ruas, a coragem se perdia pelas esquinas. Acabei
perambulando o dia todo, sem encarar o caminho definitivo de um encontro
com o admirado autor de Boitempo. E se ele não me atendesse? E se não
passasse de um “como vai?”, um “prazer em conhecê-lo” formais? Até hoje
oscilo quanto ao acerto daquela decisão: ora me arrependo de haver
desistido, ora acho que assim foi melhor. O encontro poderia ter sido a
quebra de todo encanto. Guardei na distância a admiração e a gratidão pelo
gesto de incentivo, embora sentisse também um enorme vazio. Em 1987,
quando recebi a notícia de que o poeta havia falecido, senti um choque,
uma sensação pontiaguda de perda irreparável, um abismo me engolia e as
lágrimas brotavam de meu olhar fatigado. O poeta se foi e eu fiquei cativo
de minha não-resposta, da perda de sua presença e de sua palavra. Mas, por
outro lado, algo valioso eu ganhei: o sentido poético dessa falta, que se
conforma e se alimenta na leitura da velha carta, na lembrança de uma
resposta não escrita, de uma visita não realizada, de um poema-
homenagem que se escreve para sempre em minha memória. ( Jornal da
Tarde, 2000)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 886


Desta narrativa autobiográfica surge também um poema autobiográfico, que
nasce dessa mesma situação pessoal vivenciada pelo autor. A seguir o poema
Drummond Encantado

Há tantos anos, O poeta encantou-se,


o coração do poeta desistiu liberto de nós e de si mesmo.
de lutar com palavras.
E a mim só me resta
Não lhe mandei minha letra, a letra íntima da página muda
nem recolhi sua imagem viva que nunca lhe escrevi.
em meu olhar. (Jornal da Tarde, 2000)

O poema dialoga com o texto Carta a um jovem poeta, reforça sentimentos que
foram vivenciados pelo autor e que tiveram significado em sua existência, expressões
que também, dentro do sentido de produção autobiográfica, foram selecionadas para
exposição pública e que marcam a presença de um sujeito social que delimita seu
espaço através da escrita de si, daquilo que considerou pertinente para a construção
performática de sua representatividade social.

O discurso autobiográfico: a construção do sujeito social

Quando alguém se põe a escrever uma autobiografia, é porque tem em mente


fixar um sentido em sua vida e dela operar uma síntese. As escolhas envolvem
omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados e desequilíbrio entre os
relatos, operações que o autor só é capaz de fazer na medida em que se orienta pela
busca de uma significação: busca essa que lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões
devem ser omitidos e quais (e como) devem ser narrados. Reflete-se portanto que a
marca supostamente vivencial da literatura, a correspondência direta ou indireta com
um relato autobiográfico, constituem elementos essenciais da recepção.
Em outras palavras, essa seleção que o autor faz dos fatos a serem narrados, é
fortemente influenciada pela receptividade do leitor que se depara com esses relatos
da vida pessoal e que sentido essa narrativa poderá promover. É essa busca também
que prevalece na estrutura do texto, os relatos ganhando sentido à medida que vão
sendo narrados, acumulando-se uns aos outros, de modo que a significação se constrói
no momento mesmo em que o autor escreve a autobiografia.
O eu não é apenas um assunto sobre o qual se escrever, pelo contrário, a
escrita de si contribui especificamente para a formação de si. (KLINGER, 2012, p. 23).
Dentro do texto, narrador e personagem remetem, respectivamente, ao sujeito da
enunciação e ao sujeito do enunciado: o narrador conta a história e o personagem é o
sujeito sobre o qual se fala. Ambos, porém, remetem ao autor, que passa então a ser o
referente, fora do texto. Em O narrador, Benjamim (1969) fala sobre a importância de
narrar e afirma que narrar as experiências estão em baixa. O mundo se formalizou
tanto que os relatos de cunho pessoal não são tão enfatizados. A autobiografia é um
retorno a esse aspecto da individualidade que foi deixado de lado durante tanto
tempo, não se pode ignorar essas narrativas, pois elas fazem parte das vivências
sociais e da construção dos sujeitos dentro da sociedade.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 887


Pode-se retomar, entretanto, a oposição de Benjamin entre romance e narração,
lembrando que o romance também surgiu no contexto de separação do indivíduo da
sociedade, sendo, portanto, coetâneo à autobiografia, teremos uma primeira
relativização do lugar desta última na modernidade. É certo que a autobiografia, ao
falar do sujeito em sua dimensão íntima, também dá notícia, como o romance da
profunda desorientação de quem vive (BENJAMIN, 1969). De outro lado, contudo, ela
também difunde e exemplifica a experiência do autor, a partir de seu ponto de vista
singular, e, nesse sentido, tal qual a narração, informa, aconselha e ensina o ouvinte.
Paradoxalmente, portanto, a autobiografia, nascida e legitimada no contexto da
modernidade, atualiza uma modalidade discursiva, que, segundo Benjamin, estaria
retrocedendo para o arcaico. E se, antes, a narração explicava a tradição e os
acontecimentos do ponto de vista da comunidade (função que lhe foi tomada pela
imprensa), agora cabe-lhe difundir o novo valor paulatinamente construído na
modernidade: não mais a universalidade e sim o indivíduo em sua dimensão única e
autônoma.
No entanto, essa individualidade dentro do texto autobiográfico, também
preconiza uma representatividade coletiva, no que diz respeito ao indivíduo como
sujeito social, que exerce diversos papéis na sociedade e marca períodos históricos
através de seus escritos.
Do ponto de vista da relação entre autor e narrador, teríamos uma identidade
clara, assumida, que se manifesta no presente da enunciação: é o autor que escreve
aquelas linhas; é ele que narra, no momento presente, a história. Já entre autor e
personagem, o que teríamos não constitui identidade, mas, antes, uma relação de
semelhança, uma vez que o sujeito do enunciado (personagem), apesar de inseparável
da pessoa que produz a narração (o autor narrador está falando dele mesmo), dela
está afastado, o que se compreende principalmente ao verificar a distância temporal
entre o presente da enunciação e o relato de acontecimentos passados: o personagem
com a idade de três anos assemelha-se ao autor com a idade de três anos.
Ao entrar em contato com a questão do sujeito na narrativa autobiográfica, é
necessário estabelecer uma comparação com a narrativa ficcional. A ficção não fala
necessariamente daquilo que, para escritor e leitor, pertence à esfera do real. Nesse
sentido, a narrativa ficcional se distingue da autobiográfica por não se referenciar a
uma realidade anterior e exterior ao texto (a vida do autor), e sim produzir um outro
mundo, imaginário, onde se movimenta, atua e morre o autor. A produção dessa outra
esfera incide sobre o lugar do sujeito na narrativa ficcional. Tendo como ideia
constitutiva justamente o imaginário, a criação de ficção se caracteriza por modificar,
através dos atos de fingir, esse mesmo imaginário. Tal imaginário, contudo, de acordo
com Costa Lima (1983), não deve ser tomado por fantasia, porquanto esta última é
essencialmente uma atividade compensatória (se sinto fome, fantasio um prato de
comida), pertencente à mesma ordem da realidade vivida, satisfazendo expectativas
sem oferecer lugar para o questionamento e a criticidade. O imaginário, ao contrário,
supõe a algo irreal daquilo que se toca; a alteração das expectativas habituais e não
corresponde a uma submissão aos critérios da realidade, mas, antes, à sua inovação e
modificação.
No que diz respeito ao escritor, tal tensão entre o imaginário e o real sofre um
rebatimento para o plano do “eu”. Ainda segundo Costa Lima (1983), o imaginário tem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 888


relação direta com a possibilidade de ampliar o que chama de “ângulo de refração”
das experiências pessoais do escritor, expressão usada para contestar a noção de
reduplicação especular, segundo a qual as figuras compostas pelo escritor seriam
meros reflexos ou projeções de seu eu. Assim, ao mesmo tempo em que o imaginário
permite a transformação do escritor em personagens que nada têm a ver com ele, tal
transformação é alimentada pela refração de sua experiência pessoal (que é vivida no
plano da realidade).
O ângulo de refração seria o espaço no interior do qual se estabelece a tensão
entre o eu imaginário e o eu real. O ficcional, portanto, implica uma dissipação tanto
de uma legislação generalizada, quanto da expressão do eu (não reflete tampouco
valores pessoais do escritor). Nele, o eu se torna móvel, ou seja, sem se fixar em um
ponto, assume diversas nucleações, sem dúvida, contudo, possibilitadas pelo ponto
que o autor empírico ocupa.
No entanto, através do enunciado, o pacto autobiográfico prevê e admite falhas,
erros, esquecimentos, omissões e deformações na história do personagem;
possibilidades, aliás, que muitas vezes o autor mesmo - num movimento de
sinceridade próprio à autobiografia - levanta: escreverá sobre sua vida aquilo que lhe é
permitido, seja em função de sua memória, de sua posição social, ou mesmo de sua
possibilidade de conhecimento (LEJEUNE, 2008). Nos textos em análise, não é possível
afirmar com certeza que todos os trechos são literais, afinal o texto literário permite os
mais variados discursos do imaginário do autor, principalmente pela questão do tempo
do ocorrido e o período da publicação do texto.
Essa espécie de "declaração de princípios", mesmo não expressa, faz parte do
contrato autobiográfico com o leitor e diferencia a autobiografia dos demais textos
referenciais, uma vez que a exime da semelhança estrita ao referente, afastando assim
a necessidade de uma prova de verificação do que foi enunciado (LEJEUNE, 2008). E
assim, torna-se possível dizer que, os textos analisados tornam-se referenciais de
autobiografia, pois mesmo no universo literário, caminhando entre os gêneros: crônica
e poema, dialoga com um outro texto (a carta) que enfatiza a realidade dos fatos
narrados.

Considerações finais

O texto autobiográfico não é somente a representação da escrita de si, é um


espaço de construção dos sujeitos dentro da sociedade, as marcas deixadas através da
escrita representam lugares que o sujeito deixa ao longo de sua trajetória.
Os autores que escrevem autobiografias se permitem a uma exposição que pode
ser interpretada de várias maneiras, as leituras sobre as autobiografias são as mais
variadas possíveis. Há aqueles que afirmam ter o autor uma intenção de se promover
de alguma forma, pode ser que isso também seja uma reflexão, mas vale também
ressaltar que o escritor que não se coloca em exposição cai no esquecimento, e
escritor esquecido é escritor não lido.
O discurso autobiográfico é uma marca que o autor deixa não somente da escrita
de si mesmo, mas da construção de um sujeito que representa diversos papéis sociais,
e acaba constituindo assim um lugar dentro da sociedade através da sua própria
identidade.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 889


Referências
BENJAMIN, Walter. 1969. "O narrador. Observações sobre a obra de Nikolai Leskow",
em
BENJAMIN, W. et al, Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores)
COSTA LIMA. Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro.
Francisco Alves, 1983.
FONSECA, Aleilton. Carta a um jovem poeta e Drummond encantado. Jornal da Tarde,
São Paulo, 2000.
FOUCAULT, Michel. 1966. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da
Fonseca, Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
PÓLVORA, Hélio. Andarilho por vocação. A Tarde, Salvador, 9 abr. 2005. A Tarde
Cultural, p.3-4.
RUFFATO, Luiz. O lirismo das histórias comuns. Jornal da Tarde, São Paulo, 8 maio
1999. Caderno de Sábado. Disponível em:
<http://aleilton.blogspot.com/p/bibliografia.html>. Acesso em: 18 out. 2010.
SEIXAS, Cid. Um inventor de vidas e lugares. A Tarde, Salvador, 27 jul. 1998. Disponível
em <http://aleilton.blogspot.com/p/bibliografia.html>. Acesso em: 25 set. 2010.
SILVA, Uiran Gebara da. A escrita autobiográfica na antiguidade: uma tradição incerta.
Disponível em <http://periodicos.uesb.br/index.php.politeia/article/view/269/301>
Acesso em: 16 mar. 2014.
TRINDADE, Lima. A literatura é de grande utilidade pública. Disponível em:
<http://aleilton.blogspot.com/p/bibliografia.html>. Acesso em: 26 nov. 2011.
WAGNER, Henrique. Passagens críticas: simplicidade e lirismo. A Tarde, Salvador, 9 abr.
2005. A Tarde Cultural, p. 4.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 890


Narrativa autobiográfica: espaço acadêmico e as implicações de pertencimento

Aline Santos Santos


UFRB
aline.santos58@yahoo.com.br

A produção desse trabalho baseia-se na trajetória de tutoria e formação que temos realizado no âmbito
do Programa de Educação Tutorial – PET Conexões de Saberes, ‘Projeto UFRB e Recôncavo em Conexão -
BA’. Através dos nossos estudos sobre autobiografia e a constatação da importância de valorização das
histórias de vida como: itinerâncias formativas dos estudantes, o ingresso em uma Universidade Pública
Federal, convivência familiar, os desafios da permanência na universidade e a trajetória acadêmica, me
proporcionarão a escrita do meu texto autobiográfico, tem como titulo: Drummond Despertou Minha
Curiosidade de Aprendiz, publicado no livro: “Currículo, formação e universidade: autobiografias,
permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular” sendo assim, autora e atriz da minha
própria história. A escrita fez emergir uma série de implicações curricular-formativas assim como aos
aspectos relacionados às políticas institucionais da universidade, a saber: às políticas afirmativas, de
acesso, de permanência e de pós-permanência no ensino superior. Os dispositivos metodológicos
foram: a escrita do texto, socialização da narrativa com os colegas do grupo, leitura de livros e artigos
sobre currículo, identidade e documentos relacionados às ações afirmativas da universidade. A
socialização da narrativa autobiográfica com o grupo pet, demostra o quanto nossas histórias de vida
têm valor, a trajetória da vida acadêmica implica também a construção da identidade, a qual estar
sempre em construção diante de nossas experiências de vida. Registar em livro as experiências,
informando as dificuldades enfrentadas no meio acadêmico e no convívio familiar, bem como relatar as
superações de problemas de permanência na universidade, o êxito acadêmico, o qual vai além de
excelente rendimento, são informações que incentivam os estudantes que ingressam na universidade a
permanecerem, pois a minha história pode ser semelhante à dele e isso mostra que ele também pode
estar nesse espaço e se sentir pertencente.
Palavras-chave: Narrativa autobiográfica; Pertencimento; Acesso à universidade

Introdução

Currículo, Identidade, Diversidade, foram os primeiros estudos do Pet- UFRB e


Recôncavo em Conexão e atualmente pesquisas e escritas sobre autobiografias. Os
estudos autobiográficos são narrativas de si o que consequentemente se remete aos
outros, ao passado, presente e perspectivas para o futuro. Souza (2006, p.26) esclarece
que:
essa perspectiva de trabalho, [...] configura-se como investigação porque se
vincula à produção de conhecimentos experienciais dos sujeitos adultos em
formação. Por outro lado, é formação porque parte do princípio de que o
sujeito toma consciência de si e de suas aprendizagens experienciais quando
vive, simultaneamente, os papéis de ator e investigador da sua própria
história.

O objetivo desse trabalho é socializar as nossas experiências formativas no


âmbito do Pet UFRB e Recôncavo em Conexão e propiciar vivências pedagógicas que
valorizem as experiências e saberes dos estudantes e seus protagonismos
socioculturais. A voz e/ou a escrita do narrador são instrumentos através dos quais são
compartilhadas as experiências vivenciadas. Assim, narrar é muito mais do que
informar, é compreender (CAMASMIE, 2007). No processo formativo das escritas dos
textos autobiográficos do grupo, percebemos a importância de narrar a nossa história
de vida e compartilhar inicialmente entre os membros do grupo os marcos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 891


significativos da nossa trajetória da educação básica até ao acesso do ensino superior,
percebemos que narrar as experiências vividas não é um processo terapêutico e sim
uma reflexão da trajetória de vida. Como enfatiza Souza (2007) “A pesquisa com
histórias de vida inscreve-se neste espaço onde o ator parte da experiência de si,
questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens”. Escrever sobre si remete a
curiosidade dos acontecimentos do passado e as reflexões dentre elas o currículo do
curso, como estar organizados os componentes curriculares, o perfil do egresso dos
estudantes de Biologia em Licenciatura, História e Pedagogia. A nossa história narrada
no livro: “CURRÍCULO, FORMAÇÃO E UNIVERSIDADE: Autobiografias, Permanência e
Êxito Acadêmico de Estudantes de Origem Popular”, descreve o perfil dos petianos
ingressos no programa de Educação Tutorial. Ao firma-se ser de “Origem Popular” um
conceito em aberto, muitos se caracterizam por serem oriundos de comunidades
periféricas, classe social baixa, família que sobrevive com salário mínimo, ruas de barro
sem pavimentação e com alto índices de crimes. Mas também as comunidades
pertencentes dos petianos possuem uma associação que em datas comemorativas
como: dia das mães, crianças, pais a comunidade se reuni para comemorar e
reivindicar os seus direitos, no final da tarde os vizinhos comentam entre si o dia
cansativo no trabalho e o menino que não fez a atividade de casa ou que não foi para o
reforço escolar porque se encontra com febre. Um lugar para chamar de seu, onde
compartilhar a comida, as alegrias, as tristezas são acontecimentos diários. Para
Bolívar (2001) “a narrativa é uma estrutura central no modo como os seres humanos
constroem o sentido. O curso da vida e a identidade pessoal são vividos como uma
narração.”

Drummond despertou minha curiosidade de aprendiz

Estudante de origem popular, negra, natural de Valença- BA e quebrou a


barreira da exclusão e ingressou em uma Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
O contato com a literatura partiu de um conto: FLOR, TELEFONE, MOÇA de Carlos
Drumond de Andrade o conto relata a história de uma moça que morava próximo ao
cemitério e que ficava a apreciar os enterros e passear pelo cemitério e um dia em seu
passeio pegou uma flor de uma sepultura depois jogou no chão, ao chegar em casa o
telefone toca e no outro lado da linha uma voz clama: Cadê a flor que você tirou de
minha sepultura? Várias vezes o telefone tocava com a mesma voz e a mesma
indagação e a menina respondeu em uma das ligações: Está aqui comigo, vem buscar...
Minha curiosidade de aprendiz foi despertada e segue de acordo com a música de
Gonzaguinha (1982) O que é O que é?

Eu fico com a pureza das respostas das crianças:


É a vida! É bonita e é bonita!
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
Cantar,
A beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei
Que a vida devia ser bem melhor e será,
Mas isso não impede que eu repita:
É bonita, é bonita e é bonita!

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 892


E a vida? E a vida o que é, diga lá, meu irmão?
Ela é a batida de um coração?
Ela é uma doce ilusão?
Mas e a vida? Ela é maravilha ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é, meu irmão?
Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo,
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo,
Há quem fale que é um divino mistério profundo,
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor.
Você diz que é luta e prazer,
Ele diz que a vida é viver,
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é, e o verbo é sofrer.
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé,
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser,
Sempre desejada por mais que esteja errada,
Ninguém quer a morte, só saúde e sorte,
E a pergunta roda, e a cabeça agita.
Fico com a pureza das respostas das crianças:
É a vida! É bonita e é bonita!
É a vida! É bonita e é bonita!

Apesar de todos os obstáculos enfrentados na minha trajetória acadêmica até a


universidade, viver e não ter a vergonha de ser feliz é um lema a mais de incentivo,
determinação, coragem e força para seguir em frente com sorriso no rosto e
enfrentando os desafios da vida. A partir daí comecei a ler livros sobre diversos temas,
principalmente quando eu passei para a escola de ensino médio, onde tinha uma
biblioteca com grandes clássicos literários como: Machado de Assis, Jorge Amado,
Clarice Lispector, Cecília Meireles, Fernando Sabino e outro que também me chamou
muito atenção com o Título Açúcar Amargo do autor: Luiz Puntel, uma história linda
que retrata de maneira simples e clara o machismo, a humilhação, as injustiças e o
desleixo que são tratados os cortadores de cana no interior de São Paulo. Na reta final
do curso em Biologia Licenciatura, percebo o quanto o meu aprendizado foi rico como
petiana, um olhar para além da sala de aula e dos processos biológicos. Durante a
escrita do meu texto autobiográfico me recordo do meu ensino fundamental anos
inicias, onde todas as segundas – feira ateávamos as bandeiras do Brasil, da Bahia e da
Cidade, cantando os hinos do Brasil e da cidade. A curiosidade partiu da escrita da
estrofe do hino da minha cidade que diz assim: “Valença nunca vencida, Valença terra
de paz, tu és sempre a “decidida” comigo sempre tu estás”, composição da Professora
Macária S. Andrade e descobrir que um dos destaques da cidade de Valença, no
episódio da independência do Brasil, foi quando abrigou a esquadra de Lord Cochrane
que viera combater os Portugueses. Juntamente com Cachoeira e Santo Amaro,
Valença resistiu aos ataques lusitanos ficando conhecida como "A Decidida". Terra de
guerreiros que não foge da luta assim como os seus filhos, fiquei muito orgulhosa da
trajetória de lutas que a minha cidade se fez presente. O tempo da primeira à quarta
série foi muito proveitoso, tanto no âmbito escolar quanto familiar, pois na escola

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 893


aprendi diversas brincadeiras com os colegas e a interagir mais com a turma através de
trabalhos escolares. Nessa época, minha avó materna saiu da zona rural e veio morar
na cidade para ter melhor acesso à saúde. Com isso, eu e meu irmão passamos a ficar
sob os cuidados dela e da minha tia mais nova, irmã da minha mãe. Por causa das
viagens dos meus pais, passei a dormir na casa da minha avó até os meus treze a
quatorze anos de idade. Aprendi com ela muitas histórias, cantigas de roda, rezas e
brincadeiras. Eu me sentia privilegiada quando conversava com minha avó materna,
ela me contava seus segredos coisas que não falava aos seus filhos, pois muitas vezes
seria para ajuda-los. Uma mulher linda em sua juventude e guerreira até o último dia
de sua vida éramos tão próxima, quando eu marcava uma viajem e ela se encontrava
enferma, passava mau antes da minha viajem, foi assim no São João e em uma viajem
para o Maranhão o Encontro Nacional dos Pets, momento em que veio a falecer.
Lembro-me de Dona Angelina com muito amor e admiração.
Nesse tempo dava aula de catequese e era líder do coral da igreja. Já
adolescente, estudava no Colégio Estadual João Leonardo da Silva e gostava de fazer
trabalhos escolares em equipe. Na escola todo ano tinha gincana e interação com as
demais turmas através de jogos esportivos e ações comunitárias de arrecadação de
alimentos para famílias de baixa renda. Uma infância regada com muito amor, zelo dos
meus pais mor mim e pelo irmão, mais também incentivo para mudar de vida, para
isso os estudos seriam fundamental.
Quando iniciei o ensino médio no Colégio Estadual de Valença (COESVA), fiz
novas amizades, organizava a gincana da minha sala onde eu era líder, participava
sempre do grupo de dança quando tinha encerramento de algum projeto e dançava na
quadrilha junina do colégio. No segundo ano do ensino médio tinha sempre palestras
sobre educação sexual e higiene bucal. A escola tinha também uma área grande com
sala de multimídia para passar filmes, sala de informática e uma biblioteca
maravilhosa. Na época do ensino médio fiz um curso de informática e um de
secretariado.
Ao sair do ensino médio minha mãe sempre falava que eu tinha que fazer uma
faculdade para ter melhores oportunidades de emprego do que ela. Conversei com
alguns colegas para estudarmos nos finais de semana para o ENEM e vestibulares e
também pedi dicas aos conhecidos que tinham conseguido entrar na universidade.
Sempre que eu ficava em casa e nos finais de semana estudava. Foi uma fase difícil
para mim. Tudo o que eu queria eu corria atrás e quando não conseguia, minha mãe
sempre falava que as coisas acontecem no tempo certo e que a paciência é muito
importante para obter o que se deseja.
No final de 2009 fiz o ENEM, o vestibular da UNEB e o da UFBA. Na UNEB
prestei exame para administração e direito, mas não passei. Na UFBA, prestei para
biologia, passei na primeira fase e fiquei feliz, porém na segunda não passei. Então
veio à nota do ENEM. Nesse tempo eu pensei bastante sobre o curso que iria escolher
e o que me influenciou na escolha de Biologia foi o contato direto com a natureza, com
a roça do meu pai e a localização da minha cidade no litoral de Valença, com praias
maravilhosas, como a Praia de Guaibim que faz a alegria de todos os valencianos nos
finais de semana. Por isso fiquei com um pé na Agronomia e outro na Biologia, mas
decidi ser bióloga licenciada. A universidade mais perto da minha cidade era em Cruz
das Almas, coloquei a minha nota e não passei na primeira lista. Na terceira lista eu fui

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 894


aprovada em Licenciatura em Biologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB).
Ao relê a minha história de vida, em cada estrofe penso em escrever um pouco
mais, sempre falta mais informações. De acordo com Cristine (2007),

[...] a narrativa de vida é uma matéria instável, transitória, viva, que se


recompõe sem cessar no presente do momento em que ela se anuncia.
Presa ao presente de sua enunciação e, ao mesmo tempo, meio e fim de
uma interação, a narrativa da vida não é, jamais, 'de uma vez por todas'.

A todo o momento os fatos acontecem e a narrativa da vida não para.

O processo de adaptação, o currículo e a construção de pertencimento à vida


acadêmica

O período do meu primeiro semestre foi bastante complicado, porque era um


momento de muitas coisas novas. De início não conhecia ninguém e sempre que
entrava na sala me dava um frio na barriga, sentia muitas saudades dos meus pais, do
meu irmão e amigos e chorava bastante. Além disso, tinha dificuldade com
Matemática, devido à precariedade da disciplina no ensino médio, e fui reprovada.
Como já disse Gouveia, ainda nos anos de 1960, “qualquer tentativa de democratização
do ensino superior será inócua enquanto persistirem as desigualdades existentes nos
níveis anteriores, primário e secundário” (1968, p. 232).
Não basta somente investir para abertura de novas universidades sem ter um
olhar especial para a educação primária e secundária, pois sem investimento em
infraestrutura e valorização dos professores a educação pública de base continuará
esfacelada. Como relata Oliveira (2000, p. 92),

Em breve, todos terão oito anos de escolarização, mas nem todos terão
acesso aos mesmos níveis de conhecimento. Muitos, nem mesmo a
patamares mínimos. Elimina-se, assim, a exclusão da escola, não a exclusão
do acesso ao conhecimento, criando-se condições historicamente novas
para demandas por qualidade de ensino.

No segundo semestre fui morar em Cruz das Almas, em uma república com
cinco meninas. Morando em Cruz, tive mais contato com meus colegas e fiquei mais
próxima da universidade. Comecei a fazer parte do projeto Utilixo (Uma Experiência
Educacional nas Escolas Públicas Municipais de Cruz das Almas-BA), atuei como
voluntária durante um ano e meio e gostei muito de trabalhar a temática da Educação
Ambiental. Amo o meio ambiente e me sinto parte dele. Sobre as ações ambientais,
Reigota (2009, p.18) salienta que:
Claro que a educação ambiental por se só não resolverá os complexos
problemas ambientais planetários. No entanto, ela pode influir
decisivamente para isso, quando forma cidadãos e cidadãs conscientes dos
seus direitos e deveres. Tendo consciência e conhecimento da problemática
global e atuando na sua comunidade e vice-versa haverá uma mudança na
vida cotidiana que, se não é de resultados imediatos, visíveis, também não
será sem efeitos concretos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 895


Meu grande sonho profissional é atuar na defesa dos mares, rios, fauna, flora e
do ser humano, promovendo a sustentabilidade. Tenho a convicção de que o espaço
escolar é um dos ambientes mais importantes para formar multiplicadores da
conservação e, principalmente, para ensinar o respeito pelo meio ambiente.
Quando estava no terceiro semestre, tentei novamente o auxílio pecuniário da
PROPAAE e não passei na seleção. Então tentei o PET Conexões de Saberes e fui
selecionada. Depois de tantas tentativas, foi um alívio ter conseguido uma bolsa para
ajudar nas minhas despesas com aluguel e alimentação, e também ajudar aos meus
pais em relação aos meus gastos.
Ao ler sobre o programa PET Conexões de Saberes fiquei muito feliz com os
seus objetivos de: Contribuir com a institucionalização do Projeto Pedagógico da
UFRB, com ênfase nas questões curriculares dos cursos e na formação dos estudantes,
em contraste com as políticas e práticas de Permanência/Pós-permanência e
Desenvolvimento Regional; Realização de ações de pesquisa, extensão e formação com
o propósito de conhecer, acompanhar e colaborar com as experiências curriculares
desenvolvidas nos cursos da UFRB, prioritariamente, nos Cursos das Licenciaturas e,
posteriormente, dos Bacharelados Interdisciplinares; Contribuir na execução de
Políticas de Permanência/Pós-permanência Estudantis na UFRB, garantindo a
comunidade acadêmica condições básicas para o desenvolvimento de suas
potencialidades, visando à inserção cidadã, cooperativa, propositiva e solidária nos
âmbitos cultural, político e econômico da sociedade e do Desenvolvimento Regional;
Colaborar na formulação de políticas, programas e ações de permanência/pós-
permanência dos discentes no ensino superior, em especial, os oriundos de
comunidades populares urbanas; Realizar ações para contribuir com a qualidade
educacional na Região, sobretudo, na implantação das Leis 10.639-03 e 11.645-08, que
alteram a LDB 9394/96 e obrigam a inclusão no currículo oficial das escolas de ensino
básico a educação das relações étnico-raciais. São ações que estão ligadas a academia,
mas principalmente a comunidade externa, ao desenvolvimento do recôncavo e a
escola de ensino básico.
Os meus estudos durante esse percurso de adaptação/formação envolveram
questões como: jovens de comunidades populares, diversidade na universidade,
currículo, interdisciplinaridade, educação e negritude, autobiografia, identidade
popular, êxito acadêmico e ações afirmativas. Procuro sempre conectar esses
conhecimentos às minhas atividades acadêmicas do curso e às situações cotidianas.
Penso que esses temas são importantes para minha vida profissional como educadora
e pesquisadora.
As ações afirmativas com a implantação de cotas para afro – brasileiros
indígenas e quilombolas para o ingresso em instituições federais, mudarão o cenário
das grandes universidades, hoje um estudantes de origem popular tem acesso ao
ensino superior através das ações afirmativas e principalmente as ações de
permanência da universidade, o que assegura aos estudantes uma formação
profissional, intelectual e principalmente preparação para vida. As ações afirmativas
representa:
qualquer política que, operando com o critério de discriminação positiva,
vise favorecer grupos socialmente discriminados por motivo de sua raça,
religião, sexo e etnia e que, em decorrência disto, experimentam uma
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 896
situação desfavorável em relação a outros segmentos sociais (AMARO, 2005,
p. 74).

Segundo Pereira et al (2010) “As ações afirmativas ainda possuem o critério da


temporalidade, ou seja, não são ações permanentes ou definitivas, mas com um
determinado prazo de vida”. As ações afirmativas enobrecem os sujeitos que foram
excluídos da sociedade por conta do racismo e hoje tem a possibilidade de acessão
social, sucesso acadêmico, o qual se configura para uns como notas altas,
apresentação de trabalho, participação em projetos de pesquisas, mas para outros o
êxito acadêmico é levar as discussões de sua comunidade para o meio acadêmico e
estar engajado em um movimento social. A UFRB foi implantada no Recôncavo da
Bahia, interior, uma grande conquista para a região, pois a democratização do ensino
superior possibilitou o ingresso de filhos da terra a ter uma ascensão social e condições
melhores de vida, com apenas 7 anos de funcionamento, já transformou a vida e
realizou o sonho de milhares de cidadãos que sempre quiseram cursar o ensino
superior, um universo de saberes infinito e de multiculturas.

Os desafios da vida universitária e o êxito acadêmico

São muitos os desafios quando se está em uma universidade, tais como morar
com pessoas desconhecidas, com diversidade de costumes e saberes que é necessário
respeitar para que o outro te respeite. Uma das dificuldades vividas por mim e por
muitos universitário é a moradia, porque os aluguéis aumentam sempre e sempre
estamos à procura do que é acessível ao nosso bolso. Atualmente estou morando em
uma república com pessoas maravilhosas com as que compartilho aprendizado,
amizade, gargalhadas, amores, festas e até resenhas e das que lembrarei toda a minha
vida. Aprender a compartilhar objetos e saberes com o outro para mim é saber viver a
vida.
Ingressar em uma universidade federal é uma grande alegria e orgulho para a
família em vê o seu filho, irmão, sobrinho em um espaço que antes era totalmente
elitizado e hoje as oportunidades são para todos. O processo de estranhamento em
um novo espaço é natural e com o tempo o sujeito torna-se pertencente a ele. O
processo de adaptação de acordo com Coulon (2008) perpassa os períodos de
estranhamento, aprendizagem e afiliação: Afiliação, o estudante passa a incorporar
nova rotina, novas práticas, regras e métodos de funcionamentos correntes na
universidade; Aprendizagem consiste em uma etapa lenta de adaptação progressiva,
onde se é superada a inquietação, abrindo espaço para a acomodação;
Estranhamento, Inadequação ao ambiente universitário, onde se estranham as
linguagens, as estruturas, as regras, os diferentes e novos saberes acadêmicos.
Temos que buscar aquilo que nos faz bem e ir atrás do que almejamos ter. As
coisas não caem do céu em forma de chuva e estamos competindo a todo o momento
de nossa vida por um espaço no mercado de trabalho. Fazer parte do grupo PET e
estar no espaço universitário me fortalece, pois todo o aprendizado vem a contribuir
principalmente para a minha condição de cidadã questionadora que luta pelos seus
direitos.
A experiência de participação no grupo Pet tem me proporcionado
conhecimentos e visões inovadoras sobre a universidade. Não existe ex-petiana(o), a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 897
ligação com o grupo é eterna, pois as lembranças estrão nos e-mails, nos encontros
dos eventos, nas confraternizações e na trajetória da vida, pois onde quer que eu vá,
falarei dessa experiência maravilhosa que me proporcionou conhecer a universidade
em todos os seus espaços. Antes, meu sentimento era de estranhamento dessa
realidade e hoje posso dizer que ele é de pertencimento à universidade.
Agora no final do curso meus colegas me perguntam: Você vai ser professora?
Vai querer ensinar para a educação básica ( ensino fundamental e médio)? Sim! Sou
estudante de um curso de licenciatura, penso em chegar ao ensino superior como
docente, mas para isso é necessário que eu vivencie a educação básica, mesmo porque
para que eu fale dessa educação, tenho estar inserida nela ativamente e promovendo
as mudanças, possibilitar aos meus futuros alunos tenham uma educação de qualidade
sem reproduzir o que geralmente encontramos nos estágios supervisionados:
professores desestimulados, sem perspectivas de crescer em sua profissão, estudantes
desinteressados. Que ofício lindo é exercer a docência com competência, afinco e
amor.
O êxito acadêmico dos estudantes de identidade popular esta diretamente
ligada às políticas de ações afirmativas com apoio ao estudante à permanência
universitária. Participar de projetos, eventos acadêmicos, ter bom rendimento,
superar as perdas em disciplinas por conta da educação de baixa qualidade no ensino
fundamental e médio, escrever e publicar artigos, ser o primeiro da família a ter nível
superior em uma Universidade Federal, ter o espaço universitário como seu, conhecer
os programas de Pós-graduação, conhecer o mercado de trabalho ao irá enfrentar são,
levar discussões de sua comunidade para a universidade e vice-versa são questões que
constitui o êxito acadêmico.

A diversidade é constitutiva da minha identidade

Os marcos significativos da minha trajetória de vida constitui hoje o que eu sou


e a identidade é um processo contínuo. De acordo com Delory (2006):

[...] a identidade é concebida como aquilo que é próprio de um ser, que


forma um consigo próprio no tempo e no espaço, que integrou a diversidade
de seus pertencimentos, resolveu suas disparidades, encontrou o princípio
de sua unificação e perseguiu a realização de seu ser unificado, no curso do
caminho em que ele reconheceu seu traço.

Nas férias eu ajudava os meus pais na feira quando não ia para zona rural, onde
meus tios moram. Quando meus pais viajavam para cidades circunvizinhas eu ia com
eles, ajudava na venda de roupas e, ao mesmo tempo, conhecia a cidade e um pouco
da cultura do local. Geralmente passávamos três a quatro noites em uma determinada
cidade.
Meus pais gostam muito de roça e temos muitos parentes na zona rural.
Quando tinha reza ou bingo nas casas desses parentes ou de alguns amigos, sempre
eram momentos de muito aprendizado. Por exemplo, eu achava muito estranho o jeito
de como era realizado o ritual de oferenda de um santo e eu perguntava o porquê de
rezar para um santo, oferecer caruru, sambar, qual o motivo do caboclo encostar
quando samba. Esse contato com o diferente contribuiu muito para a construção do

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 898


que eu sou hoje. Por ter tido contato com várias religiões, acredito que nenhuma delas
dever ser imposta às crianças; penso que se deve mostrar que existem várias
religiosidades para ela poder conhecer, escolher e frequentar se assim quiser. É muito
difícil ou até mesmo impossível desmitificar as coisas incutidas na cabeça, e se ter a
‘mente aberta’ facilita o debate e a autocrítica, quando a pessoa se depara com as
interpretações científicas evolucionistas sobre a fé.
Apesar das ausências dos meus pais na minha infância e parte da adolescência,
eles sempre tiveram total confiança em mim. Desde pequena eles me contam como foi
à infância e a adolescência deles, sem estudo e só a base do trabalho, mas eu e meu
irmão víamos o quanto eles trabalhavam e trabalham para nos manter, os temos como
pais, amigos e exemplo de vida.
Para Bolívar (2001, p.220), “a narrativa é uma estrutura central no modo como
os seres humanos constroem o sentido. O curso da vida e a identidade pessoal são
vividos como uma narração.”
Eu vejo a necessidade de uma integração dos saberes acadêmicos aos saberes
populares, porque conhecer as duas vertentes proporciona uma visão mais ampla para
resolução de problemas e, até mesmo, para construção de novos problemas. A
universidade produz diversos tipos de conhecimento, mas eu não percebo o seu uso
no Recôncavo em prol do seu povo. Acredito que esteja na hora de mudar, pois ao
pagar impostos que estão sendo destinado em parte à educação, o conhecimento
produzido tem que estar ao alcance de todos para que o progresso humano e material
seja efetivo.
Por estar no Recôncavo da Bahia, onde a maioria da população é de origem
africana, com um histórico da escravidão nas fazendas de cana de açúcar e de café, a
universidade deve sediar eventos com temáticas voltadas à questão da condição do
negro hoje no ensino superior e suas conquistas históricas como, por exemplo, a
ocupação de novos espaços sociais. É interessante oferecer aos discentes, docentes e
funcionários em geral tais eventos, porém acredito que a questão do negro, do índio,
da família do campo e de outros povos marginalizados, tem que ser levada para ser
discutida na sala de aula de todos os cursos. Por isso é relevante que as disciplinas
como Sociologia e Antropologia debatam mais essas questões e que os eventos
ampliem o debate para alcançar a todos os discentes, docentes e funcionários, sem
que isso seja visto como mais um dia sem aula, como pensam alguns. O espaço
universitário é heterogêneo, tudo se configura como múltiplos, discussões, eventos,
projetos, artigos um campo de todos para todos, o que falta para quebrar o tecnicismo
de muitos espaços acadêmicos é um currículo multirreferenciado, onde todos tenham
a garantia de dialogar sem preocupar-se por provas e notas.

Considerações finais

A partir da escrita e compartilhamento das narrativas autobiográficas foi que


percebi o quão importante é esse processo formativo, pois a reflexão e curiosidade
proporcionadas por esse trabalho é instigante e motivador contribuindo para o
aprendizado dos sujeitos. Para manter-se em uma Universidade Federal a união e o
apoio da família é essencial, pois em um universo de estranhamento onde tudo é novo
a sensação de sentir-se sozinho às vezes aflora e lembrar-se da família e dos amigos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 899


fortalece a continuar no universo de conhecimento. De imediato percebi que o meu
curso não me oferecia toda a base do meu processo formativo, e quando ingressei no
Programa de Educação Tutorial- Pet percebi o quanto é importante refletir sobre o
curso o qual estar inserido, as políticas públicas e principalmente o histórico das
universidades brasileira e relatos de estudantes de origem popular em depoimentos o
quanto é difícil permanecer em um universo elitizado. Souza (2004, p.393) relata que
“a narrativa [...] permite ao sujeito compreender, em medidas e formas diferentes, o
processo formativo e os conhecimentos que estão implicados nas suas experiências ao
longo da vida porque o coloca em, transações‟ consigo próprio, com outros humanos e
com o meio natural.” Por tanto, o meio social como a escola, a família e os amigos
estão implicados na narrativa autobiográfica.

De fato, acreditamos que a pesquisa narrativa provoca mudanças na forma


como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros. Tomando-se
distância do momento de sua produção, é possível, ao "ouvir" a si mesmo
ou ao "ler" seu escrito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de
ir teorizando a própria experiência. Este pode ser um processo
emancipatório em que o sujeito aprende a produzir sua própria formação,
determinando a sua trajetória (JOSSO, 2004).

Escrever a própria história de vida remete a si e as experiências com os outros e


a significância de compreensão dos acontecimentos vividos.
Ao vê os resultados das pesquisas do grupo Pet em especial as escritas
autobiográficas gostaria que os meus colegas de curso também tivessem o contato
com os estudos que ultrapassam os muros da universidade proporcionando assim uma
formação além das obrigatoriedades do curso que é a formação para a vida.

Referências
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Paulo, Cortez, n. 81, p. 58-81, 2005.
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COULON, A. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Tradução de
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GOUVEIA, Aparecida J. Democratização do ensino superior. Revista Brasileira de
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 900


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Salvador/Bahia: EDUNEB - EDIPUCRS, 2006.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 901


Professor(a) pesquisador(a) na educação fundamental: os desafios do ensino, formação,
pesquisa e produção acadêmica

Analia Santana
NGEALC/UNEB/SMED
nalsantana33@hotmail.com

Neste artigo, refletimos sobre os desafios e limites que se impõem ao processo formativo de professores/as,
que atuam especificamente nas séries iniciais do Ensino Fundamental, no que tange a tornarem-se
pesquisadores/as ativos/as em educação. Desenvolver-se, emancipar-se, refletir na prática e sobre a prática,
articulando diversas produções ensino, formação, pesquisa e produção acadêmica têm exigido esforços e
investimentos individuais árduos e altíssimos de alguns/mas de nós, que trilhamos essas encruzilhadas.
Observamos que falta vontade política de órgãos públicos municipais, estaduais e federais ou projetos de
instituições acadêmicas, públicas ou privadas, que visem o sucesso na carreira do/da professora/a da educação
fundamental. Discutimos, também, que é essencial a construção da consciência crítica, que se efetiva quando
adentramos no universo da pesquisa e da produção acadêmica. Tem sido conflitante, no entanto, o
distanciamento existente entre a pesquisa acadêmica, a formação do professor pesquisador na educação
fundamental e a reflexão sobre a prática pedagógica. Nesse contexto, argumentamos que tal discussão pode
minimizar os problemas enfrentados por aqueles/as que são motivados/as a investir na sua formação,
acreditando no potencial transformador que a educação propicia na vida dos seres humanos, porque saber é
poder e pode ser efetivado, desde que nós, professores/as pesquisadores/as da educação fundamental I,
sejamos críticos/as, reflexivos/as, com autoestima e tenhamos incentivos de fomento à pesquisa nesta área
dentre outros. Portanto narrando nossas lutas, desafios e conquistas, afirmamos que é possível, com muita
disciplina e estudo, aliar formação, ação pedagógica e pesquisa na carreira do magistério. Mas também, existe
a necessidade de refletir bastante sobre esta problemática.
Palavras-chave: Professores/as pesquisadores/as; Ensino; Formação; Pesquisa.

Iniciando um diálogo

É preciso comprometer a vida com a escrita ou é o inverso?


Comprometer a escrita com a vida?(EVARISTO, 2005).

Encorajados (as) por este questionamento de Conceição Evaristo, nos propomos a


repensar a partir das nossas experiências educacionais e formativas, o caminho percorrido
por quem se define como professor pesquisador atuantes na educação básica. E, enquanto
crianças nesse mundo das abstrações, quão têm sido desafiante e dispendioso articular
pesquisa, formação, ensino e produção acadêmica atuando 40 horas como professores (as)
das séries iniciais do ensino fundamental. Somos forçados (as) a dispensar energias sobre-
humanas no intuito de concatenar todos esses elementos. Levando-se em conta que as
condições de trabalho e as dimensões polissêmicas do campo educacional em que atuamos
e demais fatores têm prejudicado àqueles (as) professores que se dispõem a pensar e
registrar suas escrevivências209.

209
O termo escrevivência é usado/vivido pela Escritora Conceição Evaristo especialmente na literatura escrita
por mulheres negras escritoras e pesquisadoras para expressar uma escrita relacionada com as vivências e
experiências das mulheres negras no Brasil. (EVARISTO, 2005). Ver mais
em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/search/label/apresentacao.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 902
De acordo com Conceição Evaristo (2005), a escrevivência remete a “uma
Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de auto-afirmação de minhas
particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra [...]”. “[...] A nossa
escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2005, s. p.). Desse modo, tentamos
entrelaçar nossa escrita com as experiências que se entrecruzam com diferentes
experiências nem tão prazerosas assim, mas que legitimam a auto e co-formação entre
pares, tão importante para o fortalecimento do processo ensino, aprendizagem, formação e
pesquisa.
As reflexões sobre o processo formativo e prático no magistério nos colocam como
protagonistas das lutas, desafios e conquistas que se reverberam no exercício da práxis
pedagógica. Isso levam-nos a articular estratégias que possibilitam a abertura para o diálogo
com os diversos campos do conhecimento. Mas sabemos dos desafios e limites que se
impõem ao processo formativo de professores (as) que atuam especificamente nas séries
iniciais do Ensino Fundamental, no que tange a tornarem-se pesquisadores (as) ativos (as)
em educação.
Ao colocar-nos como sujeitos reflexivos, especificamente no meu lugar, de mulher
negra oriunda da roça, interagindo numa grande metrópole na área de educação a mais de
20 anos. Inquieta e instigada a problematizar e interrelacionar ensino, pesquisa, formação,
produção acadêmica e ressignificação da identidade, sendo uma professora de 40 horas
numa instituição municipal. E ao mesmo tempo, motivada a interagir e a participar de uma
discussão mais profunda no sentido de teorizar e produzir discussões que enriqueçam a
nossa prática e a dos nossos pares. Na tentativa de não nos deixar sucumbir pela inércia que
ronda nossas vivências e experiências todos os dias, afirmamos a urgência em “instruirmos
políticas educacionais ancoradas na pluralidade étnico-cultural da nação” (LUZ, 2001, p.23).
Para tanto
acredita-se na necessidade de discutir o que significa ser professor pesquisador,
além das razões da produção de conhecimento na formação humana. Em
momentos em que o capitalismo produz crescente degradação da vida humana,
verifica-se uma tendência de desqualificação teórico nas pesquisas na área da
educação, com gravíssimas implicações políticas, éticas, além, das epistemológicas.
(GENGNAGEL PASINATO, 2012, p. 54).

A pedagogia de Paulo Freire tem significativa importância nessa discussão, por trazer
uma reflexão mais ampla, no que tange ao processo de ensino e aprendizagem constante e
inquietante, que nós encontramos na contemporaneidade. Já que ensinar é também
aprender “é inserir na história: não é só estar na sala de aula, mas, num imaginário político
mais amplo” (GADOTE, 1998, p. 30). Percebendo que a escola, como a instituição autorizada
socialmente a construir conhecimento, “não distribui poder, mas constrói saber que é
poder” (IDEM). Isso nos remete à “pedagogia do diálogo, porque como o aluno o professor
é também aprendiz” (GADOTE, 1998, p. 30). Nesse sentido, é necessário apoderar-se do
conhecimento, na perspectiva de usá-lo como “ferramenta para intervir e transformar o
mundo. Mas antes de tudo, transformar a nós mesmos (as), pensando nas verdades
transitórias, nos nãos e as exigências dos sujeitos reflexivos nos obrigam buscar
constantemente a resolução de problemas na educação” (GADOTE, 1998, p. 30-32).
De acordo com as ideias de Freire,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 903


a educação apresentadora de problemas é futuro revolucionário. Portanto é
profética [...] Portanto corresponde à história natural do homem /da mulher.
Portanto, afirma que os homens/as mulheres transcendem-se a si mesmos [...]
Portanto, identifica-se com o movimento que engaja os homens/as mulheres como
seres cientes de suas imperfeições – um movimento histórico que tem seu ponto
de partida, seus sujeitos e seus objetivos (FREIRE, 1981, p.72).

Nesse constante movimento é que a educação problematizadora oportuniza


pensarmos no professor como “prático reflexivo, e percebê-lo como portador de uma
riqueza de experiência que reside na prática dos bons professores. Na perspectiva do que
cada professor significa, e que o processo de compreensão e melhoria do seu ensino, deve
começar pela reflexão sobre sua própria experiência” (ZEICHENER, 1993, P.17).
Contudo, sabemos que nas séries inicias do ensino fundamental, como também nas
outras, grande parte dos educadores deixa-se enveredar pelo pessimismo e desencantos
propiciados pelos diferentes problemas que se apresentam na educação brasileira, não
percebendo o potencial produtivo e reflexivo que sua própria carreira oferece ao campo das
pesquisas. Ainda nesse sentido:

Reflexão também significa o reconhecimento de que o processo de aprender e


ensinar se prolonga durante toda a carreira do professor e de que, independente
do que fazemos nos programas de formação de professores e do modo como o
fazemos, no melhor dos casos só podemos preparar os professores para começar a
ensinar. Com o conceito de ensino reflexivo, os formadores de professores têm a
obrigação de ajudar os futuros professores ou atuais professores210 a
interiorizarem, durante a formação inicial, a disposição e a capacidade de
estudarem a maneira como ensinam e de melhorar com o tempo,
responsabilizando-se pelo seu próprio desenvolvimento profissional (ZEICHENER,
1993, p.17).

Esta assertiva do autor é imprescindível para pensarmos que poucos são os


formadores no Brasil que estimulam, motivam, mostram estratégias possíveis para que
tenhamos milhares de professores (as) pesquisadores (as) na educação fundamental no
Brasil. Todos reconhecem a pertinência da pesquisa na educação básica, desde que
desenvolvidas pelos acadêmicos renomados. Ao adentrarmos nos cursos de especialização,
seja em nível de mestrado ou doutorado, nos deparamos com o foco que separa e elitiza as
categorias de profissionais da educação, colocando-nos na mais baixa escala de
reconhecimento.
Por acreditarmos no potencial transformador que a educação proporciona na vida do
ser humano, desde que diferentes fatores se articulem, buscamos pensar na possibilidade de
discutir a elaboração de um aprender, ensinar e saber comprometido com a transformação e
que leve à nossa descolonização do pensamento. Já que a educação
deve estar em consonância com essa nova visão de mundo, com a sociedade
almejada no futuro, e para tanto, é necessário criar ambientes educacionais que
extrapolem questões pedagógicas, que busquem o entendimento da condição
humana, a preparação do cidadão para uma participação mais responsável na
comunidade local e planetária, tendo como prioridade o cultivo de valores

210
Grifos nossos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 904
humanitários, ecológicos e espirituais. Isso requer novos métodos de ensino, novos
currículos e novas práticas educacionais (MORAES, 2001, p.112).

Para que coloquemos essas habilidades em prática, torna-se necessário aliar reflexão,
ação pedagógica e pesquisa. Porém, constitui-se desafio constante lançar-se nessa tríade, já
que essa categoria de profissionais não recebe nenhum incentivo. Não nos é dado tempo
para pesquisa e produção, apoio ou financiamento para as pesquisas, incentivos para
participação em Congressos e diferentes eventos que discutam sobre a educação e áreas
afins. Tudo isso provocado pelo descaso brasileiro com a educação fundamental e o
distanciamento existente entre escola e a Academia, que não se justifica.
Vale ressaltar que embora uma pequena parcela desses profissionais estejam
inseridos nos grupos de pesquisa por todo o Brasil, são (somos) invisibilizados (as) no
contexto geral das pesquisas e ações positivas no processo do conhecimento e pesquisas do
país. Para Ludke, Cruz e Boing ainda existe uma névoa ou obscuridade quando se trata da
“identidade da pesquisa do professor da educação básica”, eles ainda trazem alguns
questionamentos que nos interessam, a exemplo:

o que conta como pesquisa? O que é levado em consideração por uma pessoa
encarregada de atribuir ou não recurso a uma pesquisa apresentada por um
professor da educação básica, de aprová-lo para apresentação em um encontro
científico ou de aceitá-lo para publicação em um periódico? (1999, p. 456).

Sabemos da complexidade que envolve esses questionamentos, mas eles são


pertinentes na medida em que abre um caminho para pensarmos o lugar dos avaliadores,
dos especialistas, para que tenham um olhar crítico para a realidade de produção em que se
encontra os professores pesquisadores da educação fundamental.
É importante ressaltar que “o professor de sala de aula torna-se um professor-
pesquisador por meio de uma postura investigativa e reflexiva de sua prática e da atividade
docente como um todo” (RAUSCH, 2012, p.706). Não esquecendo que além desse imergir na
própria prática, temos que transitar também pelos temas polêmicos e de diferentes
discussões teóricas e práticas que dão subsídios para pensar a produção acadêmica e de sala
de aula, dialogada com os outros pesquisadores que contribuem para pensar o fazer
pedagógico.
Não podemos esquecer que nas últimas décadas do século XX, com o processo de
redemocratização do País e consequentemente da educação, houve significativas mudanças
no cenário educacional brasileiro no tocante à educação pública fundamental, a saber: a
criação do Ministério da Educação (MEC), Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, construção do
Conselho Nacional de Educação, Os Parâmetros Curriculares Nacionais, Lei 10.639/2003 que
inclui a História e Cultura Afrobrasileira e Africana nos currículos escolares, Lei 11.645/2010
que inclui a Cultura Indígena. Foi também criado o plano de formação continuada de
professores, que de certa forma tem impactado positivamente no processo educacional
brasileiro, mas isso não significa que tenhamos resolvidos os problemas sérios que a
educação brasileira enfrenta desde os primeiros tempos. Ainda sobre estas questões Souza
(2009, p. 197) acrescenta.
A política de autonomia das escolas, implementada por um grande número de
estados e municípios busca a ampliação do espaço decisório da escola e a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 905


participação da comunidade na solução de seus problemas. A autonomia das
escolas geralmente ocorre através de:
a) Eleição do diretor.
b) Criação de órgão colegiado, com funções decisórias e de fiscalização.
c) Repasse de recursos financeiros.
d) Elaboração e execução do projeto pedagógico.

Nos ambientes escolares ainda não se discute com devida importância essa dinâmica
das conquistas citadas acima, continuamos sendo levados pela acomodação e paralisia dos
colonizados que esperam um redentor para nos libertar do julgo do opressor. Esquecendo
que opressores e oprimidos somos todos nós, quando não nos alertamos para nosso
importante papel social de intensa inquietude que busca na ação-reflexão-ação, num
posicionamento radical desenvolver um saber comprometido com a transformação social e
política. Juana Elbein dos Santos211 ressalta que

o estudioso de hoje não pode furtar-se a uma total revisão e recolocação histórica
da herança ideológica e teórica da ciência antropológica. A responsabilidade social
e moral, depois de tantos genocídios, e guerras coloniais e neocoloniais levam-no
ao compromisso de colaborar na desmistificação da ideologia ‘elitista’ e ‘primitiva
que ainda ameaça a antropologia social. (2003, p.34).

Realçamos que estas questões ainda estão engatinhando das escolas públicas,
privadas e universidades, já que nossas ideias expõem o vínculo inegável com a escola
tradicionalista colonizada ocidental ao qual fomos submetidos no processo formativo, mas
também traduzem e evidenciam a descolonização do saber e do recalcamento que nos foi
incutido durante muitos anos (SOUZA, 2006).
Assim, reconhecemos também que ao mesmo tempo procuramos romper com o
círculo vicioso da lamentação e buscamos ecoar uma possível interação entre as diferentes
esferas educacionais, mesmo atuando na educação fundamental. Sair do comodismo e do
complexo de inferioridade é incomodar-se, ir à luta, estudar, pesquisar, formar parcerias de
estudo e de produção científica, quando isso for possível dentro da escola e também fora.
Pois a utopia do odara212 possibilita realçar a positividade da ação educativa e formativa
como algo mais prazeroso nesse sistema perverso ao qual estamos inseridos.
Muitas são as dificuldades enfrentadas por nós professoras e professores da educação
fundamental na tentativa de se formar efetivamente um/uma professor (a) pesquisador (a).
Observa-se um desestímulo por parte dos formadores de professores e também da
Academia que nunca coloca este assunto em pauta nos processos de formação continuada.
O que tem existido é um movimento solitário de alguns (mas) que se lançam nesse processo,
com investimento psicológico, financeiro e de estudo individual, solitário para sair da inércia.
Observamos que falta vontade política de órgãos públicos municipais, estaduais e federais
ou projetos de instituições acadêmicas, públicas ou privadas, que visem o sucesso na
carreira do/da professora (a) da educação fundamental no tocante do sentir-se valorizado

211
Esta autora tem uma vasta produção no campo dos estudos da epistemologia e cosmovisão Yorubá.
212
Palavra de origem Hindu também ressignificada pelo complexo cultural Nagô Yorubá que significa bom,
bonito e belo.Numa visão mais ampla do que a ideia do belo ocidental que se restringe a apenas os elementos
vindos da hegemonia ocidental branca. Odara abarca o sentido de bom, belo e útil (Luz, 2005). Ver: LUZ, Marco
Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Centro Editorial da UFBA, 1995.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 906
efetivamente na carreira do magistério. “Da mesma forma, no Brasil, é preciso incrementar
as pesquisas que articulem as concepções do professor, aos processos de aprendizagem da
docência e a suas práticas de ensino” (ANDRÈ, 2010, p.177).

Percebendo a importância dos (as) professores (as) pesquisadores/as na educação


fundamental

A articulação de saberes partindo da própria prática pedagógica dos educadores dos


primeiros anos da educação fundamental corrobora para efetivar uma mudança de
paradigma, no que tange à produção científica. Apontando caminhos para um repensar de
muitos intelectuais que não constroem um diálogo a cerca de certos segmentos
educacionais quando se trata de produzir conhecimento. Ao reivindicar espaço, exercitamos
nosso poder enquanto agente social e político de transformação não só das nossas vidas,
mas também dos nossos educandos. A reelaboração de ideias para romper com um discurso
e pessimista tem exigido um grande esforço dos pesquisadores comprometidos com uma
transformação social mais ampla.
Quando tratamos da questão dos professores pesquisadores na educação
fundamental estamos atentos ao que nos diz Marli André (2010) de não desvalorizar a
atividade docente em detrimento do prestígio e status que o pesquisador tem socialmente.
Todavia, pensar na possibilidade de articular pesquisa e ensino, valorizando os professores
da educação básica, colocando-os como sujeitos construtores do conhecimento, buscando
com isso, “romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma
alternativa educacional diferente” (MÉSZÁROS, 2008, p.27).
De acordo Marli André, recorrendo às reflexões de Marcelo Garcia sobre a
construção profissional dos professores, eles

nos lembra ainda que nesses processos de desenvolvimento profissional deve-se


dar grande atenção às representações, crenças, preconceitos dos docentes porque
vão afetar sua aprendizagem da docência e possibilitar ou dificultar as mudanças.
Torna-se, pois, necessário, fazer vir à tona essas representações e analisá-las
criticamente, junto com os professores, para poder encontrar formas de
transformá-las na direção desejada (GARCIA, 2009, p. 7 apud ANDRÈ, 2010, p. 175-
176).

Ao reivindicar o lugar que é de direito do (a) professor (a) pesquisador (a) não
estamos querendo apenas o status, mas a efetiva participação nas reflexões, nos debates,
nas produções acadêmicas, nos seminários, congressos, simpósios. Sendo não apenas
espectador, mas também autor, co-autor, produtor de bens culturais que são
imprescindíveis no processo formativo profissional.
Mesmo com todos os problemas citados acima, ser professor pesquisador e atuante
na educação fundamental é interconectar diferentes saberes, das diferentes áreas do
conhecimento que ajudam a ampliar nossa visão de mundo, já que em educação temos
objetos e processos de conhecimentos diversificados e uma vasta produção sem um campo
delimitado de ação e pesquisa. É possível, também, construir uma reflexão teórica buscando
estratégias para problematizar as dificuldades e os desafios apresentados pelo processo de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 907


ensino, produção, pesquisa e reflexão, ir além das dificuldades imediatistas que aparecem
todos os dias nas escolas. Rompendo com os estigmas podemos conquistar outros espaços.
Outro ponto importante a ser mencionado é que

a escola nos seus diferentes graus me pôs em contato com imagens de


inferioridade e exterioridade que eu procurava [procuro 213] contestar por meio das
tentativas de incorporação de um código de valores ocidentais e pelo empenho
para manejar devidamente esse código. Por uns tempos, privilegiei, na minha
formação e estudos, o lado “não afro” da minha identidade; a escola, a
universidade, a profissão eram espaços em que lidava majoritariamente com temas
e questões relativos aos interesses do “mundo branco” (SOUZA, 2006, p.20).

Nesse sentido o (a) professor (a) pesquisador (a) negro (a) ou não, deve apoderar-se
da sua herança africana para desenvolver sua consciência crítica e compreender as
problemáticas em que estamos inseridos. Não basta cobrar formação continuada se não nos
dispomos a estudar, pesquisar e a ler diferentes textos e criticá-los. Sentir-se atuante é sair
do lugar de vítimas e se tornar responsável, ou co-responsável, pelo processo formativo e
educativo, tanto individual quanto coletivo, pensando também nas questões éticas, nas
diversidades, nas questões das identidades étnicas, estereótipos e discriminações.
Os estudos mais recentes dos pós-graduandos revelam uma intenção de dar voz ao
professor e de conhecer melhor o seu fazer docente. Pode-se, no entanto, indagar:
investigar as opiniões, representações, saberes e práticas do professor, para quê?
Para constatar o que eles pensam, dizem, sentem, fazem? Não seria isso muito
pouco? Parece importante ir muito além, procurar entender o contexto de
produção desses depoimentos e práticas. [Ainda nesse sentido] 214, O que podemos
concluir das leituras dos autores mais recentes é que a formação docente tem que
ser pensada como um aprendizado profissional ao longo da vida, o que implica
envolvimento dos professores em processos intencionais e planejados, que
possibilitem mudanças em direção a uma prática efetiva em sala de aula (ANDRÈ,
2010, p. 176).

É essencial a construção da consciência crítica, que se efetiva quando adentramos de


forma efetiva no universo da pesquisa e da produção acadêmica. Tem sido conflitante, no
entanto, o distanciamento existente entre a pesquisa acadêmica, a formação do professor
pesquisador na educação fundamental e a reflexão sobre a prática pedagógica. Aliado a isso,
não se pode esquecer que no exercício do magistério se entrecruzam histórias de vida com
trajetórias ora emancipatória ora de acomodação, porque somos frutos de uma escola e
universidade eurocêntrica, colonialista, elitista e que impunha a ideologia do recalque nos
seus educandos e educadores. Pedro Demo (1997) argumenta que o questionamento
construtivo referenciado pela teoria e pela prática considerando as bases formais a política e
a ética são basilares para o referencial da pesquisa.
De acordo com os estudos de Triviños (1987, p.119), “o pesquisador deve lutar para
vencer dificuldades de diferente natureza”. E as que dizem respeito à sua própria formação
tradicional, na perspectiva positivista e estrutural-funcionalista, não são fáceis de superar,
uma vez que o novo sempre ameaça as estruturas já há muito consolidadas. Romper com

213
Grifo nosso.
214
Grifos nosso.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 908
este estigma é abrir novas possibilidades de ação e reflexão num processo dinâmico de
existência e atuação positiva no campo educacional.
Não obstante, a abertura para o diálogo nos expõe e mostra os vestígios e o vínculo
com a tradição colonizadora ocidental, às quais fomos submetidos (as) durante o processo
formativo inicial e continuado. Mas também apresenta a possibilidade da discussão com
nossos pares e com outros grupos críticos sobre as problemáticas em que estamos inseridos;
de modo a buscar alternativas de ação e enfrentamento de diferentes situações de violência
na escola, dificuldades de aprendizagem, propostas inovadoras de aquisição do
conhecimento, dentre outros. Assim como equacionar as disputas e os lugares de poder em
que o saber é um dos principais agentes de interação.
Para Marli André (1999, p.24) “não basta saber observar: é preciso saber agir... É
preciso ter coragem de correr riscos, dispor-se a experimentar, rever o que foi feito e mudar
o que não deu certo”. Partindo desse princípio, nossas experiências na educação
fundamental devem ser revistas, refletidas, confrontadas e experimentadas. No entanto,
ainda são poucos os educadores que se dispõe a fazer este jogo dinâmico que é o processo
formativo constante, o qual exige disciplina, organização, muitas leituras, confronto de
ideias e muitas das vezes, desestabilidade de conhecimento.
Conforme as pesquisas de Galiazzi (2003, p.6), apoiado nos estudos de Demo (1995)
corrobora com esta discussão
ao ressaltar a importância da leitura, da construção do argumento, do
desenvolvimento da capacidade de argumentação, educar pela pesquisa exige um
discurso competente. Baseia-se em discursos abertos, rigorosos, sempre passíveis
de questionamento. A discutibilidade é o critério principal da cientificidade. A
coerência crítica adotada pelo professor precisa encontrar na autocrítica e na
contra-crítica sua maior autenticidade (DEMO, 1995).

As nossas lutas são muitas e os problemas também, haja vista que existe um
descrédito de um grupo significativo de professores (as) e da sociedade quanto ao sucesso
na carreia quanto a nós, que atuamos no ensino fundamental. Esse pessimismo e a falta de
motivação e auto-estima para com os benefícios do processo formativo têm afastado muitos
educadores dos cursos de formação. Contudo, esses problemas não são motivos para
deixarmos de buscar a conexão entre pesquisa e ensino ou vice-versa.
Concordamos com as proposições de Paulo Freire (1999) quando o mesmo ressalta
que ensino e pesquisa estão imbricados, e que um não existe sem o outro. Desse modo, é
urgente que cada professor/professora assuma sua responsabilidade no processo, mesmo
que exista muita dificuldade, o importante é articular as duas atividades que são inerentes
ao processo formativo educativo. Assim, de acordo com o autor:
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se
encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando,
reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago.
Pesquiso para constatar, contatando intervenho, intervindo educo e me educo.
Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a
novidade (FREIRE, 1999, p. 32).

Nesse contexto, argumentamos que tal discussão pode minimizar os problemas


enfrentados por aqueles (as) que são motivados (as) a investir na sua formação, acreditando
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 909
no potencial transformador que a educação propicia à vida dos seres humanos, porque
saber é poder, e pode ser efetivado desde que nós, professores (as) pesquisadores (as) da
educação fundamental I, sejamos críticos (as), reflexivos (as), com auto-estima e tenhamos
incentivos de fomento à pesquisa nesta área. “Fundamental também tem sido a participação
da comunidade científica em Associações, Grupos de Trabalho e reuniões de órgãos públicos
para discutir questões de interesse do coletivo profissional e defender posições políticas que
favoreçam a área (ANDRÉ, 2010, p.180).
Por outro lado, não podemos esquecer que a falta de motivação da maioria dos
professores para o debate se deve principalmente ao fato de que: “como, porém, aprender
e discutir e a debater numa escola que não nos habitua a discutir, porque impõe? [...]” (
FREIRE, 2002, p. V). Há que se reinventar o processo de formação inicial e também
continuado para minimizar este problema que tem sido crônico na educação brasileira.
A persistência em nos colocarmos como eternos aprendizes se faz necessário. Para
que as políticas de formação tenham eficácia, elas devem considerar os diferentes processos
civilizatórios, não somente o europeu, mas também os indígenas e africanos. Pois assim
os/as educadores (as) podem ter subsídios para compreender e até absorver os valores das
cosmovisões africanas e indígenas, assim como já têm assegurado os valores das culturas
européias. Essas epistemologias são imprescindíveis para uma ética da coexistência, e para
avançar no fortalecimento de valores, princípios e negociações das identidades tão
fragmentadas pelos ideais da colonização, do capitalismo, da globalização e da ideologia
neoliberal.
É importante destacar que

uma ética da coexistência, em nossas reflexões se refere a um conjunto de


princípios, valores, visão de mundo, modos de sociabilidade e linguagens referido a
um determinado continuum civilizatório, que se predispõe na sua plenitude a
estabelecer espaços de diálogos, negociações, diplomacia e intercâmbios que
estruturam uma dinâmica de coexistência com outras vertentes civilizatórias
(SANTOS, 2001, p.37).

Desse modo, a ampliação da visão de mundo proporciona o acesso a uma


diversificada literatura, que por sua vez instrumentaliza para uma maior ação critico-
reflexiva. Admitimos uma grande limitação no âmbito da interdisciplinaridade, porque a
fragmentação dos conhecimentos está presente nos processos formativos estanques.
Observamos que onde não existe a articulação entre os diferentes saberes e uma proposta
de formação continuada que privilegie os diferentes aspectos formativos, “se carentes
somos de informações sociológicas, psicológicas, filosóficas e até literárias? (GATTI, 2008,
p.12). Essas questões são pertinentes e podem ser minimizadas se nos processos de
formação inicial e contínuo dos professores (as) forem acolhidos os conhecimentos, saberes
e princípios das “formas históricas de sociabilidade, alimentando o viver cotidiano,
conservando um sentido profundo de comunalidade, ancestralidade e continuidade
existencial africana e indígena” (LUZ, 2001, p.25).
Tem custado muito ao professor (a) pesquisador (a) realizar o tão sonhado registro
das suas experiências para que o vento não leve (SANTOS, 1999) o que de melhor ele
construiu na carreira e na vida. São noites em claro, madrugadas de escrita, registros nos
ônibus urbanos nos momentos de congestionamentos, aos domingos e feriados, quando é
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 910
possível, pois a família e o lazer também precisam ter espaço na nossa vida. Sem esquecer,
dos custos com os eventos e todos os honorários que custeamos individualmente para que
nossa escrevivência possa de fato ocorrer. Diante disso são poucos os/as professores (as) da
educação fundamental que fazem esse movimento. Continuamos nosso processo de luta
contínua para resistir e lutar por banco de horas, redução de carga horária sem perda de
benefícios, bolsas para custear os seminários internacionais, para assim desenvolvermos
nossas pesquisas, ação pedagógica, escrita acadêmica e participar dos eventos. Um
movimento que tem sido individual, mas que pode ser coletivo desde que haja mobilização.
Mesmo com todos os percalços, temos uma visão positiva desse processo de
resistência pedagógica, onde nossos saberes escolares possam dialogar com os outros
conhecimentos num processo contínuo, que articule diferentes conhecimentos. Acreditamos
também, que ele é indispensável para a transformação do processo formativo e educativo
no Brasil.

Palavras quase conclusivas

Nesse texto buscamos discutir os desafios enfrentados pelos (as) professores (as) da
educação fundamental I, quando os mesmos assumem o lugar de professores (as)
pesquisadores (as) atuando no ensino com uma jornada de 40 horas semanais. Ressaltamos
a importância da formação continuada alicerçada por marcos referenciais diversificados e
por processos civilizatórios amplos para afastar-nos do engessamento, da fragmentação do
conhecimento e do pessimismo. Dialogar com experiências mais amplas aproximando-nos
de diferentes epistemologias e literaturas para uma educação e produção que reflitam os
questionamentos a partir da realidade, numa perspectiva teórica sensível à alteridade do
professor (a) pesquisador (a).
É imprescindível que os professores pesquisadores das séries iniciais ou que “estas
mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o
de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um
dinamismo próprio do sujeito na escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior
do mundo” (EVARISTO, 2005, s.p.). A formação de professores deve encorajar-nos a registrar
nossas lutas, dores e conquistas, realçando a opção de positividade e transformação que a
educação propicia na vida profissional e pessoal.
Insistimos que os vínculos sociais, articulados com as heranças ancestrais africanas e
indígenas, podem ressignificar o processo formativo e identitário do (a) Professor (a) da
educação fundamental. Portanto, narrando nossas lutas, desafios e conquistas, afirmamos
que é possível, com muita disciplina e estudo, aliar formação, ação pedagógica e pesquisa na
carreira do magistério. Mas também, existe a necessidade de refletir bastante sobre esta
problemática.

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Teixeira, Maria João Carvalho e Maria Novoa, Lisboa: Educa, 1993.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 913


O início da carreira no ensino superior: narrativas de professores do curso de pedagogia da
UESPI, campus de Parnaíba – PI

Ana Patrícia Coelho Sousa


Faculdade Maurício de Nassau/ FAP- Campus Parnaíba - PI
anapatricicoelho1@hotmail.com
Renata Cristina da Cunha
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauím
renatasandys@hotmail.com

O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa desenvolvida no curso de Especialização em Docência do


Ensino Superior. A investigação surgiu da seguinte questão norteadora: Como os professores em início de
carreira docente no Ensino Superior no curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Piauí, campus de
Parnaíba adquirem e mobilizam seus saberes docentes? Buscando responder à pergunta, elencamos como
objetivo geral: Investigar, por meio de Narrativas, como os professores em início de carreira docente no Ensino
Superior no Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Piauí, campus de Parnaíba, adquirem e mobilizam
seus saberes docentes. Com isso, constituímos os seguintes objetivos específicos: Conhecer os fatores que
contribuíram para que os professores adentrassem a profissão no Ensino Superior, Identificar as dificuldades
dos professores em início de carreira no Ensino Superior e Analisar a contribuição da formação pedagógica
inicial para a prática docente no Ensino Superior. Devido ao objeto de estudo, optamos pela pesquisa empírica
do tipo narrativa com abordagem qualitativa, e para produção de dados utilizamos a técnica da entrevista
semiestruturada. Os sujeitos da pesquisa foram dois professores no exercício efetivo da docência Superior na
Universidade Estadual do Piauí. O resultado das narrativas, permitiu compreender que para construção dos
saberes na atuação universitária, o profissional deve estar constantemente na busca de novos conhecimentos
científicos e na interação com a comunidade acadêmica, o estudo ainda revelou, a importância dos
conhecimentos pedagógicos da formação inicial e as experiências na atuação do professor.
Palavras-chave: Narrativas; Professores; Inicio de Carreira; Ensino Superior.

Introdução

Uma vez que existe os desafios em estabelecer a teoria e a prática e, que, esses,
muitas das vezes, afligem os iniciantes professores para enfrentar o mercado de trabalho,
estabelecemos a seguinte problemática: Como os professores em início de carreira docente
no Ensino Superior no curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Piauí (doravante
UESPI), campus de Parnaíba adquirem e mobilizam os saberes docentes?
Assim, com a pretensão de realizar um trabalho voltado para busca de resposta para
problemática, propusemos o seguinte objetivo geral: Investigar, por meio de narrativas,
como os professores em início de carreira docente no Ensino Superior no Curso de
Pedagogia da UESPI, campus de Parnaíba, adquirem e mobilizam os saberes docentes.
Visando o alcance do objetivo geral proposto, elencamos os seguintes objetivos específicos:
Conhecer os motivos que contribuíram para que os professores adentrassem a profissão no
Ensino Superior, Identificar as dificuldades dos professores em início de carreira no Ensino
Superior e Analisar a relevância da formação pedagógica inicial para a prática docente no
Ensino Superior.
O contexto institucional de pesquisa foi a Universidade Estadual do Piauí (UESPI)-
Campus Profº Alexandre Alves de Oliveira. A escolha desse universo foi devido de sua
condição ser publico, cujo acesso ocorre por meio de concurso e processo seletivo
anualmente, facilitando a identificação dos sujeitos da nossa investigação.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 914
Os critérios de seleção dos participantes foram os seguintes: ser graduado (a) em
Pedagogia; estar em início de carreira; obrigatoriamente em exercício da docência, com no
máximo três anos de trabalho no Ensino Superior e estar atuando em uma IES de Parnaíba –
Piauí.
Desta forma, os participantes da nossa pesquisa foram dois professores: um do sexo
masculino e outro do sexo feminino, ambos atuantes na docência do Ensino Superior. Vale
ressaltarmos, que apesar dos partícipes não apresentarem problema na divulgação dos
nomes na investigação, preferimos atribuir nomes fictícios: Ametista e Diamante.
Escolhemos estes dois codinomes, devido fazermos uma analogia ao início de carreira
docente às joias preciosas, pois estas para chegarem ao produto final foi necessário passar
inicialmente por uma série de processo, que vão da exploração à lapidação.
As informações identitárias foram as seguintes: A professora Ametista é formada em
Licenciatura Plena em Pedagogia pela Faculdade Castelo Branco no RJ. É Psicopedagia na
APAE de Parnaiba e atuamente está cursando especialização em Libras na FATECI.(2012)
Tem experiencia de 17 anos na educação inclusiva, e na docência no Ensino Superior, apenas
1 ano. O professor Diamante é Pedagogo pela Universidade Federal do Piauí(2009). É
especialista em Educação Artistica pela mesma instituição.
Nesta investigação, devido os objetivos propostos, optamos por utilizar uma
abordagem de pesquisa na qual tivéssemos melhor dimensão das respostas em expressão
comunicáveis, ao invés de dados quantitativos, aderimos pela Abordagem Qualitativa.
Segundo Richardson (2008, p. 90- 91) essa abordagem é uma “[...] tentativa de uma
compreensão detalhada dos significados e características situacionais apresentadas pelos
entrevistados, em um lugar da produção de medidas quantitativas de características ou
comportamentos”. Assim, a pesquisa qualitativa não necessita utilizar medições numéricas,
mas sim, descrever os detalhes transmitidos pela experiência profissional e principalmente
através da relação de interação entre os sujeitos investigados.
A pesquisa proposta foi do tipo Narrativa, em que a principal fonte de coleta de
dados ocorreu por meio de Entrevistas Narrativas de caráter autobiográficos, em que as
colaboradoras narraram acontecimentos ocorridos e vivenciados na iniciação à docência no
Ensino Superior. Na técnica de pesquisa das entrevistas narrativas, foram seguidos os
padrões da Entrevista Semiestruturada. A escolha dessa técnica fundamenta-se devido à
finalidade do trabalho ser voltada para relatos de professores em início de carreira no Ensino
Superior. A análise dos fatos e das ideias dos sujeitos participantes foram através da
linguagem, neste caso, a oral, pois foram gravadas as falas e posteriormente transcritas. E
como instrumento de coleta dos dados, utilizamos a filmadoras de vídeo e roteiros de
entrevista semiestruturas previamente elaborados consoante os objetivos específicos
previamente apresentados.
Nas entrevistas narrativas dos professores, os dados foram transcritos pela
pesquisadora. As informações coletadas não são simplesmente descritas, mas também
interpretadas, considerando-se o contexto, atribuindo sentido e não juízo de valor. Desta
forma, os dados estão organizados em categorias, de acordo com as perguntas direcionadas
na entrevista narrativa e expressas de maneira fiel, ou seja, usando as próprias palavras dos
participantes, e assim podendo perceber com mais clareza as opiniões dos colaboradores.

Início de carreira docente: uma revisão de literatura


Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 915
A figura do professor sempre ocupa um papel central em Educação. Por esse motivo,
a comunidade cientifica estar sempre investigando questões referentes a tudo que envolve:
formação, desenvolvimento e prática do docente. Observamos que nos últimos anos até
mesmo a iniciação profissional do professor tem sido tema de investigação. Mas afinal de
conta, qual o significado atribuído à docência? Professor em inicio de carreira? E o que
remete a docência no Ensino Superior?
Segundo a definição do dicionário Aurélio sobre a docência. È descrito, como: 1.
Qualidade de docente. 2. O exercício do magistério. No sentido etimológico, docência tem
suas raízes no latim - docere - que significa ensinar, instruir, mostrar, indicar, dar a entender
Assim, podemos percerber a docência está relacionada com a prática pedagógica. Para
Veiga (2008, p. 13-14) “a docencia é o trabalho do professor, na realidade, estes
desempenha um conjunto de funções que ultrapa a tarefa de ministrar aula”. Assim, na
atuação docente suas atividades estão relacionados a prática além da prática do ensino, mas
também a pesquisa e extensão.
Por falarmos em atuação docente, entendemos que para tal, existe uma carreira,
onde para construção desta, o profissional passa por um conjunto de vivências e
circunstancias positivas e negativas. Ela consiste, numa trajetória de histórica de indivíduo
através das ocupações, realidades sociais e organizacionais de sua a profissão. Segundo
Tardif e Raymond (2000, p. 224), a carreira “[...] é resultante numa sequência de fases de
integração em de ocupação e de socialização na subcultura que a caracteriza”, ou seja, ao
investigarmos uma carreira docente, possivelmente encontraremos os fatores que
marcaram a formação e sua prática e co mo ocorreu o desenvolvimento.
O professor ao longo de sua carreia docente, passa por um a série de fases.
Inúmeros estudos caractrerizam essas fases, de ciclo de vida profissional. Nesse sentido, um
renomado autor que se dedica ao estudo é Huberman (1995) citado por (ABRAHÃO, 2006, p.
10-13) compreende que existe cinco fases, tomando como referencia os anos de
experiencia do professor e carreira docente, não a idade cronologica. Dentre elas está a
denomina: “[...] Entrada de carreira, consiste entre 1 a 3 anos de docência [...]”. Em relação a
Entrada de carreira, o autor (1995) ainda afirma que existe nessa fase há, o “choque do
real”, mas também complementa que é em meio esse inicio de carreira com fragilidade da
profissão, que o docente consegue estabelecer o equilíbrio para os sentimentos de
insegurança e descoberta e entusiasmos.
Apesar das fases previamente apresentada, constitui-se pela intensidades do
professor, o que diferencia é seu contexto. Assim, considera-se, que o ciclo de vida
profissional é existente em todos os níveis de Educação, inclusive no Ensino Superior. Para
confirmar essa afirmativa, Isaia (2011, p. 428) ao abordar a docencia universitaria em cursos
de bacharelado, considera que nessa entrada de carreira, há como característica marcante a
falta de preparação específica para este nível de ensino. Ressalta que:[...] grande parte das
escolhas é acidental na busca de iniciar uma atividade laboral após a formação exigida para
o ingresso no magistério superior. Desse modo, mesmo sendo responsáveis pela formação
inicial de futuros profissionais, os professores em início da carreira não estão preparados
para atuarem no nível de ensino em que se encontram.
O professor em inicio de carreira passa por um série de dificuldades, a oscilação do
seu fazer e de sua prática. Diante a citação da supracitada autora, notamos existem aqueles
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 916
que adentraram a profissão não tendo nenhum pepararo pedagógico, apenas dos
conhecimentos especifico da área, o que torna a atividade da docência, uma realidade ainda
mais complexa.
Para o exercicio da prática pedagogica docente, é de suma importância o
conhecimento do conjunto de saberes que devem fundamentar uma atuação. Segundo
Tardif (2010, p.16). esses saberes “[..] são plural, formado pelo amálgama, mais ou menos
coerentes, como: de saberes oriundos da formação profissional, de saberes disciplinares e
experienciais.”
Segundo Zabalza (2004) são atribuidas aos professor universitário três funções:
aquela referente ao ensino (docência), a pesquisa e a administrativa na própria instiruição
superior. Acrescenta ainda outras atividades como as relacionados a prática de orientação
de trabalhos academicos. Acrescenta que uma serie tarefas junta a estas, tornando mais
complexo o exercício profissional.
Assim, fica evidenciado para um docente em inicio de carreira no Ensino superior,
uma vez que prontificou-se em exercer seu oficio, de colaborar para a aprendizagem e
desenvolvimento de seus alunos, é necessário ter o compromisso de obter saberes e
executa-los com competência.

Resultados e discussões dos dados da pesquisa

Nesta seção do artigo, contemplamos as falas das narrativas dos professores que
participaram de nosso estudo. Estabelecemos eixos de análise, a partir dos questionamentos
feitos no roteiro para as narrativas, realizadas por meio da entrevista semiestruturada. Desta
forma, apresentamos a seguir as análises dos dados da pesquisa.

Opção pela docência universitária

No decorrer da vida, precisamos fazer uma série de escolhas, inclusive, quando


devemos optar por uma carreira profissional. Os partícipes da nossa pesquisa narraram para
tal questionamento: “Para você, que motivos lhe fizeram optar pela docência universitária?”
a seguinte resposta:
−Acredito na busca de algo diferente na Educação. Sempre busquei levar meu
conhecimento a outras pessoas. Como eu tinha 17 anos de experiência na Educação Infantil,
acreditava que daria para eu passar o conhecimento aos futuros profissionais. A educação é
um desafio. E foi então, acreditando que a educação possa melhorar que adentrei a
docência universitária. ( Professora Ametista)
−Primeiramente foi uma escolha e uma oportunidade que surgiu quase que por o
acaso, saiu um edital para professor provisório da Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
Pensei: irei tentar para ver como ocorre. Passei pelas etapas e por último uma prova didática
sobre um assunto que passei a noite estudando pra apresenta-lo da melhor forma possível e
consegui graças a Deus. Na atuação, era uma realidade totalmente diferente da minha no
ensino fundamental. No inicio encontrei algumas dificuldades, pois é muito diferente você
lidar com alunos adultos, estava acostumado a lecionar para adolescentes e crianças.
(Professor Diamante)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 917


A respeito da opção pela docência universitária, os dois professores tiveram motivos
bem distintos. Baseando-nos na narrativa de Ametista, notamos uma visão otimista, ao
dizer que adentrou a docência universitária, por acreditar na melhoria da Educação. Já na
fala de Diamante, esclarece que foi devido mesmo a uma escolha e oportunidade que surgiu
quase que por acaso, e até mesmo, como curiosidade para saber como ocorria.
De acordo com as falas acima, observamos também, que ambos docentes, mesmo
antes de optarem pela docência universitária, já atuavam em outros níveis de ensino. A
professora Ametista já possuía dezessete anos de experiência na Educação infantil e o
professor Diamante, apesar de não citar a quantidade de anos de experiência, ressaltou está
no Ensino fundamental.
Segundo Pimenta e Anastasiou (2002, p.104) ao descrever sobre os professores no
Ensino Superior, evidenciam que os mesmo “[...] quando chegam à docência na
Universidade, trazem consigo inúmeras e variadas experiências do que é ser professor. Essas
experiências que muitas vezes guiaram sua opção profissional, vão guiar suas escolhas
pedagógicas e até mesmo seu relacionamento com os alunos”.
Tal citação acima vai ao encontro das narrativas dos nossos partícipes. Como os
autores afirmaram, as experiências guiam as escolhas e até mesmo os relacionamentos com
os alunos. De certa forma, notamos a presença desta característica da experiência guiar as
escolhas através do relato do professor Diamante, quando ressalta que foi muito diferente
de lidar com alunos adultos, uma vez que estava acostumado a lecionar para adolescentes e
crianças. Destarte, a opção da docência no Ensino Superior pode estar mesmo atrelada as
experiências anteriores do ser professor.

As influências para adentrar a docência no Ensino Superior

Conforme previamente explícito nos objetivos específicos, pretendíamos através


dessa investigação conhecer os motivos que contribuíram para que os professores
adentrassem a profissão no Ensino Superior. Desta forma, foi perguntado aos professores
entrevistados: “Houve influências acadêmicas ou profissionais que lhe fizeram adentrar a
docência no Ensino Superior? Quais?” Obtivemos os seguintes relatos:
− Não era meu objetivo profissional ser professora no Ensino Superior um dia. [...] No
entanto, por grande incentivo de uma pessoa da família: minha cunhada, que já fazia parte
do quadro universitário, me apoiava e então decidi optar por mais esta experiência.
Também tive apoio de uma amiga professora, que essa a tive como espelho. Sempre
buscava ir além. Para mim, o medo de encarrar o Ensino superior me deixou bastante tempo
afastada. E essa amiga, dizia sempre que eu conseguiria, bastava eu mesma acreditar. [...]
Sempre participei de projetos junto à comunidade sempre no lado humanista de querer
ajudar. E junto a esse processo, vi que a entrada na universidade, mas uma vez estaria
ajudando aos jovens a serem capazes de terem seus próprios sensos crítico. (Professora
Ametista)
−Sempre tive essa meta comigo, de ser professor universitário, não imaginava que
isso aconteceria tão cedo em minha vida. Houve algumas influencias como amigos que já
lecionavam no ensino superior e minha própria esposa que como professora também
sempre apoiou-me [...]. (Professor Diamante)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 918


Podemos perceber na fala da professora Ametista, que antes de adentar a carreira
docente universitária ela não tinha objetivo, ou seja, pretensão de atuação no nível Superior.
Já o professor Diamante, relatou que sempre teve essa meta consigo mesmo. A partir das
narrativas, vimos que apesar das metas distintas na vida de cada um desses pedagogos, mas
houve também uma característica semelhante: ambos sofreram influências externas para
adentrar a carreira docente universitária, receberam apoio de alguém.
Segundo Ametista, a influência partiu de um membro da família: a cunhada, e
também, de uma amiga professora. Ambas davam-lhe apoio, fazendo-a acreditar em si
mesmo. E ainda relatou que essa amiga, ela a tinha como “espelho”, ou seja, talvez mesmo
por admiração como boa profissional. O professor Diamante, também relatou a influencia de
amigos e de sua esposa, que já lecionavam no Ensino Superior.
Ambos os professores da nossa pesquisa, antes de adentrar a carreira universitária
não se sentiam totalmente seguros naquele momento para submeter à docência no Ensino
Superior. No entanto, Essa característica parece comum nessa fase de inicio, algumas vezes
por conta do julgamento da própria formação profissional inicial. Confirmando a hipótese,
Tardif e Raymond (2000, p. 229), afirma que “[...] ao estrearem em sua profissão, muitos
professores se lembram de que estavam mal preparados, principalmente para enfrentar
condições de trabalho difíceis”.
Observamos pelo estudo dos autores e as narrativas acima, que apesar dos
professores as vezes não se julgarem preparados, mas a ousadia e o desejo de exercer a
docência, faz os mesmos esquecer e superar qualquer medo que os cercam.
3.3 As dificuldades em início de carreira no Ensino Superior
As dificuldades fazem parte da realidade na vida dos seres humanos. Muitas vezes,
denominadas com as barreiras para os nossos objetivos. Procuramos saber dos partícipes da
nossa pesquisa: “Quais foram as principais dificuldades, como professor em início de carreira
no Ensino Superior?”
− Recordo-me que no inicio tive medo. Para dar aquela primeira aula, tive que me
preparar uma semana. Fiquei em frente o espelho. Falava comigo mesma, treinando a aula,
principalmente para ver qual seria minha postura em frente os alunos. Foram bem difíceis
minhas primeiras aulas, devido aquele “medo”. Isso, porque sabemos que somos avaliados
desde o momento que entramos em sala de aula. [...] Os alunos muitas vezes tentaram me
avaliar, com questionamentos para saber se realmente eu tinha o conhecimento.
(Professora Ametista)
−No começo foi um choque de realidade, devido a saída da Educação Básica e a
segunda dificuldade, foi à necessidade de correr atrás realmente e fazer o trabalho da
melhor maneira possível. Outro obstáculo foi à resistência de alguns alunos que não me
davam a credibilidade não sei por que, acho pelo fato de ser mais jovem que eles. Senti
muito também com a falta de regra dos alunos que pensam que estão na universidade tem o
direito de fazer o que bem entendem, sem respeitar horários, datas, etc. A parte burocrática
do ensino é bastante diferente da básica como planos, planejamento, diários, avaliações,
dentre outras. ( Professor Diamante)
As respostas se completaram mutuamente, é possível perceber as dificuldades em
início de carreira universitária em diferentes concepções. Na primeira narrativa, temos no
depoimento da docente Ametista, o destaque ao “medo” que ela teve para enfrentar a
turma na sua primeira aula. A outra dificuldade, dessa professora, foi também em relação às
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 919
avaliações por parte dos alunos onde a questionavam com intuito de saber se realmente a
professora tinha o conhecimento.
Notamos que para o professor Diamante, as dificuldades nesse inicio de carreira
foram ainda maiores do que para a professora Ametista. Para ele, as dificuldades foram em
relação à resistência de alguns alunos, baseando-nos nas falas da narrativa o entrevistado,
chegou a dizer que os seus discentes não lhe davam a credibilidade, ou seja, atenção.
Acredita que essa falta de credibilidade foi devido à questão da própria idade cronológica,
onde o professor era mais jovem do que os próprios aprendizes.
No entanto, merece destaque a dificuldade pronunciada do ocorrido logo no inicio de
sua fala, ao referir o “choque de realidade” da saída da educação básica e a necessidade de
correr atrás realmente e fazer o trabalho da melhor maneira possível.
Em função do que foi designado pelos entrevistados, Huberman (1995) cuja linha de
pesquisa é acerca do ciclo de vida dos professores. Descreve algumas dificuldades nessa
fase, como: “[...] a distância entre os ideais e as realidades cotidianas da sala de aula, a
fragmentação do trabalho, a dificuldade em fazer face, simultaneamente, à relação
pedagógica e à transmissão de conhecimentos, a oscilação entre relações demasiado íntimas
e demasiado distantes, dificuldades com alunos que criam problemas etc. (HUBERMAN,
1995, p. 39).
Por meio disso, entendemos que as dificuldades ocorreram e foram mais pertinentes
até o momento que não havia uma parceria entre o professor e o aluno para a efetivação da
aprendizagem. Como também, a fragilidade ao demonstrar os sentimentos de insegurança e
medo para a comunidade universitária.
3.4 A formação pedagógica como suporte para prática de atuação docente no Ensino
Superior
Buscamos também introduzir a questão da formação pedagógica como
embasamento para o professor universitário. Assim, para que fosse possível coletar
informações mais precisas foi indagado o seguinte: “Em que aspectos, considera relevante
sua formação pedagógica inicial como suporte para prática de atuação docente no Ensino
Superior?”.
−Acredito que todos os conhecimentos, mas principalmente relacionados à
afetividade e da visão de compreensão que deve existir entre professor e aluno. [...] A partir,
do momento que há essa troca de respeito, o trabalho se desenvolve de uma forma
transformadora, isso porque eles são capazes de colaborar para melhorar desenvolver dos
conteúdos das disciplinas que estão sendo trabalhadas. ( Professora Ametista)
−Tudo se consolida para um inicio de qualidade. Sem dúvida, minha primeira
graduação em Pedagogia pela UFPI me proporcionou o embasamento necessário para pós
graduação e consequentemente para o mercado de trabalho. Cada aula assistida e
principalmente naquelas para pratica dos estágios. [...] Sou muito grato aos meus eternos
professores que auxiliaram a minha formação e prática docente, consequentemente ao que
sou hoje. (Professor Diamante)
De acordo com as respostas obtidas, pode-se analisar que formação pedagógica teve
sua relevante parcela de contribuição. Para a docente Ametista, considera válido todos os
conhecimentos obtidos, mas principalmente os relacionados à afetividade e da visão de
compreensão que deve existir entre professor e aluno. Salienta que quando há troca
respeito entre professor e aluno, há desenvolvendo dos conteúdos das disciplinas.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 920
Para o professor Diamante, considera que a formação inicial lhe proporcionou todo
embasamento, cada aula assistida e principalmente aquelas de didática e prática de
estágios. Inclusive destacou de forma carinhosa, que o resultado do profissional que é hoje
deve agradecimentos ao auxilio dos professores de sua formação.
Para conceber uma aplicação mais prática sobre o discorrido, Pimenta e Anastasiou,
(2002) revelam que “[...] quase sempre os professores ingressam e atuam nos concursos
aprovados, em que já estão estabelecidas as disciplinas que ministrarão, e já recebem
ementas prontas, planejam individualmente. Não recebem qualquer orientação sobre
processos de planejamento, metodológicos ou avaliativos”. (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002
apud CUNHA 2012, p. 09).
Destarte, compreendemos que os docentes em início de carreira passa por uma série
de dificuldades, e que com a experiência e os conhecimentos adquiridos ao longo de sua
trajetória acadêmica, direciona ao profissional a caminhos o torna cada dia mais apto à sua
prática.

Conclusão

O presente trabalho nos proporcionou a possibilidade investigarmos como os


professores em inicio de carreira docente no Ensino Superior de uma instituição pública da
cidade de Parnaíba-PI, desenvolvem profissionalmente seus saberes e prática de atuação.
Por meio das narrativas dos pedagogos entrevistados, especificamente conhecemos os
motivos que lhes fizeram adentrar a docência universitária. Constatamos que ambos
sofreram influências externas para adentrar a carreira docente universitária, receberam
apoio de alguém, pois apesar do anseio, tinha medo de encarrar a docência no nível
superior.
Em relação às principais dificuldades dos mesmos nesse nível de ensino.
Identificamos que as dificuldades foram pertinentes até o momento que não havia uma
parceria e interação entre o professor e o aluno para a efetivação da aprendizagem, e em
relação às primeiras aulas os sentimentos de insegurança e medo.
Os relatos das narrativas dos professores/colaboradores, ainda foram suficientes
para analisarmos a relevância da formação pedagógica inicial para a prática docente no
Ensino Superior, ambos relataram aspectos interessantes: como os conhecimentos sobre a
afetividade em sala de aula, e os conteúdos ministrados na aula de prática de estágio.
Baseando-nos na literatura de Pimenta e Anastasiou, (2002), fundamentamos a necessidade
da formação pedagógica para atuação no Ensino Superior.
Os resultados, nos levaram a compreensão, que para o professor se desenvolver
profissionalmente, deve estar sempre na busca da construção dos saberes da atuação
universitária, observamos também, em parte o desenvolvimento foram resultantes de
experiências da formação inicial e práticas exercidas anteriores na docência.
Contudo, acreditamos que há muito ainda a ser desvendado sobre o início de carreira
universitário. Destarte, um vasto domínio a ser descortinado e os olhares diversos só podem
enriquecer a compreensão apresentada.

Referências

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 921


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ZABALZA, M. A. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre:
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 922


Memórias da escola: trilhando uma formação docente

Ana Paula Silva da Conceição


UNEB/DEDC I
anappp2010@gmail.com
Renata da Silva Massena
UNEB/DEDC I
renatamassena@hotmail.com

A discussão central desta pesquisa está fundamentada em princípios teóricos-epistemológicos-metodológicos


da abordagem (auto) biográfica pautada na escrita de si como percurso formativo. Temos o propósito de
dialogar, apreender e interpretar as escritas de si como processo de formação com o grupo de professores da
Educação de Jovens e Adultos levando em consideração e abordando seu percurso de vivencia escolar desde a
época que foram alunos. Essa dinâmica visa apresentar a história de vida dos professores atuantes na Educação
de Jovens e Adultos como elementar para a formação e (auto) formação. A proposição da pesquisa busca
empreender o movimento de formação individual e coletiva com vistas à história de vida dos professores que
outrora foram alunos; observando essa trajetória como marco de experiência de sua vida imbricado ao
processo formativo agora como professores. Sendo assim, estabelecendo o exercício de compreensão de como
seus pares são coadjuvantes no processo de formação, (auto) formação mediada pelo processo de aprender
através da experiência. A discussão central aponta para o empoderamento desses professores de se
compreender como escritor da sua própria história onde o eles possam conduzir a sua vida profissional e
pessoal com responsabilização, com conduções que a priori torne o ser professor em algo que seja envolvido
por momentos de experiências que se transforme em aprendizagem, em formação.
Palavras–chave: (Auto) biografia; Educação de Jovens e Adultos; Formação de professores; Escrita de si; Escola.

Considerações iniciais
“Examine-se a si mesmo I Cor. 11:28”.

Ao entrar no universo desta pesquisa nos faz tecer caminhos teóricos-


epistemológicos-qualitativos com base crítico-fenomenológica para compreensão dos
saberes basilares que sustentam a pesquisa em educação rumo à construção de
conhecimento com o outro. Para a fenomenologia, a realidade é o compreendido, o
interpretado e o comunicado (MACEDO, 2006, p.15).
O nosso projeto de pesquisa consiste em nos projetar para um futuro onde haverá
imprevisto, dúvidas, retomadas, dilemas sem perder de vista: apreender o fenômeno
situado nas constantes itinerâncias de interpretação dos textos humanos a nós fornecidos
constantemente nessa trilha de entendimento da memória como subsídio de formação.

Nos passos iniciais desta investigação percebemos que os professores se vêem em


desafios constantes no cotidiano da práxis docente, sendo assim, neste processo de reflexão
buscam soluções, possibilidades e alternativas para construir trilhas de formação conseguem
e com o outro. Logo, surgem dilemas, desvelamentos, angustias pertinentes entre as
situações vividas e o ato de (re) memorar em uma dialética constante do eu consigo mesmo
e com o outro.
Para tanto temos que esclarecer o conceito de formação. Nestes termos,
compreender a formação, tomando nosso específico contexto de intenção e de expectativa,
implica na construção de explicitações e perspectivas propositivas (MACEDO, 2006, p.23). O
processo de formação consiste em uma responsabilidade muito importante, pois além de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 923
eleger um conhecimento dado como formativo temos que saber como de fato essa
intervenção vai ressignificar a prática docente.
É elementar a relação entre o vivido e o que esses professores outrora idealizavam.
No momento de investigação compreendemos, ainda inicialmente, a importância de
investigação sobre nossas próprias ações, nossos modos de ser e agir na vida
profissional/pessoal em um constante processo e tornar-se professor.
Acreditamos na fala do outro, nas narrativas subsidiadas pelo método (auto) biográfico no
ato da escrita de si como uma nova epistemologia de formação 215como condução para
propostas de formação de professores tendo como basilar as suas memórias que é um modo
de guardar neste mundo, como agimos como são os sentidos e significados dados a nossa
existência e seu entrelaçamento de sentidos e significados dados a prática docente.
Este artigo é um recorte sucinto de um percurso de pesquisa de mestrado onde nós
discutimos, convidamos e apresentamos a memória da escola trilhando uma formação
docente onde na escrita de si em uma caminhar para si216 como ato de (re) memorar estes
professores elegem atribuições de sentido a vida dos sujeitos, divulgando e apresentando
uma visão autorizada de si e do outro com perspectivas a formação docente. Sendo assim,
descrever realidades para a formação com o outro e não para o outro é um contínuo
exercício fenomenológico217 na descrição para compreensão.
Na pesquisa de inspiração etnográfica218 buscamos nos modos de ser do outro
conhecer para propor e trabalhar em consonância com os sujeitos que compõem nossa
pesquisa com as suas razões práticas para concordar; discordar; permanecer ou não naquele
caminho de vida e formação profissional.
Cada pessoa coloca um sentido querido a sua existência. Logo, estamos trabalhando
com o outro e não para ele ou vice-versa nesta perspectiva fugimos das elaborações de
manuais descritivos de modos de ser condicionando o outro em prol de formações não
significativas. Toda e qualquer proposta de formação tem que ser elaborada com o grupo
em foco, com aqueles que de fato irão se alimentar e retroalimentar dessa constante
reflexão em torno do processo formativo.
O esforço em realizar esta pesquisa significa compreender o impacto que a escola
traz na vida desses sujeitos na construção e alimentação da sua formação. Isso se configura
como fruto de experiências que quase sempre determinam o nosso modo de ser; que segue
sendo construídas por marcas, traços históricos, singularidades nossas, pedaços do outro em
nós que no momento formativo buscaremos unir/entrelaçar esses “pedaços” em construção
de conhecimento novo com vistas a mudanças na/da prática docente. Objetivamos uma
pesquisa como marca provisória em busca de algo para crer e compartilhar.
Amparadas em Josso (2004) “as histórias de vida colocam em cena peregrinações ao
longo da existência, a fim de se sentir e de se viver ligado a outrem”.219 Pensar sobre o que
fez o que faz e o que se pretende fazer ocorre sempre no momento de (re) memorar e

215
SOUZA, Elizeu Clementino. PASSEGI, Maria da Conceição. O método (auto)biográfico: pesquisa e formação.
216
JOSSO-Marie-Christine. O caminhar para si: uma perspectiva de formação de adultos e de professores.
217
MACEDO, Roberto Sidnei.. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação. Brasília: Líber Livro Editora,
2006.p.15.
218
Composição das interpretações com os atores sociais da pesquisa.
219
JOSSO, Marie-Christine. Experiencia de Vida e Formação. São Paulo:Cortez, 2004.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 924
escrever no presente no aqui e no agora. A investigação em si mesmo torna-se um modo
ontológico de compreensão da nossa existência, peregrinação e permanência.
É um constante desafio presente na escolha pela abordagem (auto) biográfica como
instrumento de investigação, mas também (e, sobretudo) um instrumento de formação.
(FINGER; NÓVOA, 2010) suscitada pelo prisma de um “um caminhar para si” (JOSSO, 1999),
através da meta-reflexão do ato de narra-se, dizer-se de si para si mesmo como uma
evocação dos conhecimentos construídos nas suas experiências formadoras, enquanto
prática de pesquisa, articulando-se aos campos de conhecimento e às ações mediantes as
diferentes buscas empreendidas pelos sujeitos.
Esta heurística aqui apresentada em forma de pesquisa busca o respeito e a
legitimidade do método (auto) biográfico como recurso de investigação e sobre tudo de
validade científica preservando a subjetividade desses sujeitos como elemento de sua
própria história vinculada à historicidade humana. Consiste enfim uma implicação de
apresentar que todas as narrações autobiográficas relatam, segundo um corte horizontal ou
vertical, uma práxis humana. (FERRAROTI, 2010).
Retornando ao dialogo com (JOSSO, 1999) sobre a transformação de si a partir da
narração de histórias de vida, fundamento o conceito de formação experiencial: a
experiência de vida como processo de formação. Nesta tessitura para a compreensão de
como ocorre à formação pautada nas memórias temos as escritas de si que são, muitas
vezes, tão secretas, negadas, censuradas, recebendo uma nova configuração são
direcionadas para uma forma de (re) existir na formação, na vida pessoal e profissional e no
desenvolvimento dos processos de empoderamento dos sujeitos donos da sua história.
Ainda sob a ótica de (JOSSO, 1999) as narrações de memórias centradas na formação
revelam formas e sentidos múltiplos de existencialidade singular, plural, criativa e inventiva
do pensar, do agir e do viver junto “a experiência de vida é o que valida a real formação dos
professores enquanto sujeitos de sua própria história”. Parece-nos como possível de
transformação desse universo da formação so sujeito que outrora fica deslocado em muitos
processos formativos, talvez por, parecer uma formação direcionada e prescritiva.
Para Finger 2010,
O método autobiográfico surge como resultado de considerações epistemológicas
e teóricas e na perspectiva de pôr em prática processos de tomada de consciência,
ou seja, processos que considero formadores para adultos. (FINGER, 2010, p.121).

Um dos aspectos mais importantes nas histórias de vida como recurso de formação
de pesquisa e ensino fomentam indagações sobre as implicações subjetivas dos professores
que imbrica nas suas formações mediadas pelas próprias histórias de vida. Pensando nas
narrativas como esclarece CHIENÉ, 2010 [...] é passando pela narrativa, que a pessoa em
formação pode reapropriar-se da sua experiência de formação.
Outro ponto a ser abordado de acordo com as leituras dos estudos de Josso (2004)
sobre o tema temos:

As pessoas com as quais efetuamos uma reflexão biográfica, baseada em


experiências fundadoras que marcaram seu processo de formação e seu processo
de conhecimento, pertencem à categoria das pessoas adultas que dão crédito à
ideia de desenvolvimento pessoal e, por consequência, a ideia de aprendizagens
transformadoras de sua existência. (JOSSO, 2004, p.19).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 925


Compartilhar uma pesquisa requer uma interação do pesquisados com os sujeitos e
uma coerência entre saber ouvir e interpretar. São razões principais que nos leva a
mergulhar nesse mar de buscas, incertezas, ambivalências, rupturas e nos faz entender o
que (JOSSO, 2004) esclarece [...] o material “narrativas de vidas escritas” permite pôr em
evidência os referenciais, as estratégias e os recursos utilizados na busca de um “saber viver”
sua existencialidade.” Assim os sujeitos incorporam memórias do outro reessignificam os
seus caminhos e criam sua própria história, conhecimento e novas possibilidades de prática
docente.
Dialogando com (NOVOA, 2013) estendo a reflexão para o que diz (SOUZA
2006, p.136) que “a narrativa é tanto um fenômeno quanto uma abordagem de
investigação-formação, porque parte das experiências e dos fenômenos humanos advindos
das mesmas”. Portanto, através disso constituímos um espaço de
compartilhamento.Elaborando uma sedução, uma curiosidade epistemológica para que
professores mergulhem neste universo que transita entre o saber de si e a prática docente
e se constituam produtores de conhecimento. Como aponta Souza (2006),

O entendimento construído sobre a história de vida como um relato oral ou escrito,


recolhido através de entrevista ou de diários pessoais, objetiva compreender uma
vida, ou parte dela, como possível para desvelar e/ou reconstituir processos
históricos e socioculturais vividos pelos sujeitos em diferentes contextos. (SOUZA,
2006 p.137).

É, portanto, o momento onde os professores refletem sobre a sua própria história


dialogando com o outro introspectivo neles mesmo e fora deles em um processo de
aproximação e distanciamento com intenções de considerar as narrativas de formação como
lastro para compreensão da formação como atos de experiências, através, da ação de (re)
memorar. Sendo assim, a experiência torna-se consolidada e validada durante o percurso da
vida em uma trilha de formação docente como bem define Larrosa, (2002):

O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como


uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos.
(LARROSA, 2002)

O ato de (re) memorar como processo formativo que contemple a subjetividade do


sujeito e a intersubjetividade do grupo como produção e transformação da formação. O
sujeito como próprio objeto de reflexão e formação para constante transformação da sua
prática. Aponta o que define Brandão (2008) “a memória é constitutiva do ser humano e
dos grupos e, portanto, é uma das questões fundamentais a respeito da qual devemos
refletir”.
Adotamos assim, o propósito de dialogar, apreender e interpretar as escritas de si
como processo de formação com o grupo de professores da Educação de Jovens e Adultos
levando em consideração e abordando seu percurso de vivência escolar desde a época que
foram alunos. Apresentando as histórias de vida dos professores atuantes na Educação de
Jovens e Adultos como elementar para a formação e (auto) formação.
A narrativa inaugura um sentido a formação de professores e a memória funciona
como o veículo condutor de apresentar as memórias guardadas e as experiências atuais e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 926


presentes na vida desses professores nisso ocorre um entrelaçamento entre o vivido e os
momentos de formação entrecruzando: memórias, narrativas (auto) biográficas, formação,
as experiências que foram fundamentais na vida dessas pessoas criando um ethos de vida;
um caminho significativo.
Nisso estamos compartilhando memórias formativas eu me faço e (re) faço com o
outro impregnado em mim e o outro que colabora com a minha formação em busca de
constituir uma historicidade formadora pautadas em memórias permitindo uma tríade de
formação, experiência e práxis. Partimos daquilo que é muito individual em nós para uma
ótica coletiva de compartilhamento dessas memórias formativas.
A partir disso partimos do pressuposto de nossas necessidades emergenciais no
quesito formação que é tão incipiente, superficiais e direcionadas sem a participação dos
professores com suas vozes, vezes e desejos enviesados em sua existência que necessita de
alinhamento no sentido de linha da vida como condutor de sua própria existência.
Somos guardados em si mesmo de muito conteúdo formativo “transversalizado” pela
historicidade do contexto em que vivemos se neste universo a nossa voz for negada não há
uma formação de fato realizada o que afirma JOSSO, 2004 a formação pela experiência.
Compreendemos por uma experiência de “me contar para o outro”, de dizer de mim.
A importância social das afirmações acima estão em consonância com o que nos
esclarece Macedo (2010),

A formação se realiza na existência de um Ser social que, ao transformar em


experiências significativas os acontecimentos, informações e conhecimentos que o
envolvem e envolvem suas relações, nas suas itinerâncias e errâncias aprendentes,
ao aprender com o outro, suas diferenças e identificações [...] (MACEDO, 2010, p.
50).

A formação como pensamos aqui, como compromisso político e ético em níveis de


existência cidadã em aprendizagens, requer reflexões e explicitação ampliadas e
aprofundadas, escolha, compromisso, co-responsabilidade, que vai além da informação, do
aprender simplesmente, do conhecimento e da ilustração. Acrescentar que para ser
formativa uma aprendizagem terá que vir acompanhada de experiência.
Um eixo formador tem que acima de tudo abarcar as nossas indagações mais
profundas enquanto ser humano dando conta a perguntas que estão impregnadas de
desejos em compreender a real efetividade de uma formação na área de educação. Quais
sentindos e significados estão propondo a nós e aos grupos de atores sociais que se
disponibilizam em ser atuantes no processo formativo de compreender como podemos de
maneira respeitosa e comprometida estar com o outro na construção da formação
utilizando-se das suas memórias como conteúdo que diz de si e do outro.

Trilha metodológica

Esta pesquisa está fundamentada em princípios teóricos-epistemológicos de


abordagem qualitativa de método (auto) biográfico pautada na escrita de si como percurso
formativo com inspiração etnográfica na condução das ações. Tendo as histórias de vida
como artefato de coleta das memórias.
Segundo Ludke e André (2013)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 927
É igualmente importante lembrar que, como atividade humana e social, a pesquisa
traz consigo, inevitavelmente, a carga de valores, preferências interesses e
princípios que orientam o pesquisador. (LUDKE;ANDRE, 2013, p.3).

Nesta perspectiva apontada pelos autores acima citados fizemos uma escolha
metodológica, além de tudo, ética quando optamos por uma abordagem qualitativa que
preserva os interesses dos atores sociais em consonâncias com uma escolha política em
modos de fazer pesquisa com respeito e rigor metodológico.
Ainda em conformidade com LUDKE e ANDRÉ (2013), o universo que envolve um
caminho metodológico de uma pesquisa coaduna com a ideia de pesquisa como
enriquecimento do trabalho do educador com estreita relação a sua vida diária. Logo, esse
processo tem como eixo a pesquisa em vias de formação, a pesquisa como elementar e
elemento das narrativas (auto) biográficas transformando as memórias contadas através das
historias de vida conteúdo formativo com pretensas possibilidades de produção de
conhecimento.
Ainda sobre a trilha metodológica na pesquisa com abordagem qualitativa de acordo
com Macedo (2006) indica uma escolha coerente para subsidiar um percurso de inspiração
etnográfica.

Para o olhar qualitativo, é necessário conviver com o desejo, a curiosidade, e a


criatividade humanas; com as utopias e esperanças; com a desordem e o conflito;
com a precariedade e a pretensão; com as incertezas e o imprevisto. (MACEDO,
2006, p. 38).

Nessa citação (MACEDO, 2006) aponta para um desafio de interpretar e


compreender como é necessária uma postura ética e hermenêutica enquanto pesquisadores
em busca de resposta e novas indagações.
As narrativas fomentadas pelas memórias (re) visitadas indicam uma investigação que não se
encerra em si mesmas, pois na elaboração de tudo isso imbuídos de uma latente
necessidade de (auto) formação o pesquisador propõe caminhos metodológicos para que
seus atores sociais provisórios possam, também, formar e formar-se.
Além dos relatos (auto) biográficos vamos utilizar, lançar mão de entre-vista semi-
estruturada, entrevistas livres para customizar-mos respostas as nossas indagações iniciais;
para dar arranjo ao percurso da vida desses profissionais com vista ao presente para
construção de “um” conhecimento novo de si e do outro com aplicabilidade a sua práxis.
Macedo (2006, p.105) orienta sobre o uso do recurso da entrevista aberta ou semi-
estruturada:
Verificamos que se trata de um encontro, ou de uma série de encontros face a face
entre um pesquisador e atores, visando à compreensão das perspectivas que as
pessoas entrevistadas têm sobre sua vida, suas experiências, sobre as instituições a
que pertencem e sobre suas realizações, expressas em sua linguagem própria.
(MACEDO, 2006, p.105).

Nossa tessitura encontrou amparo e referência sobre a concepção de autobiográfica


em, Josso (2002), Nóvoa (2013), Souza(2006). Nas concepções de formação temos o aparato
de Josso (2004), Larossa (2002), Nóvoa (2013), Tardif(2002), Macedo (2010), Ferrarotti
(2010). Sobre o percurso metodológico temos Ludke e André (2013), e Macedo (2006).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 928
Ao customizar memórias temos possibilidades de entrelaçamento para um modo de
formação que tem como ingredientes a experiência de vida individual e coletiva com
critérios pessoais bem marcados que podem servir como elementos de troca nos espaços de
formação propiciados pelo encontro de pessoas com objetivos comuns: a formação como
pesquisa e resposta a indagações as memórias guardadas nos percurso profissional desses
atores sociais-professores. Nesse trajeto vamos narrando, escrevendo mergulhando em um
armazenamento muito próprio que de forma mágica guarda em nós algo que pode ser
resgatado para, de algum modo, salvar a nós mesmos nessa caminhada de nossa
existencialidade. É uma relação muito presente nessa perspectiva de formação através das
memórias.
Encontramos inicialmente pessoas impregnadas de si no outro ou vice-versa. Contar
de si imbrica falar do outro como coadjuvante de nossa existência. Não há possibilidades de
memórias serem construídas individualmente, nossas memórias mais latentes, as que são
impregnadas de emoção, surgem somente quando temos o outro conosco quando a
memória foi construída em um mundo real sentido e vivido social e historicamente.
Ferrarotti (2010) nos diz que:

O individuo não é um epifenômeno social. Em relação ás estruturas e à história de


uma sociedade, coloca-se como um polo ativo, impõe-se como uma práxis
sintética. Mais do que refletir o social, apropria-se dele, mediatiza-o, filtra-o e volta
a traduzi-lo, projetando numa outra dimensão, que é a dimensão psicológica da sua
subjetividade. (FERRAROTTI, 2010, p.44)

A formulação da nossa pesquisa tem como método de coleta as histórias de vida


direcionadas para as trilhas de formação como um caminho customizado ao modo do sujeito
através das memórias corroborando para novas maneiras de ser, estar, registrar e de
guardar suas histórias de vida; em paralelo com a dos seus pares.
Podemos ir mais longe com Ferrarotti (2010) quando diz

A especificidade do método biográfico implica ultrapassar do quadro lógico-formal


e do modelo mecanicista que caracterizam a epistemologia cientifica dominante
[...] Devemos procurá-los na construção de modelos heurísticos não mecanicistas e
não deterministas; modelos caracterizados por um feedback permanente de todos
os elementos entre eles: modelos “antropomórficos” que só uma razão não
analítica e não formal pode conhecer.(FERRAROTTI, 2010, p.49-50)

Para Macedo (2010) a formação se configura de modo muito responsável. O educador como
condutor da sua prática com responsabilização.

A ideia de formação como o conjunto de condições e mediações para que certas


aprendizagens socialmente legitimadas se realizem, como é comum entre nós,
entretanto, a centralidade do nosso esforço aqui se efetiva, com o objetivo de
compreendê-la como um fenômeno que se configura numa experiência profunda e
ampliada do Ser Humano, que aprende interativamente, de forma significativa,
imerso numa cultura, numa sociedade, através das suas diversas e intencionadas
mediações. (MACEDO, 2010, p. 21).

Esta pesquisa busca, almeja e deseja essa compreensão e aplicação de modos de


formação. Nesta proposta as narrativas (auto) biográficas para formação e a pesquisa,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 929
despontam questionamentos, tais como: Quais buscas formativas os sujeitos fazem a partir
das narrativas de si? Como a abordagem biográfica poderá se tornar um movimento de
investigação-formação, considerando as itinerâncias e aprendizagens dos educadores ao
longo da vida como atos de formação e de pesquisa? Com estas consignas iniciamos o
mergulho teórico-epistemológico tentando forjar um conceito de formação que busque
efetivamente preencher lacunas, pois estamos a todo o momento abrindo lacunas e
forjando novos conhecimentos.
Destacamos as histórias de vida como abordagem de pesquisa qualitativa sustentada
na teorização a partir da prática do que o sujeito viveu. Macedo (2005) referindo-se a
história de vida como recurso de pesquisa, aponta que “ao rememorar a própria vida,
contribuindo pela valorização da linha de vida para a formação de outras gerações.” Assim,
os educadores pensam, buscam, dialogam cada vez mais de forma diferente com
possibilidades de produção de conhecimento e conhecimento de si (re)ssignificando a sua
prática.
Por isso Brandão, (2008) diz que:

Um acontecimento só é mantido na memória, e passível de ser recuperado, se for


modulado pela emoção e, assim, lembramos porque muitos desses fatos são
acompanhados de uma forte carga emocional (...) (BRANDÃO, 2008, p.10).

Assim, a prerrogativa da formação docente é o ato de rememorar os momentos


escolares, pois no espaço escolar é onde vivenciamos e experimentamos/expeienciamos
memórias com forte carga de emoção; seja ela positiva ou negativa o que importa nesse
estudo: é compreender quais memórias eu consolido na minha prática docente. Podemos de
forma subliminar reproduzir a postura de um professor da minha linha de vida e transferir
sem reflexão para a nossa prática ações por ele exercida seja isso positivo ou negativo.
Por isso, é necessário o ato de (re) memorar com consciência para interpretar e
entender sobre nossos atos, nossos modos de ser e compreender qual sentido nós damos a
nossa existência.
Se para Larossa, (2002) “a experiência é aquilo que nos toca” é importante
compreender para não reproduzir atos que não colabore com nossa prática docente.
Izquierdo e Bobbio apud Brandão (2008) afirmam que:

Somos aquilo que lembramos e esquecemos, novas perspectivas abrem-se à nossa


reflexão- a das representações sociais da memória autobiográfica, e sua relevância
como constitutiva das identidades e historicidade dos indivíduos e dos grupos,
especialmente em uma sociedade de tempo acelerado e de grandes mudanças.
(Brandão, 2008, p.12).

É, sobretudo, mágico saber que, somos constituídos de lembranças, que carregamos


história, cultura, vida somos como acervos humanos capazes de colaborar com o outro
através da nossa memória e do ato de (re) memorar, tendo como objeto de veiculação, de
apresentação, de propagação a nossa própria existência. O entrelaçamento das histórias de
vida de professores em um diálogo pessoal e interpessoal como recurso de formação dos
sujeitos é um processo colaborativo e compartilhado para o ensino é, em si um devir
humano em prol da conscientização da sua prática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 930


Os esconderijos de nossa condição humana escondem elementos que corrobora com
a nossa prática profissional e com a nossa forma de ser no mundo observando a importância
da nossa escrita de si que viabiliza uma reflexão da nossa práxis indagando/ compreendendo
a prática pessoal.
Nas entrelinhas das histórias de vida como incursão para sua vivência, os professores
apresentam características muito próprias em relação às outras. De acordo com Souza,
(2006) a escrita da narrativa potencializa no sujeito o contato com sua singularidade e o
mergulho na interioridade do conhecimento de si. O processo de formação através do eixo
história de vida leva o sujeito a compreender que a sua profissão não pode se separar do ser
sujeito parafraseando (Nóvoa, 2013). É neste devir humano de pensar sobre si mesmo de
forma consciente levando em consideração o passado vivido, mas principalmente pensando
no momento presente durante a escrita da sua própria história eles se projetam em busca
de soluções para seus dilemas.
(Re) visitando a si mesmo experimentam mergulhos nas vivências da sua vida
pessoal e profissional pensando sobre sua própria história para constituição de sua formação
enquanto ser.Temos intrínsecos em nossas memórias coisas que podem nos surpreender,
mas elas só podem ser tiradas do baú durante o movimento de (re) memorar e escrever.
Somos, assim, objetos da nossa própria pesquisa e isso é emocionante: é o passado que nos
indaga o presente que cria em uma dialética com o futuro.
Soares (1991) aponta que a (re) construção do meu passado é seletiva faço-a partir
do presente, pois é este que me aponta o que é importante e o que não é. Baseada em
valorização de saberes, valores e conduta no mundo de forma interdependente pensando a
formação de forma ampla, consolidando sentimentos, sua identidade para compreensão de
sua condição humana220, uma conduta profissional/pessoal de virtudes, ética e de escuta de
si e do outro.

Interpretando histórias: um construto coletivo

Como cabe interpretar a história de alguém? O que nos move é a dúvida que se
apresenta como combustível para seguir em busca de possíveis respostas. As interpretações
consistem, também, em recuperar, reorganizar, e ressignificar as trilhas de/para a formação
docente. Impregnadas do desejo de guardar, reorganizar e ressignificar. Consiste em um
processo que não se encerra em dada formação. Nada somos além daquilo que recordamos”
como afirma (Bobbio, 1997).
Assim, estamos perpetuados a responder a uma questão central em nossa existência.
Quem somos? Este questionamento aponta para a importância de (re)memorar a todo
momento da nossa existência. No caso desta pesquisa os escritos de si nas lembranças das
histórias individuais encontramos laços com a história do outro gerando uma trama coletiva
de memórias possiveis de serem compartilhas. Visitando Souza (2006) sabiamente define
que:

As pesquisas na área de educação adotam-se a história de vida, mais


especificamente, o método autobiográfico e as narrativas de formação como um
movimento de investigação-formação, seja na formação inicial ou continuada de

220
ARENT, Hannah. A condição humana. 2010.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 931
professores/professoras ou em pesquisas centradas nas memórias e autobiografias
de professores ( SOUZA, 2006).

No censo comum o ato de relembrar torna-se um momento sem sentido, trivial. Mas,
tecer as memórias e (re) memórias considera que todos os sujeitos carregam em si
experiências únicas significativas e possiveis de serem partilhadas. Mas, para esta pesquisa
(re) memorar com o objetivo da formação de professores se configura como uma construção
pessoa, social, ética, estética e profissional.
O conhecimento não está somente no indivíduo, mas sim nas relações e experiências
em busca de uma verdade que não é absoluta, pois somos seres de subjetividades onde as
sensações, as emoções, as histórias de vida nos faz diferentes em busca de afazeres
coletivos condicionados constantemente pela dúvida que se torna o real combustível da
pesquisa. Nas incursões iniciais da pesquisa percebemos os professores muito resistentes a
pratica de falar de si e de ouvir o outro.
Nossa ideia inicial é de desconstruir a ideia de uma formação diretiva, descritiva,
incipiente, vazia e desprovida da identidade do próprio grupo em exercício da formação.
Confrontando com a ideia de uma novidade construída em permanente dialogo. Nosso
estagio atual se define por encontros de tateamento para novas fases de estrutura da
pesquisa.
Estamos em percurso teórico para fazer dos encontros das oficinas de formação um estagio
de movimento entre as indagações e conforto que certamente surgira nas tessituras de
definições do percurso da pesquisa.
As construções de conhecimento criadas a partir de pesquisas contrapõem a ideia do
sujeito cartesiano priorizando o sujeito da transformação; da reinvenção. Pensando cada vez
mais de forma diferente com possibilidades de produção de conhecimento e conhecimento
de si. Esta interpretação é subsidiada pela análise de conteúdos que é como afirma Macedo
(2006), “Trabalha desvelando sentidos e significados que habitam a teia comunicativa, que
se escondem e se revelam dependentes que são dos valores, das ideologias e dos interesses
do ser social”.
Não há modos de pesquisa sem conceber o social como direcionamento o impacto da
pesquisa tem como objetivo apresentar aos professores como o ato de (re)memorar sua
própria história pode transformar o seu conceito de formação. Oferecemos instrumentos
que possibilita nos encontros surgimento de caminhos “fundantes” para pensar sobre o
sujeito na/da formação refletindo sobre o próprio contexto com perspectivas de
modificação de ser e estar no mundo cada vez mais compreendendo que a sua memória é
constituída de individualidade e coletividade com vista ao compartilhamento formativo para
elucidar circunstâncias nos dilemas muito próprios das trilhas de formação/profissão da sua
linha de vida.
A transformação individual já demanda para nós sujeitos sociais muita dificuldade,
não é um caminho fácil. Porém, com a ideia de valorização da memória como componente
de formação pessoal e do grupo temos um compromisso com a humanidade nos nossos
modos de guardar e compartilhar o que possa ser elemento de reflexão e transformação da
nossa prática docente.

Referências

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 932


ARENDT, Hannah 1906-1975. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.
BOBBIO, Norberto. O tempo da memória- de senectude e outros escritos autobiográficos.
Rio de Janeiro: Campus, 1997.
BRANDÃO, Vera Maria Antonieta Tordino. Labirintos da memória:Quem sou?. São Paulo:
Paulus, 2008.
FERRAROTTI, Franco. Sobre a autonomia do método biográfico. In. Nóvoa Antonio; FINGER,
Mathias. O método (auto) biográfico e a formação.São Pau lo: Paulus, 2013
JOSSO, Marie-Christine. Experiência de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
_________História de vida e projeto: a história de vida como projeto e as “histórias de
vida” a serviço de projetos. Educação e Pesquisa. São Paulo, jul/dez. ano/vol 25, n.2, p.11-
23.
LAROSSA, Jorge Bondia. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista
Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n.19,p.20-28, jan/abr.2002a.
LUDKE, Menga. Pesquisa em educação: Abordagens Qualitativas. Rio de Janeiro: E.P.U.,
2013.
MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação. Brasília: Liber Livro
Editora, 2006.179p.(série pesquisa v.15).
NÓVOA. Antônio. Vida de Professores. Porto: Porto Editora, 2013.
_________O método (auto) biográfico e a formação. São Paulo: Paulus, 2010.
__________Compreender/mediar à formação o fundante da educação. Brasília: Liber Livro
Editora, 2010.
SOUZA. Elizeu Clementino. Pesquisa narrativa e escrita (auto) biográfica: interfaces
metodológicas e formativas. In SOUZA, Elizeu Clementino e ABRAHÃO, Maria Helena Menna
Barreto. Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 933


Atos de currículo e re-existências epistemológicas e formativas: um olhar crítico-
hermenêutico sobre a formação de professores em atuação.

Ana Verena Freitas Paim


UEFS/UFBA
verenaebranca@gmail.com

Este trabalho configura-se em uma partilha sobre os resultados de uma pesquisa de doutorado realizada entre
2009-2013 no Curso de Licenciatura em Física do Programa de Formação para Professores (5ª à 8ª
séries/Ensino Médio) – Modalidade Presencial, desenvolvido na Universidade Estadual de Feira de Santana,
onde investiguei as re-existências como atos de currículo dos professores-estudantes neste contexto. Meu
objetivo consistiu em compreender através das narrativas dos professores-estudantes, como as re-existências
epistemológicas e formativas, enquanto atos de currículo se manifestavam nesse Curso. A pesquisa foi
realizada sob a abordagem qualitativa a partir do viés teórico-metodológico da etnopesquisa crítica e
multirreferencial de inspiração fenomenológica e para tanto, fiz uso de dispositivos como: entre-vista aberta,
grupo focal, questionário com perguntas semi-abertas, cartas formativas, análise documental e narrativas
catárticas, sendo este último criado por mim. O estudo do fenômeno da re-existência como atos de currículo
no âmbito da formação revelou o poder dos sujeitos em seus processos formativos de autorizar-se e
instituírem-se como atores sociopedagógicos, assim como remeteu a um exercício reflexivo sobre os atos de
currículo e suas implicações na formação. As re-existências dos professores-estudantes aos atos de currículo
confirmaram, portanto, a inseparabilidade do Ser e sua existência no processo formativo, bem como a
responsabilidade dos atos de currículo na formação, algo que pouco tem sido pensado quando se discute esse
fenômeno, daí a relevância do estudo e, por conseguinte, desta produção.
Palavras-chave: Atos de currículo; Re-existência; Formação de profesores.

A narrativa como dispositivo de pesquisa e compreensão da formação.

A partir dos anos 80 a narrativa foi se constituído em um importante dispositivo


tanto de formação quanto de pesquisa no contexto europeu e aqui no Brasil, por volta dos
anos 90. Seja usando meios escritos ou orais, a narrativa tem estado presente nos processos
formativos em que a ação, experiência e existência aparecem entretecidas, especificamente,
no campo das investigações sobre formação de professores.

A crescente utilização da pesquisa narrativa em educação busca evidenciar e


aprofundar representações sobre as experiências educativas e educacionais dos
sujeitos, bem como potencializa entender diferentes mecanismos e processos
históricos relativos à educação em diferentes tempos [...] permitem adentrar num
campo subjetivo e concreto, através do texto narrativo, das representações de
professores sobre a identidade profissional, os ciclos de vida e, por fim busca
entender os sujeitos, os sentidos e as situações do contexto escolar. (SOUZA, 2006,
p.136)

O trabalho com as narrativas permite aos sujeitos falarem sobre si, suas experiências
e os sentidos que imprimem aos processos sóciohistórico-existenciais por eles vividos.
Permite também trazer à tona a subjetividade implícita em processos institucionais e suas
práticas curriculares e de formação. No âmbito da pesquisa realizada no contexto da
formação em Física, ao narrar sobre os atos de currículo e seus movimentos de re-existência,
os professores-estudantes revelavam sua condição de atores e autores da formação, seu

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 934


poder de inter-ferir no currículo, por conseguinte, no processo formativo e de construí-lo.
Eles assumiam a posição de sujeitos que compunham os atos de currículo constitutivos da
formação e não objetos do currículo (MACEDO, 2010). Segundo Souza (2006, p.61), o
trabalho com a narrativa de formação exige do pesquisador simultaneamente uma postura
de implicação e distanciamento necessários à superação de limitações impostas pela
linguagem e pelas próprias especificidades da abordagem biográfica.
No contexto da pesquisa com os professores-estudantes de Física este exercício de
implicação e distanciamento foi extremamente necessário porque me sentia não apenas
implicada, mas sensibilizada com os processos vividos por estes sujeitos posto que eu
houvesse partilhado um tempo da formação deles suficiente para criar vínculos
socioafetivos. Ouvir o que eles elegiam como episódios significativos (JOSSO, 2002) da
formação vivida era instigante, mas principalmente provocador de emoções pouco
confortáveis. Compreendo, portanto, o trabalho com narrativas como um processo
intersubjetivo, posto que tanto o sujeito que narra como o ouvinte seja tocado pela
experiência narrada.

As microssituações que são expressas nos textos narrativos são marcadas pelos
acontecimentos vividos pelos sujeitos e, na maioria das vezes, são transformadas
em experiências e carregadas de um forte componente emocional, seja de dor,
tristeza, perda, alegria, medo, desconforto, insegurança, vergonha. (SOUZA, 2006,
p.63)

Através da narrativa dos professores-estudantes foi possível compreender os


sentidos de suas re-existências aos atos de currículo constitutivos da formação, bem como o
caráter formativo ou deformativo de muitos atos de currículo. Além disso, pude realizar um
exercício de análise e reflexão da formação em contextos institucionalizados como a
Universidade e questionar o que nós formadores estamos fazendo de nossos formandos em
seu itinerário de formação, assim como reflexionar sobre o que se denomina formação no
contexto acadêmico.
A narrativa, portanto pode converter-se em um potente dispositivo de formação
tanto para o sujeito que narra como para o pesquisador em seu processo de escuta. Ambos
são afetados por este processo bilateral.

[...] essa prática formativa levou-me a superar enfoques concernentes à implicação


da racionalidade técnica no percurso de formação, no espaço da universidade,
configurando-se como modalidade formativa e autoformativa tanto para mim,
quanto para as alunas no desenvolvimento do curso e do estágio supervisionado
(SOUZA, 2006, p.89).

A narrativa é utilizada nas pesquisas em ciências sociais com um propósito


investigativo, mas também formativo. Como método de investigação a narrativa permite ao
pesquisador adentrar na objetivação dos atos humanos conhecendo seu caráter responsável
e responsivo (Bakhtin) e em sua dimensão subjetiva, tornando, pois, o processo de
investigação mais completo.
Este tipo de abordagem permite ao sujeito que narra um conhecimento de si, e do outro,
ainda que, se considerando as possíveis opacidades e omissões constitutivas do ato de
narrar.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 935
É através da narrativa que temos acesso às “caixas pretas” da existencialidade do ser
e que fazemos ecoar as vozes escondidas nas “cavernas” forjadas pelas práticas de formação
silenciadoras. Como salienta Goodson apud Macedo (2010, p.180-181), ao nos pautarmos
nas possibilidades formativas e de pesquisa que as narrativas biográficas nos oferecem
estamos construindo aberturas para que os silenciamentos históricos, as pasteurizações
culturais, as pedagogias da resposta, sejam desconstruídas, para que a vida em histórias
faça suas construções formativas.

Narrativa e re-existências aos atos de currículo constitutivos da formação.

A narrativa é algo forte, impregnante e que nos toca. Não há como ouvir uma
narrativa sem implicar-se, sem ficar envolvido em um processo de escuta sensível. Quem
narra tem o poder de convencer pela linguagem. Quem narra provoca no ouvinte uma
inquietação e um desejo de saber mais.

A narrativa tem a capacidade de suscitar, nos seus ouvintes, os mais diversos


conteúdos e estados emocionais, uma vez que, diferentemente da informação, ela
nos fornece respostas. Pelo contrário, a experiência vivida e transmitida pelo
narrador nos sensibiliza, alcança-nos nos significados que atribuímos à experiência,
assimilando-a de acordo com a nossa. (DUTRA, 2002, p.374)

Narrar é um meio de catarse, mas também uma forma de re-existência a processos


vividos. É sob a via da re-existência que os professores-estudantes221 do Curso de
Licenciatura em Física do Programa de Formação para Professores (5ª à 8ª séries/Ensino
Médio) – Modalidade Presencial da Universidade Estadual de Feira de Santana narravam
durante as aulas da disciplina Didática e Estágio, suas vivências no contexto da formação em
Física.
Na convivência com os professores-estudantes tive a oportunidade de adentrar no
movimento formativo desses sujeitos e das experiências por eles vivenciadas no universo do
curso em que eles estavam realizando através do estudo e debate de questões relacionadas
ao processo ensino-aprendizagem, às questões pedagógicas (o que ensinar, como ensinar,
por que ensinar, como avaliar), que envolvem o fazer docente provocadas pelo trabalho nas
disciplinas que ministrava. Com isso, fui me apropriando de conteúdos integrantes das
narrativas destes professores-estudantes em torno da formação, dos atos de currículo e de
suas relações com outros sujeitos envolvidos nesse processo que foram instigando-me a
buscar elementos para compreendê-las.
É a partir da escuta destas narrativas que delineei um projeto de pesquisa de
doutorado intitulado Atos de currículo e re-existências epistemológicas e formativas: um
olhar crítico-hermenêutico sobre a formação de professores em atuação em que me propus
a investigar como as re-existências epistemológicas e formativas, enquanto atos de currículo,

221
Corresponde ao coletivo de professores da rede pública de Ensino Fundamental (5ª à 8ª séries) e Ensino
Médio que estão nos cursos de Licenciatura na condição de estudantes. Usarei ao longo do texto a expressão
professores-estudantes por acreditar que eles não eram a-lunos (expressão equivocadamente traduzida como
sem luz/conhecimento) e sim, estudantes (pessoa(s) que estuda(m), que se dedica(m) à obtenção do
conhecimento).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 936
se manifestam no Curso de Licenciatura em Física do Programa de Formação para
Professores (5ª à 8ª séries/Ensino Médio) – Modalidade Presencial, desenvolvido na
Universidade Estadual de Feira de Santana.
A investigação realizada foi de natureza qualitativa tendo como viés teórico-
metodológico a etnopesquisa crítica e multirreferencial de inspiração fenomenológica pelos
princípios em que se sustenta e por melhor corresponder aos propósitos da pesquisa. Dado
a natureza singular do contexto investigado optei por realizar um estudo de caso de caráter
etnográfico em que a centralidade esteve na narratividade dos atores sociopedagógicos. Em
face da dinâmica do próprio processo de investigação que inviabilizou o trabalho de
observação participante, todo o trabalho descritivo-compreensivo foi feito a partir das
narrativas dos sujeitos obtidas através de dispositivos como: questionário com perguntas
semi-abertas, entre-vistas, sessões de grupo focal, cartas formativas escritas pelos próprios
professores-estudantes em que eles narravam suas experiências ao longo da formação em
Física e narrativas catárticas que foi um dispositivo criado por mim em meio a uma situação
de tensão vivida pelos professores-estudantes relacionada aos atos de currículo do curso,
especificamente, os atos de currículo de um de seus professores-formadores, os quais
estavam interferindo sobremaneira no estado emocional dos professores-estudantes, e por
fim, a análise documental realizada a partir de um olhar crítico-hermenêutico sobre a
Proposta Curricular do Curso.
Focalizei, pois, a narratividade dos sujeitos para compreender suas compreensões
acerca do processo formativo por eles vivido e as tessituras engendradas a partir da dialogia
entre professores-estudantes e professores-formadores na instituição das políticas de
sentido em torno da formação e do currículo que a-con-teciam.

Se, precisamos do ponto de vista do ator social, da compreensão de seus


etnométodos, que organiza e define situações, para sabermos da experiência
vivenciada e das realizações instituídas, a narrativa passa a ter um status de
centralidade. (MACEDO, 2012, p. 98)

A narrativa expressa o ser enquanto sujeito, aquele que protagoniza a história, que
assume um posicionamento crítico-propositivo ante o movimento do real. Ela “fala” pelo e
através do autor do discurso sobre suas ações, pensamentos, intervenções, existências.
Através da narrativa o sujeito autoriza-se a falar do instituído e ao mesmo tempo institui seu
modo próprio de compreender o vivido. Ele re-existe! Guimarães Rosa em Grande Sertão
Veredas, por meio do personagem Riobaldo, nos diz que narrar é reexistir. À medida que
você narra sua história, seus pertencimentos, seus modos de compartilhar a vida, seu jeito
singular de ver o mundo, o outro, as coisas, o que passa por entre suas lentes naturais e
como as registra dentro de si, você está vivendo de novo a própria existência, reflexionando
sobre si, sua relação com o outro e com seu entorno.
A narrativa [...] não pretende transmitir o puro “em si” da coisa, como uma
informação ou relatório. Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra
vez dela [...] (WALTER BENJAMIN apud CUPELLI, 2008, p. 68)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 937


No meu trabalho de tese222 que originou este escrito busquei descrever para
compreender as re-existências epistemológicas e formativas aos atos de currículo do Curso
de Licenciatura em Física posto que partisse da premissa que havia uma re-existência dos
professores-estudantes aos atos de currículo do Curso, e de modo bem específico, aos atos
de currículo de muitos professores-formadores da área de Física. Em seus atos de currículo,
os professores-formadores operavam com um conhecimento selecionado por eles como
fundamental à formação dos professores-estudantes e, objetivavam uma determinada
formação para estes sujeitos. Todavia, os professores-estudantes constituíam-se em
existências cidadãs (MACEDO, 2011) que projetavam e sentiam necessidade de dizer o que
desejavam em termos de formação, e por isso, re-existiam à condição muitas vezes imposta
pelos atos de currículo, de expectadores da própria formação.
A re-existência foi a forma encontrada pelos professores-estudantes de afirmar sua
existencialidade e instituírem-se como atores sociais capazes de, não somente inter-ferir no
próprio processo formativo, como também construí-lo. Re-existir implica resistir para se
fazer existir. Um movimento, portanto, afirmativo, propositivo e generativo do sujeito.
Dessa perspectiva é que percebo esses professores-estudantes como curriculantes,
conforme argumenta Macedo (2013).

Na narrativa dos atos de currículo, as re-existências epistemológicas e formativas.

Ao narrar sobre os atos de currículo vividos no âmbito da formação em Física os


professores-estudantes estavam comunicando experiências que os afetavam de alguma
forma durante o processo formativo. O propósito não estava em expressar alguma verdade
em relação ao que pensavam sobre a formação, mas em expressar o que viviam e como
viviam e de alguma forma externar suas compreensões sobre isto. Narrar, portanto,
constituía-se em uma forma de re-existir. E o que esses sujeitos mais enfatizavam em suas
narrativas eram os atos de currículo de seus professores-formadores envolvendo o trato com
o conhecimento no âmbito da formação. Como o conhecimento era apresentado, o modo
como operavam com este e a relação de poder emanada via conhecimento transmitido.
Assim, a re-existência epistemológica foi se constituindo em um vetor de força para
esses professores-estudantes no que diz respeito aos atos de currículo constitutivos da
formação vivida, mais especificamente, os atos de currículo de seus professores-formadores.
A re-existência epistemológica refere-se, pois, muito mais ao tratamento dado pelos
professores-formadores à episteme, à tendência sob a qual o processo de apropriação do
conhecimento teria de ocorrer do que ao conhecimento em si. A re-existência enquanto ato
de currículo é então uma forma de reivindicação por uma abertura a perspectivas menos
fixistas e mais relacionais no processo de construção da relação com o conhecimento a ser
aprendido. A re-existência constitui-se ainda em uma atitude fenomenológica em que não
aderimos a um sistema de verdades já construído e consolidado, mas nos colocamos na
disposição aprendente da ciência do fenômeno vivo e instante (GALEFFI, 2003, p.85).
Sobre esta forma de re-existência, um dos professores-estudantes acentuou que o re-
existir deles era por opção epistemológica, ou seja, eles tinham uma compreensão acerca do

222
PAIM, Ana Verena Freitas. Atos de currículo e re-existências epistemológicas e formativas : um olhar
crítico-hermenêutico sobre a formação de professores em atuação. [Tese de Doutorado]. Faculdade de
Educação. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013. 254 f.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 938
conhecer distinta de alguns de seus professores-formadores do campo da Física, pois eles
queriam através da apropriação do conhecimento vencer o hábito ou a tradição cultural do
ensino magistocêntrico e autoritário.

“Re-existência por opção epistemológica vencendo o hábito ou a tradição cultural


das salas de aula do tempo em que cada um de nós éramos alunos ou fruto de uma
admiração por algum professor tradicional ou ainda por conta do medo da perda
da autoridade do lugar do professor tradicional”. (Questionário/Professor-
estudante)

Assim, um dos sentidos da re-existência epistemológica dos professores-estudantes


residia então, no desejo de conhecer outra forma de relação com o conhecimento que
ultrapassasse o já visto e experienciado em processos de formação anteriores ao que eles
estavam vivendo. Os professores-estudantes desejavam fazer existir aquilo que não existia,
que era vivenciar atos de currículo mais humanizantes, mais próximos de seus saberes e de
seu cotidiano, mais descolados dessa ciência dura que por séculos domina a epistemologia e,
por conseguinte, os processos de formação.

“[...] nos momentos mais críticos a turma ia, melhor, o grupo que conseguindo
formar uma identidade, um inicio de identidade precária, no início foi quando os
embates foram maiores, as resistências foram, foram, vamos dizer assim, com um
gasto de energia muito maior do que hoje, então no início veio o choque da
cultura da sala de aula com a cultura acadêmica com a cultura formal, de como a
universidade ensina, como a universidade forma e como estes professores
formam nas suas salas de aulas os seus estudantes, estes professores que têm um
tipo de formação e muito voltado para prática e etc. Estes professores também
formam uma consciência crítica e criam modelos de como ensinar e como
aprender, ainda que com um suporte teórico insuficiente para debater essas
questões na academia, mas eles trazem um repertório, eles tem uma ecologia
conceitual que pode estar equivocado ou não, mas eles têm um material pra ser
trabalhado e quando eles chegam na universidade, a universidade, a formação
em Física negocia muito pouco estas tendências, negocia ou aproveita muito
pouco a riqueza da discussão que pode nascer a partir destas concepções iniciais
destes professores. Não digo que ignora absolutamente, muito em função
também do currículo ter sido montado com professores de outras áreas que são
trazidos pra dentro da sala de aula do curso, é diferente de outro sistema em
outras universidades, de cursos regulares de vestibulares comuns onde a maioria
dos estudantes estão saindo da adolescência em que você tem aulas em vários
departamentos inclusive fisicamente departamentos distantes. Então, por conta
de tentativa de integração, você volta na verdade a um sistema antigo, chamado
sistema serial onde todos os professores de todos os departamentos davam aula
naquela mesma sala de aula e tinha uma turma, uma série, então isso pode ter
amenizado muitos conflitos é verdade, mas em geral a formação específica da
ciência Física, ela ainda encontra na academia uma ciência que é dada como
pronta, uma ciência que é dada como inquestionável, uma ciência que é dada
como comprovada e justificada. Então, eu acredito que a trajetória na construção
do conhecimento científico na área de Física, ela é uma trajetória de idas e
vindas, ela é uma trajetória de controvérsias, de contradições, de superações,
mas permanece ainda como cultura universitária, uma cultura positivista, de
ciência pronta, de que é assim e não pode ser de outro modo, tem que ser assim,
do ponto de vista metodológico, do ponto de vista da visão determinista, a visão
determinística da ciência que eu falo, do calculo que você encontra um número ou
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 939
você encontra uma faixa, ou você encontra sei lá, um valor e esse valor, quer
dizer, o convívio com esse tipo aí de método e esse convívio com este tipo de
trabalho termina talvez pondo pro cientista ou pra o professor da área da Física
uma... talvez não ponha nem pra ele como pesquisador, mas determina assim
que ele quando ele vai ensinar aquela ciência ele tenha que ensinar uma ciência
que está acabada, uma ciência cujos conflitos foram resolvidos no século XIX. Só
que essa ciência que teve os conflitos resolvidos no século XIX ela se mostrou
limitada e ela já foi superada. Então, esta ciência, esta mesma ciência que tem
uma história de construção pautada no determinismo, esta ciência serve para
alguns fenômenos, para uma parte dos fenômenos da natureza, pra explicar a
vida, ela não explica o que outra, vamos dizer assim, uma nova Física que ainda
hoje não está completa, não está formada, essa nova Física tenta explicar ainda e
a qualquer momento também pode ser superada em vários aspectos. Então, essa
dinâmica da construção do conhecimento científico não é passada para o
professor que vai pra sala de aula, e ele pode voltar pra sala de aula com uma
visão mesmo equivocada da construção do conhecimento científico na área da
Física e nas outras áreas também. Então, eu imagino que o próprio professor que
dá uma aula que é cobrado na sua sala de aula do nível médio e ele é pressionado
pelos Parâmetros Curriculares nacionais, ele é pressionado pela
interdisciplinaridade que ele a todo momento tem que dar respostas que a todo
momento ele é cobrado por uma concepção de avaliação equivocada, que ele tem
que firmar objetivos nas avaliações e ele chega na universidade onde ele vai ser
formado, ele acha, porque ele não é formado porque não ele não tem habilidade,
ele não tem competência para ser professor segundo a legislação e segundo a
própria academia e ele encontra aqui uma cultura passível de críticas, as mesma
críticas as quais ele estava sujeito e ele bem ou mal vem superando a cada
momento a cada ano de profissão. Então, esse choque gerou também, nesse
grupo, em particular, muitos conflitos, muita resistência, com os formadores, com
as coordenações, com a cultura universitária, muito embora, isso se desse de
forma bem diferenciada levando em consideração um amplo espectro de nível de
formação da turma, tanto do ponto de vista de hábitos, tanto do ponto de vista
das relações trabalhistas mesmo nas suas escolas [...]” [grifos nossos]
(Entrevista/Professor-estudante)

Como uma ação socioeducacional que interfere e altera (MACEDO, 2007) os


processos curriculares e formativos, os atos de currículo praticados por formadores também
influenciam no modo como os formandos relacionam-se com os saberes que lidam ao longo
de sua formação. Dependendo como o formador compreende qual deve ser o seu papel face
ao conhecimento e ao educando, o que significa ensinar, como ocorre a aprendizagem, o
que e como se avalia, como se relaciona com os saberes, entre outras ações fundamentais à
formação, assim serão os seus atos de currículo. Ou seja, os atos de currículo traduzem essas
concepções na prática e vão determinando, de um modo ou de outro, como deve ser a
formação.
Enquanto atividades que se organizam e são operacionalizadas via seleção,
organização, formulação, implementação, institucionalização e avaliação de saberes,
atividades, valores, competências mediados pelo processo ensinar/aprender ou sua projeção
(MACEDO, 2007, p.38), os atos de currículo visam sempre uma dada formação. Portanto,
instituem saberes, práticas, atividades que nem sempre são bons ou desejáveis para os
formandos, prevalecendo na maioria das vezes, o primado das escolhas dos formadores em
detrimento das necessidades dos formandos. Em geral, os formadores preocupam-se muito
com a garantia dos conteúdos eleitos como formativos (MACEDO, 2007) e secundarizam o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 940
que os formandos desejam e necessitam aprender, bem como o contexto em que esses
sujeitos vão fazer uso dos saberes adquiridos. Este é um aspecto em função do qual os
sujeitos em formação re-existiam. Eles buscavam a princípio, uma proximidade do saber
científico operado pela universidade, com o saber escolar que não está isento deste caráter
de cientificidade, mas que tem outro modo de ser tratado, uma conexão com os saberes que
já possuíam ainda que muitas vezes considerados como pseudosaberes por alguns
professores-formadores. Re-existiam buscando espaço para dar lugar as suas vozes, seus
desejos, aspirações, saberes, experiências e necessidades. Re-existiam aos atos de currículo
praticados pelos formadores que os colocavam na condição de expectadores do
conhecimento e reprodutores de saberes transmitidos.
Ao dizer sobre uma re-existência epistemológica e formativa dos professores-
estudantes aos atos de currículo o faço pela não aceitação destes ao modo como esses
conhecimentos da Física lhes era transmitido pelos professores-formadores e também
produzidos/praticados na universidade, assim como pela não satisfação com a dinâmica que
era impressa à formação neste contexto. Assim, o caráter formativo da re-existência
enquanto ato de currículo está ligada tanto a uma dinâmica outra de formação, contrária à
vivida, como na própria possibilidade formacional que esse ato suscita.
Portanto, há que se atentar reflexivamente para os atos de currículo e o que eles
estão fazendo com os sujeitos em formação.

A re-existência enquanto atos de currículo potencialmente formativos.

Re-existir é uma atitude inerente ao Ser. É expressão da própria vida. Na dinâmica


constituinte da vida, os homens lutam para instituir sua existencialidade, e com isso, seus
anseios, interesses, objetivos, ideias, e modos de conceber o mundo, a sociedade, os
processos institucionais e, por conseguinte, a formação humana. Para Macedo (2007, p.114)
re-existência constitui-se no ato de resistir enquanto criação incessante de possibilidades que
não conhece tanto, com apenas aquilo que é, mas, sobretudo, existe para fazer ser o que não
é. Pensada nesta perspectiva, a re-existência comporta tanto o sentido de resistência como o
de existência. Há, portanto, um propósito político, mas também ontológico no ato de re-
existir. Ao re-existir o sujeito assume uma determinada posição em face de algo ou uma
situação, mas este posicionar-se não precisa necessariamente configurar-se em uma atitude
opositora. Ele age para afirmar a sua alteridade, para colocar-se enquanto diferença diante
do outro, para afirmar sua existência, o seu ser. No ato de re-existir encontra-se um novo ser
haja vista que ao resistir para se fazer existir o ser produz novas formas de se perceber, de
inter-agir, de se colocar frente ao outro, ao mundo; ele retoma processos, caminhos, refaz
estruturas, renova-se e renova atitudes, cria etnométodos, conhecimentos para tornar
possível o que ele deseja e necessita.
Os professores-estudantes do Curso de Licenciatura em Física ao re-existirem aos
atos de currículo reivindicavam seu status de curriculantes (MACEDO, 2011, p.93) e com isto,
assumiam a posição de protagonistas de uma história de formação escrita também com suas
mãos.
Assim, enquanto um ato de currículo, as re-existências afetaram o fazer curricular
cotidiano dos professores-formadores e da instituição. Aos poucos os professores-

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 941


estudantes foram também instituindo seus atos de currículo e provocando novos modos de
existir, novas compreensões sobre currículo e formação.
No processo de re-existência os professores-estudantes criavam seus próprios
etnométodos223 e com isto tornavam-se também produtores de atos de currículo capazes de
inter-ferir de alguma forma no processos de formação. O que é colocado em pauta,
portanto, nesta perspectiva são as ações dos atores sociais, que em análises de natureza
social não devem ser consideradas como algo de menor importância ou sem valor, mas
imprescindível para se compreender como os atores sociais constroem as situações sociais
em que se encontram envolvidos e negociam as significações que lhes atribuem (COULON,
1995, p.37).
Os professores-estudantes criaram pois, seus próprios etnométodos para re-
existirem aos atos de currículo no contexto do curso de Licenciatura em Física do Programa
de Formação para Professores. O primeiro etnométodo que identifiquei no processo de
pesquisa foi o que os professores-estudantes denominaram de espírito de corpo como
defesa. Este etnométodo consistiu em unir o grupo estreitando as relações entre eles o
máximo possível dentro de um só espírito ou propósito que era evidentemente, a formação.
Qualquer situação que se apresentasse diante deles, ainda que de forma individual, passava
a ser uma problemática do coletivo e esta era pensada, discutida e consensuada; as decisões
eram deliberadas a partir de reuniões entre eles, ainda que isso pudesse custar algum tipo
de penalização, pois as consequências também eram assumidas no âmbito do grupo.

“A marca dessa turma foi assim o espírito de corpo como defesa. Então, por
exemplo, é... eu... pra gente fazer uma ponte com as Ciências Biológicas nessa
linha, quer dizer, pra se defender às vezes de um predador grande, a presa que é
mais fácil, ela se une num espírito de corpo e pode até derrotar ou botar o predador
pra ...afugentar o predador e tal. Eu acho que também teve isso. E aí para tentar
vamos dizer assim, justificar isso que eu estou dizendo eu vou desenterrar do
túmulo aqui Engels. Que Engels diz um negócio interessante assim. Eu não vou
reproduzir igual, claro. Uma reconstrução aqui doida. O resultado do processo
histórico, quer dizer dessa história, por exemplo, que a gente está, o resultado do
processo histórico, ele depende de uma correlação de forças muito complexas.
Entre ... quer dizer, dentro do próprio grupo daqueles que ele chamou de oprimidos
não é e da correlação de forças entre as grandes forças da sociedade, oprimidos e
opressores, que ele retrata de um modo geral, oprimidos e opressores, então,
toda... e inclusive dentro dos opressores existem contradições também. E o que vai
resultar na história é, é vamos dizer assim, é produto de todas essas interações,
mesmo sendo dois grandes blocos, oprimidos e opressores, como eles falam. Então,
no nosso caso é claro que a gente se sente oprimido, né, pela estrutura da
Universidade, por um professor autoritário, por uma estrutura departamental
rígida, né e a gente inclusive, ficou algum tempo, não só alijado pelo preconceito
da Universidade, o preconceito da academia contra nós, mas inclusive do ponto
de vista formal, a gente não existia formalmente pra Universidade. Não podia
nem reivindicar nada, não podia nem falar nada porque o curso não estava
implantado nas instâncias administrativas da Universidade. (O que vem aqui
nesse papelzinho pra desconcertar cada vez que pega um papelzinho desse aqui.
No âmbito do curso vocês professores-cursistas produziram atos de currículo,
sofreram atos de currículo ou fizeram um e outro?) Aí aquela definição de atos de

223
Métodos ou procedimentos que os atores sociais utilizam para levar a termo as diferentes operações que
realizam em sua vida cotidiana. (COULON, 1995)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 942
currículo que a gente, que ela já vem trabalhando. Então, vejam só. Essa rebeldia,
essa coisa de se contrapor, de discordar e de reclamar é uma re-existência contra
atos de currículo. Então, ao mesmo tempo, a gente ficou submisso também.
Então, a gente aceitou, a gente foi passivo, em alguns momentos em atos de
currículo, a gente reagiu em alguns momentos e em outros momentos a gente
desistiu de lutar porque viu, olha, aqui não vai dar mais, então vamos aceitar e
vamos tentar responder então dessa forma aí. Então, na verdade a discussão é a
seguinte: o currículo também depende dessa mesma correlação de forças que eu
falei de antes de Engels, quer dizer, a gente resiste até um limite, a gente tem um
limite de enfrentamento, a gente tem um poder instituído, a gente tem uma
academia, a gente quer defender coisas, mas não é possível aqui. Você pode até
defender na sua escola, você pode aproveitar esse legado, aproveitar os frutos
dessa luta em que aparentemente você foi derrotado aqui, mas você levar essa
luta e...e obter respostas diferentes em outros contextos, por exemplo, em nossas
escolas”. [grifo nosso] (Grupo focal/Professor-estudante)

Assim, os professores-estudantes agiram em várias situações ao longo do processo


formativo. Eles precisavam re-existir. Resistir (e aqui utilizo a expressão no sentido de uma
força que lhe permite suportar outra contrária) para se fazer existir, para permanecer no
processo de formação. Precisavam manter-se firmes contra os atos de currículo do curso,
especificamente, de alguns professores-formadores para que de fato eles pudessem
prosseguir com a formação até o seu ápice que seria a diplomação.
A organização do grupo através desse espírito de corpo como defesa permitiu o
fortalecimento das relações entre eles por meio de propósitos comuns o que imprimiu
unidade ao grupo. Nas suas diferenças ou singularidades eles conseguiram se organizar
formando um todo entrelaçado, uma “liga” poderosa que os revestia de força para re-existir,
para ir instituindo o lugar de ator social, de sujeito de direitos e não apenas de deveres, de
autor de seu processo formativo.
Nessa comunhão de forças, os professores-estudantes conseguiram inter-ferir em
alguns poucos atos de currículo e ir garantindo sua existência no processo de formação,
apesar das barreiras que tinham que transpor a todo tempo.
O segundo etnométodo que identifiquei no contexto da formação vivida pelos professores-
estudantes no curso de Licenciatura em Física do Programa foi a negociação da formação.
Ainda que as possibilidades de negociação fossem poucas, os professores-estudantes
lançaram mão deste etnométodo para pleitear as mudanças que eles aspiravam na
condução do processo formativo pela instituição e nos atos de currículo de alguns
professores-formadores que atuavam no curso.

[...] a postura dos professores-formadores, em geral, era de permitir pouca


margem de negociação. Isso, entretanto, não quer dizer que não tenha havido
momentos de maior permeabilidade para a negociação e acolhimento das
iniciativas dos alunos. (Questionário/Professor-estudante)

Apesar de determinadas aberturas por parte de alguns professores-formadores,


certos atos de currículo permaneciam imutáveis.
Muitos foram os atos de currículo contestados pelos professores-estudantes ao mesmo
tempo em que tentaram negociar com seus formadores solicitando-lhes mudanças e ajustes
desses atos, sem maiores êxitos. O insucesso da negociação em geral, ocorria em virtude de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 943


uma posição sectária de alguns formadores. A sectarização, nos diz Freire (1992, p.59), tem
umamatriz preponderantemente emocional e acrítica. É arrogante, antidialogal e por isso
anticomunicativa.
Analisando os atos de currículo desses formadores, os professores-estudantes
declararam que contestaram a postura de alguns professores-formadores que não sabiam
dialogar e sim impor; este professor-formador, diz um deles, não é educador; é um mero
instrutor, um retransmissor que não se preocupa com a formação, e dá alguns exemplos,
com trechos de falas de determinados professores-formadores da área de Física: “saia da
sala”; “responda, senão te dou falta” e deu; “se vire, o problema é seu”.
Contrários à postura sectária, os professores-estudantes re-existiam e ao mesmo
tempo pleiteavam atos de currículo em que a tolerância estivesse presente. Não uma
tolerância traduzida em atitudes de benevolência, condescendência ou carente de
responsabilidade com a formação. Não era isso. Mas, uma tolerância enquanto capacidade
de convivência com o diferente. Com o diferente e não o inferior reitera Freire (2004, p.24).
Em que se compreenda o sujeito na sua diferença e busque meios de atuar sobre e apesar
desta, ajudando a construir o Ser-Mais (SOUZA, 2004).
Uma das razões em valer-se do etnométodo da negociação pelos professores-
estudantes foi exatamente pela necessidade que eles tinham de serem compreendidos nas
suas diferenças ou heterogeneidades dentro da academia e, principalmente, no espaço da
sala de aula pelos seus formadores. Esta foi a primeira batalha enfrentada por eles,
conforme narrativa de um professor-estudante.

“Inicialmente a negociação sobre ... de tanta heterogeneidade que existia no


curso dos diversos perfis, dos cursistas, dos professores, primeiro pelas diferentes
regiões, como a Bahia é um Estado muito grande as regiões têm culturas diferentes
mesmo então se você pega um professor que trabalha no extremo Sul da Bahia e
um outro que trabalha por exemplo em Juazeiro, as culturas são diferentes, os
hábitos são diferentes, os valores são diferentes, e aipega todo mundo e junta em
uma sala só, isso falando inicialmente..., depois disso os professores que estavam
muitos deles acostumados no caso do curso de Física a ministrar aulas, apenas na
universidade, no curso como eu diria, curso comum... (chamado regular)* o curso
regular, em que o perfil do estudante também é completamente diferente do
perfil do curso de formação de professores, então inicialmente eu acredito que
esta foi a primeira batalha. Quer dizer, a primeira batalha, mas assim duas, dois
momentos distintos, uma negociação entre os cursistas entre os professores-
alunos e uma segunda vertente vamos dizer assim, a negociação do grupo
enquanto grupo por uma feição, uma identidade de ainda que heterogêneo, mas
ele consegue ter uma identidade a partir disso e contemplando mesmo esta
heterogeneidade com negociação desse grupo com os professores-formadores
esse foi assim, vamos dizer uma primeira batalha. A segunda ou enfim, em
seqüência, você tem professores que estão atuando em sala de aula a muito
tempo com formação com vícios cristalizados, com concepções epistemológicas
cristalizadas, com valores regionais e tudo mais e você tem de outro lado uma
cultura universitária, um programa, um currículo, e além do currículo constante
das ementas, do currículo escrito, um currículo que é feito em sala de aula, que é
construído pelo professor formador e que várias vezes esbarrou numa negociação
simbólica com os cursistas, com um currículo que quer queira quer não,
independente da vontade dos cursistas, da coordenação, dos professores,
acabaram um pouco sendo negociado mesmo, pela questão do tempo, da carga
horária, pela questão do formado modular do curso. Agora, fora isso, essa
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 944
questão vamos dizer assim, mais acadêmica mesmo, essa questões de convívio
com o curso, ai vem a questão que eu acho que foi uma marca desde o começo e
perdura até hoje, em alguns momentos ela foi muito crítica, em outros momentos
ela pode ter sido mais amena, mas ela perdura desde o início até o fim, que é o
fato do acúmulo de carga horária concentrado dentro de uma sala de aula, com
profissionais confinados dentro de uma sala de aula e um período longo dentro
da sala de aula onde o professor-estudante ele volta pra suas atividades com um
acúmulo enorme de atividades, de cobranças, etc, etc. Esta tem sido a coisa mais
marcante em termos de negociação de lutas, de desgastes etc. Estes são os
aspectos mais marcantes que a gente pode pontuar em relação as características
destes curso”. [grifos nossos] (Entrevista/Professor-estudante)

Para Martins (2009, p.06) é pela via da re-existência dos sujeitos que a diferença é
capaz de se colocar e se potencializar em ações inventivas. Portanto, o ato de re-existir no
contexto do curso de Licenciatura em Física do Programa de Formação para Professores não
tinha como propósito apenas mudanças nos atos de currículo e, por conseguinte, na
dinâmica do processo formativo, mas também se constituía em uma reivindicação do ser por
uma existência reconhecida.
O terceiro e último etnométodo identificado em meio às narrativas dos professores-
estudantes seria o que denominei de jogo do contente. No caso da formação dos
professores-estudantes do Curso de Licenciatura em Física é possível dizer que havia em
certas circunstâncias um jogo do contente dos professores-estudantes frente aos saberes
necessários ao aprendizado da Física posto que em meio à compressão do tempo imposto
pela organização do currículo, as exigências decorrentes dos atos de currículo de muitos
formadores e as condições objetivas e subjetivas que possuíam para internalizar a gama de
conteúdos que precisavam para obter êxito nos processos avaliativos, o caminho encontrado
foi partir para a memorização do exigido para que conseguisse a notação mínima desejada
para não ser excluído do processo de formação. Então, se eles não podiam modificar a
quantidade de conteúdos exigidos nem os atos de currículo, especialmente, as formas de
avaliação, buscavam extrair da própria adversidade algo que lhes permitissem continuar
vivendo dentro daquela situação com o mínimo de sofrimento.
Nesse jogo do contente, o mais importante não era quem ganhava ou perdia, mas o
zelo pelo ser da formação, que precisava manter-se existente no processo e o sentido do
que estava sendo aprendido. E para garantir minimamente isso, os professores-estudantes
muitas vezes tiveram que camuflar as suas jogadas dizendo-se do lado de seus oponentes,
ou seja, eles tiveram, em determinados momentos, que fazer o que Freire (1987, p.32)
chama de aderência ao opressor. Aparentemente eu me coloco favorável ao agir do opressor
para assegurar a minha permanência no curso sem, contudo admirá-lo ou querer imitá-lo. Eu
assumo um comportamento, uma atitude ou reação esperada pelo professor-formador, mas
nas bordas do processo eu assumo o que de fato sou, penso e defendo que é bem diferente
do que apresento.
Em outra versão, o jogo do contente consistia em algo do tipo: você ensina ao seu
modo eu finjo que aprendo como você deseja para seguir existindo no processo de formação
ou você ensina desse jeito e o meu jeito de mostrar que “aprendi” é memorizando e
reproduzindo como esperam de mim. Se chamam esse processo de aprendizagem é este que
vou me esforçar por apresentar. Posteriormente, eu descarto o que considero que não tem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 945


relevância para a minha formação ou adapto ao que necessito e sigo minha itinerância
formativa.
Interessante destacar que os professores-estudantes entravam no jogo não por uma
escolha ou opção política, mas por força dos atos de currículo que os levava a criar
etnométodos para re-existir, literalmente resistir para manter-se no Curso. Se por um lado os
professores-estudantes criavam seus etnométodos para re-existirem aos atos de currículo, os
professores-formadores também criavam os seus, seja para viabilizar a aprendizagem e a
compreensão dos conteúdos pelos professores-estudantes, seja para fazer valer seus
objetivos didático-pedagógicos no movimento de formação desses sujeitos.

Construindo narrativas outras... a “voz” do pesquisador.

Os professores-estudantes sempre buscaram a posição de sujeitos co-participantes


no processo de formação. Desde o princípio eles re-existiram às imposições advindas dos
atos de currículo, fossem estes de origem dos órgãos oficiais como o IAT – Instituto Anísio
Teixeira ou das relações pedagógicas cotidianas em sala de aula.
Enquanto um ato de currículo, as re-existências afetaram o fazer curricular cotidiano
dos professores-formadores e da instituição. Aos poucos os professores-estudantes foram
também instituindo seus atos de currículo e provocando novos modos de existir, novas
compreensões sobre currículo e formação.

“[...] com o tempo nós observamos que muitos daqueles tão rígidos aprenderam
conosco e começaram a perceber, a perceber que aquela dureza tinha que ser um
pouco quebrada, tinha que ser um pouco mais humano e realmente estão sendo,
mais humanos, a quantidade de conteúdos diminuiu um pouco, mas nós ainda
estamos tendo que ser superdotados ainda , mas já melhorou um pouco, a
compreensão melhorou também, a questão do nível de assuntos, no caso na
provas, daquele nível diminuiu um pouco, porque o nosso problema, além... (nível
ou quantidade de assuntos?) nível (nível pode de ser de complexidade) de
complexidade diminuiu, porque o nosso problema além dessa enormidade de
conteúdos e depois a gente volta pra nossas cidades, a maioria de nós somos de
cidades diferentes não nos reunimos pra estudar, (registra!)[...]”. [grifo nosso]
(Grupo focal/Professor-estudante)

É possível perceber que tanto o ser em formação como os outros seres com os quais se
relacionou na sua experiência interformativa foram alterando-se, modificando coisas no
entorno e no que faziam cotidianamente.
A re-existência emerge, portanto, no contexto do Curso de Licenciatura em Física como um
modo de afirmação existencial dos professores-estudantes, ao mesmo tempo em que se
constitui em um ato de currículo produzido por esses sujeitos.
A causa maior das re-existências dos professores-estudantes estava na epistemologia
subjacente aos atos de currículo de professores-formadores, precisamente, na área
específica da formação, a Física. Portanto, a re-existência era ao modo de operar o saber da
Física e não ao saber da Física em si. Os professores-estudantes não re-existiram em
aprender Física, mas em aprendê-la à maneira como os professores-formadores instituíam.
A re-existência epistemológica, portanto, assume na pesquisa realizada uma dupla
conotação. Ela tanto pode ser interpretada como um movimento de resistência a uma
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 946
epistemologia instituída, como ela mesma se constitui em um processo em que o sujeito ao
re-existir produz conhecimento.
É assim que os atos de currículo assumem um papel fundamental no processo de
construção de uma relação com o saber pelos sujeitos em formação. A re-existência
epistemológica dos professores-estudantes tinha como motivação o desejo de conhecer
outra forma de relacionar-se com o saber da Física; de produzir o conhecimento na
interação com o objeto de estudo deste campo sob outra perspectiva que não a empirista, a
qual era predominante nos atos de currículo de muitos professores-formadores da Física.
A re-existência enquanto um ato de currículo advindo dos professores-estudantes
provocou novas relações com o saber da Física por alguns professores-formadores, assim
como aprendizagens para esses dois grupos de sujeitos. Tanto os professores-estudantes
como os professores-formadores aprenderam com as re-existências na formação. Daí nossa
defesa de que a re-existência era não só de ordem epistemológica, mas formativa também.
O ato de re-existir é eminentemente formativo.
Por outro lado, a re-existência formativa referia-se também à maneira como a
formação era conduzida pelos professores-formadores do campo da Física. Para re-existir ao
modo como a formação era conduzida, os professores-estudantes criaram etnométodos
(espírito de corpo como defesa, negociação da formação, jogo do contente) o que faz da re-
existência um ato de currículo singular e irrepetível.
Ao re-existir aos atos de currículo do curso como um todo e aos atos de currículo dos
professores-formadores dentro e fora da sala de aula, os professores-estudantes
conseguiram provocar ressonâncias sobre os atos de currículo de alguns professores. Não
foram mudanças na extensão que os professores-estudantes gostariam, mas provocaram ao
menos reflexões por parte dos professores-formadores sobre seus atos de currículo e, em
determinados casos, transformações, inclusive reconhecida por alguns deles.
Assim, as re-existências epistemológicas e formativas, enquanto atos de currículo
emergiram no Curso de Licenciatura em Física do Programa de Formação para Professores
(5ª à 8ª séries/Ensino Médio) – Modalidade Presencial desenvolvido pela Universidade
Estadual de Feira de Santana como uma movimento de afirmação da existencialidade dos
professores-estudantes como sujeitos de saber, atore/autores da própria formação que
pleiteava tomar em suas mãos seu próprio projeto de formação, ainda que vivenciando esse
processo sob um contexto institucionalizado. É uma confirmação para nós professores-
formadores de que não dá mais para seguir com propostas de formação em que o ser que se
forma permaneça nas margens desse processo.
Muitos foram os motivos que levaram os professores-estudantes a re-existirem, mas
o principal foram os atos de currículo dos professores-formadores do campo da Física tanto
no que diz respeito ao modo como conduzia o trabalho com o saber em sala de aula como o
processo de formação que era extremamente formalista.
Os professores-estudantes re-existiram à organização modular do currículo, a ausência de
estudos de recuperação das disciplinas em caso de reprovação, à quantidade de conteúdos
estudados em apenas uma semana, à carga horária de estudo, às provas e ao número de
avaliações que muitas vezes eram submetidos em uma só semana, ao tempo mínimo que
tinham para estudo e aprofundamento dos conhecimentos, à falta de dispensa de parte da
carga horária de trabalho na escola, entre outras coisas ao longo da formação. Mas, o que de
fato impulsionou estes sujeitos a re-existir foram os atos de currículo de muitos professores-
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 947
formadores do campo da Física que os afetaram em várias dimensões do ser (psicológica,
emocional, física, cognitiva, entre outras).
Posso dizer então, que a re-existência enquanto um ato de currículo instituinte teve
implicações importantes sobre o currículo formal instituído no e pelo Departamento de
Física em termos de formação posto que há um reconhecimento por alguns professores-
formadores da necessidade de se repensar esse currículo e, por conseguinte, a formação.
Se pelas vias da re-existência não foi possível mudar a arquitetura da formação,
indubitavelmente as suas bases foram abaladas. Em cada ato de re-existência marcas foram
impressas no contexto e nos sujeitos. Como a formação está sempre por conhecer (HONORÉ,
1980), Atos de currículo e re-existências epistemológicas e formativas: um olhar crítico-
hermenêutico sobre a formação de professores em atuação constituiu-se em uma grafia que
traduz histórias de formação narradas por seus protagonistas. Novas escritas do Ser em
formação se façam possíveis nas re-existências da vida cotidiana.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 948


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 949


O caminho se faz ao caminhar: narrativas de uma prática formativa

Cátia Nery Menezes


UNEB
kakanmenezes@hotmail.com
Adylane Santos de Jesus
UNEB
adylanesantos@gmail.com

O presente texto apresenta relatos (auto)biográficos que reconstroem experiências de autoformação e


formação profissional, que tematizam representações do nosso trabalho enquanto Coordenadoras Pedagógicas
de Núcleo- (CPN), no Núcleo de Educação de Jovens e Adultos – NEJA, da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), na Pró- Reitoria de Extensão- PROEX, através do Programa Todos Pela Alfabetização – TOPA/ Brasil
Alfabetizado, no período de 2012 a 2013.A proposta da escrita (auto)biográfica, memorialística, partiu da
necessidade de se registar a nossa caminhada ao longo do processo formativo destinado aos alfabetizadores e
coordenadores de turma do programa, como possibilidade de existência e de resistência ao esquecimento,
evidenciando a nossa autoformação na prática formativa que era desenvolvida. O presente texto foca-se na
produção/ exposição de relatos autobiográficos de formação individual e histórias de vida, onde buscamos
falar de nós, da nossa vivência enquanto formadoras itinerantes do Programa. Trabalhar esses relatos como
recurso metodológico potencializa um redimensionamento das experiências de formação e das trajetórias
profissionais, possibilitando novos olhares sobre as práticas atuais, retroalimentando o processo de
autoformação. A opção pelas narrativas (auto) biograficas, possibilitará ao leitor ter contato com as nossas
experiências de vida e profissional, enquanto coordenadoras pedagógicas de núcleo, numa perspectiva
singular, onde será tecido duas visões e sensações distintas de uma mesma caminhada. O ato de rememorar
uma experiência vivida nos proporcionará um deleitar constante, ativado pelos dados inseridos nas narrativas o
que nos ajudará a refletir nossa identidade e o conhecimento de si.
Palavras-chave: Narrativas docente; Relatos (auto)biográficos; Formação.

Introdução

As poéticas palavras, que expomos acima, de Antonio Machado, poeta espanhol, nos
auxiliou para a iniciativa de tentar escrever em forma de relato autobiográfico, quase três
anos de experiência, como Coordenadoras Pedagógicas de Núcleo- (CPN), no Núcleo de
Educação de Jovens e Adultos – NEJA, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), da Pró-
Reitoria de Extensão- PROEX, através do Programa Todos Pela Alfabetização – TOPA/ Brasil
Alfabetizado, onde buscamos, em uma narrativa construída a partir de duas vozes, com
caminhos diferentes de uma mesma ação, reconstruir as nossas experiências de
autoformação e formação profissional, que tematizam as representações do nosso trabalho
como coordenadoras e formadoras de um Programa tão especial e complexo.
Como formadoras, temos constatado, que cada vez mais, as narrativas têm se
tornado ferramentas centrais para os processos de formação. No presente artigo, temos
como objetivo, evidenciar essa potencialidade da narrativa, focando na produção/ análise de
relatos autobiográficos de formação individual ou histórias de vida. Textos que os indivíduos
constituem para dizer de si próprio, e a si próprio. Ao serem trabalhados esses relatos, como
recurso metodológico para escritas de artigos acadêmicos, percebe-se um potencial
bastante fecundo, que favorece o redimensionamento das experiências de formação e das
trajetórias profissionais e tendem a fazer com que se infiltrem nas práticas atuais, como
novas forças, novas buscas e novos modos de conceber o processo de autoformação.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 950
Doravante delimitar o campo teórico é necessário, para as narrativas poderem ser
compreendidas dentro do campo formativo, epistemológico e social. É por esta questão que
percebemos a necessidade de apresentar o percurso da construção conceitual da discussão,
para delimitar o campo teórico que esse artigo irá focar. Sendo assim, iremos nos debruçar
nas contribuições de Josso (2007); Bragança (2011); Souza (2004) e Ferreira (2006), que
abordam a questão da formação de si e formação profissional, narrativas de formação e
autoformação, e autobiografia. Como instrumento, utilizamos os nossos relatos, enquanto
formadoras itinerantes, onde buscamos registrar, diariamente, os acontecimentos, nas
formações e as soluções encontradas para as problemáticas existentes. Infelizmente, não
caberão todas aqui, mas trataremos de apresentar as mais relevantes e as que contribuíram
para a nossa formação, pois, além de “formar” os profissionais atuantes no Programa,
também nos formávamos, com a rica experiência destes grupos.
A opção pelas narrativas (auto) biográficas possibilitará ao leitor ter contato com as
experiências de vida e profissional, de nós duas, enquanto profissionais atuantes no quadro
das coordenadoras pedagógicas de núcleo, da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, numa
perspectiva singular, pois, cada uma tecerá no seu escrito, momentos vividos, que mostrará
o percurso pessoal e profissional, enquanto um elo de complemento para dar significado às
experiências vivenciadas no lócus profissional. É no recontar, no reviver, que situações
outrora vividas faz sentido para a construção de um caminho que foi sendo lapidado a partir
das escolhas, e dos momentos vividos.
Conforme Ferreira (2006),
“O recurso autobiográfico, tanto no sentido literário quanto
metodológico, nos aporta conhecimentos e análises de relatos
pessoais, as quais não teriam acesso em abordagem globais, que
dissolvem o homem na coletividade e nas medidas estatísticas. A
narrativa autobiográfica também pode ser compreendida como o
registro de experiências sociobiográfica, reveladoras não apenas da
construção da personalidade profunda do sujeito e do individuo, mas
como também, esclarecedoras da estrutura de formas e sentidos das
instituições e situações sociais de convivência e pertencimento.”

Desta forma, a narrativa tem seu lugar privilegiado no campo educacional, quando se
discuti história de vida. Esse gênero textual situa o leitor no momento do fato vivenciado
como também o descreve com riqueza de detalhes, possibilitando ao escritor e ao leitor,
identificar elementos de ordem social, moral e formativa, no discurso apresentado.
É por isso, que esse texto, ao utilizar as narrativas autobiográficas, busca contar o
nosso percurso individual enquanto coordenadoras pedagógicas de núcleo, fazendo-nos
reviver fatos experienciados durante a realização das formações para os alfabetizadores e
coordenadores de turma do TOPA, que outrora não teríamos a oportunidade de fazê-los
com riqueza de detalhes, e com total liberdade para expressar as sensações, medos,
angustias, frustrações, alegrias, etc.
O entrelaçamento de um artigo escrito por duas mãos, com caminhos percorridos de
forma semelhantes, mas que se cruzam exatamente nas diferenças, não se configura tarefa
simples. Devido à mesma perspectiva de trabalho é um momento que existem muitas vozes
e que também impera o silêncio, pois, ainda ficam as lacunas.

Histórias entrelaçadas: narrativas de uma prática formativa


Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 951
Pensar na formação e na autoformação leva-nos para a necessidade de rememorar,
o caminho onde percorremos, até aqui, a fim de que possamos nos questionar sobre o lugar
de onde viemos e das lembranças que trazemos, além das experiências vividas, e do
resultado delas, na ação em que cada sujeito se inscreve de maneira singular e plural.
Ancorando-nos portanto, na importância que o processo de formação dos
alfabetizadores e coordenadores de turma do TOPA lança no âmbito da educação, e a
necessidade do processo de formação dos alfabetizadores e coordenadores de turma
atender as necessidade de aprendizagem no grupo de alfabetizando, pretendemos neste
exercício memorialístico através do relato escrito, de algumas situações que despertou em
nós alegria, tristeza, insegurança e vontade de seguir adiante, neste contexto complexo que
é a educação de jovens e adultos. .
Todo sujeito, independente das suas semelhanças com outros sujeitos, vem dotado de
particularidades e encara de maneira diferenciada as situações vividas, pois, somos seres singulares.
Mas, somos também seres plurais. Apesar das semelhanças entre as experiências de sujeitos
diferentes, é possível que nos encontremos no outro e de certa forma, podemos nos completar com
o que o outro nos acrescenta.
Quanto a esta reflexão, Bragança (2011) diz que:

“Do ponto de vista filosófico, pensar a formação traz o humano para o centro de
nossa reflexão. Enquanto sujeitos históricos construímo-nos a partir das relações
que estabelecemos conosco mesmos, com o meio e os outros homens e mulheres,
e é assim, nessa rede de interdependência, que o conhecimento é produzido e
partilhado. As interações humanas vão constituindo a cultura, e a educação,
consistem na apropriação/recriação desse conhecimento acumulado pela
humanidade; nesse sentido, o processo educativo permeia toda vida humana.”

Nessa perspectiva, o texto apresenta algumas de nossas vivências pessoais,


refletidas na nossa prática profissional e principalmente, em nosso aprendizado, dentro do
Núcleo de Educação de Jovens e Adultos – NEJA, que possui em seu quadro de profissionais,
sujeitos carregados de diferenças, mas que em muitos momentos se entrelaçam, permitindo
as trocas a respeito de suas vivências, que apesar de serem iguais na ação, tornam-se
diferentes no desenvolvimento e no resultado desta.
O Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (NEJA), da Pró- Reitoria de Extensão-
PROEX, foi instituído com objetivo de agregar, fomentar e implementar pesquisa e extensão
na área de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nessa direção, vem realizando, em parceria
com os vários Departamentos da UNEB, ações diversas no campo da formação de
educadores da EJA. Assumindo, desde a criação do Programa Todos Pela Alfabetização-
TOPA/ Brasil Alfabetizado, a formação inicial e o acompanhamento das ações do programa,
nos municípios integrantes dos Territórios de identidades do Estado da Bahia.
As nossas histórias começam a se entrelaçar, em 2009, quando Cátia, vem transferida
de uma instituição particular para a UNEB, no campus XV, no município de Valença-Ba. Daí
em diante, foram várias publicações e um acordo de amizade, onde pudéssemos dar
continuidade à nossa formação, juntas. Em 2011, eu concluí o curso e vim para Salvador-Ba,
atuar no Núcleo de Educação de Jovens e Adultos-NEJA, na UNEB, através de seleção. Um
ano depois, consegui convencê-la a largar tudo no interior e vir se “arriscar” na capital, ela
também passa por processo seletivo e integra o quadro de coordenadores pedagógicos de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 952
núcleo, e iniciamos caminhos diferentes, de uma mesma ação, carregadas de desejos, medo
e dúvidas, caminhamos por diversas cidades da Bahia, realizando as formações exigidas pelo
Programa, eu com as DIRECS 03,21 e 25, e ela, com as DIRECS 25,21, 15.

Caminhos percorridos em dois anos e meio de atuação: com a palavra, Adylane Santos.

Atuei no Núcleo por duas etapas (4º e 5º) e o início da terceira (6º etapa).
Inicialmente, no ano de 2011, fiquei responsável pela DIREC 21, situada em Irecê, onde
viajava por diversos municípios que a compunha, tais como, Itaguaçu da Bahia, Lapão,
Jussara, Central, Ibipeba, IBititá, Presidente Dutra,João Dourado, Mulungu do Morro,
América Dourada, Barra do Mendes, Gentio do Ouro e São Gabriel. Posteriormente, no meio
da etapa, assumi também a DIREC 03, sediada na cidade de Alagoinhas, e que abarca as
cidades de Sátiro Dias, Rio Real, Entre Rios, Araçás, Catu, Inhambupe, Acajutiba, Cardeal da
Silva e Jandaíra, para realizar formações, acompanhamento pedagógicos e visitas técnicas às
turmas do TOPA.
Na quinta etapa, em 2012, passamos a apenas realizar as formações, eram três no
total, durante os oito meses de duração do Programa. Desta forma, não fiquei em uma
DIREC específica, mas em cidades diversas, viajei por várias distancias, e foi uma experiência
muito rica e inesquecível, foram muitas cidades, que ficaria cansativo se as colocasse aqui.
Em 2013, na sexta etapa, participei apenas, dos planejamentos para as formações, me
desligando em seguida do Núcleo, para trilhar novos caminhos de formação.
Dentre esses e outros municípios, dois deles, que fazem parte da DIREC 21, foram os
que mais inquietaram, são eles: Central com rica participação na história da formação
humana, com grutas “recheadas” de pinturas rupestres e fósseis. E, Gentio do Ouro, com
intensa extração de ouro e cristal, ainda de forma rudimentar. O interessante é que nada
disto era abordado nas turmas do TOPA, e tampouco nas formações, algo que me inquietava
bastante. A partir das visitas seguintes, elaboramos um projeto, juntamente com as
coordenadoras de turma, para que pudéssemos utilizar tais conteúdos históricos, na sala de
aula, levando-os a uma reflexão de valorização e pertencimento. Porém, a baixa formação
dos coordenadores de turma e alfabetizadores não permitiram suas aplicações. A gente
tinha que aplicar o que estava programado nos planos de ação, desenvolvidos no núcleo,
onde contemplava textos de diversos autores que discutem alfabetização, pensava em
formas de melhora da prática pedagógica e no bom uso dos materiais didáticos, além de
auxiliar no preenchimento dos cadernos de registro, que no final de nada serviam, mas que
de certa forma era o que os cursistas buscavam nas formações, não cabendo outras
discussões.
Na região de Irecê, conheci várias localidades de difícil acesso, na zona rural, onde as
turmas do TOPA, funcionavam. Em alguns lugares, carro não chegava, tinha que descer em
certo local, pegar uma lanterna e seguir na escuridão do sertão, até encontrar a sala. Nas
salas, havia iluminação, por vezes de candeeiro. Mas ali estavam, sujeitos adultos e idosos,
com suas visões precárias, esforçando-se para ler e escrever. Em muitos lugares a emoção
tomava conta de mim, pois, estava ali, diante de uma realidade que jamais imaginaria existir.
O que me encantava também, era a alegria a qual era recebida, a professora de
Salvador como era chamada por eles, por vezes, até doces e salgados havia no local, para me
recepcionarem. O carinho era muito grande. Ao chegar, ficavam todos ali, parados, me
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 953
olhando como se eu fosse à pessoa mais importante da vida delas, como uma visitante
ilustre. Ficavam ansiosos a espera de que eu desse aula. Mal sabiam que a minha função era
a de “fiscalizar” as aulas, de acompanhar as ações que estavam sendo desenvolvidas. Mas,
diante de uma recepção assim, como não dar aula? Começava a discutir sobre algo que
encontrei no caminho, alguma dificuldade, algum ponto positivo no acesso, e ai começava a
contextualizar, mas era uma riqueza! Dava vontade de ficar ali, por muitos e muitos
momentos. Geralmente, não voltávamos mais àquela turma, pois, eram muitas, em um
curto período para serem visitadas.
Já na região de Alagoinhas, as turmas encontravam-se, a maioria, em localidades de
fácil acesso, não me recordo de ter visitado alguma que me marcasse, no sentido de me
aventurar para alcançar as turmas. O que acontecia, era chegar e dar com a “cara na porta”,
encontrava muitas turmas fechadas. Isto se dava também pelo período da visita, que por
neste momento estar assumindo duas DIRECs, com mais de dez municípios e inúmeras
turmas, acabava por realizar as visitas no final da etapa, uns dois meses antes do
encerramento, daí, muitos, ainda não sei como, davam um jeito de antecipar o seu término.
Quando passei a realizar apenas as formações, sem as visitas às turmas, as
experiências já foram outras, “formar” uma enorme quantidade de alfabetizadores e
coordenadores, com ações que deveriam ser postas em prática no início da etapa, mas que,
pela falta de organização da Secretaria de Educação, no que tange, o atraso nas verbas,
acabávamos realizando as formações no meio ou no final da etapa, de forma corrida, com
muita gente, e em locais nem sempre apropriados, o que dificultou, e muito, o resultado das
ações.
A experiência nas cidades da região de Barreiras foram as mais difíceis, localidade
com pouquíssima estrutura, estava em um período de muita chuva na região. Em todos os
municípios que passei me deparei com pousadas de pouca estrutura, não estava preparada
para isso. Acostumei-me com a experiência da etapa anterior, onde sempre escolhíamos
boas hospedagens. Reclamei muito dos locais no período em que estive lá, talvez por ter
sido na reta final, eram os últimos municípios, distante de casa, mais de 20 dias direto na
região, tudo isso contribuiu para uma crise repentina. Mas, cumpri a minha função, fui
bastante elogiada pelos cursistas e bem recebida. Reclamar faz parte, por que permanecer
errando se podemos melhorar? As situações precisam ser repassadas, infelizmente fui uma
das poucas a fazê-la diretamente e levei fama de problemática, mas não me importo! Sei
que serviu para muita coisa. As problemáticas sempre me abriram portas! Com isso,
acredito que a formação do educador, se torna essencial, pois, os possibilita adquirir
conhecimentos que serão colocados a serviço do embasamento teórico-prático para sua
atuação no campo da Educação, e principalmente, no da Educação de Jovens e Adultos,
ainda tão carente de tudo. E as experiências do Programa TOPA, me possibilitou um
amadurecimento incrível, no momento em que tive de abrir mão das disciplinas do
mestrado, chorei muito, mas percebi que a minha escolha foi certeira, adquiri muita
experiência, em tão pouco tempo, minha cabeça ferve com tantas possibilidades que este
trabalho tão prazeroso me deu.
Porém, toda esta experiência formativa, riquíssima, nestes ambientes educativos,
como casebres, quadras, casas, garagens, estribarias etc., me fez refletir sobre a educação
no Brasil e o nosso papel, enquanto educador, e a perceber que se faz educação em
qualquer lugar, basta que todos os sujeitos envolvidos, “com baixa ou alta formação”, como
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 954
costumamos erroneamente rotular no senso comum, estejam implicados no processo. E
com todas as dificuldades enfrentadas de local, material, falta de pagamento dos “salários”,
acesso, a maioria das turmas funcionava. Até hoje, está marcada em minha memória, a
alegria daqueles adultos e idosos, em aprender as primeiras letras, e os seus relatos de
extrema felicidade, por retirarem de suas identificações, o termo “não alfabetizado” e
substituir por sua simples, linda e suave assinatura. Passando, a partir deste momento, a se
sentirem inseridos na sociedade. Momentos e relatos como este, é difícil esquecer.
Penso que Josso (2007), possa vir a contribuir para este relato com a citação onde
afirma que:
“(...) a questão do sentido da formação, vista através do projeto de formação,
apresenta-se como uma voz de acesso às questões de sentido que hoje permeiam
os atores sociais, seja no exercício de sua profissão – eles se assumem como porta-
vozes dos problemas dos grupos sociais com os quais operam –, seja nas vivências
questionadas e questionadoras de sua própria vida.”

Assim, para a educação se tornar eficaz ela precisa conseguir motivar cada um de nós
de maneira completa e interna, a ponto de que possamos querer mais, ir além, e buscar
valorizar as atitudes, comportamentos e valores incutidos ao longo de nossas vidas.
Aprendemos quase nada, quando focamos apenas, numa realidade momentânea, quando
não conseguimos enxergar além do que temos, o que nos leva a acomodação e não nos
permite evoluir. Somos pequenos, quando não nos entendemos, não nos aceitamos e não
tentamos realizar mudanças possíveis, tanto internas, como externas.
As viagens foram muito ricas, me arrependo de não ter construído um diário de
bordo, mas as formações eram intensas. Às vezes, terminava uma formação e já viajava para
outra cidade. Anotava o que dava, mas as experiências não se perderam, graças a este ato
de rememorá-las, e das consultas a algumas anotações significativas, que nos fazem viajar
no tempo.
Com isso, acredito que a formação e autoformação do educador se tornam
essenciais, pois, os possibilita adquirir conhecimentos que serão colocados a serviço do
embasamento teórico-prático para sua atuação no campo da Educação, e principalmente, no
da Educação de Jovens e Adultos, ainda tão carente, de tudo. E a experiência do Programa
TOPA, me possibilitou um amadurecimento pessoal e profissional significativo.

Formação e autoformação: Cátia Nery e suas itinerâncias

Este texto faz um relato da minha experiência enquanto formadora no Programa


Todos Pela Alfabetização - TOPA/ Brasil Alfabetizado, mas antes de iniciar, gostaria de expor
o caminho que trilhe. Minha itinerância no campo da Educação de Jovens e Adultos – EJA
iniciou na graduação no curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia Campus XV,
através do componente curricular Estágio em Espaços Formais, onde tive a oportunidade de
atuar enquanto docente na turma da EJA, a partir dessa vivência despertou meu interesse
em estudar essa modalidade de ensino.
Por conseguinte, estudar e discutir EJA sempre foi para mim um momento prazeroso,
instigava questionamentos por ser uma modalidade de ensino que carece de uma
redefinição de estrutura pedagógica, metodologia, profissionais capacitados, material
teórico especifico. Assim no trabalho de conclusão de curso – TCC discutir a formação do
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 955
professor da EJA, enveredei a escrita para a necessidade da formação continuada do
professor da EJA. A reflexão traçou algumas perspectivas como resultado da discussão
teórica baseada na necessidade de se efetivar uma formação inicial e continuada para o
professor da Educação de Jovens e Adultos para dessa forma contribuir para a mudança nos
processos educativos, na concepção de ensino, na visão que o docente tem da educação
que acaba influenciando no processo de ensino e na aprendizagem dos discentes
Logo depois, do término da graduação tive a oportunidade de participar da seleção
pública, para trabalhar no Núcleo de Educação de Jovens e Adultos- NEJA / PROEX- UNEB
para o cargo de coordenadora pedagógica de núcleo. Inicie o trabalho em agosto de 2012.
Desde que comecei, a fazer parte do quadro de profissionais do NEJA, oportunizou
para que eu tivesse uma percepção e uma vivencia de como se constituiu um programa de
alfabetização, e também como acontece o processo de formação profissional dos
alfabetizadores e coordenadores de turma. Por conseguinte, trabalhar no NEJA, me
proporcional um duplo aprendizado, pois atuava como formadora dos coordenadores de
turma e dos alfabetizadores do TOPA e ao mesmo tempo acontecia a autoformação, porque
a cada formação eu também era transformada, e isso agregou à minha formação
profissional.
A formação era subdividida em três momentos denominados: formação inicial ( 24
horas), formação especifica para coordenador de turma ( 16 horas) e formação in locu ( 16
horas). A primeira foi realizada pelos professores formadores da Universidade do Estado da
Bahia, e as subsequentes pelas coordenadoras pedagógicas de núcleo. As formações
aconteceram em seqüência.
Continuando, a minha caminhada. a primeira formação que ministrei, foi a formação
inicial ( 24h) ocorreu no município de Campo Alegre de Lourdes, cidade que fica a 881 km de
Salvador-BA, 14 horas de viagem de ônibus, fazendo conexão em Juazeiro. No sacolejar do
ônibus, na dificuldade que o motorista tinha em desviar dos buracos da pista sem asfalto, na
solidão que batia a cada km que se distanciava do meu lar, sentia-me insegura, com medo,
do que poderia encontrar. Ao chegar no município a noite, tendo que me virar sozinha, pois
podem acreditar! a partir das 22 horas não encontra táxi na cidade. Puxando a mala e com
algumas sacolas nas mãos, com a cara de assustada, desconfiada, mas ao mesmo tempo
destemida porque tinha que pedir informação para encontrar uma pousada. No caminhar
solitário da rodoviária até a pousada agradecia a Deus. No dia seguinte acordava ansiosa
para iniciar o trabalho, a turma tinha 32 alfabetizadores e 04 coordenadores de turma, a
maioria mulheres. A formação tinha como base o plano de ação produzido pelos
coordenadores de núcleo e pela coordenação geral do NEJA.
À medida que narro a minha vivência no espaço de formação faz-me perceber o
quanto esta experiência me proporcionou momentos de aprendizagem e de autoformação ,
é neste movimento de rememorar o vivido que percebo que a construção do conhecimento
acontece a partir da interação entre sujeito sociais.

É com base nessa perspectiva que a abordagem biográfica instaura-se como um


movimento de investigação-formação, ao enfocar o processo de conhecimento e
de formação que se vincula ao exercício de tomada de consciência, por parte do
sujeito, das intinerancias e aprendizagens ao longo da vida as quais são expressas
através da meta-reflexão do ato de narrar, dizer-se de si para si mesmo como uma

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 956


evocação dos conhecimentos construídos nas suas experiência formadoras
(SOUZA.2004 )

De fato, o sujeito só toma consciência daquilo que fez, através da meta-reflexão


citado acima pelo autor, no meu relato autobiográfico percebo o quanto o dizer de si para
si mesmo se constituiu um processo de construção de conhecimento e de entendimento
das ações que realizei, e como tais ações me levaram a traçar um percurso formativo que
iniciou na graduação e que é ressignificado e reelaborado a cada contato com processos
formativos.
Retornado a minha itinerancia, para a realização das formações, o formador tinha
como referência o plano de ação – NEJA, nesse instrumento constava os textos, slides,
atividades, discussões que seriam realizadas. Esse material serviu como um orientador para
a prática pedagógica do formador em sala de aula. Mas a cada município as discussões e os
encaminhamentos eram diferentes. O plano de ação tinha o objetivo de uniformizar as
discussões teóricas. Mas foi no lócus da formação, com os alfabetizadores e coordenadores
que as discussões e adquiriam alguns desdobramentos fazendo relação com a realidade
local. O tema foi o mesmo, mas a forma as discussões não poderiam ser, pois cada um dos
sujeitos que estava na formação possuía especificidades, historia de vida, escolar diferente.
Outro momento marcante foi a formação in locu (16horas) V etapa que ocorreu com
alfabetizadores e coordenadores de turma no município que pertencente a DIREC 21. Na
turma tinha em torno de 40 cursistas. No primeiro dia de formação, percebi durante a
apresentação dos cursistas que havia uma divisão de grupos, os alfabetizadores e
coordenadores de turma que eram vinculados a associação e os da prefeitura, estavam
divididos em lado opostos da sala. Não falei para o grupo, para não criar um mal estar, e
entrelacei a discussão de direitos humanos, respeito as diferenças, posicionamento políticos,
previsto no plano de ação da formação para conscientizar o grupo de que as divergências,
opiniões , crenças fazem parte e temos que respeitar e saber conviver em harmonia com
elas. Através de atividades de interação com os grupos, foi quebrando o clima de rivalidade.
Sigo acreditando no poder de transformação que os espaços de formação, proporcionam
aos indivíduos, através do diálogo e no respeito ao posicionamento ideológico de cada
indivíduos. No planejamento não tinha explicito que era de minha responsabilidade
trabalhar a conscientização dos sujeitos, porém a situação pedia uma intervenção e foi
exatamente o que realizei.
Durante o período de realização das formações, constatei que o saber ouvir, faz toda
a diferença, quando trabalhamos com grupos que tem uma história marcada por processo
de negação e privação de direitos. A saber o programa de alfabetização é uma política
Educacional e Social indispensável no contexto atual da Bahia/ Brasil, porém a forma como
as políticas voltada para esta modalidade estão sendo implementadas, carece de uma
adequação com relação as especificidades pedagógicas, e dos sujeitos ( jovens e adultos).
Então o meu trabalho nas formações foi instigar os alfabetizadores e coordenadores de
turma a pensar sobre a didática, os recursos, seleção, organização, planejamento das aulas,
embasado em uma discussão teórica, transformando as formações como um espaço
legítimo de trocas de conhecimentos e socialização de experiências.
Ao trabalhar na formação do educador popular do programa de alfabetização – TOPA
tive a sensação de dever comprido , pois está envolvida em um espaço de formação de
indivíduos que tem a responsabilidade de alfabetizar jovens, adultos e idosos, que vê o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 957
processo de escolarização como um caminho para mudar as suas vidas, tendo autonomia
para resolver situações simples como ler um rótulo, uma carta etc, que antes do programa
tinha que pedir ajuda a alguém que soubesse ler.
Em virtude do trabalho realizado no NEJA, não poderia deixar de refletir sobre a
minha formação profissional, eu enquanto Pedagoga apreendir conhecimentos que serão
basilar, para outras oportunidade de trabalho e retomada dos estudos acadêmicos. A
caminhada itinerante que trilhei até chegar onde estou, é fruto da minha persistência e em
acreditar que é através da Educação que podemos transformar a nossa realidade e daqueles
que também acreditam na ação transformadora, dialógica e autoformativa, que ela fomenta
em cada sujeito.
Concluindo a atuação do coordenador pedagógico de núcleo, na formação dos
voluntários alfabetizadores e voluntários coordenadores de turma do TOPA, constituiu-se
em momentos de formação em serviço, necessário para pensar a EJA para além de uma
discussão contida nos livros.

Considerações

Tendo em vista a proposta do texto de abordar, por meio da narrativa


autobiográfica, a nossa vivencia enquanto formadoras do TOPA, pudemos fazer uma
reflexão da nossa atuação enquanto formadoras e também enquanto profissionais que
participou de um processo autoformativo.
A narrativa, mesmo que breve, teve a intenção de socializar uma experiência
enquanto formadoras de um Programa voltado para a redução do analfabetismo de jovens,
adultos e idosos, que mesmo com suas inúmeras problemáticas, em alguns casos, (poucos
casos), acabam conseguindo cumprir este papel, mesmo diante de tantas dificuldades
enfrentadas.
A nossa ida a essas localidades nos fez refletir e entender sobre a questão de não
estarmos destinados a formar as pessoas, pois, elas se constroem, junto conosco, durante o
seu processo formativo. Neste sentido, ocorre um processo de apropriação, onde nos
apropriamos de algo, compartilhamos e voltamos a nos apropriar. Nesse aspecto, as
situações adversas foram percebidas como momentos de aprendizado, ao iniciarmos a
escrita deste texto, percebemos o quanto aquelas/ estas vivências foram significativas para
nós,
Nesta perspectiva, Josso (2002) caracteriza a experiência “formadora” como:

“um conceito em construção, porque consiste na narração dos “processos de


formação”, de conhecimento e de aprendizagem do ponto de vista dos adultos
aprendentes a partir das suas experiências formadoras (...) porque nasce da
capacidade e do investimento do ator falar e escrever sobre si, sobre sua história,
estabelecendo sentido ao que foi e é vivido através dos significados particulares e
coletivos”.

Nesse percurso, conseguimos estabelecer novos diálogos, nos apropriamos de outras


vozes, de outras caminhadas, e ao produzimos esta narrativa, buscamos outras
interpretações para essa experiência, singular e plural, vivida nos anos de 2011 a 2013. Tal

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 958


experiência nos levou para a crença na potencialidade das narrativas autobiográficas, tanto
para a constituição profissional, quanto para as mudanças de práticas.
A saber, as narrativas orais historicamente fizerem parte do nosso contexto vivencial,
relacional. No processo de formação dos indivíduos e da sociedade, isto demonstra que nós
sujeitos sociais apreendemos com base no que é socializado e ressignificado por cada
indivíduos, e de acordo com a nossas necessidades, crenças, ideologias. Então este exercício
de autobiografia expressa a necessidade humana de registrar através da escrita o vivido e
rememorar sentimentos, vivencias, aprendizagem significativas para a construção do
processo de autoformação que cada sujeito realiza no contexto social.
Conseqüentemente o processo de autoformação e a formação profissional ocorreu,
em virtude do debruçar nos estudos teóricos para proporcionar momentos de discussão que
desse conta de atender as especificidades de cada grupo de alfabetizadores e
coordenadores de turma.
Sendo assim, o ato de rememorar experiências tão ricas como estas, leva-nos a um
processo transformativo, onde passamos a dar sentido às produções do vivido, podendo
com isso, ressignificar a nossa prática em nossa recente caminhada.
Finalizando, o entrelaçamento da vida profissional com a vida pessoal de nós,
repletas de diferenças e especificidades, e ao narrar o vivencial, pudemos entender que as
histórias são únicas, mas o implicamento que tivemos durante a realização do trabalho
proporcionou para ambas momentos de formação e autoformação, e é nisto que as nossas
memórias se entrelaçam.

Referências

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biográfica. Disponível em:
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SOUZA, E. C. de. Autobiografias, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. Porto
Alegre: EDPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 960


As crianças e as escritas de si: os portfólios (auto)biográficos nas itinerâncias formativas
da/na infancia

Daniele Farias Freire Raic


UESB
danielefreire.uesb@gmail.com
Larissa Monique de Souza Almeida
UESB
larymonik2@hotmail.com

Dentre os discursos presentes no cenário educativo estão àqueles voltados à proposição de práticas
pedagógicas que possam promover a autoria e a autonomia dos sujeitos em seus processos formativos.
Entretanto, a maioria dos currículos escolares, prescritivos, não tem valorizado as itinerâncias individuais como
possibilidades abertas aos devires. Pensar, por outro lado, em currículos narrativos, requer olhar mais
sensivelmente para esses sujeitos e suas histórias, suas experiências, como textos abertos, em sendo, em vir a
ser. Nesse sentido, este trabalho discute a importância dos portfólios (auto)biográficos produzidos pelas
crianças durante sua itinerância formativa, escolar, a fim de melhor compreender os processos de
aprendizagem, individualmente. Trata-se de um estudo realizado durante o ano letivo escolar de 2013, numa
escola de educação básica, com crianças de seis a oito anos, convidadas a produzirem suas reflexões sobre as
atividades escolares realizadas para elas. Tais narrativas permitem dizer como as crianças pensam uma “boa”
atividade (e uma boa escola), além de contribuírem para as reflexões dos professores sobre as suas práticas. Ao
falarem de si e de seus processos formativos, as crianças provocaram importantes reflexões sobre o currículo
escolar, as propostas de atividades dos docentes e, sobretudo, as relações que elas têm estabelecido com a
escola e com a produção do conhecimento. Para os professores, um dispositivo de avaliação indispensável ao
acompanhamento do desenvolvimento da criança durante sua escolarização. Essa pesquisa sinaliza para a
escrita (auto)biográfica da/na infância como potência formativa em direção à autoria, à reflexividade e à
autonomia e, ainda, como possibilidade de ir se (re)escrevendo os currículos escolares, atravessados pelas
experiências dos sujeitos.
Palavras-chave: Portfólios (auto)biográficos; Escrita de si; Formação.

As primeiras palavras...

As vidas são textos sujeitos a revisão


(Bruner; Weisser,1995)

Há muito tempo que a formação escolar das crianças vem nos intrigando; temos nos
questionado, constantemente, o porquê de nossas práticas pedagógicas, quase sempre
serem direcionadas para as crianças e nem sempre com elas, já que são sujeitos de suas
próprias histórias, de suas próprias vidas. Contraditoriamente, temos visto que nos discursos
de formação, sobretudo no âmbito educacional, estão presentes as expressões autonomia,
emancipação e protagonismo do indivíduo. São visíveis os muitos apelos à educação das
crianças, mas, ainda, têm sido poucas as práticas em que as suas vozes aparecem e são
validadas nas propostas curriculares. Os currículos escolares, de natureza prescritiva, são (na
maioria das vezes) definidos por um grupo de especialistas (geralmente de professores e ou
de coordenadores, quando não advindos dos próprios conselhos editoriais dos livros
didáticos), para as crianças, as quais são postas na condição de passividade. Essa maneira de
se propor um currículo escolar se nos apresenta como um dos maiores desafios da educação
brasileira, em que precisamos nos debruçar nos próximos tempos, não apenas no que tange
ao quê ensinar, mas, principalmente, em como se tem sido definido o que é ensinado e quais
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 961
os interesses dos que promovem e motivam este ensino. Aceitando o desafio dos tempos de
agora no sentido de repensarmos a proposta curricular da/para a infância, é que nos
colocamos sensíveis ao cotidiano escolar, ratificando este espaço como campo de pesquisa e
de produção de conhecimentos.
Sabemos que nossa ação no mundo transforma-nos e, ao mesmo tempo, ao sermos
transformados, transformamos as realidades. O trabalho em educação é uma forma de
recriarmos a nós e ao mundo. Nesse ato de recriação, nos últimos anos, nos envolvemo mais
ativamente com a reforma curricular numa dada escola de educação básica, aqui
identificada por Escola X. Desde então temos voltado a nossa atenção, juntamente com a
comunidade escolar, para a composição de uma proposta pedagógica que tenha como
princípio filosófico a formação humana. É importante (e necessário!) dizer que perspectivar
a formação humana é assumir outra direção pedagógica, diferente das práticas que
caminham para a simples instrução e transmissão de conteúdos escolares; a formação
humana requer uma compreensão de sujeito e da educação num campo complexo,
multirreferencial, já que não vemos como provável a formação do humano sem que este
seja autor e coautor de si, escrevendo a sua própria história de vida, a sua existência. Como
nos diz Timm,

Ao anotarmos a expressão escrever sua própria história de vida, admitimos, por


implicação direta, que afirmamos a condição de autoria inerente (mas nem sempre
utilizada em toda a gama de seu potencial) que um ser humano tem de produção
de sua própria existência, constituindo assim, com as escolhas que faz nas decisões
que a vida lhe apresenta, uma escrita de sua própria existência. Sentindo-se
escritor da própria vida, vai escrevendo, por assim dizer, as páginas do livro de sua
existência. (TIMM, 2010, p. 49).

É dessa compreensão de autoria de si, da própria história de vida, que desconfiamos


das práticas pedagógicas que as denominamos de compulsórias, ou seja, aquelas em que as
crianças são compelidas a executarem um “pacote” de projetos e ou outras atividades
(sequenciadas ou não) pensados fora delas. Daí, envidamos esforços teóricos e
metodológicos na busca pelos princípios da autoformação na proposta curricular das
crianças, o que sabemos não se tratar de uma perspectiva passível de modelagens, pois,
como nos diz Macedo (2013, p. 120), “a criança inteira se movimenta em seus processos
formativos”.
Em nossa experiência, ao compreender a formação em sua complexidade, o currículo
vem sendo rediscutido pela comunidade da Escola X como um texto em aberto, em
(re)escritura em toda a sua processualidade. À moda de um livro, referenciando-nos em
Deleuze e Guatarri (1995), para quem, “num livro, como em qualquer coisa, há linhas de
articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também de fuga,
movimentos de desterritorialização e desestratificação” (idem, p. 18), vamos nos tornando
sensíveis aos fluxos que vão se tomando em toda a prática curricular. Com isso, não dizemos
de uma prática espontaneísta, ou mesmo laissez-faire; ao perspectivar o currículo à maneira
de um texto, narrativo, buscamos compreendê-lo em sua forma rizomática, aberto às
multiplicidades que, segundo os autores citados, tem entradas múltiplas, é multiplicidade.
Nesse sentido, a pessoa humana (re)aparece em seu processo de individuação, ou seja, em
sua condição de indivíduo vivo, que vai se configurando em estados individuados e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 962


singulares do ser (PEREIRA, 2013). Essa perspectiva de currículo altera as formas de
acompanhamento e registro das crianças, deixando emergir uma noção de vida em devir, de
uma existência humana se constituindo, em fases, num contínuo tornar-se. Disso resulta a
nossa necessidade de incentivar as crianças a produzirem seus portfólios autobiográficos,
uma vez que estamos convencidos de que narrar é inserir-se no mundo e inscrever-se nele.
Reconhecemos que a escola e suas práticas são campos vivos de pesquisa e de
produção de conhecimento, por isso, o processo de implantação dos portfólios
autobiográficas na prática curricular com as crianças tem produzido dados caros para o
campo das pesquisas autobiográficas, sobretudo, por estarem transformando em ato as
possibilidades virtuais das escritas de si, na infância. Dessas palavras introdutórias,
assumimos os movimentos interpretativos e, neste ensaio, propomos uma produção em
aberto (situação que queremos manter a fim de manter aceso o diálogo) e, por isso, o que
por ora apresentamos são discussões em composições, as quais têm nos permitido dizer das
possibilidades da autoformação na infância.
Para realizarmos este trabalho tomamos como referência os registros produzidos
pelas crianças de 06 a 08 anos, no Ciclo de Infância I (correspondente aos 1º, 2º e 3º anos do
ensino fundamental), bem como os depoimentos das professoras, de familiares e da
coordenação pedagógica, ao longo do ano de 2013, objetivando compreender a importância
dos portfólios autobiográficos produzidos pelas crianças em suas itinerâncias formativas,
escolares, a fim de melhor compreendermos os seus processos individuais de aprendizagem
nos caminhos de sua autoformação.

E no fazimento curricular, o momento-charneira: a busca pelo princípio da (auto)formação


na infância

Como já dissemos, na Escola X já havíamos dado os primeiros passos em direção a


uma proposta curricular que trouxesse o princípio da formação humana como seu fundante.
Sabemos que a escola tem como uma de suas finalidades históricas a transmissão do
conhecimento produzido pela humanidade em sua forma sistematizada, mas isto não basta
quando nos comprometemos com a formação do humano. A nossa defesa vai ao encontro
da formação humana em sua integralidade; desejamos a construção de uma escola em que
as crianças possam ir se individuando, tornando-se, num contínuo devir, autoras e coautoras
de si. Concordando com Macedo, dizemos que:

O ator/autor social criança é um Ser que pensa e deseja, altera-se autoriza-se em


meio às possibilidades e limites da instituída e instituinte conviviabilidade social, é
um sujeito contextualizado, portanto, está inserido numa classe social, numa
família, numa cultura e, não raro, cultua uma religiosidade e, nesses contextos,
produz seus etnométodos. (MACEDO, 2013, p. 121).

Então, considerando esse Ser ator/autor social, de quem nos fala Macedo, uma das
coisas que nos intriga é a ausência das crianças nas definições curriculares, por mais que se
diga que no contexto de sala de aula elas “participam”. A participação das crianças na escola
não pode estar confortável no sentido comumente observado, ou seja, como executoras das
atividades propostas, ainda que motivadas para tanto. A participação deve ser um
movimento proativo desses sujeitos, visivelmente curriculantes em seu processo formativo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 963
Para Macedo (idem, p. 118-9), “a criança concreta e seus interlocutores aparecem também
como estruturantes do currículo, porque capazes de descritibilidade, de inteligibilidade e de
analisibilidade curriculares”. São necessárias situações em que as crianças falem de si, de
suas experiências escolares, de suas aprendizagens. Ao assim fazerem, as suas narrativas
expressam importantes compreensões de currículo e de mundo. Também as avaliações
escolares não podem ser mantidas em sua forma verticalizada, de um professor/ uma
professora sobre elas. O que as crianças pensam do seu processo formativo? Como elas
dizem de si e da sua formação escolar? Quais as atividades que mais ajudam na sua
aprendizagem? Essas questões precisam atravessar a prática curricular, a atividade
educativa, sobretudo, se entendemos a educação como um acontecimento, ou
acontecimentos na vida do sujeito.
Sem dúvida, no contexto da Escola X, essas questões nos fervilhavam intensamente
as reflexões. Entramos num momento-charneira224; já não cabiam mais as práticas
unilaterais, uma vez que a nossa proposta havia ganhado velocidade em direção à formação
humana. Claro estava que a formação do humano, da pessoa humana, não se encerraria na
inculcação e na modelagem. Sabíamos da importância de trazer a voz e as experiências dos
sujeitos para a constituição de si e de sua relação com o mundo. Por isso, partimos em busca
de novas epistemologias de formação. Nesse movimento de reflexividade, fomos afetados
pelo movimento de biografização, no qual nos debruçamos em suas ressonâncias na prática
escolar com as crianças. A prática cotidiana nos revela que as crianças têm histórias para
contar, que podem pensar sobre suas experiências, suas aprendizagens e, sobretudo, que
podem tomar consciência de seus processos formativos. Segundo Delory-Momberger,

É a narrativa, enquanto gênero do discurso, que constitui não somente o meio, mas
o lugar dessa operação: a vida tem lugar na narrativa e tem lugar como história. O
que dá forma ao vivido e à experiência dos homens são as narrativas que eles
fazem desse vivido e dessa experiência. A narrativa não é, então, apenas o sistema
simbólico de que os homens dispõem para exprimir o sentimento de sua existência:
o narrativo é o lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e
se experimenta sob a forma de uma história. (DELORY-MOMBERGER,2012, p. 40).

Narrar suas historias e dar forma a sua existência são atividades formativas e
constitutivas de si. Como diz Macedo (2013, p. 134), “é inconcebível um cérebro e uma
mente separados de uma história de vida”. O humano se faz, desfaz e refaz também pelo
discurso que produz de si. Não temos dúvidas de que as crianças podem reconhecer as suas
marcas, ou seja, os “estados inéditos que se produzem em nosso corpo, a partir das
composições que vamos vivendo. Cada um destes estados constitui uma diferença que
instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que as marcas são
sempre gênese de um devir” (ROLNIK, 1993).
Então, seguindo e fazendo interlocução com a abordagem biográfica, pudemos
perceber que “é sempre a própria pessoa que se forma e forma-se à medida que elabora
uma compreensão sobre o seu percurso de vida: a implicação do sujeito no seu próprio
processo de formação torna-se assim inevitável” (NOVOA, 2010, p. 168). Disso resultou a
opção em assumir os portfólios autobiográficos das crianças como dispositivos de formação.

224 Os momentos-charneira são aqueles que se caracterizam por ser o “divisor de águas”, um
acontecimento que impulsiona outros movimentos (JOSSO, 2004).
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Vários desafios se nos abriram, contudo, o menor foi a aceitação da proposta pelas crianças.
Elas deram sentido ao que lhes foi proposto.

A busca pela autoformação e as aproximações conceituais

Não creditamos ao portfólio a sua exclusividade enquanto único instrumento válido


de avaliação na/da prática escolar, mas, certamente, é preciso dizê-lo como um dispositivo
formativo promissor. Se por avaliação entendemos o processo de acompanhamento do
desenvolvimento das aprendizagens pelos sujeitos a fim de possibilitar as mediações em
direção à evolução do conhecimento, temos que o portfólio se mostra em sua
potencialidade, justamente por se constituir em registros individuais e, portanto, singulares,
desses movimentos. Entretanto, reconhecemos que isso não é tudo; é preciso dizer do nosso
entendimento sobre o portfólio.
Para nós, o portfólio não se trata de um ajuntado de produções escolares,
selecionadas como as melhores produções das crianças. Não basta reunir as atividades
realizadas, com maior ou menor capricho, é preciso refletir sobre o feito, sobre as marcas,
sobre a implicação dessas atividades no processo formativo do sujeito ao realizá-las. Como
nos alerta Macedo (2013), o devir-criança nos ajuda a compreender como as crianças
constituem realidades, como constituem a si mesmas com seus etnométodos que, segundo
Macedo (2004, p. 111), referindo-se à Garfinkel, são métodos utilizados pelas pessoas, em
suas vidas ordinárias, para definir suas situações de ações, para ordenar suas atividades,
para tomar suas decisões, para exibir condutas racionais, regulares, típicas. As maneiras com
as quais as crianças resolvem seus problemas cotidianos e como criam realidades é um ato
criativo e inventivo de si e de realidades. Portanto, elaborar o seu próprio portfólio é fazer
uma narrativa de si, é produzir-se, é (auto)referenciar-se; é inscrever-se na história. Quando
uma criança de seis anos, ao referir-se à proposta da elaboração dos portfólios, nos diz: “vou
poder mostrar para meus filhos como foi a minha escola”, ela nos fala, de outra maneira,
que fazer registros de suas experiências na/com a escola é estar no mundo e relacionar-se
com ele, é territorializar-se na história, sem fixar-se nela; é desterritorializar-se e
reterritorializar-se; é interpretar o mundo. Têm acontecimentos na vida dos sujeitos que não
aparecem nas respostas dadas às questões propostas pelas disciplinas escolares, quase
sempre direcionadas para o uno, à monologia da interpretação, mas, em muitos casos se
constituem como um pano de fundo para algumas dessas respostas, às vezes
aparentemente “vazias” de sentido, quando lidas, isoladamente, pelos professores. A vida é
polilógica, as narrativas biográficas assim nos faz perceber.
A existência do humano se inscreve em seu tornar-se, eu seu vir a ser o que não se
vinha sendo, até que as marcas experienciais, fluxos de intensidades, sejam suficientemente
capazes de alterar o que se estava sendo, permitindo a emergência do que antes se
encontrava no plano da virtualidade. Essa metaestabilidade do ser, explicada por Pereira
(2013) como o estado de um sistema longe do equilíbrio, quer seja estável ou instável,
carregado da energia do devir, que traz ao mesmo tempo a ordem provisória e a entropia,
nos mantém, a todo tempo, disposto ao movimento contínuo do eterno retorno, retorno a
um outro que difere de si mesmo, como nos diz Deleuze (2006). Um outro que retorna ao
ser o que se é, como nos fala Nietzsche. Tornar-se o que se é, segundo Larrosa, em Nietzsche
e a educação (2009, p. 66), “[...] se formula em uma autobiografia que faz explodir o autos,
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como sujeito substancial e estável, e o bios como vida própria, pessoal, capaz de se
submeter ao fio de um relato ‘razoável’. E faz explodir, também, a escritura, a grafia, em um
feixe de centelhas incandescentes”. É um fluxo de vir a ser, portanto, de formação, em seu
sentido de porvir, de multiplicidades.
Pineau nos fala de três forças de formação, a heteroformação (a ação dos outros
sobre o sujeito), a ecoformação (o meio ambiente) e a autoformação. Sobre esta, tratando-
se da força do eu, nos diz que ela extravasa as estratificações sociais e educativas
tradicionais, vai ao encontro da autonomização. Pensar nos portfólios é, pois, buscar a
autoformação que, para Pineau (2010), trata-se de uma perspectiva em que cada um vai se
apropriando do seu próprio poder de formação. Temos numa das narrativas de um dos
familiares a seguinte percepção: “Fiquei muito feliz ao chegar no Plantão da I unidade e me
deparar com o portfólio do meu filho, um trabalho cuidadosamente construído pelas suas
próprias mãos. É extremamente gratificante perceber cada etapa superada, cada desafio
vencido”. Essa fala nos sugere o caráter autopoiético do ato educativo, ou seja, a natureza
inventiva, criativa e de feitura de si, no momento em que, cuidadosamente, a criança
registra uma fase de si, com suas próprias mãos. Desconfiamos que ela tenha recorrido a
muito mais que as próprias mãos, aquela criança mobilizou seus etnométodos para superar
as etapas, vencer os desafios que lhes foram propostos.
Na autoformação, parece-nos impensável que alguém diga para a criança sobre ela
mesma. Na medida em que as crianças vão compreendendo o seu processo, vão
reivindicando o seu direito de falar de si, para si e para os outros que não elas mesmas. Na
prática escolar vai se tornando difícil descrever unilateralmente as crianças, dizer sobre elas
para elas mesmas (ou para seus cuidadores, adultos). A quem caberá dizer se elas foram
“melhores” nisso ou naquilo? Os pareceres descritivos que os professores fazem sobre as
crianças e sobre seus processos de aprendizagem vão perdendo a sua rigidez sob o ponto de
vista do sentido formativo do Ser. O discurso descritivo de alguém (quase sempre o adulto)
sobre um outro alguém (a criança) vai se mostrando em sua fragilidade. Ao falarem de si e
de seus processos, de suas afinidades e afetos, a criança vai narrando suas aprendizagens,
vai biografando a sua existência, fazendo-se, refazendo-se e, com isso, vai
desterritorializando os pareceres descritivos escritos pelos adultos sobre elas. Ela (re)tomará
sua formação para si mesma; não caberá mais a exclusividade da heteroformação no
contexto escolar.
A formação, portanto, é percebida em seu movimento complexo, em que o sujeito
possa constituir-se como um ser vivo, numa unidade viva. Para Pineau, a formação tem uma

[...] função sempre em ação, pois a unidade viva nunca é evidente. É sempre
atravessada e questionada por dois tipos de pluralidades: uma pluralidade
sincrônica de trocas incessantes dos seus múltiplos componentes internos e
externos e uma pluralidade diacrônica dos diferentes momentos, das diferentes
fases da transformação do ser (PINEAU, 2010, p. 101).

A compreensão destas pluralidades sincrônica e diacrônica, que nos fala Pineau, nos
faz perceber que os portfolios autobiográficos devem acompanhar o processo educativo das
crianças ao longo de sua vida escolar. Assim, na Escola X, decidimos manter os registros na
instituição, ao longo da formação das crianças e jovens, até que eles concluam sua
escolaridade básica. Desta forma, os registros anteriores, atualizados a cada ano, seguirão os
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anos posteriores. Exemplificando: as narrativas produzidas pelas crianças de seis anos ao
longo do primeiro ano do Ensino Fundamental lhes acompanharão no segundo ano e assim
sucessivamente. A cada ano, a proposta é que as narrativas sejam revisitadas e atualizadas,
acompanhando um fluxo de um ser que devem, que se constitui em suas itinerâncias, que se
compõe a cada fase de uma vida sentida. A criança, ao falar, aproxima-se de um artesão que,
como nos fala Rancière (2005, p. 96-7), “no ato da palavra, o homem não transmite o seu
saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa. [...] É preciso que o
artesão fale de suas obras para se emancipar; é preciso que o aluno fale da arte que quer
aprender”. É isso: a criança precisa continuar falando. Os portfólios autobiográficos não
podem ser reduzidos a artefatos de modismos pedagógicos, sendo implantados e/ou
retirados e ou/substituídos, irrefletidamente.

Um caminho que se faz caminhando... a implantação dos portfólios autobiográficos e suas


ressonâncias na prática escolar

A pesquisa em educação requer compromisso e posicionamentos epistemológicos e


metodológicos. É uma aventura que vai se desdobrando a cada passo, a cada caminho
caminhado, cuja descrição densa nos dá a sensação de segurança para nossos processos de
interpretação e compreensão do fenômeno, ainda que reconheçamos sua opacidade. Desde
o início deste estudo, já tínhamos consciência de que se tratava de uma pesquisa biográfica,
articulando as histórias de vida às aprendizagens dos sujeitos, bem como suas ressonâncias
na prática escolar. A pesquisa biográfica é uma entrada num campo complexo das
subjetividades.
Não começamos esse trabalho de investigação com um roteiro rígido, fechado,
buscando respostas definidas num a priori traçado em hipóteses. Como bem poetizou
Antonio Machado, “Caminhante, são teus rastos/ o caminho, e nada mais;/ caminhante, não
há caminho, faz-se caminho ao andar”. A essa altura, com os portfólios autobiográficos em
andamento, interessávamo-nos, cada vez mais, em compreender de que maneira os
portfólios autobiográficos produzidos pelas crianças contribuíam com os processos
individuais de aprendizagem nos caminhos de sua autoformação. Então, iniciamos o
trabalho no ano de 2013 com o olhar mais atento e a escuta mais sensível. Passamos a
acompanhar as narrativas das crianças, os depoimentos dos familiares, as narrativas das
professoras e assim fomos produzindo os dados para que nos fossem possíveis as
interpretações que ora fazemos. Acompanhamos, ainda, todo o processo de construção dos
portfólios pelas crianças e as orientações didáticas que eles recebiam a cada atividade.
As primeiras experiências com os portfólios nos trazem as referências de um
ajuntado de atividades. A proposta da Escola X avança quando pede para as crianças
selecionarem entre as atividades realizadas ao longo da semana aquelas que mais lhes
marcaram, por quaisquer motivos, independente da disciplina. Elas, então, escolhiam e
justificavam suas escolhas. Pareceu-nos muito interessante, mas, ainda assim, não
satisfatório. Dos resultados dessas primeiras orientações didáticas muitas questões
emergiram: as crianças vão ficar escolhendo atividades o ano inteiro? E se eles se cansarem?
E se elas só escolherem de uma matéria? Essas escolhas lhes levariam à autoria, à
autoformação?

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 967


Decidimos, no segundo semestre do mesmo ano, alterar as orientações. Desde
então, propusemos que eles falassem mais de si, de suas escolhas, de suas caminhadas. Eles
ficariam “livres” para registrarem suas itinerâncias. Sentimos algumas resistências,
sobretudo de alguns professores, que se sentiam mais seguros em direcionar a ação.
Contudo, com o tempo, a margem do papel (muitos professores ainda insistiam na
organização, na forma) foi sendo retirada, as cores dos papéis foram aparecendo nas
produções e as crianças começaram a se autorizar. Alguns portfólios se mantinham (por
opção de alguns docentes ou mesmo de algumas crianças) como registros de atividades
escolares, outros ousavam cada vez mais na biografização da proposta. Percebemos que os
textos iam ficando cada vez maiores e com mais detalhes das narrativas. “Gosto mais de
Ciências, porque a professora faz mais experiências”, “Eu adoro escrever”, “Quero ser
engenheiro como o meu pai”. As professoras, por sua vez, diante das narrativas das crianças
e da exposição das suas afinidades em seus portfólios, começaram a alterar as suas ações, as
suas práticas. As propostas de atividades começaram ser modificadas. Já não lhes bastavam
seus próprios julgamentos sobre o que era uma “boa atividade”, mas lhes importava o que
as crianças diziam sobre as atividades que eram propostas. Apesar de não dizerem sobre a
melhor atividade que as professoras elaboravam, as crianças falavam sobre as que melhor
elas faziam e porque realizavam com mais envolvimento, alterando, significativamente, o
planejamento docente. “O que as crianças gostam mais?”, “Por que a disciplina de Ciências
encanta mais?”. Uma das professoras, numa reunião de planejamento e avaliação da ação,
nos disse: “Eu procuro propor as atividades que eles dizem que gostaram mais”. As
professoras falavam o quanto passaram a conhecer mais de cada criança. “Eu nem
imaginava que ele (uma criança da turma) tivesse visto a atividade assim”. Elas [as
professoras] começaram a entender que as aproximações das crianças com determinadas
questões tinham a ver com as questões relacionais que estabeleciam não somente na
escola, mas noutros contextos sociais; que as escolhas e afetamentos das crianças são,
também, ressonâncias de outras vivências igualmente formativas para as crianças.
Dizemos que os portfólios autobiográficos faz-nos perceber acontecimentos
comumente banalizados e inviabilizados no viver a escola. Dentre vários relatos, chamou-nos
a atenção a narrativa de uma criança que deu visibilidade a um dos momentos ruins que
viveu na escola, marcando o seu ano escolar (já estava no final do ano letivo). A insatisfação
daquela criança de seis anos estava no fato “cruel” de um colega de outra turma ter-lhe
retirado (ele fala roubado) a bola. Ele interpretou o acontecimento vivido como uma
violência, ele estava triste, sentia-se impotente. A perda da bola não foi uma boa
experiência. Houve um sofrimento, uma perda. O colega lhe fez um mal. Ele sentiu-se
lesado. Foi mais que a bola, enquanto objeto, mas um sentimento que tinha pela bola, pelo
jogar bola, pelo desprazer de acabar com aquela brincadeira, ao menos naquele momento.
Uma narrativa sem importância? Sim, se a perspectivarmos sob o ponto de vista de que a
escola tem o papel exclusivo de transmitir os conteúdos sistematizados historicamente pela
comunidade científica, de modo que “perder” uma bola em nada tem a ver com o ato
educativo. Ao contrário disso, a narrativa não perde a importância se a interpretarmos sob o
viés da formação humana, dos valores sociais e éticos construídos a partir daquela
experiência. A produção da subjetividade, como nos diz Pereira,

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[...] responde a uma orquestração de forças, visíveis e invisíveis, que compõem o
mundo do sujeito. [...] aquilo que sou agora é uma forma que resulta de certa
combinação de traços acumulados em minha vida, revitalizados pela interferência
de forças outras, visíveis (oriundas do universo concreto das práticas) e invisíveis
(oriundas do campo das virtualidades, das forças vivas no mundo). (PEREIRA, 2013,
p. 113).

Uma narrativa como a que citamos aqui incita-nos ao seguinte questionamento: o


que se ensina e se aprende na escola se um acontecimento dessa natureza for,
constantemente, naturalizado? De que maneira essas práticas ressoam na construção das
subjetividades dos sujeitos? Como os sujeitos, singulares, interpretam a sua vida escolar?
Essa discussão das forças visíveis e invisíveis que nos constituem como sujeitos, nos
remetem a microestética do ato educativo. Para Pereira (idem), a microestética refere-se ao
modo como os indivíduos compõem a si mesmos, na produção de estados de singularidades
por ações desejantes, de diferença. Contudo, como bem nos adverte o autor, não podemos
pensar a subjetividade sem pensar na ordem da coletividade, na presença e na convivência
com outros sujeitos encarnados que nos afetam e a quem afetamos. Com isso, podemos
retornar à narrativa da criança que se sente infeliz por ter perdido o direito de brincar com a
sua bola, por ter sido lesado por um colega, para dizer que situações ordinárias acontecem
no cotidiano escolar, invisíveis (ou invisibilizadas), que afetam significativamente a produção
de subjetividade na criança, na maneira como relacionam-se com outras crianças, com os
adultos, como interpretam a convivência escolar e outras multiplicidades.

Para manter o diálogo em aberto

Iniciamos nossas discussões trazendo à baila a importância de fazer ouvir as vozes


das crianças nas (re)formulações curriculares. Sabemos que não falamos de uma tarefa fácil,
sobretudo, quando nos encontramos em realidades historicamente construídas, em que as
crianças são despossuídas de suas potencialidades de criar realidades e de inscreverem-se
na história. Temos nos discursos tradicionais que as crianças são incapazes de pensar-se e
pensar seu processo formativo, o que justificaria as propostas curriculares definidas para
elas. Educar uma criança, no limite dessas reverberações, limitar-se-ia a prepará-las para a
vida adulta, quando, supostamente, teriam condições de serem autoras e coautoras de suas
próprias vidas. Andamos na direção contrária desse entendimento. A nossa compreensão é
da criança como indivíduo capaz de refletir a sua vida e a sua existência, de narrar-se, de
produzir-se, de inscrever-se no mundo. Assumindo tal compreensão, dizemos que as
crianças podem assinar a autoria e a coautoria de seus processos formativos e, portanto,
envidamos esforços no sentido da autoformação, ou seja, quando o sujeito toma para si a
feitura de si, de suas compreensões, de sua existência no mundo.
Com esse entendimento de criança as propostas curriculares deixam de ser vistas
como meras organizações prescritivas, de proposições disciplinares, passando a textos
abertos, sendo reescrito a cada momento, em que as crianças, diretamente envolvidas no
processo formativo, vão assumindo a pro-atividade. Não nos satisfaz a ideia de um
planejamento curricular para as crianças, mas com as crianças. Desta forma, compartilhando
da concepção curricular alinhada aos princípios da formação humana, em sua integralidade,
envidamos esforços na elaboração, pelas próprias crianças, dos portfólios autobiográficos,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 969
assim denominados porque entendemos que narrar a própria vida e seus processos
formativos é uma condição do existir humano. Narrar a própria vida e seu processo
formativo é compor-se, é construir a sua própria história e isso, para nós, é de grande
importância na formação das crianças. É necessário e urgente que as propostas formativas
coloquem as crianças no centro de seus projetos, como ser de direitos, cujas narrativas,
atravessadas de sentidos microestéticos, vão lhes permitindo a construção de suas
subjetividades, suas singularidades.
Entendemos como violência pedagógica subjugar a criança num projeto formativo
imposto, como se ela fosse um ser desprovido de possibilidades autoformativas. Daí a
emergência das escritas de si através dos portfólios autobiográficos, os quais vêm se
mostrando como importantes dispositivos de autoformação por se configurarem num
“espaço” em que as crianças produzem seus discursos, refletem seus processos formativos,
descrevem seus afetamentos, percebem a si mesmas em sua itinerância escolar. Além disso,
esses documentos têm trazido ressonâncias para a prática pedagógica escolar, alterando o
planejamento e a forma de avaliação. Se numa abordagem tradicional são os docentes que
descrevem e dão os pareceres sobre as aprendizagens da criança, com os portfólios
autobiográficos outas perspectivas se nos mostram. As crianças são capazes de dizerem de si
mesma, de suas aprendizagens e reivindicam sua autoria em seu processo formativo.
Ao fomentar as narrativas das crianças em seus processos formativos, entendemos
que os portfólios autobiográficos têm muito a nos dizer enquanto dispositivo de
autoformação para as crianças e suas itinerâncias escolares. As experiências do ano letivo
de 2013, somadas as interpretações dessas experiências a partir desse estudo, levaram a
Escola X a ampliar a proposição dos portfólios como dispositivo autoformativo, propondo
para o ano de 2014 os portfólios autobiográficos no currículo da Educação Infantil. Parece-
nos que tal decisão se apresenta como uma ousadia epistemológica e metodológica, cujas
ressonâncias notar-se-ão nas histórias de vida desses sujeitos.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 971


Narrativas da formação inicial à prática docente: dilemas e desafios entre a teoria e a
prática

Enoilma Simões Paixão Correia Silva


UNEB/IAT
enoilma@gmail.com
Tânia Regina Dantas
MEPEJA/UNEB
taniaregin@hotmail.com

Diante dos avanços significativos que vêm ocorrendo nos campos da formação inicial do professor, esse artigo
abordará algumas nuances do saber docente e da prática docente tendo como eixo a vinculação teoria e prática.
Trata de narrativas de professoras descrevendo os dilemas e desafios encontrados no percurso da formação inicial à
prática docente. Assim como, fará alusão a alguns conceitos e categorias construídas nesses campos, fazendo uma
articulação entre saber e prática docente com o objetivo de contribuir para a maior compreensão da especificidade e
função da prática educativa na atualidade e para a elucidação de categorias e conceitos que fundamentem
propostas de formação inicial docente, direcionadas por uma perspectiva teórico-epistemológica crítica. Apresenta
discussão de pesquisas que fazem referência à prática educativa do professor, no que diz respeito à vinculação entre
os saberes específicos e os saberes pedagógicos na atuação docente; investiga o processo de formação inicial
docente, levando em consideração a amplitude de saberes que o processo de ensino-aprendizagem exige para a
prática docente. Esta pesquisa pautou-se na temática formação do educador, no nível de Pós-graduação stricto
sensu, reconhecendo concepções, características e noções dos saberes pedagógicos importantes para a docência. A
análise converge para a formação inicial do docente da educação básica no âmbito do ingresso deste no exercício do
magistério.
Palavras-cahve: Narrativas, Formação inicial; Prática docente.

Introdução

A ideia que estimulou a proposição deste artigo nasceu durante as aulas da disciplina
Formação do Educador, que faz parte do currículo do curso de Mestrado em Educação e
Contemporaneidade, oferecida pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), tendo como
docentes a Profª. Dra. Sandra Regina Soares e a Profª. Dra. Tânia Regina Dantas, sendo esse
trabalho solicitado como uma das atividades no processo de avaliação. A construção desse
artigo foi um desafio muito rico, podendo recolher narrativas sobre a formação inicial de
estudantes da pós-graduação com diferentes cursos, ou seja, duas alunas Licenciadas em
Matemática, uma Licenciada em Letras Vernáculas e uma Licenciada em Pedagogia. A
disciplina proporcionou a discussão deste trabalho em várias aulas contando com a
colaboração de colegas, do grupo e das docentes para a sua construção.
O maior desafio foi chegar a um consenso sobre a temática desse trabalho, já que
cada uma apresentava uma tendência para discorrer sobre algo próximo da sua área de
atuação; e desse modo, a partir de encontros, conversas e discussões percebemos um ponto
em comum destacado pelas autoras, todas apresentavam inquietações a respeito dos
dilemas e desafios entre a teoria e a prática encontradas no seu processo de formação
inicial, e a partir disso, resolvemos fazer um estudo, que confrontasse as vivências enquanto
graduandas no processo de formação inicial com as teorias encontradas acerca dessa
temática, com as experiências vividas ao longo de suas trajetórias na formação profissional,
especialmente no que diz respeito à práxis pedagógica.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 972


Este tema, portanto, originou-se das experiências e inquietações das autoras no
âmbito do trabalho com a educação básica. Decorre do conhecimento desse problema o
objeto da pesquisa aqui projetado no contexto da avaliação do processo da formação inicial
dos professores.
No bojo dessa discussão acerca dos dilemas e desafios sobre a teoria e a prática no
processo formativo, foram suscitadas críticas em relação ao final dos anos 90 a respeito da
formação de professores, direcionado ao currículo dos cursos de Licenciatura, “passando a
exigir um currículo mínimo, composto por um núcleo de matérias com vistas a uma
adequada formação cultural e profissional com ênfase na formação do educador” (NETO,
2007, p. 2). Desta forma, o eixo curricular foi permeado pelos conteúdos específicos (O que
ensinar) e a didática (Como ensinar). Apontamos para a fragilidade desse futuro docente,
com sua formação lacunada em aspectos tão essenciais à práxis pedagógica. Reforçamos o
que já era pontuado por Gatti (2011, p. 89) ao afirmar que “essas lacunas mostram que as
políticas relativas à formação inicial dos docentes no Brasil, no que se refere às instituições
formadoras e aos currículos, precisariam ser repensadas”. Esta afirmação é resultante de
processos de pesquisa e de avaliação como indica Gatti:

Para conhecer as características dos estudantes brasileiros que frequentam os


cursos que conduzem à docência, foi feito uso do questionário socioeconômico do
Exame Nacional de Cursos (Enade), aplicado pelo Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior do MEC aos iniciantes e concluintes dos cursos presenciais de
Pedagogia (...), Biologia, Física, Química, Matemática, História, Geografia e Letras
(GATTI, 2009, p. 157).

Vale destacar também que, um obstáculo se apresenta quando o profissional da


educação inicia suas funções: uma crise de identidade, que fica evidente em suas práticas
desenvolvidas no interior da sala de aula. O professor é o grande agente do processo
educacional e a alma de qualquer instituição de ensino.
Hoje, boa parte das discussões sobre a educação não se pauta somente no acesso do
aluno à escola, mas na sua permanência no espaço escolar e em sua aprendizagem. Nesse
contexto, a formação de professores é um assunto que consideramos interessante, já que o
avanço no processo ensino aprendizagem depende, em parte, da atuação do professor.
Assim sendo, a temática da formação de professores, com seus dilemas e desafios, é de
suma importância quando nos propomos a discutir a profissão professor.

Percurso Metodológico

Este texto é descritivo e exploratório com abordagem qualitativa cujos sujeitos


observados foram quatro docentes de três licenciaturas distintas: Licenciatura em
Matemática, Licenciatura em Letras Vernáculas e Licenciatura em Pedagogia, que
atualmente lecionam na educação básica.
O estudo descritivo com abordagem qualitativa teve como propósito compreender os
fenômenos na sua totalidade e no contexto em que ocorreram pelo conhecimento ou
estudo do problema. A pesquisa qualitativa foca na visão social, não se preocupando com a
quantidade, mas com o conteúdo do trabalho. Sabemos, porém, que a abordagem
quantitativa pode ser articulada com pesquisas qualitativas, elas podem se complementar

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 973


para que o trabalho fique mais completo. Na pesquisa quantitativa, o foco são os dados
quantificáveis, as cifras, a mensuração, as relações causais, o “porquê”; na qualitativa, o
centro é a experiência individual diante de situações vivenciadas, partindo do senso comum
para a construção do significado, o “como”. Diante disso, nossa opção pela pesquisa
qualitativa se fundamenta pela especificidade e objetivo deste trabalho.
A metodologia de trabalho usada para elaboração desse texto foi uma pesquisa
bibliográfica, com análises acerca da formação de professores com enfoque na teoria e
prática e como instrumento de coleta de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada,
pois; segundo Boni e Quaresma (2005) a entrevista semiestruturada alia perguntas abertas e
fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto. O
pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente definidas, mas ele o faz em
um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal. Os registros obtidos nas
narrativas dessas professoras nos possibilitaram a análise dos modos como apreendiam a
sua formação inicial e os fatos marcantes que englobaram o percurso profissional Os
registros das falas foram transcritas logo após a entrevista e analisadas de acordo com a
definição de algumas unidades de análise, amparada pelos estudos sobre formação e prática
docente.
O ponto forte da metodologia escolhida foram as narrativas orais das professoras por
concordar com Goodson (2000 apud RIBEIRO; SOUZA, 2010) que enfatiza a importância da
escuta aos professores em processo de formação. As narrativas, segundo Souza (2004),
constituem-se como um importante instrumento de coleta de dados no contexto da
formação de professores uma vez que possibilitam o conhecimento das experiências em sua
base substancial. De acordo com o autor, “a arte de narrar inscreve-se na subjetividade e
implica-se com as dimensões espaço-temporal dos sujeitos quando narram suas
experiências”. (SOUZA, 2004, p. 159) As escritas de si permitem um estudo do modo como
os indivíduos dão forma às suas experiências e atribuem sentidos antes incógnitos em suas
vivências; é interessante ainda considerar como constroem a consciência histórica de si e de
suas aprendizagens no seu ambiente de trabalho. (PASSEGGI; SOUZA, 2011)
As narrativas coletadas no contexto da pesquisa aqui descrita possibilitaram uma
análise empírica do processo de formação das professoras entrevistadas em contraponto
com a formação que exercem no âmbito da educação básica. Como afirma Passeggi (2010, p.
21), as narrativas fundem-se em “uma escrita institucional na qual a pessoa que escreve faz
uma reflexão crítica sobre os fatos que marcaram sua formação intelectual e/ou sua
trajetória profissional”.
Concordamos também com Josso (2004, p. 49) para quem “as narrativas de
formação permitem distinguir experiências coletivamente partilhadas em nossas
convivências socioculturais e experiências individuais, experiências únicas e experiências em
série”. Extratos dessas narrativas são apresentados neste artigo com uma breve análise no
bojo da formação docente.
O resultado da pesquisa será utilizado em ambiente científico, na formação
continuada de profissionais em educação, bem como em apresentação em congressos,
simpósios e em debate acadêmicos.

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Um olhar sobre a formação do professor

A formação do professor tem sido abordada nos últimos anos sob diferentes
enfoques e em diversas instâncias acadêmicas, uma boa quantidade de estudos aponta para
a busca da qualidade da formação, centrados no aprimoramento de um instrumental
teórico-prático que considere a especificidade da ação educativa, muitos dos quais na
perspectiva da profissionalização docente. A este respeito, podemos destacar o trabalho
sobre um estado da arte conduzido por Gatti, Barreto e André (2011) acerca das políticas
docentes no Brasil, na qual se identifica e se analisa políticas educacionais relacionadas com
a formação inicial e continuada de professor e com a carreira docente.
A sociedade atual atravessa um momento de céleres transmutações tecnológicas e
científicas que implicam a profissão docente uma complexa missão. O papel do professor vai
além do mero transmissor de conhecimentos, é preciso atuar como um provocador de
discussões e animador de debates.
De acordo com Imbernón (2009), a formação do professor assume um papel que
transcende o ensino preparatório para atualizações pedagógicas e científicas e passa a criar
espações de interações que instigam o desenvolvimento da verdadeira autonomia. Nesse
contexto, a formação precisa romper com tradições, inércias e ideologias para servir de
estímulo ao desenvolvimento do pensamento crítico e de práticas reflexivas.
Imbernón (2009) alerta que a formação do professor precisa agregar informações
curriculares, planejamento escolar e melhorias na condição educativa, que dependem
diretamente da aquisição de conhecimentos específicos e estratégias que, de fato,
favoreçam o trabalho didático na perspectiva de resolução de situações problemas gerais e
específicas relacionadas ao ensino. E acrescenta que “tudo isso supõe a combinação de
diferentes estratégias de formação e uma nova concepção do papel do professor nesse
contexto, o que obviamente não pode ser feito sem o envolvimento concreto dos docentes”.
(2009, p. 17-18)
Nessa perspectiva, vale destacar que os aspectos referentes à política educacional
brasileira e a profissionalização docente, são legitimados através da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/96; nesse âmbito, percebe-se a incorporação de
uma variedade de tendências advindas de fontes teóricas diferentes, algumas vezes
incoerentes, na medida em que essa instância busca legitimar seu discurso, assimilando
determinadas posições, presentes na sociedade e no próprio mundo acadêmico conforme
seus interesses e as finalidades definidas para a educação.
Em 2002, foram instituídas as Diretrizes Nacionais para a Formação de Professores
para a Educação Básica, orientando que a prática deverá estar presente nos cursos de
licenciatura e permear toda a formação do futuro professor. Esse documento apregoa que o
preparo profissional docente deve garantir a formação de competências (pessoais, sociais e
profissionais) necessárias à sua atuação nos diferentes níveis de ensino da educação básica
(BRASIL, 2002). Nesse contexto, os processos de aprendizagem devem “ser orientados pelo
princípio da ação-reflexão-ação tendo a resolução de situações-problema como uma das
estratégias didáticas privilegiadas.” (GATTI; BARRETO, 2009, p. 47).
No entanto, mesmo diante do que se preconizam tais diretrizes, foram criados cursos
de licenciaturas independentes, sem articulações prognósticas, visando interesses
institucionais diversos, desde a formação de repartições institucionais cristalizadas, a
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redução de custos, acarretando numa carência de perspectivas quanto ao perfil formador do
profissional docente. Muito embora, em seu projeto pedagógico adotem essas diretrizes
como referência, os cursos formadores de professores não seguem essas orientações em
seus currículos como deveriam.
Nessa conjuntura, diversos cursos têm como propósito a formação de professores,
mas estes saem destes cursos ainda despreparados para encarar a função docente,
desconhecendo a realidade que enfrentarão no exercício da sua profissão, oferecendo na
educação básica um ensino de qualidade duvidosa. Diante desse cenário, vemos como
imperativo uma reflexão empírica do nosso processo formativo em paralelo à formação
docente hoje oferecida nas instituições de nível superior e pelas universidades.
Tal formação deve ser caracterizada quanto à organização do trabalho docente na
sala de aula, pois a preocupação será identificar possíveis transformações que essa prática
acarretará no desenvolvimento do trabalho do professor.
Assim, exposto o problema que envolve a construção do que é ser professor, este
artigo tem como proposta investigar o processo da formação inicial dos professores, a partir
da seguinte indagação: Como é percebida pelas estudantes a relação teoria e prática no seu
processo de formação inicial? Essa é uma tarefa do professor: a mediação na formação de
alunos, visto que estes não se encontram prontos, precisa da interação dialógica com o meio
em que vive.
Dessa forma, optamos por um estudo com base na observação dos processos de
concepção do que é ser professor, no âmbito da própria formação, a fim de analisar melhor
as possíveis mudanças na formação de pessoas. Partindo dessa perspectiva, buscaremos
através desse trabalho investigar a relação entre os saberes teóricos e práticos no processo
de formação inicial docente, objetivando elencar possíveis lacunas entre teoria e prática na
atuação desse profissional na docência.

Professor: história e prática

Concepções sobre o ser professor

A função docente consolida-se na Idade Média com a presença de pessoas vinculadas


a igreja com a função de educar. Percebe-se que nesse momento da história uma pequena
parte de pessoas era letrada. O crescimento da burguesia favoreceu um salto para a
funcionalização da educação, a educação a partir desse momento não era apenas para os
nobres e pessoas religiosas, a classe média começa a crescer e clamar por conhecimento.
Com isso, desde o momento inicial percebemos que a educação não é neutra, ela está
totalmente vinculada a valores ideológicos, econômicos, políticos e sociais. Os docentes
sempre foram alvo de interesse por serem constituídos como profissão, ou pela igreja, ou
pelo estado. Não foi algo que se idealizou e defendeu como uma profissão, como acontece
hoje com alguns profissionais.

[...] como a profissionalização pode encerrar um argumento corporativista, que


identifica a autonomia com o isolamento e a não intromissão, ao mesmo tempo em
que pode ser uma exigência em relação aos professores como forma de obter sua
colaboração e obediência (seja com o conhecimento acadêmico ou com as políticas
sociais). (CONTRERAS, 2002, p.71-72)

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Pensando que a formação faz parte da história do professor, pretende-se mostrar
que, no processo de formação inicial, os professores não se apropriam passivamente dos
saberes instituídos na mesma velocidade demandada pelos processos formativos. Ao
contrário, as mudanças ocorrem em meio a tensões entre o que já sabem o que desejam
saber, o que podem efetivamente aprender naquele momento e o que vai emergindo,
enquanto necessidade, no processo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) propõem
orientações gerais sobre o básico a ser ensinado e aprendido em cada fase de escolaridade.

Essa educação geral, que permite buscar informação, gerar informação, usá-la para
solucionar problemas concretos na produção de bens ou na gestão e prestação de
serviços, é preparação básica para o trabalho. Na verdade, qualquer competência
requerida no exercício profissional, seja ela psicomotora, sócio afetiva ou cognitiva,
é um afinamento das competências básicas. Essa educação geral permite a
construção de competências que se manifestarão em habilidades básicas, técnicas
ou de gestão. (BRASIL, 2000, p. 17).

A respeito da formação do professor, vale destacar também algumas concepções de


professor: o professor profissional; o professor intelectual; o professor reflexivo. Os modelos
de formação docente estão vinculados à maneira como esta é idealizada e aos objetivos de
que tipo de profissional a sociedade quer ter. Pode-se buscar uma formação que atenda às
necessidades que a sociedade vier a apresentar, ou seja, que forneça instrumentos para que
se possa compreender a sua realidade, os seus movimentos e desvelar as suas contradições
para transformá-la qualitativamente a partir de mudanças quantitativas. Assim, a formação
de professores é concebida de diversas formas a depender da perspectiva dos vários autores
que produzem sobre a temática, gerando várias concepções de professor.
O professor profissional consciente do seu papel na formação do indivíduo, pesquisa
a sua própria prática. Segundo Kincheloe (1997, p. 179) “Pesquisar é um ato cognitivo” que
ensina o indivíduo a pensar num nível mais elevado. Nessa perspectiva, pesquisar a sua
própria prática é se afastar da visão de meros reprodutores daquilo que os teóricos
determinam. Para transformar a realidade de modo significativo, é necessário refletir sobre
as ações da sua própria prática, investigando os pormenores desse contexto. Esse professor
investigador deve estar atento a sua obrigação moral enquanto profissional e não perder de
vista o seu compromisso com as comunidades, considerando o cenário da sua competência
profissional e a sua ética enquanto docente.
Na concepção de professor intelectual, de acordo com Giroux (1997), o professor é
um sujeito crítico, investigador, questionador, no sentido de buscar entender o que está
acontecendo, com a finalidade de contribuir efetivamente com o desenvolvimento da
aprendizagem. O professor intelectual é problematizador movido pelo seu compromisso
político, moral e ético com o outro.
Já na concepção de professor reflexivo, Schön (1995) defende que o professor, ao
investigar a sua própria prática, pensa na prática sobre a prática e reflete na ação sobre a
ação. Para tanto, os professores precisam ter consciência das práticas de ensino que lhes
orientam e a eficácia de sua aplicação, não sendo possível a prática reflexiva ser realizada
numa conduta intuitiva.
Vale destacar que, apreender os professores como transformadores é possibilitar que
utilizem o pensamento crítico, ou seja, a sua capacidade de problematizar aquilo que nos é
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dado como verdade, no sentido de pulverizar esse pensamento voltado para reflexão e
libertação, em favor da mudança e da possibilidade.

Formação inicial e a identidade de docente

A escola é um lugar público, no qual os estudantes desenvolvem o conhecimento e as


habilidades necessárias para viver em uma democracia autêntica. Nenhum ser humano
nasce pronto para se tornar humano, ele precisa de uma base para se tornar humano.
Sabemos que na escola o estudante encontra a maioria da parte dessa base que o irá
constituí-lo como pessoa pensante, afinal o aluno transita pela escola entre nove anos a
doze anos, um bom tempo para o processo de formação pessoal.
Frequentemente esses professores iniciam o programa de formação com crenças
pessoais a respeito do ensino, com imagens de professores pelos quais tiveram um dia. Eles
se espelham nesse conceito que trazem do que é ser um bom professor, constroem imagens
de si mesmos como professores e a memória de si próprios como alunos.

[...] os professores tendem a reproduzir mais as experiências provenientes da sua


vivência como estudantes do que as teorias com as quais entra em contato, um
dado preocupante é o extremo desequilíbrio, nos cursos de formação docente,
entre as abundantes aulas expositivas e a absoluta escassez de aulas práticas em
todos os cursos. [...] um curso feito à base de apostilas e resumos, e cópias de
trechos ou capítulos de livros, é basicamente o que forma a maioria dos atuais
estudantes [...] (GATTI; BARRETO, 2009, p.175).

É bastante compreensível que os professores levem suas crenças para o contexto da


sua formação inicial, no entanto é preciso considerar que a conjuntura atual abrange um
somatório de mudanças que acarretam novos olhares e uma abertura para reflexões sobre
suas reais necessidades.

Relação teoria prática

Diante do recorte sobre a historicidade da profissão docente apontamos para o cerne


desse docente, enfatizando os dilemas e desafios na relação teoria e prática no processo
formativo inicial, aspectos tão essenciais à práxis pedagógica.

Os futuros professores, ao se relacionarem com a prática, poderão aprimorar a


atividade de ensino que havia organizado se considerarmos que no processo de
organização deste ensino, estavam imersos o suporte teórico conceitual que
fundamenta o conteúdo a ser ensinado. Caso contrário, nossa análise sobre a
prática irá incorrer puramente aos ativismos, os quais, não garantem o
desenvolvimento e a apropriação conceitual desejada para a formação do gênero
humano. (LEITE, 2012, p. 19).

Dessa maneira, a prática de formação deve ser compreendida como o momento de


problematização da práxis pedagógica, um lugar de produção de conhecimento. Assim, essa
prática não pode acontecer de forma qualquer, segundo SAVIANI (1996), a teoria exprime
interesses, objetivos e finalidades, se posicionando a respeito de qual rumo a educação deve
tomar. Neste sentido, a teoria não é apenas retratadora ou constatadora do existente, é
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também orientadora de uma ação que permita mudar a realidade. Quanto à prática
educacional, ela é sempre o ponto de partida e o ponto de chegada.
Percebe-se que a preocupação com a prática pode se tornar um paradoxo quando se
antagoniza com a teoria, ou seja, quando a primeira é vista como prioridade, relegando a
segunda. Tomando isso como certo, está se considerando que uma é mais importante que
outra consideração essa, apenas possível se dicotomizarmos a teoria da prática.
Consideremos, então, que essa desvinculação da teoria com a prática a transforma
em mero palavreado, que Freire (1996) chamou de “verbalismo”. Quando olhamos a relação
teoria e a prática, a teoria não se torna verbalismo nem a prática em automatismo. Dessa
maneira, a teoria implica numa inserção na realidade, num contato indutivo com o existente,
para comprová-lo e vivê-lo plenamente. Freire (1999) rebate a afirmação de que o pecado
de nossa educação é ser “teórica” dizendo que “nossa educação não é teórica porque lhe
falta esse gosto da comprovação, da invenção, da pesquisa. Ela é “verbosa”, “palavresca”, no
sentido que lhe atribuímos quando a teoria se pretende auto-suficiente.
Com toda essa exposição, pensamos a relação teoria e prática como includente e não
excludente. Acreditamos que o embate entre teoria e prática esconde algo mais profundo se
desejamos ou não transformar o mundo. Se todo o ponto de vista é a vista situada em um
ponto, olhando por esse ângulo, podemos perceber a falácia que é separar e diferenciar o
prestígio entre a prática e a teoria.

Narrativas da formação inicial à prática docente

Para um melhor entendimento da relação da teoria com a prática foram realizadas


entrevistas com quatro professoras de três licenciaturas diferentes: Licenciatura em
Matemática, Licenciatura em Letras Vernáculas e Licenciatura em Pedagogia. A seguir
apresentamos os relatos empíricos com a finalidade de responder às seguintes questões:
• Em que momento do curso viveu a relação da teoria com a prática?
• A prática foi para aplicar uma teoria ou para reproduzir práticas?
• Como você oportuniza hoje a relação teoria e prática?
Foi solicitado às quatro estudantes que fizessem narrativas onde apresentassem como
ocorreu a relação teoria e prática no seu processo formativo no âmbito da graduação.
Apresentamos a seguir excertos e uma breve análise dessas narrativas a fim de
destacar o uso da teoria na própria prática das professoras, confrontando com o referencial
teórico que embasou este trabalho.

Narrativa de Enoilma

Eu comecei a lecionar no 3º semestre do curso de Licenciatura em Matemática, e


embora já tivesse experiências com a docência, pois ministrava aulas de Informática em uma
escola particular de Salvador, fiquei muito receosa em encarar uma sala de aula, mesmo
sendo turmas de ensino fundamental (6º ao 9º ano). Eu não sabia preparar um plano de
aula, não sabia que conteúdo deveria explorar; a escola não me forneceu nenhum tipo de
planejamento, apenas me deram o livro didático e o horário das aulas. A Faculdade apenas
estava fornecendo as disciplinas específicas de Matemática. As disciplinas pedagógicas
(Estágio, Didática da Matemática e Prática de Ensino) ficaram para os últimos semestres,
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pois a Universidade oferecia o curso de Bacharelado e Licenciatura e apenas faríamos a
escolha do curso no 7º semestre, a partir do qual começamos a estudar tais disciplinas. Não
tinha outro professor da disciplina no turno que eu ia trabalhar, então busquei ajuda de
alguns professores da Faculdade e como destaca Gatti (2011), me espelhei na imagem do
bom professor que eu tinha na memória: a minha professora de Matemática do Ensino
Fundamental; e encarei o desafio. Mas, adiante surgiram outras oportunidades, em escolas
públicas e privadas. Assim, quando chegou o momento do Estágio Supervisionado, eu já
tinha bastante experiência e consegui desenvolver o meu trabalho com tranquilidade.
Durante todo o curso de Licenciatura eu me questionava: qual a utilidade de tanta
Matemática que nos ensinam na Faculdade? Em que momento, o que iremos realmente
utilizar na prática será discutido? As disciplinas específicas discutiam demonstrações de
teoremas e fórmulas bem distantes do contexto da educação básica, não se articulavam com
as disciplinas pedagógicas, como afirmam Gatti e Nunes (2008). Estas, por sua vez, apenas
versavam sobre as situações didáticas, sem associação alguma com os conteúdos que
iríamos ensinar. O meu refúgio foram os cursos de aperfeiçoamento, os minicursos
oferecidos nos encontros de Educação Matemática, as pesquisas disponíveis na internet e
nos livros.

Narrativa de Rita

No 4° semestre do curso tive a oportunidade de fazer um Estágio remunerado e a


partir daí iniciei a minha atuação na docência. Vale destacar que na minha graduação, foram
oferecidas três disciplinas de Estágio, que deveriam ser cursadas a partir do 6° semestre.
Dessa maneira, eu comecei a atuar como docente antes mesmo de receber as orientações
didático-metodológicas necessárias para a prática docente.
Sobre as disciplinas de Estágio, vale ressaltar que as mesmas dividiam parte da carga
horária para tratar os conteúdos teóricos didático-metodológicos e outra parte da carga
horária para trabalhar com atividades práticas, no contexto da sala de aula na escola básica.
Diante desse processo de formação que vivenciei na Licenciatura, gostaria de
destacar que em apenas um Estágio, o professor foi observar a minha prática, e que entre os
estágios não percebi a sintonia entre os professores formadores a respeito da política
educacional da Universidade a luz da formação do professor. Destaco também, que em um
dos estágios eu fui orientada a fazer um plano de aula baseada em alguns princípios
didático-metodológicos, e já no Estágio II, o professor apresentou-me outros princípios,
fiquei sem saber qual eu deveria seguir. Outra situação é que, os professores exigiam que
fizéssemos planos de aula para a nossa atuação docente, e eu não tive a oportunidade,
durante a minha formação, de ver nenhum desses formadores, durante a sua atuação,
portanto esses planos de aula tão exigidos, poucos utilizavam esquemas simples dos
conteúdos que iriam apresentar durante as aulas. A prática foi apenas para aplicar uma ou
outra atividade exigida pelos professores nas disciplinas de Estágio.
Hoje eu percebo com uma maior clareza a necessidade dos saberes teóricos para
atuação na prática docente e concebo como indissociáveis os saberes teóricos com os
saberes pedagógicos para a atuação na docência.
Acredito que a formação é um processo permanente, e que ser educador é ter
autonomia, senso crítico e reflexivo para escolher o caminho a trilhar, de modo que possa
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desenvolver uma consciência política para tentar atender, com responsabilidade e ética, às
necessidades que a sociedade vier apresentar. “São dimensões do seu fazer profissional no
qual se definem aspirações com respeito à forma de conceber e viver o trabalho de professor,
ao mesmo tempo em que se inscreve a forma de dotar a realização do ensino de conteúdo
concreto” (CONTRERAS, 2002, p. 74).
E dessa maneira, penso que como educadora devo ser um profissional capaz de atuar
no enfrentamento das dificuldades que perpassam pela profissão, não aceitando que as
mesmas ofusquem a minha obrigação moral e ética.

Narrativa de Sandra

A escolha pela Licenciatura foi para “revitalizar” os saberes pedagógicos que eu tinha
adquirido de forma empírica, visto que a docência já fazia parte do meu trabalho. Antes de
entrar na Faculdade já trabalhava como professora da Educação Infantil em uma escola e de
educação religiosa na igreja na qual sou membra. Sempre me senti incomodada com as
lacunas que havia em minha prática, pois estas se originaram não de uma formação docente
formal, mas dos saberes pedagógicos do senso comum e das práticas sociais pedagógicas.
Dessa forma, quando cheguei à Faculdade, a sala de aula não era um ambiente
desconhecido, em contrapartida, a práxis pedagógica ainda era muito fragilizada pelas
lacunas da inexistência da formação inicial.
Tendo dito isso, a minha experiência difere um pouco das demais colegas nesse
aspecto, entretanto, percebo que os outros aspectos no tocante ao acompanhamento
pedagógico aos docentes em formação inicial são consonantes, pois, o ponto crucial entre as
experiências das autoras é a falta da relação da práxis pedagógica do docente responsável
pela formação dos professores de Licenciatura.
A minha grade curricular continha dois momentos de estágio: Estágio em séries
iniciais e Estágio em coordenação. Passei quarenta dias estagiando em uma sala de EJA
juntamente com uma colega, devo salientar que assumir a sala nesse período, e que a minha
professora de Estágio passou por lá uma vez para dizer “Boa noite, vocês estão em boas
mãos” e foi embora. O Estágio em coordenação foi realizado em grupo de três colegas onde
apresentamos uma oficina sobre como trabalhar a Matemática de forma prazerosa para os
professores da escola, e que a nossa professora de Estágio coordenava no período da
semana pedagógica desta instituição.
Embora a prática docente já fizesse parte do meu cotidiano, houve uma mudança de
conceito dessa prática a partir do conhecimento da teoria. Então concluo que no meu caso,
houve uma resposta aos meus anseios e limitações da práxis pedagógica.

Narrativa de Rosana

Fiz um bom curso de Letras, ótimos professores, mas a relação da teoria com a
prática estava longe de acontecer. Só vivi essa experiência na disciplina Metodologia do
Ensino da Língua Portuguesa, no último semestre. Logo que sai da Faculdade, comecei a
lecionar em algumas escolas e percebi que a teoria não estava relacionada com a prática.
Mas sempre acreditei que o bom professor tem uma obrigação moral com os seus alunos,
ele precisa fazer o melhor por eles.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 981
Por isso, acima das conquistas acadêmicas o professor está comprometido com todos
os seus alunos e alunas em seu desenvolvimento como pessoa, mesmo sabendo que isso
costuma causar alguns dilemas. Envolver, essa é a minha palavra chave, sempre estive
envolvidas em minhas aulas, lembro que em certa aula solicitei aos alunos que fizessem
paródias envolvendo temas como compromisso, solidariedade, respeito, igualdade entre
outros, os alunos se envolveram de uma forma tão completa, que em um determinado
momento eu estava muito envolvida que não consegui avaliar.
Penso que na teoria devemos acatar com toda a celeridade possível, pois sem ela
deixaríamos de realizar muitos dos nossos projetos. No que tange à prática, ela mostra o
quanto podemos fazer partindo da observação de fora para dentro, pois alguns fatores
externos precisam ser observados para melhorar a nossa prática na sala de aula. Todavia,
sabemos que ao relacionar teoria com prática, dessa combinação poderá oportunizar
grandes eventos para nosso aluno.

Análise das narrativas das professoras

Ao analisarmos os relatos das professoras ficam evidentes as lacunas que existem


entre a teoria e a prática. As narrativas possibilitaram delinear pontos essenciais sobre a
formação do professor da educação básica no âmbito da graduação.
Nas respostas dadas às questões apresentadas, foram sinalizados pelas professoras
alguns aspectos referentes aos elementos determinantes para o desenvolvimento da sua
prática pedagógica durante o seu processo de formação inicial. São eles: 1- Falta de
acompanhamento no estágio (dicotomia entre teoria e pratica); 2- Reprodução da educação
bancária (inexistência da estética e da ética); 3- Reformulação da práxis pedagógica; 4-
Reflexão crítica sobre a prática. Reunimos esses aspectos sob o olhar crítico diante das
narrativas das quatro professoras envolvidas na pesquisa, no intuito de analisarmos de
acordo com a regularidade com que são mencionados.
Nesse contexto, fica evidente a necessidade de uma educação continuada que
reforce elementos essências à práxis pedagógica do professor, como alertam Gatti e Barreto
(2009). Além da formação continuada, Menezes (2008) reforça que flexibilidade, criatividade
e sensibilidade também são elementos indispensáveis na atuação profissional de professores
nessa conjuntura atual da sociedade. A autora salienta que os saberes adquiridos ao longo
da graduação são insuficientes para atender às demandas provenientes das transformações
sociais e tecnológicas.

Cabe, então, aos educadores, como agentes comprometidos com a mudança, a


responsabilidade de construção contínua de sua educação, de seus saberes e
aptidões, de sua capacidade de compreender e agir, tomando consciência de si
próprio e de seu meio ambiente, buscando dar significado à teoria vinculada à
prática, que só pode ser transformada se compreendida e aprofundada. (MENEZES,
2008, p. 319)

No bojo das narrativas, observamos que três docentes enfatizaram que os cursos de
Licenciatura priorizavam as disciplinas específicas em detrimento das práticas, algumas delas
destacaram a reprodução da prática pedagógica vivida pelas docentes enquanto alunas;

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 982


quatro das entrevistadas ressaltaram a teorização da prática docente e quatro docentes
derem ênfase à prática docente baseada no empirismo.
O que reforça a ideia preconizada por Gatti e Barreto (2009), de que é absolutamente
natural os professores levarem para o contexto da sua formação inicial as crenças que
adquiriram ao longo de sua vida escolar.
As narrativas das estudantes confirmam o que Dantas (2008, p. 125), com base em
Giroux (1997), coloca ao se referir “ao papel dos educadores como intelectuais que podem e
devem transformar e reorganizar o cotidiano da escola, delimitarem ou fortalecerem as suas
práticas”.
Dessa forma, percebemos que a formação docente é historicamente projetada, antes
e durante a profissionalização do docente, estando presente em outros contextos sociais.
Cria-se então um círculo vicioso, onde a formação docente depende basicamente, tanto das
teorias quanto das práticas desenvolvidas na vida da escola.

Considerações Finais

A experiência de fazer um trabalho escrito com professores de três Licenciaturas


diferentes, através da proposta da disciplina “Formação do Educador” ministrada no curso
de Pós-Graduação, Stricto-Sensu, em Educação e Contemporaneidade, oferecida pela UNEB,
proporcionou uma experiência riquíssima, onde se pode encontrar para discutir e pesquisar
sobre os desafios e dilemas acerca da relação teoria e prática, temática que “fervilhava” nas
cabeças das estudantes e inquietava no sentido de poder discutir esse assunto com as
docentes e estudantes da disciplina a fim de contribuir para uma reflexão mais aprofundada,
buscando, nas teorias e em estudos recentes, subsídios para o enfrentamento de algumas
lacunas percebidas entre a teoria e a prática durante o processo formativo.
Diante disso, podemos dizer que mesmo em meio às dificuldades encontradas, a
formação é um processo permanente e inacabado, e nesse sentido, a formação do professor
deve ser alicerçada na teoria e na prática, e para isso, as instituições de ensino superior
precisam acompanhar de perto a relação estabelecida entre o que é visto e discutido em
sala de aula e o que acontece nas práticas orientadas.
Não ocorrendo isso, as aprendizagens ficam deficitárias e a formação do professor
extremamente prejudicada. Assim, podemos dizer que a experiências práticas através de
Estágio Supervisionado e através de programas, como o Programa Institucional de Iniciação
a Docência – PIBID, entre outros, deverá ser a porta primordial para a efetivação do
encontro entre a teoria e a prática, além de ser o meio que o estudante da Licenciatura tem
para se defrontar com a realidade, aprimorando saberes e aumentando suas capacidades
para o exercício da profissão que escolheu, conhecendo assim o seu futuro ambiente de
trabalho, possibilitando-o a ir além da teoria e compreender a complexidade da prática.
No que tange à formação como um processo permanente, as instituições formadoras
dos professores deverão formar um profissional que possa entender a relevância dessa
formação em sua carreira. Visto que o ser humano evolui com o tempo, logicamente a
educação também deve evoluir. Sendo assim, o profissional desta área não pode estagnar e
parar no tempo. Fica evidente nas narrativas das professoras, que recorrer aos cursos de
aperfeiçoamentos e às pesquisas foram algumas das formas que encontraram para
relacionar a teoria com a prática. O professor precisa se atualizar continuamente para
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 983
acompanhar as várias nuances da educação, e isso só será possível se o mesmo além de
docente for um pesquisador.

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 984


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 985


Estágio supervisionado de língua materna: narrativas das aprendizagens na/sobre a
formação

Fabíola Silva de Oliveira Vilas Boas


UEFS
fabiolasovb@gmail.com
Obdália Santana Ferraz
UNEB
beda_ferraz@yahoo.com.br

Este trabalho visa refletir sobre as dificuldades e desafios vivenciados por graduandos do curso de Licenciatura
em Letras Vernáculas, da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana, a
partir das nossas experiências como professoras formadoras, nas disciplinas Estágio Supervisionado de Língua
Portuguesa e Literaturas, Prática Pedagógica e Metodologia de Ensino do Português. Buscamos analisar os
saberes curriculares e os pessoais que os professores em formação carregam consigo e mobilizam durante os
quatro anos do curso, sobretudo no período dos estágios supervisionados de observação e de regência de
classe. Os conceitos-chave e respectivos estudiosos com os quais dialogamos neste estudo são: saberes
docentes e formação de professores (Nóvoa, 1992; Tardif, 2012); relatos (auto)biográficos (Josso, 2004; Souza,
2006); estágio supervisionado (Pimenta e Lima, 2008); ensino de língua materna (Antunes, 2003; Geraldi,
2001). As questões norteadoras para as quais buscamos respostas foram: Quais as concepções e sentidos
atribuídos, pelos futuros professores, ao estágio e ao ensino de Língua Portuguesa? Quais representações
sobre formar-se e ser professor de Língua Portuguesa são produzidas por eles quando vivem e pensam sobre o
espaço-tempo do estágio? Para respondê-las, utilizamos as narrativas produzidas pelos professores em
formação, no gênero acadêmico Portfólio, entendendo-as como produções discursivas nas quais eles relatam
as dificuldades e os avanços vivenciados nas experiências de início à docência no campo do estágio.
Pretendemos, com o trabalho, destacar o quão importante é refletir acerca das situações/experiências
vivenciadas e narradas pelos professores de língua materna em formação, uma vez que esses dizeres
constituem materialidades com grande potencialidade metodológica e formativa para a práxis pedagógica.
Palavras-chave: Estágio supervisonado; Narrativas docente; Formação de profesores.

Todo mundo possui histórias para narrar [...]. O mesmo fato pode ser
narrado de variadas maneiras, a partir do contexto da narração, do lugar e
implicação do narrador. Isso de certo modo coloca em cheque o dito
popular de que contra fatos não há argumentos.
(ARAPIRACA, 2007)

Formação de professores de língua materna: o estágio supervisionado como atividade


formativa

As reflexões e debates travados no campo da Educação e, mais especificamente, no


campo da formação de professores têm suscitado polêmicas quanto à responsabilidade dos
cursos universitários de licenciatura, no que diz respeito ao desempenho de seu papel
fundamental na formação do aluno, para o exercício de sua profissão, bem como para a sua
inserção participativa no contexto político, econômico e cultural da Educação no país onde
exerce sua profissão. Nesse cenário, a formação do professor de Língua Portuguesa e
Literatura também tem ocupado lugar de destaque entre as discussões sobre a necessidade
de um trabalho docente que responda aos desafios referentes à mobilização de

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 986


conhecimentos os quais atendam às concepções e práticas específicas da formação de
professores de língua materna, articulando-os a partir da ação e reflexão teórico-prática.
Compreendemos que a formação de professores de língua materna não pode nem
deve se limitar a um espaço-tempo de aprendizagem preciso, restrito à sala de aula, esta
quase sempre tomada como entidade isolada das vivências cotidianas do sujeito em
formação docente. A formação do professor para o trabalho com a linguagem envolve,
primeiro, a construção vital de si próprio (NÓVOA, 1992), e se amplia para o conhecimento
do contexto social, histórico e cultural onde se dará a atividade docente, congregando
pesquisa e estudo, o que exige uma reflexão crítica e criativa (ANTUNES, 2003).
É no cerne dessa discussão que compreendemos o Estágio Supervisionado de Língua
Portuguesa e Literatura como espaço de formação que pode propiciar ao docente em
formação a produção de saberes necessários à prática docente, bem como à reflexão sobre
essa prática. Estágio, nessa perspectiva, é entendido como momento de experiência
formativa, de elaboração, avaliação e reelaboração de suas ações didáticas (PIMENTA, 2001;
KENSKI, 1994). Acreditamos, como professoras formadoras, que o Estágio Supervisionado
deve se constituir em espaço de formação que priorize a reflexão crítica, a articulação entre
ensino e pesquisa, bem como a produção de saberes sobre a própria práxis de ensino de
linguagem.
Esses pressupostos são tomados como basilares nas nossas experiências como
professoras formadoras, nas disciplinas: Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa e
Literaturas I, II, III e IV e Prática pedagógica IV, do curso de Letras Vernáculas da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus XIV; Estágio Supervisionado de Língua
Portuguesa e Literatura Brasileira e Metodologia de Ensino do Português, da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS). Contudo, diversas são as inquietações nos interpelam
quanto à formação de professores de Língua Portuguesa, por percebermos que o trabalho
com a linguagem, apesar de alguns avanços, ainda carece de significativas transformações.
Nesse sentido, questionamos: quais as concepções e sentidos atribuídos, pelos futuros
professores, ao estágio e ao ensino de Língua Portuguesa? Quais representações sobre
formar-se e ser professor de Língua Portuguesa são produzidas por eles quando vivem e
pensam sobre o espaço-tempo do estágio?
Para responder a essas questões, utilizamos as narrativas dos professores em
formação no gênero acadêmico Portfólio, produzido ao final das disciplinas por alunos de
ambas as universidades, como corpus de análise deste estudo. Nele quinze alunos da UEFS
relataram vivências nos estágios de observação e regência; e vinte e seis alunos da UNEB
relataram vivências nos estágios de observação225. Textualizar as experiências de início à
docência vivenciadas no campo do estágio é, para nós, mais do que produzir um
instrumento de avaliação para o professor supervisor, pois consideramos esse exercício de
escrita acadêmica mais uma experiência formativa, capaz de propiciar ao professor em
formação o desenvolvimento de princípios de (re)elaboração e reflexão das ações didáticas
observadas na escola e daquelas que ele próprio implementou.
Destacamos, para orientação ao leitor, que os currículos dos cursos das universidades
em questão, no que diz respeito ao componente estágio, têm suas especificidades: no

225
Tanto os alunos da UNEB como os da UEFS foram nomeados por PF (significando professor em formação),
seguido de um numeral e, para um maior entendimento do conteúdo discutido, complementado pelas siglas
das referidas universidades.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 987
currículo da UEFS, o estágio supervisionado de regência acontece apenas no último semestre
do curso – Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (105h) –,
propiciando ao aluno apenas esse limitado tempo de experiência com a prática pedagógica.
Nesta disciplina, a experiência ocorrerá com qualquer uma das séries do nível Educação
Fundamental II (6º ao 9º ano) ou do Ensino Médio (1ª a 3ª série), de modo que se ele
realizar o estágio em um desses níveis de ensino não terá oportunidade de vivenciar o outro,
haja vista que o estágio de regência somente ocorre em um semestre. Experiências com
públicos não escolares ou Educação de Jovens e Adultos (EJA) também não estão previstas
na UEFS. Na tentativa de minimizar essa dificuldade é que antecipamos as experiências de
estágio de observação do espaço escolar para a disciplina Metodologia do Ensino do
Português (90h), situada no sétimo semestre do curso.
No currículo da UNEB (Campus XIV), as experiências de estágio começam no quinto
semestre, com o Estágio Supervisionado I (105h), de Observação; em seguida, o Estágio
Supervisionado II (105h), de realização de minicursos para a comunidade de modo geral; o
Estágio Supervisionado III (105h), de regência no Ensino Fundamental II e o Estágio
Supervisionado IV (105h), de regência no Ensino Médio. Ressaltamos que, no estágio
curricular da UNEB, apesar de os professores em formação disporem de um tempo de
experiência maior com a prática pedagógica, as dificuldades são as mesmas enfrentadas
pelos professores em formação da UEFS.
Em ambas as universidades, deparamo-nos com situações nas quais os professores
em formação sentem uma enorme dificuldade em associar os saberes teóricos às situações
práticas de ensino planejadas no decorrer do estágio curricular supervisionado, quer seja no
momento de elaborar um plano de trabalho, de traçar objetivos que se pretende alcançar,
de executar uma sequência didática, quer seja no momento de avaliar a aprendizagem dos
alunos da educação básica. Tal dificuldade evidencia a falta de autonomia e
amadurecimento pessoal e profissional desses sujeitos frente aos saberes que eles precisam
dominar para implementar práticas pedagógicas de língua portuguesa.
Ao pensarmos sobre esse problema, reportamo-nos ao fato de que, no processo de
formação, sobretudo no curso das disciplinas de conhecimentos específicos linguísticos e
literários, vivenciadas antes dos estágios, os professores em formação não são mobilizados a
pensar acerca da possível relação entre os saberes teóricos e o ensino de língua.
Os professores em formação, ao exercerem seus argumentos teóricos, nas reflexões
e discussões sobre os estudos realizados em sala de aula, tentam externar pontos de vista
que se distanciam da prática tradicional do ensino de língua materna. Porém, no momento
de operacionalizar, de mobilizar esses conhecimentos, faltam-lhes técnicas e procedimentos
pedagógicos, tratamento didático que os possibilitem transformar esse conteúdo de ensino
em objeto de aprendizagem, para colocarem em ação nos Estágios Supervisionados.
Os problemas que envolvem o Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa e
Literatura, sempre colocados como complexos e de solução não tão fácil, abrangem, desde
as condições para realização efetiva desta atividade, a começar pela carga horária de alunos
e professores, estendendo-se para os diferentes entendimentos quanto à finalidade e
função do Estágio, e ampliando-se muito mais no que diz respeito à coerência entre teoria e
prática.
Mas o que é o Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa? É apenas o momento
de situar a teoria na prática? De fato, é o estágio que anuncia o início da história de vida
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 988
profissional do docente, o momento culminante da formação, em que o sujeito passa de
aluno a professor, para experimentar situações de ensino-aprendizagem, como docente.
Nesse período, sentem-se fortemente flagrados pela separação entre a concepção – as
teorias trabalhadas no curso, a construção do projeto de trabalho – e a execução – a ação
pedagógica nos mais diferentes e diversificados espaços, de contextos de interações de
complexidades singulares. Então, a concretude dessa realidade com a qual o sujeito se
depara no campo de estágio, o coloca num mundo de incertezas e de desafios até então
desconhecidos, não dispondo mais de tempo para acomodar as mudanças que se operam na
construção de seu novo estado como estagiários.

Narrativas das aprendizagens na/da formação de professores de Língua Portuguesa

As pesquisas baseadas na escuta das vozes dos professores vêm contribuindo


sobremaneira para a apreensão e compreensão da realidade educacional, repercutindo na
construção de conhecimentos relativos aos processos formativos e práticas dos professores.
Nesse sentido, o uso das narrativas auxiliam a investigação de aspectos relativos à vida
pessoal, escolar, profissional dos docentes, compreendendo uma perspectiva diferenciada
de análise da realidade, a partir de uma (re)qualificação do olhar sobre os processos
formativos e a forma de apreendê-los e compreendê-los.
Nóvoa et al (1992) dizem que há informações no campo educacional cujo melhor
modo de obtê-las é por meio da voz do professor, sobretudo as que dizem respeito aos
componentes da complexa estrutura da prática docente efetivada por eles. Para o autor, “o
estilo de vida do professor dentro e fora da escola, as suas identidades e culturas ocultas
têm impacto sobre os modelos de ensino e sobre a prática educativa” (NÓVOA, 1992, p. 72).
Identificar, portanto, esse sujeito enquanto portador de uma história de vida, de uma visão
de mundo e de uma práxis que não pode ser entendida apenas no âmbito de conceitos
teóricos constitui pontos fundamentais no processo de formação.
Acreditamos que pesquisas de natureza (auto)biográfica colocam o professor em
todas as suas dimensões, enquanto pessoa, profissional e ator social, na centralidade de seu
processo de formação e das questões que se formulam em torno deste. Trata-se, pois, de
descobrir e considerar o estatuto pessoal e singular do professor, até então negligenciado
em função de uma visão positivista da formação e do trabalho docente.
Sob essa ótica, muitos estudiosos, entre os quais Souza (2006), defendem que as
práticas de escritas de si ganham sentido e potencializam-se como processo de formação e
de conhecimento porque têm na experiência sua base existencial. Desta forma, as narrativas
constituem-se como singulares num projeto formativo, porque se assentam na interface das
experiências e aprendizagens individuais e coletivas.
Como professoras formadoras, ressaltamos que o processo de produção de
narrativas nos Portfólios, ao potencializar o contato do sujeito com sua singularidade e o
mergulho na interioridade do conhecimento de si e de sua prática, inscreve-se como
atividade formadora, porque remete o sujeito a refletir sobre suas crenças, seus anseios,
suas avanços, suas possibilidades de crescimento.
Da análise das narrativas da/na formação produzidas pelos futuros professores,
observamos que muitas são as pedras encontradas no caminho; contudo, neste estudo,
trataremos de apenas dois aspectos: a) relação entre os conhecimentos teóricos específicos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 989
e aqueles relativos aos fundamentos de ensino da língua materna; b) relação escola-
campo/universidade.
A primeira dificuldade relaciona-se ao fato de os estágios supervisionados
constituírem-se atividades caracterizadas como disciplinas ministradas – a exemplo do
currículo da UEFS – apenas nos dois últimos semestres da graduação, após os alunos terem
uma visão das principais teorias e fundamentos atinentes ao campo da linguagem, mas
poucas relativas ao “ensino” de língua. Situadas no final do curso, acabam por criar a falsa
ideia, por parte dos alunos, de que é somente naquele momento da graduação que eles se
tornarão, enfim, professores. Tal hipótese ganha força nas narrativas dos graduandos – das
duas universidades em questão – os quais denunciam a inexistência, ao longo do curso, de
uma relação entre os conhecimentos teóricos específicos e aqueles relativos aos
fundamentos de ensino da língua materna:

O Estágio Supervisionado I, que proporcionou o estágio de observação, só veio a


comprovar aquilo que eu já sabia: teoria e prática são opostas e [...] não se atraem,
infelizmente. Que bom seria se tudo fosse como propõem as teorias! [...] (PF4, da
UNEB).

Vivenciei muita dificuldade [refere-se à observação da prática] [...] muita teoria,


diálogo com teóricos, sabe tudo, mas quando vai para a prática, não obtém
sucesso. (PF5, da UNEB).

Fazer as observações foi uma experiência enriquecedora e, durante as aulas, pude


perceber vários aspectos apresentados pelos teóricos estudados em sala. Contudo,
transpor essas relações entre teoria e prática foi desafiador [...] (PF6, da UNEB).

As narrativas acima apontam para a situação de que os professores de graduação nos


cursos de Letras tendem a abordar diversas teorias sem atribuir a elas nenhuma dimensão
pedagógica, ainda que integrem o corpo docente de um curso de Licenciatura. São falas que
reclamam por necessidade de uma formação profissional que contemple conhecimentos
teóricos, específicos de cada área, mas também os conhecimentos pedagógicos que
contribuam para que esses sujeitos em formação compreendam a ação educativa, e possam,
a partir do estágio – estendendo-se para as práticas futuras – realizar, numa perspectiva
crítica e reflexiva, ações pedagógicas, fundamentados pela teoria.
Existe a necessidade da formação de um profissional que seja competente nos
aspectos teórico e prático. Essa formação deverá ser composta por conhecimentos
específicos e pedagógicos que favoreçam a compreensão da ação educativa para a assunção
de novas práticas pedagógicas dentro de uma postura crítica, produzindo uma ciência
pedagógica fundamentada teoricamente.
A segunda “pedra” no processo de formação diz respeito à falta de conexão entre as
universidades e as escolas-campo do estágio. As experiências de campo, mais do que
meramente épocas nas quais os futuros professores podem demonstrar ou aplicar assuntos
previamente aprendidos, representam importantes ocasiões para que se efetive a
aprendizagem docente. Porém, essa relação encontra-se fragilizada, como observa um
professor em formação da UEFS:

O estágio no final do curso não adianta, não funciona. A gente tem que fazer tudo
junto: observação, diagnóstico, planejamento, co-participação e regência. A gente
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 990
bagunça o cotidiano e o calendário da Escola e eles (a Escola) não gostam muito
disso. (PF2, da UEFS).

Ainda sobre a relação escola-campo/universidade, salientamos as narrativas que


discorrem acerca das condições em que o estágio de observação acontece, estas nem
sempre são favoráveis ao um trabalho produtivo: entre os tantos problemas, os sujeitos em
formação precisam lidar com as faltas de professores regentes, a incompatibilidade entre
horários do professor regente e horários do professor em formação226, as condições físicas
da sala de aula onde ocorrerá a observação, o calendário, como ressalta um dos professores
em formação:

Mas essa aprendizagem vem acompanhada por quais desafios? [...] O primeiro
desafio foi encontrar turmas nas quais os horários não chocassem; depois, o maior
deles, encontrar espaço para observar uma aula numa sala cujo tamanho é menor
que o da que eu estudo e onde estudam quarenta alunos. A sala já não cabia
alunos e professor; imagina eu onde ia ficar. Por fim, encontrei um cantinho no
fundo da sala para observar as aulas, ao som do barulho dos corredores e em
companhia dos pardais. (PF4, da UNEB).

Escolher uma turma naquela escola para realizar as observações estava


extremamente complicado. Primeiro, funcionários da secretaria da escola
informavam que questões de estágio só com a coordenadora pedagógica, que
nunca estava [...] Desisti desse espaço. Também, o prédio nem parecia uma escola,
se assemelhava mais a uma prisão, de tão acabado. (PF3, da UEFS).

Cumprir a carga horária de observação foi uma verdadeira maratona. Me sentia


como numa gincana, em que cada dia que conseguia observar a classe era
comemorado com grande euforia. A professora faltou a cinco encontros. [...]
Precisei fazer a entrevista com ela em pé mesmo, no final da noite, após a última
aula, para saber sobre as questões de aprendizagem da turma. (PF4, da UEFS).

A divergência entre os calendários da Educação Básica e o da universidade, a


ausência de uma política mais colaborativa entre esses espaços, as dificuldades do professor
supervisor, para efetivar uma orientação no próprio locus do estágio, colaboram para a
fragilidade na relação escola-universidade.
Embora sejam muitos os percalços enfrentados por professores formadores e por
professores em formação, todos reconhecem as possibilidades de formação oferecidas no
decurso do estágio supervisionado. Este é o momento no qual saberes diversos - acadêmicos
e pessoais - são mobilizados, de tal forma que conferem ao estágio o princípio de que ele
deve caminhar para a reflexão - a partir da realidade - e de que ele se constitui o espaço
onde o professor em formação se tornará, conforme defendem Pimenta e Lima (2004), o
agente de sua práxis pedagógica.

Professores de língua materna e estágio supervisionado: por uma formação crítico-reflexiva

226
Vale ressaltar que esses professores em formação, além de trabalharem (no comércio ou na educação),
realizam seu estágio em meio a estudos, seminários, provas e escritas de projetos e outros textos acadêmicos,
propostos pelas outras disciplinas que se desenvolvem juntamente com o estágio supervisionado.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 991
A nossa intenção, ao discutir sobre as dificuldades e desafios vivenciados por
professores de língua materna em formação, a partir das nossas experiências como
professoras formadoras, em duas universidades brasileiras estaduais, foi refletir para
compreender melhor o processo pelo qual nossos alunos da graduação tornam-se
professores, nesta etapa tão importante do curso de licenciatura: a vivência do estágio
curricular supervisionado.
Para nós, o Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa pode apresentar-se como
um processo relevante, não apenas pela sua propriedade formativa, intrínseca ao curso de
Licenciatura em Letras Vernáculas, mas também pela possibilidade que se abre ao aluno-
estagiário de apreensão/compreensão da prática vivenciada à luz de conhecimentos
teóricos, os quais podem funcionar como instrumentos de reflexão, indagação e de
produção de conhecimentos sobre a prática; o que poderia alimentar a práxis educativa da
linguagem e a construção de novas possibilidades.
Nesse sentido, a ação pedagógica desenvolvida no Estágio Supervisionado de Língua
Portuguesa precisa, por progressivas tomadas de consciência, fecundar a reflexão crítica e
contínua sobre a representação de ações possíveis, configuradas na elaboração do
planejamento da aula, na sua execução e na reconstrução, a posteriori, da mesma ação
pedagógica, através da avaliação do estagiário – às vezes junto à orientadora ou supervisora
de estágio – da aula já desenvolvida, no sentido de evidenciar: acertos, (in)adequações,
dificuldades a serem sanadas, outras possíveis intervenções.
Os saberes da prática docente, a serem mobilizados pelo professor, são plurais e se
definem, segundo Tardif (2012), como: saberes da formação profissional: das ciências da
educação e da doutrina pedagógica; saberes disciplinares: produzidos pelos pesquisadores
nos diversos campos do conhecimento, conceitos e métodos relativos a uma disciplina,
conteúdos a serem ensinados; saberes curriculares: programas escolares (objetivos,
conteúdos, métodos) que os professores devem aprender e aplicar; e saberes experienciais:
os saberes produzidos no cotidiano, que são edificados pelo professor na prática
pedagógica; aqueles que “[...] brotam da experiência e são por ela validados” (TARDIF, 2012,
p. 39).
Esses saberes constituem um corpus de conhecimentos de diferentes campos, sejam
eles disciplinares, pedagógicos, curriculares, referentes ao contexto e aos próprios sujeitos.
Portanto, como enfatiza Nóvoa: “[...] é preciso investir positivamente nos saberes de que o
professor é portador, trabalhando-os de um ponto de vista teórico e conceptual” (1995, p.
27), criando, dessa forma, condições para que ele, seja nas concepções de ensino, seja na
estrutura conceptual, possam realizar atividades, situações educativas planejadas e criativas,
que lhe proporcione a construção de saberes que se revertam em competências específicas
para o exercício docente, partindo da experiência cotidiana com seus alunos.
Por fim, desejamos que cada leitor – professor ou aluno –, que também vivencie
esses processos e que se identifique com o que aqui expomos, possa repensar seu percurso
de formação, reavaliando sua prática e a própria vida profissional, imprimindo novos
sentidos às experiências vivenciadas. E, a partir daí, se possa compreender a formação do
futuro professor de língua materna como processo, que não se faz apenas através dos
conteúdos de um curso, mas no cotidiano, porque é resultado de condições históricas,
terreno no qual se constrói a formação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 992


Referências
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2003.
KENSKY, Vani M. A vivência escolar dos estagiários e a prática de pesquisa em estágios
supervisionados. In: PICONEZ, Stela C. B. (Org.). A prática de ensino e o estágio
supervisionado. 2.ed., Campinas, SP : Papirus, 1994.
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Helena P. M. de; BELTRÃO, Lícia Maria Freire (Org.). Entre textos, língua e ensino. Salvador:
EDUFBA, 2007.
NÓVOA, Antonio. (Org). Os professores e a sua formação. Lisboa: Instituto de Inovação
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PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São Paulo:
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SOUZA, Elizeu Clementino. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de
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TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação de profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 993


A trajetória docente de uma licencianda: da escola do campo ao PIBID

Fabrício Oliveira da Silva


UNEB/ Campus XVI
faolis@uol.com.br

O trabalho analisa a trajetória de formação docente de uma bolsista do PIBID, vinculada ao subprojeto de
Pedagogia desenvolvido na UNEB, no DCHT – Campus XVI, em Irecê. Apresenta os objetivos do programa, a
organização, a sequenciação e reflete a trajetória formativa de uma licencianda, discutindo o seu percurso
formativo que se fundamenta a partir de experiências vividas na escola rural de que fez parte. Toma-se a
entrevista narrativa como dispositivo de coleta de dados e fazem-se reflexões sobre a construção da identidade
docente a partir dos sentidos que a escola ganha na história de vida da bolsista. Discute as implicações do PIBID
na formação inicial da bolsista, considerando o desejo de ser professora nascido ainda de suas lembranças
enquanto criança que estudava em escola rural. Analisa os objetivos do projeto, evidenciando a perspectiva da
prática docente na formação do pedagogo. Toma-se a trajetória formativa por meio da entrevista narrativa
como elemento de análise dos processos de construção da identidade docente. Abordam-se as concepções do
ser professor pela vivência e experiência que o PIBID tem promovido à bolsista. Refletem-se as características
da formação docente que se redimensionam pelos sentidos de querer ser professora para poder contribuir
com a elevação da qualidade da Educação Básica da comunidade rural de que se origina.
Palavras-Chave: Formação do educador; Identidade docente; Pedagogia; PIBID; Ruralidade.

Introdução

De início quero deixar claro que esse trabalho nasce de uma perspectiva de se poder
mergulhar um pouco na história de vida de um sujeito, do sexo feminino, que buscou
através de um relato de suas experiências explicitar os sentidos que sua trajetória acadêmica
da escola rural ao curso de Pedagogia, que cursa no DCHT-Campus XVI Irecê, lhe favoreceu.
A fim de depreender os sentidos materializados no relato, utilizei a abordagem
(Auto)biográfica, Nóvoa (1998). Trata-se de uma abordagem metodológica qualitativa, de natureza
interpretativa, que evidencia pôr em primeiro plano o estudo das trajetórias formativas de Vanessa,
buscando identificar os sentidos que se materializaram de sua inserção na escola rural até sua
participação no PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica.
Esta abordagem metodológica é relevante, pois favorece o conhecimento dos sentidos que a
experiência formativa do sujeito analisado revela. Explicita a forma como sentiu e viveu os alunos
escolares no campo, bem como sente e vive sua inserção no PIBID na universidade. Assim, a
utilização desta abordagem, pelos pressupostos que sustenta em relação ao sujeito de pesquisa e à
forma como este experienciou a escola rural, pareceu-me especialmente pertinente. Pretendi,
portanto, com esta perspectiva metodológica, aproveitar os contribuições da abordagem
(Auto)biográfica no quadro da realização dos estudos das trajetórias formativas de Vanessa.
Neste plano de observação, a ideia de narrativa assumiu uma importância central. De um
modo geral, caracterizou-se pela possibilidade de se materializar, por meio dos relatos, algo vivido
pela estudante que, de certa maneira, justificou as vivências na escola do campo, bem como as
vivências na universidade. Neste contexto, a narrativa é materializada como forma de se poder
analisar sistematicamente de que modo esses relatos demandam a compreensão dos sentidos
produzidos por meio das vivências e experiências que trilhou no percurso de sua formação. Permite,
ainda, aferir os fatos que foram relevante e que marcaram com sabores e dissabores o caminho
formativo pelo qual passou.
Esse método constitui a forma primeira pela qual a experiência humana adquire sentido ou
significado. Como salienta Bruner (1997, p123), “as narrativas constituem a forma natural de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 994
expressão das pessoas, existe uma propensão ou predisposição humana para organizar a experiência
sob a forma de narrativa”. Além disso, são as narrativas que permitem registrar no patrimônio
pessoal os acontecimentos e respectivos significados que os momentos formativos demarcam para
um sujeito que, durante a vida acadêmica, se encontra ainda em pleno processo de construção de
sua identidade pessoal e porque não dizer, profissional.
Portanto, a abordagem (Auto)biográfica é coerente com a análise produzida, pois
possibilitou-me, enquanto pesquisador interagir com o sujeito de modo a compreender o percurso
formativo, analisando-o, dando vasão aos sentidos que o próprio sujeito construiu ao recontar sua
trajetória num constante processo de construção e de reconstrução. Sua base empírica exigiu-me
uma relação estreita com o sujeito envolvido de uma forma participativa, cooperativa e colaborativa.
Como dispositivo de coleta de dados, utilizei-me da entrevista narrativa, por meio da
qual Vanessa pode revisitar sua história de vida na escola rural, reconstruindo o seu
percurso formativo. Ao revisitar o passado através da memória, reconstrói em um outro
tempo os sentidos que o espaço rural tem em sua vida. No seu relato, encontram-se
elementos significativos que vão se manifestando em cada lembrança que Vanessa vai
construindo a partir de uma narrativa livre, em que a liberdade de construção das ideias vão
dando espaço a materialização de sentidos de vida e de formação.
Neste cenário, percebe-se que há uma preocupação em manifestar valorações ao
espaço rural, pois é dele que surge a vontade de superação. Há no relato constante
reconhecimento da limitação de condições sociais do povoado em que viveu durante seus
primeiros quatorze anos, mas há muita manifestação de satisfação e estímulo oriundos das
dificuldades que encontrou em sua vida, principalmente na escolar, em que a falta de
recursos foi o problema gerador do desejo de se tornar uma profissional da educação. De
fato esse desejo está diretamente relacionado com o objetivo de poder contribuir com o seu
povoado, estando Vanessa em outra dimensão, a de ser professora alfabetizadora.

Da escola do campo à universidade: desafios e superações

Ao se falar sobre a educação do campo é necessário enfatizar a temática pelo debate


sócio econômico e geopolítico, uma vez que milhares de estudantes e de camponeses fazem
parte deste processo marginal criado pela ideologia dominante que favorece representações
de uma educação deficitária na consciência, reproduzindo discursos e práticas
preconceituosas, não condizentes com a vida e ações das populações do campo.
Há de se reconhecer hoje no Brasil que a educação do campo tem ganhado uma
dimensão identitária de construção de valores e sentidos que se expressam pelas ações
educativas daqueles que estudaram ou estudam numa escola do campo.
Na prática, em movimentos e em organizações sociais, bem como na academia
científica, a educação no e do campo está se contrapondo ao modelo urbano e tecnocrata
de educação, pois o modelo atual capacita os cidadãos para o mundo do trabalho, sem, às
vezes, favorecer o desenvolvimento da cidadania, não criando condições de moradia, de
transporte e de educação adequadas. Neste sentido, Pinheiro (2011) afirma que,

[...] a educação do campo tem se caracterizado como um espaço de precariedade


por descasos, especialmente pela ausência de políticas públicas para as populações
que lá residem. Essa situação tem repercutido nesta realidade social, na ausência
de estradas apropriadas para escoamento da produção; na falta de atendimento

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 995


adequado à saúde; na falta de assistência técnica; no não acesso à educação básica
e superior de qualidade, entre outros

Tal posicionamento é ratificado no relato de Vanessa, quando ela deixa claro a


caracterização da sua escola rural, avaliando o que nela continha e de como isso foi
conseguido.

Eu comecei a ter contato com a escola a partir dos 6 anos quando uma professora
da cidade ofereceu a um mulher do meu povoado uma cadeiras e mesas pequenas
que um colégio particular não queria mais.

Vê-se que o surgimento de uma escola, que de fato ainda nem era escola pela
estruturação e legalização, nasce no povoado em situações precárias de uma professora,
supostamente leiga, que possuía o desejo de montar uma escolinha em sua própria casa.
Como os recursos eram escassos, a possibilidade só veio pela condição de doação de
carteiras que uma escola particular já não queria mais. Talvez o material não servia mais
pelas más condições de uso, mas seria de muito proveito na “escolinha” do campo que alí
seria aberta.
Para Vanessa, inserida num contexto de precariedade e de descaso como Pinheiro
(2011) explicita, seria a oportunidade de iniciar sua trajetória formativa, de conhecer o
prazer que é frequentar uma escola. Sim posso dizer escola com todas as letras, pois para
Vanessa o que ela acreditava que estava acontecendo naquele momento era o seu primeiro
acesso ao sistema educacional.
A Educação do Campo contribui com a construção de uma memória formativa, do
resgate da identidade de uma menina do campo por meio da educação junto às crianças,
jovens e adultos, criando o sentimento de pertença ao grupo social ao qual a educação
do/no campo está inserida. Isso se evidencia nos sentidos de escola que já estão se
materializando com as expressões que Vanessa usa. Na designação de uma escola ainda
precária, primeira experiência formativa e que não apresentava status de escola, ela
denomina de escolinha. Ao estágio formal de acesso a escola do campo, idealizada como
uma organização social estruturada política e economicamente, a denominação que Vanessa
utiliza é escola.

[...] as professoras responsáveis pela escolinha fizeram uma festinha de despedida


da escolinha para a escola normal com uma formatura nos todos de branco
recebemos livrinhos lápis e outros objetos de escola. Quando fui para essa outra
escola usava a cartilha. Nesse período minha mãe teve que comprar uma cartilha
para mim, pois elas eram passadas de ano em ano para outras pessoas mesmo já
usadas.

Parece não haver muito sentido em se abordar essa distinção, mas fato é que mesmo
de forma involuntária o sujeito da pesquisa faz clara distinção entre as duas escolas. Não há
uma pretensão de desmerecer uma e privilegiar a outra. No entanto no relato fica evidente
que a escola dita normal seria aquela que apresenta melhores condições de estruturação e
de material pedagógico. Há uma referência à cartilha como uma representante da
formalidade que Vanessa econtraria na escola, por ela dita normal. Talvez esteja, também na
inconsciência política e econômica a distinção entre escola do campo e a escola urbana. Essa
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 996
última tida como a escola da elite, de maior prestígio e condição social. À primeira fica
destinada para aqueles que são simples e que não precisam de muitos recursos para se
desenvolverem. É a escola do camponês, do homem simples que vive na e da terra e que se
conforma com o pouco que tem. Qualquer escola por mais precária que seja é sempre uma
escola, ainda que escolinha como denomina Vanessa.
Comilo (2008) traz uma contribuição interessante sobre o resgate da memória coletiva e o
resgate da cultura camponesa, no sentido de entendermos as dificuldades na construção da
identidade do homem do campo. Afirma que,

[...] Muitas vezes o camponês recusa-se a assumir sua identidade, pois, ao longo de
sua história, foi considerado como “rude” e inferior. O próprio campo é visto como
um espaço inferior à cidade. A consciência de classe passa pela consciência de
identidade, que, no caso aqui discutido, é a da cultura camponesa [...]. (COMILO.
2008, p. 21).

Percebo que para construir uma identidade de estudante do campo, é necessário que
haja mudanças culturais e comportamentais. A educação do/no campo enquanto
fundamento histórico recria o conceito de camponês, de pessoal simples, mas que não
elimina o desejo de vencer e de conquistar outros espaços. É o sonho do estudo, da
formação e da trajetória acadêmica como espaço de oportunidade de crescimento pessoal e
intelectual, que no relato analisado fica evidente.
A escola oficial, denominada de normal por Vanessa, abri-lhe a possibilidade de
realizar o ensino fundamental, seguindo uma seriação da escola urbana. Deixa claro que
existe uma organização e que ela precisa seguir para ter a aprovação de uma série para
outra.
Nesta parte do relato, vê-se a construção da identidade de uma estudante, que
ressalta os procedimentos da escola como elementos vitais para garantir que ela seja uma
boa estudante. Dentre esses elementos, destacam-se as avaliações, que são vistas como
verdadeiras provas da competência do estudante de seguir avançando nos estudos. A cada
série que vai se consolidando uma ideia de dificuldade, que se superada revela um sujeito
inteligente e capaz. Como o sonho de Vanessa era o de estudar até chegar ao nível superior,
no curso de Pedagogia, ela não se permitia reprovar ou tirar nota baixa. Qualquer
mensuração que dela fosse feito com valor abaixo de 8,0 ela se angustiava e se sentia
menosprezada.
No entanto era a rigidez do professor da primeira série que faz Vanessa marear os
olhos de lágrimas e contar sobre os castigos que sofria, apesar de se considerar uma boa
aluna.
A segunda serie também foi dura, pois era outro professor mais rígido e até me
colocava junto com os desobedientes de castigo de joelhos em carosos de milho ou
tampilhas. Mas ele nos ensinava muito bem pois aprendi a ler muito antes do que
era previsto para minha idade ele trabalhava com muita disciplina e competência
nos tínhamos que ler a lição na frente todos os dias previstos e ele marca no livro
se eu tivesse passado na lição se não tinha que tudo de novo.

O castigo em grãos de milho evidencia uma prática bastante frequente em escolas do


campo. A forma de punir o aluno era extremamente arbitrária e autoritária e se justificava
pela ótica do respeito ao professor e da manutenção de obediência doméstica, que em
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 997
muitos casos era conseguida com surras dadas com chicote de bater em animais. Logo o
ficar ajoelhado em milhos na escola representava uma punição menos severa do que aquela
que em casa se podia ter. Por outro lado, vê-se um notório reconhecimento da competência
do professor do segundo ano, pois segundo o sujeito dessa pesquisa o professor ensinava
bem. Ensinar bem significa desenvolver no aluno uma aprendizagem, despertar
conhecimento, desejos, valores e sentidos para aquilo que se aprende.
A disciplina com rigidez sugere favorecimento de aprendizagem na ótica do relato de
Vanessa, pois a tentativa de justificar os castigos do professor sempre estavam atrelados ao
empenho que o mesmo tinha em tomar a lição e fazer sistematicamente com que os alunos
aprendessem. Quem não fizesse direito, deveria refazer, num processo, talvez mecanizado,
mas que estava despertando aprendizagens.
Segundo Comenius, 1997, p 311 a disciplina deve ser exercida contra quem erra, mas
não porque errou (o que foi feito, feito está), mas para que não erre mais. Busquei trazer
neste texto tal reflexão, pois percebi que os castigos que eram sofridos por Vanessa na
escola, enquanto aluna, ganharam um sentido muito ruim para ela. Apesar do
reconhecimento da competência do professor, marcas ficaram cristalizadas nesta trajetória,
chegando a consolidar mágoas.
Ao relatar sobre as experiências de sua terceira série, Vanessa fala da vivência em
classe multisseriada. A turma era composta de alunos da terceira e quarta séries. Diz do
contato com os alunos maiores, considerando esse um aspecto positivo. Não se evidencia
nenhuma crítica ou demérito à classe multisseriada, muito pelo contrário a multisseriação é
entendido como um processo natural e necessário no contexto da escola rural pela ótica do
seu relato. As classes multisseriadas constituem-se em turmas formadas por alunos de várias
séries sob a docência de um mesmo educador. Em cartas condições essas classes são
formadas pela inexistência de professores em uma determinada região, baixo índice de
alunos de uma mesma série ou até mesmo como punição a docentes que não poderão atuar
em escolas da zona urbana, sendo portanto alocados às escolas rurais, entendendo que
estas são desprovidas de boa condição educacional.
Os professores que atuam nessas turmas, são docentes que, em boa parte das
situações, não têm uma formação política e pedagógica para lidar com realidade do
multisseriamento. Isso ocorre pela inexistência de uma política pública de promoção da
qualidade de ensino em classes desta natureza.

Basta dizer que a única política pública implementada pelo Estado brasileiro para
as classes multisseriadas, em nível nacional, é o Projeto Escola Ativa, desenvolvido
a partir do ano de 1997, mas que se configura como uma ação isolada e se alicerça
numa concepção política e pedagógica que não tem resistido às inúmeras críticas
que lhe tem sido direcionadas (SANTOS e MOURA, 2010, p. 37).

Entretanto na ótica do relato analisado, o professor da classe multisseriada, e foi


apenas um que ela teve em toda sua trajetória acadêmica, era amável, competente e
gostava de ministrar aulas para aquela turma.

Na terceira série fui para a sala de um professor e essa sala era multiserriada. e ele
atendia os alunos da terceira e quarta série. Aí tínhamos contato com crianças
maiores, mas era muito bom, pois eu adorava esse professor pois ele era amável e
muito paciente. Não era rígido (risos) como o da segunda série e eu fiquei com ele
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 998
até a quarta série. Me lembro muito bem das aulas dele eram boas demais.
Algumas coisas já tinham avançado. Só ele o professor que morava na cidade e
vinha todas as tardes para o povoado para dar aula para nós. Eu adorava quando
estávamos na fila para entrar e ele chegava com sua motinha tanque, com
bombons, muito disposto e alegre para da aula para nós. Ele fazia ditado mudo, nós
rezávamos antes de começar a aula e tinha reunião todo o final de uma unidade.
Era os pais que iam assinar o boletinho e como só morei com minha mãe era ela
que ia e assinava meu boletinho. Me lembro que eu tinha boas notas todas

Desse trecho do relato de Vanessa, alguns sentidos são ratificados. O primeiro que
destaco e analiso, diz respeito à valoração que ela tem com a aprovação em notas. Tirar
boas notas significava ser boa aluna e ter competência. A amabilidade e a educação do
professor é outra construção de sentido relevante que se percebe. As aulas eram tidas como
boas porque o professor era amável e porque trazia os bombons. Para crianças do campo
aquele tipo de guloseima enchia os olhos. Vinha da cidade e eram dados pelo professor que
também era especial. Apesar de existir uma ênfase no fato de só o professor vim da cidade,
evidenciam-se sentidos de que aquilo que vem da cidade é bom. Junto com o professor
vieram os bombons, o carisma do mestre, a alegria e a satisfação em dar aulas para aquela
turma. Há sim uma notória valorização dos elementos urbanizados em relação ao que estava
posto no campo.
Destaca-se ainda neste trecho, a observação do valor religioso que o professor
incultia nos alunos. A reza vem como um elemento bom, que antecede outra coisa boa que
é a aula que estaria por começar. Daí a reza ser feito antes da aula, prenunciando coisas
boas que nela aconteceria.
Em particular neste trecho, a entrega dos boletins em reunião sugere haver a
valorização pela aprovação em uma avaliação. Está internalizada a ideia de que era preciso
tirar boas notas e informar isso aos pais, que no caso de Vanessa ela revela ser a mãe a
pessoa a quem ela destinaria a satisfação de ter o boletin dela, com boa nota. Não há
referência ao pai no relato de Vanessa e em nenhum momento ela justifica o não
aparecimento dele em sua trajetória formativa. A mãe assume esse papel de ser a
representante da família, aquela a quem Vanessa agradece e reconhece todos os seus feitos.
Da ideia de valorização do processo avaliativo apresentada no relato, verifiquei que
houve uma ênfase para o processo de formação dos professores que Vanessa teve em sua
trajetória do Ensino Fundamental e até mesmo do Médio. Ser formado em curso de
magistério e/ou licenciatura em Pedagogia parecia uma necessidade extremada para se
garantir a qualidade do ensino que o professor ofertaria. Neste contexto, o sujeito da
pesquisa enfatiza

Os meus professores só tinham o ensino médio e apenas um tinha o magistério,


nesse período eu passava por uma fase da adolescência então conversava muito
com minha prima e foi preciso ate separarmos de lugares para não ficarmos muito
próximas. Os professores não sabiam como resolver isso, não eram formados. Mas
consegui aprender muitas coisas que me serviram.

Destaquei essa abordagem no relato, pois mais a frente Vanessa justifica o desejo de
querer ser professora, de fazer pedagogia e de estar no PIBID exatamente para poder ter
condições de lidar com crianças e adolescentes, tarefa que ela julgou difícil para os
professores que teve, dado que não possuíam a formação para a docência. Ela distingue o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 999
curso de Magistério dos outros cursos do Ensino Médio. Segundo o que relata apenas um
professor tinha o curso de magistério, e talvez este pudesse saber como lidar com suas
conversas com a prima, logo com sua fase de adolescente. Neste sentido percebo que a
formação da identidade profissional é considerada como relevante pelo sujeito da pesquisa.
É em busca da construção dessa identidade que ela justifica o desejo de querer fazer
pedagogia e de lidar com crianças. O espaço da sala de aula e da escola precisa ser
compreendido, em sua ótica, como um espaço de atuação de um profissional, que saiba
resolver problemas para além da necessidade de ensinar algo a alguém.
Para essa reflexão, revisitei parte de um texto de Dubar (2005), em que discute a
elaboração de formas identitárias profissionais, defendendo haver a articulação de dois
sentidos dos termos socialização e identidade: a socialização relacional dos atores em um
contexto de ação, (re)elaborando “identidades para o outro”; e a socialização biográfica dos
atores em uma trajetória social, (re)elaborando as “identidades para si”. As identidades
sociais e profissionais são, portanto, marcadas por essa dualidade entre o processo
relacional (atos de atribuição) e o processo biográfico (atos de pertencimento) e devem ser
consideradas em processos históricos específicos e em contextos simbólicos próprios. Por
isso se afirma que “a identidade nunca é dada, ela sempre é construída e deverá ser
(re)construída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura” (DUBAR,
2005, p. 135).
No caso em análise é perceptível vislumbrar essa dualidade. Ao valorar a formação
do professor para a sua atuação, Vanessa dá sentido a construção de uma identidade do
outro, mas que se reflete nela. A partir da socialização biográfica, de saber e conhecer a
trajetória do outro, busca-se criar um identidade de si e para si. Ao mesmo tempo em que se
atribui a função social de ser um bom professor a uma pessoa que exerce essa função,
atribui-se a mesma função a si própria.
O desejo de trilhar o caminho da universidade esteve latente na trajetória de
Vanessa. E foi então em 2010 que movida pelo constante desafio de ser professora, ela
conseguiu inscrever-se, mais uma vez, pois outras vezes havia tentado, mas não logrou êxito
em aprovação no vestibular, bem como em concursos que relata ter feito e até ter sido
aprovada. “paguei mais uma inscrição de vestibuar, de concursos que nesse ano fiz muitos e
até passei, mas não fui trabalhar porque meu objetivo era fazer Pedagogia, fazer um curso
superior. Em 2010 efetivamente Vanessa entra para a universidade e marca seu lugar de
estudante que veio da escola do campo e que na cidade conseguiu passar num vestibular
para fazer o curso de Pedagogia.
No entanto nem tudo foi sonho e se concretizou como o esperado. Em seu relato, há
sempre indícios de que o curso nos seus quatro primeiros semestres não estava dando a ela
a noção do que é ser professora. Desejava algo que redimensionasse. Foi então que
apareceu o PIBID, programa que a ajudou a compreender como se dá a efetivação do
trabalho docente.

Mas tinha uma coisa que eu ficava querendo, mas a universidade não me favorecia
que era ter um contato com o universo escolar, para o qual eu estava sendo
preparada par atuar. Fiquei muito angustiada porque eu não tibha nenhuma
experiência com escola, como professora. Então um certo dia eu estava sozinha na
minha sala fazendo um trabalho e uma pessoa do colegiado colou um aviso na sala
sobre um tal pibi. Fiquei pensando olhei os documentos que precisavam e de todos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1000


eu só não tinha o comprovante de conta bancária. Fiquei triste pois os bancos
estavam em greve e o do do Brasil também. Não sabia como apresentar esse
documento, então comecei a procurar o que fazer e algumas pessoas me deram a
opção de ir no correio e abrir a conta. Fiz isso e me inscrevi. Fiz a entrevista e
passei. Comecei a atuar nesse programa e ele me deu todo o suporte que precisava
pois tinha um bolsa em dinheiro que me proporcionava saída da minha cidade e ir
ate Irecê. Fui parar no lugar que tanto procurei durante quase dois anos de curso.
Depois que entrei nele gostei do universo da escola e ainda não me decepcionei
com a escolha que fiz para minha profissão

Essa é uma das falas com as quais Vanessa encerra o seu relato. Há duas coisas que
destaco no sentido atribuído à universidade e ao PIBID. Quanto a universidade, a satisfação
de estar fazendo pedagogia está refletida na sua história de vida. Menina humilde, de família
simples, que estudava em escolinha, que nem carteira possuía, chega ao município de Irecê
para estudar em uma universidade pública. Tal foi o encantamento que Vanessa retorna ao
povoado de Ibititá onde foi criada, mas mantém o sonho de fazer o curso superior. Buscou
se inserir no PIBID em 2013, como ela mesma conta, a partir de um aviso que alguém do
colegiado ali colocara. Para muitos licenciandos, aquele programa seria mais uma
oportunidade de conseguir um recurso financeiro para se manter na universidade. Afinal de
contas a manutenção do transporte e de material bibliográfico é cara e custosa.
Para Vanessa o PIBID estava em outra lógica de sentido. Era a oportunidade que ela
precisava de pisar o chão da escola e de conhecer a realidade educacional pela ótica da
docência. Neste cenário, o PIBID ganhou uma dimensão significativa no relato produzido.
Financiado pela CAPES, objetiva dar condições aos licenciandos de entenderem e
exercitarem tão logo a prática docente. Como elemento potencializador, e não de negação
do que propõem os estágios supervisionados, dá outra dimensão à compreensão da
dinâmica escolar. Constitui-se em um projeto que oferece ao licenciando a condição de
compreender a complexidade da escola face a sociedade que não vê mais as salas de aulas
como espaços privilegiados, onde as informações chegavam com caráter de ineditismo.
Um dos objetivos do PIBID é a elevação da qualidade das ações acadêmicas voltadas
à formação inicial de professores nos cursos de Licenciatura das instituições de educação
superior, assim como a inserção dos licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de
educação, o que promove a integração entre Educação Superior e Educação Básica.
Com programa também se proporciona, aos futuros professores, a participação em
experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e
interdisciplinar, objetivando a superação de problemas identificados no processo de ensino-
aprendizagem. Além disso, busca-se incentivar as escolas públicas a tornarem-se
protagonistas nos processos formativos dos estudantes das licenciaturas, a partir da troca de
experiências entre os supervisores, professores da Educação Básica, com os bolsistas que
refletem as orientações e a condução pedagógica que cada professor-supervisor lhe oferta
no desenvolvimento de suas ações na escola.
Apesar de um programa relativamente novo, pesquisas revelam haver uma
ressignificação da identidade da escola. Há uma tendência de se entender a complexidade
da escola para que ela consiga atender as demandas de formação de um sujeito, como
Vanessa, que não se coloca como objeto das experiências da vida, mas como protagonista
de sua própria história. Essa visão se materializa, já há algum tempo, nas palavras de
Touraine quando pensou o lugar da escola:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1001
A escola não deve ser feita para a sociedade, ela não deve se atribuir como
missão principal formar cidadãos ou trabalhadores, mas acima de tudo,
aumentar a capacidade dos indivíduos para serem sujeitos. Ela se voltará
cada vez menos para a transmissão de um conjunto de conhecimentos, de
normas e representações, e será cada vez mais centrada, de um lado na
manipulação de instrumentos, e de outro, na expressão e na formação da
personalidade (TOURAINE, 1999 p. 326-327)

De fato o programa reconstruiu a noção de escola como lugar de produção


identitária. Para Vanessa a escola passa a ser o lugar em que o ser sujeito educador se
evidencia nas possibilidades de atuação nos processos formativos. Trata-se, pois, de se
inserir numa formação mais prática e real, o que lhe permite compreender e atuar na sala de
aula nas condições reais em que o tempo passa a ser elemento determinante para a
compreensão do que se deve fazer em uma sala de aula nas séries iniciais do Ensino
Fundamental. É a oportunidade de se inserir em todas as ações, tais como ministrar aulas,
participar de reuniões em conselho de classe, reuniões com professores e coordenadores,
reuniões com pais, além poder engajar-se em festividades e comemorações. É possível
participar dos processos de avaliação que se fazem na escola, bem como das jornadas
pedagógicas.
Neste sentido, ratifica-se a ideia de Charlot (2005) que valoriza a formação do sujeito
na construção de programas que permitam a apropriação de saberes oriundos da
convivência com o outro. E para Vanessa o PIBID alargou o seu tempo de atuação com os
estudantes da escola básica, garantindo que a convivência fosse, como bem defende
Charlot, uma condição de reflexão para atuação nos processos de ensino.

Considerações finais

A trajetória de vida escolar de Vanessa evidencia uma história de muita dificuldade,


mas de lutas e conquistas. Ter estudado numa escola rural não eliminou a possibilidade da
estudante de pedagogia desenvolver-se e galgar espaços acadêmicos privilegiados. Estar em
uma universidade pública no Brasil, ainda que em um curso de licenciatura, que goza de
pouco prestígio social, é privilégio de uma pequena parcela da população. Considero,
privilégio ainda, estar numa licenciatura e poder participar de um programa como o PIBID,
que além de fornecer uma bolsa, fornece condições de formação prática, alicerçada nas
condições reais da escola, transcendendo, inclusive a prática de sala de aula.
Essas considerações ganham sentido na ótica de Vanessa, quando ela mesma
reconhece que o início de sua formação foi bastante conturbado. A falta de recursos
financeiros e a baixa qualidade dos estudos da Educação Básica, sobretudo o período e que
estudou na escola da zona rural, que não apresentava condições de favorecimento de uma
aprendizagem considerada adequada aos padrões que a própria LDB 9394/96 orienta. Esse
fato é ainda mais problemático em se considerando as classes multisseriadas, das quais
Vanessa teve boa parte de sua formação na zona rural.
Segundo Barreto (2004),

Estudos mostram as dificuldades enfrentadas pelas escolas rurais. De um lado está


a precariedade da estrutura física e, de outro, a falta de condições e a sobrecarga
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1002
de trabalho dos professores gerando alta rotatividade desses profissionais, o que
possivelmente interfere no processo de ensino-aprendizagem. (Educação e
Pesquisa, São Paulo, v.30, n.1, p. 73-89,)

A análise do relato sugere, portanto, que havia o desejo de Vanessa em trilhar um


caminho de superação em seus estudos. No entanto, as dificuldades enfrentadas nas escolas
rurais, dadas as condições de precariedade e escassez de recursos, aguçou o desejo de
tornar-se uma professora que pudesse retornar a sua comunidade e contribuir com a
formação de jovens que como ela, pouca oportunidade de ascenção educacional tiveram.
Portanto a trajetória está marcada pela atuação no PIBID, que tem ainda mais
despertado em Vanessa o desejo de tornar-se uma boa professora, das as condições de sua
atuação nas escolas municipais de Irecê. São escolas que como as que ela frequentou ao
longo de sua vida escolar, apresentam escassez de recursos e de formação profissional,
tendo em vista que há na escola em que desenvolve o programa, um grande número de
professores que estão se aposentando e que não tinham formação adequada para o
magistério. A existência de muitos professores inabilitados para o exercício da docência tem
sido motivo para que Vanessa promova com maior empenho a sua formação acadêmica.

Referências
BRUNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
CHARLOT, Bernad. Relação com o saber, formação de professores e globalização. Porto
Alegre: Artes Médicas, 2005.
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Fontes, 1977. 390 p.
COMILO, Maria Edi da Silva. A construção coletiva da escola: a Escola Chico Mendes e sua
História. In: ANGHINONI, Celso; MARTINS, Fernando José (Org.).
Educação do campo e formação continuada de professores . Porto Alegre; Campo Mourão:
EST Edições; FECILCAM, 2008.
BARRETO, R. G., DAMASCENO M. N & BESERRA B. Estudos sobre educação rural no Brasil:
estado da arte e perspectivas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.1, p. 73-89, jan./abr.
2004
DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
NÓVOA, A. e FINGER, M. (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa:
Departamento de Recursos Humanos, Ministério da Saúde, 1988.
PINHEIRO, Maria do Socorro Dias. A concepção de educação do campo no cenário das
políticas públicas da sociedade brasileira Disponível em: <http://br.monografias.com/
trabalhos915/educacao-campo-politicas/educacao-campo-politicas.shtml>. Acesso em: 10
janeiro 2014.
SANTOS, Fábio Josué Souza; MOURA, Terciana Vidal. Políticas educacionais, modernização
pedagógica e racionalização do trabalho docente: problematizando as representações
negativas sobre as classes multisseriadas.
In: ANTUNES - ROCHA, Maria Isabel; HAGE, Salomão Mufarrej (orgs.). Escola de direito:
reinventando a escola multisseriada. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Coleção Caminhos da
Educação do Campo; v. 2), pp. 35-48.
TOURAINE, Alain. Iguais e diferentes: poderemos viver juntos? Petrópolis: Vozes, 1999.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1003
Estudos sobre a (auto) biografia no teatro documentário

Fernanda Saldanha
UFSM
fesaldanha@msn.com
Raquel Guerra
UDESC
guerra.raquel@hotmail.com

Este trabalho debruça-se sobre o teatro documentário e as possibilidades que oferece para a pesquisa com
(auto) biografia. A partir da investigação histórico-teórica, busca-se expandir o entendimento do conceito
“teatro documentário” e identificar nele elementos de documentação/registro e narrativa (auto) biográfica, ao
partir de memórias pessoais e dos familiares, de relatos, fotos e documentos.Pretende-se entrelaçar realidade
e ficção, justamente por fazer uso de memórias que são parcialmente reais e inventadas, visto que isso é
perceptível quando um mesmo fato é relembrado e narrado por diferentes pessoas que produzem diferentes
versões narrativas. Estas memórias, para o teatro documentário, são levantadas através de fotos, vídeos,
relatos, narração de histórias. A reelaboração delas passa pelo olhar do artista-docente, que recriará situações
e momentos que lhes foram relatados, para apresentar em cena, como espetáculo teatral, criando uma linha
tênue e transitando por uma zona fronteiriça entre o que é real e o que é ficção. Além disso, o trabalho
visa desenvolver procedimentos metodológicos em Teatro-Educação, através da experiência autobiográfica
docente, com as possibilidades que a utilização das mídias nos oferece em cena no palco ou na sala de aula,
sendo que, no teatro documentário elas são imprescindíveis. O projeto procura a interdisciplinaridade das
artes com as mídias digitais, ao utilizar de seus recursos para pesquisa e criação artística. A pesquisa norteia-se
por questões acerca de: como trabalhar a (auto) biografia no teatro documentário se este tem como origem
histórica questões coletivas? Como uma imersão (auto) biográfica pode contribuir com o desenvolvimento
docente em sala de aula? Desse modo, frente a estes questionamentos e o confronto que a investigação
teórico-prática fornece, a autora desenvolve sua pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura
em Teatro, juntamente com a experiência no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID
Teatro UFSM.
Palavras-chave: Teatro documentário; (Auto)biografia; Memória; Teatro-educação.

Introdução

Sou Fernanda Saldanha, 26 anos, solteira, nascida na cidade de Venâncio Aires/RS, no


dia 02 de abril de 1988, filha de Manoel e Nelsy Saldanha. Atualmente acadêmica do 7º
semestre do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), integrante do DACARATAPA Grupo de Teatro e bolsista no Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Iniciando as pesquisas para o Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC).
Sou Raquel Guerra, 31 anos, casada, nascida na cidade de Marau/RS, no dia 09 de
junho de 1982. Atualmente professora na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
doutoranda na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), coordenadora de
área/teatro no PIBID/UFSM e coordenadora do projeto de pesquisa “Teatro e Tecnologia” na
UFSM.
Somos artistas, docentes, pesquisadoras. Somos duas biografias num encontro.
Nossa parceria que ora se expressa neste artigo escrito a quatro mãos é tanto acadêmica
como artística. Este texto apresenta o percurso de Fernanda Saldanha, seu interesse pelo
tema do teatro documentário e a (auto)biografia, assim como os caminhos acadêmicos e
artísticos que a conduziram para o seu projeto de TCC, que encontra-se aqui como o objeto
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1004
de estudo apresentado. Ao decorrer da escrita, contextualizamos o leitor em relação à
presença das mídias da imagem (fotografia, vídeo, cinema) no contexto da produção
artística/teatral, parte da contribuição de Raquel Guerra à pesquisa de Fernanda Saldanha
aqui narrada. Nossos interesses de pesquisa se entrecruzam neste texto ao relacionarmos
teatro documentário, (auto)biografia e os registros de fotografia e vídeo como fonte
documental e elemento de criação para a pesquisa artística.

O embrião da pesquisa: em primeira pessoa, o percurso na voz de Fernanda Saldanha

Minha incursão pelo teatro documentário iniciou no ano de 2012, quando participei
da oficina Teatro Documentário: arquivos, memória e autoficção, ministrada por Janaina
Leite, atriz, diretora e cofundadora do Grupo XIX de Teatro, mesmo ano em que assisti ao
espetáculo Luis Antonio-Gabriela, da Cia Mungunzá, baseado na história de vida do irmão do
diretor Nelson Baskerville.
No ano seguinte, aventurei-me a explorar o teatro documentário como objeto de
pesquisa para desenvolver o Estágio Supervisionado de Docência em Teatro I – Ensino
Fundamental, disciplina do Curso de Licenciatura em Teatro da UFSM227, na Escola Princesa
Isabel, do distrito rural de Arroio do Só, de Santa Maria/RS. O trabalho iniciou com pesquisas
históricas e teóricas sobre o teatro documentário e prosseguiu com levantamento e
(re)contação de narrativas de tradição oral228 daquela localidade.

Para estudiosos do assunto, a memória é o resultado do entrelaçamento das


experiências de um tempo vivido. Ela é uma espécie de “guardiã” da integridade de
cada indivíduo, que assegura a sobrevivência de acontecimentos que marcaram
uma época e garante a partilha desses acontecimentos entre indivíduos de um
grupo afim. “A memória coletiva é apontada como um cimento indispensável à
sobrevivência das sociedades, o elemento de coesão garantidor da permanência e
da elaboração do futuro”, lembra Milton Santos. (BARBOSA, 2011, p. 62)

Realizamos registros fotográficos e videográficos de todo o processo, finalizado com


uma roda de chimarrão encenada, na qual as histórias foram recontadas, num contexto que
se diluía entre representar improvisadamente e executar a roda de chimarrão e a narração
dos causos229, do Homem que laçou o avião, da Praga do Padre e do Assombro no CTG230,
como se os participantes/personagens não as conhecessem. Investigamos durante todo o
processo as questões relacionadas à identidade local, justamente pelo viés do teatro
documentário, que tem sua origem tratando de assuntos coletivos, de uma sociedade, que
através do teatro poderia expor, discutir e refletir temas que diziam respeito a toda a
população.

227
O Estágio foi orientado pela professora Raquel Guerra e um primeiro texto sobre este trabalho foi
apresentado por Fernanda Saldanha no CONFAEB 2013, Porto de Galinhas/PE, cujo texto está indicado na
bibliografia.
228
Trata-se de uma transmissão oral recente, pois as histórias narradas começaram a ser contadas nos meados
dos anos 50.
229
Estas histórias foram redigidas pelos alunos e podem ser encontradas no blog criado por eles durante o
Estágio: http://historiasdearroiodoso.blogspot.com.br/.
230
CTG: Centro de Tradições Gaúchas. É um espaço cultural. Local de encontro familiar, onde se cultua as
tradições gaúchas, através da dança, da música, poesia, entre outras artes e lides campeiras.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1005
O teatro documentário ganhou notoriedade com os trabalhos de Erwin Piscator nas
décadas de 1920/30, que na função de encenador, introduziu no teatro elementos como
vídeos, slides, fotos, utilizando de meios tecnológicos, recursos extrateatrais, para
apresentar a realidade na qual a peça estava inserida, de modo a aproximar do cotidiano da
sociedade da época. Piscator aventou um teatro épico, que foi aprofundado por Bertolt
Brecht, e trazia outros recursos como projeções, legendas, cartazes, materiais que vinham
para somar à representação, mas ao mesmo tempo causavam certo distanciamento, que
deslocava do lugar conhecido, despertando curiosidade e possibilitando maior reflexão,
justamente por não estar imerso ao espetáculo. O teatro épico brechtiano pode ser
compreendido como uma tentativa de superação do teatro dramático, criando um novo
teatro, que indicava nova relação entre teatro e sociedade. O teatro épico está intimamente
atrelado ao teatro documentário. Encontrei na linha documental uma maneira apropriada
para desenvolver o trabalho com aquela turma. Observei que aquelas narrativas de tradição
oral estavam ligadas, diretamente, com a biografia dos moradores daquele distrito.
Revisitando o artigo resultante desta prática de Estágio, intitulado “Uma experiência com
teatro documentário na escola”, reforça-se este pensamento:

As narrativas de tradição oral guardam a memória de um povo e suas reinvenções,


de uma localidade, de uma família, são as histórias e/ou os causos que perpassam
gerações e fazem parte do imaginário e do cotidiano de seus
narradores/personagens. Normalmente os contadores destas histórias são também
personagens delas, como no caso dos alunos de Arroio do Só, que vivem as
“consequências” do que ocorreu há tanto tempo, e eles conhecem apenas por
narrações, mas consideram-se parte daquele emaranhado de histórias. É como se
aquelas narrativas fossem parte da biografia de cada um deles. (SALDANHA;
GUERRA, 2013, p. 4)

O Estágio termina. O desejo de aprofundar os estudos sobre o teatro documentário


aumenta. Entretanto, a curiosidade agora incide sobre questões (auto)biográficas e suas
possibilidades dentro deste fazer teatral.
Sou uma artista-educadora em formação, mas antes de qualquer profissão, todos
somos seres humanos, temos uma história de vida e dentro da sala de aula, temos que nos
colocar como pessoa, para que os educandos nos reconheçam como tal e tenham o espaço
de se colocar como pessoa também. “Não dá para separar a imagem docente da imagem
humana. (...) Estamos na escola na totalidade de nossa condição humana. Os alunos nos
veem como gente. Eles se veem como gente”, como afirma Arroyo (2004, p. 242). Sendo
assim, este artigo apresenta uma revisão de literatura sobre o tema que será abordado no
TCC: a (auto)biografia no teatro documentário.

Delimitações da pesquisa: teatro documentário, (auto)biografia e memória

A (auto)biografia é recorrente no cinema e, principalmente, na literatura, mas no


teatro ela tem ganhado maior expressão recentemente. No Brasil, temos algumas
referências pontuais de trabalhos teatrais (auto)biográficos, como os espetáculos: Luis
Antonio-Gabriela (2011), da Cia Mungunzá, que conta a história de vida de Luis Antonio,
homossexual, que depois de toda a discriminação sofrida pela família devido sua orientação
sexual, vai embora para a Europa e lá transforma-se em Gabriela. A encenação é conduzida
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1006
pelo olhar do irmão caçula, Nelson Baskerville, através de fotos, documentos e lembranças,
ele que assina a direção do espetáculo. E Festa de Separação: um documentário cênico
(2009), com criação de Janaina Leite e Fepa, ela atriz, ele músico, apresentam o fim do
relacionamento, a partir da realização de festas de separação, filmadas, realizadas
inicialmente para familiares e amigos, atingindo posteriormente, desconhecidos, eles
organizam o material documental da história vivida por ambos e expõe ao público como
experiência cênica, onde transitam entre o teatro e o documentário. Nestas duas obras a
história é conduzida a partir de acontecimentos da vida dos artistas envolvidos na criação.
Decidi investigar as possibilidades que a (auto)biografia oferece para o teatro, neste
caso, para o teatro documentário. No início desta pesquisa de TCC, os problemas apontavam
para como trabalhar a (auto)biografia no teatro documentário se este tem como origem
histórica questões coletivas e qual a relevância de uma história pessoal de alguém
desconhecido do público. Com as primeiras revisões de literatura sobre o tema, algumas
respostas para estas questões começaram a ser sanadas, como apresenta Leonor Arfuch:

Sabemos que não há possibilidade de afirmação da subjetividade sem


intersubjetividade; consequentemente, toda biografia ou relato da experiência é,
num ponto, coletivo, expressão de uma época, de um grupo, de uma geração, de
uma classe, de uma narrativa comum de identidade. É essa a qualidade coletiva,
como marca impressa na singularidade, que torna relevantes as histórias de vida,
tanto nas formas literárias tradicionais quanto nas midiáticas e nas das ciências
sociais. (ARFUCH, 2010, p.100)

Nesse entendimento do que é a (auto)biografia e a biografia, compreendendo que


elas sempre tratarão de questões coletivas, identificamos que o processo biográfico na
criação artística pode ser ou estar ligado à noção de teatro documentário, pois no teatro
documentário os elementos reais mesclados aos ficcionais contribuem para tornar universal
a história que está sendo contada.
Nesta etapa da pesquisa, o que se coloca em jogo é como esta história será contada
artisticamente e como ela se constrói pelas afetações e pelos atravessamentos desta
biografia e das minhas lembranças enquanto autora/personagem em processo de criação. A
intenção é trabalhar a (auto)biografia no teatro documentário, através de um
acontecimento teatral, que busca a ideia de hibridação de real e ficcional. Não é um
espetáculo convencional, esse pensar o acontecimento teatral está associado à noção de
experiência cênica, a ser compartilhada entre atriz/personagem e público, que se tornam
cúmplices desta experiência, que é uma travessia perigosa, mas “talvez esteja nessa
experiência real a potencial relação que o narrador-artista estabelece com o ouvinte-
espectador”, como afirma Abujamra (2013, p. 76).
No contato com a experiência da atriz/personagem, o espectador pode apropriar-se
dela e rememorar histórias e lembranças pessoais, que lhes cause algum tipo de afeto, seja
positivo ou negativo, como ressalta Abujamra:

“No relato da experiência pessoal pode se projetar uma nova possibilidade de


partilha. Pode-se imaginar que cada memória pessoal chame outra história e, por
isso, cada texto autobiográfico pode ser infinito em sua multiplicação de histórias e
sentidos, permitindo que narrador e ouvinte participem de um fluxo comum e vivo,
de uma história aberta a novas propostas e ao fazer junto. Não seria esse um dos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1007


principais desejos do teatro, que suas obras não apenas sejam vistas, apreciadas,
entendidas, mas que levem o espectador a pensar em sua própria vida,
relacionando-a de maneira pessoal à vida dou outro?” (ABUJAMRA, 2013, p. 76)

Então, busco uma elaboração artística, valendo-me do encontro que o teatro


proporciona. Pensando no que Gabriel García Márquez, cuja grandiosidade da obra se perde
na memória, declarou, de que “a vida não é o que se viveu, mas sim o que se lembra, e como
se lembra de contar isso”. Nesse momento, a questão do trabalho é o olhar artístico que
será dado para esta história, reconhecendo que as questões transitam por diversos lugares
durante a pesquisa.

Seria possível afirmar, então, que efetivamente, e para além de todos os jogos de
simulação possíveis, esses gêneros, cujas narrativas são atribuídas a personagens
realmente existentes, não são iguais; que, inclusive, mesmo quando estiver em
jogo uma certa “referencialidade”, enquanto adequação aos acontecimentos de
uma vida, não é isso o que mais importa. Avançando uma hipótese, não é tanto o
“conteúdo” do relato por si mesmo – a coleção de acontecimentos, momentos,
atitudes –, mas precisamente as estratégias – ficcionais – de autorrepresentação o
que importa. Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua construção narrativa, os
modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do
olhar, o que se deixa na sombra; em última instância, que história (qual delas)
alguém conta de si mesmo ou de outro eu. E é essa qualidade autorreflexiva, esse
caminho da narração, que será, afinal de contas, significante.” (ARFUCH, 2010, p.
73)

Nesse sentido, a fonte inventiva neste projeto está calcada em meu imaginário
(auto)biográfico, minhas memórias pessoais e familiares, advindas de relatos e outras fontes
documentais, ou seja, são fragmentos de experiências apreendidas, experiências lembradas
e esquecidas, que servem de fonte primária à prática/pesquisa artística de um
acontecimento teatral ao serem reelaboradas e não somente transpostas para a criação.
Portanto, o ato criativo aqui proposto relaciona-se diretamente com a imaginação e a
memória, ou seja, ao acatar essas referências documentais da (auto)biografia, o processo
criativo torna-se um dos focos da pesquisa acadêmica que interessa-se tanto pelo relato e
documento quanto pelas formas e rearranjos criados artisticamente com tais fontes
documentais. Isso porque na arte, o imaginário possibilita um dialogo com o inconsciente,
com o fragmento esquecido, relembrado e recriado, que pode se materializar e reorganizar
em forma artística, essa consciente e visível. O que se propõe, enfim, é um imaginário que
recria a memória (auto)biográfica. Portanto, no contexto desta pesquisa, toda investigação
às fontes de documentos (auto)biográficos diz respeito à construção artística.
De acordo com o texto dramatúrgico de Festa de Separação: um documentário
cênico, “no documentário, realizador e espectador estabelecem um contrato pelo qual
concordam que tais pessoas existiram, que disseram tais e tais coisas, que fizeram isso e
aquilo. A realidade que interessa é aquela construída pela imaginação autoral.” (LEITE; FEPA,
2009, p. 3). Portanto, o documental trata do real, mas é um recorte, é um olhar direcionado
para algum momento ou questão específica.
O trabalho com o teatro documentário e, neste caso, com a (auto)biografia envolverá
uma pesquisa documental, com a coleta de fotografias, vídeos e documentos, além da

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1008


realização de conversas e entrevistas com familiares e amigos, e a produção de relatos,
gravações em vídeo com depoimentos meus e dos demais envolvidos na história.
Juntamente com a expansão do entendimento de teatro documentário e com a
compreensão de (auto)biografia, constatei necessário investigar o que é memória, visto que
é um conceito que perpassa os dois anteriores.

“O conceito de memória é crucial porque na memória se cruzam passado, presente


e futuro; temporalidades e espacialidades; monumentalização e documentação;
dimensões materiais e simbólicas; identidades e projetos. É crucial porque na
memória se entrecruzam a lembrança e o esquecimento; o pessoal e o coletivo; o
indivíduo e a sociedade, o público e privado; o sagrado e o profano. Crucial porque
na memória se entrelaçam registro e invenção; fidelidade e mobilidade; dado e
construção; história e ficção; revelação e ocultação.” (NEVES, 1998, p. 218 apud
DELGADO, 2003, p. 18)

Não se trata apenas de contar uma história de vida pessoal, trata-se de uma
reinvenção e de diversos contrapontos: lembrar e esquecer, revelar e esconder, consciente e
inconsciente, veracidade e dúvida, presente e passado.
A pesquisa se constitui de memórias... Quais são as memórias até aqui? Eis, que
lembro de discutir a ideia de memória em uma aula da disciplina de Estágio Supervisionado
de Docência em Teatro III – Oficina de Teatro, do Curso de Licenciatura em Teatro da UFSM.
Guiados pela pergunta “o que é memória pra você?”, Tainá é essência, Vera e Luis são
saudade. Coisas marcantes que aconteceram são as memórias da Marina... As da Josi são
lembranças boas e más. Já para o Deivide, é uma coisa boa! O Jacinto lembra algo que
vivenciou. A Cândice revisita o vivido, que é movediço, inseparável. Eu sou distância.
Distância próxima, que se cruza, se encontra. Para mim memória é o que nos constitui como
sujeito, são as referências que temos, as experiências que vivemos, mas também são as
vivências que esquecemos, aquelas que não trazemos à luz, sem saber exatamente porque,
mas que deixamos guardadas no baú das lembranças. A trajetória percorrida define quem
somos hoje.
Chegamos, então, ao ponto nevrálgico: a biografia dos meus pais resvala,
inevitavelmente, na minha (auto)biografia. A história de vida deles é o início da minha.
Contudo, as memórias deles que me foram reveladas, certamente, já passaram por
reelaborações, visto que a cada vez que um fato é narrado, há uma recriação involuntária,
como apresenta o ditado popular: “Quem conta um conto aumenta um ponto”. Da mesma
forma que as minhas memórias, em parte, também são reelaboradas ou até mesmo
inventadas, sendo que não lembro de muitos momentos relatados por eles, mas os aceito e
ainda reproduzo a narrativa.
Freud indaga a veracidade das lembranças de infância:

“Pode-se, na verdade, questionar se temos mesmo alguma lembrança da nossa


infância: lembranças relativas a nossa infância podem ser tudo o que possuímos.
Nossas lembranças infantis mostram-nos nossos primeiros anos não como eles
foram, mas como nos apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças
foram despertadas.” (FREUD, 1974, p. 354)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1009


Será que o pouco que lembro da minha infância não é real? Será que é criação?
Precisarei investigar mais. Talvez eu descubra durante esta pesquisa. Talvez eu passe a vida
toda sem essa certeza. Mas essa resposta não é tão importante, o que importa mesmo são
os sorrisos que cada lembrança me traz.

A fotografia, o filme e o vídeo como elemento documental no teatro: com a palavra,


Raquel Guerra

Ao percorrer a investigação sobre o teatro documentário e a memória, desde 2013, o


vídeo sobrepôs-se como um elemento constituinte da pesquisa, tanto por sua possibilidade
documental quanto pela experimentação artística.
No âmbito deste projeto de pesquisa, de natureza artística e científica, o uso dos
recursos de mídias e tecnologias de reprodução e comunicação pode ser identificado em
dois momentos: o primeiro refere-se ao próprio recurso de pesquisa das fontes
documentais, no qual as tecnológicas de comunicação evidenciam uma contribuição
fundamental, sobretudo, em relação ao registro fotográfico e videográfico. Tratam-se dos
documentos localizados (fotos, cartas escritas, jornais impressos, etc.) e dos documentos
produzidos (relatos gravados em áudio e/ou vídeo). O segundo momento refere-se ao
emprego artístico destes recursos, ou seja, qual é (ou qual será) o arranjo destes
documentos no acontecimento artístico? Neste quesito, da criação artística, pode-se
exemplificar a presença da projeção dos documentos (fotos, cartas, vídeos) durante o
acontecimento artístico, assim como a presença física dos próprios documentos.
Os meios artísticos sempre foram mutantes quanto às estéticas, formas e suporte da
criação. A História da Arte relata as transformações que – entrelaçadas aos campos cultural,
social, científico e filosófico – modificam o pensamento humano, sua maneira de ver e estar
em relação com o mundo. Assim foi com o surgimento da escrita, da imprensa (a primeira
grande mídia moderna), da fotografia e do cinema, da televisão, do vídeo e da revolução
digital.
Walter Benjamin (1955) ao falar da ‘reprodutividade técnica’ da obra de arte, prevê
uma profunda transformação cultural e social a partir dos adventos da fotografia e do
cinema, que marcam a virada do século XIX para o início do século XX, assim como uma nova
lógica cultural de produção e distribuição da arte.

As nossas belas-artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época
que se diferencia decisivamente da nossa (...) o extraordinário crescimento dos
nossos meios (...) os hábitos que introduzem anunciam-nos mudanças próximas e
muito profundas na antiga indústria do Belo. (...) É de esperar que tão grandes
inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a
própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em
termos mágicos. (VALÉRY apud BENJAMIN, 1955, p.1).

Entre estas inovações estão, a fotografia e o cinema, a partir dos quais Benjamin
repensa a produção, conservação e recepção da arte, e anuncia sua emancipação do âmbito
ritual, afastando da manifestação artística seu caráter de culto e sua ‘aura’231, pois “a

231
Segundo Tomaz Tadeu (2000) o termo ‘aura’ é utilizado por Benjamin “para se referir a mistura de prestígio
e respeito que se atribui às obras tradicionais de arte, vistas como objetos únicos e singulares, não
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1010
reprodutividade técnica da obra de arte altera a recepção das massas com a arte”
(BENJAMIN, 1955, p.13). E não foi apenas o cinema que provocou uma nova recepção, a
televisão, o vídeo e a internet trouxeram dinâmicas de produção e recepção diferenciadas.
Noutras palavras, com o surgimento das tecnologias de reprodução da imagem, nossa
cultura entra numa era onde passa a captar materialmente um momento vivido, ou um fato
ocorrido, ou uma experiência visual. Nesse sentido, a fotografia e o audiovisual constituem-
se em potentes recursos documentais para a história e cultura dos séculos XIX, XX e XXI.
Esta pesquisa mescla teatro com fontes documentais em fotografia e vídeo, portanto,
as considerações em torno destas linguagens objetivam propor mais as aproximações entre
elas que salientar suas diferenças.
Desse modo, a fim de contextualizar o caráter documental e o arranjo artístico das
mídias e tecnologias de reprodução no âmbito desta pesquisa, apresentaremos uma breve
revisão sobre o tema no contexto histórico-cultural das artes, principalmente a relação entre
teatro, vídeo, cinema.
Os primórdios do cinema são marcados pela variedade, pelas múltiplas possibilidades
de uso do registro fílmico que, em muitos sentidos distancia-se da fórmula cinematográfica
clássica incorporada, principalmente, pelo cinema hollywoodiano. Isso porque as evidências
das primeiras projeções fílmicas se misturavam aos teatros de feira e a outras manifestações
populares, a própria noção de montagem cinematográfica, considerada como um princípio
constituinte do cinema veio depois de 1905, e a noção mais clássica do cinema, como
ficção/história surge a partir da década de 1920/30. Antes disso, as projeções eram formas
cinematográficas experimentais e documentais, que se misturavam a diversas atrações
espetaculares.
Por outro lado, o surgimento do vídeo, como fenômeno de imagem, está associado à
televisão, cujas primeiras transmissões eram feitas ao vivo e o recurso de gravação de
programas, seriados e novelas veio depois, sendo restritos ao sistema comercial
principalmente em função do alto custo dos equipamentos e de seu grande porte. Por isso,
quando se fala do advento do vídeo na década de 1960/70, fala-se da videoarte e do vídeo
de caráter documental, pois é o período em que a câmera de vídeo ganha formato portátil,
acessível em termos financeiros. Desse período são identificadas as duas modalidades que
se posicionam fora do circuito do vídeo/televisivo: o chamado vídeo de guerrilha (jornalismo
documental) e a videoarte.
De certa forma, estas colocações que expõem o contexto histórico, científico e
cultural do século XX, também refletem a condição histórica do espectador. Jacques Aumont
(2005) fala da condição mutante do espectador (em relação ao cinema) e indica que essa
mudança do olhar afeta a esfera da vida humana em geral. Ou seja, se os espectadores dos
Irmãos Lumiere assustaram-se com a locomotiva que vinha em suas direções,
impressionaram-se com o registro documental dos trabalhadores saindo da fábrica,
contudo, o espectador contemporâneo olha com nostalgia as mesmas imagens. Isso porque
o ser humano muda concomitantemente às descobertas e fabricações de seus artefatos
culturais. No entanto, estes filmes, vídeos e fotografias de outrora conservam o registro de
um tempo, são documentos de uma história, de uma cultura.

reprodutíveis, em oposição às cópias e réplicas – destituídas de aura – que resultam das modernas técnicas
mecânicas e eletrônicas de reprodução” (TADEU, 2000, p. 17), como é o caso da fotografia, do cinema e do
vídeo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1011
Estas mudanças culturais, que chegam ao espectador irão afetar inevitavelmente o
teatro, que reage a esse novo espectador, a essas mudanças, seja por meio da crítica e
oposição, seja pela incorporação destas novas linguagens a cena (como o uso do filme, da
fotografia e do vídeo em cena), uma vez que os próprios artistas de teatro são afetados
pelas novas revoluções da produção de imagem por meio das tecnologias de seu tempo
(PAVIS, 2011; CORNAGO BERNAL, 2011). Noutras palavras, o espectador do teatro tem olhos
ávidos pelas imagens em movimento assim como também o próprio artista do teatro está
cotidianamente em contado com os novos arranjos culturais. Pode-se pensar que, assim
como fotografia modificou a pintura, as imagens do cinema e do vídeo irão interferir no
teatro e vice-versa.
Na historiografia teatral, por exemplo, vemos o trabalho de incorporação do uso da
projeção fílmica e de fotografias como um dado documental e como elemento de
composição narrativa no começo do século XX com o trabalho de encenadores como Erwin
Piscator e Vsevolod Emilievitch Meyerhold. Engajados na revolução política, estes artistas
exibiam documentos da realidade na cena teatral, desse modo, por meio do filme e da
fotografia, intercruzavam o real e o ficcional na criação teatral. Eles empregavam os recursos
tecnológicos de seu tempo para concretizar seus objetivos artísticos.
Assim como o cinema, o advento do vídeo foi incorporado à cena teatral. Segundo
Patrice Pavis, as experimentações das vanguardas das décadas de 1960/70 abrem a
encenação à performance e para a permeabilidade do vídeo:

Muito rapidamente, o vídeo se tornará, nos anos 1980, um meio para renovar a
narração cênica, para substituir um ator ausente (como exemplo, em LSD, do
WoosterGroup), para confrontar a atuação dos atores no palco com rua
representação na tela (Route1 et 9) (...) a partir dos anos de 1990, artistas de teatro
como Robert Lepage, Peter Sellars, Giorgio BarberoCorseti ou Frank Castorf
inauguraram uma nova etapa no uso do vídeo: (...) uma nova maneira de narrar
com os meios do teatro. (PAVIS, 2011, p. 181)

Esta nova maneira revela uma composição teatral familiarizada com o audiovisual,
cuja presença não é apenas provocativa, nem disposta apenas como instalação, o vídeo
passa a ser utilizado como elementos de composição nos quais o artista teatral aproveita de
seus recursos em favor de sua mise-en-scene, para incorporar um elemento documental,
narrativo ou cinematográfico, o vídeo torna-se uma tecnologia cênica, como a iluminação
compõe a cenografia e dramaturgia cênica.
Nessa perspectiva histórica, que evidencia a inter-relação do teatro com outras
formas de arte e mídias, a pesquisa justifica a incorporação dos dados documentais
coletados e produzidos pela artista/pesquisadora por meio dos recursos de mídias e
tecnologias da imagem. Ressalta-se que o emprego documental ocorre criativamente no
acontecimento teatral que será elaborado, nesse sentido é que a pesquisa irá utilizar-se de
diferentes recursos disponíveis para investigar, produzir e reelaborar as fontes
(auto)biográficas.

A guisa de continuidade

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1012


O percurso (auto)biográfico de Fernanda Saldanha conduz olhar para sua própria
história, para seus rastros. Ao mesmo tempo, a pesquisa nos deixa com o risco de parecer
que se quer contar a própria história de vida. Não se trata disso, mesmo que a história (no
sentido da biografia) esteja ali sempre presente de algum modo, seja pelos documentos
expostos ou pela leitura dos espectadores. Este percurso artístico que Fernanda Saldanha irá
desenhar está descortinando-se, neste período ela planeja ações iniciais, paralelamente, a
pesquisa acadêmica estende-se até o final de 2014.
Os estudos com o teatro documentário partem de uma experiência estética também
muito biográfica para a artista/pesquisadora, cujos encontros particulares foram citados ao
longo do texto. Os estudos com a produção audiovisual tiveram início já no projeto embrião
relacionado à disciplina de Estágio Curricular, logo no começo do artigo. O processo
finalizou-se com a produção de um singelo vídeo documental que já figurava um misto entre
ficção e realidade. No processo com a pesquisa de TCC, o vídeo aparece em registros que
estão em produção e como material bruto ainda, pois devem ser selecionados e editados. E
além dos vídeos, surgem uma coletânea de documentos (auto)biográficos que Fernanda está
vasculhando para assim poder moldar o acontecimento teatral que se propõe.
Portanto, depois da coleta do material documental, haverá em uma seleção e
organização deste material, a partir do olhar que se desejará dar para a narrativa. Logo após,
terá início a pesquisa experimental, focada no ato de fazer, no como efetivar o
acontecimento teatral, com os ensaios de criação a partir do material (auto)biográfico
levantado.
Por fim, o processo deve concretizar com uma apresentação pública da manifestação
artística resultante da pesquisa e com o TCC que apresentará os caminhos percorridos.
Desse modo, nós duas esperamos que os resultados desta pesquisa, recentemente lançada,
possam ser apresentados futuramente e que possamos apresentar as ações artísticas que
serão realizadas em um próximo texto, se os encontros das nossas pesquisas e escritas assim
permitirem.

Referências
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Sala Preta - Teatros do Real v. 13, n. 2, 2013). Disponível em
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1013


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DELGADO, Lucilia de A. N. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. In:
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TADEU SILVA, Tomaz. Teoria Cultural e Educação – um vocabulário crítico. Belo Horizonte:
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1014


Escritas e leituras de si: problematizando a permanência na universidade a partir de
relatos autobiográficos

Iansmin De Oliveira Gonçalves


UFRB/PET
Iansmin@gmail.com
Elder Luan dos Santos Silva
UFRB/PET
elluanss@gmail.com
Thais Calixto dos Santos
UFRB/PET
thais-calixto@hotmail.com
Tatielle de Souza Silva
UFRB/PET
tatielesouza.cahl@gmail.com

Esse trabalho tem como objetivo realizar uma reflexão teórica, baseada nos estudos sobre autobiografia,
trajetória de vida e políticas de afiliação acadêmica e permanência universitária, e na análise de relatos
autobiográficos orais e escritos de estudantes da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, membros do
Programa de Educação Tutorial, PET Conexões de Saberes: Acesso, Permanência e Pós-permanência. Ao
analisar as autobiografias, temos por intuito compreender de que forma, esses estudantes oriundos do
interior, das favelas, das margens e entornos do Recôncavo e interior da Bahia, trilham a sua permanência na
Federal do Recôncavo. Com isso, pretende-se identificar, quais são as políticas de inclusão e afiliação da UFRB e
quais os impactos que essa política tem na excelência da vida acadêmica desses estudantes. Para tal criamos
um diálogo analítico entre a auto-definição e as origens, para compreender melhor o perfil socioeconômico,
geográfico e racial desses estudantes, e consequentemente depreendendo sobre como se deu/se dá a sua
trajetória na universidade. Ao se fazer a opção pelas histórias de vida, pelo vivido e narrado no campo dos atos
formativos (JESUS, 2010, pp. 34) é como salienta Rita de Cássia Pereira de Jesus em seu livro Currículo e
Formação, legitimar o direito do sujeito-pesquisador escrever e falar em primeira pessoa, tornando-se autor de
si mesmo, das suas vivências e do sentido da sua existência. A autobiografia é uma escrita e leitura de si, os
autores são objetos e sujeitos de suas próprias narrativas. As trajetórias de vida, sejam elas pessoais ou
coletivas, são as provas do nosso conhecimento, e assim como salienta Santos, 2002, esse saber adquirido nas
trajetórias de vida dos estudantes estão presentes, mesmo que clandestinamente nas conjecturas ocultas dos
seus discursos e vivências acadêmicas.
Palavras-chave: Permanência; Trajetórias de vida; Afiliação; Autobiografia.

Introdução

Desde a implementação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia nas terras


do Recôncavo, especificamente nas cidades de Amargosa, Cachoeira, Cruz das Almas, Santo
Antônio de Jesus e mais recentemente nas cidades de Feira de Santana e Santo Amaro, que
os jovens de origem popular, oriundos das zonas rurais, bairros periféricos e pequenas
cidades do interior vêm contrariando com a lógica meritocrática e excludente da educação, e
assim rompendo com a frequente tradição de uma escolaridade de pouca duração, e
obtendo trajetórias de êxito escolar e acadêmico.
A renda per capita da família, a escolaridade dos pais, o trabalho na infância e na
juventude, a má qualidade da educação básica e a baixa quantidade de vagas nas
instituições de ensino superior sempre foram as principais variáveis que implicavam no
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1015
processo de escolarização de jovens de origem popular e filhos das classes trabalhadoras,
como esses,, e consequentemente, contribuía para que uma grande maioria de brasileiros
fossem excluídos do sistema de ensino superior (ZAGO, 2006. p. 228).
Entretanto, nos últimos 10 anos, o Brasil vem passando por uma série de
transformações naquilo que tange as formas de ingresso nas universidades públicas e as
políticas de meritocracia escolar. A interiorização das universidades federais, a expansão e
democratização da educação superior, e as políticas desenvolvidas pelo Programa de Apoio
a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o REUNI, estão mudando
a cara da universidade publica, e contribuindo para o acesso desses estudantes ao ensino
superior.
Durante 60 anos, a Bahia contava apenas com uma universidade Federal, que é a
Universidade Federal da Bahia - UFBA. Devido isso, os estudantes do interior que após
concluírem o ensino médio desejassem cursar o ensino superior, teriam que,
obrigatoriamente se mudar para a Capital. O mesmo acontecia no processo seletivo. A UFBA,
que apenas em 2013, aprovou em alguns cursos a sua forma de ingresso através do ENEM,
tinha o vestibular como principal mecanismo para os estudantes acessarem a universidade.
Com isso, aqueles que desejassem acessar o ensino superior, teriam que se deslocar à
capital para fazer as provas, depois para fazer matrícula e posteriormente abandonar todas
as suas origens para então poder de fato adentrar a universidade.
Até 2006, a Bahia contava com uma universidade Federal e quatro universidades
estaduais. A partir deste ano, com a interiorização das universidades federais, é que se tem a
criação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e em 2013, a aprovação da criação
da Universidade Federal do Oeste da Bahia -UFOBA e da Universidade Federal do Sul da
Bahia – UFESBA.
A expansão das universidades federais, leva aos estudantes do interior,
principalmente aos estudantes de origem popular, que não teriam condições de se deslocar
à capital para cursar o ensino superior a possibilidade de acesso a universidade. O REUNI,
política do governo Lula, responsabiliza-se por estruturar essas novas universidades, criando
condições de acesso, permanência e pós-permanência dos seus futuros estudantes.
A UFRB nasce no recôncavo, para o recôncavo. Criada em 2006, ela se desmembra da
UFBA, e se começa a dar os seus primeiros passos nas cidades de Cruz das Almas, Amargosa
e Cachoeira, tendo como grande missão, incorporar tanto no seu corpo discente, docente e
administrativo, assim como no seu currículo o povo, as culturas e tradições do Recôncavo
Baiano.
Esse processo de democratização e popularização do ensino superior impacta diretamente
nas vidas dos negros, pobres e os demais menos abastados do nosso País. A universidade,
que sempre foi um espaço de manutenção do status quo (COULON, 2008) de um
determinado grupo social-racial, começa a ser ocupada pelas camadas populares que
historicamente foram marginalizadas e privadas do direito a uma educação pública de
qualidade.
A universidade começa a criar um novo rosto, um novo perfil, com isso, geram novas
necessidades, novas preocupações. É preciso que a partir de então, que a universidade se
transforme, transforme as suas ações para que possa receber e afiliar esses novos
estudantes. Percebamos, que os negros e negras, e os demais estudantes pobres, cotistas,
vindos de escolas públicas que começam a acessar a universidade, encontram uma
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1016
universidade branca, elitista, eurocêntrica, que não atende a nenhuma de suas
necessidades.
Ao falar da entrada na universidade, Coulon (2008) e Lopez (2010) nos dizem:

[...] A entrada na universidade e um momento de intensas mudanças na vida


daquele que ingressa na graduação. Esse momento e visto como uma passagem da
condição de aluno a condição de estudante” (COULON, 2008).
[...] quando terá pela frente o desafio de construir seu próprio itinerário em um
contexto muito diferente do ensino médio, que impõe a ele diferentes concepções
do uso do conhecimento, das regras, do tempo e do espaço. Esse primeiro
momento de afiliação a nova instituição mostra-se como o mais delicado do
processo e se estabelece, na pratica da universidade, no período de maior risco de
abandonos e evasões. Aquele que chega sozinho, vindo de uma cidade do interior
do estado, enfrenta um grau ainda mais acentuado de rupturas e desestabilizações,
acrescentando-se aquelas comuns a todos os outros estudantes, a exigência do
afastamento de seus amigos, parentes, cidade, e o desafio de decifrar e interagir
com a mudança brusca de tempo e de espaço que uma grande cidade ira impor
(LOPEZ, 2010, p.01 ).

É sobre esse momento da entrada relatado por Coulon (2008), e sobre os processos
de afiliação da universidade abordados por Lopez (2010) e as condições de acesso e
permanência oferecidas pelas instituições de ensino superior, e sobre mais especificamente
como a UFRB trata e dá condições de acesso e permanência aos estudantes das camadas
populares, marcados pelas suas origens, pela sua ancestralidade, pela sua etnia e pela sua
escolaridade que este trabalho vai versar.
Diante do exposto, esse trabalho objetiva realizar uma reflexão teórica, baseada na
literatura nacional e na análise das autobiografias de onze estudantes de origem popular,
membros do Programa de Educação Tutorial, PET Conexões de Saberes da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia, publicadas no livro “Currículo, Formação e Universidade:
autobiografias, permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular”, no intuito
de compreender de que forma, esses estudantes oriundos do interior, das favelas, das
margens e entornos do Recôncavo e interior da Bahia, acessaram o ensino superior e
trilharam a sua permanência na UFRB.
Com isso, pretende-se identificar os impactos das políticas de inclusão e afiliação na
excelência da vida acadêmica desses estudantes, criando um diálogo analítico entre a auto-
definição e a cidade de origem, compreendendo melhor o perfil socioeconômico, geográfico
e racial desses estudantes, para assim depreender como se deu/se dá a sua trajetória na
universidade.
Ao se fazer a opção pelas histórias de vida, pelo vivido e narrado no campo dos atos
formativos (JESUS, 2010, pp. 34) é como salienta Rita de Cássia Pereira Dias de Jesus em seu
livro Currículo e Formação, “legitimar o direito do sujeito-pesquisador escrever em primeira
pessoa, tornando-se autor de si mesmo, das suas vivências e do sentido da sua existência. É
uma escrita e leitura de si, os autores são objetos e sujeitos de suas próprias narrativas
(JESUS, 2010, pp. 35).
As trajetórias de vida, sejam elas pessoais ou coletivas, são as provas do nosso
conhecimento, e assim como salienta Santos, (2002), esse saber adquirido nas trajetórias de
vida dos estudantes estão presentes, mesmo que clandestinamente nas conjecturas ocultas
dos seus discursos e vivências acadêmicas. Entretanto, a trajetória de vida, e os múltiplos
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1017
saberes que o indivíduo acumula durante o decorrer de sua vida, em muitas das vezes é
negado dentro do espaço acadêmico e universitário.
O aluno é tratado como uma tábua rasa, uma caixa vazia, que está ali para ser
preenchido dos conhecimentos científicos, detidos pela figura do professor. Ao analisar as
trajetórias de vida dos estudantes de origem popular, que compõe o PET conexões de
saberes, buscou-se compreender, a partir de um empreendimento historiográfico (JESUS,
2010, p. 26) o processo de formação desses indivíduos sob a perspectiva dos ensinamentos
adquiridos ao longo de sua vida, aquilo que foi apreendido a partir de suas vivências e
experiências, e que contribuíram para formar socialmente e culturalmente esses indivíduos.

Sobre o perfil dos estudantes analisados

Através das autobiografias, foi possível perceber, que todos os estudantes que
escreveram as suas histórias de vida são oriundos de comunidades populares urbanas, sendo
nove deles do estado da Bahia, especificamente das cidades de Cachoeira, Cruz das Almas,
Itaberaba, Feira de Santana, Ponto Novo e Santo Antônio de Jesus, e dois deles de fora do
estado, uma é oriunda de Nilópolis, no Rio de Janeiro e outra, oriunda do Maranhão. Nove
deles tem famílias de origem urbana, e dois , de origem rural.
Entre os autores, dez são oriundos de escola pública, e apenas uma estudou em escola
particular, entretanto como bolsista. Nove, acessaram a universidade através do Exame
Nacional do Ensino Médio, e dois, o processo seletivo se deu pelo vestibular. Dentre eles,
nove entraram pela política de reserva de vagas para estudantes negros, e oriundos
integralmente de ensino médio público em cursos regulares, ou da educação de jovens e
adultos.
Dez estudantes declaram-se negros, nenhum deles conseguiu conciliar o trabalho
com a vida universitária, e seis deles foram/são bolsistas do Programa de Permanência
Qualificada da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis232.
De todos os autores, oito foram os primeiros de suas famílias a acessar o ensino superior,
seis são os únicos de suas famílias que estão/entraram na universidade e cinco foram criados
apenas pela mãe, e não tiveram contato com a figura masculina do pai durante a sua
trajetória de vida.
Os sujeitos escritores do livro são em sua maioria do gênero feminino (oito), três são
do gênero masculino, entre eles um é homossexual. Cinco deles são cristãos, três dizem
apenas acreditar em Deus, e dois deles não tem nenhuma religião.
Nas suas autobiografias, percebe-se que seus pais sacrificam-se para manter os mesmos nas
universidades, destacando, que no caso dos cinco que foram criados apenas pela mãe, foi a
figura feminina quem incentivou e custeou a sua entrada no ensino superior.
Através das autobiografias, esses estudantes gritam as suas identidades, as marcas
sociais e culturais que carregam e os caminhos da sua formação, desde a entrada na
universidade, aos percalços para a permanência e conclusão.

232
O Programa de Permanência Qualificada (PPQ) é uma das ações constituintes do conjunto de políticas que
têm o propósito de articular, formular e implementar políticas e práticas de democratização relativas ao
ingresso, permanência e pós-permanência estudantil no ensino superior, de forma dialógica e articulada com
os vários segmentos contemplados por estas políticas, põe em prática uma ação de corresponsabilidade e
mutualidade no trato com as demandas da comunidade acadêmica. (PARECER, PROPAAE, 2010)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1018
Esses marcadores sociais (PELÚCIO, 2011. p.76): serem negros, estudantes de escola pública,
filhos de mãe solteira, pobres, oriundos de comunidades populares urbanas e bairros
periféricos da capital, cotistas, os primeiros a entrarem na universidade, vão implicar
diretamente nas suas condições de acesso e permanência no ensino superior, assim como
nas condições sociais, econômicas, e educacionais e nas diversas oportunidades durante
todo o decorrer de suas vidas.

A trajetória de vida: condições de acesso.

Pensar na realização de um curso superior em universidade pública no Brasil logo


após o ensino médio, também na rede pública, não é das mais fáceis vitórias. Não fosse a
enorme concorrência, as escolas públicas contam ainda com o desinteresse e a falta de
direcionamento de informação, fatores que interferem de forma direta no desestímulo
quanto ao ingresso no ensino superior.
A necessidade de ingressar no mercado de trabalho e a falta de incentivo por parte
de professores agravam ainda mais este quadro. Como solução, a primeira ideia é
compreender as ações afirmativas como políticas públicas de combate à desigualdade
estrutural de grupos mais vulneráveis à discriminação, e abrir o olhar para elas, em especial
para as cotas e seus critérios de acesso ao ensino superior.
A grande busca no ensino superior é de uma abertura para participação igualitária na
sociedade, e nas relações econômicas de trabalho e de poder. A partir da promoção do
acesso mais justo no ensino superior nas universidades públicas brasileiras, pensa-se um
conceito de benefício e à medida que se levanta essa questão, outra surge
consequentemente: quais grupos sociais serão contemplados com essa promoção: negros
ou pobres?

Estamos perante sistemas multifacetados, mesmo com um objetivo em comum: a


inclusão de populações e grupos, até então, sub-representados, principalmente nos
cursos de prestígio e forte concorrência como Medicina, Direito, Psicologia,
Odontologia, Engenharias, arquitetura. Trata-se, no último decênio, da
reivindicação de direitos pelos movimentos sociais, notadamente o movimento
negro, expressa no espaço público, e da elaboração de políticas, definidas no
ambiente dos conselhos universitários, cujo foco é um discurso direcionado para a
inclusão social e racial. (SANTOS, 2012.p.09).

O que diferencia o acesso é a diferença de classes e a discriminação racial. Como


demonstra na constância dos relatos autobiográficos dos onze estudantes, bolsistas do PET –
Conexões de Saberes: acesso, permanência e pós-permanência, que tiveram suas
autobiografias publicadas no livro “Currículo, Formação e Universidade: Autobiografias,
permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem popular”.
Todos, indubitavelmente são marcados pelos ditames da exclusão social, econômica, política
e cultural, visto que os homens e as mulheres negras, foram historicamente excluídos desses
espaços públicos de discussões e decisões, por serem considerados menos capacitados e
sobretudo, pela grande carga de preconceito e discriminação que remonta à escravidão.
Colocando-os como parte incapacitada para adentrar no mundo do trabalho formal, e se
apropriar de espaços públicos educacionais e decisões políticas.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1019


Essa situação de desigualdade entre negros e brancos, é resultado da trajetória
histórica dos povos negros no Brasil, pois, permaneceram por três séculos como
escravos e quando libertos passaram a compor a franja marginal da sociedade já
que, o sistema privilegiava em todas as instâncias de poder uma elite branca que
continua a ver os negros livres como submissos e subordinados a ordem vigente.
“O escravo liberto está no sopé da escala social agrária e mal se distingue da massa
de escravos, pois , embora liberto, continua a dever a seu antigo senhor a mesma
obediência, a mesma humildade”[...]
[...]Tanto que mesmo depois de mais de um século da abolição o negro ainda vive
em condições de desigualdade em relação ao branco. É preciso refletir sobre a
realidade da população negra brasileira, compreender a história, mas não usá-las
apenas como justificativas para todas as mazelas que estão sujeitadas. (FREITAS,
2012, p. 3)

Todo esse processo de transformação foi construído a partir das lutas dos
movimentos sociais negros, que pautaram paulatinamente a sua inserção na vida produtiva
de forma ampliada e reconhecimento das origens, da ancestralidade, religiosidade até então
renegada e discriminada.

Tratando-se da participação política, os quadros dos órgãos executivo, legislativo e


judiciário, compõe-se exclusivamente de brancos, salvo raras exceções que
confirmam a regra. Muitos bancos, comércios, linhas aéreas, universidades e
estabelecimentos públicos e privados de todo tipo contratam unicamente pessoas
de raça branca, que por vezes são responsáveis pelas piores prestações de serviços
à maioria da população negra. (WEDDERBURN, 2007)
A ausência de políticas para inclusão dos negros na sociedade desde a abolição
deve
ser considerada como fator de negligência da sociedade e do Estado brasileiro,
desse modo faz necessário considerar a urgência em desenvolver medidas de
inserção dos negros em todos os espaços sociais, pois se entende que não é
possível “lutar” com igualdade uma vez que a história entre negros e brancos é de
desigualdade (FREITAS, 2012, p. 4).

Em nosso país, para se ter acesso ao ensino superior é preciso ter o ensino médio
completo, logo o acesso ao ensino superior é desigual em termos de classe e raça. Esse
debate centraliza-se nas medidas de adoção das ações afirmativas para o ingresso na
universidade pública, girando em torno da reserva de vagas, estabelecida pela implantação
de cotas para determinados grupos sociais: baixa renda, egressos de escola pública, negros e
indígenas.
Para tanto, pensando na promoção da igualdade, o que se busca pela política de
cotas não é o direito às sobras, mas sim, acesso igualitário nos mais variados níveis de
responsabilidade e de comando na vida nacional. Nesse sentido, a política de cotas busca a
inclusão de brasileiros que, por razões históricas e estruturais relacionadas ao nosso racismo
“à brasileira”, encontram barreiras que a educação e formação superior podem em parte
remover.
Há quem contrarie a lógica da proposta, vendo na política de cotas a possibilidade de
queda na qualidade da educação, pensando que o ensino e seu resultado pode ficar ruim
com a entrada de negros, pobres e alunos de escola pública.
Entretanto, pensemos! Será mesmo que as condições de acesso para um estudante de
escola pública de um bairro periférico de Salvador é a mesma para um estudante de um
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1020
colégio particular de um bairro nobre? Será mesmo, que as condições de ter êxito no ENEM
de um estudante do ensino médio, filho de mãe solteira, de classe baixa, com origem rural e
que tem uma escolaridade deficiente é a mesma de todos os estudantes que fazem o
exame?
Dentre os estudantes autores das autobiografias, nove deles acessaram o ensino
superior através das cotas, talvez, se não fosse à política de cotas, se não fosse essa garantia
de acesso diferenciada, a estudantes que tiveram uma formação e oportunidades
diferenciadas, esses oito estudantes não estariam hoje publicando um livro com suas
trajetórias de vida.
Em 2009, a forma de acesso aos cursos da UFRB, para ingresso em 2010, foi
modificada. A instituição aderiu ao Novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o
ingresso dos alunos aos cursos se deu por meio da utilização desse exame através do
Sistema de Seleção Unificada (SISU). Esta nova forma de ingresso apresentou um resultado
expressivo na quantidade de candidatos inscritos na UFRB, visto que o SISU oportunizou que
muitos estudantes de várias partes do país pudessem realizar suas inscrições sem se
deslocar de suas residências.
O mesmo se aplica ao Exame Nacional do Ensino Médio. Todos os estudantes que
estudam hoje na UFRB, fizeram o ENEM em suas cidades de origens, o que possibilita que
estudantes oriundos de outras cidades do interior do estado, e outras cidades do país,
também possam optar por está na Federal do Recôncavo.
A seleção por meio do ENEM é uma seleção meritocrática, sendo um exame
individual, de caráter voluntário, oferecido anualmente aos estudantes que estão
concluindo, ou que já concluíram o ensino médio, em anos anteriores. Seu objetivo principal
é possibilitar uma referência para auto-avaliação, a partir das competências e habilidades
que estruturam o exame.
Diferente dos modelos e processos tradicionais de avaliação para acesso ao ensino
superior, a prova do ENEM é interdisciplinar e contextualizada. Enquanto os vestibulares
promovem uma excessiva valorização da memória e dos conteúdos em si, o ENEM coloca o
estudante diante de situações-problemas e pede que mais do que saber conceitos, ele saiba
aplicá-los.
Entretanto, vale ressaltar, que assim como a grande maioria dos processos de
seleção, o ENEM também homogeneíza os seus candidatos. No momento em que os quatro
milhões de inscritos fazem as provas, eles são tratados como iguais. É uma única prova, é o
mesmo método de seleção e teste de conhecimento, tanto para estudantes de escolas de
ensino-médio e cursinhos pré-vestibulares particulares, que passam o decorrer da sua
formação sendo treinados para aquele momento, quanto para estudantes de escolas rurais,
de favelas, quilombos que por vezes, nem sequer tiveram a grade de professores completas
na sua formação.
Na hora da prova, esses onze estudantes que escreveram as suas auto-biografias, que
são de origem popular, foram tratados igualmente aos outros milhões de estudantes do
país. Só posteriormente, quando os mesmos forem optar pela sua universidade e pelo curso,
é que eles serão diferenciados e tratados com equanimidade.

Equidade de acesso é o fator inicial de discussão quando se fala em Educação


Superior, no entanto ela só ocorre a partir do momento que todos têm as mesmas
condições de competir, isto é, quando o ensino anterior ao Ensino Superior é
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1021
oferecido em qualidades iguais a todos, proporcionando então, uma competição
justa. O mesmo ocorre em relação à equidade de progresso e resultado no Ensino
Superior. Dessa forma as barreiras ou dificuldades encontradas por cada estudante
não podem estar associadas a questões consideradas como fora de controle, ou
seja, aquelas que existem independentes do querer de cada um, tais como raça,
sexo, idade, deficiências, família ou situação socioeconômica, as quais se
identificam neste trabalho como “características iniciais”. Portanto, na área de
educação, a igualdade de oportunidades significa que as distribuições dos gastos
educativos devem vir a compensar as possíveis “características iniciais” e que os
resultados venham a depender dos esforços de cada um (FELICETTI, MOROSINI,
2009. p.11)

Como, entendemos que todos os estudantes que prestam o ENEM não possuem
condições iguais de realização com êxito da prova, as cotas, vem a ser a política de equidade
do governo. Optar pelas cotas, ao invés da ampla concorrência, no sistema de seleção
unificada, afirma que esses nove estudantes que escreveram suas autobiografias, assim
como os inúmeros estudantes que fazem essa opção e que tiveram uma formação
diferenciada, têm direito ao acesso ao ensino superior. Ao optar pelas cotas, esses
estudantes fazem uma opção política. Eles se reafirmam e afirmam as suas identidades, eles
tomam pra si, um lugar que é seu por direito.

Protagonismo, afiliação acadêmica e permanência qualificada.

Tendo em vista que o acesso a universidade, sempre foi negado aos negros, negras e
pobres do Brasil, o ensino superior, seja ele público ou particular, esteve por muito tempo
concentrado na mão de uma minoria rica e branca. Assim nos relata Ari Lima (1999), em seu
trabalho “A Legitimação do Intelectual negro no meio acadêmico brasileiro: negação de
inferioridade, confronto ou assimilação intelectual?”:

[...] o lugar do negro na academia brasileira é quase o da absoluta ausência e


negação[...] Minha voz subalterna fala então não apenas de uma opressão
econômica e racial, mas também de um passado histórico de inacessibilidade a
campos de saber e poder legitimados, da contenção de símbolos e valores negro-
africanos, da restrição à palavra e da dificuldade do uso de categorias e conceitos
que traduzam a minha experiência como intelectual negro na academia
brasileira.(LIMA, 1999, p. 284)

Entretanto, devido às transformações, aqui mencionadas na educação superior, os


negros, e os diversos estudantes de origem popular, começam a ocupar lugar dentro do
espaço universitário. Porém, após o acesso, outro grande problema, que impacta
diretamente na evasão aparece - a permanência, que vem contrariar muitas vezes a
conclusão com êxito do curso superior.
As dificuldades de permanecer na universidade, encontrada pelos onze estudantes
aqui analisados, não implica somente aos aspectos financeiros, este que é de extrema
importância para os mesmos, fruto de uma opressão econômica e racial notada ao longo da
história do Brasil, mas, como nos relata Coulon, 2008, a permanência universitária estará
estritamente ligada aos processos de identificação com a universidade e a academia.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1022


Esses estudantes, ao adentrarem a universidade, se depararam com a problemática
de permanecer num ambiente acadêmico desconhecido, pois o espaço universitário acaba
sendo um lugar estranho, onde o estudante não se identifica, nem mesmo afilia-se com o
mesmo.
Isso se dá, quando os mesmos entram na universidade, e são submetidos ao processo de
seleção e classificação social (COULON, 2008, pp 31) em que precisarão mostrar as suas
habilidades e seus conhecimentos, para serem socialmente considerados competentes.

Eu entendo por afiliação o método através do qual alguém adquire um status social
novo. O estudante deve mostrar seu savor-faire na medida em que ele é uma
condição de sucesso. Ter sucesso significa que fomos reconhecidos como
socialmente competentes, que os saberes adquiridos foram legitimados. (COULON,
2008. p. 32)

Na maioria das vezes, os saberes e conhecimentos que são legitimados pelas


instituições de ensino superior, e pelo sistema educacional como um todo, não são os
saberes socialmente e culturalmente construídos pelos indivíduos. O estudante acaba tendo
que adaptar-se aquela estrutura pré-estabelecida. É por isso, que uma parcela dos
estudantes de origem popular, acabam evadindo das universidades, porque suas identidades
não são legitimadas naquele espaço, seus saberes não são reconhecidos, restando sempre
para eles o local de estranhamento.
Para Coulon (2008), a entrada na universidade é uma passagem, que através do
sentido etnológico do termo, ele divide em três tempos: o do estranhamento, da
aprendizagem e da afiliação. Muitas vezes, a afiliação não acontece, por que os indivíduos
estudantes ao não se identificar com esse espaço, não alcançam a condição de
aprendizagem, o que consequentemente faz com que os mesmos entrem para as estáticas
da evasão.

As pesquisas sobre evasão apresentam duas faces distintas, as quais, segundo


Braga e outros (2003) são o resultado da decisão do aluno ou de uma combinação
de fatores sociais, econômicos e pessoais, quer seja a necessidade precoce de
ingresso do aluno no mercado de trabalho, ou as dificuldades encontradas em
razão das condições desfavoráveis de currículo escolar, professores e organização
da escola, como por exemplo a falta de orientação vocacional, imaturidade do
estudante, reprovações sucessivas, dificuldades financeiras, falta de perspectiva de
trabalho, ausência de laços afetivos na universidade, ingresso na faculdade por
imposição familiar, casamentos não planejados e nascimento de filhos (BAGGI,
LOPES, 2011. p. 358)

A academia, assim como a toda a educação brasileira, foi construída através de uma
perspectiva branca, elitista e homogênea, que desconsiderou e negou por longo tempo o
ingresso das classes populares. Com isso, tanto os indivíduos, quanto o conhecimento
adquirido e construídos por eles, foi e continua sendo marginalizado pelas instituições de
ensino superior.
Nas auto-biografias dos estudantes que analisamos, podemos perceber que a
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, caminha para a valorização daquilo que eles
são e do lugar que eles vêem. Por está situada no Recôncavo da Bahia, a UFRB, assim como
as outras instituições de ensino, sejam elas da educação básica ou de ensino superior, não
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1023
podem simplesmente ocupar o Recôncavo, ela tem que ser do Recôncavo, e incorporar em
suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, a história, a cultura, as tradições e saberes
do Recôncavo e do seu povo. Acreditamos que esse seja um dos caminhos para a
permanência com êxito desses estudantes na universidade. A valorização do seu saber e do
seu lugar de origem.
No mais, há na instituição outras possibilidades de permanência. Entre elas, está o Programa
de Permanência Qualificada - PPQ, que atende estudantes dos quatro centros da UFRB,
disponibilizando auxílio pecuniários para transporte, moradia, alimentação e pesquisa.
Outra possibilidade de permanecer na UFRB, é participar de alguns dos programas do
governo de incentivo a pesquisa, a docência, a extensão e ao desenvolvimento tecnologico,
a exemplo do PIBIC (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Pesquisa), PIBID
(Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência), PIBIT (Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação ao Desenvolvimento Tecnológico e Inovação), PET (Programa de Educação
Tutorial) entre outras políticas que visam assegurar o êxito da comunidade acadêmica e dar
aos estudantes condições de criação e continuidade intelectual.
No PPQ, os estudantes são avaliados a partir do conceito de equidade, já aqui
abordado. Suas origens, suas condições sociais, econômicas e suas trajetórias de vida serão
analisadas e levadas em conta no momento da sua seleção. Infelizmente, o PPQ ainda não
atende a todas as necessidades dos estudantes de camadas populares da UFRB. Atualmente,
cerca de dois mil estudantes são atendidos pelo programa, sendo que a universidade conta
com mais de oito mil estudantes matriculados.
Por outro lado, os programas de incentivo a docência, pesquisa e desenvolvimento
tecnológico classificam os estudantes a partir do seu desempenho final nas disciplinas
cursadas. Na grande maioria das vezes, o escore é o principal parâmetro de seleção e
consequentemente, aqueles que tem o melhor desempenho acadêmico são os que,
provavelmente, ocuparão as vagas dos referidos programas.
O Programa de Educação Tutorial - PET, na categoria Conexões de Saberes vem
contrariando essa lógica. Atualmente, os grupos do PET são divididos em três categorias, PET
- Curso, PET - Interdisciplinar e PET - Conexões de Saberes, dentre esses, o único que valoriza
a trajetória de vida e as especificidades dos indivíduos é o Conexões.
Para integrar ao PET Conexões de Saberes é necessário, assim como nos demais
programas, passar por uma seleção. O que vai diferenciá-lo dos outros, e ressignificar o
processo de inserção e conquistas de bolsas de permanência, é o tratamento que os
estudantes receberão quando se candidatarem a uma das vagas do programa.
No PET – Conexões de Saberes: Acesso, Permanência e pós-permanência na UFRB, quais os
onze estudantes que escreveram as suas autobiografias são membros, as vagas do programa
são destinadas exclusivamente a estudantes de comunidades populares urbanas e/ou
periféricas, com origem escolar de instituições públicas e acesso a universidade através da
política de cotas.
O PET – Conexões contraria o perfil hegemônico dos estudantes que já compunham o
Programa de Educação Tutorial. Criado em 2009, ele traz para dentro de um programa
branco/elitista/e de classe econômica média/alta os estudantes que por muito tempo
estiveram excluídos tanto do acesso à universidade, quanto dos programas de ensino,
pesquisa e extensão que são grandes garantias de permanência.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1024


Dentro do relato feito por os estudantes autores, eles salientam a importância que a
entrada no PET teve/tem para sua formação e permanência na universidade. O programa,
além de um auxílio financeiro de R$ 400,00, insere esses estudantes no universo da
pesquisa, do ensino e da extensão. Pouquíssimos são os estudantes que conseguem ser
formados a partir desse tripé. E anteriormente a existência do Conexões, assim como das
políticas de acesso e permanência, pouquíssimos eram os estudantes de origem populares
que se quer acessavam ao ensino superior, quanto mais aos programas que visam o
melhoramento acadêmico e qualificação profissional.

O Pet não visa apenas proporcionar aos bolsistas e aos alunos do curso uma gama
nova e diversificada de conhecimento acadêmico, mas assume a responsabilidade
de contribuir para sua melhor qualificação como pessoa humana e como membro
da sociedade. (MANUAL, 2006).

Para os mesmos, vivenciar este processo na universidade os coloca como


importantes atores no processo de mudança da relação universidade-sociedade. O
programa colabora para a permanência, para a formação com êxito e para transformação
tanto dos estudantes, quanto do espaço universitário.

Considerações Finais

o relato biográfico se apresenta como um movimento de investigação e ao mesmo


tempo formação à medida que enfoca o processo de conhecimento e de formação
que se vincula ao exercício de tomada de consciência, por parte do sujeito, das
itinerâncias e aprendizagens ao longo da vida. (SILVA, 2013, p. 19)

É exatamente esse processo de tomada de consciência de si no mundo, que as onze


histórias e estórias “auto-relatadas”, vem trazendo até nós. Histórias marcadas comumente
por um processo de busca de conhecimento. Cada qual com suas vicissitudes e experiências.
Todos igualmente lutadores(as). Filhos de uma mesma classe social, pobres, negros, não
detentores de meios de produção e que portanto nessa sociedade de classes ocuparam o
lugar de trabalhadores assalariados, aonde vender sua força de trabalho para sobreviver foi
o caminho possível, diante das poucas oportunidades que existiram.
A origem, de suas famílias, as ocupações de seus pais, e mães, e as circunstâncias em
que cresceram também foram muito semelhantes. Metade de criados apenas por mulheres,
o que vem romper também com a ideia de família ideal, tradicional, e pôr em questão os
novos arranjos familiares, e as alarmantes dificuldades que muitas famílias matrilineares
pobres, negras passam desde a escravidão até os dias atuais.
E hoje estar na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia é sem dúvida uma
vitória conquistada por eles e por muitos que como eles, por muito tempo não
vislumbravam a universidade como espaço de realização e continuidade de estudos. Foi o
incentivo de suas famílias que viveram as contradições desse sistema na pele, bem como as
novas condições de acesso (ENEM-SISu) que desde 2008 foram modificadas que ensejou
neles o desejo de entrar na universidade, bem como de permanecer e sobretudo construí-la.
É nosso dever refazer as bases, popularizar os conceitos, reinventar a universidade
publica brasileira. As histórias de vidas analisadas, demonstram o quanto os mesmos são

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1025


dignos em estarem dentro da universidade e sobretudo o quanto precisam alargar para que
outros oriundos das mesmas condições que ele adentrem ao ensino superior, para que
juntos derrubemos seus muros, coloquemos nossos saberes populares, nossa cultura
popular, nossas raízes, nossa arte, nossa voz, olhares, nossos conceitos e ideais, porque a
luta ideológica continua e as transformações por uma Universidade verdadeiramente Nova
está apenas começando.
Somos rurais, somos urbanos(as) periféricos(as), somos quilombolas, somos
indígenas, somos negros(as), e também somos do Recôncavo, uns de nascença outros de
morada! Queremos um currículo que contemple nossas histórias, a história aonde as
universidades se alojam, queremos acesso irrestrito não só no Recôncavo, mas em todas as
Universidades Públicas Brasileiras, queremos COTAS e por isso a luta dos movimentos
negros, identitários, a luta da periferia, a luta dos camponeses, é fundamental para
mudarmos a correlação de forças na sociedade e pautarmos com veemência nossas
bandeiras, nossas reivindicações.
As políticas de ações afirmativas da UFRB, em que os integrantes do PET-Conexões de
Saberes Acesso, permanência e pós permanência majoritariamente são beneficiados, ainda
precisam de avanços significativos para que a permanência aconteça com pleno
atendimento das necessidades de seus bolsistas, sem negar, contudo, os avanços que esta
política teve na universidade, e a preocupação que esta universidade teve em criar uma pró-
reitoria para discussão desses assuntos que vem reafirmando o lugar destes estudantes
dentro da universidade.
Esses estudantes contrariam as estatísticas de evasão, ao permanecer na
universidade, eles recriam a contra-hegemonia, colaborando para a política institucional, e
avançando na reinvenção desta nova universidade, desta nova forma de aprender, de trocar,
de fazer pesquisa e extensão. Esse papel político encarado por eles dentro das salas de aula,
e fora delas, os fortalecem, por serem um grupo em conexão, em formação transformadora,
problematizadora.
Não somos receptores das políticas. Problematizar e propor mudanças é nosso dever,
somos sujeitos desse processo e de um novo projeto de vida, de formação acadêmica, de
formação humana. Engendramos essa luta, e acreditamos que o novo está em nós, e que
por nós também muitos outros virão para somar, agregar e expandir esta universidade na
contracorrente, na contra hegemonia do saber!
Por fim, acreditamos que as autobiografias colocam os sujeitos no centro da
construção do conhecimento, suas práticas, fazeres, carreiras, condutas, experiências e
subjetividades possibilitaram-nos interpretar e compreender as políticas de inclusão,
permanência e afiliação acadêmica da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Referências
COULON, Alain. Condição de Estudante: A Entrada na vida Universitária. Salvador:
EDUFUBA, 2008, pp. 31-46.
.JESUS, Rita de Cássia Dias Pereira de. In:. NASCIMENTO, Cláudio Orlando Costa do. JESUS,
Rita de Cássia Dias Pereira de. Currículo e Formação: diversidade e educação das relações
étnico-raciais. Curitiba: Progressiva, 2010, p. ?

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1026


ROMERO, Tania Regina de Souza. Autobiografias na (re)construção de identidades de
professores de línguas: o olhar crítico-reflexivo. Campinas, SP: Pontes, 2010. 348p. (Colecao
Novas Perspectivas em Linguistica Aplicada).
ZAGO, Nadir. Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes
universitários de camadas populares. Revista Brasileira de Educação, V. 11, Nº 32, 2006.
BUENO, Belmira Oliveira. O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de
professores: a questão da subjetividade. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, V. 28,
Nº1, pp 11-30.
Fórum Pró-igualdade Racial e Inclusão Social do Recôncavo, Projetos, Relatos e Imagens/
Organizado por Rita de Cássia Dias P. de Jesus_ Cruz das Almas, BA: Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, 2008.
SOUZA, Elizeu Clementino. Estágio e Narrativas de Formação: escrita (auto)biográfica e
prática de autoformação. (tese)
FRANCO, Maria Aparecida Ciavatta. Acesso à Universidade : uma questão política e um
problema metodológico.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1027


Emilia Biancardi e a escrita feminina censurada: memórias e identidades do povo baiano
em “Dez Anos de Viva Bahia”

Isabela Calmon
UFBA–PIBIC–CNPq
isabela_antares@hotmail.com
Rosinês de Jesus Duarte
UFBA/ETTC
rosinesd@ufba.br

No período da ditadura militar no Brasil, a música, o cinema, o teatro e outras formas de arte foram
censurados na tentativa de silenciar tudo que pudesse representar uma oposição aos ‘bons costumes’ e aos
interesses do governo vigente. Através da leitura das peças teatrais vetadas escritas por mulheres, é possível
delinear como ocorreu à resistência e a luta por um sistema democrático, diante da atuação censória em sua
forma mais coercitiva e opressora. O presente trabalho, pautando nos mecanismos disponibilizados pelos
estudos filológicos, busca contribuir para a preservação da memória da dramaturgia baiana, bem como
delinear como a escrita feminina está inserida no texto teatral censurado ‘Dez Anos de Viva Bahia’ de Emilia
Biancardi Ferreira. No musical, várias vozes estão a ecoar e construir uma nova forma de luta contra o racismo,
o sexismo e o preconceito religioso tão presentes na sociedade. Neste contexto, bosqueja-se a dramaturga
baiana como uma representação velada de um eu social-feminino, retratando em sua obra a realidade do
negro escravo e a sua contribuição à cultura brasileira. Essa subjetividade feminina é castrada pelos cortes da
censura e, através do estudo destes, mais especificamente, os cortes de cunho moral relacionados à
sexualidade, busca-se perceber como tais rasuras representaram esse regime tão conturbado e também como
estas funcionam para a afirmação do feminino.
Palavras-chave: Leitura filológica; Memória da dramaturgia baiana; Dez anos de Viva Bahia; Subjetividade
Feminina.

Considerações iniciais

A escrita é o resultado das experiências do autor, da sua história de vida, da sua


vivência em todas as facetas de complexidade e idiossincrasias. Ela se entrelaça com sujeito
e carrega traços da sua sensibilidade, corroborando para a construção da identidade desse
sujeito enquanto ser e ator social. Sobre esses aspectos autobiográficos, em se tratando de
escrita ficcional, Klinger (2012 p. 10) traz a opinião de Ítalo Moriconi, pois este acredita que
‘o traço marcante na ficção mais recente é a presença do autobiográfico real do autor
empírico em textos que por outro lado são ficcionais’. Estando situados entre o âmbito
ficcional e não-ficcional, tais textos estariam aptos a carregar rasuras da história de vida do
autor, torções de memória de sua ancestralidade e do meio que a constituiu, através de
elementos que articulam essas memórias, biografias e a ficção como elementos que se
encontram.
Emília Biancardi Ferreira, escritora e etnomusicóloga baiana, fundadora do grupo
parafolclórico VivaBahia, demonstra em suas peças, mas especificamente no musical a se
tratar aqui, ‘Dez Anos de Viva Bahia’, de 1973, profundo conhecimento e interesse pela
cultura popular baiana, evidenciando a cultura afro através das suas danças, músicas, credos
e instrumentos. Isso, por certo, não pode ser desvencilhado do fato de a autora, que nasceu
em 1932, ter crescido em Vitória da Conquista, o que, de acordo com Duarte (2013)
propiciou-lhe contato com as manifestações populares na mais tenra idade. Tal fato
corrobora a ideia de Philippe Lejeune, ressaltada por Klinger (2012, p.10), tendo em vista
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1028
que ‘o autor, por meio de alguma indicação’ em seu texto ficcional, propicia condutores e ‘os
dá a ler indiretamente como os “fantasmas reveladores do indivíduo”’. Dessa forma, Emilia
Biancardi ‘evoca as lembranças da sua infância – assim como autora’, por utilizar tal
referencial (auto) biográfico de modo explícito e implícito na construção do seu texto teatral.
Tendo em vista os mecanismos disponibilizados pela crítica textual, o presente
trabalho visa tecer algumas considerações a respeito da busca pela preservação da memória
da dramaturgia baiana, bem como delinear como a escrita feminina está inserida em Dez
Anos de Viva Bahia.
A preocupação da análise filológica do texto reside em se compreender as inter-
relações sócio-históricas, lingüístico-discursivas e político-culturais nas quais tal texto se
inscreveu. Santos (2012, p. 57) enfatiza o caráter ‘atual’ do labor filológico, de modo que
este se mostra ‘coerente com a forma de pensar e construir o saber da contemporaneidade’
abarcando o ‘aspecto multifacetado e fragmentado do objeto de estudo’, de modo a
desenvolver um trabalho ‘transdiciplinar pondo em diálogos com vários saberes’, como a
História Cultural. Chartier apud Santos (2012, p.140) ressalta que a História Cultural objetiva
“identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é
construída, pensada, dada a ler”. Conforme Santos (2012):
A partir do conceito de representações, o texto, o objeto de estudo da Filologia
Textual, torna-se também objeto da História Cultural, pois esta disciplina busca
compreender como o texto aplica-se à situação do leitor, como reconfigura-se sua
própria existência e torna-se uma mediação para a compreensão de si mesmo
(SANTOS 2012 p. 141)

A análise dos cortes em “Dez Anos de Viva Bahia”, enquanto prática inscrita na
filologia, contribui para recuperação e estudo de textos teatrais censurados escritos por
mulheres na década de setenta. Na peça de Emília Biancardi Ferreira, várias vozes estão a
ecoar e construir uma nova forma de luta contra o racismo, o sexismo e o preconceito
religioso ainda tão presentes no bojo social. O musical retrata a realidade do negro que ao
tornar-se escravo em um país estrangeiro, traz consigo suas danças, religião, sua
contribuição que junto a outros povos compõe a cultura brasileira. Nas músicas da peça,
compostas pela própria autora, as letras abordam o cotidiano da época, uma forma de lidar
com o pesar e manter a sua cultura diante das condições às quais foram impostos. Lê-se na
‘Abertura’ da peça, no 1º quadro intitulado “Vim de Luanda”:
Pretendemos sintetizar, através da dança, o negro antes de se tronar escravo, com
sua liberdade total e sua intimidade com a natureza. O negro que ao ser
despatriado, fez das novas terras, para onde foi levado, sua nova pátria. Os negros
que, chegando ao Brasil, foram as mãos e os pés dos senhores- de –engenho e,
apesar dos grilhões e do fardo da escravidão, nos deram como herança seus
cânticos, suas danças, seus mistérios, seus quitutes, seus deuses, sua coragem, o
seu instinto de liberdade. A cultura negra, até chegar aos nossos dias, muito se
transformou e se misturou a outras culturas, principalmente a portuguesa, a
espanhola e a indígena. De todo esse Caldeamento surgiu a cultura afro brasileira.
(FERREIRA, 1973, f.1)

Conforme Said (2007 p. 111) “é especialmente apropriado que o humanista


contemporâneo cultive essa percepção de mundos múltiplos e tradições complexas que
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1029
interagem umas com as outras.” Dessa forma, “defendem-se diferentes chaves de leituras
para os textos teatrais” que compõem a dramaturgia baiana “naquele período de
repressão”. Nesse sentido, Santos (2012) bosqueja a relevância da filologia na
contemporaneidade, como prática que abarca, resgata e reconhece ‘as possibilidades de
crítica humanista’, até mesmo as que, porventura vieram a ser silenciadas e castradas no seu
âmbito sócio- cultural.
Desse modo, a filologia como prática humanística contemporânea é uma tentativa
de problematizar a tradição ocidental – etnocêntrica – e recepcionar todas as
possibilidades de crítica humanística, frutos das rasuras e investidas dos
movimentos feministas, negros, latino-americanos, asiáticos e de outras tradições
culturais não-ocidentais. (SANTOS, 2012, p. 58).

A censura no texto teatral

Sabe-se que durante a ditadura militar no Brasil, instaurada entre 1964 e 1985,
todos meios de comunicação eram submetidos a uma cesura prévia. O Ato Institucional Nº 5
(AI-5) impôs o medo, o terror e legitimou a violência. Este foi um mecanismo utilizado para
reprimir e intervir nas produções artísticas, nos veículos de imprensa, promovendo o
exercício do cerceamento e, suprimindo-se assim, a liberdade civil e de expressão. As
diversões públicas - a música, o cinema, o teatro e outras formas de arte - foram censuradas
na tentativa de silenciar tudo que pudesse representar uma oposição aos ‘bons costumes’ e
aos interesses do governo vigente. Dramaturgos, compositores, cineastas, e, a classe
artística em geral, muitas vezes, se utilizava das expressões artísticas como meio de oposição
democrática ao regime ditatorial. O teatro também se configurou como local de resistência
contra a opressão e, sendo assim, é testemunha deste período obscuro. Santos (2012)
ressalta que:
O texto teatral censurado é tomado como testemunho/ documento (prova) e
monumento (memória), materializado em determinado suporte, de uma produção
cultural e literária de uma dada sociedade, época e lugar (...). Imagens fotográficas,
documentos (pareceres, solicitações, certificados de censura) e textos teatrais
encaminhados ao Serviço de Censura do Departamento da Polícia Federal
possibilitam aos pesquisadores de distintas áreas (re) construir parte desse
contexto sócio histórico no qual circulavam tais produções. (SANTOS, 2012, p. 20).

O texto teatral era então submetido ao exame da censura para que fosse verificado,
se, porventura, tal texto atentava contra o regulamento censório que atuava de forma
arbitrária, coercitiva e opressora. Os cortes eram classificados como sendo de cunho moral,
social, político ou religioso. Tendo em vista o corpus desta pesquisa, dar-se-á aqui maior
atenção à censura de cunho moral.
De acordo com a classificação da censura, a peça teatral podia ser liberada,
parcialmente liberada, liberada para menores de 18 anos ou vetada. No primeiro caso, a
peça é liberada em sua plenitude, sem que a documentação tenha sofrido modificações.
Parcialmente liberada significa dizer que a peça sofre modificações, cortes e é permitida
para uma determinada faixa etária. No terceiro caso, os censores determinam a faixa etária
para a peça. No último caso, quando a peça é vetada, significa dizer que esta é proibida de
ser encenada. Os textos eram encaminhados a Divisão de Censura e Diversões Públicas a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1030


DCDP, do Departamento de Polícia Federal. No período da ditatorial utilizou-se, dentre
outros, o Art. 41 do decreto de lei nº 20.493, de 24 de Janeiro de 1946 e de acordo com este:

Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão


radiotelefônica:

a) Contiver qualquer ofensa ao decoro público;


b) Contiver cenas de ferocidade ou for capaz de gerir a prática de crimes;
c) Divulgar ou induzir aos maus costumes;
d) For capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública,
as autoridades seus agentes;
e) Puder prejudicar a cordialidade das relações com os outros povos;
f) For ofensivo às coletividades ou religiões;
g) Ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacional;
h) Induzir ao desprestígio das forças armadas. (RODRIGUES; MONTEIRO; GARCIA,
1971, p. 164)

Dessa forma, tendo como parâmetro a alínea c, a censura moral estava relacionada
à manutenção ‘dos bons costumes’, do considerado moralmente aceitável e correto. O
discurso repetitivo por trás de se preservar ‘os bons costumes’, repousou na tentativa de
aparentar uma imagem positiva da repressão, que alegava proteger as famílias das más
influências, proteger a virtude, a honra, bem como a religião. Costa (2006, p. 233) afirma
que “percebe-se uma grande atenção dos censores para impedir alusões a gestos e atos
sexuais”. Vetavam-se então palavrões, palavras consideradas obscenas ou com duplo
sentido, qualquer tipo de menção de cunho sexual, erotismo, comportamento sedutivo e
que, de alguma forma, pudesse atentar ao pudor. Temas tidos como polêmicos e
considerados proibidos também eram censurados, a exemplo do homossexualismo, o
adultério, principalmente o feminino, a prostituição, o incesto e práticas ligadas à
obscenidade. Ainda de acordo com Costa (2006 p. 237) “os cortes de caráter moral dirigem-
se, principalmente contra sugestões de mau comportamento por parte das mulheres
capazes de suscitar o desejo ou inspirar na plateia feminina condutas indesejáveis.” A leitura
dos cortes em Dez Anos de Viva Bahia tornará isso evidente.

Vozes e memórias silenciadas em dez anos de viva bahia

O musical Dez Anos Viva Bahia’ foi parcialmente vetado pela censura e sofreu ao
todo sete cortes. Os cortes foram feitos com lápis de cor vermelha e caneta esferográfica de
tinha azul. Os trechos censurados aparecem envolvidos por um retângulo, destacados com
linhas diagonais vermelhas, e, em alguns casos, estes vetos foram reforçados à tinta azul e
com uma indicação manuscrita escrita ‘corte’. O texto também apresenta, em todas as
folhas, na margem superior direita, o carimbo da Divisão de Censura e Diversões Públicas
(DCDP), da DPF, como se pode ver na imagem da primeira página do texto.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1031


Figura 1: FERREIRA, 1973, f. 01

Todos os sete cortes que o texto sofreu são de cunho moral. Buscou-se, dessa
forma, ordenar os cortes de forma que melhor dialogassem com as leituras propostas. O
segundo corte, por exemplo, está relacionado à menção ao peito da mulata e a erotização e
impostação sexual que a ele é atribuída:

Mulata de peito duro


É duro de natureza
Quem me dera ser criança
Pra mamar nessas belezas
(Fl. 12. L 1-4)

Figura 2: (FERREIRA, 1973, f.14, l. 01- 04)

Por fazer referência à masturbação e ao ato sexual, o sexto corte ocorre no ‘Samba
do ai’, samba ‘baiano, cadenciado, sincopado e cheio de molejo’. Na canção, o personagem
afirma que o seu amigo, Manuel, ‘o faz através do tato’. Ele também se refere a este amigo
de forma cômica ao contar que ele ‘dá ai em pizicatto’, utilizando uma terminologia musical
para expressar a peculiaridade da ação. O trecho vetado foi destacado à mão, em tinta
vermelha e azul, com linhas diagonais e na margem direita o carimbo ‘cortes’.

É samba de baiano cadoneiado, sincopado, cheio de molejo


E requebrado
O meu amigo Manuel, por exemplo, o faz através do tato

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1032


o ceguinho é um barato, quando dá aí em pisicatto.
Ai, ai, ai, é por cima é por baixo, mamãe.

Figura 3: (FERREIRA, 1973, f.19, l. 1- 30-32)

De forma geral, ‘Dez Anos de Viva Bahia’ sofreu mutilações por fazer alusões a
temas sexuais. Na concepção foucaultniana, a sexualidade ‘é o nome que se pode dar a um
dispositivo histórico’ que integra uma cadeia institucional relacionada ‘a incitação ao
discurso’, ‘o reforço dos controles e das resistências’ que ‘encadeiam-se uns aos outros,
segundo algumas grandes estratégias de saber e poder’. Uma vez institucionalizada, a
sexualidade é sustentada por discursos e poderes que se pautam no controle do indivíduo.
(FOUCAULT, 1984)
A temática da sexualidade – o tema proibido - representava, por vezes, um artifício
político. Ora, se a censura buscava controlar o indivíduo também através da sexualidade,
escrever sobre o tema proibido significava uma oposição militante ao silenciamento
imposto. A ruptura deste silêncio era transgressora e representava a crítica contra o
sexismo, relacionado ao corpo feminino – a exemplo de Dez anos de Viva Bahia -, a busca
pela liberdade física e ideológica num período em que se vetava a autonomia discursiva. De
acordo com Orlandi (1993):

A censura é um sintoma de que ali pode haver um outro sentido. Na censura, está a
resistência. Na proibição está o outro sentido. E isto, porque, como dissemos, a
censura atinge a constituição da identidade do sujeito. A identidade, por seu lado,
sempre em movimento, encontra suas formas de manifestação não importa em
que situação particular de opressão. (ORLANDI,1993, p. 121).

Em As formas do silêncio, de Orlandi (1993), supracitado, lê-se que a censura atinge


‘a constituição da identidade do sujeito’. Na contemporaneidade, esta identidade passa a ser
repensada tendo em vista as suas múltiplas especificidades. Endossando a opinião de
Guacira Louro, Jane Felipe (2012) busca captar a atenção para “questões em torno da
construção das identidades de gêneros e sexuais”:
Ao afirmarmos o caráter relacional e múltiplo das identidades, sua fluidez e sua
inconstância, estamos sugerindo uma abordagem muito mais complexa.
Articulando-se em variadas combinações, as identidades de gênero, raça, classe,
sexualidade, religião, nacionalidade são –todas- constituídas por (e constituintes
de) redes de poder. Não há identidade fora do poder, todas o exercitam e,
simultaneamente, todas sofrem sua ação. As identidades fazem parte dos jogos
políticos, ou melhor, as identidades se fazem em meio a relações políticas. (LOURO,
2012, P. 61).

O corte abaixo, na página 17, trecho destacado à mão, em tinta vermelha, evidencia
mais uma vez a preocupação censória em vetar passagens de cunho sexual:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1033


Comi a mão, comi a filha e o pai
se bobear vou comendo muito mais
Coro
Ai que rola de corda, que rolão
As meninas tão com medo de Negão
Figura 4: (FERREIRA, 1973, f.15, L 14-18)

O samba de roda alude ao ato sexual e reporta-se à virilidade do personagem Negão


que também é mencionado ‘no samba do ai, que foi alvo da censura:

CANTADA
Ai, ai, ai, ai, ai
FALADA
[Uma são um cá bem lírico]
CANTADA
Ai, ai, ai,ai, cá
FALADA
Outros dão em profusão
CANTADA
Ai, ai, ai, ai, ai
FALADA
Outros intercalam com suspiros
CANTADA
Ai hum, ai hum, ai hum
FALADA
De qualquer forma o ai é de gozação
Foi no samba do ai
Que seu Negão foi mil vezes papai
Foi no samba do ai (bis)

Figura 5: (FERREIRA, 1973, f.20, L 9-26)

O quarto corte está relacionado à referência ao ato sexual que envolve os homens e
a menção da impotência do velho, que é metaforicamente retratada na canção: ‘A fruta do
velho/ o tempo comeu’. A censura também recai sobre a personagem Tereza baiana, pois a
mesma é retratada como uma mulher sexualmente atraente, ‘caprichada’, que incita
comportamentos libidinosos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1034


Teresa baiana o seu negócio
Seu negócio por cima do nosso.
Teresa baiana nasceu caprichada
Umas com tanto, outras sem nada
Coro
Este velho não dá
Este velho já deu
A fruta do velho

Figura 6: (FERREIRA, 1973, f.16, L 01-09)

O primeiro corte em ‘Dez Anos de Viva Bahia’ relaciona-se a um possível


estranhamento causado pela exposição do corpo feminino. Na passagem ‘As caboclas
levarão tangas de penas, com o peito nu’, o trecho foi destacado à mão, em tinta vermelha,
com linhas diagonais, evidenciando o corte. Além do carimbo ‘cortes’, há também uma
inscrição manuscrita à caneta de tinha azul ‘corte’ e outras linhas diagonais foram inseridas
no trecho ‘com o peito nu’, reforçando assim, a censura que recai sobre a exposição do
corpo das caboclas.

Figura 7: (FERREIRA, 1973, f.07, L 05-06)

O tempo comeu

Tangas para homens e mulheres, sendo que as mulheres


estarão com a parte do tórax coberto com um desenho afro.

“Ode ao Dois de julho” – As caboclas levarão tangas


de penas, com o peito nu. Os homens levarão tangas.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1035


A autora indica o vestuário afirmando que os homens usarão tangas e as mulheres
também estarão utilizando esta peça de roupa juntamente com um desenho afro na parte
do tórax. Entretanto, apenas o trecho que faz menção ao vestuário feminino fora vetado,
pois representou um atentado ao pudor, revelando assim, a dicotomia entre as relações de
gênero, até mesmo em se tratando de censura moral. O termo gênero implica significações
referentes a relações de poder e diferentes percepções da vida social, cujas representações
estão embasadas dentro dos parâmetros criados por essas diferenciações. Louro (1995)
acrescenta:

Uma compreensão mais ampla do gênero exige que pensemos não somente que os
sujeitos se fazem homem e mulher num processo continuado, dinâmico (...) que
gênero é mais do que uma identidade, é uma categoria imersa nas instituições
sociais (...). Em todas essas afirmações está presente, sem dúvida, a idéia de
formação, socialização e educação dos sujeitos. LOURO (1995 p. 106)

No corte já mencionado em Dez Anos de Viva Bahia, poder-se-ia pensar na


ocorrência de uma censura dupla. As censuras duplas, nesse contexto ‒ censura político-
ideológica, para vigência de uma nova ordem, e a censura vinculada à figura feminina, há
muito presente no imaginário –, atuaram visando a repressão do olhar da mulher, da sua
sensibilidade e do seu modo de produzir arte. Tais idiossincrasias seriam vistas como
insurgências, uma vez que, tem-se a figura feminina como algo relacionado ao recato, a uma
intimidade preservada. De acordo com Coelho (2002):

A voz da mulher começa a se fazer ouvir com frequência, seja na crônica,


romances-folhetins ou textos polêmicos (...) sempre sob a censura explícita ou sob
o olhar complacente do mundo masculino, que via nessa extravagância – o
escrever – apenas mais um capricho feminino ou uma ameaça aos bons costumes.
(COELHO, 2002, p.7).

Ao se trilhar a busca em prol de assimilar a configuração da prática censória na


escrita feminina, percebe-se que a história dessa escrita no Brasil caracteriza-se pela busca
de uma identidade autêntica e própria e, assim como toda a trajetória dessa escrita no
mundo, esteve inserida num quadro de subjugação das mulheres à hegemonia masculina. As
múltiplas e, por vezes, sutis restrições impostas pela sociedade machista, contrariam a busca
desta identidade e também a possibilidade de afirmação da mesma. Conforme Branco
(1989, p. 17), o texto feminino torna-se um palco que também reflete “a imagem da própria
autora” e por isso é carregado de subjetividades. É um lugar onde os “objetos, os desejos e
sonhos se corporificam na materialidade dos significantes”. É o cenário cujas palavras
ressoam preenchendo “toda falta”, ausências e silenciamentos, rasurando-se estereótipos
edificados pela ótica masculina que “não coincidem com a mulher”.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1036


O quinto corte ocorre pela alusão à prostituição e ao adultério. A música reporta-se
a dona Maria como uma ‘nega danada’ que ‘trabalha de noite e descansa de dia’. A censura
atinge também o comportamento inadequado da personagem, pois o adultério no
casamento não é visto com o mesmo peso para homens e mulheres. Imprime-se
tradicionalmente um discurso em relação à figura feminina que, de acordo com Foucault
(2007 p. 131) a “atividade sexual” desta, “deve se situar no interior da relação conjugal”,
sendo que, nesta relação “seu marido deve ser seu parceiro exclusivo.” Dessa forma, os
censores buscaram, mais uma vez, interditar uma passagem que poderia vir a chacoalhar a
ordem, perturbar e surtir efeitos indesejáveis sobre o comportamento das expectadoras.

Ó Inácio, Ó Inácio
Mulé parida não come
Ó Inácio, Ó Inácio
Farinha do mesmo dia
Se ela come ela morre
Ó Inácio, Ó Inácio
E o filho não se cria
Coro
Que nêga danada
E a dona Maria
Trabalha de noite
Descansa de dia
Se não fosse o home
A mulé não se paria...

Figura 8: (FERREIRA, 1973, f.18, L 09-22)

A peça é dividida em cinco partes e logo abaixo do título, a autora insere uma frase
de Adonias Filho bastante sugestiva: “A Bahia é uma banda de Luanda”. Nesta citação,
percebe-se a ocorrência de uma descentralização da herança imperialista do Brasil na Bahia,
a favor de uma atmosfera de preservação memorialística ancestral negra, que sempre
esteve inscrita em um quadro de subjugação. A ‘Abertura’ inicia-se ‘pretendendo sintetizar o
negro antes de ser escravo’ através ‘da sua coragem e extinto de liberdade’ e como a cultura
negra ‘se transformou e se misturou’ a culturas de outros povos no Brasil, tornando-se a
‘cultura Afro brasileira’. Ainda na ‘Abertura’, o trecho do poema de Castro Alves, Navio
Negreiro, sugere não apenas a rememoração da condição do negro vindo de Luanda, mas
também serve de alusão ao próprio período sufocante e reprimido que o Brasil se
encontrava no momento de criação da peça: ‘Há dois mil anos /eu soluço um grito/ Escuta o
brado meu lá no infinito. ’. O musical também termina com um poema de Álvaro de Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa:

“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo....


Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui no cimo deste outeiro
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1037
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
(...)
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver
(...)
Falava consigo também
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que tem fome
E dos ricos, que só tem costas para isso.
E olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos.(...)”

O uso deste poema de Caeiro também poderia ser visto como mecanismo de
militância política, alusão ao período ditatorial, entretanto o censor deixou passar
despercebido e, pelo visto, houve uma maior concentração nos trechos que aludiam à
sexualidade, ao corpo feminino e, por isso, foram moralmente vetados. Muitos escritores
recorriam a mecanismos estratégias que evitavam a censura prévia no texto. Santos (2012 p.
35) compreende que:

Durante a ditadura, autores, produtores e autores foram perseguidos, o teatro, no


entanto, não se acomodou. Várias estratégias foram empregadas, o uso de uma
linguagem cifrada, metafórica, polissêmica, o aproveitamento das entrelinhas,
refugiando-se em lugares onde não era possível o exercício da censura prévia,
trocando a palavra pelo gesto significativo e tantos outros recursos que lhe
permitisse sobreviver, sem ter de recuar diante de um governo autoritário e
violento. (SANTOS 2012 p. 35)

Pautado em fatos históricos, o musical de Emilia Biancardi percorre um denso


itinerário ideológico em prol da integração de valores relacionados à ancestralidade e
ambienta as manifestações culturais negras no contexto escravocrata brasileiro. Através de
músicas cujas letras emolduram tal herança etnográfica, privilegia-se a abordagem desses
traços identitários no dia-a-dia dos negros que resistem com as suas músicas, danças,
religião, vestimenta e outras características que atuaram como agentes integrantes e
formadores da cultura brasileira.

Considerações finais

A censura, a partir do AI-5, atestando o seu perfil moralista, muitas vezes se


utilizando de argumentos descabidos por parte dos censores, deixando evidentes as
limitações sócio-intelectuais destes, calou as vozes de gerações. Os cortes de cunho moral
tornam evidente a preocupação dos censores acerca das passagens que aludiam a questões
polêmicas relativas ao sexismo, ao racismo e as desigualdades sociais. Klinger (2012) enfatiza
a existência de uma atração, na ficção da atualidade, pelas figuras que se encontram na
margem da sociedade, que “expõem o dilema acerca da representação da outridade.” Na
análise dos cortes em Dez Anos de Viva Bahia, em meio à luta pela pelo resgate da
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1038
democracia, acentuada “em meio a discussões intelectuais sobre os fracassos da história e o
destino da nação”, a escrita de Emilia Biancardi, estando inserida no âmbito ficcional que
tenciona traços autobiográficos, “oferece uma intervenção para examinar a ideia de
representação nos dois sentidos da palavra, o político (no sentido de delegação) e o artístico
(reprodução mimética)”. (KLINGER, 2012, p.11)
Os cortes realizados pelos censores costumavam extinguir palavras ou até mesmo
parágrafos inteiros, o que, muitas vezes acabava por impossibilitar uma apreensão do texto
em sua plenitude. Costa (2006) compreende que vetar:
certas palavras identificando época e lugar da ação ou fazendo alusões aos
conflitos vivenciados pelo público podem alterar significantemente a compreensão
do texto e da intencionalidade do autor. Retiradas da peça, podem dificultar o
entendimento do sentido da ação e até de sua comicidade. (COSTA, 2006, p. 247)

Mesmo diante de uma atuação censória inquisidora, que, no ponto de vista de Costa
(2006, p. 250) ‘humilha o artista e que o submete (...) a autocensura’, os autores resistiam. A
resistência dos dramaturgos, atores, músicos, artistas, escritores e intelectuais de uma
forma geral, durante a ditadura militar no Brasil, provou que a luta por um sistema
democrático está atrelada à defesa da livre circulação das informações e à necessidade de se
refletir sobre a variedade de opiniões, visões de mundo e valores que se manifestam na
sociedade.
Na censura dupla, como já fora mencionado em Dez Anos de Viva Bahia, buscou-se
suprimir uma conduta feminina erotizada que pudesse de alguma forma, incentivar à platéia
a comportamentos considerados impróprios. Tais cortes representavam obstáculos para
que a visão feminina alcançasse uma dimensão ampliada, interferindo diretamente na
construção da identidade e da memória coletiva do povo baiano, levando-se em
consideração o contexto no qual a obra se insere. Em meio a esta censura incrustada no
imaginário coletivo, Emilia Biancardi Ferreira questiona tais conceitos de várias maneiras,
como por exemplo, ao colocar a mulher em pé de igualdade com o masculino através do
comportamento, da exposição corporal, da vestimenta. A autora também os desconstrói,
num espaço social de hegemonias masculina, sucumbindo assim às suas próprias
subjetividades.
A breve leitura dos cortes em Dez Anos de Viva Bahia, que integram um dado
momento histórico, evidencia imposições binaristas de cunho cultural que continuam a
ocorrer em contextos e proporções diferenciadas. Esses cortes também são um testemunho
de como se tem utilizado de práticas sociais e relações de poder que se embasam na
hierarquização dos sujeitos, submetendo- os a um processo de subjetivação e diferenciações
de gênero. Essas diferenciações são demarcadas discursivamente e acabam por produzir
desigualdades que, corroborando com esses suportes na educação, contribuem e incentivam
o sexismo, o racismo, as margens sociais, o preconceito religioso. Sendo um mecanismo
político, a censura ligada à moralidade buscava governar corpos, mentes e ideias em nome
dos bons costumes, da religião e de uma educação considerada adequada.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1039


Referências
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Janeiro: Gryphus, 2002.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano,
1993.
CASTELLO BRANCO, Lúcia. A Mulher Escrita. Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial, 1989.
COSTA, Cristina. Censura em cena. São Paulo: EDUSP, 2006.
DUARTE, Rosinês. A escrita feminia em tempos de ditadura na Bahia: Uma leitura de Dez
Anos de Viva Bahia de Emília Biancardi Ferreira. ANAIS do ABRALIC. Campina Grande- PB,
2013.
FERREIRA, Emilia Biancardi Dez anos de VivaBahia. Peça Teatral. Salvador, 1973.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
___________. História da Sexualidade: o uso dos prazeres. 12ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, História e Educação. Construção e Desconstrução. In
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___________. Corpo, gênero e Sexualidade: Um debate contemporâneo na educação. 8. ed.
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KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. 2ª
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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 2.ed. Campinas,
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RODRIGUES, Carlos; MONTEIRO, Vicente; GARCIA, Wilson de Queiroz. Censura Federal.
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SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo:
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SANTOS, Rosa Borges. Edição e Estudo de Textos Teatrais Censurados na Bahia. A filologia
em diálogo com a Literatura, a História e o Teatro. Salvador :EDUFBA, 2012

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1040


A visão da cordilheira: Daniel Galera e o campo literário

Jamille Maria Nascimento de Assis


UFBA/IFBA
jamille.assis@ifba.edu.br

O trabalho tem o intuito de interpretar como o autor Daniel Galera constrói imagens do campo literário
contemporâneo numa narrativa que se mescla com seu próprio exercício profissional. Para tanto, foram lidos
trechos do livro Cordilheira, de 2008, a partir da análise de aspectos como valor, formação e discurso. Assim
como a paisagem geográfica cordilheira − filha da movimentação abrupta das placas tectônicas, o campo
traçado por Galera e seus personagens aparecem como desdobramentos de leituras frequentes sobre o
ambiente que participa da concepção, divulgação e consolidação da obra literária. Escritores que participam da
performance artística como autor eternamente insatisfeito, que rejeita seus livros; os críticos, os prêmios
literários e as editoras como os grandes agentes de (de)formação do produto literário e os embates para
avançar e dominar territórios culturais são descritos como componentes de um cenário que não só compõem o
espetáculo da literatura como protagoniza e altera constantemente sua ação. Meditar sobre essas
interpretações, seguindo as reflexões de Foucault, é se apropriar de atos que são lidos por diferentes
frequências, tais como pela mídia, pela crítica e pelo próprio livro; e experenciar o que, pela limitação da vida,
só é possível através do contato com as potentes construções de realidades, o que pode ser feito via literatura.
Palavras-chave: Campo literário; Daniel Galera; Narrativas.

Introdução

Arquivo pessoal: Foto em Israel

De longe se vê melhor as elevações e declives da superfície que compõem o espaço


geográfico. O choque entre as placas tectônicas geram essas (de)formações da planície e
transformam a paisagem. Assim como a cordilheira, o indivíduo entra em embate e se
transforma em outros, como resultado dos altos e baixos da vida. A narrativa da existência
se organiza através desses desdobramentos de passado e de futuro em potencial construção
no agora. Esse efeito cordilheira é verificado tanto em textos, quanto em outras ações no
campo literário contemporâneo e o intuito desse trabalho é observar como esse processo é
construído na atividade de um autor em particular, Daniel Galera e em sua obra Cordilheira,
de 2008.
Essa presente análise se aproximará dos variados textos produzidos pelo autor
paulista através da meditação. Seguindo a trilha genealógica de Michel Foucault (2004,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1041
p.429), meditar, para além do que usualmente se entende do ato, vem do verbo grego
meletân e tem um duplo significado: o primeiro corresponde a um exercício de apropriação
que

[...] não se trata absolutamente de, dado um texto, esforçar-se por perguntar o que
ele quis dizer. De modo algum está-se direcionado no sentido da exegese. Na
meditatio ao contrário, trata-se de apropriar-se de um pensamento, de dele
persuadir-se tão profundamente que, por um lado, acreditamos que ele seja
verdadeiro e, por outro, podemos constantemente redizê-lo, redizê-lo tão logo a
necessidade se imponha ou a ocasião se apresente.

Esse movimento de apropriar-se do pensamento não é − como refletiu Foucault − ir


atrás, numa ação detetivesca do que o autor quis dizer, porque nem ele mais tem domínio
disso; mas ter contato de tal forma que depreenda dali um sentido, uma intepretação
própria, que possa ser acessada e revisada outras vezes. O outro aspecto do termo advém
do anterior na medida em que ao se apropriar da ideia do outro, pode-se entrar num
processo de identificação. Observar como o outro pensa é um caminho para entender como
aquela pessoa lê e se coloca no mundo e é através dessa experiência que se pode vivenciar o
que de fato não ocorreu na vida do indivíduo que lê. Lançando mão dessas reflexões do
filósofo francês, o encaminhamento dessa análise será meditativo, pois se apropriará dos
conteúdos elaborados por Daniel Galera para que possa ser gerada daí uma experiência de
identificação do campo literário com as ações que ele descreve. Identifico essa mesma
atitude leitora no próprio autor paulista, que assimila o que se passa no cenário ao seu redor
e a sua performance autoral se aproxima dos personagens que cria.
Assim como a figura dramática Anita do livro Cordilheira, Galera vivenciou um
contato com a cordilheira geográfica como pode ser visto na foto tirada em Israel que inicia
esse ensaio. Ao fundo do autor, montanhas que parecem se perder na neblina. Na frente
delas, um autor com um riso disfarçado posa para a captação daquele instante. No entanto,
não se pode declarar que em sua carreira exista timidez. O escritor e tradutor de autores
ingleses e norte-americanos contrariando o que se entende tradicionalmente como uma
idade propícia para o reconhecimento e a estabilidade profissional (geralmente na
maturidade), ainda com 24 anos foi convidado para participar de um dos momentos de
legitimação dos atores que produzem literatura na Feira Literária Internacional de Paraty em
2004. Participante de várias antologias, como a realizada pela revista Granta 9, em 2012, que
selecionou os melhores jovens escritores brasileiros, Galera já publicou uma história em
quadrinhos (Cachalote, de 2010), um livro de contos (Dentes guardados, de 2001), quatro
romances (Até o dia em que o cão morreu, de 2003; Mãos de cavalo, de 2006; Cordilheira, de
2008 e Barba ensopada de sangue, de 2012) e já possui 8 traduções de seus livros. Visto
como um pioneiro no uso da internet para divulgar literatura, ele não deixou de enveredar
por meios mais tradicionais de divulgação como, por exemplo, ao lançar seus dois primeiros
livros pelo selo independente Livros do Mal criado por ele, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla.
Além de escrever eventualmente ensaios e resenhas, se tornou colunista do jornal O Globo,
desde 2013. Diante dessas múltiplas atividades e das grandes oportunidades que Galera
abraçou, logo se vê que ele pode ser tido como um escritor de sucesso e bem visualizado no
meio literário. Ao fazer uma análise do crescimento das possibilidades de profissionalização

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1042


do escritor na contemporaneidade e a sua inevitável relação com a balança mercado/labor
criativo, Luciene Azevedo observa que no discurso de Daniel Galera existe aquele impasse
entre declarar claramente que a sua profissão de escritor o satisfaz economicamente e
recusar verbalizar as facilidades dessas conquistas para reforçar a ideia da vida difícil e cheia
de sacrifícios dos homens das Letras. O efeito cordilheira aparece nessa situação, pois há um
reforço dos altos e baixos da carreira literária, o que não acontece em um momento
específico, mas em várias declarações do autor, como é atestado por Azevedo (2013, p.10):

A ida de Galera para a Companhia das Letras não é fruto de mera sorte. O próprio
autor evoca o que ele mesmo chama de ‘um trabalho imenso’, atestado pela
intensa atividade no campo literário ainda nos tempos de ‘jovem aprendiz’ que o
avalizaria como autor do catálogo da editora.

Potencializar o seu caminho tortuoso até chegar à consagração com a sua


contratação para trabalhar em uma grande editora é capitalizar o seu espaço como escritor
em tempos de facilitada divulgação das obras em meios virtuais e analógicos. Esses discursos
retomados e reforçados em entrevistas e na sua coluna também podem ser lidos como uma
estratégia para entrar, se manter e ascender no campo em meio a declarações pessimistas
sobre a literatura contemporânea. Quando indagado em uma entrevista para o jornal
eletrônico Rascunho, sobre a literatura atual, ele reforça a ideia de que todos os gêneros
estão à disposição e que a grande questão está em o escritor observar as suas inquietudes
mais pessoais:

acho que não existe necessidade de “resgatar” nenhum gênero literário hoje em
dia. Se existe uma característica na literatura contemporânea, é que tudo está aí.
Tem gente fazendo de tudo. Inclusive realismo fantástico. Não consigo identificar o
gênero que talvez seja o “mais relevante” ou que “incorpore as questões do nosso
tempo”. [...] E aí, o que tu vai fazer? A grande questão da literatura contemporânea
é: com tanta possibilidade, vou fazer o quê? A resposta está sempre numa
investigação introspectiva. [...] Não é porque precisamos resgatar. A questão não é
intelectual. Hoje, o que guia o estilo de um autor é a resposta a uma necessidade
íntima de expressão. Como consigo processar o mundo em linguagem? [...].
(RASCUNHO, 2013)

A análise de Galera não deixa de ser sensata ao concluir que há uma gama variada de
formas de se expressar em literatura já acumuladas pela tradição e que a escolha do autor
está atrelada mais às suas escolhas pessoais, do que a um sintoma do tempo em que vive.
No entanto, não se pode negar que há também tendências mais ou menos delineadas na
produção literária atual que estão sendo quase que regularmente acessadas e isso levanta
um questionamento de até que ponto uma disseminação de formas como a autoficção e o
discurso das margens em vários veículos (livros, série televisivas, realities, jornais
sensacionalistas, etc.) não reverbera nas escolhas subjetivas dos autores. Outro ponto
interessante levantado pelo autor é que diante do acesso facilitado aos gêneros literários
não se pode falar que a questão contemporânea seja intelectual. Essa afirmativa é
questionável, pois o capital simbólico gerado pelos escritores que alcançam certo status no
seu meio ainda está muito associado ao que ele leu, ao estilo inovador (e se inova é porque
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1043
se diferencia do que conhece), e seu alcance em instâncias legitimadoras, tais como a escola
e os vestibulares. Não é por acaso, que nessa mesma entrevista ao jornal Rascunho, Galera
cite autores clássicos como leituras que transformaram a sua vida; como, por exemplo,
Camus e Moby Dick, comente sobre seu estilo de escrita e suas experimentações no livro
Cordilheira e descreva o prazer de ser convidado por escolas para falar sobre seus livros. De
certa forma, esses relatos acabam refutando sua afirmação de que o aporte intelectual hoje
não é o foco.
Muitos são os que acabam se debruçando sobre a produção literária dos dias atuais
não para dizer que a bagagem intelectual não seja a questão principal, mas até para chegar
ao extremo de afirmar que “escrever não é preciso”. Essas são palavras do crítico Alcir
Pécora (2005) em um texto publicado no site Cronópios; que, além disso, enfatiza que

antologias de autores promissores ou novos lançamentos de escritores


contemporâneos não cessam de aparecer, por piores que sejam. Alguns são jovens,
outros são célebres, outros são simples amigos do editor: qualquer coisa basta. Por
isso mesmo, nada é suficiente como critério de edição, e o publicado basicamente
ajuda a encobrir a percepção evidente de que não há nada de relevante sendo
escrito, nem mesmo há indícios de que essa relevância possa ser descoberta outra
vez no domínio da literatura.

De forma alarmante, o crítico afirma que a produção atual não é digna de ser
elogiada, pois não possui relevância no meio cultural. O que há, de fato, para ele são
relações nos bastidores que permitem que autores sem qualidade ganhem destaque e
divulgação. Não há como não admitir que uma série de situações participam da consagração
de um autor e que são tão importantes quanto o livro escrito, tais como uma maior
proximidade com um editor, com um crítico ou com a academia. No entanto, afirmar que
não existe produção importante hoje é, possivelmente, deixar de observar as
transformações que levaram os escritores a relatarem inquietações do seu tempo ou até as
mesmas de antes, mas de formas variadas233. Daí que é complicado afirmar que é melhor
nem escrever, pois pouparia o escritor e o leitor de uma atividade banal, pois segundo
Pécora (2005) “escrever é um ato que, de saída, já deve uma explicação: ele tem de
reinventar sua própria relevância, a cada vez, ou então se condenar a ser apenas uma ideia
torta de novidade: o retorno do mesmo, piorado”. Como eliminar a importância da escrita
se ela é, por vezes, a projeção do que construímos mentalmente, que ganha vida e pode ser
relida e reconstruída por outros, através da leitura? Foucault (2004) sinaliza nesse sentido
que a escrita, juntamente com a anotação para si, as correspondências, a leitura e o envio de
tratados, é um ato de cuidado: de si e dos outros, pois existe ai apropriação, identificação e
perpetuação de conhecimentos. Levando-se em consideração o ar irônico de Pécora em
relação à escrita, pode-se inferir a partir daí um tom pessimista diante da produção atual,
sem perceber ao menos a importância do que Foucault refletiu como sendo um ato de

233
Para saber mais das posturas de Alcir Pécora sobre a literatura contemporânea e uma posição diversa,
levantada pela estudiosa Beatriz Rezende é possível assistir um debate realizado pelo Instituto Moreira Sales
em 05 de maio de 2011, para a seção “Desentendimentos”. Esse diálogo está disponível em:
http://mais.uol.com.br/view/fo34eocfk8xg/beatriz-rezende-e-alcir-pecora--parte-1-
04024C983268E0911326?types=A. Acesso em: 12 de fevereiro de 2014.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1044
fixação da leitura, mas que pode ser extrapolado para além de uma ferramenta de consulta
e de meditação para uma construção possível de realidades.
Antes de observar a leitura e a escrita de Daniel Galera sobre esses aspectos tão
caros ao campo que levantam polêmicas como essas que foram levantadas acima, vale
refletir sobre as palavras de João Alexandre Barbosa (1994) sobre a construção literária:

trata-se de transformar em texto legível aquilo que é disjecta membra, fragmentos


da realidade. Quando realiza a obra, o escritor transforma a linguagem literária,
capaz de condensar essa fragmentação e fazer de tal forma que possamos ler como
se fosse algo inteiriço aquilo que a realidade nos dá como estilhaços. Daí o hábito
da anotação, que não é senão o mapa dos estilhaços.

Se o escritor, portanto, exibe essa capacidade de unir os fragmentos e dar sentido a


essa conexão não se pode então deixar de dar crédito a esse esforço de interpretação que
busca potencializar as possibilidades de leitura num mundo que é extremamente ficcional.
Há todo momento se constrói realidades. Dessa forma, a qualquer tempo e espaço é
importante observar, desconfiar e questionar os discursos literários, a arquitetura desses
estilhaços feita pelos escritores, que não cessam de transformar e de serem transformados
pelo contexto ao seu redor.
O impacto dessa organização de pedaços de representação da realidade pode ser
verificado nas cenas construídas por Daniel Galera no seu Cordilheira. Primeiro lançamento
do projeto Amores expressos234, o texto foi sendo concebido durante um mês em que Galera
passou em Buenos Aires. O livro conta a história de Anita van der Goltz Vianna, uma
escritora que passa por situações pessoais e profissionais que mudaram o rumo de sua
trajetória, tais como o desejo de ter filhos em meio à falta de apoio do namorado Danilo, o
suicídio da amiga, a morte do pai e o sucesso de sua carreira, que estava virando
internacional, mesmo ela estando em dúvida sobre sua vocação. O percurso dessa
personagem em busca de sua realização pessoal vai coincidir com a viagem de lançamento
da tradução argentina de seu primeiro romance e da sua consagração como revelação da
nova literatura brasileira. Em país estrangeiro, Anita se envolve com um fã, José Holden, e
com seus amigos, que rompem a barreira da representação e vivem o literário nas suas
últimas consequências. Tudo isso em meio à descrição de um campo, com seus atores que
não ficam em nenhum momento nos bastidores do processo literário e com a sutileza de
mostrar que a vida é literatura e que o inverso se confirma.
Observa-se logo de início que Anita despreza seu livro, não o reconhece mais como
obra sua e se sente entediada em participar dos convencionais eventos ligados a uma
publicação de sucesso: ida às feiras literárias, realização de entrevistas, contato com os
leitores. Isso pode ser verificado num trecho longo, mas que vale a pena ser citado:

234
Projeto Amores Expressos, realizado pela RT features e da editora Companhia das Letras, enviou 17
escritores para diversos países no mundo para que eles escrevessem uma história de amor que tivesse como
ambiente o local visitado. Além de Daniel Galera, os escritores Cecília Gianeti (Berlim), Antonio Prata (Shangai),
Antonio Pellegrino (Bombaim), Luiz Ruffato (Lisboa), Daniel Pellizzari (Dublin), Joca Reiners Terron (Cairo),
Paulo Scott (Sidney), Reinaldo Moraes (Cidade do México), Bernardo Carvalho (São Petersburgo), Sérgio
Sant’Anna (Praga), Lourenço Mutarelli (Noa York), André de Leones (São Paulo), Adriana Lisboa (Paris), Almicar
Bettega Barbosa (Istambul), João Paulo Cuenca (Tóquio) e Chico Mattoso (Havana) participaram da empreitada.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1045
tinha recebido no dia anterior um e-mail empolgadíssimo do meu editor argentino
dizendo que El País havia publicado uma resenha favorabilíssima, que o livro estava
distribuído nas livrarias e em todos os estandes da Feira do Livro de Buenos Aires e
que um programa de televisão local viria me entrevistar após o evento de
lançamento para falar sobre a nova geração de autores brasileiros. Tudo isso me
assusta e eu pretendia usar o tempo do voo para reavivar temporariamente em
mim a condição de escritora, algo que já tinha decidido que não era. O problema é
que ninguém acreditava. Pensavam que uma menina que ganha um par de prêmios
literários mais ou menos importantes aos vinte e cinco anos jamais poderia deixar
de escrever, negando-se a compreender que eu já rejeitava aquele livro como essas
mães que rejeitam filhos, ao passo que para mim a percepção era exatamente
inversa. (GALERA, 2008, p.16)

Logo se vê nas primeiras páginas do livro, o retrato de uma jovem escritora que não
está muito disposta a participar do jogo do campo que tem como principais peças a mídia, o
mercado e os leitores. Interessante notar que há um questionamento da profissão muito
parecido, mesmo que em outra direção, com o operado por Daniel Galera ao mencionar as
dificuldades de ser escritor e uma possível mudança de planos ao entrar na universidade,
fato descrito em diversas entrevistas. Talvez, o investimento em abordar as dificuldades
tanto em participar, quanto em permanecer no campo busque valorizar a conquista tão
difícil de um lugar no cenário cultural. Quando indagado em entrevista ao programa “Cores e
Nomes”, em 2011) sobre o boom dos festivais literários e se isso era um modismo ou um
movimento de renascimento da literatura na atualidade, ele respondeu que a relação do
leitor não se restringe só ao contato com o livro, mas com o autor também e nisso tem um
certo nível de espetáculo. Além disso, ele aponta que há uma acusação em relação aos
escritores contemporâneos que por causa desse aparecimento excessivo em festivais
deixam transparecer que querem aparecer, mas Galera deixa claro que o autor pode até
querer essa exposição, porém essa relação é construída através das editoras e do leitor que
valoriza esse contato e há também a constatação que aumenta o interesse e venda dos
livros. Observa-se, portanto, que existe, por parte de Galera, uma compreensão de que o
mercado editorial estimula a venda, apesar de ele ainda colocar ao lado dessa necessidade
mercadológica o leitor, que acaba mais participando dessa lógica, talvez, para suavizar o
impacto das decisões do capital financeiro.
Mesmo sem ter o propósito de elencar semelhanças entre autor e personagem235,
pois é mais produtivo ver como isso é feito e com quais intenções, é inevitável perceber que
assim como Anita, Galera muito jovem alcançou grande repercussão com as publicações de
seus primeiros livros, com as repetidas traduções e logo começou a participar de todas as
cerimônias que incensam seus escritores qualificados como bons. Em uma promoção da
editora Companhia das Letras, “Entreviste Daniel Galera”, em 2012 o autor responde a cinco
perguntas de leitores e dentre elas Rafael D. Mantega observa que muitas de suas obras têm
o apelo autobiográfico e o questionou sobre onde ele se encontra em Cordilheira. Galera de
início recusou essa classificação e afirmou que suas histórias e personagens são inventados e

235
No jornal Folha de São Paulo, Galera (SIMÕES, 2008) faz declarações em relação à sua protagonista e à visão
idealista da literatura: “É algo que me incomoda, que distorce o seu real valor, como os eventos literários, a
crítica, etc. A postura de Anita não é a minha. Mas tem uma coisa que ela diz que poderia sair da minha boca,
que é não gostar de quem fala literatura como se tivesse letras maiúsculas, sempre”.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1046
que em certa medida toda ficção é autobiográfica, mas ao pensar mais um pouco percebeu
que se aproxima muito do universo de Anita, que é o campo literário e acaba afirmando que
a depender da perspectiva haverá um fundo de sua experiência pessoal.
Acompanhando o raciocínio construído por Alcir Pécora no texto acima mencionado,
há intenções do mercado em orquestrar a resenha favorável do crítico, a distribuição dos
livros e a divulgação na mídia televisiva para vender mais livros, pois não se vive só de
pensamento e o capital monetário é de extrema importância também para o escritor. Como
já indicava Bourdieu (1996, p.162), analisando o momento cultural da França do século XIX,
não há separação entre atitudes mercadológicas e a cultura, pois a situação é regida por

um princípio de diferenciação que não é mais que a distância objetiva e


subjetiva dos empreendimentos de produção cultural com relação ao
mercado e a demanda expressa ou tácita, distribuindo-se as estratégias dos
produtores entre dois limites que de fato, jamais são atingidos, a
subordinação total e cínica a demanda e a independência absoluta com
respeito ao mercado e as suas exigências.

O problema está em sempre demonizar essa rede, como se ela soasse de forma fictícia, no
momento que eleva o que não tem valor para ter apenas retorno financeiro. Não é sem
intenção que Galera traz esse cenário para a sua ficção, pois esses discursos estão a todo
tempo dividindo espaço com o próprio livro.
Não se pode esquecer de mencionar a figura do editor Vicente Imbrogiano e da
editora, que em Cordilheira introduz Anita no campo argentino e que organiza sua carreira
ascendente. Ela foi apresentada aos agentes propulsores da cena literária, tais como a dona
de uma rede de livrarias, Dolores Vaquero, um adido cultural, Bernardo Portela; e até o
embaixador do Brasil na Argentina Carlos Coronel. Conhecer as figuras que fazem o campo é
de fato ampliar suas possibilidades de inserção nele e no livro observa-se que sempre vão
aparecendo mais oportunidades para Anita a partir desses encontros e principalmente do
contato com seu editor. Já é bem ventilada a noção de que o editor interfere, às vezes de
forma incisiva, na obra e no gerenciamento da carreira do autor. Ao analisar a relação entre
Daniel Galera e o editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, Luciene Azevedo (2013,
p.9) pontua que

na verdade, a menção à participação ativa de Schwarcz no laborioso processo de


publicação de um original tem o interesse de ressaltar a importância do papel do
editor na organização e racionalização de todos os trâmites que cercam a
publicação de uma obra, que podem se estender desde o parecer atento de leitura
ao original, até a participação efetiva, feita em seu nome, na divulgação da obra
editada.

Um outro ponto importante que está ligado também à divulgação é a associação do


nome do escritor a um grande editora. Isso faz toda a diferença quando se percebe que, por
exemplo, a produção de Daniel Galera teve certa repercussão quando foi editada e
divulgada pela Livros do Mal, mas ele de fato só se consolidou no cenário literário quando
passou a ser publicado pela Companhia das Letras. O retorno financeiro e de visibilidade
devem ter sido cruciais na hora da mudança e o discurso da dificuldade para se firmar como
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1047
escritor não pôde ser mais sustentado. Essa imagem de editora também comparece no livro
Cordilheira, quando a protagonista cita que “tinha publicado o livro em 2005 por uma
editora conceituada” (GALERA, 2008, p.26) e descreve toda a reverberação positiva de seu
trabalho a partir dessa publicação. Há um reforço, portanto, desses lugares de legitimação
como porta de entrada para o sucesso. Em contrapartida, quando questionado em
entrevista para Lucas Colombo, Flávio Aguilar e Leandro Schallenberger (2011) e em outros
momentos sobre a diferença entre estar associado à Companhia das Letras e independente
pela própria editora, ele ressalta sempre que a diferença só existe porque nessa última faz o
processo todo, da escrita à editoração e divulgação e na grande editora só escreve. Os
entrevistadores insistem que existe uma motivação maior, por causa do financeiro, e Galera
nesse momento fala abertamente de valores e deixa subtendido que ganha pouco, pelo
menos naquele ano de 2011, quando relata que no mercado editorial brasileiro se recebe
um adiantamento de seis mil reais: três mil ao assinar o contrato e mais três mil quando
entrega o livro. E quando ele receber a porcentagem das vendagens? E quando faturar pela
imagem que será divulgada no lançamento e na divulgação do livro? E todo o universo que é
movimentado com esse processo inicial? Sobre isso ele não comenta. Ainda em 2011, ele
que tinha reforçado a imagem do escritor solitário, que produz sozinho sua obra, volta atrás
e diz que todos os livros dele foram melhorados pelos editores, em correspondência a André
Conti, que está disponibilizada no site Instituto Moreira Sales236. Ao comentar e elogiar
sobre a atividade de editoração do colega, Galera (2011) comenta sobre a importância do
editor:

mas o que eu queria mesmo dizer é que admiro medularmente o que no fim das
contas tu escolheu ou foi levado, qual títere, a fazer: ser editor. Eu tive minha
temporada como editor, com o Mojo, quando criamos a Livros do Mal, e eu tirava
um prazer enorme daquilo. Mas é difícil, e não é pra qualquer um, e uma hora eu
senti que precisava escolher entre editar livros dos outros ou tentar escrever os
meus. Não que sejam atividades excludentes, não necessariamente. Pode-se ter
talento para as duas. Mas dificilmente alguém terá energia para as duas. [...].O
escritor trabalha com o editor.

É interessante a associação feita entre o títere, aquele que se move através dos
movimentos de outrem, e o editor, como se esse último se movimentasse a partir das
reações e atitudes do autor. De fato, isso acontece, mas há certa independência dessa
marionete ao fazer uma leitura atenta do texto a ponto de fazer com que o escritor refaça
seu livro, ao sugerir novas ideias e alimentar de certa forma a obra. Dessa forma, o fantoche
fala e não é através da boca do seu manipulador. Outro ponto importante desse relato é a
constatação do imenso trabalho do editor e dessa parceria na consecução de um produto
literário.
Para refutar ou endossar as decisões da editora tomadas juntamente com o escritor,
comparece a crítica tão alvejada como espaço de compadrio ou de ausência de análise e

236
É possível ler saber mais da correspondência entre Daniel Galera e André Conti no blog do Instituto Moreira
Sales: http://www.blogdoims.com.br/. No título desse texto escrito para a seção “Correspondência”, Galera faz
uma referência a uma frase associada ao editor: “seu protagonista não me convence, refaça” atestando assim a
força de modificação de um texto que o editor possui.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1048
debate. No livro, não poderia ser diferente e a escritora Anita qualifica como bobagens as
reflexões da estudiosa Lucía Merello sobre a sua obra. Segue um trecho da análise:

− ... ou seja, com Descrições da chuva Anita von der Goltz Vianna não apenas se
inscreve na tradição de uma literatura feminina que evoca tanto Clarice Lispector 237
quanto Lygia Fagundes Telles, mas usa-a como trampolim para alcançar alturas ou,
numa metáfora mais em harmonia com o romance, mergulhar em águas ainda não
desbravadas.

Talvez, colocar a escritora como participante de uma esteira da tradição literária


brasileira fosse reforçar a sua continuidade e a sua falta de inovação. Por outro lado, a crítica
usa um recurso que serve de elogio que é comparar às grandes escritoras o trabalho de
quem inicia. Novamente, a imagem de crítica elogiosa e que reforça a grandiosidade do que
é considerado cânone aparece em Cordilheira, mesmo que não seja bem vista pela
protagonista. Em entrevista a Julio Daio Borges (2006), Galera deixa a sua leitura sobre a
crítica, aos 27 anos:

já fui mais ansioso em relação à recepção dos meus livros pela crítica, mas hoje em
dia encaro com tranquilidade. Acho que tive uma recepção sempre bem favorável,
mais até que minhas expectativas. Mas me alegra mais a recepção dos leitores,
sempre, os que vêm falar comigo ou me escrevem por iniciativa própria, seja para
criticar ou elogiar; por fim, não sei se sou compreendido, mas sinto que estou
conseguindo me expressar, e esse é meu objetivo.

O autor deixa explícito a sua humildade ao declarar que as críticas superaram a sua
expectativa, mas ao dar enfoque ao leitor como seu principal foco ele desloca o olhar da
leitura atenta e, por vezes, especializada do crítico para outro tipo de recepção, que
pressupõe ser menos criteriosa. Já em 2011, sua resposta de assemelha muito ao que sua
protagonista deu quando ouviu em Buenos Aires a crítica de Lucía Merello:

às vezes, uma crítica elogiosa é mais incômoda e irritante pro autor – se apontar
para algo que tu não concordas, achas uma bobagem – do que uma crítica negativa
que indique algo verdadeiro, um defeito que tu não notaste e o crítico percebeu.
Pode ser dura, mas se a crítica for fundamentada e o autor não for um ressentido,
pode ser um aprendizado para ele. (COLOMBO; AGUILAR; SCHALLENBERGER, 2011)

Indo de encontro ao que frequentemente se questiona da crítica, que é a ação de ser


elogiosa, Galera tenta destoar da figura de autor que acaba se consagrando por causa,
dentre outras coisas, de declarações elogiosas de amigos que trabalham com crítica. Não se
pode esquecer também que existem elogios bem fundamentados, há de se relativizar os
juízos de valores. Variadas foram as avaliações dos críticos em relação à Cordilheira. Marcos
Vinícius de Almeida (2012) elogia bastante o livro e salienta que

a literatura contemporânea está em boas mãos. Essa é a sensação que o livro


Cordilheira de Daniel Galera provoca de imediato. Com um talento incontestável de

237
Em entrevista para Lucas Colombo, Flávio Aguilar e Leandro Schallenberger (2011) ele, curiosamente, disse
que Clarice Lispector não faz a sua cabeça, acha uma leitura chata, assim como Garcia Márquez.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1049
encarnar a personagem Anita, principalmente nos diálogos, Galera consegue
prender o leitor a cada frase do texto. Não é o típico autor chato do viés esteticista.

A valorização de sua forma de escrita é com frequência citada e como pode ser visto
nessa declaração: “Numa linguagem cuidadosa, quase que poética, com diálogos e
passagens de pensamentos filosóficos vindos das próprias personagens, ora dignos da
Metafísica – se esta for tida como um esforço extraordinário de se pensar com clareza”, dita
por Érika de Cássia Martins Aguiar (2008). Por outro lado, a escolha por uma voz narrativa
feminina acabou se tornando foco de avaliações não muito positivas:

o Galera não é um autor nacional qualquer, ele é novo, está vivo, já tem
reconhecimento e ele merece. Ele tem uma ótima narrativa, não engoli a
personagem dele até agora. Não sei porque quando homens decidem escrever
seus livros usando seus personagens principais mulheres, eles têm que nos fazer
fracas, confusas, burras [...]. (MONTEIRO, 2012)

A avaliação que a escolha de uma personagem mulher como protagonista é


frequentemente mencionada e já foi até refletida por Galera que diz que muitas mulheres se
identificam com o tom que ele dá ao personagem. Observa-se, no entanto, sem querer
colocar em caixas fechadas os gêneros e suas características, que ele atribui à Anita uma
linguagem um pouco ligada ao universo masculino como pode ser visto nos momentos que
ela descreve a sua amiga como “[...] mulherão de curvas quintessências com um metro e
setenta e sete de altura, cabelos loiros translúcidos como fios de náilon e um rosto delicado
e nariz e queixo pequeninos, uma potranca com rosto de francesinha” (GALERA, p.18).
Outros pontos ainda são elencados como apoios que não são inovadores na narrativa, tais
como o exotismo geográfico e o fetichismo sexual, os quais são descritos como recursos-
muleta (RIBEIRO, 2013), apesar de serem vistos como um passo para a maturidade literária.
Diante do exposto observa-se que à medida que Daniel Galera foi ocupando outros
espaços no campo foi aparecendo em seu discurso literário marcadores que indicam esferas
de legitimação, tais como as editoras e a crítica, contudo nas suas tradicionais acepções. O
crítico é aquele que escreve resenhas elogiosas e favoráveis ao livro e o editor tem a
competência de expandir o alcance da obra, realizando os contatos necessários entre
escritor, livrarias e leitores. É inevitável que quem lê a sua obra acaba absorvendo essas
ideias já propaladas sobre o campo literário em outras esferas, como a mídia. É importante
questionar porque na atual conjuntura da literatura, que vive um momento de imposição de
seus valores, já que alguns não a reconhecem como produção inovadora e de qualidade
(tem-se Alcir Pécora como exemplo) retorna-se a esses padrões para ratificar estereótipos
dos atores do campo literário. Por que o crítico não comparece como aquele que faz uma
leitura analítica da obra, sem pressupor um compadrio prévio guiando a sua interpretação e
tendo sempre como resultado o elogio? E o editor, por que não é colocado como uma forte
interferência na escrita dos romances; que, por vezes, voltam para o autor com vários cortes
e sugestões? Pode ser que ao fazer o retrato inverso, Galera esteja elaborando a sua crítica a
esses espaços e a essas pessoas que não aparecem tanto quanto o escritor, mas que
acabavam escrevendo a história dele para o bem e para o mal, pois não é sem sentido que a
personagem Anita seja valorizada como autora por esses atores e faça o que é determinado
por eles.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1050


Ler o livro, portanto, não é apenas interpretar as linhas ordenadas pelo autor e dar
sentido àquilo, é perceber também que

[...] as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas:


além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração
interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de
remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede.
(FOUCAULT, 1972, p.26)

Não só a intertextualidade está presente (afinal, o texto não existe do nada), mas
inter-relacionamentos com os vários promotores de cultura e geração de renda a partir,
antes, durante e depois da produção do livro. O ato do movimento cordilheira está em
mostrar a outra moeda ao escrever o inverso, como pôde ser visto na maneira de
caracterizar um campo que eleva o autor, mas que chama logo a atenção para a forma
oposta: e se fosse diferente? Esses altos e baixos tanto da vida pessoal e profissional da
protagonista, quanto das múltiplas ações do campo são resultados da fricção das tensões
entre juízos de valor e tentativa de consolidação num espaço que a todo o momento se
reconfigura. Escrever sobre o campo é também se colocar nele.

Referências
AGUIAR, Érika de Cássia Martins. Cordilheira, Daniel Galera. Mediadores comentam obra de
literatura. 2008. Disponível em:
http://www.leituracritica.com.br/apoioprof/aprecia/026galeracordilheira.asp. Acesso em:
12 fev 2014.
AGUILAR, Flávio; COLOMBO, Lucas; SCHALLENBERGER, Leandro. Mão de Prosa. 06 jun. 2011.
Disponível em: http://www.minimomultiplo.com/index.php?page=189. Acesso em: 09 de
jan 2014.
ALMEIDA, Marcos Vinícius de. “Cordilheira”, de Daniel Galera. Resenha! Literatura em Foco.
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BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria
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BORGES, Julio Daio. Entrevistas: Daniel Galera. Digestivo Cultural. 12 jun 2006. Disponível
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1051


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http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/456344-daniel-galera-lanca-primeiro-
livro-da-serie-amores-expressos.shtml. Acesso em: 15 dez 2013.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1052


As marcas identitárias do sujeito de transformação: autobiografias de duas educadoras
rurais

Juliana de Conti Macedo


UFOP
julianaconti@yahoo.com.br
José Rubens Lima Jardilino
UFOP
jrjardilino@gmail.com

A presente comunicação refere-se a uma pesquisa em andamento sobre formação docente e a educação do
campo realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa FOPROFI - Formação e Profissão Docente, do Programa de
Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto. Tem como objetivo investigar atuação de
professoras rurais nas cidades de Itaverava e Catas Altas da Noruega, em que se consideram educadoras
engajadas e atuantes, assim como perceber as influências do meio, os embates culturais e sociais que
influenciam essa respectiva formação. O instrumental teórico da pesquisa está baseado no referencial
do materialismo dialético e orienta-se metodologicamente pelo método autobiográfico. Nessa perspectiva,
utilizamos como eixo norteador da pesquisa o equilíbrio entre as categorias que constituem propriamente a
dialética: a universalidade, a particularidade e a singularidade. A partir da produção (objetiva e subjetiva)
advinda da abordagem autobiográfica, busca-se compreender os elementos discursivos que se aproximam do
educador como sujeito de transformação, do ideário de educação do campo e da perspectiva da emancipação
humana. Utiliza-se as narrativas como instrumento de investigação-formação para compreender em
profundidade como e quando o processo de conscientização foi despertado nas professoras sujeitos desta
investigação, para perceber em que medida os conhecimentos agregados nos seus percursos formativos
colaboraram na construção da identidade docente, no reflexo disso em suas práticas pedagógicas e em suas
perspectivas futuras da profissionalidade docente. Como resultado parcial, na análise das narrativas já é
possível compreender os efeitos segregativos da oferta de nomeações proveniente do discurso do “outro”,
enfrentados pelas educadoras no seu ambiente de trabalho e que por vez desqualificadora do seu trabalho
docente.
Palavras-chave: Professoras rurais; Autobiográfia; Prática pedagógica.

Aportes teórico-metodológicos: entre o materialismo dialético e as narrativas


autobiográficas

Nessa perspectiva, utilizamos como eixo norteador da pesquisa o equilíbrio entre as


categorias que constituem a dialética: a universalidade, a particularidade e a singularidade.

Segundo Luckas (1978, p.5), seria impossível uma compreensão da realidade , e por fim de
numa práxis, se não se diferenciar e delimitar estas categorias. Na superação recíproca de
uma na outra, brota o conhecimento da totalidade. Nessa perspectiva, a consciência crítica
e dialética dos pesquisadores perpassa por graus de compreensão da unidade em
movimento na relação universal- particular- singular, que produz um conhecimento rico no
entendimento da totalidade e das diversas relações que a determinam.
Em nosso percurso metodológico fizemos esforços para compreender a unidade das
categorias, e assim, não correr o risco da universalização excessiva dos fenômenos caindo
numa perspectiva metafísica e idealista, que exclui os sujeitos enquanto construtores de
história. Por outro lado, evitamos singularizar o fenômeno a ponto de aliená-lo no
isolamento primitivo das comunidades ou num critério estritamente subjetivista que limita a

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1053


origem dos conflitos sociais ao relativismo no prisma dos sujeitos, analisando o fenômeno
social como um construto das mentes dos indivíduos.
Em suma, o desequilíbrio dessas categorias impossibilita uma real compreensão e
conjugação no contexto histórico-social do problema investigado.
Nessa perspectiva chegamos a uma combinação teórico-metodológica desenvolvida em
forma de espiral, em que o todo e a parte se encontram na dialética, para compreender a
totalidade do objeto da pesquisa. Como pensar a educação do campo e seu processo de
formação de professores numa perspectiva crítica?
A partir da análise do sujeito singular, tentaremos compreender a teia em que ele
está inserido, visualizando uma compreensão da totalidade, para melhor enfrentar os
antagonismos de nosso tempo e melhor conduzir nossas ações dentro de um mundo cheio
de contradições.
O método dialético parece adequado para compreender a inter-relação entre a
formação de educadores do campo no âmbito da academia e os movimentos sociais do
campo, tendo como compromisso a transformação das estruturas estabelecidas
historicamente na sociedade. .Dessa forma, evita-se uma visão atomizada, que leva a ver
os problemas apenas dentro de uma jurisdição restrita, num único domínio, em um modo
de ver, restrito ao espaço-tempo social, alienando-se das confluências e desconectada
das relações com as questões gerais. De fato, ver o problema da região como exclusivo é
ver o problema de forma atomizada, incompleta, sem compreender a estrutura maior em
que pertence o problema.
Nesse processo, a especificidade da realidade local é mediada pela categoria
particular, à construção de uma nova concepção de educação do campo. A produção
subjetiva advinda da abordagem autobiográfica não se desvincula do todo processual, e sim,
proporciona uma compreensão do contexto sócio-histórico em que o singular está inserido.

Nessa perspectiva, adotam como pressuposto que as narrativas de si,orais e


escritas, contribuem para a transformação de sentidos histórico-culturais,
concernentes às representações de si, do outro e da ação do sujeito no mundo,
tanto para a pessoa que narra quanto para aquelas que leem, escutam e analisam
essas narrativas (PASSEGGI, VICENTINI, SOUZA, 2013, p.17).

Ao adotar as histórias de vida que enfatizam a singularidade no processo


investigativo da “formação de professores” de educação do campo nas cidades de Catas
Altas da Noruega e Itaverava é preciso destacar previamente do risco da hipervalorização do
local, concebendo uma análise das singularidades deslocadas da relação da universalidade.
Diferente do entendimento do singular na pós-modernidade, que compreende a
singularidade como um movimento próprio, ligado a subjetividade e que desconsidera o
universal, essa pesquisa se identifica com o método biográfico defendido por FERRAROTTI
numa perspectiva dialética, que oportuniza o diálogo entre a subjetividade da história de
vida de um determinado homem com a objetividade da história social.

“Contudo, quando a questão é evitar projectar a componente pessoal no reino do


acaso ignorando-a e considerar a práxis humana, só a razão dialética permite a
compreensão de um acto na sua totalidade, a reconstrução do processo que faz de
um comportamento específico, a síntese activa de um sistema social. Só a razão
dialética nos autoriza a interpretar a objetividade de um fragmento da história
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1054
social, na base da subjetividade presente de uma história individual. Só a razão
dialética nos dá acesso ao universal e ao geral (sociedade), começando pela
individualidade singular (FERRAROTTI, 1991, p.172).

O autor recorre a Sartre, para quem o homem é um universal singular. O sujeito é


universal pois faz parte da universalidade singular da história humana e depois de totalizado
se retotaliza identificando como singular pela singularidade universalizante dos seus
projetos. Para Sartre, o homem precisa ser analisado nesse movimento heurístico de ida e
volta, nomeado por ele de um método progressivo-regressivo. A junção deste duplo
movimento significa a reconstrução exaustiva das totalizações recíprocas que exprimem as
relações dialéticas e mediadas entre uma sociedade e um indivíduo específico (FERRAROTTI,
1991, p.172). Na perspectiva de SOUZA (2006) ao interpretar e compreender a singularidade
de uma biografia de vida é possível iluminar a interpretação de um sistema social histórico.

O entendimento construído sobre a história de vida como um relato oral ou escrito,


recolhido através de entrevista ou de diários pessoais, objetiva compreender uma
vida, ou parte dela, como possível para desvelar e/ou reconstituir processos
históricos e ontrealvess vividos pelos sujeitos em diferentes contextos(SOUZA,
2006ª, p.24).

Paul Thompson (1992), já afirmava que a vantagem da utilização da história de vida


na investigação científica está na confirmação através do registro de evidências de que,
independente da ação que o sujeito opta em executar, ela está de alguma maneira
interligada no seu contexto social. Nessa perspectiva, a narrativa de si leva o sujeito a
reconstruir em sua memória as atitudes do passado, mas com novas interpretações.

A evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a
história (...) transformando os “objetos” de estudo em “sujeitos”, contribui para
uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também
mais verdadeira (THOMPSON, 1992,p.137).

Segundo o Thompson, a subjetividade não está ausente em nenhuma fonte de


pesquisa, e contêm insuficiências, ambiguidades e podem ser manipuladas. Contudo, a
metodologia da história oral possibilita a transformação dos objetos estudados em sujeitos
protagonista da história. Souza, destaca a importância da subjetividade na abordagem
biográfica com o papel do aprofundamento no processo de investigação.

Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre


os outros e sobre o cotidiano, o qual revela-se através da subjetividade, da
singularidade, das experiências e dos saberes, ao narrar com profundidade. A
centralidade do sujeito no processo de investigação sublinha a importância da
abordagem compreensiva e das apropriações da experiência vivida, das relações
entre a subjetividade e narrativa como princípios, que concede ao sujeito o papel
de ator e autor da sua própria história (SOUZA, 2006a, p. 36).

O processo de biografização gera no sujeito o comprometimento de protagonista da


história, e especificamente, do seu processo formativo, possibilitando o entendimento das
limitações e superações do seu percurso formativo. As trajetórias de escolarização
encontram-se complexamente imbricadas no mundo social em que participam. Assim,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1055
abordagem biográfica, possibilita o conhecimento de si através da compreensão das
experiências no seu processo formativo e das influências recebidas pelos atores sociais
inseridos dentro de um espaço e tempo especifico da história e de um contexto societário.

Assim, apropriar-se e pensar a formação, focadas nas histórias de vida,


configura-se como fator preponderante para o entendimento das
trajetórias formativas e do conhecimento de si. Refletir sobre si, sobre suas
experiências, sobre as culturas com as quais estabelecem contato, sobre
sua própria história, permite-lhes entender a sua visão de mundo e como
chegou até ela. Todas essas reflexões levam também à reflexão sobre o
processo formativo profissional, de como se tornou professor, leva-o a
pensar na formação, a entender os sentimentos e representações dos
atores sociais no seu processo de formação (FERREIRA, 2013, p.248).

Dentro desse contexto, julgamos impreterível a utilização das narrativas como


instrumento de investigação-formação para compreender em profundidade como e quando
o processo de conscientização foi despertado nas professoras entrevistadas e assim, analisar
em que medida os conhecimentos agregados nos seus percursos formativos colaboraram na
construção da identidade docente, o reflexo disso em suas práticas pedagógicas e em suas
perspectivas futuras, sem deixar de perceber, no entanto, as influências do meio, os
embates culturais e sociais que influenciaram essa formação.

É com base nessa perspectiva que a abordagem biográfica instaura se como um


movimento de investigação-formação ao enfocar o processo de conhecimento e de
formação que se vincula ao exercício de tomada de consciência, por parte do
sujeito, das itinerâncias e aprendizagens ao longo da vida (SOUZA, 2006a, p.47/8).

Enfim, não se pode compreender as categorias de forma isolada. Assim como, não se
pode subalternizar uma categoria frente a outra. As categorias estão implicadas uma na
outra e esta inter-relação é indissociável dentro de um processo dialético de pesquisa.
Assim, um contexto histórico particular revela-se como a mediação fundamental entre a
história social e a história individual, refletindo o plano da realidade como um todo
estruturado. Na busca de abarcar a totalidade das ideias, o artigo foi organizado a partir das
três partes categóricas atribuída a dialética que, embora separadas se inter-relacionam e se
complementam, as categorias universal-particular-singular. A dinâmica entre as categorias é
que constitui a dialética na formação da identidade de um docente crítico atuante na
educação do campo. Assim, buscaremos analisar a singularidade das narrativas
investigação-formação de duas professoras que atuam nas cidades rurais238 de Itaverava e
Catas Altas da Noruega, região do Alto Vale Piranga. Pretendemos fazer está analise em
consonância com a particularidade histórica de um conceito novo e ainda em construção
que se denomina educação do campo sem esquecer, contudo, do contexto social-histórico
universal das relações materiais de produção.

238
Esta nomeação foi utilizada para caracterizar a cidade de Catas Altas da Noruega e Itaverava que, apesar de
ter um pequeno aglomerado urbano, a maior parte da população vive e trabalho no meio rural.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1056
A Educação do campo como mediadora da categoria universal e singular

A particularidade do movimento por uma educação do campo239 tem como principio


básico o comprometimento do professor com a emancipação humana. Nesta perspectiva, o
professor se utiliza dos elementos da pedagogia crítica para a formação de consciência
crítica nos alunos para que sejam capazes de compreender as contradições existentes na
realidade.
A luta contra as forças que subordinam os homens a situações de opressão brota
dessa compreensão. Contudo, não é o que prevalece na identidade dos professores atuantes
nas escolas que atendem os alunos oriundos do meio rural.
É necessário identificar nas narrativas de professores do campo que se nomeiam
professores engajados e comprometidos politicamente, elementos que se aproximam da
pedagogia crítica, do ideário de educação do campo e da perspectiva da emancipação
humana.
Além de analisar os efeitos segregativos da oferta de nomeações proveniente do
discurso do “Outro”240, enfrentados no seu ambiente de trabalho e que por vez desqualifica
o seu trabalho docente.
Como sujeitos da investigação foram selecionadas duas professoras, sendo uma
atuante no ensino não formal e outra no ensino formal, das cidades rurais de Itaverava e
Catas Altas da Noruega, respectivamente. As narrativas autobiográficas das professoras
precedeu uma entrevista semiestruturada para localizar a identidade docente proposta pelo
objetivo da pesquisa. Em termos de metodologia foi pedido para trabalhar com o relato
escrito, depois de uma conversa inicial sobre a utilização da abordagem autobiográfica numa
perspectiva de investigação formação.

O caráter objetivo e subjetivo da política

O pensamento e o método dialético surgem a partir da crítica à separação entre


objetividade e subjetividade, entendendo que o indivíduo está inserido em um movimento
social. Por um lado, representa uma crítica à visão dominante objetivista, e por outro, uma
inserção da subjetividade como produção histórica.
Considerando o movimento dialético de tese, antítese (contradição) e síntese
proposto por Hegel, Marx formula sua lógica dialética deslocando a contradição do campo
do pensamento para o da realidade concreta onde o conflito histórico entre as forças de
trabalho e os meios de produção inevitavelmente resultará na revolução.

239
O novo conceito de “educação do campo”, criado a partir da articulação dos movimentos sociais do campo,
pesquisadores e o Ministério da Educação traduz a procura de uma nova ordem social (CADART,2004) na qual o
MST é protagonista pedagógico na construção de um projeto político contra-hegemônico de singular
importância. Tendo como meta o fim da expropriação e exploração dos sujeitos do campo, o MST defende uma
educação que visa a autonomia do sujeito ou coletivo do campo não considerado simplesmente como uma
extensão do proletariado localizado nos espaços rurais, subservientes às necessidades econômicas urbanas.
240
O discurso do “Outro” é uma expressão específica da psicanálise utilizada por Jacques Lacan (1901-1981)
para distinguir a compreensão do outro como o próximo ou o semelhante, daquele Outro que representa a
alteridade radical

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1057


A dialética é inscrita na política e consequentemente, tem a pretensão de apropriar e
transformar o real, impulsionando a resolução de todas as contradições concretas e sua
efetivação numa sociedade sem classes.
Entenderíamos, nessa perspectiva, que educar é fornecer as bases teóricas para as
transformações das contradições produzidas na realidade material de sua época. Para tal,
torna-se essencial entender a história da luta entre as classes sociais de todo período
histórico.
Marx, na famosa 11ª Tese Ad Feuerbach (2007), escrita em 1845, enfatiza que não
basta possibilitar ao sujeito entender o mundo. “Os filósofos apenas interpretam o mundo
de modos diferentes: é preciso transformá-lo”. Saber que o sujeito não é agente exclusivo de
seu discurso é importante, mas pode jogá-lo nas garras de uma teorização infrutífera, que
justifica a impossibilidade de transformação, de produção do novo e, contraditoriamente,
inibir a práxis. Por isso a importância do método dialético vinculado à dimensão política.
Desse modo seria de extrema ingenuidade desvincular a política da educação pois
educar é um ato político. Segundo Paro (2002) a política é primordial para criar a
possibilidade de convivência entre as pessoas assim como na produção da própria existência
em sociedade.

Esse conceito de educação do humano-histórico não pode ser desvinculado de sua


dimensão política. A política se faz presente como realidade inerente à espécie
humana porque não é sequer imaginável que o homem, em sua condição histórica,
como produtor de sua própria humanidade, possa existir isoladamente. O homem
só consegue produzir sua realidade material relacionando-se com outros homens,
por meio da divisão social do trabalho.

Destaca-se o caráter subjetivo na relação entre os sujeitos, que são motivados por
vontades e desejos próprios para agirem como autores sobre determinado objeto.
“Contudo, ao se relacionar-se, ele se depara com outros seres humanos com a mesma
especificidade histórica: sua subjetividade.”(PARO, 2011, p. 27). Magalhães (1997), em outro
estudo, defende a possibilidade de autoria do sujeito na construção do seu discurso.

Desde que Freud trouxe para a investigação científica o conceito de inconsciente,


não se pode mais, sem perda da objetividade do ser, tratar o sujeito pelo cogito
cartesiano do consciente. Como, desde Marx, não se pode pensar uma essência
humana imutável, que desde Aristóteles prevaleceu na explicação do
comportamento humana. No entanto, o abandono da consciência histórica em
detrimento do desejo recalcado aprisiona o sujeito, tornando-o incapaz de
revolucionar o mundo. O sujeito passa a ser aquele que reforma o já-dado, nunca
produzindo algo inteiramente novo (1997).

Segundo a autora, ao materializar um discurso deparamos com a subjetividade de


quem o produziu em consonância com o seu espaço e tempo histórico. Assim, contrariando
a concepção defendida por Lacan de uma estrutura inconsciente a-histórica, que
homogeneíza o processo de individuação de todo sujeito independente do período histórico
ou sociedade. E, também, a interpretação psicanalítica freudiana de sujeito do desejo, que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1058


limita o sujeito numa realidade já dada, constituído de acordo com determinadas estruturas
psíquicas e comportamentais: a neurose241, a psicose ou a perversão.
Nesse artigo, defende-se o educador como sujeito de transformação. Segundo o
pesquisador Celso dos Santos Vasconcelos (1995), dentro do modelo teórico crítico-dialético,
o educador se distingue do mero professor que não se empenha na formação intelectual do
aluno, e se pretende neutro politicamente se distanciando de suas funções sociais. A ação do
educador é de caráter intelectual e é um ser político desde sua formação. Há, entretanto,
uma dificuldade de análise no que concerne a atividade intelectual. A parte intelectual é
pressuposto, mas não suficiente. É no âmbito social que a função da atividade intelectual se
determina na sua práxis de organização social. Desse modo o educador é um intelectual
dirigente e se constitui das várias dimensões: pessoal, social, político, cultural. Assim, estão
em constante processo de conscientização, atento as ideologias e as perspectivas
globalizantes, tendo como meta à práxis revolucionária.

Narrativas de duas educadoras rurais

O discurso nas narrativas revela uma identidade construída no contato empírico com
as desigualdades sociais, muito sofrimento, enfrentamentos e superações. As contradições
sociais vivenciadas desde a infância constituíram o universo no qual aconteceu a formação
dessas professoras. Como entender que os pais trabalhassem dia e noite e ainda assim
passassem suas existências na margem da pobreza? De fato, como disse Bourdieu242, são
diversas as “agressões silenciosas da vida de todos os dias” que são absorvidas de forma
subjetiva na construção de uma identidade. Observamos em suas falas que ambas
reconhecem a influência das figuras parentais como incentivadoras na trajetória escolar.
Vieram de famílias humildes e são impregnados de valores éticos e humanos.

Marina- Sou de uma família numerosa e pobre, que passou por várias necessidades
e sofrendo preconceito racial e de classe social. Num período de minha vida para
eu e meus irmãos estudarmos, meu pai fazia o caderno do papel e do barbante que
vinham embrulhados no pão. Ele cortava as folhas de papel, fazia as pautas e com
o barbante costurava as folhas. O material escolar era difícil de obter e tinha que
durar o ano todo. Mesmo assim estudávamos com prazer e aproveitávamos esses
instantes na escola de todas as formas possíveis. As pesquisas eram tão difíceis de
fazer, que quando tínhamos o material, ele era totalmente aproveitado,
compartilhado e principalmente absorvido por todos. Muito diferente das cópias
da internet como é feito hoje.

Márcia- Nasci em 28 de junho de 1969,minha família é de origem muito digna e


humilde, por isso chegamos a morar ora de aluguel, ora de favores em diversos
endereços aqui em Catas Altas da Noruega, pois meu pai apesar de ser muito
valente tinha pouca saúde e faleceu com apenas 52 anos, mas como costumava
dizer que se conseguisse nos colocar dentro de nossa própria casa morreria feliz.

A trajetória de estudo das professoras foi marcada por muito esforço e abdicação,
conciliando trabalho e estudo. Ambas concebiam o trabalho como método para concluir os
241
Como é o caso da estrutura psíquica da neurose, constituída pelo sujeito de falta. Nesse caso, a falta não se
resolve, mas os procedimentos psicanalíticos pode criar condições para o sujeito lidar com essas ausências.
242
Pierre Bourdieu. (2003), A miséria do mundo. São Paulo, Vozes.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1059
estudos. Contudo, o contexto social de classe menos favorecida precedeu de um esforço
pessoal e da aquisição de autonomia, para a superação de seu processo histórico-social. O
esforço para superação das contradições sociais constitui-se como fundante da constituição
de suas identidades docentes.
Mesmo que a formação de ambas se dê em realidades territórios distintas, Marina na
cidade grande e Márcia no interior rural, ambas revelam em suas experiências as
intempéries de conciliar estudo e trabalho.

Márcia - Até 1984, estudei na mesma escola, apesar de tímida, interagia muito bem
com minha turma e meus professores, que são inesquecíveis para mim. Como
neste período ainda não tínhamos o Ensino Médio em nossa escola, fui obrigada a
sair de casa e de cidade para estudar, fui para Conselheiro Lafaiete, morar e
trabalhar em casa de família. Devido à timidez e minha lei do silêncio, de nada
reclamar à minha mãe, por temer retornar e ficar sem estudar, sofri muito,
principalmente com excesso de trabalho, o que me impedia de chegar à escola nos
primeiros horários, devido a isto acabei sendo reprovada em Matemática. Quase
desidratei de tanto chorar. Minha mãe indignada me trouxe de volta para casa e
neste mesmo ano pude fazer o primeiro ano do Ensino Médio aqui em Catas Altas,
mas o curso parou e mais uma vez tive que sair para concluir. Fui então para BH.
Morar e trabalhar em casa de família para estudar. Não foi fácil, fiz o 2º ano no
colégio Sindicato dos Bancários e devido a dificuldade extrema para pagar, depois
de muita persistência consegui vaga para cursar o 3º ano no Estadual Governador
Milton Campos. Assim concluí o Ensino Médio, sem nenhuma foto para marcar
esta conquista (...)

Em Catas Altas da Noruega até 1990 não se ofertava o ensino Médio, o que
provocava uma interrupção brusca na trajetória escolar dos moradores da cidade.
Prosseguir os estudos representava se deslocar de cidade, no caso de Catas Altas da
Noruega a cidade mais próxima é Conselheiro Lafaiete à aproximadamente 30km. Como
nesse período só havia estradas de terra na região, o destino daqueles que persistiam no
estudo era condicionada a mudar para a cidade e, em sua maioria, conciliar estudo com
trabalho.
Atualmente, as cidades da região possui uma escola pólo que oferta o ensino médio,
a EJA, e alguns cursos profissionalizantes. A chegada do asfalto favoreceu a juventude
dar continuidade aos estudos em outras cidades. Durante todos os dias da semana mais
de um ônibus carregam alunos para Faculdades e cursos técnicos localizados em outras
cidades. Normalmente mantém algum tipo de subsídio com a prefeitura local. Nota-se
que, em um período curto de tempo, as condições de continuidade de estudo se
modificaram significativamente.
A educadora Márcia, num ato de coragem, teve que dispor do convívio com seus
familiares e amigos e enfrentar as diferenças culturais e sociais de um novo ambiente: o
urbano. Desse modo, se constituindo como sujeito de autonomia e enfrentamento, que
por vezes, para continuar os estudos, criava regras severas para si, como a lei do silêncio.
A lei do silêncio, instituída pela educadora, foi uma estratégia utilizada para poder
dar continuidade aos estudos. Não reclamar dos maus-tratos e dificuldades que passava
parece ser uma marca na sua trajetória escolar, que aparece nos primeiros relatos de sua
entrada na escola.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1060


Infelizmente era muito tímida, insegura, tinha vários apelidos humilhantes,
“retardada” era o mais usado e mais doído e era constantemente ameaçada e
agredida na escola, quando não estava na companhia de meu irmão mais
velho,após a aula, subia o morro, rumo à minha casa correndo para não ser
atingida por pedradas e nem sempre conseguia evitar. Quando meu irmão
começou estudar em turno diferente do meu e saí dos cuidados dele e de minha
professora alfabetizadora, quis abandonar a escola ou morrer, para não voltar,
bloqueei , passei a ter dificuldade extrema para entender tudo que era explicado e
comecei a pensar que tinha problemas de audição. Em resposta ao meu baixo
desempenho, minha outra professora passou a me deixar de castigo, praticamente
todos os dias, atrás da porta e eu e minha inocência ali ficava até que a faxineira
vinha limpar a sala e me liberava. Não tinha coragem de contar em casa, pois me
sentia a mais burra, a mais feia, incapaz e culpada, achava que realmente merecia
aquele tratamento, pois não sabia nada. Tinha horror da noite e passei a tomar
remédios bem fortes para insônia.

O Bullying243 por muito tempo foi naturalizado como uma brincadeira da idade. Hoje
há uma preocupação em fazer da escola um espaço de negociação das identidades, devido à
promissora diversidade localizada no território escolar, seja física, social, cultural, de gênero
e raça expressa no corpo e nas atitudes dos alunos. Contudo, a escola sempre representou
um espaço de luta de poder, em que o humilhado se cala na introspecção. O silenciamento
dos alunos humilhados, ameaçados sempre imperou na escola, muitas vezes, despercebido
pelos próprios professores. E outros casos, sendo potencializado pelo próprio professor ou
de fato sendo este o autor do bullying.
No caso do relato da educadora Márcia evidencia-se o bullying praticado pelos
colegas e reforçado pela professora. A narrativa deixa clara a interferência negativa da
professora que, restrita a uma prática pedagógica autoritária, utilizava do castigo como
método de correção ao baixo desempenho escolar da criança.
A Lei do silêncio, constituída na primazia da sua formação, resultou num período de
bloqueio e inibição aos estudos. Para compreender o sintoma de inibição recorremos aos
estudos de Freud sobre “inibição, sintomas e ansiedades”. Nesse estudo a inibição é um
mecanismo de freada no funcionamento normal das funções. No caso da educadora Márcia
a inibição intelectual representou um tempo especifico em que, devido a situação
traumática sofrida pelo bullying, provocou uma diminuição do prazer da sua função
intelectual, gerando a perda do bom funcionamento da capacidade de pensar.
A inibição, nesse caso, foi superada quando a lei do silêncio foi rompida pela mãe. O
protagonismo da mãe da educadora foi fator condicionante para superar sua inibição
intelectual, que mesmo semianalfabeta, transformou a trajetória de construção do
conhecimento de sua filha. A educadora conta que quando sua mãe substituiu uma
faxineira na escola em que estudava, ao entrar para limpar a sala de aula, encontrou sua
filha atrás da porta, descobrindo a angustia sinal244 em que sua filha estava submersa.

243
Palavra de origem inglesa, sem tradução especifica no português, utilizada para designar atitudes
intencionais de humilhação e discriminação ao diferente.
244
Freud diferencia três tipos de angustias. A angústia diante de um perigo real, a angústia automática, gerada
por uma situação traumática e a angustia sinal ligada coma pulsão de morte, com o trauma e o desamparo.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1061
No outro dia minha mãe pediu uma entrevista com a diretora, a professora
e eu no gabinete da escola. Era o segundo dia de trabalho dela, a professora
chorava dizendo que nunca havia sido chamada ao gabinete por nenhum
pai, mas não conseguia explicar porque agia assim comigo, eu chorava de
dó da professora, de medo , vergonha e de culpa por imaginar que minha
mãe poderia perder aquele emprego que era tão importante para ela e
para nós, pois a coragem, o amor e sabedoria daquela mulher semi-
analfabeta, que teve a oportunidade de fazer apenas o 1º ano de
escolaridade mudou o rumo de minha vida, a professora passou a me tratar
com mais afeto, me esperando para apagar o quadro, indo à minha carteira
para me orientar, me chamando pelo nome.

Por outro lado, a narrativa revela elementos para além da superação do sintoma,
como a capacidade de transformação da prática pedagógica da professora que, através da
experiência vivida, se empenhou em converter o processo de exclusão no qual
protagonizava. O afeto e a dedicação para romper o bloqueio daquela criança passaram a
fazer parte da conduta da professora.
Ao entender o bullying como um determinante no processo de construção da
subjetividade e, consequentemente, na constituição da identidade docente, enfatizamos
esse relato de exclusão presente nas duas narrativas como pertinentes na determinação das
educadoras se nomearem sujeito críticos e de transformação. Assim, nos leva a refletir, até
em que medida sofrer bullying na escola influenciou as professoras analisadas numa outra
concepção de educação? Até que ponto professores que passaram por situações de
humilhação e inibição olham os alunos diferentes e excluídos de forma especial?
Segundo a educadora Marina, a discriminação sofrida por sua classe social e cor, fez
com que ela focasse o seu trabalho para os excluídos na sociedade.

Na vida eu tive muitas oportunidades que me levaram a ser uma educadora


diferenciada. Não quero dizer com isso que sou boa em tudo que faço, mas sei que
procuro fazer a diferença. Voltando no tempo me lembro dos ensinamentos dos
meus pais sobre ajudar os mais necessitados, mesmo, muitas vezes, nossa família
passar por grandes dificuldades, por isso fiz a opção de viver no campo. Meu
marido e eu sempre desejamos isso e tivemos essa oportunidade. Logo que
chegamos na nossa casa no sítio, começamos a ver o quanto a vida é diferente,
cheia de sacrifícios e poucos recursos no meio rural.

Marina, criada e formada na capital, no processo de constituição de sua identidade


pessoal e profissional, optou por uma vida no campo. Por um lado, o anseio particular de
vivenciar os benefícios do território rural, por outro, o desejo de perceber os efeitos de suas
ações sociais num território menos populoso. Ainda na cidade a educadora contribuía com
ações solidárias, espontâneas, em creches, Apae e escola infantil. Contudo se questionava
por suas ações não surtir os efeitos desejados em contribuir na constituição de sujeitos
autônomos e emancipados.
Segundo Marina, “o indivíduo urbano sofre influências de diversas espécies”. Movida
pelo desejo de viver no espírito de comunidade, a educadora, junto com sua família,
determinou seu território de ação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1062


Cheguei disposta a participar e trabalhar em prol da comunidade. Logo quando
compramos nosso sítio há uns 5 km da rua245, propomos compartilhar a terra em
forma de trabalho coletivo ou até moradia com outros trabalhadores que
necessitavam. No entanto, essa proposta provou um estranhamento na região. Em
poucos dias toda comunidade sabia de nossa chegada. A maior parte da
comunidade não entendia por que a gente foi morar na roça. Seria mais sensato
comprar uma casa na “rua” perto da escola de minhas filhas. As estradas eram
ruins e de difícil acesso quando chovia. Já começavam a me intitular de doida nessa
época. Mais tarde, estranharam mais ainda quando meu marido saia de carro e eu
preferia ir para a APAE a pé. Aqui só andam a pé em extrema necessidade.

Ao falar sobre sua chegada à comunidade, a educadora Marina enfatiza o


estranhamento provocado na cidade. A atitude da família representou uma oposição de
valores, provocando uma reação de estranhamento, aversão, curiosidade e admiração,
simultaneamente. No contexto social da região sair da roça simboliza uma ascensão social,
pois o campo cada vez mais deixa de ser constituído como território de morada para tornar
lugar de trabalho, onde só moram os excluídos.Em contrapartida, a opção pela vida na roça
fere a lógica burguesa: morar no campo significa a rejeição dos valores “superiores” e a
incorporação dos valores “inferiores” do povo “ignorante” da roça. O próprio morador rural
absorve essas representações sociais depreciando sua identidade camponesa. Nomear uma
pessoa de doida sinaliza um distanciamento de valores. A educadora Marina, ao transgredir
esses valores, sofreu essa nomeação como forma de defesa social aos valores que
permeavam o imaginário da comunidade.
Contraditoriamente, a reação de curiosidade e admiração suscitada na comunidade
pode se justificar pelo sentimento de pertencimento ao lugar de origem, já que de algum
modo, mesmo os moradores da “rua” tem ou tiveram uma ligação afetiva nesse território de
vida rural.n Outros valores que se opõem à lógica local se chocam na narrativa da educadora
I, como a proposta de compartilhar a terra com aqueles que não pertenciam à família
sanguínea. Os meeiros e parceiros representam a mão de obra para os proprietários de
terra, que exploram de seu trabalho sem nenhuma forma de remuneração, em troca de se
beneficiarem de um terço do plantio da terra do proprietário. Romper com lógica da
propriedade privada como ferramenta de exploração vicejou nos proprietários, não só uma
rejeição de seus valores, mas um risco eminente de transgressão e subversão aos seus
privilégios.

Meu marido então resolveu reunir os vizinhos e propôs formarem uma associação
de pequenos produtores rurais (ASPRI – Associação de Pequenos Produtores Rurais
de Itaverava). Decidimos fazer diversas coisas e uma delas era alfabetizar os
adultos que não tiveram oportunidade de estudar ou que não concluíram os
estudos. Fomos à secretaria Regional de Ensino de Conselheiro Lafaiete e
conseguimos material e a oportunidade de preparar os que decidissem estudar e
que depois eles fariam uma prova a escola pelo que receberiam o certificado de
conclusão de curso. Infelizmente eles não aceitaram a proposta por medo,
preconceito e insegurança. Resolvemos então desenvolver novas atividades.

245
Os moradores de Itaverava nomeiam de “rua”o pequeno aglomerado urbano, onde localiza as instituições e
comércio da cidade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1063
Nota-se a desconfiança dos moradores nas iniciativas propostas. Segundo a
educadora I levaram-se vários anos para os moradores darem credibilidade a ASPRI.
Confessa que ainda sofre muito preconceito por ser uma mulher mobilizadora e atuante na
cidade. Contudo, relata vários projetos e experiências vivenciados na ASPRI, principalmente,
vinculados às mulheres dos produtores que, de algum modo, acreditaram mais. A educadora
reunia as mulheres para ensiná-las bordar. Juntas trocavam receitas de roscas, pães e doce e
aperfeiçoavam as técnicas para a comercialização dos produtos.
Em parceria com a Emater e o Senar organizaram 25 cursos voltados para os
moradores do campo. Através do trabalho cooperativo participaram de diversas feiras. “Foi
o início de vários progressos para nós e para eles. Tudo ocorreu de forma lenta e gradativa.
Tudo que se faz deve ser analisado e os erros corrigidos, assim vamos fazendo.”

Junto a essas atividades da ASPRI enfrentamos mais um desafio: fundar a APAE


(Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) em Itaverava. Na APAE mais lutas,
mais cursos, mais aprendizado. A ASPRI e a APAE tem muito em comum, são duas
instituições que olham pela minoria, pelos mais fracos. Mais uma vez a
comunidade reagiu com preconceito, ouvia cada coisa: “Quem quer saber doido é
doido. Por que ela não criou uma escola infantil normal? O que ela está querendo
com isso? Quem vai querer trabalhar lá? Aqui não tem doido, pra que APAE?”. É,
foi uma longa luta.

Submersa numa comunidade de valores predominantemente machistas e de sujeitos


subordinados, a educadora Marina se revela como sujeito de transformação, comprometida
com a formação dos esquecidos da comunidade: a mulher camponesa e as pessoas com
necessidades especiais. Mas, justamente sua ousadia e crítica à realidade concreta, fez dela
diferente. E como todo diferente recebeu uma nomeação desqualificadora: a doida.
O que diferencia os sujeitos da massa? O que é valorizado e o que é desvalorizado na
sociedade? Até que ponto os educadores que mantém uma postura diferente frente ao
mundo, não sofrem bullying em sua profissão? Em que medida a aversão à política se
manifesta de forma discriminatória com aqueles que defendem essa dimensão? Será que o
medo de posicionar politicamente não está intrinsecamente relacionado com o medo de ser
diferente da massa? Enfim, até que ponto essas nomeações interferem na credibilidade do
docente frente aos alunos?
Os docentes com uma perspectiva crítica são nomeados de agitadores, diferentes,
insatisfeitos, malucos, e enfrentam as transformações necessárias solitariamente, muitas
vezes, em conflito com a estrutura escolar.
As duas entrevistadas apresentam uma profunda decepção com a estrutura
burocrática do sistema de ensino ao criarem empecilhos na realização de projetos
educacionais.

O que mais decepciona é tentar fazer algo baseado na realidade e ser tolhido pelo
sistema e pela burocracia.
Quando digo que o sistema e a burocracia atrapalham, me refiro ao preconceito,
ao descaso do governo a tudo que não traduz em grandes números. A gente se
prepara, faz diversos cursos a fim de adquirir mais capacidade e quando vai aplicar
o conhecimento, tudo se torna proibido ou limitado quando foge aos padrões do
sistema. É triste pensar e sentir na pele, que maquiar a educação, mostrar números

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1064


falsos é mais importante que educar em si. Por isso tantas vagas de emprego e
tantos profissionais desqualificados.
Também quando me refiro ao sistema, quero dizer que tudo vem de cima para
baixo sem escutar, sem experimentar a realidade. A teoria é sempre perfeita, mas a
realidade é cheia de falhas e vive pedindo socorro. Por isso ensinar tendo aptidão,
carinho e dedicação se constrói com solidez um futuro melhor e a burocracia só
dificulta essa realização.

O desabafo da educadora Marina comprova a ausência de uma relação dialética


entre o sistema de ensino, a estrutura escolar, os cursos de formação de professores e as
experiências e possibilidades reais vividas no espaço escolar. O que converge, segundo PARO
(2011), para a permanência histórica desse estado de coisas e coloca em dúvida a concepção
de educação que se pretende democrática.
A educadora relata uma experiência paradoxal ao elaborar o projeto político
pedagógico (PPP) da escola de ensino fundamental nas séries iniciais. De forma coletiva, o
projeto foi construído embasado na realidade e nas possibilidades de trabalho, entretanto,
não foi aprovado por ter sido considerado raso e inexpressivo para aumentar a nota do IDEB.
Assim, a educadora copilou três PPP de outras grandes escolas urbanas e montou um
projeto falso, maquiado com “palavras do momento” e sendo assim aprovado. Indignada
com a contraditória proposta de escola democrática, a educadora Marina, recusou o projeto
e revelou a farsa.
Segundo Gomes e Silva, as secretárias de educação e centros de formação deveriam
tratar com mais seriedade as experiências, atividades pedagógicas e projetos desenvolvidos
no cotidiano das escolas e dos educadores.

Quem sabe, em vez desses últimos proporem currículos multiculturais de cima para
baixo, eles poderiam antes mapear, conhecer e dialogar com as escolas e /ou
coletivos de professores/ as que já aceitaram o desafio de construir e implementar
propostas voltadas para uma pedagogia da diversidade e assim construir uma
proposta mais coletiva”(GOMES e SILVA, p.23) (coleção trajetória- o desafio da
diversidade)

As autoras afirmam que o não-reconhecimento das experiências e projetos


pedagógicos das escolas também afeta a elaboração de programas de formação dos
professores que, muito das vezes, não estão sintonizados com as lutas sociais, políticas e
culturais que se desenrolam na realidade brasileira.
A educadora Márcia traz uma crítica semelhante referente a interferências negativas
e contraditórias da estrutura escolar na realização de um projeto educacional,
principalmente por se tratar da formação do sujeito crítico que intervém na construção do
processo histórico da sua realidade concreta.

Também já tive trabalhos barrados de serem realizados na escola pela direção da


escola e também pela SRE a qual recorri e recebi uma dupla de inspetores que
analisaram meu projeto de trabalho, que incentivava os alunos a escreverem carta
coletiva aos candidatos a prefeitos da cidade, fazendo questionamentos e
reivindicações, com intuito de serem lidas no jornal da Rádio Noruega e entregue a
cada candidato às vésperas da eleição. Segundo as inspetoras, o projeto foi bem
elaborado, porém acharam mais conveniente evitar a polêmica. Antes de abrir mão
de meu projeto, argumentei lembrando a todos da nossa liberdade de expressão e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1065
recitando uma célebre frase do filósofo Voltaire “Posso não concordar com
nenhuma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-las”.

Apesar de mostrarem uma visão negativa dos sistemas de ensino, a educadora


Marina confessa:
Não posso dizer que o sistema só atrapalha, ele também ajuda e valoriza o
profissional. Vários projetos, várias escolas com seus professores receberam apoio
e reconhecimento. Também passei por isso com um projeto pedagógico para
trabalhar com um autista, recebi elogios e muito apoio dos órgãos competentes.

Conclusões

Enfim, é justamente na metodologia autobiográfica que encontramos a interação de


duas dimensões dialéticas inseparáveis: o individuo e o social. Assim, permitindo o
movimento dialético do “ir e vir” que solidifica a relação entre teoria e prática.
A escrita narrativa possibilita que o professor se autorreconheça como sujeito de
transformação a partir das suas experiências e das posições tomadas em seu percurso
formativo e faça consciente o conhecimento de si e das diversas variantes que constitui sua
identidade, que emergem das dimensões subjetivas e objetivas de sua existência. Procurou-
se compreender as determinantes do destino profissional dessas professoras, constatando que há
percursos formativos diferentes de acordo com a particularidade do tempo e espaço histórico de
cada docente, o que produziu marcas identitárias similares e distintas. Nota-se no discurso de ambas
as educadoras uma preocupação em relação às práticas identitárias contra a segregação e a
exclusão. Entretanto, a educadora F deixa de abordar questões referentes ao seu território de
pertencimento: o campo. Contudo, o não-dito no discurso da educadora F pode revelar sentidos para
além do esquecimento. As nomeações provenientes do discurso do “Outro”, e seus efeitos
segregativos principiou desde o inicio da formação das educadoras, influenciando na sua identidade
pessoal e formativa. O que se pode deduzir certa estigmatização dos sujeitos que se queiram
verdadeiramente críticos, empenhados na tarefa de construções diferenciadas e transformadoras na
prática docente.

Referências
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. São Paulo, Vozes, 2003.
CALDART, Roseli Salete; ARROYO, Miguel Gonzáles & MOLINA, Mônica Castagna
(organizadores). Por uma Educação do Campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
FERRAROTIl, Franco. Sobre a autonomia do método biográfico, In: Sociologia, Problemas e
Práticas, n.O 9, pp. 171-177, 1991.
LACAN, J. O Seminário: livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-
1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LUKÁCS, Georg. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem. Temas de
Ciências Humanas n. 4. Tr. C.N. Coutinho, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1978.
MAGALHÃES, Belmira et al. Da linguagem ao poder. Maceió: EDUFAL, 1997.
PARO, V. H. Gestão democrática da escola pública. São Paulo: Ática, 2002.
SOUZA, Elizeu Clemente de. Autobiografias, histórias de vida e formação: Pesquisa e
ensino. Porto Alegre/Salvador: Editora Edipucrs, 2006.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1066


THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Teses sobre Feuerbach. In: Marx, K.; Engels, F. A ideologia alemã. Trad. Luiz Cláudio de
Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1067


Negras e femininas escritas de si: (re) lembrando para (re) significar e dignificar negras
memórias

Júlio Cézar Barbosa


Faculdade D. Pedro II
jczares@gmail.com

Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro


Faculdade D. Pedro II
hildaliafernandes@hotmail.com

Esta comunicação objetiva analisar um corpus intitulado de “Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares
de nascimento de minha escrita” (EVARISTO, 2007) e possibilitar metodologias para o uso da escrita de si negra
e feminina em sala de aula, a partir da Lei federal 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da história e
cultura afro-brasileira. Neste gênero literário negro-brasileiro (CUTI, 2010), a contista-negra-mineira aposta em
uma escrita negra feminina e, a partir da escrita de si (SOUZA, 2006), partilha sua história de leitura e de
escrita, assim como de sua família. À medida que explicitamos como as memórias individuais dessa mulher se
entrelaçam com as coletivas pertencentes ao povo negro, apresentamos uma literatura marcada pelo
pertencimento etnicorracial negro e por temáticas de gênero. Nessa literatura negro-brasileira (CUTI, 2010),
estratégias de sobrevivências são compartilhadas a partir da (auto) biografia, revelam como as mulheres negras
“assenhoram-se da pena” (EVARISTO, 2006) e passam a (auto) representar-se (EVARISTO, 2005). (Auto)
representação que busca minimizar a estigmatização existente em torno dos seus corpos e de suas existências.
Essa forma de arte, a literatura, tem, historicamente, quando não animalizado tal segmento, hiperssexualizado
as mesmas, transformando-as em caricaturas, imagens grotescas, distorcidas e distantes demais da imagem
real dessas mulheres. Na contramão dessas caricaturas, a análise e explicitação do referido corpus inscreve-se e
respalda-se nas dinâmicas descolonizadoras da escrevivência (EVARISTO, 2006) e da afrovivência (PEREIRA,
s/d). Apresentadas secularmente como corpos dissidentes que tendem a não se encaixar no padrão criado e
difundido pela sociedade do que é ser belo e humano, essas mulheres criam uma escrita impregnada de
insubordinação, ou seja, exigem, para si, a (auto) gestão do corpo e da subjetividade. Desta forma, alteram as
representações até então existentes sobre elas, (re) significam e dignificam um legado.
Palavras-chave: Literatura negro-brasileira; Escrita negra feminina; Escritas de Si; Escrevivência; Conceição
Evaristo.

Notas introdutórias sobre: literatura negro-brasileira: o que vem a ser?

A Literatura Negra é um termo ainda em construção (DUARTE, 2010). Por essa razão,
existem divergências entre autores e teóricos quanto à denominação mais apropriada para
esse tipo de escrita: literatura negra (BERND, 2011); afrobrasileira (DUARTE, 2008);
afrodescendente (SOUZA; LIMA, 2006) e/ou negro-brasileira (CUTI, 2010). Ainda que
pareçam muito próximos semanticamente, os referidos termos não significam a mesma
coisa. Cada um deles apresenta e destaca aspectos diferenciados de uma escrita, sobretudo
no plano político.
Segundo Bernd (2011, p. 21), “[...] É possível afirmar que a literatura negra ou afro-
brasileira apresenta especificidades, entre as quais:

A temática dominante é o negro na sociedade, o resgate da memória, tradições,


religiões, cultura e a denúncia contra o drama da marginalidade do negro na
sociedade brasileira devido, sobretudo, à persistência de diferentes formas de
preconceito; o ponto de vista é o do negro que emerge no poema como o eu
enunciador, assumindo as rédeas de sua enunciação; a linguagem possui
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1068
vocabulário próprio associado à oralidade da cultura negra; o imaginário
corresponde ao conjunto de representações que uma comunidade tem de si
mesma e mediante o qual se opera a paulatina construção identitária. (BERND,
2011, p. 21).

Enquanto Duarte (2010, p. 127) defende a denominação literatura afro-brasileira,


Souza; Lima (2006, p. 24) buscam sintetizar as especificidades que cada termo evidencia.
Elas declaram que:

A denominação “literatura negra”, ao procurar se integrar as lutas pela


conscientização da população negra, busca dar sentido a processos de formação da
identidade de grupos excluídos do modelo social pensado por nossa sociedade. [...]
Já a expressão literatura afro-brasileira procura assumir as ligações entre o ato
criativo que o termo “literatura” indica e a relação dessa criação com a África, seja
aquela que nos legou a imensidão de escravos trazida para as Américas, seja a
África venerada como berço da civilização. Por outro lado, a expressão literatura
afrodescendente parece se orientar num duplo movimento: insiste na constituição
de uma visão vinculada as matrizes culturais Africanas e, ao mesmo tempo, procura
traduzir as mutações inevitáveis que essas heranças sofreram na diáspora.
(SOUZA e LIMA, 2006. p. 23/4).

Como se pode depreender, essas exposições teóricas são importantes para se pensar
uma episteme para o referido gênero, no entanto o artigo ora apresentado adotará a
concepção elaborada por Cuti246 (2010), que defende o uso da nomenclatura literatura
negro-brasileira para fazer sobressair às características que o autor considera principais e
mais importantes nessa escrita: a autoria negra e realizada por brasileiros(as). Para ele:

Certa mordaça em torno da questão racial brasileira vem sendo rasgada por
seguidas gerações, mas sua fibra é forte, tecida nas instâncias do poder, e a
literatura é um de seus fios que mais oferece resistência, pois, quando vibra, ainda
entoa as às ilusões de hierarquias congênitas para continuar alimentando, com seu
veneno, o imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou
indiretamente. A literatura, pois, precisa de forte antídoto contra o racismo nela
entranhado. Os autores nacionais, principalmente os negro-brasileiros, lançaram-se
a esse empenho, não por ouvir dizer, mas por sentir, por terem experimentado a
discriminação em seu aprendizado. (CUTI, 2010, p. 13).

Em face do exposto, o artigo é iniciado com essa discussão para explicitar e não
deixar dúvidas sobre o lugar de autoria tanto do texto selecionado quanto do lugar político
assumido pelos autores desta comunicação, quando selecionam e elegem esse corpus e não
outro para dar a conhecer ao público. Desta forma, coadunamos com Cuti quando declara
sobre a emergência de: “[...] revelar um Brasil que se quer negro também no campo da
produção literária [...]” (CUTI, 2010, p. 13).
Vale advertir nessas linhas iniciais e explicativas que este gênero trata de uma
literatura marcada, inevitavelmente, pelo pertencimento etnicorracial. Por essa razão, essa é
a característica que une as diferentes designações.

246
Doutor em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de
Campinas(UNICAMP), dentre outros títulos acadêmicos e escritor/poeta.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1069
Assim, a denominação literatura negro-brasileira (CUTI, 2010) tem como uma de suas
marcas seu caráter revolucionário que, muitas vezes, causa certa inquietação. Esse
comportamento se dá pelo fato de que, historicamente, a palavra negro carrega um sentido
pejorativo, extremamente negativo em sua bagagem semântica247.
Evaristo (1996) auxilia no entendimento sobre essas letras pretas nas páginas brancas
e sua importância na criação de contradiscursos que desestabilizem os discursos
hegemônicos. Estes últimos, por séculos, tendem a negligenciar e desmerecer tudo o que
não seja entendido e concebido enquanto canon:

Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de
si”(EVARISTO, 1996, p. 43). Esse elemento pode ser considerado a característica
fundamental da literatura negra na medida em que realiza uma inversão da
perspectivado sujeito literário, produzindo “um discurso do negro em
contraposição de um discurso sobre o negro produzido pela literatura branca”
(EVARISTO, 1996, p. 41- grifo conforme original).

Nota-se, assim, nessas breves considerações a respeito do tema, que longe nos
encontramos de uma unanimidade quanto ao uso das designações sobre a escrita produzida
por homens e mulheres negros espalhados pela diáspora. Este termo, por sua vez, ainda está
em construção e apresenta aspectos e características as mais diversificadas, no entanto
convergem no tratamento da temática quando busca ressaltar, cada uma, ao seu modo, o
que julgam de mais importante nesses negros escritos.

Escrita negra feminina

Por literatura afro feminina entendemos que é:

[...] uma produção de autoria de mulheres negras que se constitui de temas


femininos/feministas negros comprometidos com estratégias políticas
emancipatórias e de alteridades, circunscrevendo narrações de negritudes
femininas/feministas por elementos e segmentos de memórias ancestrais, de
tradições e culturas africano-brasileiras, do passado histórico e de experiências
vividas, positiva e negativamente, como mulheres negras. Por esse projeto literário,
figuram-se discursos estéticos inovadores e diferenciadores em que vozes literárias
negras e femininas, destituídas de submissão, assenhoram-se da escrita para forjar
uma estética textual em que (re) inventam a si/nós e cantam repertórios e eventos
histórico-culturais negros (SILVA, 2010, p. 178)248.

Além de ser uma escrita marcada pela cor, pelo pertencimento etnicorracial, por uma
escrita negro-brasileira (CUTI, 2010), aqui selecionada para compor o corpus, é, sobretudo,

247
Para maiores informações sobre essa discussão ver a publicação de Cuti intitulada de “Quem tem medo da
palavra negro?” Texto publicado na Revista Matriz: uma revista de arte negra, editada em novembro de 2010
pelo Grupo Caixa Preta, de Porto Alegre, RS. Disponível em:
http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/pdf/quemtemmedodapalavranegro_cuti.pdf. Acesso em
: 01mai 2014.
248
SILVA. Ana Rita Santiago da. A Literatura de escritoras negras: uma voz (Des) silenciadora e emancipatória.
Interdisciplinar Ano 5, v. 10, jan-jun de 2010. p. 175-188.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1070
marcada por pertencimento de gênero. Em suma, é uma escrita negra e feminina, isto é,
genuína e sumariamente “afro-feminina” (SILVA (2010), conforme apresentado linhas acima.
Para além das discussões e possibilidades múltiplas de designação para esse gênero
literário, como já apresentado anteriormente, o que se pode notar é que esse tipo de escrita
encontra-se imbricada e envolvida numa luta ininterrupta pela positivação da condição de
mulher e de negra, da minimização dos estereótipos atribuídos ao longo do processo de
“tornar-se negro” defendido por Souza (1983).
O percurso realizado por Evaristo (2006) e aqui eleito como corpus encontra-se
impregnado de processos de (re) elaborações, (re) fazimentos. Estes são explicitados nessa
escrita que parece tratar de memórias individualizadas, mas, inexoravelmente, remete a
uma coletividade, a um pertencimento etnicorracial daqueles que “herdaram”, sobretudo,
as mazelas do processo de escravização. Assim sendo, apesar de Evaristo (2006) socializar
suas lembranças/recordações/reminiscências de leitura, estas se encontram profundamente
impregnadas de representações que apresentam alcance, validade e características
coletivas.
É a autora ainda que aborda a questao com maior amplitude para que entendamos
do que trata tal escrita-empreendimento:

Se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos


vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de
representação da mulher negra na literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto
representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever
no corpus literário brasileiro imagens de autorrepresentação. Criam, então, uma
literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como
objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulhernegra que se descreve, a
partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na
sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para
além de um sentido estético, busca semantizar um outro movimento a que abriga
todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se
torna o lugar da vida. (EVARISTO, 2005, p. 54).

Aprofundando o tratamento da questão Souza (1983), em seu clássico e importante


trabalho sobre o processo de “Tornar-se negro”, sinaliza a preocupação em (res) significar
vivências e a possibilidade de (trans) formação a partir das mesmas. Por essa via,
coadunamos com a mesma quando declara que:

A descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio (...) Saber-se negra é
viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas
perspectivas, submetidas a exigências, compelida a expectativas alienadas. “Mas é
também, e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e
recriar-se em suas potencialidades. (p. 17 – grifo nosso).

As escrevivências (EVARISTO, 2006) aqui compartilhadas, a partir da história de


leitura e de escrita de Conceição Evaristo, bem como da sua família, e eleitas como corpus
deste texto, nos ajudam a compreendermos o quanto a história das nossas encontram-se
imbricadas com as nossas histórias e como podem nos servir de guia na escolha por
caminhos menos dolorosos e mais repletos de emancipação e poder.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1071


Caminhos marcados pela dor, sofrimento, espoliação, mas que, quase sempre,
apontam possíveis saídas, soluções e superações para as adversidades encontradas.

Apresentando a autora: conceição evaristo

Conceição Evaristo é mineira, Belo Horizonte, e nasceu em 1946. Graduada em Letras


pela UFRJ em 1973; mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro (1996), ao
defender a dissertação intitulada de “Literatura negra: uma poética de nossa afro-
brasilidade”; doutorou-se em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense,
em 2011. Sua tese “Poemas Malungos – Cânticos Irmãos” analisou, comparativamente, os
textos dos poetas Nei Lopes, Edmilson Almeida Pereira e Agostinho Neto e procurou
investigar as relações entre a literatura afrobrasileira e as literaturas africanas de língua
portuguesa.
Dentre as suas obras publicadas podemos citar os romances: Ponciá Vicêncio (2003) e
Becos da memória (2006); um livro de poemas chamado de Poemas de recordação e outros
movimentos (2008), um de contos: Insubordinadas lágrimas de mulheres (2011) e vários
poemas e contos em diversas edições dos Cadernos negros, publicação que já conta com 36
anos e editados pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo. Sua primeira publicação nesses
cadernos foi no ano de 1990, no de número 13. De lá para cá tem uma participação efetiva,
mas não de todo regular nos anos que seguem.
Para além dos títulos acadêmicos a autora faz questão de compartilhar para os seus
leitores e fãs/seguidores o seu lugar de origem humilde e declara: “Não nasci rodeada de
livros, mas sim rodeada de palavras”.

Do tempo/espaço aprendi desde criança a colher palavras. A nossa casa vazia de


móveis, de coisas e muitas vezes de alimento e agasalhos, era habitada por
palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos
amigos contavam. Eu, menina repetia, intentava. Cresci possuída pela oralidade,
pela palavra. As bonecas de pano e de capim que minha mãe criava para as filhas
nasciam com nome história. Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia.
(EVARISTO, 2005, p. 201)

E segue a escritora negra mineira nos ofertando seus ensinamentos que em


momentos diversos apresentam-se impregnados de valores ancestrais e que acabam
revelando, também, o quanto essa escrita encontra-se comprometida com um projeto maior
e emancipação do nosso povo:

Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-


lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato
empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços
culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever
adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar,
muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso
exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria
narrada. [...] A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os
da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (EVARISTO,
2007).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1072


Filha de mãe lavadeira, moradora de uma favela mineira, Evaristo chegou a trabalhar
com empregada doméstica antes de iniciar sua carreira como professora. Aproxima-se mais
dos livros no período em que já contava com idade suficiente para se dirigir ao centro da
cidade e passa a visitar com freqüência a Biblioteca Pública de Belo Horizonte, na qual uma
tia sua trabalhava, na portaria. Passa a acessar, sistematicamente, então, os clássicos e o
cânone de maneira voraz e ininterrupta.
São essas histórias de leitura e de escritas da família Evaristo, que se aproximam de
tantas outras famílias negras, em sua maioria, lideradas por mulheres negras quer estejam
sozinhas ou acompanhadas por um homem, que publicizaremos neste artigo.

Apontamentos sobre o corpus

O presente corpus trata-se de um depoimento publicado no livro “Representações


Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces”. Ele foi organizado por Marcos
Antônio Alexandre, editado pela Mazza e publicado em 2007. O mesmo foi apresentado na
Mesa de Escritoras Afro-brasileiras, no XI Seminário Nacional Mulher e Literatura/II
Seminário Internacional Mulher e Literatura, no Rio de Janeiro em 2005 e se encontra
disponível no site da autora249.
O texto explicita as inúmeras dificuldades das mais diferentes ordens. Nele notamos
que as famílias pobres e negras de Belo Horizonte buscaram formas e criaram estratégias de
driblar os impedimentos múltiplos, tanto no que diz respeito ao acesso a educação formal
quanto as possibilidades de alfabetização e letramento.
Conheçamo-los, pois, procurando associar sempre a noção de escrevivência
apresentada e defendida pela autora:

Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita


[...] Minha mãe não desenhava, não escrevia somente um sol, ela chamava por ele,
assim como os artistas das culturas tradicionais africanas sabem que as suas
máscaras não representam uma entidade, elas são as entidades esculpidas e
nomeadas por eles. E no círculo-chão, minha mãe colocava o sol, para que o astro
se engrandecesse no infinito e se materializasse em nossos dias. Nossos corpos
tinham urgências. O frio se fazia em nossos estômagos. [...]

A grafia do desenho que dá nome ao texto apresenta-se como transcendental.


Equivale a uma mágica, com o poder de transformação, de transmutação, inclusive; capaz de
interferir no funcionamento de aspectos da natureza. Possui correspondência com o poder
da palavra falada, pronunciada, proferida – poder que implica em realização.

[...] Foi daí, talvez, que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a
esperança da escrita. É preciso comprometer a vida com a escrita ou é o inverso?
Comprometer a escrita com a vida?

249
Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/search/label/apresentacaob. Acesso: 01 mai.
2014.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1073


A autora descobre cedo a importância da escrita, sobretudo a partir da utilidade que
a mesma se revela em sua existência. Desta forma, o ato de escrever ultrapassa a faceta
utilitária e é concebida como algo inevitavelmente e encontrava-se comprometido com a
sua vida. Uma escrita que não se desvinculava, nem poderia, da sua condição de mulher e de
negra.
Uma escrita marcada e pautada pela e na vivência. Nesta última são atribuídos
sentidos e significados, elevando-se, dessa forma, para o plano da experiência e lugar de
inevitáveis aprendizagens, bem como de compromisso250 para com o seu povo e luta.

[...] Mais um momento, ainda bem menina, em que a escrita me apareceu em sua
função utilitária e às vezes, até constrangedora, era no momento da devolução das
roupas limpas. Uma leitura solene do rol acontecia no espaço da cozinha das
senhoras:
4 lençóis brancos,
4 fronhas,
4 cobre-leitos,
4 toalhas de banho,
4 toalhas de rosto,
2 toalhas de mesa,
15 calcinhas,
20 toalhinhas,
10 cuecas,
7 pares de meias,
etc, etc, etc.

O rol e a profissão de lavadeiras de ganho, após a dita pós-modernidade, vem sendo


deixandas para trás com a acessibilidade de quase todas as classes econômicas a
eletrodomésticos. Estes últimos fizeram com que a ocupação de lavadeira caísse em desuso,
quase desaparecesse da lista de trabalhos que as mulheres negras historicamente
ocuparam. Ocupação em declínio dada a invenção e adoção da máquina de lavar. Antes da
sua existência, o rol era um momento de conferência antes de sair com a trouxa, contava-se
o número de peças entregues para serem lavadas em casa. No ato da devolução das peças
limpas, certificar-se de que todas enviadas estavam sendo trazidas de volta, evitando
extravios, sumiços, desaparecimentos. Neste momento, conferiam-se, também, o estado em
que foram e a forma como voltaram, objetivando averiguar estragos, manchas e demais
acidentes com as roupas confiadas as lavadeiras.

As mãos lavadeiras, antes tão firmes no esfrega-torce e no passa-dobra das roupas,


ali diante do olhar conferente das patroas, naquele momento se tornavam
trémulas, com receio de terem perdido ou trocado alguma peça. Mãos que
obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra entregava.

Nesta passagem é possível perceber com nitidez o poder e hierarquia existentes


entre essas diferentes mulheres: as não negras, proprietárias das peças, das roupas,

250
Parece guardar uma relação muito próxima com a ideia de intelectual orgânico defendida e apresentada
pelo neo-marxista Gramsci.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1074
contratavam o trabalho das negra sendo que as negras só lhe restava a sua força de trabalho
para se submeterem a tais condições de trabalho e desconfiança.

E quando, eu menina testemunhava as toalhinhas antes embebidas de sangue, e


depois, já no ato da entrega, livres de qualquer odor ou nódoa, mais a minha
incompreensão diante das mulheres brancas e ricas crescia. As mulheres de minha
família, não sei como, no minúsculo espaço em que vivíamos, segredavam seus
humores íntimos. Eu não conhecia o sangramento de nenhuma delas. E quando em
meio às roupas sujas, vindas para a lavagem, eu percebia calças de mulheres e
minúsculas toalhas, não vermelhas, e sim sangradas do corpo das madames,
durante muito tempo pensei que as mulheres ricas urinassem sangue de vez em
quando.

Nesse trecho, especialmente, pode-se perceber a inocência da criança sendo violada


pelo sangue, algo pertencente a uma esfera tão íntima, mas que era socializado pelo fato de
algumas mulheres não se dignarem a se ocupar da higiene de suas intimidades e atribuir tal
tarefa a outras, consideradas por elas como aptas a tal atividade. Se Evaristo era poupada
pelas suas mais velhas de acessar tais intimidades, o mesmo não acontecia com aquelas que
evitavam tal constrangimento para ela. Estas se viam obrigadas, sobretudo por conta das
dificuldades de ordem sócio-econômica, a realizarem tais trabalhos, tão constrangedores,
independente do tempo no qual ocorreram.

Foram, ainda, essas mãos lavadeiras, com seus sois riscados no chão, com seus
movimentos de lavar o sangue íntimo de outras mulheres, de branquejar a sujeira
das roupas dos outros, que desesperadamente seguraram em minhas mãos. Foram
elas que guiaram os meus dedos no exercício de copiar meu nome, as letras do
alfabeto, as sílabas, os números, difíceis deveres de escola, para crianças oriundas
de famílias semi-analfabetas. Foram essas mãos também que folheando comigo,
revistas velhas, jornais e poucos livros que nos chegavam recolhidos dos lixos 251 ou
recebidos das casas dos ricos, que aguçaram a minha curiosidade para a leitura e
para a escrita. Daquelas mãos lavadeiras recebi também cadernos feitos de papeis
de embrulho de pão, ou ainda outras folhas soltas, que, pacientemente costuradas,
evidenciavam a nossa pobreza, e distinguiam mais uma de nossas diferenças, em
um grupo escolar, que nos anos 50 recebia a classe média alta belorizontina.

O que se pode notar nessa passagem é o fato de que, mesmo com pouco ou quase
nenhuma escolaridade, as famílias mais pobres de Minas não desconheciam a importância
de se quebrar com o círculo vicioso que acabava renovando o “exército” de domésticas para
as tais senhoras não negras. A saída parecia ser a de apostar na escola como possibilidade de
ampliação dos horizontes e de ocupações das gerações mais novas de mulheres negras.
Mesmo com todos os impedimentos que dificultavam o acesso e a permanência dessas
gerações no ambiente escolar, as gerações mais velhas teimavam em apostar em tal ruptura.

Das mãos lavadeiras, recebi ainda listas de mantimentos, palavras cifradas, preços
calculados para não ultrapassar o nosso minguado orçamento (sempre
ultrapassavam) e lá ia eu, menina, às tendinhas, aos armazéns e às padarias perto

251
A cata de objetos no lixo, sobretudo os livros, como descarte nos fez lembrar da grande Carolina Maria de
Jesus, fenômeno de vendas na década de 60 com o seu Quarto de despejo: diário de uma favelada.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1075


da favela para fazer compras. Nesse exercício de quase adivinhar os textos escritos
produzidos por minha família, quem sabe o meu aprendizado para um dia
caminhar pelas vias da ficção...

Poder e dever atribuídos a partir da aquisição da leitura e da escrita, estabelecendo


um diferencial entre ela e os que ainda não tinham adquirido tais requisitos. Ler e escrever,
em tais contextos, se configura como diferencial e o reconhecimento acaba acontecendo,
também, por tais atos.

[...] De meus irmãos passei a acompanhar os deveres das crianças menores


vizinhas. No pequeno quintal de nossa casa, debaixo das árvores, improvisei uma
sala de aula. Das moedas, que me eram dadas pelas mães gratas pelo
desenvolvimento de seus filhos na escola, surgiam meu primeiro salariozinho.
Riqueza que me permitia comprar ora o pão diário, ora açúcar, ora o leite do
irmãozinho menor, ora um caderno para mim, e às vezes algum livrinho,
(revistinhas infantis, gibis, que não sei porque eu considerava como sendo livro) ou
ainda obter uma alegria maior: doces, doces, doces...

Nota-se que houve um investimento na leitura e esta, por sua vez, influencia,
posteriormente, a autora em suas ocupações na fase adulta: a de se tornar uma escritora e
poder publicizar para o mundo as negras escrevivências. O trecho abaixo, assim como o
anterior, aponta e revela essa profecia, a de se saber escritora, ou que viria a ser uma.

Mas digo sempre: creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo
que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em
nossa casa e adjacências. Dos fatos contados a meia-voz, dos relatos da noite,
segredos, histórias que as crianças não podiam ouvir. Eu fechava os olhos fingindo
dormir e acordava todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia
palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor dependendo do
enredo das histórias. De olhos cerrados eu construía as faces de minhas
personagens reais e falantes. Era um jogo de escrever no escuro. No corpo da
noite. [...] Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados das vizinhas
debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma
para outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de
mulheres! Falar e ouvir, entre nós, era, talvez, a única defesa, o único remédio que
possuíamos. Venho de uma família em que as mulheres, mesmo não estando
totalmente livres de uma dominação machista, primeira a dos patrões, depois a
dos homens, seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Como “cabeça” da
família, elas construíam um mundo próprio, muitas vezes distantes e
independentes de seus homens e mormente para apoiá-los depois.Talvez por isso
tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto
sobre isto, não afirmo.

No trecho reproduzido, nota-se a presença e a importância da oralidade como base.


É visível a força da palavra proferida e o seu poder de realização. É possível também
perceber o quanto Evaristo procura ressaltar a importância das personagens femininas em
seus negros escritos, ao mesmo tempo em que quase silencia e arranca a importância dos
masculinos, chegando, em alguns casos, como no romance Ponciá, por exemplo, a negar-lhe
os nomes - parte significativa da construção de identidade. A eles são atribuídas funções a
partir das personagens femininas. Vale lembrar que, como diz a própria sabedoria popular,
um homem sem nome é sempre um homem menor.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1076
[...] A grande oportunidade para a leitura constante me chegou, quando eu, já
quase mocinha, tinha a autonomia para ir e vir a Biblioteca Pública de Belo
Horizonte, casa-tesouro, em que uma das minhas tias se tornou servente. [...]

A descoberta de um acervo com acesso ilimitado, livros para além dos achados no
lixo, no sobejo, fruto de descarte. A possibilidade de conhecer outros autores, obras e, dessa
vez, escolhê-los. A leitura permitia a ampliação dos horizontes. A história de Evaristo se
aproxima e dialoga com a de Carolina Maria de Jesus que teve acesso a algumas bibliotecas
particulares de conhecidos quando a deixavam utilizar.

E retomando a imagem da escrita diferencial de minha mãe, que surge marcada


por um comprometimento de traços e corpo, (o dela e nossos) e ainda a um de
diário escrito por ela, volto ao gesto em que ela escrevia o sol na terra e imponho a
mim mesma uma pergunta. O que levaria determinadas mulheres, nascidas e
criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semi-alfabetizados, a
romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita?

(Auto) representação como nomeou a própria Evaristo em seus textos teóricos sobre
literatura e escrita negra feminina. A necessidade e urgência de uma escrita de si. A
tentativa eficaz de narra-se para (re) significar-se e dignificar-se.

Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato
de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma
percepção da vida. [...]

Emancipação, empoderamento e ocupação de outros lugares diferentes dos de


outrora.
A possibilidade de desejar ser e poder realizar o intento a partir de suas capacidades.

Rio de Janeiro Agosto de 2005

Toda análise esboçada até aqui, buscou inspiração na noção de escrita de si, aqui
entendida como uma:

[...] forma de organizar um conjunto de dados sobre a leitura produzida pelo


indivíduo, a respeito de seu entorno, para ser usada em um momento de
necessidade. Além disso, tinha como objetivo também estabelecer uma coerência
interna no indivíduo, pois as ideias fragmentadas recolhidas a partir dessa escrita
deveriam ganhar sentido e coesão, por meio de uma reelaboração pessoal:
“tratava-se de constituir a si mesmo como sujeito de ação racional pela
apropriação, a unificação e a subjetivação, de um já-dito fragmentário e escolhido”.
(FOUCAULT, 2006, p. 640).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1077


Essa escrita revela o lugar e condição que Evaristo toma a palavra para contar sobre
si e sobre a sua família, no que diz respeito a história de leitura e de escrita das suas. Assim,
as marcas e o lugar de fala da autora revelam aprendizagens para além dos muros da escola
e, no mais das vezes, antecede a escolarização e revelam processos de letramento preto.
(FREITAS252, 2013).

Reflexões sobre a noção de escrevivência

A concepção de “escrevivências” (EVARISTO, 2006) é imprescindível para


compreendermos a obra da autora. Esta é entendida como: “escrita de um corpo, de uma
condição, de uma experiência negra no Brasil” (p. 20) ou ainda: “[...] consciência que
compromete a minha escrita com um lugar de auto-afirmação de minhas particularidades,
de minhas especificidades como sujeito mulher negra” (p.20).
Abarcando a posição de Evaristo (2006), Oliveira (2009) apresenta o conceito como:

escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência


negra no Brasil.
escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à
dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por
afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato
sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo
elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e
compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por
sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim
de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. (OLIVEIRA, 2009, p.
622253).

Sempre muito perspicaz, Evaristo intima o leitor a perceber o quanto a sua escrita
encontra-se impregnada de vida e comprometimento com a luta, reconhecimento e
efetivação de humanidade via dignidade e respeito.
Temos, assim, uma escrita marcada pela vivência e experiência de um corpo negro
historicamente ultrajado e que passa a ser narrado por mulheres negras, sujeitos das
próprias experiências. Por essa via, a autora narrar a história de leitura e escrita sua e de sua
família, formada em grande parte por mulheres negras.
Outros princípios fazem referência à memória, por essa razão se entende que “O
corpo é mais do que uma memória. Ele é uma trajetória” (OLIVEIRA, 2007, p. 107); assim

252
Henrique Freitas é professor doutor da Universidade Federal da Bahia e apresenta essa proposta numa
fanpage denominada Ogum’s Toques Negros para tratar aproximadamente e aqui livremente apresentado
como estratégias criadas pelo povo negro objetivando acessar o mundo letrado.
253
Estudos Feministas, Florianópolis, 17(2): 344, maio-agosto/2009 Luiz Henrique Silva de Oliveira Universidade
Federal de Minas Gerais.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1078


“Somos aquilo de que nos lembramos” (BOBBIO); “Somos também aquilo que decidimos
esquecer” e, ainda, “Somos aquilo que conseguimos lembrar”. (IZQUIEDRO, 2004, p. 110)”.
É nessa perspectiva e partindo de tais princípios e noções que refletimos sobre o fato
de que o corpo não esquece o que passa, ao contrário, ele registra e “ancora” muitas das
emoções e as inscrevem, internalizando, tornando-as (in) corporadas. Enfim, o corpo registra
a história. Se em alguns momentos e passagens encontramos traços de um possível “auto-
afeto desqualificado” (CARVALHO, 2009), por todos os motivos históricos que não se
desconhece, resultado, em grande medida, do processo de colonização/escravização, a
predominância em tais escritos aponta para a construção e efetivação da coragem de ser Si
mesmo e não representação alienada de Si, como comumente se vê em muitos processos de
construção e (re) construção estético-identitárias negro-afriacanas.
É Evaristo (2010), novamente, que sinalizará para o poder libertador da palavra
quando declara: “O corpo negro surge alforriado pela palavra poética (p. 2)”:

É como se a escrita negra, ao relembrar o passado, procurasse imprimir outras


lembranças às cicatrizes de chicotes ou às marcas iniciais dos donos-colonos do
corpo escravo. A palavra literária surge como elevação, assunção do corpo negro. O
texto negro atualiza signos e lembranças que inscrevem o corpo negro em uma
cultura específica (EVARISTO, 2010, p. 2)

Provocações sobre a escrita de si que ser quer e se evoca negra e feminina

De todo o exposto até aqui, é possível perceber que a “escrita de si” encontra-se
determinantemente marcada pelo pertencimento etnicorracial e de gênero. Ou seja, ela
evoca-se e se deseja negra e feminina inevitavelmente. Assim, negras são as memórias
selecionadas, editadas, compartilhadas e publicizadas por Evaristo.
Tomando por base o fato de grande parte dos estudos sobre Escritas de Si e
autobiografia originarem-se e respaldarem-se a partir de autores franceses, consegue-se
compreender, sem maiores dificuldades, a ausência de investimentos no recorte
etnicorracial negro-africano. Já no que diz respeito à dimensão de gênero, no Brasil, essa
vem sendo contemplada por muito tratar de formação de educadores ao longo da vida e o
magistério ser, histórica e predominantemente, para o sexo feminino. O que pouco ou quase
nada encontramos são produções que consigam eleger a escrita de si que aqui decidimos
por nomear de negra e feminina, uma vez que os sujeitos das experiências e das
enunciações são mulheres negras que decidem falar desse lugar e elegem as suas negras
memórias, bem como das suas para narrar, para publicizar.
Assim, acreditamos que publicizar essas negras memórias pode contribuir para se
pensar processos de autoconhecimento, autoaceitação e autorrealização. Assim como
Evaristo, é possível a outras mulheres negras se “assenhorarem-se da pena” e narrarem suas
histórias, memórias, vivências e experiências das mais diferentes ordens, quebrando
silêncios e invisibilizações seculares.

Possibilidades metodológicas para o uso da escrita de si negra e feminina em sala de aula a


partir da Lei Federal 10.639/03

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1079


O advento das legislações federais 10.639/03 e 11.645/08 torna obrigatória a
inclusão das temáticas da História de África, dos africanos e indígenas, respectivamente, no
contexto escolar. Estas leis, por assim dizer, tendem a evidenciar outros continnua
civilizatórios até então ignorados neste ambiente.
Assim, eleger negras e femininas memórias a partir da escrita de si serve para
proporcionar a operacionalização de tais legislações federais, reivindicadas há muitas
décadas pelo Movimento Negro, ao mesmo tempo objetiva favorecer e/ou estimular a
efetivação da proposta de uma educação antirracista na qual se espera promover uma maior
equidade em tais espaços.
Para tanto, pensamos que atividades que envolvam memórias diaspóricas individuais
e coletivas podem favorecer a noção pertencimento etnicorracial, a saber, temos: roda de
diálogos entre diferentes gerações, convidando os mais velhos das comunidades nas quais as
escolas encontram-se localizadas; baú de histórias; trabalhos com a ancestralidade que
auxiliem e fortaleçam aprendizagens que deságuem em respeito aos mais velhos, bem como
trabalhos que elejam a infância negra e leitura literária para além dos clássicos, sobretudo
no que diz respeito a formação de professores; troca de segredos; roda de depoimentos nas
quais o ato de narrar seja eleito e que ele possa confluir em processos de autocura;
atividades que estimulem a criação e efetivação de rede de afetividades e solidariedade,
troca de saberes sobre letramentos pretos dentre outras questões são esperadas e
desejadas, quando se opta pelo trabalho com africanidades e negritude.
A escola precisa perceber e conhecer para respeitar a diversidade existente em seu
entorno. Não existe mais espaço, nem conivência para a invisibilização ou a concepção de
que a diferença possa ser encarada como sinônimo de inferioridade.
Acreditamos que a aposta e investimento na escrita de si negra e feminina favorecem
e proporcionam uma educação mais equânime e menos discriminatória. Eleger a literatura
para além do cânone só fortalece processos de construção identitária os mais diversos, que
tanto nos auxiliam em processos constitutivos do que efetivamente somos e desejamos ser:
humanidade. A autorrepresentação, o “assenhorear-se da pena” proposto por Evaristo e
efetivado por essas negras mulheres auxiliam sobremaneira nos processos plenitude e
realização.

Procurando fazer o arremate e tentando colocar um “fim” na trama

Procuramos, ao longo desse artigo, revelar e compartilhar as negras e femininas


escritas de si a partir da publicização das memórias de leitura e escrita de uma família negra
composta de pessoas com baixa escolaridade ou quase nenhuma, mas que nem por isso
deixam de ser sábias e de criar estratégias de letramento que resolvemos reinvidicar e
adjetivar de pretos.
Conceição Evaristo, em ato de humildade, compartilha conosco, seus leitores reais, as
adversidades encontradas em tal processo de aquisição da escrita vivenciadas por ela e
pelos (as) seus/suas para driblar as mesmas e alcançar a quebra do círculo vicioso entre
pouca escolaridade, ocupações de baixa remuneração e quase nenhum prestígio.
Com análise desse corpus desejamos romper com o silenciamento existente em torno
das escritas de si que ousadamente nomeamos de negras e femininas, uma vez que poucos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1080


são os trabalhos nos quais o sujeito da escrita e da experiência é a mulher negra, como
autora e narradora de suas memórias.
A partir do processo de (re) lembrar para contar as suas vivências, Evaristo nos
proporciona uma narrativa rica em negras experiências que, se a princípio, se configuram
como individuais e no máximo pertencentes ao seu núcleo familiar, muito se aproxima
também de tantas outras mulheres e família negras, visto que o acesso e permanência
destas em tais contextos têm sido, historicamente, dificultosos. Mulheres negras que a
diáspora africana semeou e que o processo de escravização impôs.
Como declara a própria autora essa “escrevivência não pode ser lida como histórias
para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. É ela ainda
que apresenta as palavras de ordem, em outra produção sua, “lembrar é preciso”. Com isso
desejamos que as escritas de si negras e femininas, as escrevivências, possam correr o
mundo, promovendo a (res) significação das existências negras e, consequentemente,
dignificando-as.

Referências
ALVES, Miriam. BrasilAFro Autorrevelado: Literatura Brasileira contemporânea.
Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
BERND, Zilá. Antologia de Poesia Afro-Brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil.
Belo Horizonte: Mazza, 2011.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”,
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1082


O entretecimento do currículo com os fios do ciclo de formação humana: um vir a ser

Larissa Monique de Souza Almeida


UESB
larymonik2@hotmail.com
Daniele Farias Freire Raic
UESB
danielefreire.uesb@gmail.com

Este artigo discute o processo de reformulação curricular nos anos iniciais do ensino fundamental numa escola
localizada no município de Jequié-BA. Tem como objetivo compreender a maneira como os sujeitos
curriculantes estão percebendo o currículo após a organização desta etapa escolar em Ciclos de Formação
Humana, tendo como perspectiva teórico-metodológica o estudo de caso do tipo etnográfico, utilizando-se da
observação, dos registros em diário de bordo, e também das narrativas individuais na produção dos dados. Os
participantes deste estudo são os sujeitos curriculantes em todo o processo de reformulação, quais sejam:
coordenadores pedagógicos, professores unidocentes, pais e alunos do Ciclo de Infância I (correspondente ao
1º, 2º e 3º anos do ensino fundamental de nove anos). O fenômeno investigado contou com as
reinterpretações dos sujeitos, apoiando-se numa abordagem hermenêutica, sendo possível compreender as
tensões próprias da (re)organização curricular, evidenciando as concepções de currículo que circulam entre os
sujeitos e a maneira como tais concepções refletem na tessitura de um currículo escolar. Este estudo sinaliza
para a importância das narrativas dos sujeitos que fazem o cotidiano escolar, no sentido de pensar na
possibilidade de currículos mais abertos às experiências dos sujeitos possibilitando processos formativos em
que eles se percebam cada vez mais autores de suas próprias histórias.
Palavras-chave: Ciclo de Formação Humana; Currículo; Narrativas.

Introdução

Fico a imaginar o tecelão, o artesão que tece panos que, na forma de uma obra de
arte, vai formando um movimento flexível entre a linha e a criatividade para aquele
momento de produção, percorrendo, assim como o violeiro, o seu imaginário para compor
uma linda peça de tecido. Não é do nada que ele tem aquela ideia. Ela faz parte de um todo,
que é a sua própria história de vida, a sua maneira de perceber e vivê-la. Sendo assim, a
tecelagem, caracteriza-se como o ato de tecer através do entrelaçamento de fios de trama
como, por exemplo, teias formando o tecido. Vale salientar que esta pode ser uma proposta
artesanal de construção, com destaque para o processo de preparação para a tecelagem,
onde os fios são todos colocados paralelos, sob a mesma perspectiva, e vão sendo
entrelaçados. Tramar, nessa perspectiva, exprime pôr em ordem, dispor os fios da teia,
colocar à disposição para fazer o tecido, ou seja, é o espaço em que o sujeito vai bricolando
suas ideias na tentativa de organizá-los (ou não!), mas considerando os materiais que ele
tem para tecer e consequentemente dar sentido para o que ele quer exprimir.
Quando percebo o quão cativante é o labor de um tecelão, vejo-me ativa no sentido
de ir tecendo este estudo, como uma artista que, desprendida de certos ranços autoritários,
vou assumindo a flexibilidade e o movimento do fenômeno, compreendendo-o em seu vir a
ser. A Lei nº 11.274/2006, que define a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos,
permitiu que várias propostas fossem pensadas considerando a criança de seis anos, e, entre
elas está o ciclo de formação humana, uma perspectiva que tem como responsabilidade
educativa os tempos de vida, a formação do ser e a valorização das singularidades. Vale
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1083
destacar que entre várias instituições que se propôs a organizar o currículo de tal modo, foi
escolhida uma instituição escolar254 que organizou o currículo dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental sob esta perspectiva. Para tanto, assumo um conceito de currículo que é
entendido como um texto, onde nada está fora do mesmo, nem atrás, mas sim percebendo
como o real, como discurso, que é manifesto, materializado como linguagem (BERTICELLI,
2010).
De que maneira os sujeitos curriculantes percebem o currículo da escola após a
organização dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em Ciclos de Formação Humana? É a
inquietação que norteou o estudo, o qual resultou neste artigo. Como perspectiva
metodológica, foi adotada na pesquisa a perspectiva qualitativa por compreender que esta
abordagem tem subsídios para tratar com situações complexas de um determinado
problema, sendo capaz de fornecer dados que possibilitem descrever como o evento
pesquisado se apresenta nas interações cotidianas. Por possibilitar o fornecimento de uma
visão profunda e integrada da escola, utilizou-se o estudo de caso do tipo etnográfico, sendo
possível organizar uma investigação sistemática das situações do cotidiano escolar (ANDRÉ,
1995).
O contexto da pesquisa foi uma instituição escolar situada no bairro do Jequiezinho
em Jequié, na Bahia, com o recorte para o Ensino Fundamental, mas especificamente o Ciclo
de Infância I (Anos I, II e III). A população pesquisada foi composta pelos sujeitos
curriculantes, a saber, coordenação, professores unidocentes (Jasmin, Lírio, Rosa, Margarida
e Tulipa255), pais (Orquídea, Comigo Ninguém Pode e Alecrim256) e alunos do Ciclo de
Infância I. Como instrumentos de produção dos dados, utilizou-se a observação com registro
no diário de bordo (narrativas individuais), entrevistas e grupo focal.
No que se refere às narrativas, Souza (2004) argumenta que o trabalho com as
mesmas, como perspectiva de formação, possibilita ao sujeito aprender pela experiência,
através de recordações-referências construídas no percurso da vida e permite entrar em
contato com lembranças e subjetividades marcadas nas aprendizagens experienciais. O
sujeito vai construindo um sentido para a sua narrativa com base nessas aprendizagens e
experiências construídas ao longo da vida.
É válido destacar que o exercício de compreensão da pesquisa considera a incursão
pela hermenêutica fenomenológica, buscando compreender o movimento, a dinâmica
própria que uma organização curricular empreende para os sujeitos curriculantes, tendo os
mesmos como linhas de encontros e chegadas diante da perspectiva da pesquisa.

Currículo como teias: Um texto em aberto

Observa-se que a questão do currículo, considerando as suas ressignificações para os


tempos de agora, tem possibilitado diferentes reflexões, como pode ser averiguado nas
publicações contemporâneas. Corazza (2001) cita que o currículo está totalmente
entrelaçado com as questões de funcionamento do mercado, cabendo assim para a

254
O nome da instituição escolar foi preservado, vez que será sempre utilizado os termos instituição escolar,
escola em voga, entre outros, para se referir ao campo da pesquisa.
255
Nomes fictícios utilizados para substituir os verdadeiros nomes dos docentes.
256
Também se utilizou nomes fictícios.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1084
educação, apropriar-se de mecanismos de controle e regulação próprios da esfera da
produção.
Goodson (2008) destaca que na sua base etimológica o currículo é descrito como um
curso a ser seguido, apresentado. Assim sendo, conhecer é ter controle em um contexto
social em que concebe e produz o conhecimento que é traduzido nas salas de aula como um
status, algo individualizado e não sequencial. Nega-se a dialética da educação, a noção de
diálogo e a flexibilidade, como podemos observar na ideia de Goodson (2008, p. 47):

O valor da teoria curricular precisa ser julgado em confronto com o currículo


existente – definido, discutido e realizado nas escolas. [...] As teorias curriculares
atuais não são curriculares, são meros programas, são utópicas, não realistas.
Preocupam-se com aquilo que deveria ou poderia ser, não com a arte do possível.
Atuam, não para explicar, mas para exortar. [...] São teorias curriculares que
funcionam como prescrições.

Destacando a palavra prescrição nas produções curriculares, percebe-se que é como


se o currículo fosse compreendido como algo que chega posto e determinado. Contudo, as
escolas não são meras executoras de determinações. Apesar do tom prescritivo do currículo
nacional, em seu cotidiano, cada instituição escolar vai tecendo suas propostas, produzindo
conhecimentos singulares, próprios do seu tempo histórico.
Sendo assim, em oposição a uma concepção prescritiva de currículo, parto de uma
proposta de currículo como uma compreensão do mundo e do nosso estar no mundo.
Compreender aqui tem destaque para o interpretar. Assim, coloca-se o currículo como uma
forma discursiva, como um texto, na trama do qual está uma opção histórica e interpretativa
do mundo. Conforme Berticelli (2010, p. 81),

O currículo é um horizonte do mundo. Os currículos são horizontes do


mundo, na diversidade dos olhares. Explico: o currículo, na atual concepção
que se lhe confere, não se limita a um rol de conhecimentos, técnicas,
didáticas, métodos, conteúdos, saberes... Um currículo é um modo de
produção social, um modo de produção de identidades. Um currículo é um
modo de produção dos eus.

O que privilegiar na organização de um currículo, sabendo que o mesmo corresponde


a tudo o que faz parte da escola? Como fazer essas escolhas considerando o que é mais
importante? É tarefa fácil? Sem dúvidas, a resposta é não! Não porque adentramos em uma
proposta que já vem sendo construída por outros autores, sendo que estes já estão
organizados sob uma égide desconhecida por quem está chegando. Não porque cada espaço
escolar é único e as nossas experiências são importantes, mas às vezes não são fundantes.
Currículo é tudo, mas também é texto, que vai sendo escrito por aqueles que também estão
chegando agora. É texto que tem letras vivas e expressivas de uma realidade. É texto que vai
sendo entrecruzado e ganhando coerência e coesão a partir daquilo que toca todos os
sujeitos que são personagens dessa história que vai sendo escrita e interpretada.
É importante destacar que uma das principais preocupações que destaco é a
organização do currículo. O que privilegiar em uma proposta? O que merece destaque? Vale
salientar que assim como citado, currículo é tudo, mas é texto porque vai sendo escrito e
interpretado a partir da visão de mundo, da interpretação que lhe é dada. Por mais que a
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1085
proposta já está sendo desenhada pelos sujeitos integrantes, há que se levar em
consideração que o olhar de quem chega também é fecundo dentro de uma proposta em
construção. Assevera-se que não há receitas prontas para a organização curricular, mas
deve-se tomar como ponto de partida a proposta político pedagógica da instituição,
considerando todas as ramificações possíveis que ela possa entretecer.
E os alunos? Será que conseguem compreender o que é currículo? O que é
importante para a sua aprendizagem? Arroyo (2011) destaca que por muito tempo deixou-se
de lado as trajetórias dos alunos para privilegiar outras nuances. Contudo, a partir das
imagens por eles desenhadas, o currículo da escola também vai sendo construído e assevera
as mais transparentes proposições e interpretações de uma organização. Portanto, é
necessário ouvi-los, estar atento para o que eles expressam, de forma que não há sentido
construir uma educação desvinculada do chão da sala de aula.
Quando perguntei o que eles compreendiam por currículo, pude perceber no olhar
de cada um, certa dúvida. Era como se fosse algo muito distante. Alguns temeram arriscar a
responder, mas teve uma aluna, toda cheia de confiança, que não mediu as palavras para
defender firmemente sua opinião: “Currículo é emprego, uma inscrição que faz! O currículo
de uma escola? É a inscrição de uma escola!”. Pude perceber o quanto as crianças chegam
cheias de curiosidades, com afirmações dotadas de sentido, e às vezes por falta de um olhar
sensível são negligenciadas suas expressões. De forma transparente e encantadora, a aluna
conseguiu expressar o sentido da palavra currículo no seu cotidiano, já que na realidade
onde ela está inserida é comum ouvir essa palavra sendo traduzida como emprego. E foi a
partir desse passo ousado da aluna, que os outros colegas animadamente levantaram as
mãos e falaram:

Eu não sei... Ah, é para fazer as atividades... É atividade como se fosse um


treinamento de correr...
Currículo é uma coisa que a gente dá para trabalhar com nossa data de
nascimento, com nosso endereço e nossa foto...
(Alunos do 1º ano do Ciclo de Infância I)

Refletir sobre essas expressões vai muito além de transpor com o caráter prescritivo
de um currículo, perpassando por todo um percurso fecundo de reencontro das verdades e
dos limites que nós mesmos estabelecemos para a interpretação das coisas. Percebo o
momento docente obedecendo a um olhar singular, inalterado pelas peculiaridades que a
própria vivência dos alunos vai apontando. Os alunos estão nos obrigando a enxergá-los
assim como a valorizar aquilo que eles defendem. Currículo para os alunos é atividade, é
treinamento, é aperfeiçoar algo e é também aquele papel com nossos dados para
procurarmos um emprego no traiçoeiro mercado de trabalho. Currículo acaba sendo
sinônimo de organização, de um conjunto de informações que nos levam a determinado
lugar. Estão eles errados?
Percebe-se que a leitura do mundo e a interpretação do mundo através do currículo
caracterizam uma nova leitura a depender dos fundamentos que são propostos. Como
sendo um texto, o currículo o é como linguisticidade, como uma forma de compreender.
Assim, cada currículo é considerado uma “realização da compreensão entre possíveis
realizações”, como destaca Berticelli (2010, p. 82). Nessa proposta de reflexão do currículo,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1086


o mesmo é tido como um horizonte, o mais amplo da capacidade de linguagem, como se
pode perceber na fala dos professores:

Tudo o que é trabalhado em sala de aula que envolve conteúdo, tudo


aquilo que leva à aprendizagem... (Jasmin)
Currículo para mim é esse ciclo que a gente vê, o que a gente vai passando
junto com eles, entendeu? A gente perceber até aonde ele vai, eu acho que
é isso aí... É ir junto, seguir com eles e aprender com eles também!
(Margarida) (Grifos da autora).

Conforme a concepção de currículo embasada no horizonte, nas interpretações


acerca do processo, cada sujeito tece sua visão a partir daquilo que lhe é próprio, que para a
sua ação docente merece maior destaque. É salutar corroborar que a intenção não é
assegurar apenas uma visão de currículo como certa, como a completa, mas sim
compreender o que os sujeitos estão priorizando em suas práticas para que seja feita uma
relação com o que é proposto pela instituição em foco.
Percebo na visão de Jasmin, que destaca “tudo aquilo que leva à aprendizagem...”
uma grande preocupação com a aprendizagem dos seus alunos. Percebi que em suas
expressões sempre assegurava o lugar dos mesmos, buscando garantir na sua sala de aula,
espaço fecundo de ricas aprendizagens. Daí ela afirmar que currículo é sala de aula,
conteúdo e aprendizagem. Caminhando concomitante com esta visão, Margarida demonstra
a importância do chegar junto com os alunos na construção do currículo, sendo que para ela
é nessa afetividade que os meninos vão aprendendo, confirmando que é necessário “ir
junto, seguir com eles e aprender com eles também!”. Pode-se perceber que Alecrim, como
mãe de um aluno, compreende currículo sob a mesma perspectiva, sinalizando que é
necessária uma organização com objetivos bem delimitados sobre algo que se deseja
alcançar.

Currículo para mim é um projeto, um delineamento de ações, intenções,


metodologia, teoria, etc., de algo que estou construindo. Com objetivos e
metas, eu quero chegar lá, eu quero obter algo e para isto tenho fazer
assim, construir assim.

Pude ir percebendo o quanto era desconfortável para os professores expressar a sua


concepção de currículo, o que me fez refletir: Será que estão compreendendo a proposta da
escola em que estão atuando? Será que a rotina tem sido tão corrida que tem impedido dos
professores interpretarem suas próprias ações? Cadê a práxis defendida por Paulo Freire?
Temos dado conta dela? Muitos questionamentos foram sendo gerados a partir dessa
assertiva, até porque as atividades da escola são muitas e talvez os nossos professores não
tenham tido espaço para garantir discussões como essa, sobre o que é o currículo que eles
mesmos estão entretecendo.
Viabilizado numa visão de mundo que valida o homem e suas vivências considerando
a interação com os outros, destaco a seguinte fala de Berticelli (2010, p. 98),

Entender o currículo, pela via da hermenêutica, como “o modo de ser do


estar aí”, que determina um modo de ser do sujeito, um modo de produção
da educação, que produz um sujeito determinado e não outro. Portanto, o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1087
currículo é um modo de subjetivação, um modo de produzir um mundo: o
mundo compreendido pelo currículo.

Assim, o currículo como uma hermeneia, é a abertura para várias interpretações do


mundo, quando estamos tratando de Educação, colocando em voga várias experiências de
sentido de diversos sujeitos.

Currículo é um conjunto de práticas que regem o desenvolvimento escolar.


Ele envolve toda a estrutura da escola, desde os processos educativos e
de aprendizagens, como também envolve todos os indivíduos que estão
ligados ao espaço educacional: famílias, alunos, professores, funcionários,
diretores, etc ... (Tulipa)

Eu penso que currículo é toda a escola, ele passa na escola em todos os


segmentos, desde quando passa pela portaria e toda comunidade escolar.
Depois vem a questão mesmo de estruturar, de organizar as disciplinas,
corpo docente e coordenação. Mas, eu acredito que currículo é a junção
mesmo de toda a escola, pois se um segmento da escola não está
coerente em andamento com isso, eu acho que tudo de certa forma, mexe
mesmo em todo o contexto. Então, acredito que currículo é tudo, é toda a
escola... Daí tem as suas divisões, os seus ramos, e a minha visão de
currículo é isso aí, toda a escola... (Lírio) (Grifos da autora).

Na perspectiva do currículo como texto, encontra-se em Deleuze e Guatarri (1995) a


visão de um currículo que vai sendo escrito, tecido, através de rizomas, de teias, aberto a
diversas possibilidades. É pertinente compreender o rizoma como um sistema aberto que
ajuda a pensar o currículo no qual estamos percebendo-o através dos princípios defendido
pelos autores. Eles defendem que um rizoma não começa nem conclui, ele está sempre no
meio, entre as coisas como uma aliança tecido com a conjunção “e” com forma suficiente
para balançar e dar impulso para a árvore. Nessas perspectivas não existem pontos fixos,
mas sim pontos que podem ser conectados a outro, não havendo fixações, ordens a serem
seguidas. Vale buscar a conexão das concepções de currículo destacadas acima com a de
Orquídea, pois, para ela,

Currículo é um instrumento de fundamental importância na pratica


pedagógica levando em conta que precisa ser elaborado de acordo com as
necessidades do educando estando relacionado com o contexto deste,
procurando abordar conteúdos que fazem parte do dia-a-dia do educando
para que o mesmo possa participar do processo ensino aprendizagem de
forma critica e reflexiva.

Interessante destacar que nessa proposta considera-se a multiplicidade de sujeitos


com suas vozes singulares: São fios que tecidos por distintas ideias vão conectando a
diversas dimensões, possibilitando que qualquer linha seja conectada a qualquer outra.
Nessa organização, entre os pontos não fixos, mas conectados e tecidos por sujeitos
diferentes, encontra-se a interpretação de currículo como toda a organização escolar, que
pode ser bem traduzido pela afirmação de uma das professoras da escola:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1088


O que a gente vê na universidade, todas as concepções, todas as teorias... E
desde lá eu já tinha essa concepção que currículo era toda a escola... Nas
outras escolas que eu passei não presenciei o currículo sendo toda a escola
e aqui em todo esse tempo que estou eu consigo enxergar a busca desse
currículo, da escola fazer parte de todo esse currículo... Apesar de que a
gente sempre vê uma coisa ou outra que não é tão fácil, mas eu consigo
enxergar dessa forma que eu compreendo o currículo, através da
organização, da preocupação, os componentes, a questão de não
simplesmente dar o conteúdo pelo conteúdo, a questão de uma coisa estar
coerente, ligada a outra e de não só simplesmente visar à aula pela aula...
Vejo essa questão do todo de perceber novos horizontes. Então, aqui na
escola eu estou conseguindo perceber essa forma de currículo que eu
imaginei... (Lírio)

Observando a prática pedagógica da escola, comecei a construir a minha concepção


de currículo. Sei que a mesma é particular, própria de uma dada realidade e que é algo
inacabável. Cada um com suas histórias de vida, suas ações, suas prioridades vão
entretecendo uma proposta que é única, mas dotada de ramificações, pois nunca
conseguiremos fechar toda uma escola (que é um espaço caloroso de idiossincrasias) em
apenas uma visão, isso seria ledo engano de qualquer profissional. Mas comecei também a
respeitar a postura do outro, a buscar entender porque ele age de tal modo. Sei que há
pontos que se encontram nesse rizoma, que são princípios fundantes desse processo, e pude
identificá-lo: É o humano, a vontade de fazer o melhor. Isso foi perceptível em toda a escola,
desde a portaria até a cantina. Fazer escola é isso, construir currículo é isso: Buscar sempre
manter esses pontos em destaque, mesmo sabendo que cada um irá evidenciá-lo do seu
modo. Ah, percebo que currículo como texto é isso! Não há inacabamentos. Como é difícil
romper com a nossa própria visão de gavetas. Mas tenho a certeza que é possível! É
escrever uma história que será interpretada por nossos posteriores. Hoje, a descrevemos
para ser imortalizada.
No decorrer da pesquisa, tive a real necessidade de ouvir as crianças,
compreendendo que dar voz não seria apenas permitir que elas falassem, mas além disso,
estar sempre reconhecendo que falam e que suas vozes são de extrema importância para o
tecer do currículo, da proposta de organização pedagógica em Ciclos de Formação Humana.

O que vocês mais gostam na escola?


O mais importante aqui na escola é aprender a ler e escrever... Todas as
atividades a gente lê e escreve... Tem umas no livro que nem tem leitura e
nem nada para escrever...
O mais legal do livro são os desafios! Falaram em coro! Desafio é enfrentar
as coisas é muito divertido e a gente descobre alguma coisa. Tem atividade
tipo labirinto que a gente aprende muita coisa.
Eu gosto de brincar, ler e escrever, aprender e gosta do recreio. Eu gosto de
brincar na quadra, no totó e poderia ter brincadeiras. Mas não tem
brincadeiras? Eu queria uma casinha de boneca para brincar. Gosto das
aulas de dança, ed. física, do judô, pois ele é ótimo e cheio de
brincadeiras.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1089


Vocês falam para a Pró o que querem aprender?
Não, ela que sempre traz... Ah, mas teve um dia que eu quis estudar
experiências em Ciências. A gente gosta de fazer dever, Ciências, da
Matemática, de Português... (Grifos da autora).
(Alunos do 1º ano do Ciclo de Infância I)

Observa-se que é marcante na fala dos alunos acerca do que eles mais gostam na
escola, o lugar que o conhecimento historicamente produzido pela humanidade, já vem
bastante demarcado. Escola é sinônimo de “fazer atividade, superar desafios”. Mas, o que
não se pode perder de vista, é que estamos falando de crianças, que pode estar tendo sua
infância roubada pela necessidade de aprender as letras e os conhecimentos lógicos
matemáticos, não que seja errado, contudo o que não pode haver é um esquecimento do
“espaço do brincar” na rotina desses meninos e meninas. Podemos destacar, por exemplo,
quando um aluno destaca “gosto das aulas de dança, ed. física, do judô, pois ele é ótimo e
cheio de brincadeiras”. É necessário criar espaços para que as crianças brinquem
autonomamente, escolhendo as brincadeiras. Os espaços e tempos devem ser bem geridos e
propiciar o incentivo à fantasia, imaginação e criatividade. Contudo, os professores também
devem entender como é o universo infantil.
Ao analisar o que um aluno relatou quando perguntado se a Pró pergunta o que eles
aprender, é pertinente considerar o que a professora retrata sobre esta perspectiva de ir
oportunizando que o aluno ajude-a na construção do currículo em sua sala de aula:

Eu vou mais assim no respeito... Eu respeito a opinião deles, tudo que eles
trazem... Às vezes eles falam: Oh pró, eu gosto mais assim, e tem momento
que pedem: Oh pró, vamos fazer isso hoje? Teve um dia que eles me
pediram para fazer atividade de história em quadrinhos, porque eu tinha
comentado e eu comentei com muito entusiasmo, então isso fez com que
eles tivessem muito entusiasmo para querer fazer, para querer aprender!
Se a criança hoje é um bom leitor, graças a um bom professor que motivou,
isso tudo faz com que os alunos sejam incentivados! Um sempre
respeitando o espaço do outro... (Rosa) (Grifos da autora).

Corrobora-se a importância do respeito nas relações interpessoais, tanto no que


tange ao outro, como também no processo-ensino aprendizagem. É válido destacar também
que o professor não pode perder o papel de mediador entre criança e conhecimento, como
bem retrata Margarida: “O nosso papel realmente é de mediar aquilo que os meninos
trazem! Se eles estão naquele momento com um assunto, a gente vai e media e depois a
gente volta para o que estávamos falando... O nosso papel realmente é de mediador!”.
Interessante que valorizando tais assertivas, pode-se identificar uma “felicidade” dos alunos
ao estarem na escola, aprendendo, convivendo e sendo criança.

As atividades da escola são massa, muito legal, pois nós vamos aprender as
coisas, como é bom estudar...
As atividades são legais e ensina muita coisa.
Eu gosto daqui porque é de Matemática e tem umas matérias que a gente
pode aprender mais ainda.
É legal, divertido.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1090
Nós podemos ajudar a Pró a fazer as tarefas em Ciências, com experiências,
compreendendo os assuntos...
A disciplina que mais gostamos é Matemática! Português é fácil e
Matemática a gente estuda desde o 1º ano, e aprendeu a somar, a contar
até 100.
(Alunos do 2º ano do Ciclo de Infância I)

Com relação à organização das atividades, merece destaque um desabafo de Jasmin


acerca da prática pedagógica da escola centrada no livro didático.

Uma coisa que está dificultando é o livro didático. A gente sabe que o livro
didático é uma cobrança da família e a escola fica em uma situação que ela
tem que trabalhar porque a família cobra, só que assim, isso é muito
desgastante para o professor porque quantas vezes eu percebo que tem
outra necessidade que a gente tem que trabalhar paralelamente? Então
assim, o livro às vezes emperra algumas coisas, e a gente tem tentado
conduzir da melhor forma possível. Se a gente trabalhar só o que tá no livro é
uma coisa muito seca, a gente amplia muito, só que a cobrança de seguir o
livro por completo é complicado. Os livros são ótimos, mas às vezes muito
extenso. A meu ver não seria dificultoso não seguir algumas coisas do livro,
que não seria o conteúdo, seriam algumas atividades que ficariam sem fazer.
Trabalharíamos paralelamente um projeto, com questões que não abordam
no livro e acredito que seria muito bom para os alunos, só que o livro
emperra.

Vale ressaltar a importância do livro didático nas salas de aula por serem artefatos
culturais que produzem saberes onde circundam conteúdos curriculares que englobam as
mais diversas posturas pedagógicas. Como instrumento de apoio aos professores, o livro
didático não deve ser o centro da prática pedagógica e nem deve influenciar na definição
dos conteúdos escolares e na proposição de propostas de ensino, sendo uma questão
também apontada por Orquídea e Alecrim,

O livro didático ainda continua sendo um grande vilão e acredito que não
deve ser utilizado como único instrumento do fazer pedagógico, mas deve
ser apenas um suporte com o qual não se deve dar muita confiança, pois
ainda apresenta textos e atividades descontextualizadas do cotidiano do
educando. (Orquídea)

Em relação aos livros, tem livro que eu não gosto muito, tem atividades neles
que eles não contemplam em seu conteúdo. E quem não tem computador
com internet? (Alecrim)

De acordo com Apple (1994) existem conflitos acerca do que deve ser ensinado,
definindo-os como agudos e profundos ao enfatizar que a ideologia e a política estão
intrinsecamente ligadas nas questões educativas, deixando evidente que os conhecimentos
a serem ensinados aos alunos sofrem influência das questões representativas socialmente
(classe, etnia, gênero, sexualidade, credo e identidade). Essa é uma questão cultural e que

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1091


sofre grande influência social, como se pode asseverar através da inquietação da professora
Lírio:

O que tem me inquietado: O que devo trabalhar e o que não devo? A


questão mesmo de conteúdo, por exemplo, vai para outra escola, a própria
questão do vestibular, a questão do que foi criado em torno disso, que aquilo
que deve ser trabalhado e acabou! E a minha perspectiva é trabalhar o
currículo cada vez mais prático, mais humano, focado na realidade do
aluno, rompendo com um currículo tecnicista naquela coisa que o aluno
tem que decorar, tem que aprender aquilo... Eu acho que a gente já avançou
muito, com conteúdos mais críticos levando o aluno a refletir sobre o que ele
está fazendo. É um processo de avaliação e acredito que só temos a
melhorar! (Grifos da autora)

Construir currículo na perspectiva de um texto é mesclar os discursos na perspectiva


de transgredir, refletindo sempre a complexidade. Vale ressaltar que Arroyo (1992) destaca
que a organização do trabalho escolar torna-se um fator determinante das relações sociais
estabelecidas entre professores, alunos, conteúdos escolares e a comunidade. Contudo,
estamos discutindo aqui mais do que efetivamente transformar a educação, talvez o que
esteja em causa é a mudança na maneira de compreensão e escrita, principalmente por
parte daqueles que a realizam na prática.
Evidencia-se que a ideia do rizoma aqui descrita está balizada na compreensão do
currículo como texto, rompendo assim com a linearidade imposta pelo currículo prescrito.
Vale ressaltar assim como defendido por Corazza (2001, p. 102) “não há mais enraizamento,
nem raízes, só rizomas, que movem o mundo”. Imbuídos nessa concepção, encontra-se uma
linha que une toda uma rede rizomática de organização do currículo em ciclo de formação
humana: O tempo de vida. Ele acelera, afina ou transforma o sujeito considerando sua
existência humana.
Compreende-se que a concepção de ciclos é tida como uma intervenção ousada na
superação da organização seriada, dos currículos gradeados, da organização dos tempos e
de trabalho por disciplina, dos processos de avaliação, retenção e progressão, apresentando-
se como uma proposta pedagógica baseada na temporalidade do desenvolvimento humano.

Entrecruzando olhares, tecendo novos fios...

É certo que a forma de dizer, dar a palavra, interpretar a vida, faz parte da
perspectiva hermenêutica de compreensão da Educação. O currículo da escola em voga foi
aqui tecido como o centro, o produto da consciência, o qual foi possível ser acessado pela
manifestação, pela linguagem. Como uma trama, ficou marcado que no currículo, a proposta
de experiência do mundo, a forma de interpretá-lo, foi sendo consubstanciada através dos
vários fios que compõem a instituição. O mundo foi interpretado pela escola, que por sua
vez foi substanciado na valorização da formação humana, sendo o modo de ser/estar/existir
nesse espaço.
O reencontro de toda a escola e dos profissionais com a infância deve ser periódico.
As relações devem sempre manter-se equacionadas entre os tempos de vida e de trabalho
dos profissionais da educação. Estarem alicerçados em uma formação continuada que os
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1092
valorize como sujeitos aprendentes e cheios de histórias a serem descritos em narrativas
para tornarem conhecimento experiencial, é salutar para cada docente.
Como nobre tecelã à procura de novas tramas a serem tecidas, é pertinente ressaltar
que as narrativas aqui descritas fizeram parte de um tempo/espaço que foi “parado” para
ser perceptível de compreensão. Outrora, a interpretação de mundo é a própria
interpretação do currículo, da infância, dos professores, da instituição, da vida... Sendo
assim, é válido destacar que daqui a alguns dias, os alunos, os professores, a escola poderão
ser outros, e outros passíveis de novas compreensões...

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1094


Narrativas e escritas de si no processo formação: a contribuição das tensões e dificuldades
vivenciadas pelos alunos em formação inicial

Lucia de Fátima Carneiro Ferreira Lessa


UFBA
luciafcfl@yahoo.com.br
Luiz Marcio Santos Faria
UFBA/ UEFS
lmsfarias@ig.com.br

Esta comunicação tem por objetivos apresentar uma análise das tensões e das dificuldades vivenciados por
estagiários do Curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal da Bahia (UFBA), através dos
relatos dos mesmos ao cursarem as disciplinas Estágio Supervisionado III e IV. Tais relatos têm nos
impulsionado aos seguintes questionamentos: Quais são as tensões e as dificuldades vivenciadas pelos
licenciandos na sua prática de estagio? Como prepará-los para exercer esta tarefa? Visto que esta comunicação
está baseada na perspectiva de estudos Souza (2004), sobre valorização da subjetividade e das experiências
privadas, analisamos as narrativas dos estagiários nas aulas teóricas da referida disciplina, onde demonstraram
descontentamento com as dificuldades enfrentadas no decorrer do estágio. A nossa inquietação incidiu da
percepção de que é necessário as instituições de formação de professores considerarem que possíveis
problemas vivenciados no período do estágio podem originar, por exemplo, o abandono do ofício antes mesmo
do exercício da profissão. A investigação se deu através de uma pesquisa qualitativa, cujos instrumentos
utilizados foram os registros dos depoimentos dos alunos desenvolvidos através de narrativas e da análise dos
relatórios. Considerando que o ambiente educacional é tenso por envolver eventuais relações conflituosas que
podem se tornar um obstáculo comprometedor do trabalho desenvolvido pelo professor em formação inicial, a
partir de tais narrativas foram desenvolvidas prática da disciplina no intuito de atender as demandas
apresentadas pelo corpo discente.
Palavras-chave: Narrativas; Escritas de si; Formação inicial.

Introdução

A formação matemática e didática dos futuros professores constitui um campo de


investigação que reclama atenção por parte da comunidade de pesquisadores em Educação
Matemática e das administrações educativas. A principal razão é que o desenvolvimento do
pensamento e das competências matemática dos alunos depende de maneira essencial da
formação de seus respectivos professores. Na América Latina são bem conhecidas as
carências dos atuais planos de formação de professores que atuam no ensino básico em
didática da matemática e contextos de aplicação da matemática. Esta situação se explica em
parte pelo escasso nú mero do tipo de créditos exigidos na formação inicial dos futuros
professores. Alguns pai ́ses latino americanos têm enfrentado essas carências mediante a
incorporação de um plano de ações, entre elas extensionistas, que visa uma formação
didática em matemática, como é o caso da França, Espanha, Peru, Argentina e Brasil. Somar
esforços para implementar ações que contribuam na prática dos professores que atuam na
formação de professores, na Educação Básica, visando um intercâmbio de perspectivas,
conhecimentos e formas de abordagem teó rico-metodoló gica da temática em questão, é o
maior interesse do Projeto – PROBEM - Do qual este artigo é fruto. O projeto PROBEM –
Problemas de Educação Matemática, pretende desenvolver ações concretas para articular o
ensino, a pesquisa e a extensão no contexto da Educação Matemática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1095


E, nesse sentido, trazemos neste artigo as ações, que ao serem realizadas poderão
trazer uma contribuição importante na formação de quadros e ampliar as perspectivas de
pesquisas e produções conjuntas; incentivar o intercâmbio de conhecimentos entre
professores, estudantes e profissionais da educação. Além do PROBEM, os estudos
apresentados neste trabalho estão também vinculados às ações desenvolvida pelo Grupo de
Pesquisa (Auto)biografia, Formação e Histó ria Oral-GRAFHO.
O presente trabalho, que está inscrito no campo da abordagem (auto) biográfica, e
tem por objetivo apresentar como as narrativas biográficas, com ênfase nas escritas de si de
professores de matemática, em processos de formação inicial podem contribuir nesta
formação.
Segundo Souza, (2006) as narrativas biográficas, da forma como a concebemos,
preservam perspectivas particulares de uma forma mais autêntica e podem ser detalhadas
com um enfoque nos acontecimentos e ações. As narrativas dos licenciandos em
matemática serão assim entendidas como uma tentativa de ligar os acontecimentos no
tempo, atribuindo sentido as experiências vividas. Assim, ao narrar as suas experiências de
vida relativas ao estágio do Curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal
da Bahia, estes professores de matemática no processo de formação inicial, não assumem
uma perspectiva linear e sim, narram a trama complexa que constitui a sua história de vida e
sua itinerância de formação e atuação.
Estas narrativas tem nos permitido analisar as tensões e dificuldades vivenciadas
por estagiários do Curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal da Bahia
(UFBA) com o intuito de instigar o debate e apresentar um aporte teórico-prático sobre o
tema de maneira a contribuir para a formação inicial de professores de Matemática,
minimizando o vazio didático apontado por Farias e Silva (2013).
Discutir sobre essa temática pressupõe debater sobre as Práticas de Ensino e
Estágio Supervisionado. Nesse contexto, vamos nos restringir a discorrer sobre o Estágio
Supervisionado III (EDC-A83) e IV (EDC-A84) do Curso de Licenciatura em Matemática da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), componentes indispensáveis para o conhecimento da
prática na formação inicial de professores de Matemática.
As disciplinas em questão possuem carga horária de 102 horas, sendo que 17 horas
teórica, 34 horas de prática e 51 horas de estágio docente supervisionado. A ementa das
disciplinas EDC-A83 e EDC-A84 visa:
O exercício efetivo da prática de ensino através da aplicação dos fundamentos
teórico-práticos desenvolvidos nas disciplinas, Didática e Práxis Pedagógica e
Metodologia do Ensino da Matemática dos conteúdos específicos de sua formação,
de forma contextualizada e com incorporação de inovações contemporâneas que
inserem a educação no processo de desenvolvimento sócio histórico e humano”.
(UFBA, Ementada disciplina EDC-A83 e EDC-A84).

Ao vislumbrar tais aptidões nos questionamos se efetivamente os estagiários estão


prontos para desempenhar tamanha função. Tais indagações nos impulsionou aos seguintes
questionamentos: Quais são as tensões e as dificuldades vivenciadas pelos licenciandos na
sua prática de estágio? Como prepará-los para exercer esta tarefa? A motivação para a
escrita da comunicação se deu a partir das narrativas dos estagiários nas aulas teóricas,
alguns deles, demonstraram descontentamento com as dificuldades enfrentadas no
decorrer do estágio.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1096
A inquietação incidiu da percepção de que é necessário as instituições formadoras
dos professores em formação inicial se darem conta que possíveis problemas vivenciados no
período do estágio podem originar aborrecimentos, indignações, desânimos e gerar
decorrências não idealizadas pelos programas, por exemplo, o abandono do ofício antes
mesmo do exercício da profissão.
A análise dos relatos visou compreender tensões e dificuldades enfrentadas por
estudantes ao experimentar a efetiva prática na sala de aula.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação
Básica instituiu princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na
organização das instituições do ensino superior. As Diretrizes Curriculares para o Ensino de
Matemática advertem que “os egressos dos cursos credenciados de Bacharelado e
Licenciatura em Matemática tenham sido adequadamente preparados para uma carreira na
qual a Matemática seja utilizada de modo essencial, assim como para um processo contínuo
de aprendizagem” (PARECER N.º: CNE/CES 1.302/2001). O Conselho Nacional de Educação
Superior na RESOLUÇÃO CNE/CES 3, DE 18 DE FEVEREIRO DE 2003 integra-se ao Parecer
CNE/CES 1.302/2001, Art. 1º Art. expondo as Diretrizes Curriculares para os cursos de
Bacharelado e Licenciatura em Matemática e orientam a formulação do projeto pedagógico
do referido curso. O Projeto Político Pedagógico (PPP) do Curso de Licenciatura em
Matemática da UFBA ressalta a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e
adverte que os egressos desse curso devem ter conhecimentos sólidos e atualizados para
trabalhar como professor de Matemática no segundo ciclo (6º ao 9º ano) do ensino
fundamental e no ensino médio, além disso, deve ser capaz de assumir a função com
competência, não perdendo de vista o comprometimento profissional. Os conteúdos
propostos pelos planos envolviam fazer uma análise crítica do ensino de matemática no
ensino fundamental (EDC-A83), e no ensino médio (EDC-A84), entre outros. As análises
ocorriam através das discussões e leituras de textos, momentos privilegiados para
diagnosticar o problema.

Os caminhos metodológicos

A investigação se deu através de uma pesquisa qualitativa, cujos instrumentos


utilizados foram os registros dos relatos dos graduandos, desenvolvidos através de
narrativas orais, ocorridas nas aulas teóricas das disciplinas, EDC-A83 e EDC-A84257 e a
análise dos relatórios entregue no final do semestre.
A investigação foi considerada mediante as etapas expostas a seguir:

1ª etapa: Momento da preparação dos estagiários para a visitação aos colégios.

Nas primeiras semanas de aulas teóricas ocorreram: leitura da ementa da disciplina,


entrega dos documentos oficiais258 para o estágio, conversa sobre a funcionalidade do
estágio, orientação dos procedimentos a serem empregados nas escolas e leituras de textos

257
As disciplinas EDC-A83 (composta por sete alunos) e EDC-A84 (composta por dez alunos), foram ministradas
no primeiro e segundo semestre do ano de 2013, respectivamente.
258
Oficio para a solicitação do estágio; dados da regência; orientação para o estágio supervisionado; registro de
observação; registros das atividades desenvolvidas; orientação para o desenvolvimento da oficina; orientação
para a escrita do relatório; parecer do professor regente.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1097
teóricos. Nessa etapa, os licenciandos frequentaram duas semanas de aulas, portanto, doze
aulas semanais, tempo em que se definiria o colégio que os estagiários iriam atuar na função
de professores.
2ª etapa: O estagiário vai a campo, ou seja, dá-se início ao período de observação das aulas
dos professores regentes da unidade escolar.
A observação foi feita por um período de aproximadamente três semanas. Nessa
fase, orientamos os licenciandos para a escrita dos relatórios.
3ª etapa: O estagiário assume a turma259 desempenhando a função do professor, dá-se início
à escrita dos relatórios.
Nessa etapa as narrativas orais ocorriam com frequência, através de conversas
informais surgidas nas aulas teóricas, muitas vezes nos momentos das leituras dos textos
discutidos, ou até mesmo em momentos de “desabafos” sobre as experiências da sala de
aula260. Denominamos de desabafos as manifestações de insatisfação expressas pelos
estagiários ao falarem dos problemas ocorridos nas escolas. Nesse período, tivemos
momentos marcantes oportunizados pelos relatos orais, sobretudo porque os licenciando
passaram a narrar os episódios vivenciados por eles.
A partir dessas colocações vimos que havia necessidade de dar voz aos licenciando,
com isso, as narrativas orais passaram a ser valorizadas e anotadas. Para isso utilizávamos a
escrita de diários registrando as informações obtidas logo após o término das aulas teóricas.
Com essa atitude buscávamos descobrir nas “conversas” elementos que respondesse aos
questionamentos.
As narrativas escritas são relevantes para o processo de formação por permitir a
percepção da construção da identidade profissional, visto que, essas informações fornecem
subsídios para a compreensão da trajetória e percursos vivenciados pelos estagiários, além
disso, favorece a reflexão e o fortalecimento da (auto)formação. De acordo com Souza
(2008, p. 38) as pesquisas nessa área é uma metodologia de trabalho que “possibilita tanto
ao formador quanto ao sujeito em processo de formação, significar suas histórias de vida,
através de marcas e dispositivos experienciados no contexto da sua formação”.
Ponte (2001) expõe:
As narrativas constituem talvez o elemento mais inovador das metodologias usadas
pelo grupo, podem ser espontânea ou construída, isto é, podem surgir de forma
imprevistas no decorrer de uma conversa ou reflexão ou podem ser elaboradas de
modo deliberado com base em uma dada experiência educativa. (PONTE, 2001, p.
11).

As idéias apresentadas acima demonstram a compreensão de narrativas como uma


metodologia de trabalho que dá significado a formação e favorece a (auto) formação.

4ª etapa: Momento da análise dos relatos e categorização por tema.

259
O período das aulas correspondeu a uma unidade escolar.
260
O curso foi desenvolvido com base nas propostas dos planos de ensino das disciplinas. Através de reflexões,
discussões e atividades que possibilitavam a articulação teoria e prática, privilegiando o diálogo e as interações
ente os sujeitos do processo de ensino e aprendizagem.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1098


Nessa etapa, buscávamos na literatura pertinente sobre o assunto encontrar
elementos que debatessem sobre as problemáticas vivenciadas pelos formandos. Com esse
procedimento, intencionávamos amenizar as inquietações dos estudantes em formação.
Assim, categorizamos261 por temas as dificuldades enfrentadas. Essas eram trazidas para
discussão nas aulas teóricas.

Souza (2006) expressa:


“É pertinente a problematização metodológica, que se inicia pela reflexão sobre as
formas de ouvir, registrar e interpretar as narrativas. [...]. Narrar é enunciar uma
experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos um
significado. Garimpamos em nossa memória, consciente ou inconscientemente,
aquilo que deve ser dito e o que deve ser calado”. (SOUZA, 2006, p.66)

Refletir sobre as narrativas apresentadas e analisar a literatura vigente sobre os


temas categorizados, passou a ser a nossa meta para descobrir respostas às inquietações
apresentadas pelos licenciandos. Em decorrência, as narrativas avaliadas passaram a
(re)significar o trabalho da disciplina.

5ª etapa: Sugestões de experiências bem sucedidas a serem utilizadas pelos formandos em


sala de aula.

Nessa etapa foi solicitado que cada estagiário desenvolvesse uma oficina com
materiais manipuláveis 262. Para isso eles deveriam elaborar ou adquirir um material que
tratasse de conteúdos sugeridos pelo programa escolar. O propósito era utilizar
procedimentos em busca de uma prática diferenciada a ser trabalhado pelo professor em
formação.

6ª etapa: Apresentação da oficina através de um seminário.

Nessa etapa o graduando participou de um seminário mostrando o


desenvolvimento da oficina. Foi permitido que os estagiários desenvolvessem e
apresentassem as oficinas em duplas. Também foi sugerido que fotografassem momentos
da aplicação do material ocorrido na sala de aula.
Em todas as etapas, exceto a primeira, os licenciando frequentaram as aulas
teóricas uma a duas vezes por semana.

7ª etapa: Entrega do relatório escrito.

A última etapa foi a entrega do relatório final. Esse foi previamente lido e discutido
com os estudantes.

261
Temas categorizados: Falta de base, desinteresse, indisciplina, relação professor aluno, entre outros.
262
Reys (apud PASSOS, 2006, P. 78) define materiais manipuláveis como “objetos ou coisas que o aluno é capaz
de sentir, tocar, manipular e movimentar”.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1099


As narrativas e as análises dos relatórios

Analisar e compreender os efeitos das narrativas no processo de formação de


professores é objeto de estudo de muitos pesquisadores, sobretudo por permitir que esses
autores tenham a oportunidade de falar e conhecer as experiências dos seus colegas e
escrever sobre as suas experiências.

Nesse trabalho, as narrativas tiveram um poder impactante na constituição da


disciplina por nos permitir confrontar, no decorrer do curso, as idéias apresentadas pelos
graduandos com as discutidas na literatura vigente. Esse entendimento é percebido na
explanação de Souza (2004), quando defende que as narrativas no processo de formação
poderão evidenciar novos modos de compreender a aprendizagem do ofício, as relações
com a profissão docente, a cultura educacional e expõe, “enquanto atividade formadora as
narrativas de si e das experiências vividas ao longo da vida caracterizam-se como processo
de formação e processo de conhecimento”. (SOUZA, 2004, p 167).
Com base na perspectiva de estudos de Souza (2004), sobre valorização da
subjetividade e das experiências privadas, analisamos as narrativas dos estagiários nas aulas
teóricas da referida disciplina. Os licenciandos demonstraram descontentamento com as
dificuldades enfrentadas por eles no decorrer do estágio. Nos relatos os estagiários
comentavam suas experiências, algumas vezes, expondo situações conflituosas,
insatisfações e indignações com os fatos ocorridos no ambiente escolar.
As idéias expostas acima, nos motivou a prosseguir e instigar os estagiários a falar
mais sobre as suas experiências. Em muitos dos relatos percebíamos grande preocupação
com a “falta de base”263 dos alunos das escolas públicas.“A falta de base é uma
característica negativa da turma, sentia falta de conteúdos que eles deveriam ter
conhecimento, isso impossibilitou o desenvolvimento de uma boa aula” (relato 1)“Grande
parte dos estudantes trazem consigo uma dificuldade que não foi sanada antes de
ingressarem no 2º ano do ensino médio, como soma, subtração, divisão e multiplicação entre
números inteiros e propriedades de fração.” (relato 2) “Alguns alunos demonstraram enorme
dificuldade em trabalhar com multiplicação e divisão. A falta de base em matemática
interferiu diretamente na aprendizagem dos conteúdos. [...] a maioria dos alunos não
mostrou qualquer tipo de conhecimento sobre os assuntos.” (relato 3)
Buscamos encontrar algum escrito que apresentasse um motivo para essas
dificuldades e nos deparamos com as idéias de Miguel (2005):

Em geral, as investigações realizadas no cotidiano escolar têm mostrado que pouco


se trabalha com Matemática no início da escolarização. Seja na educação infantil
ou nas séries iniciais do ensino fundamental a prioridade no trabalho dos
professores são os processos de aquisição da leitura e da escrita e, como se não
fosse componente fundamental da alfabetização, a Matemática é relegada a
segundo plano, e ainda assim tratada de forma descontextualizada, desligada da
realidade, das demais disciplinas e até mesmo da língua materna . (MIGUEL, 2005,
p. 461).

263
Termo utilizados pelos estagiários nas “conversas” de sala de aula e nos relatórios.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1100
Ao buscar respostas às colocações acima, encontramos nos escritos de Nacarato,
Mengali e Passos (2009, p. 27), depoimentos de professores das séries iniciais, ao serem
questionadas sobre as crenças e os sentimentos em relação à matemática.
Bom, para falar a verdade, não tive muita oportunidade para gostar de
matemática, pois todos os professores que tive não deixaram nada marcante, ao
ensinar a matéria matemática. Sempre tiraram sarro dos alunos por isso que não
gosto muito de matemática (aluna 1)

Os professores eram muito rígidos com a disciplina dos alunos, eram distantes,
conservando-se afastados sem proximidades com as crianças. Não estou convicta
de ter superado como gostaria as dificuldades nas aulas a que assisti. (aluna 2)

Nacarato, Mengali e Passos (2009) defendem que essas crenças foram construídas
historicamente e que é importante considerar a trajetória profissional das professoras para
encontrar maneiras de trabalhar, romper ou transformar essas crenças. As autoras expõem
que esses sentimentos se evidenciam na representação através de desenhos, “representei
meus sentimentos através de uma bomba que está a ponto de explodir, porque na maioria
das vezes eu levava “bomba” nas avaliações de matemática na escola” ( aluna S). As idéias
apresentadas são dignas de atenção, pois demonstram indício de sentimentos negativos nas
falas, que para as autoras “implicam, muitas vezes em bloqueios para aprender e ensinar”
(Nacarato, Mengali e Passos, 2009, p. 23). Os comentários acima evidenciam que o problema
apresentado pelos estagiários, pode ser em decorrência das dificuldades, constatada pelos
depoimentos dos professores das séries iniciais.
No período do estágio os estudantes graduandos se envolveram na preparação do
planejamento com a intenção de “oferecer uma boa aula”264, mas ao assumirem a sala de
aulas e depararam com a falta de interesse dos alunos o que gerou insatisfação e falta de
estímulo observado nas falas a seguir. “A falta de interesse dos alunos para o estudo também
é um grande problema. Os alunos não querem ler, interpretar, pensar e levantar hipóteses ”
(relato 4). “Tentamos colocar em prática tudo o que aprendemos na universidade, nem
sempre é possível, pois ao entrar na sala de aula nos deparamos com uma realidade
totalmente diferente, a falta de interesse dos alunos”. (relato 5). “A maioria dos alunos são
desinteressados, muitas vezes desrespeitam o professor e passam a aula toda atrapalhando.
O tempo para ministrar as aulas é curto, o que não dá para abordar todo o conteúdo previsto
naquela série”. (relato 6).
Na declaração anterior, nos deparamos com outro elemento além do desinteresse, o
tempo, esse pode ser obstáculo para o desempenho de um bom trabalho em sala de aula.
Observemos as falas dos graduandos ao se referir ao tempo: “outros fatores que geraram
grande vigilância e cuidado foi o curto período da unidade, a necessidade em seguir e
cumprir o calendário da escola da secretaria de educação, carga horária e fechamento anual
foi curto”. (relato 7) “A responsabilidade foi grande, pois durante a unidade houve várias
datas comemorativas, feriados, provas do ENEM o que acabou interferindo na programação”
(relato 8). “A turma tinha apenas duas aulas por semana, além disso, os feriados e dias sem
aulas coincidiam com os dias da minha aula, não foi fácil cumprir a programação” (relato 9).
“Um dos principais problemas que encontrei não me cabia resolver, a turma possuía apenas

264
Termo utilizado por um estagiário.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1101
duas aulas semanais, por se tratar de um curso técnico, com isso, não houve tempo hábil
para ensinar todos os conteúdos programados na unidade” (relato 10). Os depoimentos
evidenciaram que não foi possível cumprir as tarefas planejadas pelo plano de trabalho de
estágio. Percebemos coerência desses relatos com as discussões desenvolvidas na tese de
PIRES (2012) ao analisar o argumento de uma autora de livro que trata da temática
formação de professores e que também é professora de um Programa de Pós-graduação. A
mesma enfatiza que já atuou na função de professora do componente curricular estágio
supervisionado.

“A tradição pedagógica da escola e das aulas de matemática pouco tem


possibilitado em termo de inovação, diria que por mais que preparemos futuros
professores para possíveis realidades que encontrarão nas escolas, eles sempre se
surpreendem. Costumo dizer que eles são “engolidos” pelo sistema. ( PIRES 2012,
p. 152).

A declaração da professora entrevistada denota a realidade, em que os estudantes


graduando vivenciam, sendo submetidos às adversidades imprevisíveis, percebido nos
depoimentos a seguir. “[...] Parecia que eu não estava ali, os alunos entravam e saiam da
sala como se nada tivesse acontecendo, esse comportamento me incomodava
profundamente” (relato 11). “Alguns alunos diziam piadinhas e até me desrespeitaram.
Chegou ao extremo de uma aluna me insultar com ameaças, então com muita calma, falei
para ela respeitar a minha presença, ela continuou com as provocações, tive que recorrer à
coordenadora pedagógica” (relato 12). Esses depoimentos confirmam a realidade de muitas
escolas, sobretudo as públicas. Tais ocorrências podem ser vistas como situações de
conflitos que o estagiário não esperava encontrar. Segundo Garcia (1998):
A indisciplina escolar não é um fenômeno estático que tem mantido as mesmas
características ao longo das últimas décadas. Ao contrário, está “evoluindo” nas
escolas. Sob diversos aspectos, a indisciplina escolar, hoje, se diferencia daquela
observada em décadas anteriores. Não se trata apenas de uma ampliação quanto à
intensidade de manifestação. A indisciplina escolar apresenta, atualmente,
expressões diferentes, é mais complexa e “criativa”, e parece aos professores mais
difícil de equacionar e resolver de um modo efetivo. (GARCIA, 1998, p. 103)

Diariamente os meios de comunicação retratam a violência pelos quais os


professores são submetidos, nas escolas, já é um problema corriqueiro, apesar disso, a
dificuldade dos educadores lidarem com esse assunto ainda é grande por perpassar os
muros escolares. Ao frequentar e vivenciar a realidade escolar, o estagiário fica
sobressaltado diante de comportamentos dos alunos, muitos deles chegam ao seu limite de
estresse como mostra as declarações a seguir. “Cheguei até a pensar em desistir do estágio,
mas mudei de idéia, estava no último semestre, então resolvi prosseguir, mesmo sem
vontade de ir aquele colégio” (relato 13). “Ficou apenas a vontade de que termine e que
sejamos logo avaliados para que tudo acabe” (relato 14). “No estágio supervisionado pude
perceber que se pretende por em prática o que se estuda na teoria. Mas, ao entrar em sala
de aula você se depara com uma realidade totalmente diferente”. (relato 15).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1102
O último depoimento denota que o estagiário possui uma visão coerente da sua
função sem ter se dado conta das adversidades do ambiente escolar. Além disso, os
estagiários demonstraram ter consciência de que o trabalho desenvolvido por eles, muitas
vezes iam contra as propostas curriculares sugeridas pelos documentos oficiais265, como
notamos na declaração: “nada além das mesmas coisas que víamos nossos professores
fazerem conosco em sala de aula e que não suportávamos, tudo porque a metodologia da
disciplina exige que sejamos como nossos professores foram, aulas que vemos estudantes
completamente desinteressados” (relato 16).
A relação professor aluno também foi detectada em um dos relatórios analisados
através desse trecho: “não tive dificuldades com os conteúdos, mas de me relacionar com os
alunos. Detectei que alguns alunos não gostaram de mim e tinham idéia de que estagiário
não sabe ensinar e não tem domínio de conteúdo como o professor regente” (relato 17).

Paiva (2002) propõe:


“uma nova concepção de estágio na qual o aluno possa refletir sobre situações que
lhe possibilitem conhecer a realidade complexa da escola pública e da sala de aula
de um modo geral, entender e participar das relações e tensões existentes no
espaço escolar, analisar os anseios dos diversos segmentos envolvidos no processo
educacional, entender qual o papel social, político, cultural e educacional que a
escola desempenha na sociedade, em que vivemos” (PAIVA, 2002, p. 100.)

Além disso, Paiva (2002) sugere que o futuro professor conheça o Projeto Político
Pedagógico (PPP) das escolas, tenha um embasamento das questões teóricas e das
pesquisas em Educação Matemática, entre outros. E acrescenta que a sala de aula passa a
ser objeto de reflexão dentre as relações que se estabelecem entre a escola e a instituição
superior.
Apesar de todas as problemáticas detectadas nesse período os estagiários
consideram que “o estágio supervisionado permitiu discutir e enxergar com maior clareza
todas as minhas dificuldades, as dos estudantes e do ambiente em que trabalhei. Algo que,
sozinho, é muito mais complicado de se perceber, de se adaptar e melhorar o trabalho que
precisamos realizar. (relato 18). “Com o estágio pude conviver com profissionais que já estão
a muito mais tempo em sala de aula do que qualquer tempo que tive ao longo de minhas
experiências”. (relato 19). “Apesar de tudo, essa experiência foi muito importante para a
minha formação como docente”. (relato 20). Esses depoimentos denotam um
amadurecimento dos estudantes formandos, ao identificarem os benefícios dessa
experiência envolvida na profissão docente demonstrando reconhecerem que o contato
com a realidade da sala de aula e do cotidiano escolar é a base para as futuras ações
pedagógicas.
Na opinião da autora entrevistada por Pires (2012) “os primeiros anos de docência
constitui um período de muitas novidades e consequentemente, muita insegurança para o
professor novato. Ele precisa de apoio” ( PIRES, 2012, p. 153).
Com a análise dos resultados, averiguamos que o período do estágio de regência é
tenso, delicado e impõe cautela por parte das universidades e dos educadores, esses

265
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em vigência (Lei 9.394 de 29/12/96)
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1103
imprescindíveis no processo de formação. Além disso, pudemos constatar que o ambiente
educacional envolve múltiplas relações, entre elas, sociais, pessoais, metodológicas e
teóricas, algumas dessas, tendo passado despercebidas pelos graduandos.
Fazer uso das narrativas para analisar conflitos e dificuldade vivenciadas pelos
estudantes em processo de formação é relevante por contribuir para a compreensão da
realidade escolar e para a busca de soluções para os problemas encontrados.
Ao fazer uma avaliação do trabalho desenvolvido na disciplina, percebemos o quanto
foi importante para o discente ter vivenciado as etapas metodológicas e participado das
mudanças propostas pela professora formadora, assim as dificuldades encontradas pôde ter
uma resignificação no comportamento desempenhado pelo discente e originar mudanças
significativas nas crenças e nos procedimentos metodológicos.

Considerações finais

Ao analisar as tensões e dificuldades vivenciadas pelos estudantes do Curso de


Licenciatura em Matemática da UFBA na sua prática de estágio, nos deparamos com
problemas não idealizados pelos discentes, o que acarretou descontentamento e desabafos
nas aulas teóricas das disciplinas EDC-A83 e EDC-A84.
A investigação foi desenvolvida mediante etapas adotadas, o que viabilizou um
(re)planejamento do trabalho idealizado para o semestre, visto que, elementos novos
foram incorporados nas aulas.
As análises das narrativas contribuíram consideravelmente para a tomada de decisão,
o que ratifica a pesquisa de Souza (2008) quando expõe que a (auto)bibliografia é uma
metodologia de trabalho que dá significado a formação inicial. Com a análise, constatamos
que os estudantes em formação inicial passam por tensões e dificuldades, muitas vezes não
idealizadas por eles. Souza (2004, p. 222) parte do princípio de que “as práticas pedagógicas,
como um corpo de conhecimentos prescritivos constituídas de regras recursos e estratégias
didáticas, não são, por si só, suficientes para garantir a formação docente”. Além disso, nos
permitiu refletir sobre os questionamentos: Quais são as tensões e as dificuldades
vivenciadas pelos licenciandos na sua prática de estágio? Como prepará-los para exercer
esta tarefa?
Várias iniciativas têm sido desenvolvidas por pesquisadores de modo a contribuir
com a formação inicial de professores, contudo, ainda encontramos lacunas na literatura
que ofereça apoio aos professores formadores e estudante em formação nessa complexa
fase da graduação. Orientá-los para exercerem a difícil tarefa não é fácil, nesse sentido é
relevante levantar hipóteses de situações problemáticas ocorridas no ambiente escolar,
além disso, fazer um estudo das boas experiências nas pesquisas desenvolvidas. Essa ação
poderá fornecer elementos para estimular debates nos cursos e nos encontros de formação
de professores no âmbito nacional e internacional.
Sabemos que o estudo não se encerra nessa comunicação, é necessários outros
olhares para ampliarem as pesquisas nas perspectivas de investigações e produções sobre o
tema na área de Educação Matemática.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1104


Referências
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Licenciatura de Matemática, Bacharelado e Licenciatura.Brasilia: 2001. Disponível em:
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Licenciatura de Matemática, Bacharelado e Licenciatura. Brasilia: 2001. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces032003.pdf. Acessado em 28.02.2014.
FARIAS, L. M. S; GUSMÃO, T. C. R. S. O vazio didático: um problema didático, um obstáculo
não identificado ou subestimado. Perspectiva da Educação Matemática, Campo Grande –
MS, no v. 6, n. 12, p. 61-79, jul- dez /2013.
GARCIA, C. M. Pesquisa sobre formação de professores: o conhecimento sobre aprender a
ensinar. Revista Brasileira de Educação Matemática. n. 9 1998.
MIGUEL, J. C. Alfabetização matemática: implicações pedagógicas.
www.unesp.br/prograd/PDFNE2005/.../alfabetizacaomatematica.pdf. Acessado em:
01/03/2014.
NACARATO, A.M. MENGALI, B.L.S. PASSOS, C.L.B. A matemática nos anos iniciais do ensino
fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. Belo Horizonte:Autêntica, 2009.
(Tendências em Educação Matemática)
PAIVA, M. A. V. Saberes do professor de matemática: uma reflexão sobre a licenciatura.
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professores de matemática. In: LORENZATO, S. (org): O laboratório de ensino de
matemática na formação de professores. Campinas, SP: Autores Associados, 2006, p. 77-91.
PIRES, M. A. L. M. Um estudo sobre estágio supervisionado na formação inicial de professores de
matemática na Bahia. 296 f. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Rio Grande do Norte. 2012.
PONTE, J. P. A investigação sobre o professor de matemática: problemas e perspectivas do
professor. Educação Matemática em Revista. Número 11, ano 8, 2001, p. 10 – 13.
SOUZA, E. C. de. O conhecimento de si: narrativas do itinerário escolar e formação de
professores. 344 f. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.SOUZA, E.
C. de. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de professores. Rio de
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Educação (FACED). Departamento II. Ementa das disciplinas. Estágio Supervisionado III (EDC-A83) e
Estágio Supervisionado IV (EDC-A84). 2013.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1105


A escrita de si como ferramenta de (auto) percepção e avaliação: um processo de
formação

Magnaldo Oliveira dos Santos


UNEB
magno.ssa.ba@gmail.com
Jackeline Pinto Amor Divino
UNEB
jackdivino@msn.com

Entendendo educação como processo de emancipação, nos diversos sentidos, a presente comunicação
objetiva compartilhar um fazer pedagógico que buscou proporcionar protagonismo aos (as) educandos (as) do
terceiro semestre de 2010.1 do Curso de Pedagogia do Departamento de Educação – DEDC1 da Universidade
do Estado da Bahia – UNEB – Salvador. No intuito de favorecer a autonomia desses (as) educandos (as), nossa
prática pedagógica utilizou, entre outras técnicas de ensino e aprendizagem, a dinâmica “Quem sou eu!?”,
através da qual, se estimulou o exercício de escrever sobre si mesmos (as), onde eles (as) próprios (as)
elegeram o que, como e com quem partilharem suas (auto) representações. Para maior enriquecimento do
processo de formação, foi realizada também uma oficina com o tema “Eu, meus pais e meus avós” objetivando
aprofundar um pouco mais esse processo, “aprendendo a fazer fazendo”. Tudo isso, proporcionou a
elaboração de uma escrita permeada de memória e pertença sobre família e ancestrais, a partir da visão do
sujeito que decide (re) elaborar e escrever sua história ou parte de sua história, ou seja, assenhorar-se da pena
(EVARISTO, 2005) e realizar suas “escrevivências” (EVARISTO, 2006). Após realização das etapas anteriores, que
se revelaram bastante significativas, os (as) educandos (as) se mostraram tanto mais seguros quanto mais
motivados quando foram instigados a comporem uma escrita de si (SOUZA, 2006) e, através delas, socializam
imagens e fotografias, com significativas relações com suas respectivas histórias de vida, algumas das quais,
impregnadas de gênero e pertencimento etnicorracial, todas, porém, construídas com muita beleza e emoção.
A experiência de formação, ora relatada, teve como diferencial a utilização da escrita de si (SOUZA, 2006) como
metodologia que avança e amplia horizontes, assim como, ferramenta de (auto) percepção e avaliação, que
transcende os processos de avaliações tradicionais, que ainda se pautam na valoração quantitativa.
Palavras-chave: Escrevivência; Escrita de si; Educação.

Considerações intridutórias

A presente comunicação compartilha um fazer pedagógico que buscou


proporcionar protagonismo aos (as) educandos (as) em seu processo de formação.
A experiência, ora relatada, foi construída com a turma do terceiro semestre do
Curso de Pedagogia do Departamento de Educação (DEDCI) da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB) – Campus I, Salvador, no primeiro semestre de 2010, na disciplina História e
Cultura Africano-Brasileira.
Procurando adaptar à nossa realidade, buscamos transcender a emanta da
Disciplina História e Cultura Africano-Brasileira do Curso de Pedagogia dessa instituição.
Assim sendo, trabalhamos em todos os momentos várias noções, como identidade,
alteridade, territorialidade, comunalidade, arkhé, processo civilizatório, cultura,
contemporaneidade, autoconhecimento, autorreflexão, escrita de si, avaliação, entre outras,
para além daquilo que a ementa delimitava.
No intuito de favorecer a autonomia dos (as) educandos (as), nossa prática
pedagógica utilizou, entre outros recursos, técnicas e estratégias, a técnica de ensino e
aprendizagem, em formato de dinâmica, intitulada “Quem sou eu?”, através da qual, se
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1106
estimulou o exercício de escrever sobre si mesmos (as), aonde eles (as) próprios (as) iam
elegendo o que, como e com quem queriam partilhar suas histórias e suas (auto)
representações.
Para maior enriquecimento do processo de formação, foi realizada também uma
oficina com o tema “Eu, meus pais e meus avós” que teve como objetivo aprofundar um
pouco mais o processo de narrativa, de representação de si e de conhecimentos, momento
no qual eles (as) iam “aprendendo a fazer fazendo”.
Destacamos que a escrita de si (SOUZA, 2006b) foi utilizada nesse processo de
formação com basicamente três funções principais, para além de outras que podem apontar
outras possibilidades:
A primeira delas e mais significativa, foi a de ser utilizada como instrumento de
autoconhecimento e auto percepção, no momento em que o indivíduo se dispõe a fazer um
“mergulho” para dentro de si e se debruça sobre as folhas em branco para escrever (contar)
sobre si, sobre sua história de vida, trazendo a tona, emoções, tristezas, dores, saudades,
recordações, alegrias, euforia, esperanças e tantos outros sentimentos e sensações que
podem e certamente vão emergindo à medida que o sujeito vai penetrando mais e mais nas
suas subjetividades, evocando suas lembranças e selecionando o que delas narrar.
A segunda função, foi a de utilizá-la como uma metodologia que muito colaborou
no ampliar dos conhecimentos e dos horizontes dos (as) educadores (as)/mediadores (as) e
dos (as) educandos (as), assim como, ajudou também a expandir os horizontes do processo
de formação de modo geral.
A terceira e última função, foi a utilização da escrita de si como autorreflexão para
avaliação de si (cada participante avaliando a si próprio) e como ferramenta utilizada pelos
(as) educadores (as)/mediadores (as) para avaliar os (as) educandos (as) individual e
coletivamente, bem como o processo de formação, buscando com isso, transcender os
métodos tradicionais que se pautam pela contabilização e valoração quantitativa, deixando
de fora ou mesmo matando um rico e complexo cabedal de conhecimentos e possibilidades.
Os relatos ou trechos dos relatos construídos pelos (as) educandos (as), autores de
suas narrativas (escritas de si), estão distribuídos no corpo do texto, pois, entendemos que
eles são basilares para sustentação do presente texto, além de propiciar maior
entendimento em relação ao planejamento, a execução e a obtenção dos resultados do
Processo de Formação, bem como servindo também para melhor ilustrar cada etapa do
Curso, conferindo autenticidade à experiência e ao relato da mesma.

Educação – autonomia, protagonismo e emancipação

Entendemos educação como um fenômeno capaz de propiciar emancipação nos


diversos sentidos. Um processo que pode proporcionar ao sujeito, autonomia no que tange
às suas escolhas e decisões, protagonismo em relação à construção de sua história (e
história de vida) e emancipação como indivíduo e ator social.
Esse modo de conceber educação permeia nossa prática pedagógica e está em
consonância com o pensamento de Freire quando ele afirma que: “Não há nada que
contradiga e comprometa mais a emersão popular do que uma educação que não jogue o
educando às experiências do debate e da análise dos problemas e que não lhe propicie
condições de verdadeira participação.” (FREIRE, 1976, p.93).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1107
Reflexões Que Nos Levaram A Transcender A Ementa

Foi com essa inspiração e procurando adaptar à nossa realidade, necessidades e


desejos, modelos de práticas bem sucedidas, que buscamos transcender a emanta da
Disciplina História e Cultura Africano-Brasileira do Curso de Pedagogia do Departamento de
Educação (DEDCI) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus I, Salvador, no
primeiro semestre de 2010. A Disciplina teve uma Carga Horária de 60 horas, divididas em
15 encontros, acontecendo um encontro semanal.
Ousamos transcender a emanta da referida Disciplina do Curso de Pedagogia dessa
instituição, pois, muito nos inquietava, limitando nossa abordagem e não atendia
satisfatoriamente aos anseios da turma nem a proposta mais ampla do referido Curso.
Vejamos a emanta abaixo:

Ementa: Estrutura política/econômica e social da África pré-colonial: povos e línguas;


pré-história da África; história dos povos africanos; formas de governo; estrutura
político-social; vida econômica; as religiões; o legado africano. Descendentes de
africanos no Brasil: o tráfico e a resistência na África e no Brasil; o sincretismo cultural
e linguístico africano na escravidão; o legado da Lei Áurea; as contribuições no âmbito
econômico, político e social dos descendentes de africano para a nação brasileira.

A ementa do Curso, acima citada, conforme já dissemos nos inquietava e ao mesmo


tempo pensávamos como poderíamos abordar um discurso que contemplasse a diversidade
ali presente em um semestre? É preciso entender que quando falamos das culturas de povos
milenares, a exemplo dos povos africanos e indígenas, nos remete a falar de seus legados,
suas organizações sócio-administrativas, impérios, reinos, nações, crenças, visão de mundo
etc., que se afirmaram como Contínuos Civilizatórios que constituem a sociedade brasileira.
É falar também das inúmeras insurreições e revoltas, a exemplo do chamado
Levante dos Malês (REIS,1986), da Revolta dos Tupinikim, da Revolta dos Tupinambá (DIEZ,
2001) e outras. Assuntos esses, que foram apresentados em forma de Seminários, Palestras
e Pesquisas. Devemos saber que a história da África não começa no século XIV com a
chegada dos povos europeus, muito menos a partir da escravização mercantilista do século
XV, mas sim há milênios recuados nos tempos da história, rica em arqueologia, botânica,
medicina, arquitetura, linguagens, culturas, dentre outras. Por tudo isso, optamos por
transcender a referida ementa:

Transcendendo a ementa: [...] O que nos surpreende é que na Bahia, onde a presença
da civilização africana é pujante caracterizando a sua polis, há uma tendência a acolher
cursos de formação de educadores vinculados exclusivamente à arkhé greco-romana,
anglo-saxônica e euramericana. A opção institucional por essas arkhés alheias à nossa
existência vem produzindo ao longo dos séculos políticas educacionais que procuram
recalcar os contínuos civilizatórios que caracterizam povos milenares. O resultado
dessas políticas educacionais destituídas dos valores característicos da nossa
população é a incapacidade de produzir conhecimentos significativos sobre a nossa
territorialidade africano-brasileira e aborígine, e dela, extrair perspectivas que
aproximem os educadores das dinâmicas de sociabilidades pluriculturais. Infelizmente
a estrutura, forma e conteúdo dos cursos realizam um arremedo muito mal feito dos
valores greco-romanos e suas derivações e há uma enorme incapacidade de lidar com

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1108


a exuberante diversidade cultural da Bahia. Essas considerações pontuam aspectos
que designam a dinâmica e tensões entre territorialidades radicalmente distintas, a
saber: a colonial europocêntrica representada pela metáfora da “casa grande e
senzala”; e a africana e aborígine influenciando e instituindo kilombos e legitimando a
floresta simbólica expansão de civilizações milenares...
Narcimária C. P. Luz.

No transcorrer das aulas utilizamos também a metodologia africano-brasileira, da


porteira para dentro e da porteira para fora de Mãe Senhora266 que se constituem em: “Da
porteira para dentro – valores ancestrais africanos, saberes expressos nas histórias,
provérbios ou metáforas transmitidos no dia-a-dia através da fala dos mais velhos aos mais
jovens. E Da porteira para fora – valores religiosos, ideológicos e políticos da sociedade
oficial brasileira”; lidamos o tempo inteiro no espaço da Universidade na tentativa de
promover a ética da coexistência entre esses valores.
Assim pensando, Luz (2000) afirma que todos esses aspectos visam provocar a
emergência de novas percepções sobre a educação, sensibilizando as novas gerações de
educadores para contribuírem na constituição de espaços institucionais que visem
reelaborar, recriar e expandir conhecimentos originais e próprios sobre a nossa identidade
nacional.
Então, com ousadia e pautados nessas premissas, planejamos e costuramos todo o
percurso do processo de formação, criando estratégias para delinear e construir caminhos
que levassem a nós, bem como aos (as) educandos (as) a novas aprendizagens. Freire (2013,
p. 58-9) nos chama atenção para o fato de que:

[...] O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não


um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. [...] O professor que
desrespeita a curiosidade do educando, seu gosto estético, a sua inquietude, a sua
linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe, a sua prosódia, o professor que
ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao
mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime
do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta
ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora
do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa
existência [...].

Para que a o processo de formação possa proporcionar protagonismo, liberdade e outras


possibilidades aos (as) educandos (as), entre outros aspectos, deve haver respeito à
autonomia e à dignidade dos (as) mesmos (as) como sujeitos aprendentes. De outro modo,
dificilmente alcançaremos os objetivos de uma educação plena e emancipatória, de uma
educação pluricultural que atenda as várias demandas presentes em seu bojo e respeite os
diversos legados civilizatórios representados pelos diferentes grupos étnicos e raciais que
constituem nossa sociedade. Seguindo esta mesma linha de pensamento Luz (2000) ressalta

266
Mãe Senhora, Òsun Muiwa, Maria Bibiana do Espírito Santo, terceira Ìyálórìsà da comunidade-terreiro Ilé
Òpó Àfònjá, com grande sabedoria, criou a expressão “da porteira para dentro, da porteira para fora”, que se
tornou uma categoria para referir-se aos marcos territorial e simbólico bem como os valores reais e
metafóricos que coexistem, interagem e se interpolam, dentro e fora das comunidades-terreiro.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1109


que a intenção de tudo isso é que ao final do curso tenhamos uma geração de educadores
sensibilizados para conceber e executar novas ideias e/ou perspectivas de educação,
possibilitando a legitimação da alteridade própria das distintas comunalidades que tendem a
caracterizar o cotidiano das escolas brasileiras.

Criando Estratégias Para Construir Novos Caminhos

As aulas tiveram início no dia 13 de abril de 2010 e logo no primeiro encontro,


procuramos levar os (as) educandos (as) a pensarem sobre a escrita de si, tanto como
processo de autorreflexão quanto processo de avaliação, deles (as) próprios (as), de seus
desempenhos, além de se constituir como uma das etapas de avaliação no processo de
formação, embora saibamos que não seja peremptoriamente esse o objetivo da
autobiografia.
No intuito de favorecer a autonomia dos (as) educandos (as), nossa prática
pedagógica utilizou, entre outras técnicas de ensino e aprendizagem, a dinâmica “Quem sou
eu?” Para realiza-la utilizamos um grande cartaz contendo a provocação em forma de
pergunta, indagando quem sou eu, cartazes com gravuras de pessoas e de lugares, mapas e
objetos variados com os quais os (as) participantes poderiam se identificar ou não.
Essa pergunta nos inquietou durante todas as aulas e fomos buscar e entender
quem somos nós individualmente, identidade, pertencimento, alteridade etc. Respostas que
se justificaram, a partir das histórias de vida, histórias da (s) família (s) e das civilizações que
nos originaram, especialmente, a africana. Solicitamos como produto final uma breve
composição no papel, em forma de um pequeno texto, através do qual, cada participante, a
partir sua própria ótica e do que julgasse importante, revelar sobre si mesmo (a).
Alguns desses elementos aparecem com destaque, em relatos de si, semelhantes ao
apresentado abaixo:

Tivemos a dinâmica Quem Sou Eu? Nela nos apresentamos, identificando a nós
mesmo, por gênero, naturalidade, por nossas características. A partir dela pude
pensar e refletir sobre como me identifico, como me vejo. Sou L, brasileira, mulher
e o que mais? Muito mais com certeza! [...] (TRECHO DO RELATO DE L.R., 3º
SEMESTRE DO CURSO DE PEDAGOGIA – UNEB, 2010.1).

No desenvolvimento do processo de formação, para avançarmos mais nas etapas


sobre escrita de si, trouxemos para o grupo outra dinâmica intitulada “Autorretrato” que se
constituiu de um painel integrado contendo textos variados, imagens, frases, revistas, livros
etc., todos guardando relações com os objetivos da proposta.
Um educando registra o que da dinâmica dessa aula lhe é mais significativo: “Nessa
aula utilizamos uma folha de papel branco para fazer uma caricatura de como estava nosso
estado de humor neste exato dia [...]” (TRECHO DO RELATO DE C.S. R., 3° SEMESTRE DO
CURSO DE PEDAGOGIA – UNEB, 2010.1). Vejamos a seguir, trecho de mais um relato no qual
o (a) autor (a) de sua escrita explicita seu modo de ver a atuação dos educadores
(as)/mediadores (as) e relata suas impressões sobre o processo de formação e como naquele
momento se vê e se descreve:

[...] Essa aula foi muito legal, a aula foi muito dinâmica e diferente, pois, foi a
primeira vez que tive uma aula com três professores trabalhando em conjunto e na
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1110
mais pura harmonia. Fiquei admirada com o companheirismo e o respeito que
encontrei nesses professores, tanto entre eles como pelos alunos. A primeira
proposta desses professores foi a descoberta e valorização de nossa identidade e
de nossa “ARKHÉ”, trabalhando isso através de uma atividade onde eles
propuseram que nós redigíssemos um pequeno texto sobre “Quem sou eu”. [...] Eu
sou V.M., tenho 23 anos, nasci em Salvador, moro atualmente em Lauro de Freitas,
na Bahia. Sou estudante da UNEB, faço o curso de Pedagogia e sou aluna cotista,
pois, concorri para a vaga de negros e afrodescendente oriunda de escola pública.
“EU SOU INSUBSTITUÍVEL” (TRECHO DO RELATO DE V.S.M., 3º SEMESTRE DO
CURSO DE PEDAGOGIA – UNEB, 2010.1 grifo da autora).

Conforme podemos constatar, através dos relatos anteriormente apresentados,


tais dinâmicas cumpriram, entre outros aspectos, a função de estimular e colaborar no
exercício de escrever sobre si mesmos (as), onde eles (as) próprios (as) elegeram o que, ou
seja, que fatos, trechos, lembranças etc., de suas histórias contarem; como, isto é, de que
modo, com quais palavras e em que ordem contar essas histórias e, finalmente, com quem
desejaram partilhar suas histórias e suas (auto) representações.

“Assenhoreando-se da pena realizando as escrevivências” para compor uma "escrita de si”

Enriquecendo E Aprofundando Um Pouco Mais O Processo

Para maior enriquecimento do processo de formação, ao tempo em que íamos


aprofundamos cada vez mais o exercício do ato de escrever sobre si, foi realizada pelo
educador Magnaldo Oliveira dos Santos267 e a educadora Hildalia Fernandes Cunha
Cordeiro268 (professora convidada para esta atividade) uma oficina com o tema “Eu, meus
pais e meus avós269”.
Para execução dessa oficina foram utilizados slides, ideogramas sankofa270,
cartazes, imagens, fotos, desenhos, textos, músicas, quadro e pincéis atômicos de diferentes
cores, tudo isso, trançado com relatos e histórias, a maioria delas, apresentadas pelos
próprios protagonistas e/ou familiares, parentes e pessoas que guardam relações de

267
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEDUC – UNEB. Consultor
em Africanidades, Lei nº 10.639/03 e Lei 11.645/08 CRE – Liberdade – SMEC. Professor convidado das turmas
de Pedagogia e Letras da Faculdade Dom Pedro II.
268
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEDUC – UNEB.
Consultora em Africanidades, Lei nº 10.639/03 e Lei 11.645/08 CRE – Liberdade – SMEC. Professora titular das
turmas de Pedagogia e Letras da Faculdade Dom Pedro II.
269
Oficina aplicada de forma exitosa na Formação Continuada de Professores para Implementação da Lei
10.639/03 em 2005/2006 na Rede Municipal de Educação de Salvador – BA. Essa oficina foi reelaboração e
readaptação dos Consultores Magnaldo Santos e Hildalia Fernandes, a partir de uma dinâmica similar realizada
pelas “Mulheres Educadoras” do CEAFRO – UFBA, que dava ênfase ao recorte de gênero e teve como resultado
performances. Vale comentar ainda que essa oficina foi apresentada no evento acadêmico realizado em
Fortaleza em 27 de março de 2009, intitulado: Seminário Nacional Africanidades e Afrodescendência:
Formação de Professores para a Educação das Relações Étnicas em Fortaleza – CE.
270
O ideograma sankofa pertence a um conjunto de símbolos gráficos de origem akan chamado adinkra. Cada
ideograma, ou adinkra, tem um significado complexo, representado por ditames ou fábulas que expressam
conceitos filosóficos. NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro,
2008, p. 31.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1111
proximidade com muitas figuras, elenco da oficina trabalhada, o que se relevou bastante
colaborativo e significativo para o processo de construção da escrita de cada participante.
Por solicitação, a oficina obteve como resultado final a construção de textos, nos
mais variádos formatos, que revelaram a riqueza das diferentes histórias de vida e que
foram, ao final, por desejos deles (as) próprios (as), socializados com todos (as). Podemos
sentir/conhecer um pouco dessa experiência, através de um trecho do relato de um
educando, transcrito logo abaixo:

“Antes de estudar a disciplina História e Cultura Afro-brasileira e conhecer um


pouco mais sobre a minha verdadeira história, eu era apenas LS. Agora sou LS,
mulher negra, filha de MF, neta de E, todas descendentes de africanos. Hoje, eu sei
a que povo pertenço e me orgulho de ser quem sou [...] Mas ainda assim, não me
considero completa, preciso buscar e entender muito mais sobre quem eu sou.”
(TRECHO DO RELATO DE L.S., 3º SEMESTRE DO CURSO DE PEDAGOGIA – UNEB,
2010.1).

A realização da oficina teve dois objetivos principais, os quais foram: o primeiro


propor reflexões sobre quem são ou foram meus/nossos avós, quem são ou foram
meus/nossos pais e quem sou eu (quem somos nós), a partir do meu/nosso olhar, da
minha/nossa subjetividade e das minhas/nossas memórias; o segundo objetivo, de ordem
mais prática, foi o de estimular a realização da escrita de si, momento no qual os (as)
educando (as) iam aprendendo a fazer à medida que iam fazendo, isto é, “aprendendo a
fazer fazendo”, praticando, entretanto, foi observado e respeitado o percurso, o tempo e as
escolhas dos sujeitos autores, participantes (protagonistas) e co-construtores do processo,
especialmente, da obtenção dos resultados coletivamente.

Realizando As “Escrevivências”

A experiência proporcionou a elaboração de uma escrita permeada de memória e


pertença sobre família e ancestrais, a partir da visão do sujeito que decide (re) elaborar e
escrever sua história ou parte de sua história. Sobre escrita de si Araújo (2011, p. 8-10) nos
diz que:

“A escrita de si – termo que caracteriza a narrativa em que um narrador em


primeira pessoa se identifica explicitamente como o autor biográfico, mas vive
situações que podem ser ficcionais [...] O sujeito que narra a si mesmo busca,
fundamentalmente, dar sentido à própria existência, fixar sua identidade e garantir
sua permanência. Escrever é, portanto, conferir significado à própria vida.”

Seguindo uma linha de pensamento que tem aderência com o que Araújo afirma
acima, Conceição Evaristo, embora apresente um recorte de raça e gênero, pois, ela traz
uma escrita marcadamente negra e feminina, que vem sempre demarcada do lugar de fala
da escritora, podemos identificar semelhanças e aproximações de sentido e ideias nas
escritas de ambos os autores. Através da sua literatura Evaristo (2005, p. 54) nos ensina que:

Se há uma literatura que nos invibiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos


vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de
representação da mulher negra na literatura. Assenhoreando-se “da pena”, objeto

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1112


representativo do poder falo-cêntrico branco, as escritoras negras buscam
inscrever no corpus literário brasileiro imagens de auto-representação [...] que se
descreve, a partir de uma subjetividade própria [...].

A partir do assenhorear-se da pena como propões Evaristo que as mulheres negras


tomam de volta para si, a autoridade, autorização e a autoria de suas escritas, suas histórias
e de suas representações. Assim: “na escre(vivência) das mulheres negras, encontramos os
desenhos de novos perfis na literatura brasileira, tanto do ponto de vista do conteúdo, como
no da autoria [...]” (EVARISTO, 2005, p. 54).
Nossa proposta de formação inspira-se nessas fontes e, de modo semelhante, busca
promover e estimular condições e espaços, através dos quais os (as) educandos (as) possam
se perceber como sujeitos protagonistas de seus processos de formação e de vida,
assenhoreando-se também da pena para compor suas “escrevivências”, se descrevendo ou
mesmo se compondo, se recompondo, ou se decompondo, a partir de seus próprios olhares,
sentidos e suas próprias subjetividades para construírem como bem salienta Evaristo,
imagens de auto-representação.

Minha história – meu olhar, minha escrita!

As etapas realizadas anteriores se revelaram bastante significativas, não só do


ponto de vista dos educadores/mediadores, mas de todos os participantes envolvidos no
processo, tanto no que diz respeito à riqueza das experiências quanto à necessidade de ir
construindo gradualmente conhecimento sobre a narrativa de si. Passar por essas etapas
ajudou os (as) educando (as) não só a ampliarem o conhecimento sobre escrita de si como
também a exercitarem o ato de escrever sobre si mesmo (as), assim como despertar o gosto
por tal modalidade.
Após ter trabalhado elementos básicos para o exercício dessa escrita, os (as)
educandos (as) se mostraram tanto mais seguros quanto mais motivados quando foram
instigados a comporem uma escrita de si. Nesse sentido Souza (2006b, p. 9) afirma que “o
conhecimento de si é uma obra de sentidos múltiplos, construída a partir de uma reflexão
autobiográfica [...]”. Seguindo esta linha de pensamento, Souza (2006b, p. 14 grifo do autor)
ainda declara que:

A escrita da narrativa remete o sujeito a uma dimensão de auto-escuta, como se


estivesse contando para si próprio suas experiências e as aprendizagens que
construiu ao longo da vida, através do conhecimento de si. É com base nessa
perspectiva que a abordagem biográfica instaura-se como um movimento de
investigação-formação, ao evocar o processo de conhecimento e de formação que
se vincula ao exercício de tomada de consciência, por parte do sujeito, das
itinerâncias e aprendizagens ao logo da vida, as quais são expressas através da
metarreflexão do ato de narrar-se, dizer-se si para si mesmo como uma evocação
dos conhecimentos construídos nas suas experiências formadoras.

Uma vez vencidas as barreiras iniciais, algumas delas de caráter pessoal, outras
ligadas às dificuldades técnico-instrumentais os (as) educando (as) transcenderam realizando
composições de si. Através de suas narrativas, eles (as) decidiram socializar imagens,
desenhos e fotografias que tinham significativas relações com suas respectivas histórias de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1113
vida, algumas impregnadas de gênero e pertencimento etnicorracial, outras permeadas de
poesia etc. Contudo, todas foram construídas com muita beleza e emoção.

[...] recebemos uma folha de papel ofício e cada pessoa pôde falar (escrever) um
pouco sobre si, foi muito interessante poder resgatar algo que é inerente a mim, ou
seja, minha subjetividade. Falei que sou mulher, mãe, tenho um filho, sou
profissional, estou na faculdade para continuar aprendendo e crescendo para que
eu possa ter os meus direitos respeitados. Para que eu possa falar de mim, eu não
poderia deixar de falar um pouco da história da mulher que ao longo da história
tem conseguido alguns espaços de fundamental importância para sua participação
no mundo político [...] (TRECHO DO RELATO DE D.Q.F., 3º SEMESTRE DO CURSO DE
PEDAGOGIA – UNEB, 2010.1).

Refletir sobre o processo de formação, sobre o avanço de nossa prática docente, o


ganho e a transcendência dos sujeitos partícipes, dessa rica “aventura” pedagógica, nos leva
mais uma vez a coadunar com Luz (2000) quando ela ressalta que ao investirmos e
realizarmos tudo isso nossa intenção é a de que possamos ter uma geração de educadores
(as) sensibilizados (as) para conceber e executar novas ideias e/ou perspectivas de educação,
possibilitando a legitimação de seus processos pessoais e subjetivos como
autoconhecimento e auto-representação, assim como reconhecimento e legitimação da
alteridade dos distintos grupos que constituem nossa sociedade e nossas relações
cotidianas, sejam nas escolas e/ou em tantos outros contextos.

Considerações conclusivas

A experiência de formação da turma do terceiro semestre de 2010.1 do Curso de


Pedagogia do Departamento de Educação – DEDC1 da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB – Campus I Salvador se revelou bastante enriquecedora tanto do ponto de vista dos
educadores/mediadores como dos (as) educandos (as)/co-construtores (as) do processo,
que para tal, lançou-se mão de diferentes recursos e técnicas, como dinâmicas, vídeos,
filmes, palestras, oficinas, estudos, pesquisas etc.
Ao empregarmos estratégias metodológicas diversificadas, nos possibilitou sugerir a
confecção de diários, que se mostrou instigante e trouxe satisfação do ponto de vistas dos
autores que desejaram compartilhar suas experiências e a construção de novos caminhos.
Percebemos que o processo da escrita de si, embora belo e empolgante, requer
bastante seriedade, responsabilidade, conhecimento e, sobretudo, sensibilidade para com o
processo do “outro” bem como para com sua história de vida.
A formação teve como diferencial a utilização da escrita de si (SOUZA, 2006b) tanto
como uma metodologia que proporciona avanços e ampliação de horizontes, quanto
ferramenta de (auto) percepção e avaliação que transcende as avaliações tradicionais que
ainda se pautam na valoração quantitativa cumulando, entre outras perdas, a
impossibilidade de enriquecimento e de qualidade do processo de formação.
A experiência mostrou que a escrita de si é um processo complexo e de amplo
sentido e que pode ser utilizado também como ferramenta de avaliação, embora não seja
esse o seu objetivo precípuo, sem comprometimentos e/ou perdas para o processo em si,
para o processo didático-pedagógico e nem para os sujeitos autores escreventes.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1114


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1116


Vivência pedagógica com xadrez numa escola do campo – a influência na formação
docente através da atividade realizada do PIBID

Manoel Henrique de Morais Neto


UESB/Itapetinga
manoelnetoneo@hotmail.com
Daniela marques alexandrino
UESB/Itapetinga
dmaqmc@gmail.com

O presente trabalho foi elaborado com o intuito de compartilhar o que de essencial tem sido apropriado por
mim sobre experiências enriquecedoras das vivências pedagógicas com xadrez. O xadrez pedagógico é uma
concepção de ensino-aprendizagem do jogo de xadrez que, interdisciplinarmente, auxilia a formação pessoal,
considerando a formação moral, psicológica, social e política de seus aprendizes. Utilizando este conceito, a
proposta foi promover a autonomia dos alunos, a ideia é que o aprendiz desenvolva habilidade de realizar
questionamentos, diálogos, análises, comparações, escolhas, que o conduzam para a tomada de decisão
através do movimento. Aliados a esses preceitos, também, preocupa-se com o desempenho escolar, no sentido
de facilitar o processo de aprendizagem dos conteúdos escolares. As atividades foram desenvolvidas numa
turma com dez alunos inseridos numa sala de aula multisseriada do ensino fundamental de uma escola
municipal do campo, localizada na zona rural do município de itapetinga, na região sudoeste da bahia. A escola
atende durante o período noturno, alunos do 1º ao 5º ano, na modalidade eja. O período de realização das
atividades foi iniciado em setembro de 2012 a julho de 2013, através do programa de bolsa de iniciação à
docência (pibid) da universidade estadual do sudoeste da bahia, campus itapetinga no subprojeto “educação
no campo: novas perspectivas e estratégias de ensino”. Como bolsista tive ao meu favor, o tempo de observar
e refletir a realidade da prática docente, dialogando com teorias aprendidas durante a graduação em
pedagogia. Este trabalho visa relatar as ações de contribuição pedagógica que servem ao mesmo tempo à
escola pública e principalmente à minha formação.
Palavras-chave: Vivência pedagógica; Xadrez; Escola do campo; PIBID.

Introdução

O presente relato foi elaborado com a preocupação de conseguir compartilhar, de


forma clara, com colegas pibideiros e pibideiras, o que de essencial tem sido apropriado por
mim nessa experiência enriquecedora na Escola Municipal Texana, localizada na zona rural
do município de Itapetinga, na região sudoeste da Bahia, tendo uma equipe de 5 (cinco)
bolsistas do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), através do subprojeto
Educação no campo: Novas perspectivas de ensino-aprendizagem, coordenado pela
professora Daniela Marques.

O trabalho começou sendo desenvolvido no turno da noite, com uma turma de dez
estudantes jovens e adultos, compondo uma classe multiseriada do ensino fundamental.
Entende-se por classe multitiseriada uma turma composta por estudantes de várias séries.
Esse tipo de classe é comum na zona rural devido a insuficiência de um número significativo
de estudantes da mesma série que justificariam estar formando turma. No caso da escola
Texana, a turma de 10 (dez) estudantes, se distribuíam entre as serieis do segundo, terceiro,
quarto, quinto e sexto ano.
[...] o problema das turmas multiseriadas está na ausência de uma capacitação
específica dos professores envolvidos, na falta de material pedagógico adequado e,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1117
principalmente, a ausência de infra-estrutura básica – material e de recursos
humanos – que favoreça a aprendizagem. Investindo nesses aspectos, as turmas
multiseriadas poderiam se transformar numa boa alternativa para o meio rural,
atendendo aos anseios da população em dispor de uma escola próxima do local de
moradia dos alunos, sem prejuízos da qualidade do ensino ofertado, especialmente
no caso das series iniciais do ensino fundamental. (Inep, 2006:19).

Para iniciar, resolvi fazer uma breve narração dos meus dois primeiros dias, numa
sala de aula por meio do PIBID, logo após, relatarei o trabalho que realizei junto a equipe de
colegas bolsistas com a oficina de xadrez pedagógico, abordando também os desafios e as
superações.
No dia 11 de outubro de 2012, foi a primeira visita à escola Texana. O primeiro
contato com os estudantes da escola municipal, com a professora da turma, que também é
nossa supervisora e a equipe de bolsista da qual faço parte. Inicialmente nos apresentamos a
turma e a professora, além de falamos rapidamente do PIBID e do nosso objetivo ali. Em
seguida, ficamos observando a aula, principalmente, a relação da professora com os
estudantes. Fiquei procurando observar tudo, inclusive a minha postura e a dos meus
colegas. Porém o que dei a importância de registrar, desse primeiro dia, foi a forma como a
professora iniciou a aula, fazendo uma brincadeira para revisar o conteúdo da aula passada.
A brincadeira é nomeada de “Verdade ou fala sério?” e ocorreu da seguinte forma: A
professora fazia uma pergunta para toda a turma e ela mesma dava uma resposta, caso a
resposta apresentada por ela fosse correta os estudantes confirmavam dizendo “verdade”,
mas caso eles acreditassem que a resposta dada por ela fosse falsa a turma respondia “fala
sério!”. É importante ressaltar que como a turma é multiseriada as perguntas foram
elaboradas de acordo com as séries de cada estudante. Feita a brincadeira percebi a
dificuldade da professora para dá conta de uma turma com várias séries.
Um outro fato que achei interessante expor foi quando fui colocar uma cadeira para
ela sentar e ela me respondeu: - “Não precisa! Não dá tempo sentar”. Já fiquei sentido a
condição da professora com relação a tempo. Ela esclarece as dúvidas e faz orientações de
cadeira em cadeira, quando fecha uma rodada de atendimento já se inicia outra, por isso ela
não tem tempo para sentar, justificando assim a afirmativa que obtive dela. Nesse primeiro
dia não realizei intervenção nenhuma, apenas fiz observações.
No segundo dia, 18 de outubro de 2012, presenciei um fato que pude constatar como
rotineiro: uma oração no início da aula. Como todos participam, voluntariamente, acredito
que esse ritual é importante até mesmo para uma coesão maior do grupo.
Depois da oração, a professora realizou perguntas de revisão dos exercícios de
matemática, e continuou a explicar o conteúdo para cada aluno, individualmente, de cadeira
em cadeira. Nesse dia já interferimos no sentido de auxiliar a professora, orientando os
estudantes em suas atividades. Nessa aula, que era da matéria matemática, pude identificar
que a turma tinha dificuldades, como por exemplos a de não saber distinguir os sinais das
quatro operações e de desorganização das parcelas, além da dificuldade de interpretação
das questões.
Em contra partida, pude notar a presença de vários jogos que poderiam ser
trabalhados como ferramentas de auxílio, até porque eles estavam lá com está finalidade,
mas por algum motivo ainda não haviam sido usados com aquela turma.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1118


Foi a partir dessas observações iniciais feitas pela equipe de bolsistas composta por
Alexandre Santos, Ana Maria, Manoel Henrique e Neide Pereira, que surgiu a ideia da
realização de uma oficina que atendesse ao mesmo tempo o problema com a matemática e
o problema com a leitura. Então surgiu a ideia de trabalhar com o xadrez pedagógico de
maneira interdisciplinar.
Passamos então a pensar em como realizar essa oficina e nos deparamos com alguns
desafios. O primeiro desafio é trabalhar jogo na escola com estudantes trabalhadores
visivelmente cansados. Com todos os problemas educacionais comuns em todas as escolas
urbanas, além de trabalharem o dia inteiro, os estudantes da zona rural ainda enfrentam o
transporte escolar de longas distancias nas péssimas condições das estradas rurais, todos os
dias, e ainda assim se fazem presentes na escola por acreditarem na educação. Diante o
exposto, é de muita responsabilidade para quem está regendo a sala desenvolver atividades
que sustentem a motivação e conquiste a participação dos estudantes-trabalhadores que
tratam os assuntos da escola como “coisa séria”.
Outro desafio é a pouca referência de trabalho com xadrez escolar em escolas do
campo com educação de jovens e adultos, o que obrigatoriamente faz com que a atenção
seja ainda maior sobre como a oficina vem sendo apresentada. E por fim, o terceiro desafio
é quanto aos recursos pedagógicos. No caso da escola Texana, só tínhamos dois tabuleiros
velhos com peças danificadas para começar a oficina.

O Xadrez

É um jogo que trabalha o raciocínio lógico-matemático, noções de espaço, além de


potencializar a linguagem, a criatividade, capacidade de abstração, observação, reflexão,
análise e síntese, tendo como diferencial o grande potencial lúdico.

No xadrez pedagógico o adversário deve ser ao mesmo tempo um parceiro, pois,


além de ser um jogo em dupla, o aprendizado será favorecido com o trabalho coletivo e
compartilhamento dos saberes.
Vale destacar também a questão das regras. É importante conhecer e considerar as
leis que regem qualquer sistema, e no sistema do jogo de xadrez a noção de direitos e
deveres, dá consciência de si e do respeito ao adversário é exercitado em todo o tempo.

O xadrez pedagógico

É uma concepção de ensino-aprendizagem do jogo de xadrez que


interdisciplinarmente auxilia à formação da pessoa, considerando a formação moral,
psicológica, social e política de seus aprendizes.
A oficina utilizando-se do conceito acima propôs a promover a autonomia dos alunos,
a ideia é que o aprendiz desenvolva o poder de realizar questionamentos, diálogos, análises,
comparações, escolhas, que o conduzam para a tomada de decisão através do movimento.
Preocupa-se também com o desempenho escolar, no sentido de facilitar o processo de
aprendizagem dos conteúdos escolares.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1119


A inserção do jogo do xadrez nas escolas deu-se através da LDB 9394/96, em seus
artigos 26 e 27, incluir na parte diversificada dos currículos e também na parte consagrada à
promoção do desporto.
A utilização do jogo não deve ser uma alternativa de recreação, ou de alguma forma
reducionista, separado do currículo, mas sim utilizado, pedagogicamente, sendo então
muito mais rico, servindo inclusive de um meio de praticar a interdisciplinaridade, pois para
Angélico e Porfírio (2010)

[...] o jogo de xadrez tem múltiplos usos na educação escolar, entre as suas
possibilidades, pode-se acrescentar a sua apresentação aos alunos como tema
transversal, enriquecendo suas aprendizagens e permeando a prática educativa em
diversas áreas ou mesmo inserindo-o como disciplina desde as séries iniciais.

Pensando no xadrez para jovens e adultos

Buscando construir os alicerces da oficina para um público de jovens e adultos da


zona rural e com dificuldades em matemática e em leitura e escrita, foram destacadas e
adotadas alguns indicativos de algumas teorias que se encaixam para fundamentação de
nosso trabalho. A primeira delas é a Teoria das Inteligências Múltiplas, que veio revolucionar
o meio da psicologia e consequentemente as outras ciências, porque descobre a questão da
inteligência de uma forma pluralizada. Ou seja, cada indivíduo possui diversos tipos de
inteligências, o que chamamos, em linguagem comum, de dom, competência ou habilidade.
Aquelas pessoas rotuladas como menos inteligentes nos testes de QI, agora, são
vistas de outra forma, porque leva – se em consideração o ambiente cultural onde se deu o
desenvolvimento da pessoa, pois, as inteligências seria justamente a capacidade de resolver
problemas ou elaborar produtos valorizados em ambientes determinados.
Foi acompanhando pessoas que haviam sido consideradas de baixo desempenho ou
rendimento que Howard Gardner, psicólogo e pesquisador da Universidade Norte
Americana de Harvard, liderando vários outros pesquisadores, desenvolveram a teoria das
Inteligências Múltiplas, a partir de 1980.
Gardner identificou as inteligências linguística, lógico-matemática, espacial, musical,
cenestésica, interpessoal e intrapessoal. Deixando em aberto à identificação de novas
inteligências ou a revisão das já identificadas.
Partindo dos pressupostos da Teoria das Inteligências Múltiplas, de que existem vários tipos
de inteligências, sendo que qualquer pessoa pode aprender ou melhorar qualquer uma das
inteligências, e que como as inteligências trabalham juntas, o enriquecimento de uma
implica no desenvolvimento da pessoa como um todo, é assim que pretendemos de forma
pedagógica colaborar para o melhoramento do desempenho escolar através do xadrez como
ferramenta pedagógica.
Além do jogo de xadrez estar diretamente relacionado com a inteligência lógico-
matemática, devido ao cálculo de variantes no tabuleiro, e a inteligência espacial, que é um
fundamento para análise de posições e controle das peças no tabuleiro, há ainda um leque
muito grande de possibilidades de desenvolvimento de outras inteligências a serem
observadas como: a cinestésica-corporal, valorizando a importância do corpo no movimento
que executa o raciocínio, exaltando a tomada de decisão da pessoa em uma situação
problema; e a inteligência linguística fortemente presente nas estruturas do pensamento
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1120
para leitura e compreensão. Como o xadrez é praticado em dupla, pode favorecer o
desenvolvimento também das Inteligências intrapessoal e interpessoal, pela interação e
contato direto com o outro, levando em consideração a importância que o outro tem na
formação da pessoa.
Enfim, são várias as possibilidades de desenvolvimento que o aprendizado
pedagógico do xadrez pode proporcionar. Quando adota-se uma conceção plural da
inteligência levando em consideração as singularidades de cada pessoa que são defendidas
pela teoria das inteligências múltiplas, quebra-se aqui preconceitos como “xadrez é para
inteligentes”, “eu não posso aprender esse jogo”, ou mesmo que “está velho de mais para
aprender” e é na quebra dessa última expressão que apresentamos o xadrez para jovens e
adultos.

Uma breve abordagem sobre o desenvolvimento cognitivo humano

Para se trabalhar com educação de adultos é fundamental conhecer as principais


teorias que tratam o desenvolvimento cognitivo, e tal investigação perpassa pela infância.

Para essa abordagem, adotamos a teoria do desenvolvimento da inteligência humana de


Piaget, ao qual, nessa perspectiva, a criança inicia seu desenvolvimento com as funções
mentais limitadas ao exercício dos aparelhos reflexos inatos, pois é através de movimentos,
mesmo que não tenham uma finalidade utilitária ainda, que a criança vai conquistando
progressivamente o aperfeiçoamento de percepção e habilidades, constituindo o período
sensório-moto. Nesta fase inicial os jogos são de exercício e situa-se entre zero e dois anos
de idade.
De dois a sete anos de idade, o período é chamado de pré-operatório, é o que marca
a passagem do período sensório-motor ao pré-operatório e o advento da linguagem, ou seja,
o surgimento da função simbólica.
Com a aquisição de esquemas sensoriais-motores no período anterior, somado agora o
desenvolvimento da linguagem, a criança já começa a exercitar a capacidade de usar a
lógica, embora ainda de forma limitada, pois o egocentrismo, característico do período,
ainda aponta para a incapacidade de compreender a realidade da qual não seja parte. E essa
incapacidade diminui conforme aumenta a aquisição de esquemas conceituais. Por isso a
compreensão da realidade ainda se dá de forma desequilibrada neste período, é fase dos
jogos simbólicos.
De sete a doze anos, situa-se o período das operações concretas, onde a criança
passa a compreender a realidade levando em consideração o outro. Portanto, já consegue
estabelecer relações e pontos de vistas diferentes, usando a lógica de forma mais coerente.
A interiorização de ações também é uma característica importante nesta fase, a
criança começa a realizar operações mentalmente. É importante ressaltar que a capacidade
de imaginar a reversibilidade é desenvolvida ao longo dos períodos operatório concreto e
operatório formal.
De doze anos em diante, acontece o período das operações formais, onde há uma ampliação
das capacidades adquiridas nos períodos anteriores. Agora a criança já consegue raciocinar
através de hipóteses, consegue também criar esquemas conceituais abstratos, realizar
operações mentais com uso de lógica apurada, além de consegue discutir, criticar e propor.
Ou seja, já há uma disponibilidade para autonomia.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1121
Aqui que inserimos o jogo de xadrez para adultos, pois o ensino-aprendizagem do
xadrez é relevante devido à possibilidade de potencialização da capacidade de analisar uma
realidade que se apresenta de forma lúdica, incentivando a iniciativa baseada na autonomia.
E sobre a questão da autonomia é importante compreender o que a teoria piagetiana
traz sobre a moral. Para Piaget o desenvolvimento da moral é composto por três fases:
A primeira é anomia que compreende a crianças de até cinco anos, em que a as
regras são seguidas pelas ações de hábito, de obediência ou desobediência, mas sem a
capacidade de relacionar o certo ou errado, bem e mal.

A segunda é a heteronomia e se dá entre crianças de até nove ou dez anos de idade,


em que a moral representa autoridade, isto é, as regras não correspondem a um acordo
mútuo firmado entre os jogadores, mas sim como algo imposto pela tradição e, portanto,
imutável.
A terceira consiste na autonomia, é o amadurecimento de compreensão das regras,
que através de julgamento crítico possibilita acordos mútuos, respeito e legitimação,
corresponde ao último estágio do desenvolvimento da moral.
Esse conceito de autonomia é fundamental para o delineamento e proposta da oficina de
xadrez pedagógico.

Desenvolvimento da oficina

Objetivando desenvolver novas perspectivas de ensino aprendizagem a partir do


xadrez pedagógico, a oficina começou a ser elaborada no mês de outubro de 2012, com
conclusão prevista para Julho de 2012. Sendo composta por quatro etapas, cada etapa com
oito seções e cada seção com cinquenta minutos de duração, totalizando uma carga horária
de 28 horas, distribuídas em 32 (trinta e duas) seções.
Ainda em andamento, a oficina se encontra na quarta etapa e será concluída no mês
de junho de 2013.
Envolve principalmente as áreas de conhecimento de matemática e português, mas sempre
dialogando com outras áreas, como por exemplo, na primeira etapa onde a oficina foi
apresentada pela contação da lenda de Sissa, logo em seguida, iniciaram-se as discussões
acerca do conhecimento dos alunos sobre as lendas populares, trabalhando assim com
filosofia e história, por exemplo.
Ainda na primeira etapa, trabalhando um conteúdo específico do xadrez, o tabuleiro, foi
possível discorrer sobre os conteúdos do currículo da escola, como soma, quadrado,
direções e sentido.
Na segunda etapa, apresentando os valores das peças, foi possível trabalhar
subtração, multiplicação e divisão. Já na décima quinta seção, ainda na segunda etapa foi
trabalhado leitura e escrita quando o assunto específico era a linguagem exadristica.
Frente ao exposto, em caráter de oficina, pensando na proposta de xadrez que esse
trabalho apresenta, destacam-se algumas particularidades quanto a forma de organização
da sala e da relação entre as pessoas envolvidas na oficina.
Nas seções mais teóricas a sala deve estar sempre organizada de maneira que a posição dos
estudantes forme um semicírculo. A exposição dialogada do professor deve incluir a todo
momento a participação argumentativa dos estudantes com intervenções livres e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1122


questionamentos. Já ao refere-se as seções mais práticas, os emparceiramentos não devem
ser isolados de dupla em dupla, mas sim em torno de uma única mesa.
A avaliação é puramente qualitativa, privilegiando o processo de maneira
reconstrutiva, como é fundamental a autonomia do estudante, saber pensar, a aprender a
aprender, a argumentação e produção textual, e elaboração com mãos próprias de tomadas
de decisões através do movimento, fruto do raciocínio coerente, nessa perspectiva
quantificar a aprendizagem não tem utilidade pedagógica.
O que é de fato fundamental é a descrição dos avanços e dificuldades de cada pessoa
durante o processo, para as intervenções necessárias reconstruindo a didática e os seus
recursos buscando promover a aprendizagem.

Considerações parciais

A oficina está em andamento e como resultados esperamos através da avaliação da


quarta etapa constatar uma melhoria significativa dos estudantes com relação as
dificuldades em matemática, português e nas outras disciplinas. A avaliação será concluída
com as descrições de desempenho nas atividades finais da oficina e comparação com
desempenho nas disciplinas.
Com a experiência da oficina de xadrez, já surgiu mais uma ideia como proposta, que
é a de desenvolver uma oficina de ciências, que privilegie a leitura e escrita, articulando
outras árias de conhecimento de forma interdisciplinar.
A partir desse parágrafo, gostaria de sair um pouco do relato desse envolvimento na oficina
e adentrar em questões mais gerais nesse período de contato com a escola.
Antes de fazer parte do PIBID, não conhecia a escola do campo, minhas ideias sobre a
educação do campo eram apenas baseadas em teorias e textos. Depois de estar em contato
direto com a escola, pude construir alguns questionamentos sobre a realidade da escola
municipal Texana. Farei aqui uma breve abordagem sobre a questão o ensino e da
aprendizagem, sobre a gestão, e sobre uma perspectiva política.
Com relação a ensino-aprendizagem, eu diria que a escola Texana vai bem, ou até, melhor
que muitas escolas urbanas. A professora consegue ter uma sequência de trabalho,
cumprindo as etapas estabelecidas e desenvolvendo com os alunos uma relação muito
positiva pedagogicamente, pela confiança que a turma deposita nela, e em contra partida,
pela dedicação e compromisso que a professora tem com a turma.
Apesar de não ser concursada, nem ser pedagoga, Afinal é comum escolas rurais
teres professores com menor nível de escolaridade, até porque não são todos que querem
enfrentar as consequências da sobrecarga de trabalho, da alta rotatividade das dificuldades
de acesso e localização, não posso fechar os olhos para essas duas questões delicadas.
Diante desse fato, até onde a dedicação e compromisso do professor pode compensar a
pouca formação?
Outra questão interessante está relacionado a gestão da escola Texana, pois não há uma
diretora para cada escola do campo. O que acontece é que apenas há uma diretora para
todas as escolas do campo no município de Itapetinga, não sendo assim possível a presença
de um gestor no cotidiano de cada escola do campo.
É entendido que o fato de serem salas multiseriadas e caracterizadas por uma
demanda pequena de estudantes que justifica-se esse modelo de gestão, mas, cabe uma
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1123
pergunta: Se houvesse condições de ter um gestor por escola, até que ponto a escola
ganharia com isso?
Ainda há questões mais delicadas, como por exemplo a dificuldade de melhoramento
da estrutura física da escola. É um pouco chocante saber que se o proprietário da fazenda,
que cedeu o espaço para a escola do campo, mudar de ideia e quiser fechar a escola nada
poderá fazer. Essa dependência de “favor” poder revelar uma política ainda frágil de
educação do campo.
Quanto a estrutura física da escola, nós, bolsistas, já levantamos duas possibilidades
de intervenção. A primeira quanto a melhoria da iluminação externa na frente da escola. Já a
segunda é com relação ao piso da escola que ainda é de cimento. Acreditamos que essas
duas ações será um bom início para melhoramento da estrutura física da escola Texana.
De maneira breve, tudo que foi relatado neste trabalho são as principais ideias eleitas
para compartilhamento. Espero que essas palavras possam colaborar com os colegas que
encontram-se envolvidos com a iniciação à docência. Principalmente, a docência na
educação do campo.

Referências
TIRADO, Augusto C. S. B. Meu primeiro livro de xadrez: curso para escolares, Curitiba:
Expoente, 1995. 122 p.
ARMSTRONG, Thomas. Inteligências múltiplas na sala de aula. 2.ed. Porto Alegre: Artmed,
2001, 192 p.
GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Howard Gardner; tradução
de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
LA TAILLE, Yves. Prefácio. In: PIAGET, Jean. A construção do real na criança. 3 ed. São Paulo:
Ática, 2006.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1124


Atos de currículo como mediação no processo de construção das políticas de sentido da
didática no contexto da formação docente

Maria Cláudia Silva do Carmo


UEFS
mcarmo9@yahoo.com.br

Este estudo se constitui recorte da tese de doutorado Atos de currículo como mediação no processo de
construção das políticas de sentido da Didática no contexto da formação docente originada das narrativas dos
estudantes e professores dos cursos de Licenciatura da Universidade Estadual de Feira de Santana- UEFS acerca
dos sentidos atribuídos a disciplina Didática. Objetivou compreender como os atos de currículo produzem
mediação no processo de construção das políticas de sentido da Didática. A investigação teve como base
teórica os estudos de Dominicé (1988), Honoré (1980), Josso (1988, 2004), Macedo (2010) e Pineau (1988), que
compreendem a formação como processo que se dá no sujeito que aprende. A pesquisa de natureza qualitativa
adotou como inspiração e escolha dos caminhos metodológicos a etnopesquisa crítica e multirreferencial. A fim
de compreender o objetivo da pesquisa optou-se pelos dispositivos: observação participante, grupo focal,
entrevista aberta e análise de documentos. A pesquisa em sua tessitura abre-se para algumas brechas e
possibilidades: os atos de currículo produzem mediação nas emergências de autorização dos protagonistas da
disciplina Didática, estudantes e professores como atores curriculantes e produtores de atos de currículo;
constroem e desconstoem políticas de sentido em relação à Didática. Os atos de currículo como mediação
empoderam os atores curriculantes a alterarem as políticas de sentido da Didática e os atos de currículo como
mediação contribuem na construção de políticas de sentidos de Didáticas outras. Políticas de sentido de
Didáticas multirreferenciais, hibrídas e implicacionais, assim como, tais políticas são dialógica e dialética,
abrem-se para possibilidades de Etnodidáticas.
Palavras-chave: Atos de currículo; Políticas de sentido; Didática; Formação de profesores.

Introdução

Este estudo se constitui recorte da tese de doutorado Atos de currículo como


mediação no processo de construção das políticas de sentido da Didática no contexto da
formação docente originada das narrativas dos estudantes e professores dos Cursos de
Licenciatura da Universidade Estadual de Feira de Santana- UEFS acerca dos sentidos
atribuídos a disciplina Didática.
Os fios motivacionais que me atraíram e, igualmente, me tocaram para pesquisar os
atos de currículo de estudantes e professores no processo de construção das políticas de
sentido da Didática, originou-se da minha experiência como professora da disciplina Didática
nos Cursos de Licenciatura da UEFS, desde dois mil e dois.
Ao ministrar a disciplina Didática para os estudantes dos Cursos de Licenciatura,
especificamente dos Cursos de Matemática e Geografia, deparei-me com narrativas de
alguns estudantes sobre a Didática, responsabilizando-a como o componente curricular que
deveria “ensinar como ensinar”, bem como, “ensinar como se ser professor” ou como
“ensinar a dar aulas”. Tais narrativas inquietaram-me por depositarem e acreditarem que
um único componente curricular daria conta e, ao mesmo tempo, seria capaz de garantir a
formação docente, no que concerne aos aspectos destacados.
Tais narrativas me incomodavam e, ao mesmo tempo ecoavam como provocação
arrebatadora acerca dos sentidos que atribuíam à disciplina. Ao revelarem-nas questionava-
me: como construíram tais sentidos? Porque estes sentidos atribuídos à disciplina

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1125


aproximam-se da perspectiva da Didática Instrumental? Não seria pretensioso colocar a
disciplina Didática responsável em prepará-los a ser professor?
Por outro lado, percebia que nestas narrativas comunicavam compreensões em torno
da disciplina e problematizavam no tocante aos desafios que cercam o campo da mesma.
Além disso, compreendia que as narrativas dos estudantes se entrelaçavam às narrativas de
alguns professores-formadores em relação à Didática, assim, como tais narrativas destes
professores se embrenhavam nas narrativas dos estudantes.
Assim, o entrelaçamento de tais narrativas me sensibilizou quanto ao modo dos
protagonistas se produzirem atores curriculantes praticantes de atos de currículo ao
interagirem com atos de currículo na esfera do instituído, bem como, a tensão entre ser
estudante, ser professor produtor de conhecimento na construção das políticas de sentido.
Foi nesta trama de múltiplos fios que se fundou a questão de pesquisa: como os atos
de currículo de estudantes e professores como mediação contribuem no processo de
construção de políticas de sentido da Didática dos estudantes dos Cursos de Licenciatura da
UEFS?
Neste veio, estabeleceram-se as seguintes questões norteadoras: em que medida os
atos de currículo de estudantes e professores no contexto da disciplina Didática colaboram
para formação dos estudantes no que se refere às políticas de sentido desta disciplina?
Como os estudantes dos Cursos de Licenciatura constroem as políticas de sentido da
Didática com base nos atos de currículo desenvolvidos por estudantes e professores? Que
políticas de sentido da Didática os professores dessa área demonstram através de seus
próprios atos de currículo?
Nesta perspectiva, a pesquisa objetivou compreender como os atos de currículo de
estudantes e professores na disciplina Didática produzem mediação no processo de
construção de políticas de sentido da Didática pelos estudantes dos Cursos de Licenciatura da
UEFS. Daí a opção pela pesquisa de natureza qualitativa e, igualmente, pela Etnopesquisa
Crítica e Multirreferencial justificou-se, assim como, pelas epistemologias da fenomenologia
e da hermenêutica crítica e, também a inspiração pelo método de tipo etnográfico, para
proceder às interpretações da percepção das compreensões do campo pautada na análise
de conteúdo de base hermenêutica.

A tessitura dos conceitos: atos de currículo e políticas de sentido na formação docente

Para compreender as políticas de sentido271 em relação à Didática e à produção de


atos de currículo272, volto às minhas itinerâncias como professora da referida disciplina, na

271 Conceito que tomo a partir dos estudos de Macedo (2004), Bakhtin (1993), políticas de sentido relacionado
ao conhecimento e ao sujeito como ator-autor do conhecimento, isto é, como os sujeitos sociais instituem a
realidade numa perspectiva fenomenológica, como se dão as tramas entre o instituído e as forças instituintes,
entre os sentidos ontológicos na construção do real.
272 Conforme Macedo (2013), atos de currículo se configuram, através de ações situadas de atores sociais
que, portando e criando sentidos e significados, portanto uma configuração ideológica na sua dinâmica
responsível e responsável, inspiração bakhtiniana, se atualizam como possibilidades de alteração de toda e
qualquer cena curricular. Trata-se de um conceito eminentemente processualista no campo do currículo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1126


Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS, evidenciando as trilhas vivenciadas por
mim, enquanto professora dessa disciplina, refletindo sobre as possíveis possibilidades
tecidas nesta experiência formativa.
A maneira como os estudantes interpretam a Didática em meio à multiplicidade das
realidades socioculturais que vivenciam no contexto do seu curso de formação me faz pensar
que os mesmos já apresentavam políticas de sentido sobre Didática. Neste veio, fui me
interessando cada vez mais pelos estudos sobre currículo proposto por Macedo (2007, 2010)
no campo da formação. O autor pontua que a problemática da formação começa na
concepção curricular e que há um esvaziamento nos estudos sobre formação articulados ao
currículo.
Nesse sentido, discutir formação implica também tomar as histórias de vida dos atores
sociais e seu processo de aprendizagem. Josso (1988) discute a formação e o lugar que têm
as experiências neste processo para a transformação das identidades e subjetividades. Pensa
a formação enquanto processo que se conecta nas experiências construídas através das
singularidades das histórias de vida. Esta autora nos convoca a refletir sobre a nossa
consciência na formação. Formamo-nos quando “integramos na nossa consciência, e nas
nossas atividades, aprendizagens, descobertas e significados efetuados de maneira fortuita
ou organizada, em qualquer espaço social, na intimidade conosco próprios ou com a
natureza”. (JOSSO, 1988, p. 44). Aqui Josso fala da formação constituída de integridade na
consciência e nas atividades vivenciadas, apreendidas em valores múltiplos em situações
adversas. Nesse sentido, os processos de formação refletem em si a formação histórica e
pessoal de cada sujeito com e no mundo, em percepções diversas de sentidos em uma
construção permanente da condição humana com base em Macedo (2010, p. 49), a
formação é compreendida como “fenômeno hipercomplexo”. Sua natureza intersubjetiva e
sua relação com o contexto vêm dizer que “a formação não se explica, não está prescrita em
lugar nenhum; compreende-se a formação” (MACEDO, 2011, p. 34).
Nessa direção, Macedo (2007), constrói o conceito de atos de currículo no âmbito da
formação, isto é, os atos de currículo como processo que visa à formação. Assim, diz:

Atos de currículo são todas as atividades que se organizam e se envolvem visando


uma determinada formação, operacionalizadas via seleção, organização,
formulação, implementação, institucionalização e avaliação de saberes, atividades,
valores, competências, mediados pelo processo ensinar/aprender ou sua projeção.
(MACEDO, 2007, p. 38).

Os atos de currículo, como mediação possibilitam as mudanças e alterações das


posturas e tomadas de decisões sobre as questões de currículo, desse modo, estes atos são
compreendidos enquanto dialogia, abrindo-se para as possibilidades e compreensões em
torno do currículo e dos atores curriculantes.
Para Macedo (2013) os atos de currículo são compreendidos como possibilidades dos
atores curriculantes mudar ou conservar os seus significantes, “de alguma maneira, suas
concepções e práticas, como definem situações curriculares e têm pontos de vista sobre as
questões, como entram em contradições, produzem ambivalências, paradoxos e derivas”
(MACEDO, 2013, p. 33).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1127


Estes atos de currículo tornam-se possibilidades de alteração e, ao mesmo tempo,
respeitam às múltiplas e diversas maneiras de compreender as culturas, conhecimentos e
saberes, sobretudo, a corporeidade, como nexo vital que nos constitui com todas as nossas
necessidades, linguagem, amor, cultura, emoções, sentimentos, desejos, relações e as
conexões com o mais amplo de nossa própria amplitude.
Compreender os atos de currículo como mediação de políticas de sentido da Didática
como processos dinâmicos na construção de saberes implica afirma que os atos de currículo
constituem-se também dispositivos da formação. Dei-me conta que os atos de currículo
tomam uma dimensão ampla, uma vez que os estudantes e professores no seu cotidiano
convivem com os mesmos, não só dos professores da disciplina Didática, dos demais, assim
como os atos de currículo da instituição e dos próprios colegas.
Considerando-se atos de currículo como mediação do conhecimento da formação,
frente ao instituído e às forças instituintes, os mesmos são desenvolvidos no contexto da
disciplina contribuindo, assim, na construção de políticas de sentido da Didática. Professores
e estudantes processam questões instituídas pela universidade e tomam decisões sobre
tudo que diz respeito a eles. Pressupõe-se que há uma tensão entre o instituído e o
instituinte que vai desdobrar-se no agir destes estudantes e professores em sala de aula, na
relação com o conhecimento, no processo formativo. Tais atos se encontram nessa linha
tênue entre as tomadas de decisões frente ao instituído que podem parecer
incompreensíveis pelo desconhecimento dos reais motivos de fatos e ações que levaram a
tomar tal decisão. Daí querer compreender como os atos de currículo contribuem nas
políticas de sentido da disciplina, entendendo que estes, quando em formação melhor
podem falar dessa tensão entre o instituído e o instituinte.
Na minha convivência com alguns professores de Didática do DEDU/UEFS e dos
estudantes dos Cursos de Licenciatura, pude percebê-los como produtores de atos de
currículo em suas práticas, ao tomar a fala de Macedo (2007) que diz: “todo conhecimento
eleito como formativo constitui-se em ato de currículo”.
Pensar sob tais atos como síntese de atividade instituída/instituinte na dimensão da
disciplina está diretamente relacionado à formação de professores, produção e construção
do conhecimento junto aos estudantes e como os professores fazem a articulação entre os
aspectos instituídos, que dizem respeito à formação e interpretação no contexto das
práticas, quando deliberam e ressignificam para os estudantes, também produtores de atos
de currículo. Essas sínteses do instituído e instituinte, em que professores e estudantes
exercem na prática pedagógica, na construção do conhecimento e no processo formativo
nos cursos de formação se constituem atos de currículo.
Considero vital também, a discussão de ato apresentado por Bakhtin (1993), em sua
obra Por uma Filosofia do Ato, ao tratar de um aprofundamento sobre os atos vividos e a
representação dos mesmos tanto no mundo cultural (teórico) quanto da vida (singular),
articulado à existência de um ser concreto, situado, que se faz sujeito ativo inserido no
contexto sociocultural, enfatizando a importância do pensamento não indiferente, mas
firmado, valorado, ao assumir o caráter de responsabilidade e respondibilidade em um dado
momento histórico.
Na tentativa de aproximar a compreensão de ato aos atos de currículo, faz-se
necessário destacar o termo russo postupok utilizado por Bakhtin (1993, p. 95), o qual
designa “ato em realização, o próprio ato ou ação individualmente responsável”.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1128
Assim, neste aporte filosófico, compreendo a ideia de atos de currículo, aqui abordada
por Macedo (2007, 2011), ao tratar da implicação: ético-política e processual que estes
solicitam na atitude de responsabilidade e participatividade que os mesmos exigem
aproximar-se dessa ideia da qual se ocupou Bakhtin ao situá-lo na dimensão do agir
humano.
A nossa vida é uma teia de atos, somos tecidos nesse movimento de interlocução na
relação com o mundo e com nós mesmos assumindo um caráter de realização respondível e
responsável. Estes são aspectos fundamentais na compreensão de atos de currículo, no
contexto de professores e estudantes, os quais realizam atos ao experienciar relações
movidas por interesses e intenções.
Para Macedo (2004), os atos de currículo têm um papel importante como mediadores
de outra qualificação e, nesse sentido, são pensados como posicionamento e
descentramento político-culturais. Passo a compreender os atos de currículo enquanto
dimensão ética, onde o sujeito se responsabiliza pelo seu pensar, o qual se torna singular e
diz respeito a um sujeito único. Isso significa que os atos de currículo dos sujeitos no
contexto da disciplina Didática da UEFS solicitam dimensão ética, uma vez que estes pensam
e ao mesmo tempo são convocados a pensar sobre o que pensam.
Logo, o entendimento acerca da noção de políticas de sentido centra-se na
possibilidade dialógica e dialética, conforme nos diz Macedo:

Qualquer discussão envolvendo os sentidos e a pertinência socioeducacional das


noções deve-se aproxima-los de suas “bacias semânticas” ou política de sentido,
bem como das possibilidades e dos limites praxiológicos que carregam,
tencionando com os coletivos diferenciados que os acolhem como possibilidades.
(MACEDO, 2004, p.72-73)

Dessa forma, penso políticas de sentido como possibilidades das leituras plurais
(teórico-práticas), diferentes ângulos, pontos de vistas que implicam tantas linguagens
apropriadas às descrições exigidas em função de sistemas de referenciais distintos,
considerados, reconhecidos, como não redutíveis uns aos outros. Assim penso, as políticas
de sentido como possibilidade dialógica com complexas teias culturais e tessituras subjetivas
e intersubjetivas, visto que, de acordo com Macedo (2004, p. 45), “em toda construção
humana há políticas de sentido”.
De acordo com os estudos de Bakhtin (1986), a linguagem se caracteriza como
mediação na construção de sentidos pelos sujeitos que também são sujeitos sociais.
Sujeitos, pois, que produzem sentidos na sua trajetória cultural e nas relações com o outro
construindo, assim, as redes de produção de sentidos que se transformam constantemente.
Desse modo, compreendo as políticas de sentido na relação com e no mundo, nós
atores sociais estamos construindo e negociando tais políticas a partir das escolhas,
percursos, lutas, enfrentamentos, conquistas, entre tantas outras situações e
posicionamentos diversos e conforme minha apreensão acerca da ideia de Schultz (1970)
sob “o mundo da vida cotidiana” por tratar-se de um mundo influenciado pelas políticas de
sentido nas interações entre sujeitos elaboradores de saberes.
Dessa foram, as políticas de sentido acerca da Didática estão vinculadas e implicadas
aos sujeitos da formação, uma vez que são construídas por estudantes em face de suas
intenções, interesses e interpretações. Tais políticas, no âmbito da Didática, são construções
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1129
tecidas nas relações socioculturais realizadas no plano das experiências, possibilitando a
composição de redes de significados e sentidos tramados neste contexto.
A cada instante de nossa vida vamos construindo outras políticas de sentido com os
aspectos significativos da nossa cultura, em relacionamento com o mundo por interpretar e
criar tantas formas de significados. Além disso, a subjetividade dos sujeitos está implicada na
construção das políticas de sentido da Didática, articulada com o mundo e o modo de ser e
de existir de cada sujeito, ou seja, dado a cada um perceber-se e incorporar os saberes
conforme o seu jeito de ser frente às pluralidades de realidades socioculturais e suas inter-
relações. Então, as políticas de sentido perpassam a cultura dos estudantes na articulação
com tais redes e nas relações com e no mundo. Entendo-as como intercomunicações que
podem ser viabilizadas em grupos, ideias, propostas, documentos, cujas redes dizem
respeito às relações que se estabelecem entre as diversas esferas.

O que narram os estudantes sobre os atos de currículo em seu processo formativo.

As narrativas dos estudantes sobre os atos de currículo em seu processo de


formação, ultrapassaram a borda do instituído, romperam com o estabelecido e novos fios
foram sendo tecidos. Assim, encontram-se rodeadas de encontros e desencontros,
mergulhadas nas multiplicidades de fios em movimento, nas tramas entrelaçadas aos atos
de currículo, no contexto da sua formação articulada ao campo da disciplina Didática.
Os estudantes foram relatando as dificuldades e experiências com a disciplina,
trouxeram à tona as frustrações e descobertas em relação às abordagens realizadas e os
atos de currículo produzidos na relação sociocultural e pedagógica.
Estas emergem das situações e acontecimentos vivenciados na disciplina, em que os
estudantes, em seu modo próprio de dizer sobre seus sentidos e significados construídos
praticam atos de currículo articulados às expectativas e frustrações.

O que eu tenho a falar. Na realidade, a disciplina Didática eu tinha uma posição, né.
Um olhar que ela iria me guiar pra uma situação e a disciplina me guiou pra outra,
outro contexto, né! A questão assim, às vezes eu ficava folheeando alguns livros de
Didática da Matemática como ontem eu estava folheeando e lá constava como sair
de situações como: dificuldade com subtração. Né! Então, eu fiquei me
questionando será que a ementa do curso de Matemática ela privilegia essas
situações problemas que a gente vai encontrar em sala de aula? Porque isso a
gente não viu na disciplina de Didática né. Então, eu fico me questionando
realmente o que é que a Didática da Matemática no curso da UEFS. Quer nos
beneficiar? Porque afinal de contas eu pensei que iria facilitar a questão de
resolução de problemas. A gente viu coisas muito interessantes viu, mas a questão
mesmo do problema no dia a dia na sala de aula a gente não viu. (Leide. Estudante
do Curso de Licenciatura em Matemática. Sessão Grupo Focal).

Ao relatar sobre as percepções, compreensões e expectativas em relação à disciplina à


estudante Leide pratica atos de currículo permeados por questionamentos acerca da
finalidade desta disciplina no curso de Licenciatura em Matemática. Leide apresenta as
frustrações em meio às expectativas em relação à disciplina, apontando as possibilidades

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1130


que a mesma poderia abordar para atender as suas necessidades quanto a atuação em sala
de aula, como professora de Matemática, pois esperava que a mesma tratasse dos possíveis
problemas que poderia enfrentar em sala, porém isto não aconteceu e aí surge a decepção
com a disciplina. Apesar de reconhecer que viu “coisas interessantes” demonstra o quanto
ficou desapontada ao ponto de questionar em que a disciplina Didática da Matemática da
UEFS poderia beneficiá-los, uma vez que almejava a orientação para resolução das situações
problemas, mas a mesma não tratou destas questões.
É evidente, que Leide, acredita estar cursando Didática da Matemática e, ao comparar
a ementa desta disciplina com os livros da área, constatou que não havia correspondência
entre os conteúdos do livro e a disciplina. Isto tudo alargou mais ainda a sua insatisfação
com os conteúdos tratados na mesma.
Os atos de currículo emergem a partir das relações, dos filtros, das compreensões e
problematizações realizadas pela estudante no que diz respeito aos conteúdos quanto aos
conteúdos desejados para a formação, uma vez que os mesmos afetam e atravessaram as
questões da formação. A estudante Leide, potencializa os atos de currículo produzidos no
tensionamento entre o “desejo de aprender determinados conteúdos” e a frustração por
estes não serem abordados, evidenciam as intenções, interesses envolvidos no processo
sociocultural e pedagógico que circunda a formação e o currículo. Assim, a estudante, narra:

É... eu tô lembrando aqui de uma questão de Paulo Freire o trabalho com EJA né.
No caso assim, a disciplina ela não privilegiou o trabalho com EJA por que é uma
realidade do professor de Matemática trabalhar com esse grupo né. Então, assim,
no caso a Didática poderia fazer uma relação entre o trabalho de Paulo Freire né,
com a Matemática. A gente fazer uma prática porque também não adianta só a
gente ler os conteúdos de Paulo Freire, ler os livros, ler os artigos e a gente não
tentar fazer uma relação realmente com a realidade. E quando eu chegar em sala
de aula como eu vou trabalhar com os temas geradores? Então, ficou assim aberto
pra a gente ser livre e praticar da forma que a gente achar correto né. Então, eu
acho que a Didática da Matemática deveria ter abordado também esse lado da
educação de jovens e adultos. (Leide. Estudante do Curso de Licenciatura em
Matemática. Sessão Grupo Focal).

Os atos de currículo aqui situados contextualmente criaram teias de sentidos e


significados, no tensionamento com os atos da professora, em relação aos conteúdos
tratados na disciplina, demonstrando que estes são compreendidos também, como
mediações formativas.
Os conteúdos selecionados como formativos a partir da ótica da professora formadora
e as visões e posicionamentos da estudante frente a estes conteúdos revela os conflitos, as
contestações, confrontações, construções e reprodução dos conteúdos abordados. Estes
atos traduzem sentimentos e pensamentos que parecem acariciar e ao mesmo tempo atacar
as relações dos atores com o conhecimento, em suas tramas complexas, ao buscar a
compreensão e o desempenho no campo de atuação.
As marcas de frustrações deixadas pela disciplina, de acordo com a narrativa da
estudante, imprimiram compreensões sobre Didática e formação que sinalizam a falta de
esclarecimento sobre as bases epistemológicas da Didática, na seleção e organização dos
conteúdos, com a necessidade de situar a disciplina no que diz respeito ao seu objeto de
estudo e a sua intenção nos Cursos de Licenciatura.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1131
O estudante Maurício confirma que a disciplina Didática faltou discutir alguns
conteúdos, ratificando o que a colega disse, porém, destaca a importância da disciplina no
que se refere a tais abordagens, citando como exemplo, “os temas transversais,” uma vez
que, não conhecia e nem sabia trabalhar com os mesmos. Ressaltou a modelagem, como
dispositivo que possibilita fazer algo diferente na sala de aula de Matemática, com os temas:
violência, drogas, entre outros. Assim, afirma:

Bom, é a disciplina Didática eu acho que os colegas fizeram boas observações, que
faltaram algumas coisas, alguns pontos que deveriam ser discutidos que são
importantes para a disciplina, pra gente tá tendo conhecimento de sala de aula
também. Só que eu achei importante é até por que eu também não sabia trabalhar
os temas transversais que foi o último conteúdo, enfim é que é uma forma
interessante de se trabalhar Matemática e, apesar de que, também, através do
tema transversal, você pode trabalhar um instrumento muito bom na Matemática
que é a modelagem. Então, a colega falou sobre a etnomatemática, jogos
realmente tinham que ter um enfoque sobre isso também, que a gente teve um
enfoque mais em aplicação de sala de aula. A gente teve um enfoque mais em
temas transversais e um pouco sobre algumas discussões sobre modelagem, mas,
enfim, foi discutida uma parte sobre temas transversais e modelagem que foi
muito importante pra a gente tá se situando e vendo o que a gente pode fazer mais
na sala de aula que eu mesmo tinha uma visão tradicional que podia fazer algo
diferente em sala de aula, mas nem tanto. Eu já tinha ideia da modelagem, mas,
por exemplo, eu posso fazer o tema transversal aplicar o tema de saúde, de drogas,
de violência e daí tô fazendo modelagem e daí tô fazendo várias outras coisas
desencadeando vários outros temas, por exemplo, história, eu posso desencadear
a ler, também, jogos não muito, realmente deveria ter um enfoque em jogos
dentro da disciplina, mas eu poderia desenvolver muito em sala de aula, a partir do
que foi visto nas aulas de Didática. (Maurício. estudante do Curso de Licenciatura
em Matemática. Sessão Grupo Focal).

Maurício descreve a importância da referida disciplina para sua formação, demarca as


possibilidades múltiplas para fazer algo a mais nas aulas de Matemática trazendo como
exemplo os temas transversais. Em sua narrativa sobressai que a disciplina potencializou o
contato com o diferente, o desconhecido e, assim, proporcionou enxergar que é possível
traçar outros caminhos para a Matemática, articulá-la a temas de outras áreas de
conhecimento. Maurício apresentou sentidos e significados para a disciplina Didática, com
base nas experiências e aprendizagens construídas na realização da mesma.
Então, os atos de currículo são revelados na narrativa de Maurício, como possibilidade
de dispositivo formativo, para sua atuação de professor da área de Matemática, com diz
Macedo (2013, p.108) “os atos de currículo instituem a práxis formativa, trazem o sentido de
não se encerrar a formação num fenômeno puramente exterodeterminado”. Nesse
movimento da formação, às vezes crítico, que ocorrem em tempo espaço não tão comuns,
os atos de currículo se constituem de tensões entre o instituído e instituinte estabelecendo
relações com o inesperado, com o inusitado. De acordo com Macedo (2013, p. 108) “[...] não
vislumbram os formandos, e quaisquer outros atores da formação, como meros atendentes
das demandas educacionais, nem como aplicadores ou receptáculos de modelos e padrões
pedagógicos,” pelo contrário, os enxergam como protagonistas da formação e do currículo,
entendendo formação como fenômeno inevitavelmente do sujeito. Vivenciado em sua

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1132


inteireza, ele se dá, exclusivamente, nas esferas intrasubjetiva e intersubjetiva dos atores
sociais.
As marcas deixadas pela experiência com as disciplinas de exatas imprimem
percepções sobre ritmos, formas, posturas dos professores, no tratamento com os atores
sociais, na relação com o ensino e aprendizagem. Ao destacar o caráter conteudista
valorizado por estas disciplinas. A estudante Jadiane vai revelando atos de currículo em sua
vivência com as mesmas.

Deixa falar uma coisa. Eu acho que a disciplina de Didática é uma das disciplinas da
nossa grade que nos leva, que nos mostra a lidar com pessoas porque as outras
disciplinas da grade nos mostra como lida com aqueles assuntos que vão ser
transmitidos. A Didática nos mostra como vamos LI-DAR com as pessoas! Por isso,
que eu acredito na importância da Didática. Pelo fato disso é a forma como eu vou
lidar com pessoas. Eu não tô ali com materiais, tô ali com pessoas. Então, como
lidar com o conjunto de posturas, de formas de organização, planos de aula, tudo
isso que dar ferramenta ao professor para que ele possa pegar o que aprendeu,
desenvolveu, durante, através da grade curricular das disciplinas específicas
daquele conteúdo. Que ele possa transmitir, a partir desse contato que ele teve
com a Didática. Porque a Didática é uma disciplina que nos leva a ter esse contato
com a sala de aula. A disciplina de Cálculo, vou ter contato com aquele assunto
com aquilo ali, mas a Didática ela nos leva a ter contato com as pessoas com quem
eu vou lidar. (Jadiane. Estudante do Curso de Licenciatura em Matemática.
Sessão Grupo Focal).

Jadiane destaca a disciplina como possibilidade de manter o contato com pessoas, com
a sala de aula. Apresenta a importância da disciplina ao aprender a lidar com o imprevisto,
com o singular, ou seja, como “lidar com pessoas,” ao percebê-las como atores sociais, não
como “materiais”. Esse olhar sobre os atores sociais, no processo de formação torna-se um
olhar para si também, imprime valores, posicionamentos frente às relações estabelecidas no
conjunto das experiências com os componentes curriculares, realizados no processo de
formação. Assim revela compreensões e interpretações sobre o conhecimento, a cultura, o
ensino e a aprendizagem, os modelos de ensino, as posturas e práticas pedagógicas
atravessadas pelo currículo e pela formação. Manifesta visão de currículo, ao fazer
referência às disciplinas que compõem a “grade” curricular do curso. Evidenciando-se a
compreensão de currículo pautado em uma perspectiva estática, fixa, como prisão, uma vez
que, se reporta as disciplinas sob a visão de “grade,” interessadas na transmissão dos
assuntos.
Tal narrativa aborda os atos de currículo instituídos nas disciplinas de exatas, em que o
conteúdo, é o centro das atenções, no processo de aprendizagem, em detrimento da
valorização do sujeito, dos valores e sentimentos destes atores. Ao mesmo tempo, os atos
de currículo produzidos no contexto da disciplina, são impulsionadores de dispositivos
formativos.
A narrativa de Jadiane demarca os atos de currículo praticados na esfera do instituído
e do instituinte, relacionados ao contexto do vivido. A estudante, na relação com a disciplina
mobiliza palavras, objetos, conteúdos e movimenta pensamentos e reflexões, torna-se
sujeito dialogante, protagonista deste processo. É afetada pelos atos de currículo no
processo de formação, assim como, estes atos, a impulsionam a produzir outros atos.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1133


O estudante Edilan expressa posicionamento sobre a quem compete ministrar a
disciplina Didática, no curso de Licenciatura em Matemática e a compreensão do objeto de
estudo da mesma, no referido curso. Assim, afirma:

Eu acho que Leide tocou num ponto no que eu ia falar. Sempre nas aulas de
Didática eu questionava a professora: por que, quando teve a reformulação do
currículo e ainda está vendo se vai implementar ou não o bacharelado sempre
toquei no ponto quem deveria ensinar a disciplina Didática pra Matemática, seria
um professor que atue na área de Matemática porque só ele vai compreender a
verdadeira dificuldade que o professor de Matemática tem em sala de aula. Então,
eu acho assim, a Didática ela só pode ser dada por um professor mesmo que saíba
identificar quais as verdadeiras dificuldades com sua área de conhecimento. Então,
um professor, por exemplo, de Pedagogia não pode é... ele pode até saber porque
ele já atuou na área de Matemática, mas ele não pode saber todas as dificuldades
que um professor de Matemática vai encontrar em sala de aula. Então, eu acho que
é isso a questão é quem deve trabalhar a Didática é um professor que esteja de
acordo com a área de conhecimento. (Edilan. Estudante do Curso de Licenciatura
em Matemática. Sessão Grupo Focal).

Para Edilan, quem deveria ensinar a disciplina Didática para o curso de Licenciatura em
Matemática seria um professor da área da Matemática. Nota-se que o estudante, no inicio
da narrativa, diz que Leide tocou em um ponto que ele sempre questionou a professora: “A
quem compete ensinar a disciplina Didática”.
Edilan acredita estar cursando Didática da Matemática, ao argumentar que só este
profissional tem qualificação para tratar da “verdadeira dificuldade” que um professor de
Matemática tem na sala de aula. Em se tratando da Didática da Matemática, os requisitos
para ministrar este componente curricular deve atender ao critério ser graduado em
Matemática. No entanto, a discussão sobre a disciplina Didática nos cursos de Licenciatura
ser ministrada por professores de áreas específicas existe em determinados colegiados, por
exemplo, os Cursos de Ciências Biológicas e História trocaram o nome da disciplina Didática,
para que os professores da área pudessem ensiná-la. Pode-se verificar isto, através da matriz
curricular destes cursos.
A disciplina Didática é compreendida como “aplicação de conteúdos específicos”, das
áreas de conhecimentos destes cursos. Há desconhecimento sobre o foco da referida
disciplina. A narrativa assenta-se neste pensamento, presente em alguns cursos de
Licenciatura que reforçam o modelo pautado na fragmentação.
A narrativa aproxima dos posicionamentos de alguns professores destes cursos.
Revelando atos de currículo vivenciados no curso de Matemática, articulados à
multiplicidade de atos entre os professores de Matemática e o componente curricular
Didática. Isto significa que os estudantes estão em constante interação com atos de
currículo, seja de professores, funcionários e demais colegas além de seus próprios atos e da
instituição. Jadiane e Neiva tratam sobre as relações com os atos de currículo no contexto do
Curso de Matemática.

[...] O que se observa na maioria das disciplinas a gente procura inspiração em


relação como eu vou ser um professor a gente não procura inspiração nos
professores da nossa área, nas aulas em relação a postura deles. Eu sinto muito,
mas eu não discordo da postura de cada um, mas eu acredito que essa importância

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1134


da Didática nos move, nos leva a conciliar duas coisas não que as posturas dos
professores estejam erradas existe a forma de cada um dar a aula, mas essa
inspiração que você encontra essa forma como você adquire querendo ou não nas
aulas de Didática. (Jadiane. Estudante do Curso de Licenciatura em Matemática.
Grupo Focal).

Eu concordo com tudo com que todos falaram e principalmente porque o meu
lema é cada caso é um caso. [...] A questão de unir a rigidez e a afetividade. Aqui na
nossa universidade, no nosso curso nós encontramos professores que distanciam
muito isto atualmente na minha visão eu só conheço um professor que é de Exatas
que não distancia. Um único professor! Porque os professores que são de Exatas
eles se mantém mais distantes ás vezes até pra manter essa rigidez - ah não, ele
tem que ver que aquilo é difícil e que tem que aprender. Mas, os professores de
educação eles separam mais por lado afetivo há essa divisão, mas eu acho quando
há a união desses dois itens o aluno aprende melhor eu acho que é até uma crítica
se esses professores que são rígidos o tempo todo não podia pelo menos, pelo
menos em um dia eles tivesse um olhar mais humano facilitaria pra gente. Não
precisa ser todo dia rígido, mas chegar pelo menos um dia e mostrar um olhar mais
humano perguntar quais são suas dúvidas, não precisa nem perguntar o que foi
que você fez em casa hoje? Não. Pelo menos perguntar quais foram suas dúvidas, o
que foi que você não entendeu, porque às vezes na aula de matérias do DEXA do
Departamento de Exatas a gente não tem esse espaço em dizer em o que é que a
gente tem dúvida. Então, eu acho que isso é também uma questão de procurar o
sujeito. E o pessoal de educação o pessoal do Departamento de Educação busca
isso saber quais são as nossas dúvidas o que a gente pensou sobre aquilo e o
pessoal de exatas não se interessa muito em saber quais são as nossas dúvidas
quais são as nossas dificuldades. Eu acho que a rigidez que Jade fala é mas nesta
questão cobrar mais também ter os momentos de querer saber o que está
acontecendo com o outro. (Neiva. Estudante do Curso de Licenciatura em
Matemática. Grupo Focal).

As narrativas dizem dos atos de currículo tecidos nas múltiplas interações das
estudantes com os professores da área da Matemática e da Educação e, principalmente,
destes na disciplina Didática, cujas narrativas demarcam que a inspiração em relação à
atuação para ser professora baseou-se nos professores da área de Educação, enfatizando
que não se inspiram nos professores da área de Exatas, nem nas suas aulas e posturas.
De acordo com as estudantes, tal pensamento decorre das posturas e
posicionamentos encharcados de frieza, porque muitos destes professores do curso são
“rígidos”. Aqui, emerge o sentimento de aversão às posturas “rígidas” dos professores sendo
apontado o distanciamento entre os professores e os estudantes, no processo de ensino e
aprendizagem. As estudantes veem estas posturas fechadas em si mesmas e narram que tais
professores tratam os estudantes como espectadores do processo educativo.
É emblemático quando diz “[...] não podia, pelo menos em um dia, deixar de ser rígido.
Se eles tivessem um olhar mais humano facilitaria pra gente. Não precisa ser todo dia rígido,
mas chegar pelo menos um dia e mostrar um olhar mais humano, perguntar quais são suas
dúvidas?”. O professor desenvolve um trabalho desconectado dos anseios dos estudantes,
sem que o diálogo ocupe um espaço central nessa relação. Parece que os referidos
professores não se colocam disponíveis, no sentido de ouvir os estudantes para, com eles,
planejarem as ações acadêmicas e reafirmar o compromisso político e social. Logo,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1135


Os atos de currículo, onde, aliás, conteúdo e forma, pensamento e outras práticas,
instituídas e instituintes são concebidas e refletidas, não de maneira apartada,
relacional, portanto, com todas as contradições, opacidades, ambivalências e
paradoxos que as práticas humanas constituem e expressam. (MACEDO, 2011, p.
109).

O autor considera os atos de currículo como dispositivo socioformacional em que as


contradições encontram-se no emaranhado de fios das questões políticas, econômicas e
socioculturais. Os atos de currículo são relacionais e dinâmicos.
As narrativas das estudantes aproximam-se da compreensão de Macedo (2011, 2013),
acerca dos atos de currículo, como dispositivo de formação, potencializados para o
exercício da autonomia pedagógica. A estudante Neiva apresenta a seguinte narrativa:

Pode comentar? É eu gostei da disciplina de Didática porque ela mostrou uma coisa
diferente que talvez a gente não tenha trabalhado tanto que é a questão mais
organizada da Matemática a gente tá acostumada a ver professores que chegam
com um piloto ou então só com giz na sala. É certo quando a gente organiza uma
aula organiza na cabeça, mas a Didática ela transmitiu pra gente quanto mais a
gente se organiza quanto mais a gente planeja quanto mais a gente estuda o que a
gente vai dar mais segura a gente vai tá na sala de aula. Eu gostei bastante da parte
que a professora trabalhou planos de aula, principalmente, na elaboração dos
temas transversais do trabalho com os temas transversais que ela puxou bastante
isso de planos de aula, do planejamento de ano do planejamento geral. Eu achei
assim um pouco meio sem objetivo quer dizer na verdade eu não vi tanta
funcionalidade naquele momento da gente trabalhar aqueles tipos de textos no
inicio. É aqueles tipos de textos que tinham não tinham uma aplicabilidade tão
grande na disciplina de Matemática. Eu acho se trocasse ou se trabalhasse menos
aqueles textos de tendências e trabalhasse mais formas, metodologias Didáticas,
mediações Didáticas do professor ao invés de trabalhar tendências pedagógicas em
si. Eu acho que seria mais proveitoso pra nós como alunos pra gente tá resgatando
mais coisas pra nossa prática. (Neiva. Estudante do Curso de Licenciatura em
Matemática. Sessão Grupo Focal).

Neiva diz que gostou da disciplina Didática, porque a mesma mostrou-se diferente
“dos mesmíssimos” exercitados por aqueles professores com quem teve contato no curso,
que chegam apenas com um piloto ou só com giz. A disciplina Didática despertou para a
organização, para a preparação de um modo distinto da rotina a qual estão acostumados.
Expressou pontos de vista sobre a abordagem de alguns conteúdos abordados na disciplina
como significativos e outros nem tanto, considerou o estudo das “tendências pedagógicas”
como desestimulantes, sugerindo um melhor aproveitamento deste conteúdo na disciplina.
A estudante, ao fazer referência à possibilidade de trabalhar o conteúdo das
tendências, de forma diferente, sinaliza a relação entre conteúdo e forma. Pressuposto de
que conteúdo e forma constituem um todo, no campo da Didática encontra-se articulada à
estrutura e organização interna, na área do conhecimento, como elementos estruturantes
do método. A relação entre conteúdo e forma está articulada ao processo de ensino, como
unidade. A narrativa de Neiva, habilmente, aponta como sugestão trocar ou ressignificar a
maneira de abordagem das tendências pedagógicas para que talvez se tornasse mais
favorável e significativo.
Apresentam pontos de vista diferenciados sobre como as professoras abordaram “as
tendências pedagógicas”, no contexto da disciplina. Assim, narram:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1136
É assim ela deu conta das Tendências Pedagógicas deu conta dos teóricos,
entendeu. Agora poderia ter dado uma puxadinha, assim, por exemplo, ao falar de
Piaget dar uma puxadinha porque ele fala de número né dar uma puxadinha assim.
(Leide. Estudante do Curso de Licenciatura em Matemática. Grupo Focal).

Em Geografia ela citava para nortear a gente em algumas em determinados


assuntos. Ela falava assim - gente pense aí o que a Geografia trabalha em relação a
tal tendência localização. Ela citava, ela tinha assim um conhecimento artificial em
relação ao que a gente estava trabalhando no momento, mas assim para
aprofundar e puxar não. (Carlos. Estudante do Curso de Licenciatura em Geografia.
Grupo Focal).

Estas narrativas apresentam pontos de vista e posicionamentos diferenciados acerca


do referido conteúdo e a forma como este foi trabalhado pelas professoras Flor do Lírio e
Flor do Maracujá. Os estudantes em suas narrativas sobre a experiência na disciplina
Didática vão traduzindo os atos de currículo em um exercício permanente de pensar seus
fazeres e dos outros, de redimensionar estas ações planejadas e intencionadas que os
envolvem. Estes atos forjados na relação indissociável, entre professoras e estudantes,
instituições, são potentes produtores de atos de currículo e como vão alterando as políticas
de sentido da Didática.
Apresentam compreensões diferenciadas sobre o objeto de estudo da Didática
sinalizam para as divergências sobre o objetivo de estudo da disciplina.
Os estudantes ao narrarem o que pensam sobre os atos de currículo produzidos na
dimensão da sua formação, no contexto da disciplina Didática, em suas existências, se
colocam, também, como protagonistas do currículo e da formação, como atores
curriculantes, no enfrentamento das urgências de estar/fazer no mundo que e de tomar
decisões e assumir posicionamentos.
As interlocuções, entre os estudantes apresentam-se como heteroglossia273, conceito
abordado por Bakhtin, como a dialogização das vozes sociais. Conforme Faraco (2009) a
heteroglossia dialogizada, com base na perspectiva bakhtiniana, constitui-se no encontro
das vozes sociais, uma vez que somos uma multidão de vozes, repletas no nosso tempo, de
diferentes representações polifônicas e dialógicas.
Considero, as interlocuções dos estudantes como profundas heteroglossias
dialogizadas, por esboçarem através de seus pensares e dizeres, as teias ideológicas,
epistemológicas e pedagógicas, nas situações vividas na disciplina. Tais atos possibilitam os
atores curriculantes a autorizarem-se a dizer o que pensam e sentem.
Neste processo de inter-relação, tais atos forjam políticas de sentido de Didáticas
multirreferenciais, implicadas e hibrídas. Na dialogicidade e na tessitura de tais atos,
concordo com Garfinkel (1976), os estudantes e professoras não são “idiotas culturais”,
pois constroem e desconstroem outras políticas de sentidos da Didática e praticam atos de
currículo, ao assumir posições, ao tomar decisões, questionar e ao tensionar o lugar da
Didática, do ensino, da avaliação, enfim, alteram e se alteram, fazem deslocamentos.
273
“A multidão de vozes sociais caracteriza o que tecnicamente tem designado de heteroglossia (ou
plurilinguíssimo) - o termo é muitas vezes tomado equivocadamente, como equivalente à polifonia”.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem &diálogo: as ideais linguísticas do círculo Bakhtin. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1137
Em suas narrativas, assumem frente ao pensamento do outro adquirem caráter
formativo, ao se colocarem cada protagonista no processo como responsável por produzir,
construir, mexer em questões políticas, epistemológicas, pedagógicas e éticas, exigindo dos
atores curriculantes posicionamentos quanto à Didática.
Os estudantes autorizam-se a produzir atos de currículo e a pensar sobre o
conhecimento. Os atos de currículo encontraram em plena dialeticidade, assumidos frente
às situações e experiências, as quais solicitam encaminhamentos, tensionamentos,
reclamações, queixas, decepções, expectativas, contradições, aprendizagens, exposições
em meio ao com-plexus da prática pedagógica. Portanto, os atos de currículo tornam-se
singulares e particulares, nos dizeres e fazeres destes atores.

Considerações finais

Da tessitura dos fios fecundos e miscigenados, teço algumas brechas dos atos de
currículo de estudantes e professoras na construção de políticas de sentido da Didática, que
meu olhar foi capaz de capturar, interpretar e elaborar.
Os atos de currículo apresentaram-se de forma relacional e dinâmica, praticados tanto
por estudantes, quanto pelas professoras. Reconheço que estes atores questionaram e
refletiram sobre o processo de aprendizagem, a partir das proposições da Didática,
apontando para além das abordagens dos conteúdos eleitos como formativos, suas
dificuldades e preocupações com a formação e com o ser professor. Trouxeram suas
experiências formativas articuladas aos atos de currículo instituído e instituinte.
Professoras e estudantes, ao discutirem os conteúdos e procedimentos das
abordagens da Didática, foram mostrando as interações com tantos atos de currículo que de
forma direta influenciam as políticas de sentido em relação à Didática e à formação.
Nas tramas pedagógicas, as nuanças dos atos de currículo como mediação das políticas
de sentidos revelaram-se como “emergência de autorização” de outras Didáticas e ações
formativas.
Os atos de currículo praticados na disciplina inseriram-se na dimensão polifônica,
polissêmica e multirreferencial na mediação da construção das políticas de sentidos em
relação à Didática. Os estudantes e professoras revelaram atos de currículo nas narrativas,
atividades, conteúdos, silêncios, posicionamentos, gerando novos atos de currículo e,
também, construindo e desconstruindo políticas de sentido em relação à Didática.
Os contrastes realizados pelos estudantes em torno dos atos de currículo vivenciados
no contexto da formação contribuíram para a construção de políticas de sentido dialógicas e
dialéticas em relação à Didática e à formação.
Evidenciei, as raras tentativas das professoras em buscar compreender o que os
estudantes no curso da disciplina estão construindo e desconstruindo sobre a mesma. Ainda
que as professoras não considerem os atos de currículo dos estudantes no desenvolvimento
da disciplina, estes atos vão revelando que novas Didáticas são necessárias e possíveis.
Pude perceber que os estudantes tematizam sobre o campo da Didática sem
pretensão de respostas absolutas ou verdades inertes, mas problematizam o vivido, o não
compreendido, os dilemas e alternativas das abordagens da Didática articuladas ao seu
processo formativo.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1138


As políticas de sentido da Didática, dialógicas e dialéticas, sinalizam para Didáticas
impuras, contraditórias, múltiplas e, assim, entendo que implicam em Didáticas
multirreferenciais e híbridas, constituindo-se em etnodidáticas.
Estas políticas dialógicas e dialéticas abraçam as opacidades, ambiguidades e
contradições em meio à construção, desconstrução e reconstrução da Didática, tomando
como mediação os atos de currículo e a plasticidade destas políticas.
Os atos de currículo como mediação da construção das políticas de sentido colocam-se
articulados aos argumentos e contra-argumentos de escolhas, ações, atitudes que regem as
práxis formativas dos atores sociais em meio às diversidades culturais, filosóficas,
pedagógicas e éticas do processo educativo. Na dinâmica dos atos de currículo como
mediação na construção de políticas de sentido, implicam alteração, mudança destas
políticas.
Nas narrativas dos atores sociais da pesquisa, há uma pluralidade de atos de currículo
que mostram a interface com as políticas de sentido em relação à Didática que vão desde
eleger conteúdos, até as posturas e posicionamentos frente ao horário de oferta da
disciplina e atitude responsável e responsível dos atores da mesma.
Assim, TODOS os atos de currículo praticados por estudantes e professoras, na esfera
do instituído ou instituinte, na disciplina Didática produziram e alteraram políticas de
sentidos em relação à Didática.
Estas são algumas das brechas tecidas nas tramas dos fios da pesquisa. Vejo não como
respostas e resultados, nem tampouco como modelo, nem prescrições para as
transformações e mudanças das nossas Didáticas, pelo contrário, são apenas rabiscos,
pistas, indícios que se colocam como anúncio das multiplicidades de possibilidades das
demandas de Didáticas outras, em que atos de currículo praticados neste contexto
constituem-se como mediações e intercríticas em termos formativos.
A mediação dos atos de currículo no processo de construção das políticas de sentido
revelou as impurezas e as ambiguidades de Didáticas efetivadas ou requeridas pelos
protagonistas da formação, apresentando esperança em tempos de desencantos e
descontentamentos em relação à Didática, assim como, em relação aos processos
formativos proporcionados pelos cursos de formação de professor da UEFS.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1140


O nó que nos une na prática docente – Narrativas dos educadores (as) /alunos (as) sobre
gênero e raça

Maria da Anunciação Conceição Silva


UNEB
anunciacaosilva@hotmail.com

Neste artigo, a partir das narrativas dos educadores/ alunos da PAFOR na região do sisal baiano, durante as
atividades de estagio supervisionado, analiso como os esses sujeitos contextualizam, em suas práticas, as
questões de gênero e raça com crianças da educação básica. A fim de entender como seus elementos e sua
estrutura permitem desencadear a revelação, a problematização, a compreensão e a reflexão de temas
emergentes na prática docente. Trata-se de um estudo teórico, no qual analiso o significado e as principais
características da narrativa. Acredito que o processo narrativo, quando direcionado e sistematizado, favorece e
cria condições que desencadeiam reflexões sobre a prática docente em diferentes contextos. Articula-se, e é
possível entrelaçar entre narrativa formação professor e prática reflexiva. Levando em consideração que a
educação, com sua instituição escolar e todo o sistema que articula, geraram representações coletivas que
fazem parte do universo cultural de suas populações. Ademais, os docentes/alunos, da PAFOR, são professores
que já exerciam docência na educação básica sem a formação necessária, como advoga a Lei de Diretrizes e
Bases da educação 9394/96, que neste caso é, a graduação em pedagogia. Em sua maioria, com de dez anos de
exercício docente na educação básica das escolas publicas municipais. As questões de raça e gênero na
educação são construções sociais mediadas por fatores políticos ideológicos. Essa temática nos ajuda apensar
no quadro de como são Construídas as hierarquias raciais no país. Cm efeito, o Estágio Curricular é uma
atividade de relacionamento humano que deve e precisa está comprometida com os aspectos políticos,
afetivos, sociais, econômicos e, sobretudo, étnico cultural. Neste sentido, a consciência crítica e reflexiva do
contexto educativo deve estar em harmonia com a prática pedagógica.
Palavras-chave: Prática docente; Narraivas de professores; Gênero e raça.

Infinito Particular!
Eis o melhor e o pior de mim! O meu termômetro o meu quilate
Vem, cara, me retrate. Não é impossível
Eu não sou difícil de ler!
Faça sua parte. Eu sou daqui eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara.
Não vê, tá na cara, sou portabandeira de mim
Só não se perca ao entrar. No meu infinito particular
Em alguns instantes. Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara. O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder.Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo.Vem cá, não tenha medo
A água é potável daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar.No meu infinito particular.
Letra de: Marisa Monte, Arnaldo Antunes e
Carlinhos Brow
As Conexões Metodológicas

A opção metodológica das narrativas nos encontos/oficinas de estágio


supervisionado foi construída face à necessidade de identificar nas falas das docentes/alunas
as experiências de vida ou, como define Souza (2006), história de vida sobre genero,raça e
religião. Tal necessidade surge do entendimento que a imersão em suas histórias de vida

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1141


norteiam suas práticas. Advogo, pois, que são nos momentos das narrativas que o sujeito dá
sentido e significado às experiências vividas. Constrói novas possibilidades e aprendizagens
sobre o eu e o irregular no contexto.
Os estudos de Souza (2006) afirmam que: a “... utilização do termo História de Vida
corresponde a uma denominação genérica em formação e em investigação, visto que se
revela como pertinente para a autocompreensão do que somos das aprendizagens que
construímos ao longo da vida, das nossas experiências e de um processo de conhecimento
de si e dos significados que atribuímos aos diferentes fenômenos que mobilizam e tecem a
nossa vida individual/coletiva.”.
Durante as visitas de estágio supervisionado pude identificar, na maioria das escolas,
ausência de imagens de crianças e adultos negros e negras na decoração das salas, vale
destacar que as crianças e as docentes/alunas são, majoritariamente, negras. De igual modo,
foi possível detectar que as atividades pedagógicas eram produzidas sem contextualização
com as dinmensões de gênero e raça presentes na escola e na Região do Sisal. Para adentrar
no infinito particular dos 30 docentes/alunos, foram realizados três encontros/oficinas no
campus da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) do município de Conceição do Coité.
Em cada encontro era lançada uma pergunta que, de forma livre, todas respondiam a
fim de “evidenciar e aprofundar representações sobre as experiências educativas e
educacionais dos sujeitos, bem como potencializar e entender diferentes mecanismos e
processos históricos relativos à educação em seus diferentes tempos”. Souza, (2006:136).
Utilizo as narrativas, pois, acredito que a partir dela, são potencializadas no sujeito
referências que permitem compreender, no coletivo, caminhos para a construção da
identidade pessoal que conduzem à reflexão e a um processo de autopoiese sobre as
práticas docentes. A construção metodológica dos encontros/oficinas foram (re) significados
na medida em que os sujeitos /alunos aprofundavam o sentimento de pertença no processo
e, principalmente, esqueciam que as atividades estavam sendo gravadas. Com isso, as
narrativas tornaram-se mais fluidas e participativas.
Para abertura dos encontros/oficinas, utilizei a música: Infinito Particular! Dos
compositores Mariza Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Bronw, destacando sempre que
“Não é impossível, eu não sou difícil de ler”, a fim de valorizar e resgatar, a partir das
perguntas geradoras, suas narrativas de vida. Por acreditar, como asseveram Souza e
Soares, (2008:192) a narrativa, “pode auxiliar na compreensão do singular/universal das
histórias, memórias institucionais e formadoras dos sujeitos em seus contextos, pois revelam
práticas individuais que estão inscritas na densidade da história”.
Nos encontros/oficinas as perguntas geradoras ocorreram na seguinte sequencia: I -
Qual a sua lembrança escolar sobre a importância do povo negro para o Brasil? Caso não
tenha vivenciado essa experiência na escola, o que você pensa sobe isso? II – Em sua
experiência escolar como eram definidos as relações e os papeis entre meninos e meninas?
III - Qual a sua lembrança das atividades escolares sobre religião e como você reproduz essas
experiências em suas práticas?

O desafio do nó que nos une nas narrativas

A pobreza deve ser assimilada como um conjunto de carências antagônicas com


causas diversificadas. Na região do sisal, são recorrentes os subempregos, trabalhos
domésticos, agricultura de subsistência e os benefícios sociais como as principais fontes de
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1142
renda da população pobre. De igual modo, os casos de abandono escolar das crianças para
ajudar financeiramente as próprias famílias, sérios problemas de saneamento básico, escolas
públicas com fragilidades estruturais, classes multi seriadas entre os sexos.
Faço analogia do nó que nos une, na crença de que o currículo escolar e a prática
pedagógica são impregnados das ideologias e valores que estão na gênese das trajetórias e
das experiências de vida das docentes/alunas, quer seja significantes para os temas em
debate ou não. Por isso, acredito que as narrativas nos convidam a refletir sobre os
movimentos e as contradições implícitas ou não nas falas e no infinito particular dessas
pessoas. Para os docentes, as narrativas funcionam como processo de autopoiese pela
possibilidade de (re) significação das suas práticas, pois, a educação e todo o sistema que
articula, incluindo aí os produtos culturais com os quais lida e cria, constitui essa vida social,
política e econômica em que a comunidade escolar esta inserida. Portanto, a educação e
seus sujeitos são importantes para a compreensão da formação cultural das sociedades.
Entretanto, não podermos esquecer que “... toda ação pedagógica é objetivamente
uma violência simbólica enquanto uma posição, por um poder arbitrário, de um arbitrário
cultural.” Bordieu (1973:132). O docente, ao tomar consciência do poder que a sua prática
exerce sobre os sujeitos da aprendizagem e das relações que coexistem no espaço escolar,
pode delimitar territórios, formas de segregações explícitas ou veladas. Isso significa fazer da
sua capacidade reflexiva um divisor de águas, indo na contramão da visão otimista da escola,
enquanto um espaço social, democrático e emancipador.

“A reflexão na ação realiza-se durante a ação em desenvolvimento,


sem interrupções, para que o profissional possa interferir na mesma
enquanto ela ocorre, reestruturando suas estratégias. Onde
pequenos momentos de distanciamento são necessários para breve
reformulação do que se faz, enquanto se faz. Assim, o profissional
conversa com a situação em processo.” Schon (2000:123)

O exercício do apreender, sistematizado e formal requer, sobretudo, a imersão no


contexto, que nos remete à experiência cotidiana, que é o fenômeno do auto conhecer e de
conhecer o outro.

As Narrativas como Estratégia no Contexto do Estágio Supervisionado

De forma preliminar, pode-se afirmar que o conhecimento prático do estágio


superivisionado é consequência da reflexão na e sobre a ação. Insere-se nesse processo a
necessária mediação teórica, que inclue também, analisar diferentes possibilidades de
efetivar os processos formativos. Sendo assim, para entender e integrar narrativas e
abordagens reflexivas é necessário cosiderar o estágio supervisionado como uma atividade
de relacionamento humano, cujos elos são mediados por diferentes formas de poder, que
devem e precisam está comprometidos com os aspectos políticos, afetivos, sociais,
econômicos e, sobretudo, étnico cultural.
Os docentes/alunos, atuam em espaços onde os silêncios falam, produzem e
constroem identidades. Neste percurso, encandeiam subjetividades movidas por fazeres e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1143


significados próprios, embora, diferentes em um mesmo contexto de variados
deslocamentos, pois:

O mundo rural, apesar da importância que tem para a economia do País, é sempre
‘esquecido’, quanto ao atendimento das populações que nele atuam, geralmente
marcadas por preconceitos que as desqualificam e excluem.” Siqueira (2002) No
Brasil, a sociedade é representada, sobretudo pelas elites intelectuais orgânicas,
por polaridades, chamando atenção para as dicotomias muito pouco perceptíveis,
como a divisão rural-urbana, em que a população rural é desqualificada.”
(DEMARTINI, 2012:10).

Com base nas características presentes neste meio rural-urbano, descrito pela
autora, e nas minhas intineranças, enquanto docente, defendo que a consciência crítica e
reflexiva do contexto educativo deva estar em harmonia com a prática pedagógica. O
domínio desse fator implica em maiores possibilidades de rever as práticas existentes e,
consequentemente, na desconstrução de preconceitos, tanto quanto possibilidades de
atuação, face às implicações que inviabilizam o processo do ensinar e aprender. Haja vista
que:

A instituição escolar contribui efetivamente para a consciência onipresente do


tempo, um tempo sempre regulado e ocupado, enfim um tempo determinado,
linear, ascendente e segmentado em etapas ou fases a serem superadas. Assim, o
papel da escola de Ensino Fundamental, como instrumento de inculcação de uma
noção do tempo, baseada na precisão dos encontros, na sequencia de atividades,
na previsão, no sentido do progresso, assumiu a ideia do tempo como um valor em
si mesmo.

Essa noção de tempo escolar, em princípio, nos leva a duas consequências que se
põem em movimento ininterrupto: a escuta e o aprender a agir, guiado pela escuta.
Contudo, creio que temos que aprender a escutar no tempo certo! E isso é possível sim.
Pois, as atividades pedagógicas são ações de relacionamento humano. Creio ser por isso que
durante as aulas e orientações pedagógicas de estágio supervisionado, os docentes/ alunos
(as), passam por um processo de desequilibração, no sentido piagetiano do termo. Piaget
entende que o conhecimento é móvel e dinâmico, com momentos de equilíbrio e
desequilíbrio. O desequilíbrio acontece quando surge o chamado conflito cognitivo. Este
conflito vai se estabelecer, quando o esquema mental do indivíduo não contempla as
situações nas quais está inserido.
Classifico conflito cognitivo, o momento em que os docentes/alunos(as) passam a
estabelecer uma tripla conexão/reflexão entre os conhecimentos teóricos recebidos, suas
práticas e suas expectativas descritas nas narrativas – cuja maioria, alicerçadas na repetição
e linearidade nomo cultural de saberes didáticos que não suprem suas necessidades
pedagógicas de ensinar, tampouco estimulam o processo de apredizagem dos alunos.
Movidos(as), porém, pela apropriação de novos saberes políticos e didáticos pedagógicos,
constroém outro olhar para e com esses sujeitos.
Assim, os docentes redefinem suas práticas, tanto pela necessidade de elaborar o
planejamento de estágio a ser acompanhado e avaliado pelo professor orientador, quanto,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1144
pela insatisfação em relação as práticas, até então desenvolvidas. Neste movimento, ocorre
o desejo de mostar que de fato está sendo transformado com e por novos saberes, aliando:
as reflexões sobre suas narrativas, teoria e prática no exercício docente. Podemos afirmar,
que as experiências narrativas, neste sentido, provocam a desequilibração, desenvolve,
transforma e/ou aprimora os esquemas mentais já desenvolvidos pedagogicamente.
Quando o equilíbrio se restabelece e volta a ser majorante resolve e propoe novas
situações/conflitos.

As narrativas sobre gênero

As narrativas das docentes/alunas sobre o ingresso no mercado de trabalho revelam


que mesmo quando conseguem uma escolaridade maior ou um treinamento efetivo de suas
capacidades e tentam colocações melhores, esbarram sempre no problema do preconceito
racial e de gênero. Está evidenciado, nas narrativas, que a ascensão social e econômica,
dessas mulheres, se processou em ritmo muito mais lento que para os homens negros e,
principalmente, para as mulheres brancas. Já que, em sua maioria, tem que conciliar as
atividades profissionais com as tarefas domésticas e, vez por outra, os familiares na “lida
com a roça”.
Nessa região, a condição de professora, exercida, em sua maioria, por mulheres
negras e principais provedoras da família, representa um status social relevante. Isso
decorre do fato de terem renda fixa e superior à média do local, que gira em torno de um
salário mínimo. Essas mulheres se autodescrevem fisicamente com insegurança, baixa-
estima e conceitos desqualificantes em relação a sua estética e ao envelhecimento natural
do corpo, decorrentes da idade e das condições socioeconômicas de origem. Resultados de
marcadores socialmente construídos que delimitam papéis e regras dos diferentes sujeitos,
tendo como referência sua cor de pele ou o gênero. Isso gera marcas sobre os corpos e as
vidas dos diferentes sujeitos impondo, de forma coercitiva, inúmeras limitações. Ao mesmo
tempo, revelam poderes que produzem desigualdades de pertencimentos sociais entre
homens e mulheres.
Ante as narrativas surge, entre os docentes/alunos, a proposta para que os planos de
aulas, durante o período de estágio, estejam voltados para o fortalecimento da educação
pela a diversidade de gênero e que as práticas educativas estimulem o equilíbrio entre as
diferenças e possibilite o convívio nas escolas com menos dualismo sobre o que é ou não
permitido para meninas e meninos. O ponto de partida para essa mudança será a revisão na
decoração das salas de aula, com vista ao fortalecimento da diversidade racial, religiosa e de
gênero local.
O conceito de gênero passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que
os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se
que as concepções de gêneros diferem não apenas entre as sociedades ou os
momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os
diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem. Louro
(1997:223).

Atentar-se para a diversidade de gênero é rever o entendimento e inclusão de


diferentes formas de “masculinidades” e “feminilidades” existentes na sociedade e cujos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1145


comportamentos são legitimados com um padrão pré-estabelecido socialmente e
reproduzido pela escola.

As narrativas sobre Raça

As relações raciais na educação são veladas e sistêmicas, na maioria das vezes,


passam despercebidas. Com isso, são fortalecidos os mitos da democracia racial na
sociedade em cadeia, na escola por meio das práticas pedagógicas e material didático. Nas
narrativas, desenvolvidas na região do sisal, os resultados apontam para a forte presença da
questão racial na escola e o quanto os docentes/alunos encontram-se desatentos/as ao fato
de que a educação, a raça e o gênero são relações imersas na alteridade. Embora, os
docentes, afirmam a inexistência de racismo nas escolas, pois, legitimados pelo discurso de
que, em suas cidades, todos são iguais e se conhecem há muitos anos.
É preciso compreender que os sujeitos envolvidos no processo educacional
constroem diferentes identidades ao longo da sua história de vida. A escola se apresenta
como um dos espaços que interfere, e muito, no complexo processo de construção das
relações e identidades de alunos (as) e, professores (as). Nas narrativas foi possível perceber
que o tempo registra lembranças, produz experiências e deixa marcas profundas naqueles
que conseguem ter acesso à educação escolar. Essas experiências interferem nas relações
estabelecidas entre os sujeitos e na maneira como esses percebem a si e ao outro no
cotidiano escolar, além se verificar como realizam as próprias práticas.
Como assevera Gomes (2010:108): “É fato que a discussão sobre a questão racial, em
específico, da diversidade, de maneira geral, ganhou um fôlego na sociedade brasileira do
terceiro milênio”. Porém, não modificou as desigualdades e as práticas educacionais em
relação à população negra, especialmente, na educação básica.

Tornar as escolas rurais e suas diferentes significações, no contexto social,


local/nacional, significa lançar olhares sobre os sujeitos da escola rural; aos modos
como o trabalho se forja no cotidiano das escolas e como as instituições escolares
rurais se personificam e constroem marcas de subordinação ou resistência frente à
formulação e implantação de políticas publicas voltadas para os povos que habitam
no meio rural, considerando o ambiente identitário dos sujeitos que dão vida e
sentidos culturais próprios desses espaços. Souza (2012:18)

Uma das narrativas me chama atenção, refere-se a de uma professora cuja a escola
fica situada em uma fazenda, a 40 minutos, de carro, da sede do município. Trata-sede de
uma escola muito pequena, chão de cimento batido, com uma pintura branca desgastada na
fachada externa, turmas multisseriadas que funcionam apenas no turno matutino, um
banheiro bem simples e uma espaço definido como cozinha onde as merendas são
armazenadas e distribuídas, na parte externa uma vasta área livre cujo chão intercala barro
e grama.
A maior parte da estrada que liga a sede do município a escola não tem asfalto, é
cercada por uma vasta vegetação que acompanha o entorno da escola, que tem à frente um
campo de futebol e um bar, onde nos finais de semana e feriados torna-se o ponto e
encontro da comunidade. A professora desta escola é uma senhora com mais de vinte anos
de docência, nascida e criada no povoado, faz questão demonstrar seu encantamento e
orgulho com o ingresso na universidade. Sua formação em magistério foi na década de 80 na
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1146
escola de segundo grau do município de Conceição do Coité. Desde então, são raras as
oportunidades de qualificação profissional, restrita as semanas pedagógicas anuais e as
atividades de coordenação pedagógica.
Esta foi uma das docentes que mais afirmou não haver racismo na sua prática e que
nunca vivenciou situação de racismo ao longo da sua trajetória escolar. Inferindo o discurso,
da democracia racial, que todas somos iguais. A escola em questão, dos vinte alunos da
turma duas crianças se destaca: loiras de olhos azuis, filha de uma “moça” da região que foi
para o sul do país, casou-se e voltou para a cidade com as meninas. Que são consideradas as
mais bonitas da escola. Segundo argumenta a professora: “todo ano elas são eleitas rainha
do milho da escola. Para evitar ciúmes, “entre as meninas”, no ano em que uma é rainha a
outra é princesa e assim vamos levando. As outras crianças não ligam, pois, sabem que elas
são realmente as bonitas”.
Cabe lembrar que a professora e outras crianças são todas negras. Inquieta e
impressionada com o encantamento da professora em relação à estética das meninas e o
desempenho escolar das mesmas fui enfática e sem programar perguntei: como você fala da
cultura negra para os alunos, afirma não haver necessidade de fala sobre essas questões a
resposta é sempre a mesma “aqui não tem problemas de racismo! Todo mundo é igual
Quando eles estiverem morando em outro local é por que estão grandes! Então vai saber se
virar e resolver isso.” Nessa e em outras escolas visitadas as referencias de família trazem
imagens de globais, a exemplo de Grazi Massfera, Cauã Reymond e a filha.
Todas de forma direta ou não, revelam ausência de referenciais negros e suas
historias escolares para da sua construção da identidade racial. Por isso, acreditam e
reproduzem, em sua maioria, nas escolas as referencias estéticas que os veículos de
comunicação lhe oferecem como padrão. No meu entendimento, o debate sobre a
invisibilidade do negro na educação tem como marco referencial, os estudos de Ana Célia
Silva, intitulado “A discriminação do negro no livro didático”, na década de 90. Esse estudo
abre as portas para outros questionamentos e percepções acerca da invisibilidade no negro
nos espaços educativos.
A existência de estudos que versam sobre a questão da identidade negra na sala de
aula e importância da Lei 10.639, há vasto um terreno a ser arado e fertilizado, em especial,
na educação do campo, para fortalecer a identidade da população negra na escola. Com
efeito, a educação ocupa lugar elevado e decisivo dentre os fatores responsáveis pela
reprodução das desigualdades raciais que inibem a capacidade de ascensão educacional e
social da população negra. E tem sido utilizada, muitas vezes, para ocultar as consequências
sociais do racismo, na medida em que as diferenças educacionais entre brancos e negros são
silenciadas ou utilizadas para justificar as desigualdades e alimentar desempenho
diferenciado e práticas discriminatórias de cunho racial no acesso e permanência da
população negra no sistema educacional.

As narrativas religiosas

Sabemos que o exercício da docência conduz a grandes e desafiadoras experiências,


e, neste percurso, as narrativas de vida por auxiliarde forma emblemática a compreender a
relação que o professor estabelece com seu espaço de atuação e seus sujeitos alunos. Lopes
(1995) lembra que a escola, enquanto instituição de educação sistemática e intencional foi,
desde sua criação, um espaço planejado para imprimir um padrão social dominante. Sendo
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1147
assim, é possível compreeender porque nas narrativas sobre religião todas afirmam que,
através da escola, conheceram apenas os valroes católico cristãos. Não haviam, com não há,
conotação de outras religiões, a única data em que se “falava” sobre as religião de matriz
africana era nas comenorações sobre o dia do floclore. “Esta fala”, na maioria das vezes,
equivocada, estava restrita ao uso de roupas, indumentarias e quitutes vendidos pelas
baianas de acarajé.
Será que isto é falar de religião de matriz africana? Hoje, nas escolas em que atuam,
não há atividades ou ações sobre as religiões de matriz africana. Continuam afirmando que
não há terreiros de camdonblé nas suas cidades, existem rezadeiras, que fazem rituais
fechados. E que só recorrem a eses locais em situações extrema de saúde. Negam suas
participações nas casas das rezadeiras, afirmando que quem costumavam frequentar esses
espaços eram suas avós, tias, parentes longínquos. Porém, descrevem com muita riqueza os
detealhes das casas em que moram as rezadeiras e os rituais que praticam. Diga-se de
passagem, bem próximo aos rituais do candomblé.
Entretanto, ao questionar um professor da Uneb, do campus Conceição do Coite,
sobre a existência ou não de terreiros na região, este afirma que não só existe como ele
costuma frequentar. Destacando que são recorretes as pessoas, que mesmo nascidas na
religião candomblesista, negam suas participações. Todos têm o mesmo discurso: “ Sou
católico!” Para ele, boa parte da sociedae local vê as religiões de matriz africana e seus
rituais como algo desqualificante e até mesmo satânico, principlamnete, em função do
grande número de igrejas protestantes que se proliferam na região e cujo público reproduz
o discurso preconceituoso contra as demais religioes, principalmente o candonblé. Essas
igrejas têm, interferido de forma significativa, na formação espiritual da população,
inclusive, modificando suas ações, pensamentos e condutas religiosas.
Embora o Brasil, seja um país laico, as situações de intolerância em relação às
religiões de matriz africana são conflitantes. Sabemos que toda intervenção educativa, como
forma de validar novas experiências escolares, geram inquietações e muitas tensões. Isso
não é diferente quando falamos sobre religião de origem africana na educação. Pois,
representa uma arena de disputa que exige falar de raça e poder. O que não é fácil, mesmo
em contextos em que a educação, com sua ação pedagógica, sejam contrárias aos objetivos
do período colonial, que tinha a função de disseminar a fé católica.
Creio que o papel da educação religiosa hoje deva ser de intervir para incluir na
escola uma diversidade sem estereótipos e contrária a uma cultura hegemônica, que tem
sido alimentada e servida como modelo dominador e perverso. Romper com esses
paradigmas implica repensar as influências das religiões de matrizes africanas no processo
de construção do currículo escolar, que também, deve ser objeto de constantes
questionamentos.

Concluindo

Durante as narrativas pude perceber que o equilíbrio da diversidade racial, religiosa e


de gênero no campo educacional possibilita inclusões e respeito de conteúdos que
fortaleçam as relações entre crianças e jovens. Ao mesmo tempo, auxilia os docentes/alunos
a compreenderem melhor sua própria experiência educativa com identidades culturais mais
positivas. Possibilidade real de mudanças paradigmáticas no ambiente escolar em relação
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1148
aos estigmas das diferenças, seja pela sua cor de pele, religiosidade, gênero, pelo grupo
étnico ou apenas por serem diferentes daquilo que é considerado o ideal ou padrão.
É inquestionável que as diferenças impactam nas relações de convivência com o
outro, nas ações e atividades cotidianas da escola. Neste sentido, devemos lembrar que: “As
atitudes de preconceito desenvolve-se no processo de socialização que é fruto da cultura e
da sua história.” Silva (2006:424). Não há duvidas, que o coordenador de estágio é
responsável pela integração da tríade universidade, escola e comunidade. As escolas,
durante o acompanhamento de estágio supervisionado, tornam-se espaços para além das
exigências acadêmicas. E devem ser assimiladas como “locus” de (re) significação de saberes
e aprendizagens que favorecem o crescimento pessoal e profissional de todos(as),
especialmente, dos docentes/alunos. Neste sentido, penso ser necessário compreender as
narrativas como uma estratégia significativa de formação de professores e quando
sistematizadas, criarem condições provocadoras a reflexivas sobre a prática docente.
As narrativas situam-se num tempo e espaço determinado, podendo envolver um ou
vários personagens. E mais ainda, [...] uma narrativa é composta por uma sequencia singular
de eventos, estados mentais, ocorrências, envolvendo seres humanos como personagens ou
atores. Estes são seus constituintes. Mas, esses constituintes “ [...] não têm vida ou
significado próprios. Seu significado é dado pelo lugar que os sujeitos ocupam na
configuração geral da sequencia, como um todo, seu enredo ou fábula.” Bruner (1997:46).
Lembro, mais uma vez, que faço o discurso da formação no curso de graduação da
Pafor, por considerar que a Plataforma Freire, traz a cena um programa de graduação e
formação, pois alunos (as) da graduação estão no exercício da docência. Sendo assim, o
encontro com o conhecimento está implicado na prática pedagógica do sujeito da
aprendizagem, envolvendo histórias de vidas concretas, memórias e tradições locais, além
de dialogarem com o saber formal, com vista no aprendizado de novos modos de ensinar e
aprender. Entendo que a eficiência desta experiência pedagógica, está na valorização das
diferenças, como prática social ao permitir a inflexão de novas formas de conhecimento e
compreensão das diferenças étnico-racial no contexto escolar.

Referencias
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Janeiro: Menos Zero, 1983.
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Rurais e Narrativas Biográficas : Tempos, Ritmos e Espaços de Formação, Revista digital
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1150


“Retalhos” que tecem subjetividades

Maria Helena da Silva Reis Santos


UNEB
nenavidars@hotmail.com

O trabalho emerge das vivências e discussões sobre como a subjetividade surge enquanto modo de explicar e
compreender a realidade no/do processo formativo e identitário do sujeito/professor, por meio das
experiências narradas em história de vida, no decurso do componente curricular Educação, Subjetividade e
Formação de Professores, disciplina específica da Linha II, do Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade – PPGEduC. Também da (re)leitura da obra fílmica “Colcha de Retalhos” cujo diretor é
Jocelyn Moorhouse, no componente curricular supracitado. Esta proposta (auto)investigativa toma por
“retalhos” as experiências de vida-formação da própria pesquisadora retiradas de sua Narrativa da Trajetória
de Formação, escrita no decurso do componente curricular supracitado. As experiências de formação são aqui
imbricadas à história de vida da professora baiana, a qual se implica nesta investigação com a participação
direta enquanto sujeito pesquisado, que se utiliza à sua maneira para contar e construir sua narrativa, suas
itinerâncias, observar como esse sujeito significa o mundo que está ao seu entorno, como os significados que
são produzidos se transformam em aspectos relevantes a serem narrados e que se constituem subjetividades e
identidade no percurso de sua vida-formação. A escuta aguçada dos significados atribuídos pelos professores
respondem à dinâmica dialética da vida cotidiana que integra pessoa-professor, colocando no centro da
produção de conhecimento humano a subjetividade. Esta entendida como portadora e produtora de
significados constituídos pelos sujeitos na sua relação com o mundo de compartilhas por todos, nos múltiplos
contextos socioculturais. A seleção de material e a escrita deste trabalho têm por objetivo apresentar a história
de vida-formação da professora de língua portuguesa, baiana, e de que forma sua narrativa estar permeada de
sentidos, histórias, trajetórias que a constituem, enquanto pessoa e profissional, com experiências que
determinam o sentido subjetivo da atividade atual desenvolvida por esse sujeito/atriz. Na perspectiva da
abordagem (auto)biográfica, ganha lugar aqui a história de vida como procedimento metodológico,
configuradas enquanto estratégia de pesquisa pessoal e coletiva, politicamente desestruturada de certos
paradigmas tradicionais de investigação. Esta abordagem é constituída a partir do desvelamento da história
narrada, da mesma forma que trata de percursos ao longo da trajetória de vida e produz condição de fazer a
ligação entre as construções individuais e coletivas das identidades, abordando neste caso a especificidade e
subjetividades do ser. A investigação é relevante por intentar uma análise de maneira integral do indivíduo,
buscando ter acesso à cultura, ao meio social, aos valores e crenças elegidos por este, e por permitir ao
investigador/sujeito/ator ter um olhar aguçado sob a história de vida, formação e profissão, à escuta e
compreensão das marcas da trajetória da dinâmica de sua vida, das experiências, àquilo que lhe toca, que o
passa, que lhe acontece, onde a subjetividade produzida enquanto lhe passa, o forma e o transforma. Este
trabalho convida-o a caminhar pelas trajetórias de vida-formação-profissão com outro jeito de olhar, a partir
das articulações propostas e as tantas itinerâncias que constituíram o sujeito/atriz que aqui se desvela, numa
atitude de respeito à singularidade do docente e a sua história, compreendo a importância desse dispositivo
para a pesquisa (auto)biográfica, sobretudo nas trajetórias de formação docente.
Palavras-chave: História de vida. Narrativa (auto)biográfica. Subjetividades. Formação.

Renda e alinhavos: perpasse de ideias e trajetórias

A escrita narrativa, na perspectiva da abordagem (auto)biográfica, é um material


constituído de recordações consideradas pelos narradores como experiências significativas
de suas aprendizagens nos itinerários socioculturais e das representações que construíram
de si mesmos e de seu ambiente humano e natural (Josso, 2002). A experiência simboliza
atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-fazer, sentimentos que caracterizam
subjetividades e identidades do sujeito. Isso nos permite dizer que:

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1151


A organização e construção da narrativa implicam colocar o sujeito em contato com suas
experiências formadoras as quais são perspectivadas a partir daquilo que cada um viveu /
vive, das simbolizações e subjetivações construídas ao logo da vida, conforme aponta
SOUZA (2004, p.405)

Assim, partindo-se da abordagem (auto)biográfica, ganha lugar a história de vida,


uma vez que esta abordagem é constituída a partir do desvelamento da história narrada. Da
mesma forma que trata de percursos ao longo da trajetória de vida e produz condição de
fazer a ligação entre as construções individuais e coletivas das identidades, abordando neste
caso a especificidades e subjetividades do ser.
Sabendo da pertinência do trabalho em educação com as narrativas
(auto)biográficas, utiliza-se para esta investigação as histórias de vida como construto
metodológico, configuradas enquanto estratégia de pesquisa pessoal e coletiva,
politicamente desestruturadas de certos paradigmas tradicionais de investigação. Adota-se
para esta escrita a leitura da Narrativa da Trajetória de Vida e Formação de uma professora
da educação básica, baiana, como instrumento e dispositivo de (auto)formação por se tratar
de uma prática reflexiva, possibilitando além do “conhecimento de si” (SOUZA,2006), uma
reinvenção e “transformação de si” (JOSSO, 2002,2007).
Este trabalho traz uma proposta (auto)investigativa que tem por objetivos apresentar
a história de vida-formação de uma professora de Língua portuguesa da rede pública de
ensino, e de que forma sua narrativa estar permeada de sentidos, histórias, trajetórias que a
constituem, enquanto pessoa-profissional, com experiências que determinam o sentido
subjetivo das escolhas e prática docente.
A inquietação para a realização deste trabalho emerge das vivências e discussões
sobre como a subjetividade surge enquanto modo de explicar e compreender a realidade, o
processo formativo e identitário do sujeito/professor(a), de refletir para compreender sobre
a constituição da identidade docente nos processos formativos, a partir das experiências
com história de vida, também a partir da (re)leitura da obra cinematográfica “Colcha de
Retalhos”, uma película fílmica, propostas no decurso do componente curricular Educação,
Subjetividade e Formação de Professores, disciplina específica da Linha II, do Programa de
Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC, na Universidade do Estado
da Bahia -UNEB, Campus I, Salvador, Ba., ministrado pelos Profs. Drs. Jane Adriana
Vasconcelos Rios e José Antônio Serrano Castañeda.
Nesse caminhar, buscar-se-á descrever como “retalhos” as experiências de vida e
formação da própria pesquisadora, retiradas de sua Narrativa da Trajetória de Formação
Escolar, escrita também proposta pelo componente curricular supracitado. Também,
relacionar as trajetórias de vida e formação às leituras e, inspirada a partir da cena inicial do
filme, observar a história de vida como um rolo de carretel que ao desenrolar traz
lembranças que a movem e evidenciam subjetividade e sua construção identitária, pois
compreende-se que é no cotidiano das relações sociais que os sujeitos se constroem uns
com os outros, com as estruturas socioculturais nas quais se inserem, com as suas
contradições, com o natural, nas múltiplas redes existenciais que constituem o espaço social
e discursivo do qual fazem parte, conforme cita Rios (2011).
O filme “Colcha de Retalhos”, cujo diretor é Jocelyn Moorhouse e o título original
“How to Make in American Quilt”, 1995, EUA, traz como trama principal as histórias de vida
de um grupo de senhoras que, enquanto costuram uma colcha de retalhos, a qual será
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1152
presente de casamente de Finn, narram suas experiências carregadas de sentimentos,
paixão e envolvimentos amorosos. A jovem Finn é uma mestranda que se refugia em casa
de sua avó, localizada numa cidadezinha no interior de um estado norte-americano, para
escrever sua dissertação. Durante o processo da escrita da dissertação, a jovem
pesquisadora encontra esse grupo de senhoras, amigas de sua avó, que bordam a colcha a
partir de recordações de suas experiências pessoais amorosas que elas contam umas para as
outras. Após as escutas e observações das experiências que as várias amigas da família
socializam, Finn muda seu objeto de pesquisa e finaliza sua dissertação com o título “A Arte
e Artesanato na Colcha de Retalhos”, por perceber o quanto as mulheres tinham a ensinar,
sobretudo com suas histórias de vida e da arte do bordar. O trabalho desenvolvido por esse
clube de senhoras é iniciado quando cada uma delas recebe um retalho para fazer algum
bordado e uma a uma vai bordando desenhos que representam suas próprias histórias,
retratando os amores e desamores vividos. A trama evidencia que as histórias de vida dessas
mulheres, cujas itinerâncias se tornaram objetos de pesquisa e estudo da jovem Finn, de
fato, constituem uma a colcha de retalhos em um processo criativo. É um artesanato porque
é confeccionado à mão, e por meio de uma seleção de pedaços de tecidos/retalhos eles vão
sendo alinhavados, costurados, dando forma à imaginação. Como é a vida do sujeito,
também pesquisadora, desta investigação.
Acerca das histórias de vida e o método (auto)biográfico, Nóvoa (1988) assevera que
estes se inserem ao movimento que procura repensar as questões da formação, acentuando
a ideia de ninguém forma ninguém e que a formação é inevitavelmente um trabalho de
reflexão sobre os percursos de sua vida. Portanto, de imaginar e reimaginar o imaginário.
Destarte, esta investigação é relevante por intentar uma análise de maneira integral do
indivíduo, buscando ter acesso à cultura, ao meio social, aos valores e crenças elegidos por
este, e por permitir ao investigador ter um olhar aguçado sob a história de vida, formação e
profissão, à escuta e compreensão das marcas da trajetória da dialética dinâmica da vida de
uma professora de Língua portuguesa, de suas experiências, e àquilo que a toca, que lhe
passa, que lhe acontece, onde a subjetividade produzida enquanto lhe passa, a forma e a
transforma.
Para estruturar o diálogo entre a narrativa do sujeito que se narra e as passagens do
filme, e costurar os “retalhos” da história de vida em estudo, buscar-se-á por alinhavar o
tecido dessa vida entrecruzando as considerações de Josso, Nóvoa, Souza, Rios e Scoz,
Dellory-Momberger para tratar acerca das histórias de vida, formação e subjetividade no
desvelamento das trajetórias de vida e formação, que desemboca na escolha da profissão,
identidades e prática docente do sujeito da investigação, observar como esse
sujeito/atriz/autora dá significado às suas experiências por meio da linguagem.
Assim, a escrita deste trabalho convida-o para caminhar pelas trajetórias de vida-
formação-profissão com outro jeito de olhar, a partir das articulações propostas e as tantas
itinerâncias que constituíram o sujeito/atriz/autora que aqui se desvela.

Caixa de costura: seleção de retalhos, linhas, agulhas para costura de uma colcha (de uma
vida)

Josso (2004,p.39) considera que a experiência se torna uma atividade formadora na


medida em que se articula “[...] saber-fazer e conhecimento, funcionalidade e significação,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1153
técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a oportunidade de uma
presença para si e para a situação, por meio da mobilização de uma pluralidade de
registros.” A autora versa numa teoria da atividade do sujeito que aprende a partir de sua
própria história. É uma abordagem da formação do ponto de vista do sujeito aprendente.
Para esta autora, a vivência adquire o status de “experiência formadora” em função do saber
que resulta dessa reflexão do sujeito sobre seu modo de simbolizar o que lhe aconteceu e
como a experiência o afetou.
Nóvoa (1988, citado por SOUZA, 2006, e JOSSO, 2004) aponta que a formação se
vincula ao conceito de “reflexividade crítica”. Tornando, desta forma, a formação num
trabalho reflexivo sobre os percursos de vida. Nesta mesma esteira, Josso (2004)
compreende que o exercício de reflexibilidade autobiográfica sobre as vivências implica
apreender a descobrir os “pressupostos cognitivos” das interpretações feitas pelo próprio
indivíduo, bem como encontrar uma forma adequada ou privilegiada para dizer ou escrever
sua história.
Ao teorizar sobre os vínculos entre biografia e educação, Delory-Momberger (2008)
traz os conceitos de “fato biográfico” e “biografização”. A autora assevera que o “fato
biográfico” se converte em um viés que acompanha tudo o que percebemos e
compreendemos ao longo de nossa vida. Trata-se de uma hermenêutica prática para dar
sentido à vida(bios), a si mesmo(auto) e a própria escrita(grafia). De maneira que a escrita
(auto)biográfica como prática de formação não se reduz à evocação da trajetória, mas se
converte em um trabalho biográfico como uma ação heurística, constitutiva da constituição
do que se sabe sobre si.
Daí emerge o valor do trabalho na abordagem biográfica, pois nos permite uma
interrogação das representações e a articulação de diferentes atividades, bem como, dos
referenciais que servem para descrever e compreender a si mesmo no seu “ambiente
natural”. (Josso,2004) Além de compreender como a formação se processa.
Através da abordagem (auto)biográfica, o sujeito produz o conhecimento de si, sobre
os outros e o cotidiano, o qual se revela por meio da subjetividade, da singularidade, das
experiências e dos saberes. A centralidade do sujeito no processo de investigação-formação
evidencia a importância da abordagem compreensiva e das apropriações da experiência
vivida, das relações entre subjetividade e narrativa como princípios que concede ao sujeito o
papel de ator e autor de sua própria história. (Ibid)
Esta abordagem se configura, portanto, como um processo de conhecimento, não
apenas de si, mas, também o sujeito toma consciência dos eixos que estruturam a formação
da sua existência, na busca de uma “sabedoria de vida” (Ibid), e desemboca em uma reflexão
sobre a trajetória de vida e formação. Vinculando-se, então, ao “caráter formativo” como
afirma Bueno (2002, apud Josso, 2004). O sujeito, ao reconstruir seu itinerário de vida,
realiza uma reflexão ao rememorar seu passado e, a partir disso, toma consciência de si. O
caráter formativo reside nessa tomada de consciência de suas experiências, sendo estas
positivas ou negativas, as quais possibilitam que revise certos aspectos ou pontos de sua
atuação pessoa-profissão.
Acerca das discussões sobre as histórias de vida como processo de conhecimento,
Souza (2008, p.40) nos diz que elas se inscrevem em uma “biografia individual”, na medida
em que reunimos situações, experiências, acontecimentos da vida e partilhamos na
configuração narrativa “modos de dizer de si”, por destacarmos “percursos, trajetórias e
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1154
transformações narrativas da nossa história.” As história de vida se configuram como
estratégias de pesquisa pessoal e coletiva, politicamente desestruturada de certos
paradigmas tradicionais de investigação, estruturante de um modelo investigativo implicado
na escuta da pessoa, no respeito às suas narrativas e no rigoroso fluxo de diálogo, como
indica Rios (2011,p.31). Torna-se um instrumento de escuta à singularidade desse sujeito e a
sua história.
Deste modo, é pertinente, ao tratar de formação e experiência de vida, perceber que
a estas se imbricam a subjetividade. Por sua vez, é prudente analisar a subjetividade no
percurso de formação do indivíduo sem descartar o olhar sob a construção identitária, a
partir das representações sociais constituídas do ponto de vista do sujeito aprendente.
Os estudos acerca da subjetividade e da identidade apontam que diferentes
situações humanas vividas pelas sociedades contemporâneas, em variadas esferas sociais:
na escola, no trabalho, na família, entre outros contextos e espaços, podem ser entendidas
quando analisadas a partir da subjetividade e identidade, visto que estas permeiam o modo
de estar no mundo e no trabalho humano em geral, afetando as perspectivas do sujeito, no
caso desta pesquisa às da professora, em relação à sua formação e a suas formas de atuação
profissional, conforme indica Scoz (2011, p.26).
A autora aponta que a subjetividade está vinculada ao resgate da trajetória individual
e ao modo como cada indivíduo tenta definir a si mesmo, confrontando-se ao mesmo tempo
com diferentes contextos socioculturais. Isso nos permite dizer que tentar desvelar/traduzir
tal categoria implica ter presentes os processos dinâmicos que aí estão envolvidos, como a
confluência de uma série de sentidos que se encontram articulados na história do sujeito e
nas condições concretas nas quais esse sujeito atua no momento. A subjetividade, a vista
disso, “não é algo ordenado e definido de uma vez por toda, mas se expressa a partir da
confluência de uma série de sentidos de elevada variabilidade.” (Ganzález Rey, 2003, apud
Scoz, 2011, p.26)
Por sua vez, o sentido é o centro dinâmico de organização da subjetividade,
evidenciando-se a contínua processualidade do sujeito em suas complexas operações
construtivas. Entretanto, o sentido e o significado não devem ser tomados separadamente,
mas sim como unidade. Na organização subjetiva integra-se o pensamento do sujeito, as
emoções as situações vividas por ele, as quais aparecem numa multiplicidade de sentidos
subjetivos, que não podem ser reduzidos a linguagens nem a discursos. O sujeito se
constitui, assim, como elemento central de caráter processual da subjetividade. O mesmo
que assume a autoria da obra e ao mesmo tempo é produzido quando se reconhece criando,
quando sua obra mostra algo novo dele mesmo, implicando o reconhecimento pelo próprio
indivíduo de suas múltiplas possibilidades de fazer escolhas. O sujeito, aqui, é ator e autor
da sua história.
No que diz respeito à questão da identidade e subjetividade no processo de
formação do professor,

É preciso ver o professor não como seres abstratos, ou essencialmente intelectuais, mas
como seres essencialmente sociais, com suas identidades pessoais e profissionais, imersos
numa vida grupal na qual partilham uma cultura, derivando conhecimentos, valores e
atitudes dessas relações, com base nas representações constituídas nesses processos que
é, ao mesmo tempo, social e intersubjetivo. (GATTI, 2003, p. 196, apud SCOZ, 2011, p.47)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1155


Para então perceber e compreender que suas subjetividades são uma construção e que
estão continuamente em construção. Trata-se de observar realidades individuais e sociais
em sua complexa processualidade para resgatar e compreender a relação entre o “universal
e o singular”, sem a qual qualquer tentativa de compreensão da subjetividade e da
identidade do sujeito estará incompleta. Os professores são sujeitos que vão produzindo
sentidos nos variados contextos socioculturais, nos quais se integram suas condições
afetivas e sociais, pensamentos e emoções. São indivíduos portadores de subjetividades e
identidades pessoais e profissionais. (Scoz, 2011)
Por isso, no capítulo a seguir, caminha-se por (uma tentativa de) desvelar o sentido
dado às memórias afloradas das lembranças de uma professora na traíde: vida-formação-
profissão, por costurar os “retalhos” de informações ou marcas de subjetividades que tecem
a sua vida e a formação enquanto sujeito individual e social. Para tanto, tem-se por fio
condutor passagens do filme Colcha de retalhos que dialogam com as cenas desveladas por
meio da narrativa, as quais são marcas das experiências de vida, formação e profissão do
sujeito atriz/autora, e por tentar costurar as considerações dos teóricos selecionados na
descrição e análise dos dados nesta escrita. Utilizar-se-á marcadores textuais de escrita em
primeira pessoa no singular, a fim de marcar a fala de quem se narra, e também se implica
totalmente na “escrita de si”, em sua (auto)investigação e (auto)formação. Quem, segundo
Rios (2011), “se utiliza de sua maneira para contar e construir sua narrativa.”, suas
itinerâncias, bem como investigar como esse sujeito significa o mundo que está ao seu
entorno, como os significados que são produzidos se transformam em aspectos relevantes a
serem narrados e que se constituem subjetividades e identidade no percurso de sua
formação.
A partir de então, revisito no baú de minhas memórias traços da minha história e
aspectos da infância à fase adulta, das escolhas pessoais à escolha profissional e a prática
docente. Trago minhas “recordações referências”, as quais compreendo como elementos
constitutivos da minha formação, segundo Josso (2004). São os “retalhos” que desvelam
subjetividades e identidades, que são processos contínuos e costurados pelos percursos
formativos pessoais e profissionais, imbuídos de minhas experiências individuais e coletivas.

O bordado da colcha: história de vid a e processos formativos

O rememorar e o descrever de suas itinerâncias de vida e de profissão, por meio da


narrativa, permitem à pessoa, dependendo do modo como são relatadas, refletir e
(res)significar as experiências vividas nas suas trajetórias pessoais e profissionais. Quem
determina o dizível é o sujeito/ator/autor, a partir da narrativa de sua vida, não dando
importância a cronologia dos acontecimentos e sim ao percurso vivido por ele mesmo. Como
narrador/informante, é quem seleciona o que deve ou não dizer da sua história,
subjetividade e os percursos de sua vida. Havendo, portanto, no texto marcas da trajetória
de vida desse sujeito, suas experiências, aquilo que o torna portador de uma figura
existencial, unificada numa totalidade, interioridade e individualidade, e com subjetividade
múltipla.
O modo de construção da subjetividade é a comunicação de si, da produção do
estado do sujeito que se torna alterado, deferido daquilo que tem sido, que se implica em
ser o mesmo “singular”, de subjetividade e devir. Deixando aflorar a construção de uma

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1156


“subjetividade autêntica” que “traz à luz um ser-sujeito da formação”. (Josso, 2004) Assim
sendo, é perfeitamente possível falar da “colcha de retalhos” que o constitui ser o que
é/está se tornando, foi e será enquanto ser individual e social, como sua identidade pessoal
e profissional foi/vai se constituindo, uma vez que “[...] as dimensões pessoal e profissional
se constroem concomitantemente ao processo identitário.” Tornando claro que é
“indicotomizável” a relação entre “o eu pessoal” e o “eu profissional do professor”. (NÓVOA
1992, p. 15).
Falar da “colcha de retalhos” é falar, portanto, da história de minha vida, de escolhas
e das itinerâncias pessoais e formativas de quem se implica nesta escrita na condição de
sujeito que aprende na dialética relação entre o individual e social, com o natural, nas
múltiplas redes existenciais que constituem os espaços social e discursivo no qual se insere.
É falar de minhas escolhas ao longo e minha trajetória de vida, experiências vividas em
diferentes fases e situações da minha história e formação, minha “colcha de retalhos”, na
família, da infância à fase adulta, das escolhas pessoais à escolha profissional que culminam
em prática docente. É desvelar subjetividade e identidade de uma docente de Língua
portuguesa, da educação básica em instituição pública de ensino, do município de Lauro de
Freitas, na Bahia. É revisitar lembranças/marcas da infância em Salvador, como primogênita
de uma família com seis filhos, pobre, até o ingresso no Programa de Pós-graduação em
Educação e Contemporaneidade, na Universidade do Estado da Bahia em 2013, na condição
de aluna especial, no componente curricular Educação, Subjetividade e Formação do
Professor, contexto da formação-continuada, repletas de significados e sentidos que, de
alguma forma, descrevem um pouco do que fui, tornei-me e serei. É falar de “retalhos” que
continuam me constituindo sujeito. Enfim, é trilhar por uma descoberta e “reinvenção de si”.
Por meio da minha Narrativa de Formação, retomo traços de minha história de vida
que formam a minha “colcha de retalhos”, tecida por pedaços de panos de diferentes
texturas, colorido, floral, listrado, liso, com tons mais suaves, outros mais intensos,
estampado, porque o ato de me desvelar não pode ser considerado sem elencar as
experiências pessoais e formativas vivenciadas. Cada momento que vivi, cada espaço
formativo pelo qual passei, assim como cada pessoa que cruzo no caminho são
simbolicamente “retalhos” que unidos formam a minha “colcha”.
Parto da compreensão de que a pesquisa (auto)biográfica é uma metodologia com
potencialidades de diálogo entre o individual e o sociocultural, e que a escola é o lugar social
formalmente indicado para que isso ocorra. Sigo por descrever o lugar da escola marcado
em minhas memórias, o qual é indispensável em qualquer e toda fase de minha trajetória de
vida-formação-profissão, em especial nesta narrativa da minha Trajetória de Vida e
Formação Escolar. É um lugar que traz traços marcantes e importantes para a constituição
de identidade pessoa/docente e o desvelar de subjetividade.
Revisito minhas memórias e trajetórias para deixar transparecer que a docência e a
minha história de vida estão intimamente imbricadas. Retomo traços da minha história e
aspectos que culminaram na docência como mais que uma opção de trabalho, uma decisão
para a vida. Recorto os “retalhos” e costuro a minha “colcha de retalhos” - a minha trajetória
de vida-formação- tecendo analogia com passagens do filme que, de alguma forma,
dialogam com a minha narrativa, perpassando pelas considerações dos teóricos
selecionados.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1157


Inicio com a cena inicial do filme onde Finn aparece ainda criança ouvindo histórias
de sua avó e das jovens costureiras amigas da família, as quais a ajudam na sua formação
leitora. Esta cena faz saltar de minha caixa de memórias “retalhos” de minha identidade
leitura surgida ainda na infância, assim:

Recordo-me com clareza da primeira semana como estudante. [...] Encontrava-me num
ambiente mágico, era um misto do imaginário das histórias que ouvia das leituras em
livros feitas pelo meu pai e das orais que minha mãe costumava contar, particularmente,
quando faltava luz, fato que era constante na vila onde morávamos, nesta época, e do
mundo desconhecido que estava diante de meus olhos. (Maria Helena Reis, 2013, p. 1)

Fica evidente que a minha constituição lei surgiu a partir dos “retalhos” de convívios
no espaço escolar e no espaço familiar. A colaboração da “estrela Dalva” e a participação
efetiva de meus pais foram significativas para a minha formação como professora de Língua
portuguesa e respectivas literaturas, embora meu pai e minha mãe tivessem baixa
escolaridade. Fica claro que os espaços sociais são propícios para que a produção de
significados, constituídos pelo sujeito na sua relação com o mundo partilhado por todos, nos
múltiplos contextos socioculturais, seja aflorada, desvelando subjetividades e identidades do
“sujeito singular/plural” (Josso,2004) e do sujeito “individual / social”. (Delory-
Momberger, 2012)
Ainda na cena inicial do filme, Finn surge como uma linda jovem que se prepara para
casar. Encontra-se frente a uma nova experiência, e, principalmente, por continuar a escrita
de sua dissertação, mostrando que essa jovem passou por diferentes percursos formativos
ao longo de sua vida. Da mesma forma que a jovem Finn, preparo-me para seguir por
minhas itinerâncias.
Considero que as identidades são construções simbólicas, sociais e discursivas. Deste
modo, é natural que na escola, o espaço culturalmente instituído (formalizado) para o
ensino e a aprendizagem, o nome assuma um traço que defina o ser, que o torna
reconhecível socialmente, naquela comunidade. Pois, o nome “[...] confirma e autentica
nossa identidade. É o símbolo de nós mesmos”. (Ciampa, 2005, p. 131, apud Rios, 2011, p.
48). Conforme evidencia o seguinte “retalho”:

Minha primeira professora se chamava Dalva. A estrela Dalva guiou-me com seu brilho
intenso numa altura suficiente para deixar sempre claros os caminhos que iria percorrer na
descoberta dos sons, das letras, das palavras faladas e, principalmente, escritas. Ela pegou
em minhas mãos e atravessou por vales rasos e profundos, ficando sempre atenta para
onde e por onde eu estava indo. Já no primeiro dia de aula ela nos ensinou a escrever o
nosso nome, pois dizia que ter uma identidade mostrava para os outros quem éramos e
que tínhamos uma família. Que ter um nome era um privilégio de “homens de bem”, por
isso deveríamos escrevê-lo em todas as nossas atividades escolares, e, acima de tudo,
“manter o nosso nome limpo” perante as pessoas com quem convivíamos, não fazendo o
mal. Talvez, isso explique por que até hoje faço questão de marcar a minha identidade em
tudo que faço, rabiscando meu nome. No terceiro dia de aula, eu já sabia escrever meu
nome completo, sozinha. Ficava orgulhava em escrevê-lo. Caprichava na caligrafia! Se por
um lado deixei meus pais bastante orgulhosos por outro lado, como primogênita,
estimulei-os a projetar o mesmo caminho para minha irmã, dois anos mais nova que eu, e
os outros quatro irmãos que vieram depois. Meu pai não escondia seu entusiasmo em ver
meu desenvolvimento cognitivo e social e fazia questão de evidenciar a importância da

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1158


escola. Ele dizia que a única coisa que ninguém poderia tirar de mim era o que eu aprendi,
pois só eu sabia onde o conhecimento estava, o que e o quanto eu aprendi [...]. (Ibid)

Nesses “retalhos” da minha infância, de inserção no mundo escolar – o mundo do


saber formalizado, o ato de ser nomeada adquire um reconhecimento e status social, traz
em si uma tradição, um pertencer a uma família. Estabelece uma relação de existência
pessoal e social, representa uma identidade. O nome é minha identificação, é pertencimento
ao grupo, na família e na escola. É um vínculo que me institui indivíduo (sujeito), que me
coloca em papéis estabelecidos pela boa conduta (atriz), “uma vez que “sujar o nome”
significa esfacelar a honra, os princípios instituídos pelo ato de nomear.” (Rios, 2011, p.48)
Desvela-se, aqui, uma representação simbólica da relação do ato de saber-fazer com
o aprender e ser estar no mundo. Há uma descrição da experiência marcada com orgulho
pela ação de aprender, posto que “[...] no terceiro dia de aula, eu já sabia escrever meu
nome completo, sozinha. Ficava orgulhava em escrevê-lo. Caprichava na caligrafia!”(Ibid)
Também, introduz a noção de tradição familiar ao estimular meu pai a projetar o
mesmo caminho para meus irmãos, uma vez que “meu pai não escondia seu entusiasmo em
ver meu desenvolvimento cognitivo e social e fazia questão de evidenciar a importância da
escola.” Demarca-se que a identidade adquire sentido por meio do sistema
simbólico/discursivo.
Ao desenrolar do filme, Finn parece que passa a fazer parte daquelas histórias
contadas pelas senhoras amigas e sua avó, que aquela também é sua história e coloca-se a
pensar o realmente quer e o que é importante para a sua vida. Passa a utilizar-se de todas
àquelas histórias como seu objeto de estudo. Assim como Finn, percebo em minhas
andanças traços da identidade docente de forma muito significativa com alguns professores
que tive. É possível perceber nas minhas andanças traços da identidade docente de forma
muito significativa com alguns dos professores que tive. Inspirava-me e ainda me inspiro
constantemente nestes. O retalho da docência imbricado a minha história de vida é o mais
evidente. Recorto “retalhos” que marcam diferentes fases de minha trajetória de via-
formação, da infância à fase adulta.

[...]Sai do colégio Santa Ângela sabendo ler e escrever, pronta para continuar a trajetória
escolar. A fala e conduta da professora Dalva contribuíram para a construção de minha
formação pessoal, religiosa e profissional. (Ibid)

A passagem pelo Colégio Santa Ângela foi marcada também pela minha formação
cristã, pois era uma instituição de ensino com base religiosa. A professora Dalva era uma
freira-professora. O lugar da escola é marcado em minhas memórias como um importante
passo para a construção da minha identidade pessoa-docente.
Nesse remexer da caixa de costura, encontro “retalhos” em minhas memórias das
práticas escolares que chegam ao período de minha adolescência, nos anos finais escolar (na
época ginásio):

A passagem pelo Colégio Carneiro Ribeiro foi marcada por crescimento pessoal, afetivo e
físico. Dois professores marcaram significativamente essa fase escolar. A Professora
Cerise, de português, pela sua dedicação e disposição em esclarecer as dúvidas dos alunos,
dizendo sempre que “as dúvidas devem ser tiradas em sala”, e que deveríamos usar a
maior parte do tempo em casa para brincar e ficar com a família, pois em casa deveríamos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1159


fazer os deveres apenas para reforçar o conhecimento. Seu discurso e postura profissional
estão presentes em minha prática docente. (Ibid, p.2-3)

Nessa fase de minha vida-formação retiro do baú de minhas memórias marcas que
penso ser, de fato, a criação de uma identidade profissional. Trago “retalhos” que foram
sendo tecidos desde a fase infantil, pois a professora Cerise, de português, fazia parte do
meu convívio diário, antes mesmo de ser sua aluna. Minha mãe era auxiliar de classe no
Colégio Carneiro Ribeiro, assim, desde os dois anos de idade. Nesse espaço, eu era “a filha
de Francisca”. Portanto, foi bastante natural que, de alguma forma, eu e professora Cerise
criássemos um laço de afetividade e tivesse interesse por estudar e aprender com ela o
português. Ela era uma das pessoas que me dava lápis e caderno para escrever. Durante os
intervalos diariamente ela verificava meus escritos.
Nos “retalhos” revisitados, também encontro o professor Vicente, de matemática. Há
nessas memórias(discursivas) um indicativo de punição simbólica, cujos efeitos refletem até
os dias atuais e transita entre a formação e minha prática docente. O que poderia configura-
se como um castigo, uma prática punitiva, uma “discriminação” àqueles(as) que não
acertassem a questão, revelou-se para mim/aluna um prêmio embutido no processo de
avaliação da aprendizagem, um culto ao meu empenho pessoal e crescimento intelectual,
um escudo/ suporte para o enfrentamento de ameaças futuras e vencê-las. Há toda uma
construção de que para se aprender é preciso confrontar-se com desafios, dificuldades,
medos, insegurança. Também, desvela-se uma identidade estudantil pautada na punição,
em castigos, entretanto estes são positivos, “não violentos”, não há violência física. Pois,

Confesso que até hoje me lembro de conteúdos ensinados por ele. A didática do professor
Vicente era simples. Seguindo a lista de nomes na caderneta, os alunos iam até o quadro
para resolver as questões que ele construía, assim, éramos preparados para enfrentar as
nossas dificuldades. Eu sentia calafrio sempre! Lembro-me que todos nós ficávamos
atentos para não errar na nossa vez. E, quando acontecia de alguém errar, ele dizia:
“vamos tentar até conseguir”. Passo a acreditar que a minha determinação possa ter
emergido desses momentos. (Ibid)

É interessante destacar que a experiência reverbera reflexos nas diversas esferas de


nossa vida social. A experiência com a matemática, no 3º ciclo da educação básica,
desembocou no desvelar de identidade pessoa-profissão, e reflete, principalmente, em
minha prática docente como professora de português. Fato que corrobora com a seguinte
fala de Souza (2006,p.129): “[...] As marcas deixadas pela experiência escolar imprimem
ritmos e formas de ser e estar no mundo que muitas vezes cristalizam subjetividades e
relações identitárias”.
Este espaço-tempo escolar se configura também como um lugar de estranheza, de
encontro do lugar tão conhecido por mim e ao mesmo tempo tão desconhecido. O sentir-me
estrangeira na escola passa pela construção do imprevisível, do incontrolável, colocando a
fronteira que me identifica à prova. O espaço da escola era bastante familiar, mas eu havia
saído de uma instituição de ensino religioso, onde só havia meninas.

Enfim, ingressei no colégio onde passei boa parte de minha infância como filha de D.
Francisca Helena, a auxiliar de classe. Cheguei ao tão desejado ginásio. Nesse local, já
conhecia até o cheiro das mangas que estavam maduras. Todos os professores do Colégio
Carneiro Ribeiro Filho eram conhecidos e me tratavam com muito afeto. Mas, durante o
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1160
primeiro mês na escola, o horário do intervalo foi bastante assustador para mim, que
estava acostumada a sair sempre da sala em fila. Da maneira como soava a sirene,
sabíamos que era a hora do intervalo. Todos saiam correndo da sala, meninos e meninas
se misturavam. Era uma grande confusão. Os alunos corriam até a cantina onde as
merendas eram distribuídas. Meus colegas pareciam “desesperados”. Aquela cena me
apavorava bastante. Lembro-me que duas vezes fui levada pela avalanche de alunos até o
início da escada onde consegui sentar-me com a cabeça baixa entre as pernas, bem
encolhida, no canto direito para esperar todos passaram por mim correndo, a fim de pegar
um bom lugar nas filas da merenda. (Ibid, p.2)

Nesse contexto, cruzar as fronteiras significa assumir posicionamentos híbridos. Isso


se configura como ser capaz de absorver o sentir-se estrangeira de uma forma própria,
muito particular, capaz de (res)significar experiências em novas configurações simbólicas
que vão constituindo suas subjetividades e, consequentemente, identidades. Estas
compreendidas como nunca unificadas, e, na pós-modernidade, “construídas de forma
múltipla nos diferentes discursos, práticas e posições, frequentemente entrecruzadas e
antagônicas.” Segundo aponta Rios (2011, p.45)
Conclui, então, o ciclo dos anos finais. “Afinal, eu havia crescido e estava indo para o
ensino médio. Achava-me pronta para novas experiências.”
Caminhei por iniciar a minha trajetória de formação profissional com quatorze anos
de idade, no Colégio Estadual Severino Vieira. “[...] Quando cheguei nessa escola, a grande
expectativa era sair dali com uma formação profissional, pronta para adentar ao mercado de
trabalho, [...] e ajudar nas despesas familiares.[...]”.De maneira que “Matriculei-me no
curso de Radator Auxiliar, onde iniciei a fantástica viagem no mundo das vernáculas.”
(Ibid.3) Deslumbrei esse caminho não como uma escolha, porém como fuga para os
problemas financeiros que minha família enfrentava desde que nasci. Naquela fase da minha
vida - na adolescência, “[...] meu pai não pode comprar todos os livros durante esses três
anos, passei boa parte do intervalo na biblioteca copiando[...]” Assim,”[...] conclui o Ensino
Médio com 16 anos de idade.” (Ibid) .
Nas cenas finais do filme surge um vendaval como prenúncio de tempestade. A
dissertação de Finn voa pela janela, podendo ser relacionada à metáfora das suas ideias.
Depois de um tempo, tudo parece estar mais calmo. Finn continua a escrita de sua
dissertação, agora com outro objeto de estudo. Associando esta cena a minha trajetória de
vida-formação, saltam das minhas memórias “retalhos” que pensei ou tentei não dar cor.
Menciono um “retalho” da fase da graduação, em especial um retalho que achei não ter
valor, àquele que surge na dialética dinâmica da vida, que fala muito de mim, do que sou ou
não sou, a partir de minhas escolhas e experiências, que me constitui sujeito numa tríade
pessoa-formação- profissão. Trago para bordá-lo mais uma vez porque ainda hoje
fundamentalmente apresenta marcas na minha memória e reflete na minha vida.

[...] a postura do professor de espanhol marcou minha vida acadêmica negativamente. Ele
aterrorizava suas alunas ameaçando-as perder na matéria que ele lecionava. O que me
desequilibrava era o fato de ele dar aula batendo forte na mesa constantemente, apenas
para criar um clima tenso. Seu comportamento me deixava irritada e desconcentrada em
suas aulas. Eu chegava em casa tensa. No 4º semestre [...] optei por abandonar a
disciplina[...]Adotei a postura de não gritar, não bater na mesa nem no quadro em
hipótese alguma, enquanto dou aula. (Ibid, p.4)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1161


Vemos aqui que a partir da dicotomia do social e individual, na dicotomia e sua
própria constituição subjetiva, surge novos sentidos que vão modificando a nós mesmos e as
nossas práticas. (González Rey,2003, citado por Scoz, 2011) Graduei-me no tempo previsto.
“[...] Entendi que minha decisão foi acertada. Até então eu era a única na família de seis
filhos a ser graduada. Tomei aquele momento como o começo de tudo que queria conquistar
por meio dos estudos.” (Ibid)
Após a tempestade, optei por caminhar e percebi a necessidade de continuidade no
meu processo formativo. Atuando como professora, busquei orientação de um velho amigo
da família, o professor Rosier, para fazer uma especialização e “[...] decidi por fazer a
especialização em Gramática e texto.” (Ibid,p.5)
Nesse período, reencontrei duas professoras que marcaram não apenas a época do
“vendaval” (na graduação), mas que “[...] Por diversas vezes, elas se debruçaram para ouvir
minhas aflições e anseios, a orientar-me na realização de trabalhos acadêmicos e práticas
pedagógicas.” Contribuindo, portanto, para que as novas experiências formativas fossem
bastante significativas. Desta forma, “A partir de tudo que partilhei com professores e
colegas no espaço da especialização, repaginei minhas práticas pedagógicas. Eu vi que o
processo da aprendizagem não tem fim, é um processo contínuo. Não queria mais parar.”
(Ibid)
A jovem Finn seguiu escrevendo sua dissertação, certa do que queria. Eu a escrever
sobre a minha história de vida e formação agregando mais um retalho a ser bordado com
outra especialização, Metodologia do Ensino Superior. Entendi o quanto a educação é feita
de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida. (Dominicé, 1988) “[...]
Compreendi que ser professora é uma conquista da qual não abro mão. Sou fascinada pelo
que faço! Percebi que optei por uma profissão que exige muito de mim sempre. Daí em
diante, sinto sede de conhecimento.” ( Ibid)
O filme termina com a avó de Finn cobrindo-a com a colcha de retalhos pronta. É
como se quisesse cobrir a neta com as histórias de amor que a colcha representava. E, de
fato, podemos pensar que somos cobertos em toda a nossa trajetória de vida-formação,
desde o nascimento até o fim de nossas vidas, pelas pessoas com quem nos relacionamos
em variados espaços e contextos socioculturais, nossos pais, avós, professores, familiares e
amigos, e tantos outros, e somos perpassados por experiências e escolhas que fazemos ao
longo de nossas itinerências.
Depois surge um corvo para conduzir Finn, consciente do que deseja, até o seu
verdadeiro destino: Sam, seu futuro marido. Na direção de meu desejo maior, trago o último
“retalho” que é o da continuidade de meu processo formativo, que culmina nesse processo
formativo-investigativo no Programa de Educação e Contemporaneidade, na Universidade
do Estado da Bahia/PPGEDuc, considerando-o meu lócus primeiro de formação, com a voz
da aprendiz/professora que deseja esse lugar. Finalizo com a certeza de que estar no
PPGEDuc contribuiu/contribui significativamente para ampliar não só meu percurso
acadêmico como a percepção acerca da minha formação e atuação docente. Logo,

Considero-me contemplada [...] com a oportunidade de biografar minha trajetória de


formação escolar, a qual desvelou minhas escolhas, evidenciou o entrelace de valores
familiares, pessoais e profissionais, as atitudes e as crenças que permeiam a minha visão
de mundo e minha postura como educadora. Recordei-me dos primeiros dias na escola,
chegando até os dias atuais. [...] Desembocou no desvelar de minha escolha profissional e

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1162


do significado da escola para mim, como espaço formal para aquisição de conhecimento.
Biografar essa trajetória trouxe à tona o quanto às experiências narradas marcou a minha
trajetória pessoal e profissional. Realizar esta atividade propiciou-me revisitar no baú de
memórias momentos que até então não percebia seu significado para mim. (Ibid)

Este “retalho” mostra que a escrita narrativa é um dispositivo que implica colocar o
sujeito em contato com suas lembranças e evocar as “recordações-referencias”. Constitui-se
um “caminho para si”, na medida em que se articula aos campos do conhecimento e de
ações mediante as diferentes buscas empreendidas pelo sujeito sobre a sua própria
narrativa, conforme aponta Josso (2004).
Ao revisitar minhas memórias e trajetórias, desvelo o lugar da escola, as marcas em
minhas memórias como um importante passo para o tecer das subjetividades e da minha
identidade pessoal e docente. Deixo transparecer que a docência e a minha história de vida
estão intimamente imbricadas. Que a construção de sentido de nossa vida é um processo
dinâmico e interminável de ouvir e ter histórias, mesclar nossas histórias com outras. A
história de nossas vidas, de fato, se constitui um cruzamento de fios tecidos pelas nossas
itinerâncias pessoais, experiências, sentimentos e emoções presentes na vida cotidiana que
suscitam reflexões a partir das lembranças para pensar os processos formativos numa tríade
vida-formação-profissão. Ratifico, desta maneira, o pensar de Nóvoa ( 2011) quando
assevera que o processo formativo do professor se passa não exclusivamente pelas
instituições formadoras, mas também “pela sua relação com o saber que se encontra no
cerne de sua identidade pessoal, pela sua prática nos espaços acumulador de experiências,
de trocas e de partilhas. ”
Os “retalhos” que constituiram a minha “colcha de retalhos”, que por sua vez
representam as vivencias e experiências formadoras, em função do saber que se resulta da
reflexão, permitiram-me perceber que a abertura que damos para a nossa própria
experiência é um dos caminhos para a (auto)formação. Pois, remete-nos a dimensão de
ouvir a nós mesmos, como se estivéssemos contando a nós próprios nossas experiências e as
aprendizagens que foram se constituindo ao longo de nossas vidas. Torna-se o
“conhecimento de si”. E foi esse movimento “heurístico”, de aprender pela descoberta, que
me permitiu entender perfeitamente que quando Nóvoa(1988) diz que “ Ninguém forma
ninguém, a pessoa é que se forma” .
Fica claro que a subjetividade se produz sob sistemas simbólicos e emoções que
expressam de forma diferenciada o encontro com histórias singulares, de instâncias sociais e
sujeitos individuais, com contextos multidimensionados. (Scoz, 2011) Subjetividade
entendida como portadora e produtora de significados constituídos pelos sujeitos na sua
relação com o mundo de partilha por todos, nos múltiplos contextos sociocultirais,
carregadas de sentidos, evidenciados, aqui, por meio da (minha) narrativa (auto)biográfica.
Também, que as narrativas operam como instrumento de construção e reconstrução
de identidades sociais, processos desenvolvidos no próprio ato de narrar, conforme aponta
Rios (2011, p.3)

Ponto conclusivo: considerações

O falar das itinerâncias pessoais e formativas que me constituíram/ constituem


professora me inseriu em um movimento dinâmico. Em um ir e vir contínuo, ultrapassando
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1163
as fronteiras entre passado e presente, repleto de sentidos que permeiam o meu ser/fazer
docente. Permitiu-me compreender o ser humano como um projeto inacabado que tem a
oportunidade de construir-se no dia a dia.
A (auto)investigação exigiu uma participação ativa num movimento que me fez sair
das minhas “trincheiras”, como diz Scoz (2003) ao citar Gozález Rey(2003), para lidar com a
complexidade e a aventura do confronto com processos que caracterizam a contínua e
múltipla construção de minha identidade e subjetividade. Colocou-me num intenso contato
com minhas “recordações referências” (Josso, 2004), simbólicas, carregadas de valores,
crenças, expectativas, aprendizagens, saber-fazer, numa viagem de profunda dialética de
produção e (trans)formação de sentidos, no processo de minha trajetória de vida-formação.
De modo que pude caminhar por apreender as marcas e implicações do itinerário escolar, de
minha vivência, experiências e as relações que estabeleci/estabeleço em diferentes tempos-
espaços escolares e sociais, ao longo minha trajetória de vida em formação.
Além disso, perceber o quanto a minha narrativa está permeada de sentidos,
histórias, trajetórias que me constituem/constituiu pessoa-profissional, com experiências
que determinam o sentido subjetivo da minha prática docente. Observar que as vivências e
experiências se convertem em “Retalhos que tecem subjetividades”.
Enfim, compreender que o movimento de construir e investigar a “escrita de si” torna
possível uma “reinvenção” e “transformação de si” (Josso, 2004,2010), na medida em que
damos abertura para um trabalho de escuta aguçada aos significados atribuídos por nós,
professores, as nossas experiências, enquanto sujeito individual e social. E entender quando
Nóvoa (1988) assevera que a formação se vincula a um trabalho de “reflexividade”, e que
não há separação entre “o eu pessoal e o eu profissional do professor”.
Por isso, corroboro, com Souza (2006) quando enfatiza a necessidade de realizar
pesquisas educacionais tendo como pano de fundo as narrativas das trajetórias de
escolarização e formação. Evidencio e (re)afirmo a relevância do trabalho com narrativas
(auto)biográficas em educação, visto que abarca a globalidade da vida em todos os seus
aspectos e dimensões: passado, presentes e futuro na sua dinâmica própria, como cita Josso
(2004).
Saliento que o movimento formativo não se finda nesta escrita, visto que não é
estanque, mas sim dinâmico e criativo. Continuo em minhas andanças numa busca
incessante por (trans)formar minha prática pessoal e profissional. Por isso, reforço a
pertinência do trabalho com narrativas de (auto)formação, as histórias de vida em formação,
como forma de valorização e respeito pelas histórias de vida–profissão dos professores nos
espaços acadêmicos.

Alinhavo da costura: referências bibliográficas


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1165


Contribuições da psicologia da educação na formação dos discentes do curso de
licenciatura em Matemática: narrativas de uma experiência no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) – Campus de Camaçari

Maria Raidalva Nery Barreto


IFBA
raibarreto@gmail.com

O presente trabalho tem como objetivo evidenciar a importância da “Psicologia da Educação” na prática
docente dos futuros Licenciados em Matemática. Para tanto, foram analisadas as narrativas das (os)
graduandas (os) vinculadas (os) Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) – Campus
de Camaçari, matriculadas no Componente Curricular em pauta. Convém acrescentar que a formação dos
professores, atualmente, passa por momentos de reflexão e mudanças em nosso país. Dentre muitos dos
motivos que desencadeiam esta situação, podemos citar a concepção que o professor tem de si mesmo
enquanto ator social e a importância do processo educativo para a sociedade. Nessa perspectiva, o
Componente Curricular em pauta é muito importante e muito rico para a formação docente, visto que o
graduando pode, dentre outras coisas, refletir sobre si mesmo e sobre os sujeitos que futuramente encontrará
em sala de aula. Para nortear esse estudo foram utilizados, como referência, os seguintes autores: Almeida
(2008); Josso (1988, 2004); Bueno (1996); Lima (2008); Passeggi (2003); Pimenta e Lima (2004); Pineau (1988);
Nóvoa (2004); Souza (2004), além de outros. Convém ressaltar que optar pela carreira docente não é uma
tarefa, diante dos novos problemas nomeadamente: a heterogeneidade da maioria das turmas em termos de
etnia, cultura, condições materiais de vida, interesse e ritmos de aprendizagem. Ante o exposto, tem-se a
seguinte problemática de investigação: Em que medida o Componente Curricular “Psicologia da Educação”, no
Curso de Licenciatura em Matemática, possibilita uma reflexão crítica da prática docente de modo a contribuir
positivamente para a atuação dos futuros licenciados? Esse texto relata a narrativa de algumas discentes em
relação ao significado da Psicologia de Educação para a sua vida acadêmica, profissional e pessoal, portanto
retifica a importância das mesmas como parte do Currículo do Curso de Licenciatura em Matemática.
Palavras-chave: Narrativas; Licenciatura em Matemática; Psicologia da Educação.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo evidenciar a importância da “Psicologia da


Educação” na prática docente dos futuros Licenciados em Matemática. Para tanto, foram
analisadas as narrativas das (os) alunas (os) vinculadas (os) Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) – Campus de Camaçari, matriculadas no Componente
Curricular em pauta.
O referido Campus fica situado no município de Camaçari, considerado um a potência
industrial do nordeste, situado na região metropolitana, localizado a 42 Km da cidade de
Salvador, com acessos pela BR-324, BA-093, BA-099 e BA-535. Esta cidade se constitui em
um local estratégico e privilegiado para a implantação do referido Campus, devido à sua
localização próxima aos complexos industriais mais importantes da Bahia (o Centro
Industrial de Aratu – CIA, cuja extensão engloba os municípios de Lauro de Freitas, Simões
Filho e Candeias, e o Pólo Petroquímico)274.
O componente Curricular Psicologia da Educação possui 60 horas e é ministrado no
segundo semestre letivo, conforme projeto do Curso de Licenciatura em Matemática. Ante o
exposto, temos o seguinte questionamento: Em que medida o Componente Curricular

274
Informações retiradas do Projeto do Curso de Licenciatura em Matemática, Campus de Camaçari.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1166
“Psicologia da Educação”, no Curso de Licenciatura em Matemática, possibilita uma reflexão
crítica da prática docente de modo a contribuir positivamente para a atuação dos futuros
licenciados?

Para responder tal questionamento faz-se necessário a análise da narrativas do


Graduando do referido curso. No tocante às narrativas aqui consideradas pela docente
pesquisadora como elemento fundante da pesquisa, no sentido de compreender a
importância que a Psicologia da Educação teve na formação dos (as) discentes. Convém dizer
que as falas expressam os sentimentos construídos no decorrer do curso..

Segundo Josso (2007, p. 414):


Os lugares educativos sejam eles orientados para uma perspectiva de
desenvolvimento pessoal, cultural, de desenvolvimento de competências sociais
ou ainda para uma perspectiva de formação profissional, acolhem pessoas cujas
expectativas e motivações a respeito da formação e dos diplomas referem-se,
tanto a problemáticas de posicionamento na sua vida quotidiana e na sua ação em
nossas sociedades em plena mutação, como às questões e problemáticas ligadas à
compreensão da natureza dessas próprias mutações.

Concorda-se com Josso, uma vez que nas falas dos estudantes se percebe o que a
Psicologia da Educação representou para eles, bem como o seu imbricamento com suas
histórias de vida e com suas vivências cotidianas. É como se nessas narrativas dissessem o
que sabem e o que não sabem e aí se insere o referido Componente Curricular como um
lugar de informação, como também de reflexão. É desse lugar que trataremos a seguir.

A voz dos sujeitos da pesquisa

A nossa intenção recai sobre as narrativas de seis estudantes do Curso de


Licenciatura em Matemática, conforme foi anunciado no início desse texto, pois ao se narrar
sobre o vivido se tem como finalidade demonstrar quando os fatos da vida se entrecruzam,
os fios se tecem, costuram-se as ideias, significa ainda tirar do esquecimento, buscar o
objeto narrado. O objeto aqui se chama Psicologia da Educação. Nessa visão, recorre-se às
palavras de Bosi (2003, p.20) quando afirma: “Lembrar não é reviver, mas (re) fazer. É
reflexão, compreensão do agora a partir do outrora, é sentimento, reaparição do feito e do
ido, não sua mera repetição”. Foi o que aconteceu com os sujeitos ao trazerem a todo o
momento, nos seus relatos, o sentimento de pertença ao curso em pauta, a descoberta de
caminhos, para rever o instituído, a importância da relação professor-aluno, e a convicção
de que é possível associar teoria á prática, como também a própria vida
Nessa perspectiva, ao serem questionados se gostam das aulas de Psicologia da
Educação, eles responderam:

Sim, porque aprendemos a estudar os comportamentos das pessoas e o


funcionamento do cérebro no quesito de formação do conhecimento. Como
estamos nos formando em professores, então a psicologia se torna extremamente
importante pela influência findamental no processo pedagógico educacional do
aluno (A.L.R, 2014).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1167


Gosto muito das aulas de Psicologia da Educação, porque amplia o nosso
pensamento no que diz respeito ao comportamento e desenvolvimento do
conhecimento, do homem (V.L.A. 2014).

Gosto das aulas de Psicologia da Educação porque são participativas. Todos os


alunos participam dando opinião, fazendo leitura ou comentando brevemente um
vídeo. Isso deixa a aula dinâmica (A.S.P, 2014).

A Psicologia da Educação é fundamental porque nos possibilita a ter várias


maneiras de avaliar e educar os alunos. Nos faz entender melhor nossas limitações
e sendo assim saberemos conduzir de uma forma clara, inteligível qualquer que
seja as nossas orientações dadas nas séries iniciais (D.S.C., 2014).

Sim, porque nos ajuda a entender os comportamentos das pessoas e adquirirmos


mais conhecimento nessa área (J.E.C.P, 2014).

Sim, porque há uma interação maior com os colegas em sala de aula. É neste
momento que conversamos sobre a importância da psicologia nas nossas vidas e
como é extenso o seu significado, para traduzir o ser humano na sua tão sublime
essência (L.B.V, 2014)

A partir da análise das narrativas dos sujeitos da pesquisa foi possível entender o
significado e a importância da Psicologia da Educação no sentido de conhecer o
comportamento humano em seus diversos aspectos (sociais, cognitivos, subjetividades e
outros), como também de ajudá-lo em sua vida pessoal e na docência, como futuros
Professores de Matemática. Neste momento os fios que se cruzam se entrelaçam para dar
sentido à prática pedagógica.
Ao serem indagados sobre em que medida as discussões que ocorrem nas aulas de
Psicologia da Educação contribuem para sua vida pessoal, ou seja, contribuem para melhoria
dos seus relacionamentos com os filhos e demais familiares, eles responderam:

Na medida em que as discussões passam da sala de aula e levo para minha casa. A
minha casa é meu laboratório, minha prática das aulas de Psicologia. Pego algumas
teorias de Piaget e me coloco como educador tentando enxergar a veracidade nas
crianças do meu lar (A.L.R., 2014)

As discussões que ocorrem na sala de aula contribuem muito para o meu


relacionamento com familiares, pois me faz entender que cada pessoa tem uma
personalidade e pensamentos diferentes, mesmo sendo da mesma família (V.L.A.,
2014).

Durante uma das aulas comentei que agora conseguia entender minha aluna de
três anos. A dificuldade que ela apresentava na fala era, possivelmente, em
decorrência da ausência de comunicação entre ela e seus familiares. Eles
provavelmente não tinham paciência em escutá-la. Cheguei a esta conclusão ao
observar seu desenvolvimento no decorrer do ano, vendo o esforço que ela faz
para pronunciar as palavras corretamente (A.S.P, 2014).

Em minha vida contribuiu em uma escala grandiosa, porque me fez ter mais
paciência com meu filho que é hiperativo, visto que apenas ele faz
acompanhamento psicológico eu achava que era suficiente, porém vi em algumas
aulas de psicologia que eu agia errado com ele. A professora falou da maneira

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1168


errada das mães educarem, quando desqualificar seus filhos. Busquei dentro de
mim todas as vezes que agir de maneira grosseira com ele, chamando-o de burro,
lerdo, desobediente, etc. Entretanto com as orientações dadas nas aulas mudei o
meu proceder, ao invés de depreciá-lo com essas palavras eu faço elogios mesmo
quando estou dando bronca. O resultado foi maravilhosos, com minha maneira
diferente de agir com ele, meus familiares também mudaram com meu filho
(D.S.C., 2014).

A maior contribuição das discussões de sala de aula de Psicologia da Educação foi a


interação em sala de todos os alunos expondo suas opiniões, debatendo,
discordando ou concordando, etc., contribuindo assim para uma grande melhoria
na minha vida pessoal, pois quando converso sobre um tema com meus familiares
eles percebem que o meu conhecimento é maduro [...] (J.E.C.P., 2014).

As discussões são bem significativas quando todos os alunos participam do diálogo.


Para mim, tem sido bem gratificante, pois melhorei minhas relações intra e
interpessoais. também aprendi mais a ouvir as pessoas (L.B.V., 2014).

Ao relatar a sua experiência os (as) alunos (as) vão demonstrando a importância da


teoria bem como a sua relação com a prática, inclusive nas reflexões acerca da sua própria
vida. Neste momento, os acontecimentos tecem-se, o olhar volta-se para o passado, para a
própria vida. Neste momento lembra-se de Soares (2001, p.31) quando afirma: “Olho para
trás, observo o bordado, tento adivinhar o segredo do risco. E então vejo que não é um risco
harmonioso, de um bordado em que cada forma se vai acrescentando à anterior e a ela se
ajustando”.
Os riscos, ou seja, os fios que teciam as trilhas da viagem eram inseguros, é assim que o
graduando no decorrer do curso. Deste modo, lembra-se Ianni (2003), pois toda viagem tem
caminhantes, negociantes, turistas, pesquisadores missionários, fugitivos, atravessando
fronteiras buscando o outro recriando o eu .
Diante do exposto, acredita-se que lecionar nunca foi uma tarefa fácil e com a
massificação do ensino, surgiram novos problemas nomeadamente; a heterogeneidade da
maioria das turmas em termos de etnia, cultura, condições materiais de vida, interesse e
ritmos de aprendizagem. Optar pela carreira docente, atualmente, só pode ser considerado
um verdadeiro ato de coragem ou de verdadeira escolha, quem sabe? A carreira de docente
é, no entanto, um verdadeiro desafio, considerando as novas exigências acrescentadas ao
trabalho do professor na sociedade contemporânea. Nessa linha de raciocínio, compreende-
se a importância da Psicologia da Educação na formação dos futuros professores de
Matemática.
Para Ferreira, Prado e Varani (2007, p. 10) “evidenciar as práticas educativas
através da narrativa é acreditar que ao narrá-las, os profissionais da educação permitem-se
um modo outro de refletirem sobre o próprio trabalho e conseqüentemente inscrevem-se
em um novo patamar de formação e autoformação”
Sendo assim concordamos com Souza (2004, p. 222), pois através das narrativas
“torna-se possível desvendar modelos e princípios que estruturam discursos pedagógicos
que compõem o agir e o pensar do (a) professor/ professora em formação”.
As falas dos sujeitos da pesquisa revelam que o Componente Curricular “Psicologia
da Educação” não cumpre apenas uma exigência burocrática, ele se constitui de fato um

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1169


espaço de formação, reflexão e construção de saberes que contribuirão significativamente
na prática docente dos futuros Professores de Matemática. Observa-se também que: “O
aprender contínuo é essencial e se concentra em dois pilares: a própria pessoa, como
agente, e a escola, como lugar de crescimento profissional permanente” (NÓVOA, 2002, p.
23). Desse modo, infere-se que:

O ato de escrever exige esforços cognitivos e metacognitivos, suplementares para


reinterpretar interpretações anteriores. Na busca de um enredo para sua história, a
narradora seleciona, estabelece relações, organiza os fatos, encontra justificativas,
clarifica sua prática e suas representações de si (inter) agindo no mundo. Nesse
processo, ela se re-conhece, re-descobre suas relações com os saberes práticos em
questão, com o grupo, com a instituição formadora, mas, sobretudo, com seus
alunos (PASSEGGI, 2002, p.13),

Ante o exposto, ao se mencionar os saberes necessários à formação docente, fica


claro que esta formação é um processo inconcluso, que não se restringe a apenas aos
conhecimento adquiridos em apenas um Componente Curricular.
Entretanto, Ramalho e Nunez (2004) centram sua atenção no processo formativo
inicial, por acreditar ser este o ponto de partida dos processos de profissionalização.
Segundo os autores, há uma expectativa gerada pela possibilidade de se renovar à formação
inicial, para que ela contribua na “revolução” do âmbito educacional.
Esta tendência de profissionalização do professor a partir da formação inicial, só se
concretizará mediante a superação do paradigma hegemônico de formação que dicotomiza
a teoria da prática, se desenvolve de maneira desarticulada da escola e vê o professor como
executor, reprodutor de saberes, por um paradigma que possibilite ao professor participar
da construção de sua profissão através da reflexão, da pesquisa e da crítica.
A articulação deste trinômio deverá se dar de maneira dialética, pois um não
pressupõe o outro, eles se complementam como elementos essenciais à construção da
identidade profissional. Além disso, ao se destacar esses elementos, coloca-se o professor-
estagiário no centro dos debates educacionais, o que lhe confere reconhecimento como um
sujeito histórico, que no decorrer do seu desenvolvimento profissional apresenta
necessidades, limitações e interesses.
Desta forma, reconhece-se os professores como atores competentes, sujeito ativo,
isto irá repercutir em sua prática, já que esta passa a ser concebida não só como um espaço
de aplicação de saberes, mas como um espaço de produção de saberes específicos oriundos
desta prática (TARDIF, 2002).
Na contra mão dos estudos que consideram os professores como sujeitos que
possuem, utilizam e produzem saberes específicos na sua prática, há um discurso que
enfatiza “[...] de pouco ou nada servirá mantermos a formação de professores nas
universidades se o conteúdo dessa formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma
reflexão sobre os saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo,
etc.” (DUARTE, 2003, p. 620).
De acordo com esse discurso, a ênfase dada aos estudos na área da epistemologia, da
prática e do professor reflexivo, tende a desvalorizar os saberes escolares e os
conhecimentos científicos/teóricos. Para Duarte (2003), estes novos paradigmas estão sendo
impulsionados pela epistemologia pós-moderna e pelo pragmatismo neoliberal que veneram
a subjetividade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1170
Não é necessário muito argúcia para perceber que tais argumentos propõem uma
visão racionalista do professor, ou seja, a subjetividade fica reduzida a uma visão
instrumental e intelectualista..
A utilização da pesquisa como atividade profissional torna o futuro docente
construtor da sua prática, de saberes como enfatiza Ramalho e Nunez (1998, p. 27) na
seguinte assertiva: “A pesquisa como ferramenta da reflexão crítica da prática, contribui
para a construção de novos saberes, para se lograr uma autonomia profissional que se
constrói no coletivo do trabalho”.
Desta forma, trabalhar a formação inicial, particularmente, a partir da pesquisa,
tenderá a levar a uma atitude crítica que desencadeará em uma inovação educativa,
mediante uma visão dialética entre a teoria e a prática. Sendo assim, o professor não será
formado para se ajustar ao sistema educacional, mas para adquirir habilidades, para
problematizar, pesquisar e ensinar dentro do contexto escolar.
A lógica que permeia essa proposta de formação é desenvolver a autonomia e a
responsabilidade do professor para que assim, assuma uma atitude de compromisso com a
democratização, o diálogo, o comprometimento e a abertura para a diversidade presente
também na sala de aula.
No que se refere à crítica enfatiza-se que a mesma se constitui numa atitude que
norteia à (re) leitura da realidade educativa, sob-referências que possibilitam compreender e
transformar essa realidade educativa (RAMALHO e NUNEZ, 1998, p. 32). Portanto, a
transformação só é possível mediante melhor exercício da docência e das ações educativas
dentro e fora do espaço escolar. Adotar a perspectiva crítica significa a superação da razão
instrumental, que prima pela racionalidade técnica e por um saber aplicado, pela razão
emancipatória.

Considerações finais

Inicialmente, este trabalho buscou trazer para o debate acadêmico a importância e a


obrigatoriedade do componente Curricular “Psicologia da Educação” e, para tanto,
apresentou alguns referenciais teóricos. Em seguida, foram transcritas as falas dos alunos,
vinculadas ao Curso de Licenciatura em Matemática, oferecido pelo Instituto Federal de
Educação, Ciências e Tecnologia da Bahia (IFBA), Campus de Camaçari.
As narrativas possibilitaram a autora, bem como aos narradores, um conhecimento
das suas possibilidades e saberes construídos a partir das discussões e leituras realizadas no
decorrer do Componente Curricular em pauta. O exercício do encontro consigo e com o
outro, o descortinar de um pensamento novo e de uma maneira nova de ver o mundo.
Significa ainda, olhar para trás e observar que o bordado não está pronto, muitos riscos
ainda estão por virem, muitos fios precisam se entrelaçar.
Conclui-se afirmando que o Componente Curricular Psicologia da Educação trouxe
contribuições significativa para a vida pessoal e profissional dos alunos vinculados ao curso e
a instituição em pauta .

Referências
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1171


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Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
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educação nacional. Disponível em:<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 30 maio 2008.
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DUARTE, Newton. Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor
(por que Donald Schön não entendeu Luria). Disponível em:
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IANNI, Otávio- A Metáfora da Viagem. In Enigmas da Modernidade. Civilização Brasileira
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JOSSO, Marie – Cristine. A transformação de si a partir da narração de histórias de vida.
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 413-438, set./dez. 2007
NÓVOA, A. (org.) Vidas de Professores. Porto: Porto Editora, 2002.
PASSEGGI, Maria da Conceição. Narrativa autobiográfica: uma prática reflexiva na
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RAMALHO, B L.; NUÑEZ, I. B. A Formação inicial e a definição de “modelo profissional”. In:
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SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de
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TARDIF. Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
VARANI, Adriana; FERREIRA, Claudia Roberta; PRADO, Guilherme Do Val Toledo (Orgs.). Narrativas
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1172


Do leme ao pontal: a travessia de si no tornar-se professor(a)

Maximiano Martins de Meireles


UEFS
maxymuus@hotmail.com

Este trabalho aborda processos formativos de estudantes de Letras, a partir de escritas autobiográficas. Nesse
sentido, tomando como eixo fundante as narrativas de si, buscaremos demarcar que o sujeito–professor está
imbuído de uma trajetória de formação - pessoal e profissonal, compreendendo que nessas histórias, nesse
falar de si e do outro, nas experiências e acontecimentos narrados, é possível capturar pontos emergentes de
identificação e marcas indeléveis que constituem os sujeitos nesse tornar-se professor(a). Para constituir o
corpus deste trabalho, foram utilizados recortes discursivos de memoriais de formação de estudantes do Curso
de Licenciatura em Letras Vernáculas. Os recortes discursivos foram analisados a partir dos pressupostos
teórico-metodológicos da Análise de Discurso de Linha Francesa em diálogo com os Estudos Culturais, as
discussões no campo da Formação de Professores e dos Estudos (Auto) biográficos. Ao puxar os fios das
experiências narradas foi possível cartografar um pouco da vida, escolarização e formação docente. A partir
dos relatos, pode-se inferir que o sujeito-professor se constitui a partir de diferentes experiências e vozes que
vão tecendo sua subjetividade. Assim, tomado por identificações que longe de o fixar, estabilizando suas
características, o transforma em um sujeito processo, em constante trans-formação, fazendo entrever,
portanto, identidades docentes em travessia.
Palavras-chave: Escrituras de si; Memoriais de Formação; Identidades docentes.

O “iniciar” da travessia...

O presente texto narra a travessia realizada por uma estudante de Letras para tornar-
se professora. A-borda itinerários formativos a partir de escrituras autobiográficas escritas e
narradas oralmente. Desse modo, tomando como eixo fundante as narrativas de si,
buscaremos demarcar que o sujeito–professor está imbuído de uma trajetória de formação -
pessoal e profissonal, compreendendo que nessas histórias, nesse falar de si e do outro, nas
experiências e acontecimentos narrados, é possível capturar pontos emergentes de
identificação e marcas indeléveis que constituem o sujeito nesse tornar-se professor(a). Para
constituir o corpus deste trabalho, foram utilizados recortes discursivos da entrevista e do
memorial de formação da referida estudante. Os recortes discursivos foram analisados a
partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso de Linha Francesa
(ORLANDI, 2008) em diálogo com os Estudos Culturais, as discussões no campo da Formação
de Professores e dos Estudos (Auto) biográficos.

Os percursos de vida-formação: travessias no tornar-se professor

No presente trabalho, estamos concebendo a identidade como um processo que se


define historicamente, uma vez que é no movimento da história que os sujeitos se formam e
se transformam (HALL, 2006). Dessa maneira, compreender os processos identitários dos
estudantes de Letras, professores em formação, implica, de algum modo, em capturar a
historicidade do sujeito, as redes de significações sobre a docência que foram sendo
construídas e reelaboradas em suas trajetórias pessoais e em seus percursos
escolares/formativos, conhecendo assim, um sujeito social a partir de uma práxis individual
(FONTANA, 2010).
Desse modo,
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1173
O processo em que alguém se torna professor(a) é histórico [...] Nas tramas das
relações sociais de seu tempo, os indivíduos que se fazem professores vão se
apropriando das vivências práticas e intelectuais, de valores éticos e de normas que
regem o cotidiano educativo e as relações no interior e no exterior do corpo
docente. Nesse processo, vão constituindo seu ‘ser profissional’ na adesão a um
projeto histórico de escolarização (FONTANA, 2010, p. 50).

As pesquisas desenvolvidas no campo da História Oral, mais especificamente dos


Estudos (Auto)biográficos, ao se debruçarem sobre as histórias de vida revelam que a
constituição das identidades docentes são processos para além da formação inicial,
incluindo experiências anteriores ao ingresso do estudante no curso de licenciatura. A tríade
vida-formação-profissão tem um lugar de destaque nessa discussão, visto que as histórias de
vida incidem na prática docente, bem como nas representações sobre o ensino, a
aprendizagem, o aluno e a profissão, configurando o modo como cada um vai se tornando
professor.
É neste sentido que muitas pesquisas assumindo a ideia da constituição recíproca
entre o eu pessoal e o eu profissonal buscaram cartografar nas histórias de vida “as
maneiras como cada um sente e se diz professora e como foi se construindo, entre modos
distintos e conflitantes de encarar a profissão docente” (FONTANA, 2010, p.48).
Os estudos (Auto)biográficos sinalizam que os sujeitos são também fruto daquilo que
vivenciaram no passado, da forma como interpretam este passado à luz do presente, na
projeção de um futuro. São pessoas, sujeitos que pensam, sentem e refletem seus
sentimentos, seus atos e suas escolhas. Nessa perspectiva, é possível tirar proveito
pedagógico do passado, ao refletir sobre as experiências: “como e por que me tornei
professor”? “o que é necessário para ser professor de Língua Portuguesa? Dessa maneira, as
narrativas biográficas são percebidas como “biografias educativas” como elementos
(auto)formativos (JOSSO, 2002), pois permitem refletir sobre o passado para propor novas
ações tanto no tempo presente, quanto no tempo futuro.
A narrativa de formação oferece, assim,

Um terreno de implicações e compreensão dos modos como se concebe o passado,


o presente e, de forma singular as dimensões experienciadas da memória da
escolarização. Entender as afinidades entre as narrativas, o processo de formação e
autoformação [...] a partir das trajetórias de escolarização, é fundamental para
relacioná-las com os processos constituintes da aprendizagem docente. Desta
forma, as implicações pessoais e as marcas construídas na trajetória individual [...]
revelam aprendizagens na formação e sobre a profissão (SOUZA, 2006, p. 101).

Neste sentido, a maneira como cada um se sente e se diz professor (NÓVOA, 1992) é
perpassada pela experiência de vida, assim como pela memória que captura e articula
fragmentos do passado ressignificando imagens sobre o ser professor, trazendo um
sentimento de identidade (BRAGANÇA, 2008, p. 77). Nessa perspectiva, as narrativas de vida
possibilitam a compreensão do processo identitário dos professores/as de forma situada no
contexto sócio-histórico, considerando as dimensões pessoais, profissionais e sociais, no
curso do tempo (BRAGANÇA, 2008).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1174


As ideias de Bragança (2008) apontam para o sentido de que, na formação docente, o
exercício de narrar o passado possibilita emergir uma versão sobre nós mesmos, os
momentos de (des)encontros com a profissão e, também, imagens sobre a docência
entranhadas no imaginário coletivo e individual. Desse modo, tornar-se professor/a é um
processo que extrapola a formação inicial, uma vez que nossas vivências familiares, assim
como nossas trajetórias escolares, as inúmeras experiências sociais, históricas e culturais
influenciam na nossa concepção e escolha da profissão. Nessas trajetórias, nesses processos
vividos, que se dão permeados por imagens e histórias, fomos, portanto, aprendendo a ser
professor/a (ALVES, 2008).
Dessa perspectiva,

A identidade profissional vai se plasmando em um processo de construção


permanente que só acontece no horizonte da conquista da auto-determinação e
do vir a ser. O(A) professor(a) ao ingressar na profissão docente conhece aspectos
do ritual da escola e do profissional que lá atua, pois já interagiu neste espaço, de
algum modo, como aluno, estagiário ou observador. A formação da identidade
profissional traz imbricada a necessidade de se instaurar um processo de
desconstrução e reconstrução do modelo social do que é ‘ser professor’ e, em
muitas situações do que é escola e até mesmo o que é aula ou sala de aula (SAVELI,
2006, p. 102).

Nesse campo semântico, podemos inferir que as identidades docentes de estudantes


Letras vão se constituindo, também, a partir das relações estabelecidas ao longo de seu
percurso de formação com os professores. Conforme ressalta Cunha (2006, p. 259),

Todos os professores foram alunos de outros professores e viveram mediações de


valores e práticas pedagógicas. Absorveram visões de mundo, concepções
epistemológicas, posições políticas e experiências didáticas. Através delas foram
se formando e organizando, de forma consciente ou não, seus esquemas
cognitivos e afetivos, que acabam dando suporte para sua futura docência
(CUNHA, 2006, p. 259).

Sobre esta questão, os estudos de Witzel (2003) ressaltam que as experiências dos
estudantes com os seus professores deixam marcas que vão configurando suas identidades
docentes. A escolha e o modo como representam a profissão está, de alguma forma,
ancorada no resgate de um passado, de um ‘já vivido’ em cujas representações há imagens
de professores marcantes, que se recuperam os modelos da profissionalidade (WITZEL,
2003) e de saberes necessários ao exercício da profissão.
O resgate da memória, das relações estabelecidas, das experiências formativas
permite ao professor/a um reconhecimento do “saber que sabe”, isto é, a percepção crítica
das possibilidades, limites, implicações decorrentes da formação inicial. Sendo assim, além
de possibilitar ao professor/a construir sentidos sobre suas trajetórias, possibilita, ainda, um
devir, ou seja, uma projeção daquilo que se pretende construir e experimentar como
futuro/a professor/a de língua portuguesa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1175
As narrativas de vida permitem ao/a professor/a pensar e apropriar-se das
experiências formativas e dos saberes biográficos e docentes que foram atravessando suas
trajetórias de vida-formação-profissão. Assim, num movimento heurístico e autopoiético os
sujeitos ressignificam conhecimentos, experiências e aprendizagens (SOUZA, 2008, p. 130),
reorientando, portanto, a construção de sua(s) identidade(s) docente(s).
Na construção de sua autobiografia, o/a autor/a – professor/a tece sua história
desvelando aspectos significativos para sua vida-formação-profissão, sendo, também, um
modo de cada autor/a modificar-se (PASSEGGI, 2008), por se tratar de uma prática heurística
e autopoiética, possibilitando uma “reinvenção de si” (JOSSO, 2002).
Para Passeggi (2000, p. 15), as narrativas de formação são concebidas como
processos de intervenções férteis que podem potencializar a transformação dos sujeitos,
visto que entrelaçam processos de autoria e de construção identitários é um ato formativo,
no qual “dizer” é “ser”. Desse modo, possibilita ao sujeito construir um conhecimento sobre
si mesmo, sobre os outros e sobre o que lhe acontece, potencializando o contato com sua
singularidade e a reflexão sobre sua identidade (PASSEGI, 2008).
Para além das narrativas como uma forma de evocação de memórias, de percursos,
temos aqui a dimensão heurística e autopoiética, constitutiva da descoberta do que o
professor/a sabe sobre si (PASSEGI, 2008). Nessa perspectiva, as narrativas se configuram
como lugar de reconstrução de saberes identitários, sendo que sua dimensão heurística se
constrói à medida que as professores/as vão se percebendo como sujeitos em trans-
formação, capazes de reinventar e reconstruir pensamentos e atitudes em relação ao ser, ao
modo de ser e de estar na profissão, como professores/as de Língua Portuguesa.
Do nosso ponto de vista, ao puxar os fios das experiências vividas e narradas pelos
estudantes de Letras é possível tecer a malha do conhecimento construído por eles ao longo
de suas trajetórias pessoais e formativas (SAVELI, 2006), bem como entender de que modo
as representações sobre o ‘ser professor’ foram sendo produzidas em seu cotidiano. É um
movimento que nos permite, portanto, entender os processos identitários de futuros/as
professores/as de língua portuguesa. Nesse sentido, no texto que se segue, narramos a
travessia realizada por Adélia nesse tornar-se professora.

Adélia: a travessia de si no tornar-se professora

Adélia é estudante do sétimo semestre do Curso de Letras Vernáculas, tem 22 anos,


nasceu e mora em Feira de Santana. Adélia sempre estudou em escola particular, pois,
segundo ela, a mãe sempre prezou por uma “educação de qualidade”. Filha de professora,
sua mãe tem 25 anos de docência na educação básica, atuando nas séries iniciais do ensino
fundamental.
É importante destacar que a estudante teve a primeira experiência na docência no
quarto semestre do Curso quando realizou estágio em Língua Portuguesa, com turmas de
primeiro e segundo ano do ensino médio; e no sétimo semestre, teve a segunda experiência,
em turmas de Educação de Jovens e Adultos - EJA, do segundo e terceiro ano do ensino
fundamental - séries iniciais. Parece-nos que ela decidiu realizar esses estágios –
remunerados – através do IEL, por causa de sua indignação frente ao curso de Letras que só
oferece estágio a partir do sétimo semestre: “Como é que faz, em pleno sétimo semestre, a
gente nunca entrou em sala de aula? Complicado”. E também pela sua inquietação:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1176
“Realmente, eu quis ir justamente para isso, eu falei: eu vou para ver como é, quero ver como
é, se vou gostar, se é isso mesmo” (ADÉLIA, ESTUDANTE DO SÉTIMO SEMESTRE/
ENTREVISTA).
Segundo Adélia, quando ela pensou em prestar o vestibular para o curso de Letras, as
pessoas do seu núcleo familiar foram contra, principalmente sua mãe,
Meus pais não queriam que eu fizesse o vestibular para o curso de Letras. Minha
mãe principalmente, porque minha mãe é professora. Como eu lhe falei, ela não
queria porque professor se acaba, professor ganha pouco, porque ave Maria! Na
família, todo mundo ficou contra, só não uma tia minha, que é professora também.
Quando eu falei que eu ia fazer, ela falou: (nome do entrevistado) “faça, é bom!”
Porque assim, ela já vive em outra área, minha tia é doutora, né? Já é outro
mundo. Minha mãe não, minha mãe ensina de 1ª a 4ª, aí para ela é um inferno. Ela
não queria de jeito nenhum. Meu pai também não, meu pai queria que eu fizesse
direito. Todo mundo falou: “ah, estudou em escola particular... vai fazer Letras?”
(ADÉLIA, ESTUDANTE DO SÉTIMO SEMESTRE/ ENTREVISTA).

Ao relembrar o momento de “escolha” do Curso de Letras, o discurso de Adélia é


atravessado por múltiplas vozes - a voz da mãe, da tia, do pai e outros membros da família-
fazendo emergir sentidos sobre a docência. Dessa forma, o que se entrevê são
representações da docência (sobretudo na educação básica) como uma profissão
desvalorizada e o professor como um profissional “que se acaba, que ganha pouco”
(ADÉLIA), e que, portanto, está desprovido de reconhecimento social e de condições
econômicas dignas. No entanto, ela recebeu apoio da tia que a incentivou a investir na
licenciatura: “faça, é bom” (ADÉLIA).
Observa-se, assim, que o sujeito constrói diferentes representações. De um lado a
docência na educação básica aparece como o lugar do inferno (ADÉLIA), o que remete à dor,
ao sofrimento, ao mal estar. Por outro lado, a docência, no ensino superior, aparece como
‘outro mundo’(o paraíso?) talvez menos sofrido, doloroso.
Ainda tratando da questão da escolha do curso, Adélia destaca outros dilemas:

Eu não sabia para que fazer. Eu tinha uma professora de Língua Portuguesa que eu
sempre gostei muito dela, sempre me identifiquei muito com ela. Ai eu peguei e
falei: “eu vou fazer pra Letras”. Mas eu não fiz na intenção de passar não. Eu fiz por
fazer mesmo, porque tinha que fazer, porque todo mundo estava fazendo, e eu
passei. Ai eu falei: “já que eu passei, eu vou cursar” (ADÉLIA, ESTUDANTE DO
SÉTIMO SEMESTRE/ ENTREVISTA).

Observa-se que a decisão da estudante em prestar o Vestibular para o curso de


Letras foi influenciada pela identificação com uma professora de Língua Portuguesa. No
entanto, essa decisão parece soar mais como uma obrigação em fazer um curso superior, do
que, necessariamente, uma escolha, uma opção pela licenciatura, uma vez que ela fez “por
fazer mesmo, porque tinha que fazer, porque todo mundo estava fazendo”. Desse modo, o
fato de passar no Vestibular não se constituiu como uma celebração, pois a expressão já que
eu passei, eu vou cursar sugere certa insatisfação, ao tempo em que aponta para uma
suposta aceitação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1177


Esses sentimentos parecem persistir, pois a estudante demonstrou nesse momento
que se aproxima da conclusão do Curso sentimento de insatisfação-aceitação: “já que eu
estou aqui, agora eu penso em fazer um mestrado” (ADÉLIA). O discurso da estudante
parece apontar para a seguinte ideia: como não há um caminho de volta, a perspectiva é
prosseguir a caminhada fazendo carreira acadêmica.
Ao referir-se novamente à influência da professora da oitava série para sua “escolha”
pelo curso de Letras, Adélia ressalta que
Ela começou sendo professora na oitava série. As aulas dela eram totalmente
diferentes, assim, porque as minhas professoras da quinta e da sétima de Língua
Portuguesa, todas eram muito tradicionais, porque já eram professoras velhas
mesmo. Todas eram muito tradicionais [...] Aí quando chegou na oitava eu conheci
essa professora (diz o nome): ela é fantástica, as aulas dela eram assim bem
diferentes. Ela envolvia a interpretação de texto, junto com a gramática. E o jeito
dela de se portar na sala, assim, acho que foi o que mais me chamou atenção. Ela
era uma excelente professora e sabia muito se portar em sala. É tanto que eu falei
com ela: eu sou sua fã. Eu acho que foi por causa disso (ADÉLIA, ESTUDANTE DO
SÉTIMO SEMESTRE/ ENTREVISTA).

Vê-se, nesse recorte discursivo, que a estudante se identificou com a professora


devido às aulas delas que eram “totalmente diferentes, bem diferentes” das aulas das outras
professoras que “eram muito tradicionais”. Notemos nessa que a “justificativa” pela escolha
do curso ancora-se em um modelo que permanece na memória discursiva da estudante,
agindo como um ideal da profissão. É na lembrança de um passado, de um já vivido em cujas
representações há imagens de uma professora marcante (WITZEL, 2003, 407), que a
estudante rememora, no sentido de justificar e significar sua “escolha” pelo curso.
Nas narrativas de Adélia podemos perceber que ela “optou” pelo curso de Letras pela
identificação com a área de Língua Portuguesa, sendo que sua intenção era fazer um curso
superior e não, especificamente, uma licenciatura para tornar-se professora.

E assim, meu interesse foi pela Língua Portuguesa mesmo. Na verdade, assim, não
é bem que eu escolhi Letras. É que eu não tinha o que escolher. Eu não sabia o que
é que eu queria ser [...] Não que eu quisesse ser professora. E também assim, uns
amigos meus sempre me diziam que eu nasci pra ser professora. Mas eu não sei. Ai
eu falei, vou fazer para ver... aí eu passei [...] Eu tinha paciência para explicar, a
questão do porte em sala, tom da voz, eles falavam por essas coisas. Mas eu não
sei (ADÉLIA, SÉTIMO SEMESTRE, ENTREVISTA).

O relato de Adélia deixa explícito que a “escolha” pelo curso de Letras não foi uma
opção. Se considerarmos que o verbo optar implica em uma decisão por uma coisa (entre
duas ou mais), uma preferência, uma escolha, e a própria fala da estudante: “Não é bem que
eu escolhi Letras. É que eu não tinha o que escolher”, podemos afirmar, portanto, que
“opção” pelo curso foi uma “pseudo-escolha” sugerida e imposta pelo contexto (PERES,
2007).
Importante destacar, ainda, que sua “opção” por uma licenciatura não foi motivada
pelo interesse em exercer a docência, pois segundo ela, optou não porque quisesse ser
professora, na verdade, ela nem sabia o que queria ser, revelando indecisão.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1178
Sua “escolha” foi, de algum modo, influenciada por amigos que diziam que ela tinha
nascido para ser professora. Como podemos ver a seguir, ao inserir no interdiscurso as vozes
dos amigos: “E também assim, uns amigos meus sempre me diziam que eu nasci pra ser
professora. Mas eu não sei. Eu tinha paciência pra explicar, a questão do porte em sala, tom
da voz, eles falavam por essas coisas. Mas eu não sei”, a estudante parece querer negar,
questionar a “vocação” para a docência que lhe era atribuída. O uso da expressão “mas eu
não sei” sugere uma espécie de indecisão, de resistência em identificar-se com o argumento
dos seus amigos. Desse modo, sua indecisão, não aceitação se sobressai em relação à voz
dos amigos, porque o operador “mas” introduz sempre o argumento mais forte em um
enunciado (DUCROT, apud Peres, 2007).
Assim, ao retomar o percurso do porquê de Adélia ter “escolhido” o curso de
Licenciatura em Letras, vemos que sua “escolha” se deu num jogo de embates de diferentes
contextos e da imbricação de vozes provinientes de vários lugares:

• do contexto escolar – “Na verdade, o colégio assim, sempre preparou a gente


para passar no vestibular [...] Aí chegou, teve o vestibular, eu tinha que fazer”
- que parece impor a necessidade de entrar em um curso superior;

• do contexto relacional – “Quando eu falei pra todo mundo que eu iria fazer
Letras ninguém quis. Preconceito, né?” – que sugere um desprestígio social e
desvalorização do curso e da profissão docente;

• do contexto social – “Eu fiz por fazer mesmo, porque tinha que fazer, todo
mundo tava fazendo” - que parece impor uma obrigação em fazer o
vestibular;

• da família – “Meus pais não queriam que eu fizesse, na família todo mundo
ficou contra, só não uma tia minha, que é professora também” – que se
colocou contra a “decisão”, a exceção da tia;

• dos amigos – “ Uns amigos meus sempre me diziam que eu nasci para ser
professora” – que a incentivava a prestar o vestibular para área, justificando a
“vocação” para a docência que ela era atribuída.

De acordo com Coracini (2007), nesse constituir-se professor (a) vozes se


entrecruzam, revelando ambivalência. Nessas sequências discursivas, efeitos de sentido
parecem mostrar que a “escolha” da profissão docente foi determinada pelas circunstâncias,
pelas oportunidades e, principalmente, pela influência escolar, familiar e social, já que a
estudante se “decidiu” pelo curso de Licenciatura em Letras (WITZEL, 2003), considerando o
contexto em que estava inserida.
É nesse cenário, também, que Adélia revela seu conflito em querer e não querer ser
professora:

Eu acho assim, apesar de tudo, realmente, eu amo muito dar aula, eu gosto muito,
eu acho muito gratificante, eu acho que serviu para isso: esse meu lado pessoal de,
de, de... achar muito gratificante, mas não que seja uma coisa que, uma profissão

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1179


assim, que eu queira só ser professora, não; mas acho que é mais uma lado
pessoal, um lado de prazer mesmo. Mas não só isso, eu não queria ser só isso,
porque se eu fizesse só isso, se eu fosse ser professora, ia deixar de ser, ia deixar de
ser prazer (ADÉLIA, SÉTIMO SEMESTRE, ENTREVISTA).

O uso do conectivo adversativo ‘mas’ é bastante recorrente na fala do sujeito,


demarcando os embates e expressando, contraditoriamente, a permanência e o possível
abandono como dimensões que se articulam na constituição de sua(s) identidade(s)
docente(s).
Como poderemos observar nos recortes discursivos a seguir, o fato da docência se
constituir como possibilidade de mudar alguém, de provocar mudanças, de ajudar o outro,
cria, assim, uma posição de identificação com a profissão, ao tempo em que revela o
encanto com a ‘missão’(LEMOS, 2009):

Eu amo dar aula. Eu gosto muito, muito, até agora, né... Eu gosto muito, muito
mesmo, eu acho muito gratificante [...] Eu gosto muito de dar aula, eu acho muito
gratificante, eu acho uma profissão muito bonita. A gente forma tudo, né? A gente
forma médico, a gente forma advogado, a gente forma tudo, e não é valorizado,
infelizmente. Mas a docência, a docência é muito bonita, muito bonita mesmo. Oh,
assim, eu acho muito gratificante você tá em sala de aula, você está ensinando e
aquele aluno está lá aprendendo, e às vezes, assim, alguns lhe olham que os olhos
chegam a brilhar; ah é muito gratificante, é muito bom. É muito bom você saber
que você está ajudando a formar o cidadão, porque você ali não está ajudando a
sair dali um médico, um advogado, você está ajudando a formar pessoas
pensantes, a formar pessoas que pensam (ADÉLIA, SÉTIMO SEMESTRE,
ENTREVISTA).

Por outro lado, a fala de Adélia demarca a docência como uma profissão cansativa,
desgastante, gerando insatisfação, devido às condições de trabalho.

Quando eu comecei a dar aula mesmo, a primeira vez que eu estagiei, aí eu até
comentei com minhas colegas: gente, vocês não tem noção como dói a garganta.
Aqui eu estou conversando com você, minha garganta não está doendo, eu não
estou sentindo sede, nada, mas você dando aula, é outra coisa [...] Você só vai
saber o que é ser professor, quando você entrar em sala de aula, quando você
matar um leão por dia, porque dar aula é matar um leão por dia. Você entra na sala
de aula você não sabe o que vai acontecer com você (ADÉLIA, ESTUDANTE DO
SÉTIMO SEMESTRE/ENTREVISTA).

Eu penso em tentar fazer um mestrado. Se eu não conseguir aí... Não sei se eu faço,
porque eu não sei se eu faço outro curso ou se eu estudo para concurso, eu não
sei. Mas primeiro eu vou tentar mestrado. Se eu conseguir passar no mestrado eu
sigo minha carreira acadêmica, se eu não conseguir eu não sei, porque eu não
quero só terminar minha graduação e ficar sendo professora só de escola, assim
não, porque aí eu ficaria frustrada. Eu não quero ficar só em escola não, porque
paga pouco demais eu ficaria frustrada. Eu quero ensinar em universidade,
cursinhos. Eu quero fazer Mestrado em Educação (ADÉLIA,ESTUDANTE DO SÉTIMO
SEMESTRE/ENTREVISTA)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1180


Retomando questões tratadas anteriormente sobre Adélia, é importante salientar
que, tomando como referência a experiência e a voz de sua mãe, com 25 anos de docência,
ela constrói a imagem de docência na Educação Básica como o lugar do inferno, e, de outro
lado, tomando como referência a experiência e a voz da tia (professora do ensino superior),
ela faz emergir, em seu discurso, a docência no ensino superior como outro lugar, outro
mundo: seria o lugar do paraíso? Daí seu desejo de fazer um curso de Pós-Graduação,
ratificado pela voz incentivadora da tia. Em consequência, aparece seu desejo de não ser só
professora da Escola Básica, porque a remuneração é baixa, e de ser, entretanto, professora
universitária, de estar em outro lugar, “outro mundo”, para além da frustração de ser apenas
professora na Educação Básica, conforme seus depoimentos.
Adélia destaca a importância da formação para a construção de outros aprendizados
sobre o ensino da gramática, da Língua Portuguesa, enfatizando a questão da
contextualização:

Agora com o professor X foi que eu aprendi que tenho que contextualizar. Ave, eu
amo as aulas dele. Acho que toda aula dele é um aprendizado mesmo: como você
deve fazer em sala de aula, como você deve aproximar seu aluno para sala de aula,
como você deve fazer seu aluno gostar de leitura, gostar da língua portuguesa
(ADÉLIA, ESTUDANTE DO SÉTIMO SEMESTRE/ENTREVISTA).

Nesse cenário, é recorrente a marca do ‘novo’, do diferente, em que os sujeitos


evidenciam a posição de professor inovador, anseiam por algo a mais, por outro modo de
fazer e de ser-professor, diferente daquilo de suas experiências, dando valor à voz do saber
teórico, à voz da formação mais recente (ECKERT-HOFF, 2008). Assim, os dizeres das
estudantes parecem sugerir uma tentativa “em demarcar uma fronteira, ‘deixar de fora’ as
outras vozes para aflorar apenas a voz da formação” (ECKERT-HOFF, 2008, p. 82).
Nesse sentido, observemos o discurso da estudante Adélia:

O que a gente trabalha em sala de aula com o aluno é a gramática mesmo,


querendo ou não é a gramática. Mesmo que a gente faça uma aula envolvendo
texto e tudo, mas é a gramática que a gente vai trabalhar, né? Não tem jeito
(ADÉLIA, SÉTIMO SEMESTRE/ENTREVISTA).

O discurso da estudante constrói uma representação do professor de Língua


Portuguesa associada à gramática, a uma concepção “tradicional” que reduz o ensino da
língua - ao ensino da gramática (BAGNO, 2003), pois, segundo ela, “o que se trabalha em
sala de aula com o aluno é a gramática mesmo, querendo ou não é a gramática”. A
gramática aparece como centro do processo de ensino-aprendizagem. O uso do texto se
daria como pretexto para ensinar a gramática, pois, em sua perspectiva, ainda que se faça
uma aula envolvendo texto, é a gramática que o professor vai traballhar.
Interessante observar algumas expressões que aparecem no excerto em análise, a
exemplo de “é a gramática mesmo” e “não tem jeito”. A nosso ver, essas expressões
sugerem a centralidade da gramática no ensino de Língua Portuguesa e a impossibilidade de
desenvolver uma prática fora disso. Desse modo, a estudante se constrói, discursivamente,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1181


como professora de gramática, tida como a única possibilidade de trabalho e de abordagem
do campo de Letras (RAIMO; PERON, 2010).
Se retormarmos o percurso de escolarização da estudante, poderemos perceber que
sua experiência com a Língua Portuguesa foi, exclusivamente, pautada no ensino e na
aprendizagem da gramática. Seu discurso parece fazer emergir a voz da experiência,
constituindo representações sobre ensino de Língua Portuguesa que perpassam pelo
contexto escolar, pela memória discursiva e por representações que circulam socialmente:
língua reduzida à gramática normativa.
Em nosso entender, o discurso da estudante aponta para uma ruptura no ensino da
gramática, devido a necessidade de contextualizar seu ensino; mas não no ensino da Língua
Portuguesa posto que a perspectiva de trabalho encontra-se centrada na gramática. No
entanto, emergem, no discurso de Adélia, outras representações de ensino de Língua
Portuguesa para além da gramática normativa:

O professor tem o papel de tentar formar bons leitores, tentar fazer eles
entenderem que existe uma norma padrão, que existe uma gramática padrão, a
tradicional, mas que também, existe, vamos dizer assim, uma popular. Tentar
passar para eles que essa língua padrão deve ser usada, em momentos
adequados, em certos momentos (ADÉLIA, SÉTIMO SEMESTRE/ENTREVISTA).

A partir do recorte discursivo, vê-se que a estudante evidencia deslocamentos,


fazendo emergir a voz da formação. Assim, enfatiza a importância da leitura nas aulas de
Língua Portuguesa, bem como a noção de variação e adequação, trabalhando como os
estudantes outras possibilidades de uso da língua, as quais devem estar adequadas aos
contextos linguísticos (BRASIL, 1998).

O “findar” da travessia...

A partir das reflexões, consideramos necessário pensar a formação docente como


espaço de problematização das diferentes representações dos estudantes de Letras sobre o
que é ser professor de Língua Portuguesa, em que os sentidos possam ser tensionados,
negociados e reconstruídos pelas diferentes sujeitos. Sendo assim, os estudantes podem
reconstruir suas próprias identidades, confrontando representações que fazem parte de
suas trajetórias de vida, escolarização e formação, questionando-as, discutindo-as e
repensando-as, em diálogo com o outro e com os saberes que vão sendo apropriados ao
longo da formação.
Nesse mesmo sentido, a formação docente deve constituir-se em espaços nos quais
os estudantes possam se dizer, possam pensar sobre suas trajetórias formativas,
possibilitando uma reinvenção de si (JOSSO, 2002). Ressaltamos que a escritura de si
favorece o pensamento heurístico e autopoiético, criando um lugar para que os
educadores/as possam assumir a palavra e socializar as suas tensões, as suas inquietações,
as suas experiências e as suas memórias – constituindo narrativas sobre si, sobre o processo

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1182


de formação e a prática profissional, legitimando, assim, os saberes experienciais (TARDIF,
2012).
A partir dos relatos, pode-se inferir que o sujeito-professor se constitui a partir de
diferentes experiências e vozes que vão tecendo sua subjetividade. Assim, tomado por
identificações que longe de o fixar, estabilizando suas características, o transforma em um
sujeito processo, em constante trans-formação (ECKERT-HOFF, 2008), fazendo entrever,
portanto, identidades docentes em travessia, que, em nossa metáfora, vão do leme ao
pontal.

Referências
BAGNO, Marcos. A norma oculta: lingua & poder na sociedade brasileira. São Paulo:
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BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Histórias de vida e formação de professores/as: um olhar
dirigido à literatura educacional. In: SOUZA; MIGNOT (orgs.). Histórias de vida e formação
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quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF,1998.
BRITO, Cristiane Carvalho de Paula. Vozes em embate no discurso do sujeito-professor-de-
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Maria José. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade: línguas (materna e
estrangeira), plurilinguismo e tradução. Campinas. SP: Mercado de Letras, 2007.
CUNHA, Maria Isabel da. Pedagogia Universitária: energias emancipatórias em tempos
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
JOSSO, Marie Christine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez , 2002.
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trabalho docente e a construção da identidade profissional. Tese de doutorado.
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NÓVOA, António. Vida de professores. Porto: Porto Editora, 1992.
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PASSEGI, Maria da Conceição. Memoriais de formação: o processo de autoria e construção
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1184


Recordar é preciso: memória e histórias de idosos no sertão da Bahia

Miriam Barreto de Almeida Passos


UNEB
mirapassos@hotmail.com

O artigo enseja expor o projeto de extensão RECORDAR É PRECISO. O projeto objetiva construir um banco de
dados das narrativas e escrita de si a partir das memórias e histórias de sujeitos com idades entre 60 a 90 anos,
residentes na cidade de Euclides da Cunha, no Sertão da Bahia, a partir das linguagens cinematográficas no que
tange ao uso de películas. Os fundamentos teóricos empregados nesse estudo versará sobre narrativas
autobiográficas, escrita de si e identidade. Nesse sentido, elementos como resgate das memórias, histórias e
linguagens colocam-se no esteio dessa investigação. As questões que se apresentam são, portanto: até que
ponto as películas e suas linguagens auxiliam na apreensão das memórias dos sujeitos investigados,
pertencentes à comunidade em estudo? Que estratégias usam para contar as histórias trazidas na memória? A
pesqusia que se coloca é a qualitativa. Os pressupostos teóricos utilizados discutem sobre a temática em
questão e, dentre eles, destacam-se: Foucault (1992), Vera Maria Brandão (2008), Bakhtin (1997), Le Goff
(1994), Abrantes (1995), Barreiros (2013), Brito (2009), Bosi (1987), Hall (2006), Vanoye (1998), Moreira (2012),
entre outros. Acredita-se que estudos dessa ordem poderão ser somados aos já desenvolvidos nessa área do
conhecimento.
Palavras- chave: Linguagens; Cinema; Autobiografia; Histórias; Memórias.

Movimento introdutório

O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo


narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os
traços da experiência temporal.
Paul Ricoeuer (1994)

O presente projeto de extensão se insere no campo dos saberes individuais, da


história e memória de sujeitos residentes em Euclides da Cunha no Sertão Baiano, cujas
noções teóricas se colocam a partir do resgate das diferentes linguagens cinematográficas,
seduzindo o sujeito para contação das memórias infantis, juvenis, adulta e na maturidade,
demonstrando através das narrativas orais como estes idosos se concebem na comunidade,
como apreendem através das peliculas as memórias em diversas fases da vida, pois acredita-
se como Paul Ricoeurer (1994), em epigrafe, que o tempo e as narrtivas são significativas
quando marcam e revela-se através da “memória temporal”.
Neste sentido, a linguagem cinematografica tem papel importante neste resgate de
memórias. Pois as imagnes tanto do passado como do presente se mostram através da
expressão do pensamento. E, esta amostragem apresenta-se através das narrativas que do
ponto de vista de Barreiros (2013, p. 28):

A representação do passado somente se efetiva através da linguagem, da


elaboração de uma narrativa que se associa à ideia de reconstituição e de
explicação do vivido. Apenas desse modo, uma experiência concreta pode ser
transmitida e apreendida pelo outro, ou seja, são as narrativas, enquanto discursos
construídos, que permitem ao sujeito comunicar suas impressões do passado.

Neste sentido, resgatar as memórias a partir das películas permitirá descortinar as


imagens internas vividas no passado/presente e registrá-las. Deste modo, “escrever é, pois
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1185
“mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro” (FOUCAULT, 1992,
p. 8).
Igualmente, estudar as recordações significa observar pistas de contextualização, das
intenções dos sujeitos, e das estratégias que direcionam os usos que estes fazem dos seus
saberes, pragmáticos e universais.
Além disso,

Quando um indivíduo se propõe a escrever suas memórias, um diário íntimo, uma


autobiografia ou decide colecionar fotografias, guardar papéis, rascunhos, recortes
de jornais, cartas etc., ele está deliberadamente compondo uma imagem de si que
pretende conservar para a posteridade (BARREIROS, 2013, p. 34).

Em adição, pode-se estabelecer uma interação com a noção de cultura identidade


propostas por Hall (2005), visto que somos sujeitos situados na sociedade e na história.
Portanto, esse projeto se justifica por buscar trabalhar a memória e aprofundar estudos das
linguagens usadas por sujeitos residentes na cidade de Euclides da Cunha, no Sertão Baiano,
destacando as especificidades de uma cultura e marcas de um saber local, em consonância
com a missão institucional da UNEB, especialmente no que confere o atendimento “à
demanda social e de desenvolvimento econômico das diversas regiões em que atua”.
Assim, acredita-se que os saberes individuais e coletivos são preservados a partir do
registro coletados através da memória individual e coletiva. São essas histórias passadas de
geração a geração que oportunizam aos sujeitos preservar, disseminar, alargar os horizontes
dos saberes individuais e de uma cultura.

Caminhios a pecorrer

Ao partir do ponto de vista de que os intensos debates em torno das linguagens que
levam às questões fundamentais sobre a dimensão da linguagem, as histórias individuais dos
sujeitos e seu resgate de memórias surgem como respostas à diversidade e se expressam
nos ambientes de uma cultura local passada de geração a geração.
Entretanto, o estudo da linguagem, da história das memórias desenvolvidas por
pessoas de determinados grupos em seus diferentes contextos, sejam eles escolares ou
cotidianos, fundamentada em uma concepção de saberes diferente acaba por não afastar a
concepção excludente construída social e historicamente pelas elites, sendo esta última a
que se baseia na exclusão de elementos como memórias e multiculturalismo.
Deste modo, as questões que se apresentam para esta pesquisa são: até que ponto
as películas e suas linguagens auxiliam na apreensão das memórias dos sujeitos investigados,
pertencentes à comunidade em estudo? Quais as histórias dos sujeitos da pesquisa, no que
tange à “ausência de formação acadêmica” e, como os saberes desses sujeitos contribuem
(íram) para a difusão da linguagem e na preservação de sua cultura? Que estratégias usam
para contar as histórias trazidas na memória? Quais as origens das histórias contadas pelos
sujeitos com idades entre 60 e 90 anos? Como são e quem são esses personagens das
histórias contados por esses idosos? Como essas histórias podem contribuir com a cultura
local, regional e quiçá fora dos muros da região?

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1186


Intenções: do início das ações ao possível término

...toda comunidade carrega dentro de si uma história multifacetada de trabalho,


vida familiar e relações sociais à espera de alguém que a traga para fora. Paul
Thompson (2002, p. 217)

As histórias, mesmo a mais pueril, têm sua importância para o individual, o grupal, o
social, pois revelam indícios de tristeza ou alegrias, de amor ou ódio, de drama ou comédia,
de fatos marcantes para um, dois ou muitos. Em acréscimo, os espaços as quais estas
histórias e suas relações múltiplas com o meio social, familiar, religioso ou de outra ordem,
são de extrema importância, a partir do momento em que as mesmas se desvelam, abrindo
as cortinas das memórias e sendo evidenciadas através da oralidade ou escrita.
Neste sentido, as primeiras ações extensionistas concentram-se na verificação e
resgate das memórias dos participantes do projeto em questão com idades entre 60 a 90
anos, residentes na cidade de Euclides da Cunha, no Sertão Baiano a partir das linguagens no
que tange ao seu uso na contação de histórias após assistirem a películas.
Para tanto, buscar-se-á inicialmente apresentar o projeto à coordenadora da UATI, com
sede na cidade de Euclides da Cunha, além do grupo de senhores e senhoras, participantes
da Universidade Aberta à Terceira Idade, para que possam autorizar as ações e coleta das
histórias e memórias das narrativas dos sujeitos.
Neste sentido, o projeto contará com um termo de consentimento livre esclarecido,
assinado pelos participantes do grupo envolvidos nas ações. Este documento será
esclarecedor, no que tange as gravações e registros orais dos sujeitos entrevistados,
permitindo que após observarem as películas e, do recolhimento das histórias orais a partir
das impressões, sensações, desejos, emoções, cultura, imagens e representações da
comunidade investigada, possam ser estudadas posteriormente a partir do banco de dados.
Junto a isto, vale ressaltar que o projeto conta com cinco monitores selecionados
através de analise do currículo, entrevista e carta de intenção, tendo como função colaborar
com a aplicabilidade das ações. De modo semelhante, no que se refere aos conhecimentos e
embasamento dos monitores e coordenação do projeto serão utilizados aportes teóricos
para fundamentar teoricamente as histórias e memórias das narrativas de sujeitos com
idade entre 60 a 90 anos, residentes em comunidades euclidenses e circunvizinhas,
possibilitando desenvolver estudos das linguagens e cultura dos idosos para erguer a auto-
estima e fazer circular as histórias originais, contadas pelos envolvidos.
É importante destacar que a extensão decorre do trabalho com narrativas orais com
idosos e tem como intento, também, o processo formativo em seu sentido e trajetória, pois
acredita-se que o aprendizado em vida é constante e possui ciclos ininterruptos e diversos.
Assim sendo, o projeto não tem propósitos de produzir terapias grupais, mas, sim, de
aproximar as imagens mentais, as representações, as sensações, permitindo conhecer a si
mesmo um pouco mais, analisando e despertando os desejos e o conhecimento que existe
em si, aprendendo e ensinando através das narrativas.
De modo semelhante, a investigação adentra na pesquisa como lembranças de si,
aproximando das sensações dos idosos pesquisados, do que sabiam ou sabem, do que fazia
ou fazem, do que disseram, disse ou pode dizer. Então, ao transcrever as narrativas os

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1187


sujeitos encontram-se e descobrem-se como conhecedores e como produtores de
conhecimento.
Como resultados das ações empreendidas serão divulgados por meio de suporte
impresso (encartes) as histórias e causos coletados ao longo do trabalho, sendo por fim,
publicado os resultados para uso da comunidade.

Fundamentação teórica

Acredita-se que as camadas populares, têm para suas vidas, três direitos: conhecer
melhor o que já conhece; conhecer o que foi apropriado por outras gerações; produzir o seu
próprio conhecimento.
Assim, objetiva-se com essa extensão, estudar e pesquisar as histórias e memórias, as
narrativas dos sujeitos com idade entre 60 a 90 anos, residentes em comunidades
euclidenses no sertão baiano, além de desenvolver um banco de dados e estudos teóricos
sobre o acervo, desvendando extraordinárias informações.
Neste sentido, afirma Barreiros (2013, p. 34):

O volume de documentos acumulados ao longo da vida não corresponde à


memória viva, tal qual a realidade, mas à memória selecionada, manipulada em
função de interesses específicos. Isso não tira os méritos da documentação como
importante objeto de estudo, muito pelo contrário, essa memória documental não
perde o seu status de fonte. Esses documentos são o resultado de uma triagem
feita por um indivíduo mediante algum critério que varia ao longo do tempo.
Portanto, o estudo sistemático dessas fontes pode revelar importantes dados
históricos.

Em acréscimo, os estudos bakhtiniano servirão de base para a compreensão dos


discursos dos sujeitos pesquisados, visto que em cada texto, em cada história, está o sistema
da linguagem individual e esse sistema obedece no texto tudo o que é repetido e
reproduzido. Cada texto é único e singular, e nisso reside o seu sentido, sua verdade, sua
beleza e sua história.
Para Le Goff (2003).

A história está sempre no centro das controvérsias. De que assunto deve tratar?
Os acontecimentos apenas, ou também os desígnios da providência, os progressos
da humanidade, os fenômenos [...] estas questões, que incidem sobre os objetos
da história, remetem-nos a outras, que incidem sobre o seu estatuto e os seus
métodos [...], (p.17).

Igualmente, a importância da memória é estudada e ressaltada pelo referido autor,


destacando que:

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em


primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas (LE GOFF, 2003, p. 419).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1188


Neste sentido, a memória é um trabalho do tempo. Como afirma Bosi (1993, p. 281) “a
memória é sim um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela
cultura e pelo indivíduo”.
Além do trabalho sobre da memória no tempo vivido, a subjetividade está presente na
fonte oral e permite seu deslocamento para a veracidade dos fatos que estão escondidos,
adormecidos ou disfarçados, como afirma Paul Thompson (2002, p. 197):

Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte
oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar
fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta.

Do ponto de vista de Brito (2009, p. 21) “Nos modos de ler, escutar e apresentar
declaração performática de benditos percebemos a interposição de tradições de oralidade e
religiosidade populares [...]”. Do mesmo modo, resgatar as memórias de sujeitos com idades
entre 60 a 90 anos possibilita-nos “modos de ler, escutar e apresentar declarações das
tradições de oralidade” desses idosos.
Além disso, ao trabalhar as questões da linguagem, as histórias e memórias, levanta-se
a identidade cultural de um grupo social e nessa perspectiva, Hall (2006) trata do
descentramento do sujeito, em que as identidades modernas estão sendo fragmentadas nas
ditas concepções do sujeito moderno. O autor reforça a ideia de que essa desagregação
deve-se ao deslocamento desses sujeitos, através de rupturas nos discursos do
conhecimento moderno. Sobre isso, Hall (2006) acrescenta que

[...] no mundo, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das


principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos
que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer
isso estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão
literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos
nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial (p. 47).

Portanto, acredita-se, assim como Nóvoa (2010), que em o garimpador de histórias,


essa pesquisa com histórias e memórias se constituirá como uma das ferramentas de
identificação de como se constróem os saberes teóricos e individuais da comunidade em
estudo.
Logo, como defendem Moreira e Candau (2011, p. 132).

se a tarefa de mirar, de se aproximar e a captar a realidade vivida é


central nesse projeto, ainda fica a tarefa que dá sentido aos projetos
de trabalhos: captar em coletivo a pluralidade de significados, de
matizes dessas experiências.

Por fim, visa-se com o desenvolvimento do projeto de extensão, atrelá-lo a


posteriores atividades na área de investigação das linguagens, história e memória, escrita de
si e formação, na UNEB de Euclides da Cunha, oportunizando aos envolvidos tecer saberes e
compartilhá-los, abrindo espaço para o trabalho de contação das histórias capturadas ao
longo da realização do trabalho, oportunizando ao contador e participantes tornar-se sujeito
da sua própria história.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1189
Metodologia proposta

A metodologia versará sobre estudo bibliográfico, teorias da memória, (Auto)


biografia, a teoria da linguagem, investigando as idiossincrasias empregadas nas narrativas e
coletar as narrativas orais relevantes para os sujeitos a partir do uso de películas.
As análises serão desenvolvidas qualitativamente, usando como instrumento a escuta,
o diálogo com idosos a partir do uso de filmes para que os mesmos possam a partir das
películas revelarem as memórias da infância, juventude e maturidade.
Igualmente, os princípios norteadores das ações colocam-se no campo das pesquisas
qualitativas. Para tanto, a escolha teórica e metodológica nos permitirá documentar o que
ocorre com um grupo social específico, oportunizando registrar o que, de fato, acontece no
campo de investigação, contando para isso, com as seguintes fases: Leitura, fichamento e
sistematização do referencial teórico a ser utilizado, com o intuito de desenvolver noções
conceituais relevantes ao projeto. Entrega do termo de consentimento livre esclarecido para
os sujeitos participantes da pesquisa, esclarecendo objetivo do trabalho. Exibição de filmes:
Cartas a Julieta, Diário de uma paixão, cantando na chuva, o amor é cego, entre outros para
resgate das histórias individuais e lembranças diversas.
Vale salientar que a escolha dos filmes de amor, e comédia deu-se por acreditar
serem estes salutares para o resgate de memórias.
Além disso, serão realizados levantamento e registro sistematizado das gravações,
entrevistas e (auto) biografias e análise e seleção das histórias a partir do banco de dados.
Destaca-se que, as ações extensionistas será submetida a apreciação da
coordenação da UATI e dos idosos envolvidos na UNIVERSIDADE ABERTA A TERCEIRA IDADE,
esclarecendo a todos sobre o desenvolvimento do trabalho, tornando claro: Solicitação do
termo de consentimento livre e esclarecido a ser fornecido em duas vias, o qual será obtido
por meio da solicitação e esclarecimentos prévios do que trata o projeto, descrição sucinta
dos procedimentos empregados e benefícios decorrentes da pesquisa.
Diante da aceitação, uma das vias do termo ficará com a coordenação do projeto e a
outra com o participante, a fim de que o partícipe possua os dados completos da
responsável pela coleta das informações. Nesse caso, facilitará a identificação e localização.
Será explicado também, que essas ações serão desenvolvidas utilizando-se de
observações, gravações, filmagens, aplicação de e que, na divulgação das informações, a
identidade do participante será mantida em sigilo, resguardando as características éticas do
Projeto. Salvo, se os idosos desejarem a referida divulgação, como é o caso dos direitos
autorais de trabalhos já publicados e/ou divulgados e/ou em caso de possível publicação.
Outro aspecto importante é o esclarecimento aos sujeitos da pesquisa: Realização de
entrevistas abertas por temas referentes, memória, das sensações e lembranças provocadas
pela película.

Um fim que não tem fim

A pesquisa e as ações capturadas historicamente são fenômenos sociais que se


materializam no pensar e na ação do projeto enunciativo do sujeito. Do ponto de vista
bakhtiniano e do seu círculo a linguagem é capaz de criar e recriar, ao mesmo tempo, o
mundo histórico. Por essa razão, a mobilidade se dá na noção de tempo, pois remonta à
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1190
memória do passado e futuro, o que promove um constante dialogismo com o presente que
circunda o homem.
Pensar RECORDAR É PRECISO é compreender histórias não acabadas, necessariamente
inconclusas. É, antes de tudo, refletir que a não estagnação pressupõe inacabamento e
inscreve sujeitos ativos no processo de acontecimento da vida. Dessa maneira, somos
herdeiros e, por isso, filhos da produção, das ações, das ideologias, das práticas culturais,
dos valores e experiências adquiridas.
Portanto, no movimento de interação entre os idosos nascem novos acontecimentos e
a vida se re/des/faz (refaz/ desfaz/ faz). Nessa incursão, a linguagem oral ou cinematográfica
é vinculada na sua inteireza, sendo a transmissora de valores que se desejam perpetuar.
Mas, um fim que não tem fim apresenta-se aqui como ponto para outro recomeço, surgindo
novo questionamento: Na modernidade o que é mesmo que se deseja perpetuar através do
projeto RECORDAR É PRECISO?

Referências
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1191


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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1192


Autobiografia de estudante de origem popular: um estudo de caso na UFRB

Natanael Conceição Rocha


UFRB
natanaelcrocha@yahoo.com.br

O presente trabalho analisar a trajetória dos estudantes de origem popular na Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, focando nas considerações dos estudantes bolsistas do Programa de Educação Tutorial –
PET Conexões de Saberes da UFRB, e em seus relatos autobiográficos. Ponderar as trajetórias desses
estudantes é compreender as conjunturas que os mesmos estão inseridos. Os estudantes expõem, a partir dos
relatos de experiências, as suas relações, avaliando, desta forma, que o estudante não chega à Instituição de
Educação solitário, e que faz parte de um encadeamento de relações, seja: familiar, religiosa etc., que de
diversas maneiras e formas ensinam, e aprendem, o constituindo – o individuo estudante - no infindo processo
formativo. As histórias dos bolsistas debruçadas nas dificuldades da permanência na Universidade possibilita
compreender como se deu o processo do seu acesso, e de todos aqueles envolvidos nesta ação, as inter-
relações sociais associada no contexto dos laços de pertencimento. São perceptíveis as diversas barreiras
enfrentadas pelos estudantes no processo de permanência na Universidade, sejam pelas dificuldades
financeiras, pela herança educacional defasada etc., e na mudança de aspecto refletir na condição do
estudante como protagonista da sua história, proporciona um novo até então desconhecido, uma mudança de
paradigma na construção social e cultural desse individuo. Interface das realidades conjunturais, os autores dos
textos biográficos expõem os anseios, as novas expectativas, também propiciadas pelas políticas públicas de
permanência.
Palavras-chave: Acesso à universidade; Estudantes; Biografias.

Acesso ao ensino superior: trajetória de conhecimento

O acesso de estudantes na universidade, em especial os de origem popular - condição


na qual estou inserido como sujeito e objeto de estudo -, é caracterizado por diversas
questões ligadas à estrutura da universidade, e a qual se arranjam para o aluno/estudante, e
as implicações do contexto em que este sujeito está inserido, entendendo assim, que ao
adentrar no espaço universitário, não ‘chegamos sozinhos’, trazemos as teias das relações
vivenciadas, onde as práticas são guardadas e consideradas enquanto saberes populares,
desta forma, implica rever as práticas conteudistas que a universidade disponibiliza ao
estudante, e se as mesmas dialogam com os espaços de origem deste indivíduo, assim
entendendo, que a compreensão do estudante deve se dar pela subjetividade, pelas
particularidades que o formam.
O ensino superior, caracteriza-se para o estudante de origem popular, como um
avanço importante na vida, surge com isso novas perspectivas de vida, outrora negados
pelas injustas condições sociais. Sobre tal assunto, Coulon (2008) destaca que o problema
maior não está no acesso, mas na permanência do estudante na universidade. Na UFRB –
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, as políticas institucionais de permanência que
vem sendo desenvolvidas para os estudantes está sob a responsabilidade direta da Pró-
Reitoria de Politicas Afirmativas e Assuntos Estudantis – PROPAAE, em sua ação no Programa
de Permanência Qualificada – PPQ, que propõe políticas de democratização que ultrapassam
unicamente os auxílios financeiros.
As questões do acessar e permanecer estão relacionadas às condições de estar/fazer
parte da Universidade, adentrar espaços antes reservados à minoria da população. Tornar-se
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1193
afiliado à universidade é para Coulon (2008) um processo que perpassa três fases: o tempo
do estranhamento, alterações de hábitos e rompimentos com as estruturas em que os novos
estudantes estavam acostumados, o tempo de aprendizagem, em que continuamente vai
adaptando-se as novas estruturas, e por fim o da afiliação, no qual os estudantes já estão
afeiçoados com as regras da universidade, pela capacidade de interpreta-las. Tal proposta é
refletida nesse novo espaço de vivência - a universidade. A saída do ensino médio para a
universidade representa uma ruptura, mudança de costumes e de postura, um processo de
transição espacial, com ritmos diferentes e com novas experiências desafiadoras que se não
bem cuidadas, poderão acarretar outros tantos prejuízos na permanência. Tal processo de
transição dos espaços de formação, nas estruturas e dos novos saberes pode ser percebido
no relato da estudante Jéssica Bruno no momento do ingresso na UFRB, e a importância da
democratização do acesso ao ensino superior:

Mais uma jovem negra, de origem popular, estudante de escola pública ingressava
na universidade, no ensino superior. Estava confirmando a eficiência dos esforços
dos que lutaram para que isso fosse possível, dos que lutaram pela democratização
do acesso ao ensino superior. Estava correspondendo às expectativas da minha
família, principalmente da minha mãe, que sempre me incentivou de forma
positiva e constante, e que se esforçou para me proporcionar uma educação de
qualidade. Estava correspondendo às expectativas dos meus amigos, estudantes
assim como eu, com os quais compartilhava o sonho em comum do acesso à
universidade. Estava também correspondendo às minhas próprias expectativas, às
minhas metas. O ingresso na UFRB foi a minha maior conquista pessoal. (Bruno,
2013, apud NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.36.).

É preciso compreender a permanência dos estudantes na universidade de maneira


dialógica, sabendo que apenas garantir os recursos financeiros através de bolsas/auxílio, não
proporcionará a permanência acadêmica qualificada, proposta como forma de ampliação da
experiência universitária do estudante. Desta forma, a proposta de afiliação apresentada
por Coulon (2008), prevê que o estudante deve sentir-se integrante do novo espaço, a
universidade, não só do espaço físico, mas também do espaço intelectual, criativo. Os
saberes constituídos por muitos na universidade, não dialogam com a experiência vivida do
estudante fora do ambiente acadêmico e antes dele, isso favorece a evasão, sobretudo
quando nos referimos aos estudantes de origem popular, que dificilmente possuem
referencias familiares no que tange a educação superior, ou de sua convivência, no espaço
acadêmico, anteriores, gerando as dificuldades de permanência, como pode ser exemplifica
por relatos de uma integrante do PET Conexões:

Por conta da minha vontade de ampliação de aprendizado e conhecimento, decidi


inscrever-me no PET (Programa de Educação Tutorial) Conexões de Saberes: UFRB
e Recôncavo em Conexão, que é um projeto institucional e interdisciplinar de
formação de estudantes universitário de origem popular mediante ações
integradas de educação tutorial, pesquisa e extensão, do qual sou bolsista desde o
meu 2º semestre. Estou muito satisfeita com os nossos projetos, que pesquisam
currículo, formação, permanência, pós-permanência e êxito acadêmico dos
estudantes universitários. Os temas abordados me remetem ao início da minha
vida estudantil na universidade, já que foi um período difícil, porque foi complicado
habituar-se às provas, aos seminários e a toda a correria do ambiente acadêmico.
Com os projetos de pesquisa nos quais estou inserida, aprendi que o início de todos

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1194


na universidade é um momento de duras descobertas e de complicada adaptação.
Diversas vezes pensei em abandonar o curso, devido à minha falta de
conhecimento sobre esses assuntos e à falta de informação por parte da gestão da
universidade. (Passos, 2013, apud NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.74.).

A partir dessa nova perspectiva, repensar as questões de estadia dos estudantes de


origem popular no espaço acadêmico é problematizar o mesmo, entendendo que enquanto
lugar de construção do conhecimento, a universidade, não deve ser local de exclusão da
trajetória de vida, do saber constituído, das relações vivenciadas e dos outros meios de
atuação em que nós estudantes estamos inseridos.

Influência da base sócio-familar na permanência de estudante de origem popular na


Universidade

Permanecer na universidade não é tarefa fácil, como já foi destacado em outros


momentos, mas importa compreender, neste momento, a consideração da base familiar no
que pode ser qualificado enquanto ‘fracasso’ ou ‘sucesso’ na vida universitária. O estudante
ao chegar à universidade traz toda a reflexão de sua trajetória de vida, por isso, implica dizer
que sua família está presente nas entrelinhas de sua vida, isto porque, na maioria das vezes,
é a família que incentiva os estudos, a partir dos próprios relatos existenciais dos pais, e suas
dificuldades, tendo por consequência a falta de estudos, incentivam os filhos a darem
seguimento no processo educacional. Percebemos com isso, a importância do papel familiar,
tornando-se “imprescindível reconhecer que o desempenho escolar não dependia, tão
simplesmente, das habilidades individuais, mas da origem social dos alunos, da classe social,
etnia, sexo, local de moradia, entre outros”. (BARBOSA, 2010, p.40).
Com isso, ser/estar estudante de curso superior, enquanto estudante de origem
popular é tarefa que passa por lidar com os desafios das diferentes trajetórias. Para a minha
permanência e daqueles semelhantes à minha trajetória pessoal e familiar, não depende das
habilidades enquanto indivíduo isoladamente, sou/somos formados por todos os espaços
em que atuamos, e que estou/estamos inseridos, entendo que tudo implicará no
desempenho dentro da universidade.
Para entender a influência da base familiar, é necessário voltar às trajetórias dos
estudantes de origem popular, no contexto em que estão inscritos, seus relatos e suas
autobiografias, desta forma, é perceptível a presença dos elementos morais da família, e as
implicações da permanência:

Fazer parte do grupo PET e estar no espaço universitário me fortalece, pois todo o
aprendizado vem a contribuir principalmente para a minha condição de cidadã
questionadora que luta pelos seus direitos. Para atingir o objetivo de nos formar e
seguir adiante é necessário respeitar o outro, pois o sol nasce para todos e
colhemos o que planejamos. Diante dos esforços dos meus pais para me manter na
universidade, sinto que tenho que dar orgulho a eles e espero jamais decepcioná-
los.
Ao concluir o curso de Licenciatura em Biologia, pretendo atuar como pesquisadora
e professora na área, fazer um mestrado na área de Educação Ambiental e não
parar de estudar. Quero ajudar os meus pais economicamente, proporcionando
bem-estar para a minha família, pois se não fosse o apoio deles em todos os
sentidos, eu não estaria em uma universidade. Pretendo também fazer parcerias
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1195
para a elaboração de projetos sociais com crianças e adolescentes carentes sobre o
meio ambiental e educação sexual, dentre outros. (Santos, 2013, apud
NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.49.).

A superação que é o acesso à universidade pública é caracterizada como uma vitória


coletiva, pois que é tanto para o estudante, quanto para a família, pois a maioria tem nos
familiares os incentivadores, na crença da educação superior como elemento de superação
das desigualdades sociais. Reconhecem no espaço universitário, que até então era um
espaço reservado à minoria, difusor de qualificação para a vida profissional, e que desta
forma diferenciará do fluxo ainda então destinado à família, vindo a ter como relatado:
“melhores oportunidades profissionais do que a minha mãe” (Santos, 2013, apud
NASCIMENT, JESUS, 2013, p.82.), já em outros relatos, pude perceber a importância do
acessar a universidades para o estudante e sua família:

Durante dois anos, aproximadamente, minha rotina foi essa e depois de muitas
tentativas em vestibulares, comecei a pensar em desistir de estudar e continuar
apensar trabalhando. Porém, em 2008, percebi que tinha potencial para ir além da
minha imaginação, porque ocorreu uma reviravolta em minha vida, com a
aprovação em dois vestibulares de universidades públicas. O primeiro foi na UNEB,
no curso de Geografia, e o outro foi Engenharia Sanitária e Ambiental, na UFRB.
Seguindo os conselhos de minha família, mais especificamente do meu avô, decidi
tentar o curso de Engenharia na UFRB, na cidade de Cruz das Almas. Devo salientar
que houve resistência à minha mudança, devido à falta de dinheiro para custear a
minha estadia em outra cidade. Apesar das dificuldades, no ano de 2008, na
primeira semana de setembro, fiz uma viagem que mudaria por completo minha
vida. Munido com as minhas poucas roupas e objetos pessoais, meus pais me
levaram para Cruz das Almas e lá começa outra história que contarei nas próximas
linhas. (Campos, 2013, apud NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.82.).

Da mesma forma, a estrutura familiar auxilia na manutenção do estudante na


universidade, na dimensão afetiva/emocional, uma vez que suas fragilidades, na dimensão
familiar, implicarão no desenvolvimento do estudante, e em casos mais graves na
desistência dos mesmos. Essa relação dialógica da família, comunidade e estudante traçará,
de forma dinâmica, o percurso do estudante na academia, reafirmando a dependência das
interrelações.
Considero importante destacar a família, modelo de incentivo, não teve muito
contato com o estudo, talvez pela falta de oportunidades e a necessidade de
trabalhar. E o encorajamento não foi só econômico, mas principalmente afetivo,
fazendo aprender e perceber as coisas pelas qual vale a pena lutar e dedicar. [...] O
processo da aprovação (no vestibular) foi algo inesquecível, sendo o primeiro
membro da família materna a adentrar na universidade e, por isso, percebi que a
responsabilidade também crescia, devido às expectativas de todos em torno desta
nova fase da vida. [...] Por isso creio que a minha formação é tão importante para
os que me cercam quanto é para mim, pois é assim que me tornarei um cidadão
ciente e consciente da sociedade em que vivo. (Rocha, 2013, apud NASCIMENTO,
JESUS, 2013, p. 113-115.).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1196


O PET Conexões e suas implicações para a tomada de consciência enquanto sujeito
histórico

Após o acesso a universidade, e meu ingresso no PET – Programa de Educação


Tutoria, Conexões de Saberes: Acesso, Permanência e Pós-Permanência na UFRB, pude fazer
uma maior reflexão da minha condição de estudante, e o papel enquanto sujeito da minha
história de vida. Tomar consciência da educação superior como elemento transformador, elo
entre dois espaços diferentes, antes separado, e que agora percebo que em muitos
momentos se encontram: universidade e comunidade, saber acadêmico e saberes
populares.
Ao realizar a pesquisa-formação do PET Conexões, retomo a minha condição, o
enquanto um estudante de origem popular, oriundo de escola pública e cotista, condições
estas negligenciadas pela história, e pela política social, e entendo o papel de construtor de
novas perspectivas, onde minha trajetória pode ser percebida como formadora, e com
importância teórica para o debate sobre o acesso, a democratização do ensino superior, e a
produção de conhecimento na pesquisa acadêmica do PET Conexões, serve para mim e para
outros iguais a mim, como elemento do diálogo e autoafirmação, exemplificada por uma
integrante do programa:

Ingressei no PET – Conexões de Saberes da UFRB em outubro de 2012 e vejo nele


uma possibilidade concreta de continuar envolvida com as questões que me tocam.
Sinto-me muito feliz no grupo, devido, basicamente, a dois fatores: o primeiro, é
que por se tratar de uma proposta interdisciplinar e multicultural promove o
diálogo com outras áreas de conhecimento e favorece nosso crescimento
intelectual. O segundo diz respeito à temática “Acesso, Permanência e Pós-
Permanência”, que nos permite desenvolver atividades que promovam a afirmação
do espaço que ocupam os estudantes de origem popular. (Santos, 2013, apud
NASCIMENT, JESUS, 2013, p.133.).

Integrar o Programa de Educação Tutorial – PET Conexões de Saberes é vivenciar a


universidade, ou ainda, afiliar-me (COULON, 2008) à instituição de educação, pois deixei de
ser um estranho, em um universo, igualmente estranho. Desta forma, ultrapassei os limites
do ensino, sala de aula, para vivenciar a educação de maneira plena, no seu tripé, ensino,
pesquisa e extensão, onde finalmente entendi como construirei a minha permanência
qualificada na UFRB.
A pesquisa-formação do PET Conexões é pertinente para mim, pois traz a discussão
assuntos ligados aos estudantes negros e negras, oriundos das classes populares, de bairros
periféricos, zonas rurais, entre outros, aos quais foram outrora negados os direitos de
acessar a universidade, e que atualmente, por meios de políticas de reparação social,
conseguem alcançar o espaço acadêmico.

Faço parte também como bolsista do PET/ Conexões de Saberes, onde discutimos e
pesquisamos sobre o tema de Acesso, Permanência e Pós-Permanência. O
importante desse PET é que estamos no papel tanto de pesquisador quanto de
pesquisado. Somos protagonistas da construção intelectual e política, fazendo
ciência do nosso jeito e descolonizando o pensar. Com cursos e formações que
fortalecem a reflexão do papel do estudante de origem popular e contribuindo com
a elevação da autoestima intelectual, o PET faz-nos permanecer com qualidade

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1197


acadêmica na universidade, colocando-nos em patamares iguais ou superiores aos
dos estudantes oriundos das classes hegemônicas. Aprendemos a nos perceber
enquanto agentes nesse espaço de luta que é a Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, tornando-nos protagonistas e construtores das políticas necessárias para
a permanência de outros estudantes como nós. (Ferreira, 2013, apud
NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.145).

Não obstante, entendo que acessar a universidade é repensar com base na mudança
de paradigmas, contudo não basta oportunizar o acesso, mas estruturar a permanência
qualificada dos estudantes. No relato de uma bolsista do PET Conexões, retrata-se a
consequência da relação dialética do ensino e aprendizado proporcionado pelo programa
tutorial:
[...] depois de “entrar” na universidade [...] as dinâmicas e próprio ritmo da vida dá
uma acelerada. É você competindo consigo mesmo numa maratona de escolhas,
decisões e afirmações. Um aluno que não se mantém interado das demandas do
seu curso e das oportunidades que a universidade lhe oferece logo se sentirá
frustrado dentro da academia. [...] Estou há 3 anos na universidade e através do
ensino – pesquisa – extensão é como tenho feito minha permanência com êxito.
Tanto financeiro com o auxilio de bolsas de estudo e pesquisa, como pela minha
participação no Programa Conexões de Saberes (2010-2011); no grupo de estudo
Arte e Comunicação Visual (2010); no grupo de pesquisa Arte da gravura e
impressões (2013); no PET Conexões de Saberes (2012/2013...) e nos estágios [...].
(Silva, 2013, apud NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.129.).

Ademais, na minha formação política e acadêmica, fazer parte do PET Conexões de


Saberes: acesso, permanência e pós-permanência é envolver-me como ser ator/autor da
minha trajetória de conhecimento, de ser/estar estudante universitário, acreditando que os
saberes dos espaços que estou constituído têm relevância dentro da universidade, e fora
dela, para mim e para outros, e que a mesma trajetória, referenciada no livro destacado, e
nas atividades de extensão funcionará como veiculo de afirmação das políticas de acesso e
permanência, contribuindo tanto para a universidade, quanto para os estudantes,
semelhantes à minha própria existência.

Relação Currículo e Permanência dos Estudantes

A questão dos currículos faz-se presente no processo formativo do estudante e,


segundo Costa (2013), “conhecê-lo é participar da sua própria formação, para isso, é
necessário observa-ló, pois nele enquanto uma construção social está à formação de nós
mesmos como sujeitos sócio-históricos [...]”. (COSTA, 2013, p.4)
Nesta forma de pensar currículo, a necessidade de participar da construção é uma
convocação que se torna necessária. Refletir sobre a elaboração do currículo de formação
acadêmica é discorrer a partir da participação dos integrantes, autores/atores que integram,
a fim de construir, em conjunto, uma formação mais próxima da realidade social em que
estamos, porque fazemos parte do processo enquanto estudantes, inseridos como discentes
do curso acadêmico.
Ainda questionar o currículo como elemento formativo para o estudante
universitário, e, para além, a formação universitária, no caso específico do meu curso de
Licenciatura em História da UFRB, entre estudantes que se tornarão professores é

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1198


questionar de qual forma os elementos disponibilizados nesse currículo, transformar-se-ão
em elemento fundamental para a formação dos estudantes da educação básica. Essa
discussão é trazida por Costa (2013), estudante egressa do Pet-CONEXÕES275 em seu
trabalho de conclusão de curso, defendendo que o “currículo deve representar um
referencial para seus estudantes [...] indispensáveis para seus alunos” (COSTA, 2013, p5).
Visitando novamente a ideia de currículo como elemento que visa a atender às
demandas da sociedade, e não só que sejam conjuntos de disciplinas oferecidas para a
formação técnica, Costa proporá uma reflexão pertinente no que diz a preocupação também
do currículo:
Portanto, o currículo não deve ser entendido apenas como um conjunto de
disciplinas que expressam a visão de formação de uma determinada classe
social, ele deve principalmente, dar conta das necessidades atuais em que o
Brasil se encontra, ou seja, o currículo deve corresponder à estrutura social,
política e cultural da população a que se destina, de modo a problematiza-
la e formar para a atuação social naquele contexto. (COSTA, 2013, p.7)

Para os autores em que Costa (2013) sustentou seu trabalho, Macedo (2003), Silva
(1999), Nascimento e Jesus (2010) Moreira (2003), buscou analisar as questões curriculares
do curso de História da UFRB, vale ressaltar que todos afirmam a parcialidade do currículo, e
ressaltam a importância da construção coletiva do currículo, levando em consideração sua
importância na construção do conhecimento.
Para nós, integrantes da UFRB, pensar propriamente essas questões da formação no
Recôncavo, é compreender a diversidade cultural, religiosa e étnica presente historicamente
na região. Espaço reconhecido desde o processo colonial e pela sua formação populacional,
constituída primeiramente, de índios, portugueses e africanos. E ainda, respeitar o como se
deu ar todo o processo de instauração da universidade e como ela dialoga com o espaço e
seus habitantes. Por isso, nos currículos da universidade é importante trazer elementos da
formação do Recôncavo baiano. Costa (2013) propunha em seu trabalho, refletir a
importância do dialogo do currículo como elemento preponderante no processo formativo:

Nessa perspectiva, os currículos dos cursos de formação de professores


devem ser construindo a partir da ênfase dos aspectos inerentes da
população local ao qual está inserida. Valorizando assim, os sujeitos e sua
região com o propósito de gerar conhecimento através de suas próprias
vivências e experiências, como instrumento metodológico para garantir a
aprendizagem dos professores, e consequentemente dos seus alunos na
sua atuação pedagógica. (COSTA, 2013, p10).

Parto assim, do pressuposto de que as contribuições que a universidade propõe e


realiza devem dar um retorno à população, esta população de que faço parte, e para a qual
desejo uma participação positiva da universidade no espaço em que está inserida.

A UFRB é uma universidade em vias de transformação para se tornar uma


Universidade Popular, de formação e expressão do poder popular. Uma
universidade para as massas, com o objetivo de incluir e produzir

275
PET – Conexões de Saberes UFRB e Recôncavo em Conexões.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1199
conhecimento para todos aqueles que nela queiram entrar. O berço da
UFRB é o Recôncavo, uma região que proporcionou ricas contribuições para
a história, a cultura e o desenvolvimento socioeconômico da Bahia e do
Brasil. A instituição valoriza os conhecimentos, saberes, experiências
sociais, culturais e práticas do Recôncavo. Também compreende a
necessidade de se pensar o desenvolvimento econômico regional e os
aspectos socioculturais, visando reparação étnico-raciais e inclusão social,
no intuito de enfrentar e corrigir as desigualdades sociais e étnicas
presentes na região (JESUS e NASCIMENTO, 2012). Para que haja uma
maior e mais completa integração entre a UFRB e o Recôncavo, é preciso
que haja uma maior interação com a comunidade, de modo que as pessoas
se sintam parte da universidade e não a vejam como algo distante. (Bruno,
2013, apud NASCIMENTO, JESUS, 2013, p.36.).

A educação superior não pode estar dissociada do tripé: ensino, pesquisa e extensão,
e na UFRB, das políticas de ações afirmativas. Destaco nesse conjunto o papel da extensão
que é o de trabalhar como elemento que promove o maior e mais profundo diálogo entre
dois espaços: a universidade, representante do saber acadêmico, e a comunidade:
constituída por diversos saberes populares e suas interrelações. Sobretudo, desde o
surgimento da universidade que tem um papel formativo diferenciado, para ser além de
uma ferramenta que auxiliará na construção de consciência social e luta por direitos sociais.
Pensando nas atividades de extensão da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
– UFRB, tendo em vista diferentes programas e projetos, ações de intervenção da
universidade na comunidade, farei um recorte sobre as ações do Programa de Educação
Tutorial - PET Conexões de Saberes: Acesso, Permanência e Pós-Permanência na UFRB,
justamente pelo relacionamento de duas perspectivas do artigo, a universidade e seus
estudantes, processo do acesso e da permanência, que dará todo o processo formativo
desses indivíduos, visto a preparação do mercado de trabalho, mas também, as questões de
extensão, onde nós, estudantes integrantes da pesquisa-formação, estudantes de origem
popular, chegamos à universidade com as experiências de vida e trajetórias, e nos tornamos
mediadores entre o espaço acadêmico e as escolas de educação básica públicas do
recôncavo da Bahia.
A atividade de extensão-formação do PET Conexões de Saberes está sendo realizada
desde o ano de 2012, e consiste na mobilização em prol do acesso ao ensino superior nas
escolas de ensino médio da rede pública nas cidades sedes da UFRB, no Recôncavo da Bahia.
Os acadêmicos petianos promovem a divulgação do ENEM –SISU, dos cursos da UFRB, nos
diferentes centros de ensino, da política institucional de permanência da universidade
(bolsas, auxílios, serviços etc), tendo por base seus relatos de vida e formação, como
elementos difusores das possibilidades de construção do êxito acadêmico de estudantes
negros, de origem popular e optantes do sistema de cotas.
A preocupação de aprofundar o diálogo com a comunidade escolar do Recôncavo
reflete uma característica da universidade, por estar inserida em território com muitas
peculiaridades, e o protagonismos dos jovens de origem popular, revela um dos princípios
do grupo PET, inspirado na atuação do Programa Conexões de saberes, e isso se faz com
base nas discussões sobre o currículo e a formação instituinte.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1200


Nós estudantes, entramos nas escolas de educação básica do ensino médio, para
uma intervenção refletida no dever de compreender e respeitar os saberes populares, assim
como Freire (1996) destaca:

Por isso mesmo pensar certo colocar ao professor ou, mais amplamente à escola,
o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das
classes populares, chegam a ela saberes socialmente construídos na prática
comunitária. (FREIRE, 1996, p.30).

Paulo Freire, na verdade, afirma a necessidade de respeitar o outro, e para nós isso é
um princípio ao nos colocarmos como agentes mediadores entre esses dois espaços.
Tal atividade tem por compreensão a universidade, seus estudantes e suas
implicações, onde se deparando na pesquisa-formação do PET Conexões, sobre o acesso e a
permanência, sentem-se convocados a viabilizar o conhecimento da universidade para
outros estudantes da educação básica, no ensino médio. Para nós, não importa somente
apresentar uma universidade pública, mas, a possibilidade concreta de outros como nós,
vindos da mesma realidade social, econômica, cultural e étnico-racial, através das relevantes
políticas de ações afirmativas, podem ter acesso e sucesso na vida universitária. Com isso,
defendemos a importância de democratizar o acesso ao ensino superior, e a necessidade de
viabilizar cada vez mais a manutenção destes novos sujeitos da universidade brasileira.

Os alunos devem assumir seu papel de ator social na medida em que pesquisam de
forma seletiva, compreensiva seu objeto de estudo, relacionando e agregando o
máximo de informação que puder, de forma a dialogar com a sociedade que em
contrapartida construirá de forma participativa na evolução do ensino superior,
assim há de haver, também, uma redução da distancia entre a teoria e prática x
pratica e produção x aplicação do conhecimento. Compartilho da importância de
difundir e fomentar não apenas o conhecimento científico e acadêmico, mas,
sobretudo, a experiência que é viver tudo isso. Bom seria se todos os estudantes de
ensino médio tivessem acesso às informações sobre as políticas institucionais das
universidades públicas brasileiras. (Silva, 2013, apud NASCIMENTO, JESUS, 2013,
p.129.).

Conclusões

Ser/estar estudante de uma universidade pública no Brasil está ligado a diversas


problemáticas relacionadas à universidade, e aos espaços de origem e identidade dos
estudantes. Como foi referido, a permanência de estudantes de origem popular perpassa
por discussões da trajetória de vida, sobre as políticas públicas de acesso, e políticas
institucionais de permanência oferecidas pelas universidades brasileiras. Ainda, falar do
impacto da educação superior na vida do estudante, que sofre e exerce a ação formativa em
que está implicado, envolve o debate sobre as questões de organização curricular e como
ela proposta para atender às expectativas dos estudantes,, e ao mesmo tempo, às
possibilidade de eles virem a dar em retorno aos respectivos espaços de origem.
Desta forma, é preciso compreender e repensar a permanência dos estudantes, em
sua diversidade, em suas interrelações, assim sendo, é necessário ouvi-los, levando em
consideração que são sujeitos conscientes do processo formativo em que estão inseridos, e
as suas interrelações e consequências políticas e sociais. É necessário ainda, ponderar sobre
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1201
a universidade e suas raízes no processo histórico, destacando a necessidade de ter presente
a incorporação dos atores/autores para a construção dessa universidade, que tenha a “cara”
dos estudantes que estão nela arraigados, e daqueles outros que venham a adentrar tal
espaço.
As autobiografias dos estudantes de origem popular, relatadas no livro Currículo,
formação e universidade: autobiografia, permanência e êxito acadêmico de estudantes de
origem popular podem ser consideradas como uma nova etapa da universidade, pois
àqueles que outrora foi negado o direito de adentrar no espaço acadêmico, aparece como
sujeito e autor de sua história de vida e formação, afirmando sua identidade étnico-racial e
social e suas conexões, mostrando que estão conscientes e comprometidos com a educação,
e com a formação, e para além, que podem voltar aos seus espaços de origem, levando
resultados e contribuições para o desenvolvimento social, em diálogo com os saberes locais.
As políticas de permanência na universidade caracterizam-se como uma política
fundamental nesse processo, e não me refiro à questão de permanecer na universidade,
restrita aos auxílios financeiros disponibilizados pelo MEC e instituições de educação, mas
aos projetos de ensino, pesquisa e extensão, na permanência qualificada exemplificada nos
relatos autobiográficos dos estudantes, que permitirá a todos os estudantes que se afiliem à
universidade(COULON, 2008), vencendo o período de estranhamento, construindo o êxito
acadêmico, e por consequência, mantendo-se fora da lista de evasão.

Referências
COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária/ Alain Coulon;
tradução de: Georgina Gonçalves dos Santos, Sônia Maria Rocha Sampaio. – Salvador:
EDUFBA, 2008. 278 p.
BARBOSA, Jorge Luiz, Silva, Jailson de Souza e, Sousa, Ana Inês (orgs). Acesso e permanência
de estudantes de origem popular: desafios e estratégias/ organização. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2010. P. 39-51.
COSTA. Tamires Conceição. Currículo e Formação: O curso de História e sua implicação com
a identidade de Cachoeira. Trabalho de Conclusão de Curso. CAHL-UFRB. 2013
FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez. 2001.
NASCIMENTO, Cláudio Orlando C. do. JESUS, Rita de Cássia Dias P. Currículo, formação e
universidade: autobiografias, permanência e êxito acadêmico de estudantes de origem
popular/ Organizadores: Cláudio Orlando Costa do Nascimento e Rita de Cássia Dias Pereira
de Jesus. _Cruz das Almas, BA: EDUFRB, 2013.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1202


De lagarta a borboleta: experiências de leitura como ecdisona necessária à metamorfose

Patrícia Petitinga Silva


UFBA
patpetitinga@yahoo.com.br

O texto apresenta reflexões sobre minhas práticas de leitura para discutir como me aproximei, fiz uso e me
apropriei dos textos lidos. Assim, procurei, ao longo desses “rascunhos de mim”, resgatar minhas histórias de
leitura para tentar entender como elas repercutem sobre os modos como me percebo leitora. Pretendi
também compreender como as experiências de leitura ganharam sentido a partir das transformações por que
passei e como aprendi a partir de minhas próprias marcas sócio históricas. Como o ato de ler pode ser
entendido a partir de três polos - uma competência herdada, aquele que foi ensinado a ler e a autodidaxia -,
busquei entender como eles marcam minhas representações de leitura e meu desenvolvimento e crescimento
como pessoa. O trabalho discute, ainda, como a leitura do mundo, a partir da música, precede a leitura da
palavra, numa mistura de ritmo e palavras que produzem sentido, criam realidades e podem funcionar como
potentes mecanismos de subjetivação. Ao contrário, discute como toda leitura obrigatória pode ser inócua,
principalmente quando a história contada não tem relação com o mundo do leitor, já que linguagem e
realidade se prendem dinamicamente e, portanto, a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.
Palavras-chave: Experiências leitoras; Memórias; Autobiografia.

Introdução

Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea.


Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras
dimensões, menos incômodas. É esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a
máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há correntes,
prisões tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura? (GRAMMONT,
1999, p. 73).

Ao ler Grammont, penso: a leitura subverte-me? Ou seja, ela me possibilita ir contra


a ordem estabelecida, perverter-me, alterar-me (AULETE, 2009)? Que representações de
leitora tenho de mim mesma? Como as histórias das práticas de leitura são capazes de
traduzir “o modo como os leitores se aproximam, fazem uso e se apropriam de um texto”
(MORAES, 2011, p. 173), procurarei, ao longo desses “rascunhos de mim” (SOUZA;
CORDEIRO, 2010), resgatar minhas histórias de leitura para tentar entender como elas
repercutem sobre os modos como me percebo leitora. Não pretendo com isto dar à
narrativa uma dimensão utilitária, ainda que, para Benjamin (1993), a natureza da
verdadeira narrativa tenha sempre em si uma dimensão utilitária, às vezes de forma latente.
Pensar em práticas de leitura como experiências supõe refletir sobre o que significam
os acontecimentos vividos, pois uma experiência não nos deixa indiferente, ela nos implica,
nos afeta e nos marca (CONTRERAS DOMINGO; FERRÉ, 2010). A atribuição de sentido ao que
foi vivido, a partir do processo de reflexividade, é o que faz dele uma experiência. Assim,
como explicam Souza e Cordeiro (2010, p. 227), “as experiências de leitura ganham sentido
quando o sujeito se transforma e aprende a partir de suas próprias marcas sócio históricas”.
Deste modo, partindo das discussões realizadas durante o curso da disciplina
Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e de Leitores, vinculada ao

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1203


Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado
da Bahia (PPGEduC/UNEB), narrarei minha trajetória de leitura e tomarei essas práticas
como estimuladoras do desenvolvimento, de um processo de metamorfose pessoal.
Assim como as lagartas produzem a ecdisona, um hormônio que contribui para sua
transformação em imagos (os adultos), em diferentes fases de desorganização e
organização, vejo as experiências de leitura como esse hormônio que nos estimula a crescer,
nos revolve, nos perverte, nos subverte. Do mesmo modo que as Metamorfoses de Ovídio
(2003) nos mostram um mundo em constante mutação, o crescimento e desenvolvimento
de um inseto são possíveis por conta das transformações por que passa na forma e estrutura
do corpo ao longo da vida. Nesses animais, existem três padrões distintos de metamorfose:
ametábolo, hemimetábolo e holometábolo (RUPPERT; FOX; BARNES, 2005).
As traças apresentam o padrão ametábolo, no qual o desenvolvimento é direto,
simples, ou seja, o animal recém-eclodido do ovo se assemelha ao adulto e, dessa forma,
cresce sem metamorfose. As traças são consideradas importantes pragas em áreas urbanas,
infestando roupas, papéis, tapeçarias, estofados e... livros! As traças dos livros estão entre
os insetos mais primitivos conhecidos pelo homem. Sim, a metamorfose é fundamental!
Penso num homem que não foi capaz de se transformar através da leitura. Que pessoa ele
teria se tornado?
No padrão hemimetábolo, insetos como a libélula e o gafanhoto realizam
metamorfose incompleta. A larva, depois de eclodir do ovo e passar por uma modificação
parcial, se transforma na forma juvenil, imatura - a ninfa -, que se assemelha muito ao
adulto. As libélulas são insetos carnívoros e atacam outros insetos para se alimentar. O
gafanhoto só anda em bandos e é considerado uma das piores pragas da agricultura
brasileira, pois como é capaz de comer o correspondente a seu peso por dia, causa danos em
áreas muito grandes. Se é verdade que as experiências de leitura transformam o indivíduo,
vejo que esta metamorfose não pode ser parcial, sob pena de que deixe de ter sentido,
trazendo para esse sujeito apenas o significado da leitura como decifração dos sinais
impressos, sem, entretanto, ser um leitor completo.
Ah! As joaninhas, abelhas, borboletas e mariposas, esses sim, são insetos que
apresentam metamorfose completa, caracterizada por uma série de transformações pelas
quais precisam passar para atingir o estado adulto. Os insetos que apresentam metamorfose
completa evoluíram de ancestrais que não passavam por este processo. Uma possível
vantagem associada ao padrão holometábolo é que animais com duas (ou mais) formas bem
distintas podem explorar novos recursos e um leque maior de habitats, minimizando a
competição entre jovens e adultos. Assim como uma borboleta é capaz de tirar proveito do
meio, à medida que se transforma de lagarta a imago, um homem que tem acesso a fontes
bibliográficas diferentes vai construindo um conjunto de modalidades de leitura diversas,
num território da leitura como práticas culturais plurais.
Para Fraisse, Pompougnac e Poulain (1997), podemos pensar no ato de ler a partir de
três polos: aquele que sempre soube ler, ou seja, uma competência herdada; aquele que foi
ensinado a ler; e a autodidaxia, a capacidade de aprender sozinho. Ao ler, recentemente,
esses autores, me deparei pensando que talvez traga, em minhas representações de leitura,
uma mistura desses polos, como numa metamorfose completa em que as experiências de
leitura se traduziram no hormônio necessário ao meu desenvolvimento e crescimento como
pessoa.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1204
A lagarta eclode do ovo e tem como metas alimentar-se e crescer

Do mesmo modo que Lontra (2006, p. 73), “não recordo de como ocorreram os meus
primeiros passos na leitura do mundo, do fabuloso livro da vida [...]” Minha mãe conta que,
um dia, foi ao salão de beleza e me levou junto com ela. Eu tinha seis anos. Em meio ao
barulho de secadores de cabelo e pessoas conversando, cheguei junto a ela com uma revista
em quadrinhos que uma funcionária do salão havia me dado para que “brincasse de ler”. Ela
conta que comecei a soletrar uma palavra e que, depois, dei a revista para ela ver. Ao
constatar que tinha lido a tal palavra, coisa que ainda não havia feito, pelo menos em sua
frente, foi um alvoroço só dentro do salão.
Minha mãe é professora de Língua Portuguesa e, assim, cresci em meio aos livros. À
noite, após um dia inteiro de aulas, ela sempre estava lendo um de seus livros. Hoje sei que,
como seus alunos deveriam ler os livros indicados pela escola, ela também os lia, para dar
conta de acompanhar as trajetórias leitoras deles. Mas também lia “os seus livros”, aqueles
que ela havia escolhido, numa prática intensa de leitura e construção de saberes. Teria eu
herdado uma competência leitora?
Minha filha, Alice, tem nove anos e é uma leitora voraz. Escolhi esse nome para que
ela me permitisse entrar no país das maravilhas, mas vejo que é ela quem, a cada dia,
através da leitura, penetra nesse universo mágico. Sem dúvida,

[...] os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a


paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos
fazem acreditar que a vida é mais que um punhado de pó em movimento. Que há
algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das
nuvens. Estrelas jamais percebidas. (GRAMMONT, 1999, p. 72).

Minha mãe é a grande responsável por esse gostar de ler de Alice. Sempre incentivou
sua leitura. Ainda bebê, ganhava livrinhos de plástico, os quais adorava, tomava banho com
eles, deitava em cima, eram amigos íntimos. Minha mãe sempre leu várias histórias para ela,
e ainda hoje os lê. Por isto concordo com Moraes (2011), o interesse pela leitura pode
nascer dos momentos de leitura em família, embora eu não me lembre de minha mãe ter
lido para mim sequer um único dia. Ela, entretanto, conta que leu, sim, muitas vezes. Por
que, então, não me lembro destas leituras?
Minha mãe não estimulou somente o gostar de ler de Alice. Fez isto como todos os
netos, inclusive Mateus, meu filho caçula. Hoje, com dois anos, não pode ver uma revista ou
livro que pega para folhear. A cada nova página, pergunta sempre “que é isso, mãe?” e, ao
ouvir minha resposta, questiona “por quê?”, ainda que não faça nenhum sentido esta
pergunta. Grammont (1999) tem razão! A leitura é subversiva, nos inquieta, nos faz sonhar,
nos torna humanamente curiosos.
Também não me lembro de ter tido o desejo, a ansiedade de ir à escola pela primeira
vez, como nos relatos (auto)biográficos de alunos lidos por Catani, Bueno e Sousa (2000).
Não tinha irmãos mais velhos para invejar nem me lembro de ter visto crianças
uniformizadas passando pela rua. Mas fui para a escola Recanto de Fadas quando ainda
tinha três anos. As fadas são seres mitológicos com o poder mágico de influir no destino das
pessoas. Elas apresentam “asas de libélulas” e utilizam uma “varinha de condão” para
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1205
realizar encantamentos. Que maravilha! Influenciada desde pequenina por essas deusas do
destino com asas de insetos, uma mistura de metamorfose e subversão.
Porém, quando cheguei à alfabetização penso que um pouco do encantamento foi
perdido... Fui introduzida ao método fônico da “Casinha Feliz” e, embora não me recorde de
nenhum desencantamento naquela época, concordo com Ferreiro (1987) que a redução do
processo de alfabetização à simples memorização de um conjunto de correspondências
grafofônicas reduz também a aprendizagem do sistema de escrita à mera aprendizagem de
um código, tendo-se uma possível linha direta para o analfabetismo funcional. Por isso
Soares (2004) explica que não pode haver um único método para a aprendizagem inicial da
língua escrita, é preciso que o professor lance mão de múltiplos métodos para atender às
especificidades das crianças.
Lembro-me de que, bem pequenininha, tinha vários disquinhos coloridos de histórias
infantis: Festa no Céu (BARRO, 1960a); História da Baratinha (BARRO, 1960b); A Formiguinha
e a Neve (BARRO, 1960c); A Cigarra e a Formiga (BARRO, 1960d); O Chapeuzinho Vermelho
(BARRO, 1960e); A Gata Borralheira (BARRO, 1960f); Branca de Neve e os 7 Anões (BARRO,
1960g); Pinochio (BARRO, 1960h); Os 3 Porquinhos (BARRO, 1961) e tantos outros. Ouvia as
historinhas numa vitrolinha portátil colorida, com duas caixas de som que se tranformavam
em uma maletinha vermelha.
Também ouvia o disco Os Saltimbancos (BACALOV, 1977), fruto de um musical
infantil que meus pais me deram de presente. O musical, inspirado no conto Os Músicos de
Bremen, com texto de Sérgio Bardotti, músicas de Luiz Enríquez Bacalov e tradução e
adaptação de Chico Buarque, era uma alegoria política na qual o jumento representava a
Intelligentsia - os trabalhadores intelectuais -, a galinha, a classe operária, o cachorro, os
militares e a gata, os artistas. O barão, inimigo dos animais, era a personificação da elite, os
detentores do meio de produção. Ouvia e cantava:

Au, au, au. Hi-ho hi-ho


Miau, miau, miau. Cocorocó
O animal é tão bacana
Mas também não é nenhum banana
Au, au, au. Hi-ho hi-ho
Miau, miau, miau. Cocorocó
Quando a porca torce o rabo
Pode ser o diabo
E ora vejam só
Au, au, au. Cocorocó
Era uma vez
(E é ainda)
certo país
(E é ainda)
Onde os animais
Eram tratados como bestas
(São ainda, são ainda)
Tinha um barão
(Tem ainda)
Espertalhão
(Tem ainda)
Nunca trabalhava
E então achava a vida linda

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1206


(E acha ainda, e acha ainda) [...]
Quando o homem exagera
Bicho vira fera
E ora vejam só
Au, au, au. Cocorocó [...]
Mas chega um dia
(Chega um dia)
Que o bicho chia
(Bicho chia)
Bota pra quebrar
E eu quero ver quem paga o pato
Pois vai ser um saco de gatos [...]
(BACALOV, 1977a).

Não sei se, naquela época, já entendia o que todas aquelas historinhas estavam
contando, mas, assim como Freire (1989), também acredito que a leitura da palavra é
sempre precedida pela leitura do mundo. E que mundo de fantasia e subversão!

[...] Junte um bico com dez unhas


Quatro patas, trinta dentes
E o valente dos valentes
Ainda vai te respeitar
Todos juntos somos fortes
Somos flecha e somos arco
Todos nós no mesmo barco
Não há nada pra temer
- Ao meu lado há um amigo
Que é preciso proteger
Todos juntos somos fortes
Não há nada pra temer
Uma gata, o que é que é?
- Esperta
E o jumento, o que é que é?
- Paciente
Não é grande coisa realmente
Prum bichinho se assanhar
E o cachorro, o que é que é?
- Leal
E a galinha, o que é que é?
- Teimosa
Não parece mesmo grande coisa
Vamos ver no que é que dá
Esperteza, Paciência
Lealdade, Teimosia
E mais dia menos dia
A lei da selva vai mudar [...]
(BACALOV, 1977b).

Mais tarde, lembro bem. Cantava aquelas músicas como quem levantava uma
bandeira. Entre os anos de 1983 e 1986, Balão Mágico era um programa infantil com altos
índices de audiência. Além de escutar as músicas durante o programa, meus pais me deram

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1207


um dos discos do grupo musical infantil, A Turma do Balão Mágico. Como estudava à tarde,
passava as manhãs cantando:

[...] Superfantasticamente!
As músicas são asas da imaginação
É como a flor e a semente
Cantar que faz a gente
Viver a emoção
Vamos fazer a cidade
Virar felicidade
Com nossa canção
Vamos fazer essa gente
Voar alegremente
No nosso balão!
Sou feliz, por isso estou aqui
Também quero viajar nesse balão!
Super fantástico!
No Balão Mágico!
O mundo fica bem mais divertido! [...]
(BALLESTEROS; POÇAS, 1983).

Ouvir aquelas músicas tinha um significado enorme para mim. A leitura daquelas
palavras, misturada com a leitura de mundo, ganhavam um sentido que me alimentava, me
fazia crescer, assim como a lagarta que vai ganhando forma em seu processo de fitofagia.

[...] Se enamora
Quem vê você chegar com tantas cores
E vê você passar perto das flores
Parece que elas querem te roubar
Se enamora
Quem vê você chegar com tantos sonhos
E os olhos tão ligados nesses sonhos
Tesouros de um amor que vai chegar [...]
(GAROFALO et al., 1984).

Apaixonava-me não sei bem por que ou por quem. Era uma mistura de ritmo e
palavras que produziam sentido, criavam realidades e às vezes funcionavam como potentes
mecanismos de subjetivação (LARROSA, 2002). Essas experiências estavam deixando marcas
e havia nelas algo que carregava suas próprias lições, sua própria aprendizagem, seu próprio
saber, ainda que nem sempre saibamos ou possamos expressar (CONTRERAS DOMINGO;
FERRÉ, 2010).
Depois veio outro grupo musical, o Trem da Alegria, que fez sucesso entre o público
infantil e juvenil nos anos de 1985 a 1992. E eu continuava descobrindo as palavras através
da música:

Eu quis saber da minha estrela-guia


Onde andaria meu sonho encantado
Fada-madrinha, vara de condão
Esse meu coração sonhando acordado
Vai nos levar para um mundo de magia
Onde a fantasia vai entrar na dança
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1208
E quando o brilho do amor chegar
Eu quero é mais brincar, melhor é ser criança
Uni duni duni tê, ô ô ô ô
Salamê minguê, ô ô ô ô
Sorvete colorê
Sonho encantado onde está você? [...]
(SULLIVAM; MASSADAS, 1985).

Naquela época, a magia e a fantasia sempre estavam presentes nas letras das
músicas que escutava. Eram histórias que me faziam sonhar, imaginar e ter fantasias. Fazia-
me acreditar que a vida pode ser tal qual a imaginamos e que sempre há algo a descobrir.
Em 1985, Tancredo Neves, primeiro presidente civil após o Golpe de 64, assinou o fim
do regime militar e o princípio da redemocratização do país. Nesse mesmo ano, uma
emenda constitucional restituiu eleições diretas para a presidência da República e, no ano
seguinte, o Trem da Alegria cantou isso em uma de suas músicas.

[...] Hoje acordei e ouvi no rádio


Alguém dizia que o mundo ia mal
Que entre dois mil e um e dois mil e dez
Já era a Terra numa guerra final
Eu sou o fera, o fera neném
Olha só o mundo que a gente tem
Eu sou o fera, o fera neném
Se eu for presidente, você vai se dar bem [...]
(CANTUÁRIA; MESQUITA, 1986).

Estamos em 2014 e, ainda bem, não tivemos uma guerra final em 2010. Era tudo
imaginação! Não estava me preparando para ser uma cidadã do futuro. Naquele momento
eu era uma cidadã impulsionada por outras crianças que nos faziam acreditar que tudo daria
certo, bastava implicar-se. Como a lagarta em seu longo período de desenvolvimento, eu só
fazia crescer alimentada pelas histórias contadas através da música. Sou baiana,
soteropolitana, terra do axé, do pagode e do arrocha, e hoje me preocupo com as histórias
que as crianças da minha terra têm ouvindo nas “músicas infantis”...
Cresço e descubro Raul Seixas, ainda vivo. Ele me dizia que poderia ser quem
quisesse ser, eu era uma metamorfose ambulante. Entrando na adolescência, essa história
fazia todo sentido:

Prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1209


Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
É chato chegar
A um objetivo num instante
Eu quero viver
Nessa metamorfose ambulante [...]
(SEIXAS, 1973).

Conheço, através de Raul, o Rock 'n' Roll e toda a sua força de contestação. Tomei-o
para mim como numa paixão arrebatadora, mas depois vieram muitos outros, como Legião
Urbana, Titãs, Janis Joplin, Jimi Hendrix... e, assim, foram anos em que o rock era o alimento
da alma, a experiência que “nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2002,
p. 21).

Há muito tempo atrás, na velha Bahia


Eu imitava Little Richard e me contorcia
As pessoas se afastavam pensando
Que eu tava tendo um ataque de
Epilepsia (de epilepsia)
No teatro Vila Velha,
Velho conceito de moral
Bosta Nova pra universitário,
Gente fina, intelectual
Oxalá, oxum dendê oxossi de não sei
o quê. (de não sei o quê)
Oh, rock'n'roll, yeah, yeah, yeah,
That's rock'n'roll […]
E pra terminar com esse papo
Eu só queria dizer
Que não importa o sotaque
e sim o jeito de fazer
Pois há muito percebi que
Genival Lacerda tem a ver
com Elvis e com Jerry Lee (Elvis e Jerry Lee) [...]
(SEIXAS; NOVA,1989).

Minha mãe, além de ser professora de Língua Portuguesa, é uma “santa”. Tirá-la do
seu prumo não é coisa fácil. Por isso, durante a adolescência, não me lembro de ter tido
brigas homéricas com ela. Com meu pai, entretanto, a coisa era diferente. Taurino como eu,
meu pai faz aniversário um dia depois do meu. É teimoso e bastante rígido, mas, uma
característica que lhe é particular – o machismo – amplificavam nossos desentendimentos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1210
Raul, nestes momentos, também me consolava, pois via que aquela não era uma mágoa
somente minha.

[...] Pai eu já tô crescidinho


Pague prá ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto
Por que cargas d'águas
Você acha que tem o direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer
Na realidade
No dia em que você souber respeitar
A minha vontade
Meu pai
Meu pai [...]
(SEIXAS, 1977).

A esta altura, na escola, já havia lido vários livros indicados nas listas de material
escolar, mas não me recordo de nenhum. Minha mãe era assinante do Círculo do Livro, um
“sistema de clube” onde a pessoa era indicada por algum sócio e, então, recebia uma revista
quinzenal com vários títulos a serem escolhidos para a compra de, pelo menos, um livro.
Certa vez, quando chegou lá em casa o catálogo quinzenal, não tive dúvidas ao ler a sinopse
do livro Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada, Prostituída... (HERMANN; RIECK, 1978). Depois
de muito questionada acerca de minhas intenções com o livro, convenci minha mãe a
compra-lo. Não sei o que, verdadeiramente, me fez querer ler aquele livro. Talvez o fato de
que também era uma garota com 13 anos ou a curiosidade sobre as drogas e a prostituição.
Sem dúvidas, o livro era subversivo! Emprestei-o para todas as minhas amigas e nem sei
onde ele acabou parando...
Do Círculo do Livro, minha mãe também comprou para ler Olga (MORAIS, 1985). Li a
sinopse e não hesitei, iria ler o livro, mais uma biografia revolucionária. Chorei quando Olga
morreu numa câmara de gás do campo de concentração nazista. Já estava num instar larval
avançado, não era mais criança.
No Ensino Médio, tive que ler todos aqueles livros que cairiam no vestibular e
responder aos suplementos que os acompanhavam: O Cortiço (AZEVEDO, 1987); Iracema
(ALENCAR, 1991a); Senhora (ALENCAR, 1991b); A Moreninha (MACEDO, 1991a); Vidas Secas
(RAMOS, 1991); Dom Casmurro (ASSIS, 1992); Memórias de um Sargento de Milícias
(ALMEIDA, 1992)... Lembro-me vagamente de uma ou outra história. Elas não faziam sentido
para a “Geração X”, para a minha geração que era fascinada por bermudões e camisas
flaneladas. Para essa geração, os livros não eram instrumentos sagrados de aprendizagem.
Sanches Neto (2004) tem razão,

Toda forma de leitura obrigatória é inócua, mesmo quando o livro é muito bom.
Como não acredito na prioridade cronológica, que faz com que este ou aquele
tempo seja melhor do que outros, não acho que o leitor deva primeiro ler os
clássicos para depois se dedicar aos contemporâneos – ou vice-versa. O critério de
escolha de leitura não pode ser este [...] (SANCHES NETO, 2004, p. 122).
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1211
Aqueles mundos das histórias contadas nos livros de literatura não tinham relação
com o meu mundo. Então, o grande papel do leitor seria não ler, recusar autores e ideias da
moda, ainda que corresse o risco de ser apontado como desatualizado (SANCHES NETO,
2004)? Procuro mais uma vez entender o que aconteceu em Freire (1989) e ele explica que

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta
não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se
prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. (FREIRE, 1989,
p. 9).

Ainda, acerca desta relação entre o texto e o contexto, Arfuch (2010, p. 132, grifo da
autora), apoiada em Jacques Derrida, também nos faz compreender que “[...] não há texto
possível fora de um contexto, inclusive, é esse último que permite e autoriza a legibilidade
[...]” Assim como Sanches Neto (2004), penso que um bom livro devia ser capaz de me atrair
em meio aos milhares de outros livros.
Nesta época, dois livros me atraíram: As Vítimas Algozes (MACEDO, 1991b) e Raul
Seixas – Uma Antologia (PASSOS; BUDA, 1992). O primeiro livro era organizado em três
histórias que mostravam como os escravos podiam se tornar algozes de seus senhores.
Lembro-me que, ao ler aquelas narrativas, senti uma sensação de medo diante da troca de
maldades entre senhores e escravos. O segundo trazia depoimentos de amigos e do próprio
Raul, além da sua discografia completa, com as letras das músicas. Uma leitura para quem é
fã e deseja conhecer detalhes sobre a trajetória de vida e profissional de seu ídolo.
Do mesmo modo que a lagarta, havia me alimentado, por um longo período, através
de diferentes práticas. A leitura havia me desenvolvido, mas ainda era preciso a
transformação.

Crisálida: o repouso necessário à metamorfose

Era chegada a hora de decidir para que curso prestaria o vestibular. Não posso negar
que havia ficado tentada a ser médica, fisioterapeuta ou nutricionista. Mas, acho que as
influências de minhas práticas leitoras me levaram a uma escolha balizada por uma visão
romantizadora da natureza. Queria estudar a vida, viajar, estar “perto da natureza”. Assim,
dediquei-me ao vestibular para Biologia e passei a frequentar o curso na Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Fiquei sete anos na graduação, não porque fosse má aluna, mas
porque precisava trabalhar e era muito difícil conciliar os horários da UFBA com meu
emprego.
A Biologia, a ciência que estuda a vida é, também, uma “ciência dura”, positivista,
onde a imaginação dá lugar à mensuração. Um paradoxo! Como a lagarta, havia tecido
lindos fios de seda, graças ao alimento que me nutria - a leitura. Mas os fios de seda
produziram um casulo em que me encerrei, meus movimentos foram reduzidos
drasticamente, restava-me apenas aguardar o que viria depois.
As pupas não se alimentam nem se movem muito. As reservas de energia
armazenadas durante a longa vida larval são utilizadas pela pupa para passar por uma
transformação global. Durante minha fase de pupa, a crisálida, fechada em meu casulo,

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1212


minhas leituras eram técnicas. Li muitos artigos científicos procurando aprender métodos
criteriosos para a produção de conhecimento válido. Também li diferentes capítulos de livros
sobre as diversas subáreas da Biologia, tanto nos livros originais como em fotocópias.
Comprei alguns livros que achava necessário ter, mas poucos foram de fato lidos ou, ainda,
folheados.
Contudo, ainda na fase de transição entre lagarta e crisálida, quando os belos fios de
seda estavam sendo produzidos, permiti-me, algumas vezes, a subversão causada pela
leitura. Li A Casa dos Budas Ditosos (RIBEIRO, 1999). Pura luxúria! Lembro-me bem da cena
em que aquela libertina narra sua tentativa de sexo anal atrás do Farol da Barra:

Pois é, algo me disse que não desse, nem nesse dia nem nos subsequentes, embora
adorasse me agarrar com esse rapaz, ele devia ter uns feromônios extraordinários.
Ficava ralado de tanto botar nas minhas coxas e eu fazia tudo com ele, exceto
deixar que ele metesse, fosse na frente, fosse atrás. Atrás, bem que eu tentei, a
primeira vez em pé, encostada no muro do farol da Barra, que, aliás, é meio
inclinadinho, e a gente fica mais ou menos reclinada de bruços, grande farol da
Barra. Ele passou cuspe, eu me preparei toda ansiosa e, quando ele enfiou, não
consigo imaginar dor pior do que aquela, uma dor como se tivessem me dado
dezenas de punhaladas, uma dor funda e lacerante, que não passava nunca, me
arrepio até hoje. (RIBEIRO, 1999, p.33).

Sim, o livro é, sem dúvida, “[...] esta entidade que armazena a essência do humano”
(SANCHES NETO, 2004, p. 31). Nesta época, também li um livro de crônicas de Luis Fernando
Verissimo, mas não me lembro do nome. Dos jornais, lembro bem. Sempre começava a lê-
los a partir do caderno de cultura e entretenimento, procurando o que havia para fazer na
cidade, depois lia os outros.
Ao final da graduação, decidi fazer mestrado na área de Ecologia e
Biomonitoramento, ainda na UFBA. Continuei na especialidade de “pesquisa dura” e, por
isso, a leitura de artigos científicos foi bastante intensificada. Tinha que ler um ou dois
artigos (a maioria em língua inglesa) de uma aula para outra, que ocorriam nas segundas,
quartas e sextas-feiras. Não era preciso interpretar o que estava escrito, tudo já estava dito,
era necessário apenas ler e compreender os métodos, as técnicas utilizadas, os resultados
alcançados.
Assim como a pupa fechada em seu casulo, tanto na graduação quanto na pós-
graduação tive como objeto de estudo um molusco bivalve conhecido vulgarmente como
“tarioba” ou “taioba”. A Iphigenia brasiliana, nome científico para o animal, apresenta, como
os demais bivalves, uma concha calcária que encerra as partes moles do corpo. Esses
animais vivem enterrados no substrato, fechados num “casulo” construído por eles próprios,
assim como fazem as lagartas. Eu era uma pupa trancada num casulo que pesquisava, com o
rigor da ciência moderna, outro animal igualmente enclausurado.
Assim como os bivalves precisam da concha para a proteção dos seus corpos moles, o
casulo, para mim, também era necessário, pois estava me transformando. “Dentro da pupa,
a larva sofre metamorfose, durante a qual seus órgãos são destruídos [...] e as estruturas dos
adultos se desenvolvem novamente, como se fosse uma fênix [...]” (RUPPERT; FOX; BARNES,
2005, p. 862-863).

A imago emerge da pupa


Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1213
Borboleta pequenina que vem para nos saudar
Venha ver cantar o hino que hoje é noite de natal
Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira ando no meio das flores procurando
quem me queira
Borboleta pequenina saia fora do rosal
Venha ver quanta alegria que hoje é noite de natal
Borboleta pequenina venha para o meu cordão
Venha ver cantar o hino que hoje é noite de natal
(Folclore Nordestino, 1991).

Queria estudar a vida, mas a vida quis que ensinasse e, dessa forma, pouco atuei
como bióloga profissionalmente. Ainda na graduação, comecei a lecionar através de estágios
não obrigatórios, como forma de obter uma remuneração, e não parei mais. No início, a
docência era enfadonha para mim, havia um sentido dissociado do seu significado, mas isso
foi se transformando, assim como estava virando uma borboleta.
Passei a lecionar numa escola particular de Salvador, onde fui incentivada a refletir
sobre os processos de ensino e aprendizagem numa perspectiva construtivista, através de
diferentes teóricos da Educação, como César Coll, Perrenoud, Zabala, dentre outros, e
também do Ensino de Ciências, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Myriam
Krasilchik, Ana Maria Pessoa de Carvalho, Daniel Gil Pérez, Nélio Bizzo, Hilda Weissmann e
outros. Lembro-me que a leitura do PCN descortinou para mim outro mundo. Pensei que
gostaria de ter tido aquele ensino quando fui aluna da educação básica.
Nessa escola, o que era um sonho – a investigação/pesquisa -, estava se tornando
realidade. Fiz da sala de aula um locus de experimentação dos conhecimentos que,
intuitivamente, tinha e que foram sendo ressignificados a partir do cruzamento entre o que
fazia com o que diziam os teóricos lidos. Hoje, a base do conhecimento que possuo sobre os
processos de ensino e aprendizagem, e o prazer que tenho em lecionar, se devem à
formação que tive nessa escola.
Posteriormente, passei a formar professores numa instituição privada de ensino
superior de Salvador, ora lecionando disciplinas específicas da área de Biologia, ora
discutindo o ensino de Ciências. As leituras da Biologia que fazia nesta época eram mais
prazerosas do que na época em que era estudante da graduação, talvez porque, não
estando mais num casulo, podia interpretá-las à minha maneira, dá um sentido outro que
não somente responder a questões de uma prova.
Li muitos teóricos da educação e do ensino de Ciências, conhecimentos que
compartilhava com meus alunos e colegas da docência. Discutir uma teoria percebendo que
está tendo insights era (e ainda é!) maravilhoso. Isso me fez ver que, definitivamente, havia
sido tomada pela docência e, portanto, deveria fazer o doutorado nesta área.
Prestei seleção para aluno especial no Programa de Pós-graduação em Educação e
Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e optei pela disciplina
Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e Leitores. Se antes, fechada num
casulo de pressupostos de uma ciência moderna, positivista, hegemônica, em que a
experiência é um elemento do método que se configura como experimento repetível, ao
cursar esta disciplina estava livre como uma borboleta após um processo de transformação,
de mudança de paradigma, de aquisição, na perspectiva kuhniana, de uma nova
racionalidade.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1214
Logo no primeiro dia de aula, pude mais uma vez ler João Ubaldo Ribeiro. Não mais
sobre luxúria, mas não menos subversivo. Era a crônica Memória de livros, do livro Um
Brasileiro em Berlim (RIBEIRO, 1995). Sim, assim como ele, também tive uma infância
normal. Muito rodeada de livros, mas mais ainda de músicas e pés de manga, caju e goiaba,
os quais subia, como uma lagarta, quando ia para o sítio de meus avós.

E a borboleta continua seu voo

Outras leituras que venho realizando são, também, excitantemente subversivas e me


deram ancoragem para a escrita desse texto. Durante o processo de biografização (DELORY-
MOMBERGER, 2011) que fiz ao longo dessa narrativa do curso de minha existência, em que
contei e recompus meu caminho de formação leitora, pude reconstruir os episódios que
formaram minha individualidade, que me transformaram de lagarta a borboleta. Por isso,
preciso discordar de Sanches Neto (2004) e dizer que a leitura liberta sim, abre horizontes e
nos transforma.
Ao contar minha história, dei forma ao que antes não tinha, mas as formas podem
ser múltiplas, pois a interpretação do vivido é passível de ser revisada, de ser redescoberta,
transformando saberes implícitos em conhecimento e possibilitando ao sujeito que narra
reinventar-se (PASSEGGI, 2010).
Concordo com Lejeune (2008, p. 74), “transformar sua vida em narrativa é
simplesmente viver”. Vivi novamente cada momento aqui narrado. Não é uma ficção, não
inventei algo diferente da vida que vivi. Entretanto, não sou um referente imutável, perfeito,
acabado e, possivelmente, não tenha mantido uma visão isenta das modificações que minha
subjetividade sofreu ao longo dos anos (CHIARA, 2001). Talvez seja uma “ilusão biográfica”
(BORDIEU, 2000), ou apenas notas da experiência guardadas na memória.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1217


Educação na contemporaneidade: experiência docente com o ensino fundamental I, numa
escola soteropolitana

Roseli Chagas de Santana


Faculdade Dom Pedro II
educadoraroseli@gmail.com
Monique Millet de Lima
Faculdade Dom Pedro II
educadoramonique@gmail.com

Gerir uma sala de aula é tarefa voltada para os profissionais que realmente querem atribuir à educação o seu
porto seguro de aprendizagem, prazer, satisfação e vontade de construir e buscar conhecimento novas
informações. O presente texto objetiva compartilhar com o leitor reflexões sobre os trabalhos desenvolvidos
no Ensino Fundamental I de uma Escola na cidade de Salvador- Bahia, intermediado por depoimentos de
profissionais que atuam na área educacional por um período de no mínimo dez anos. Mas, especificamente,
sobre a importância de se educar na (para) contemporaneidade. A falta de experiência no início da docência,
ou mesmo a migração da rede particular para a rede pública de ensino, são questões que serão relatadas. Por
que os alunos “aprendem” na rede particular e no ensino público, alguns alunos não conseguem aprender a ler
e escrever? Existe mais cobrança na rede particular do que na rede pública? Esses relatos são de alguns
professores que atuam nas duas redes. Essa pesquisa coopera para que os futuros concursados, que não
desejam entrar no sistema educacional, apenas, para ganhar estabilidade, mas sim, para fazer da educação
uma via de mão dupla, garantindo um aprendizado mútuo, capaz de transformar sonhos em realidade. Não
podemos considerar que a educação da contemporaneidade, seja a mesma educação dos nossos país, nós não
somos os próprios, vivemos em constantes transformações e temos de acompanhar as modificações.
Palavras-chave: Contemporaneidade; Profissionalismo; Aprendizagem.

Palavras de começo…

Gerir uma sala de aula é tarefa voltada para os profissionais que realmente querem
atribuir à educação o seu porto seguro de aprendizagem, prazer, satisfação e vontade de
construir e buscar conhecimento novas informações. O presente texto objetiva compartilhar
com o leitor reflexões sobre os trabalhos desenvolvidos no Ensino Fundamental I de uma
Escola na cidade de Salvador- Bahia, intermediado por depoimentos de profissionais que
atuam na área educacional por um período de no mínimo dez anos. Mais, especificamente,
sobre a importância de se educar na (para) contemporaneidade. A falta de experiência no
início da docência, ou mesmo a migração da rede particular para a rede pública de ensino,
são questões que serão relatadas. Por que os alunos “aprendem” na rede particular e no
ensino público, alguns alunos não conseguem aprender a ler e escrever? Existe mais
cobrança na rede particular do que na rede pública? Esses relatos são de alguns professores
que atuam nas duas redes. Essa pesquisa coopera para que os futuros concursados, que não
desejam entrar no sistema educacional, apenas, para ganhar estabilidade, mas sim, para
fazer da educação uma via de mão dupla, garantindo um aprendizado mútuo, capaz de
transformar sonhos em realidade. Não podemos considerar que a educação da
contemporaneidade, seja a mesma educação dos nossos país, nós não somos os próprios ,
vivemos em constantes transformações e temos de acompanhar as modificações.

Palavras- chave: Contemporaneidade, Profissionalismo, aprendizagem

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1218


Introdução

A contemporaneidade estudada por Giddens (2002) e Santos (2001) é caracterizada


como um período de transição para a era da globalização, ou seja, para a troca de
informação, conhecimento tecnológico e responsabilidade de cada pessoa, para entender a
complexidade dos paradigmas que necessitam ser rescindidos a cada momento.
Este artigo apresenta uma pesquisa (auto) biográfica, com relatos de experiências extraídos
de entrevistas narrativas, que segundo Souza (2008) [...] é uma metodologia de trabalho que
possibilita tanto ao formador, quanto aos sujeitos em processos de formação significar suas
histórias de vida [...]. Consideramos todas as hipóteses que nos cabem, pois escrever sobre o
processo educativo requer uma atenção especial. É preciso voltar ao passado fazendo uma
pesquisa de si e (re) descobrir informações que até então pareciam desconhecidas. As
entrevistas que serão comentadas trará a tona memórias de aprendizagens que foram
geradas ao longo dos anos, na vida dessas profissionais e suas experiências diárias. O diálogo
de si, em consonância com o processo educativo, as noções de aprendizagem e a
ressignificação da profissionalização.
A educação tem passado por transformações constantes ao longo do tempo, as
experiências contidas por cada profissional ao longo dos anos, tem feito com que muitos (re)
pensem sobre seu profissionalismo, como afirma Freire (2001) “a educação é uma forma de
intervenção no mundo”. Na consideração de que a educação atual deva ser idêntica a de
tempos passados, torna-se um erro atuar nesta profissão. Histórias de superação e de
conquistas são relatadas em conversas com professoras que têm se dedicado para fazer o
melhor pela educação, e mesmo sem ter a certeza do reconhecimento, têm servido de
exemplo para crianças e adolescentes em fase educacional.
O professor precisa se aperfeiçoar a cada dia, criando e recriando maneiras de aguçar
seu conhecimento, que é um objeto fundamental para o seu trabalho. Não se trata de um
conhecimento abstrato, ou, apenas de teoria, mas é preciso compreender e reconhecer o
oficio de ser professor. Temos de pensar que antes de ensinar algo, é necessário aprender,
pois na contemporaneidade as informações são rapidamente modificadas e precisamos
fazer o máximo de esforço possível para conquistar cada dia mais os nossos alunos.

A itinerância de (re) construção docente em terras desconhecidas

A construção de uma carreira docente pode independer de uma formação prévia, por
se constituir dos saberes da experiência276 de vida, mas o que realmente importa neste
momento é falar que a escolha docente deva ser algo que produza satisfação e motivação,
uma vez que ser docente não é uma adivinhação, um faz de conta ou uma brincadeira. Ser
docente é assumir um papel de responsabilidade social, suscitar questionamentos e
melhorias para atuação, observar e respeitar o outro e a si mesmo, compartilhar colheitas,
trocar conhecimentos e alegrias intransponíveis e estar disposto a mudanças que favoreçam
sua atuação profissional. “A formação de professores é, provavelmente, a área mais sensível
das mudanças” (Nóvoa, 1995. p. 26), pois transcende o conhecimento da sala de aula e
enuncia as experiências contidas desde a infância, refazendo os caminhos de formas
276
Tardif chama de saberes experienciais o conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessário no âmbito
da pratica da profissão docente e que não provem das instituições de formação nem dos currículos.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1219
diferentes e conquistando objetivos, que muitas vezes não condizem com o esperado pelos
familiares dos docentes.
Uma escolha que pode gerar conflitos e desgastes, até mesmo com as pessoas que
amamos, pois sabendo da doce e amarga vida de serem professor, muitos pais tentam (re)
inventar os caminhos dos filhos, aconselhando-os a seguir um caminho diferente ao da
docência, e isto gera conflitos internos. “Os professores encontram-se numa encruzilhada:
os tempos são para refazer identidades”(NÓVOA, 1995, p.29), o que leva o docente a querer
fazer o máximo possível para se realizar cotidianamente, demonstrando afeto alegria e
prazer no que faz. Deste modo podemos apreciar as narrativas que seguem de uma
professora que desde muito cedo, escolheu a docência, apesar de seus pais tentarem uma
escolha diferente.
“Ser professora foi algo que tinha escolhido desde muito cedo, sempre gostei e
admirei a profissão de professor. Morava em Aracaju, e minhas brincadeiras de
infância estavam sempre associadas com a escola, minhas professoras me
marcaram com muitas coisas boas. Aos 18 anos tinha terminado o magistério e fui
trabalhar em uma pequena escola particular, foi um tempo bom, aprendi muita
coisa de educação, as teorias e a prática que havia adquirido no meu curso de
magistério, me ajudaram bastante. Passei 4 anos nessa escola, mas o meu desejo
de crescer na profissão me incentivava a aprender mais; então fui trabalhar em
outra escola. O clima era diferente, as conversas, o compartilhamento das ideias e
assim por diante, ouvia dos meus colegas que eu não podia mudar o mundo, mas
na minha consciência sei que poderia melhorar o ambiente em que eu estava
inserida, e pelo respeito ao meu trabalho sempre procurei fazer de melhor, aquilo
que me fazia bem, afinal a escolha foi minha.
Em momento algum, desses 18 anos de sala de aula me arrependi das minhas
escolhas. Na verdade eu passei a me interessar cada vez mais com os assuntos
ligados a educação. Aos 26 anos me mudei para salvador, pois havia passado em
um concurso, e estou nesta escola há algum tempo, fico observando os alunos, a
maneira que eles aprendem e sei que aquela técnica que usava no início de minha
profissão, precisou ser deixada na minha experiência e buscar algo novo que chame
a atenção do aluno. Sei também que muitos colegas ainda não se acostumaram a
pensar que o ensino e a aprendizagem devem começar pelo professor, mesmo
porque ele precisa buscar o conhecimento para poder fazer. A profissão de
professor é coisa seria e eu tenho consciência disso, meu desejo, meu sonho de
criança foi realizado e hoje sei que preciso fazer valer o meu conhecimento, que
deve ser e é uma busca constante, na construção de um saber renovador que a
cada momento se constroi e reconstroi com as vivências e histórias constituídas ao
longo da vida. ( C.S.2014)

A experiência dessa docente demostra que ela fez uma escolha de responsabilidade e
preza pelo que faz, corroboramos com (NUNES, 2010. p. 80), que “ser professor é uma
escolha de muita responsabilidade e exigem mudanças” essas mudanças podem ser pessoais
e até mesmo locais, para realizar o que se quer, e o que se gosta é preciso abrir mão de
algumas acomodações, e passar a desbravar o desconhecido retirando dessa experiência o
sentido para continuar conquistando os saberes que até então eram desconhecidos.
[...] A mudança, todos sabemos, é irreversível. Só conseguiremos restaurar -
lhe a harmonia, se conseguirmos construir uma educação que aceite, a
ilumine e a conduza num sentido humano. (NUNES, 2010. p. 79)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1220


O ser humano faz diversas escolhas durante a vida e precisa fazer sua autoanalise
para manter- se vivo. Parafraseando Passaggi (2011), “os professores e pesquisadores que se
reconhecem ou pertencem ao grupo social envolvidos neste trabalho, precisam partilhar
com o outro suas experiências”. Somos formadores de ideias e opiniões, mas as nossas
experiências falam por si só ao nosso respeito, as histórias de vida que se relatam a vontade
de (re) fazer e os caminhos da docência fortalece o educador que gosta do que ele escolheu
para perpetrar.

Reflexos transcendentes da/na arte de educar

O processo educacional configura-se por um caminho de mão dupla, onde o prazer


pela prática e a busca da teoria geram uma transformação significativa para o profissional
que está inserido neste contexto. O trabalho do professor pesquisador consiste em
apresentar e/ou deixar em evidencia histórias construídas ao longo do tempo. O
profissionalismo nos garante um bem estar, que compartilhado pode transformar a vida de
diversas pessoas que estão no campo didático pedagógico, ou mesmo aqueles que
pretendem iniciar a sua carreira docente.
O desejo de anunciar as experiências adquiridas ao longo de uma carreira traduz a
satisfação, em tornar-se um exemplo de força e superação, pois “nenhum saber é formador
por si só.” (TARDIF, 2012. p.43) O saber separado do ser humano não causa efeito algum,
mas compartilhado nas histórias de vida dos docentes podem ter um efeito de causa
transformador. Este saber é visto como um saber pessoal. Deste modo Tardif (2012) se
refere ao saber dos professores como:

[...] o saber deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional,
com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores
escolares na escola, etc. Por isso, é necessário estuda-lo relacioná-lo com esses
elementos constitutivos do trabalho docente. (TARDIF, 2012, p. 11).

A educação pode ser considerada um porto seguro para muitos profissionais, pois a
demonstração de um sentimento de prazer com o que faz, transparece em forma de
entusiasmo, é algo inexplicável, trabalhar com educação. É uma troca de informação
constante e o (re) nascimento pessoal acontece a todo o momento.

Educar é o que eu sei fazer; eu gosto de trabalhar educação. Eu tenho até outro
trabalho: técnico administrativo, mas o que eu gosto de fazer mesmo é a educação.
É uma pena que a gente vê que a educação não é tão valorizada, nem pelos pais,
nem pelos nossos governantes e aqui mesmo na escola temos que fazer um
trabalho árduo de conscientização com os pais e com os alunos, para que eles
percebam que com uma boa educação eles terão uma melhor qualidade de vida,
principalmente para a gente que é da periferia. É isso que acho: a educação deveria
ser para todos. (R.S 2014).

Concordamos com a profissional acima, no sentido de que a educação deveria


cumprir o que diz na Constituição federal (CF) de 1988, “a educação é direito de todos”, mas

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1221


uma educação de qualidade277, pois, as escolas estão funcionando, entretanto o ensino nem
sempre é de qualidade, uma educação de qualidade tem sido oferecida para poucos, porém
é cobrada para a sociedade em geral, e muitas vezes esquecemos que todos os envolvidos
no processo educacional e social fazem parte desta educação. Mesmo sabendo das mazelas
deixadas no sistema educacional, a docente deseja deixar a sua profissão, existe um desejo
de (re) inventar a educação de forma conscientizada para tentar superar os paradigmas
deixados pelo tempo, permitindo que o sujeito construa sua realidade de aprendizagens e
(re) conhecimentos.

Quando penso em educação e faço algo voltado para a educação sinto-me bem,
realizando uma coisa que busquei fazer a vida toda, desde bem jovem ainda. Eu
andei fazendo outras coisas; trabalhei em instituições financeiras, mas eu sempre
busquei trabalhar um pouquinho, estudar um pouquinho e essa parte de como
estar ensinando, como estar desenvolvendo essa maneira de ensinar, de alguma
forma de dizer, ou aquele pouquinho que eu sabia, eu gostava de transmitir para os
outros quem chegava novo, alguma coisa que eu tinha aprendido, e as vezes eu
tinha prazer de ver algo que eu já fazia e aquela pessoa que estava chegando e foi
treinado por mim fazendo bem melhor do que eu, eu ficava feliz e sempre achei
que poderia fazer isso dentro de uma sala de aula.
Desenvolvendo e compartilhando o conhecimento com alguém, que eu poderia ver
mais tarde fazendo-o bem, desenvolvendo bem. Então, trabalhando em banco,
depois em escolas particulares e até que passei em um concurso da prefeitura. Eu
me sinto realizada, eu acho que quando venho para a escola eu venho ver Deus. Eu
me esforço todos os dias, eu peço muito a Ele que me oriente a fazer melhor meu
trabalho, é uma coisa que me emociona. Fora da escola mesmo, todo mundo que
me conhece sabe que é uma coisa que gosto de fazer. Quando eu venho, eu venho
assim... radiante, no começo o pessoal achava sei lá... quem já está há algum
tempo, acha bobagem, essa euforia, se é que posso dizer assim, mas em mim, até
hoje ainda não acabou, claro que a gente acalma né, mas qualquer coisa que eu
coloco pra vida do meu aluno, para que ele aprenda ,encontrar um jeito novo. O
pouco que eu faço, eu tenho aluno que tem dificuldade, eu fico um pouco mais com
ele, pois ele tem dificuldade que a mãe ainda não descobriu com o
acompanhamento, e assim vão às vezes as atividades não são feitas em casa, ainda
assim espero não perder essa vontade de estar buscando, eu faço curso, muitas
vezes tenho que sair daqui do bairro para fazer o curso; depois voltar para casa, às
vezes pode parecer incômodo pegar transporte, ir lá depois, voltar para casa, mas
pra mim não é. Eu gosto de estar buscando, para ver se o aluno avança nas
dificuldades que eles têm, e até as dificuldades, eu mesma tenho com algum
conteúdo. Esses cursos ajudam a passar uma nova maneira de ele pegar mais
rápido. Como ele pode aprender?(por exemplo, eu dei aula, utilizando um pote de
sorvete falando sobre alimentação saudável, falando sobre o prazo de validade,
que é algo tão importante para alimentação, para eles, motivou a aula; foram
tantas coisas que eles falaram que a aula tornou-se tão agradável, então isso é
uma coisa que me dá prazer). Às vezes amanheço com uma crise alérgica e minha
família fala não vá não, vá para o médico, então eu falo: gente eu vou tomar meu
remédio e vou, pois me dá alegria vir para a escola. Eu espero até o dia de me

277
Para Moacir Gadotti qualidade significa melhorar a vida das pessoas, de todas as pessoas. Na educação a
qualidade está ligada diretamente ao bem viver de todas as nossas comunidades, a partir da comunidade
escolar. A qualidade na educação não pode ser boa se a qualidade do professor, do aluno, da comunidade é
ruim.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1222


aposentar não perder esse desejo de vir. Se eu não puder fazer muita coisa, mas o
mínimo que eu puder fazer por meus alunos, farei o melhor, o aprendizado deles é
minha inspiração para continuar fazendo o que sempre amei fazer, aprender a
construir com a educação uma história de vida pautada no adquirir e transmitir
com alegria e esperança.(M.S, 2014).

Ler e escrever para acreditar que a melhor profissão é aquela que motiva o ser humano a
(re) inventar-se constantemente

Acreditar na profissão e resgatar o desejo de continuar exercendo- a, motiva o


educador a narrar suas trajetórias de forma cativante, no qual, a escrita de si mesmo, torna-
se possível para prováveis modificações de algumas práticas. “Educar e ensinar é, sobretudo,
permitir um contacto com a cultura, na acepção mais geral do termo. Trata-se de um
processo em que a própria experiência do professor é importante”. (SACRISTÁN, 1995.p. 67).
O autor, afirma que é necessário estabelecer uma experiência, mas, relatando-as, o
professor coloca um referencial histórico a disposição da sociedade interessada em
conquistar um papel importante na educação contemporânea, o leitor escritor necessita de
um suporte experiencial para construir os pilares de uma profissão.
O trabalho com a educação armazena uma historicidade que só pode ser
compreendida através do diálogo com os profissionais que têm uma percepção constante do
que é educar, e compreendem que a educação faz parte do processo social, e a cada dia
desenvolve um papel igualitário, que requer interesse, atenção e um difícil e prazeroso (re)
invento de si mesmo. Nesta afirmativa, nos atentamos para o relato de uma professora que
almeja o apoio da família para estratégia no ensino e aprendizagem, principalmente no
processo de leitura e escrita.

Dificuldades todas nós temos. Quando chega o aluno, você já descobre quando faz
a avaliação diagnóstica, quem tem mais facilidade e quem não tem; quem vai ler
no meio do ano ou no final do ano e quem não vai também, pois você começa a
perceber o nível de dificuldade, então você já fica pensando: Que estratégia eu vou
usar com ele pra avançar? Mas quando percebo que ele também não tem
acompanhamento em casa, à gente começa a buscar junto a família para vencer
essa dificuldade. Quando não temos o apoio, da família que acho importantíssimo,
penso assim: que a gente tem que tentar dentro da sala de aula vencer essa
dificuldade, claro que, uma coisa deve estar ligada a outra, em qualquer lugar do
mundo a família é importantíssima em apoio ao aluno, mas a gente tenta as
dificuldades maiores que eu vejo dentro da sala de aula é o próprio aluno, a
atenção dele, o envolvimento dele e o meu, pois cada um tem que fazer sua parte,
mas se me envolvo; empenho-me para que o aluno aprenda e ele não corresponde
dentro da sala, é como eu digo: eu tenho que me virar, criar minhas estratégias
para tentar prender este aluno envolvendo-o na aprendizagem, sei que na escola
ele faz, mas quando vai um trabalho pra casa ele não faz, falta apoio lá, eu tenho
que dar um suporte na concepção que a escola é responsável em oferecer ao aluno
uma aprendizagem significativa. Sei que estou fazendo minha parte, a minha
dificuldade, que vejo hoje, é essa com o apoio da família. Em toda escola que a
gente passa, seja pública, seja privada, percebe-se que cada dia a distância entre o
ideal e o real apoio da família, principalmente, nas classes de alfabetização. Na
percepção de professora alfabetizadora procuro integrar uma qualidade na arte de
educar para que haja um interesse mútuo em participar das aulas e adquirir
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1223
conhecimento, muitas crianças, por exemplo, na minha turma da tarde não vem à
escola porque está no período de alfabetização, então pode faltar hoje, amanhã
também não vem, ele está aprendendo agora então não há aquele envolvimento,
se não fez a tarefa, a mãe diz que depois faz, esse apoio e o envolvimento da
família ficam bem claro pra gente que é o entrave no desenvolvimento educacional
das crianças.

É cabível destacar a importância da família, a fala da docente configura-se num


desejo para que haja mudança no sistema educacional.

No contexto complexo e diverso da contemporaneidade, falar da memoria parece


ter se tornado uma forma especial de resistência ao descarte e ao elogio do
presente como única forma de existir. Lembrar equivale neste contexto, a escutar a
voz de um tempo, de um lugar, de um sujeito, de uma vida. (OLIVEIRA; REIS,
2013.p.72).

Se existe uma causa que afasta a família da escola, poderíamos destacar a


participação da mulher em outras áreas, que antes era destinada aos homens, muitas têm
deixado seus filhos aos cuidados de pessoas que não têm compromisso com a educação, ou,
a credibilidade em que a educação tem adquirido para a sociedade não tem mais a
importância que os educadores desejam. Muitas são as comparações entre os estudantes da
rede privada e da rede pública, o processo de leitura e escrita é questionado a todo
momento, mas quando o educador reconhece sua importância na construção da identidade
docente, ele (re) pensa suas atitudes, e busca a inserção da família no contexto escolar para
que o trabalho seja elevado em qualidade.

A maior dificuldade que eu tenho enfrentado é a família, pois você não vê a


participação da família de maneira total, buscando uma educação igualitária. Por
exemplo, você manda a atividade de casa e os familiares não se importam com as
crianças, as mesmas não vêm para a escola, então a barreira está nesta questão da
família está acompanhando essa criança no seu dia a dia, não somente a escola
tem que estar cumprindo o seu papel, mas sim, a família tem que estar junto
fazendo o seu trabalho. A instituição começa o trabalho e a sequência deve
continuar em casa. Quando você vê uma criança que tem um acompanhamento
familiar, você percebe o desempenho dela, e quando você pega outra criança sem
acompanhamento nenhum da família é nitidamente visto que a criança fica
estagnada. Quando a família é chamada e atende aos pedidos dos professores
começa a perceber a diferença, o desenvolvimento passa a acontecer na sala de
aula. Acho que a principal dificuldade se encontra nesta relação com a família e a
escola. (M.D, 2014).

O desejo de obter uma relação de interesse mútuo entre a escola e a família se


manifesta na narrativa da profissional. A interação entre esses atores precisam acontecer
para que se obtenha um resultado positivo no ambiente que consiste o ato de educar.
Zabala (1998) afirma que: “educar quer dizer formar cidadãos, que não estão parcelados em
compartimentos estanques, em capacidades isoladas”. Portanto, a educação deve ser
compartilhada entre escola e família, para que o discente se sinta parte integrante da
sociedade e atue como um cidadão da/na sociedade.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1224


Construção do profissionalismo

A formação profissional é constituída ao longo da vida. A teoria é aprendida nas salas


de aula e nos livros, para que isso aconteça basta o docente fazer essa busca, que carece ser
constante, mas a prática é fruto da experiência vivida ao longo da vida. A construção
profissional não pode ser definida como coincidências do destino, e sim como uma
conquista que tem um viés voltado para a aprendizagem social e humana.

O professor novato sente-se desarmado ao constatar que a prática real do ensino


não corresponde aos esquemas ideais em que obteve na formação; sobretudo,
tendo em conta que os professores mais experientes, valendo-se da sua
antiguidade, os irão obsequiar com os piores grupos, os piores horários, os piores
alunos e as piores condições de trabalho. (ESTEVE, 1995.p. 109).

A insegurança que existe nos primeiros anos da carreira é um aspecto significativo, o


medo278 que é constituído pelo novo caminho a seguir, faz com que o sujeito enfrente os
obstáculos e passe a buscar mais informações , neste sentido, o conhecimento adquirido
inicialmente se configura em uma busca constante entre o aperfeiçoamento profissional. A
oportunidade constituída através do vínculo empregatício é um ponto de partida para a
construção docente, o momento ideal para a práxis.

Tive medo de assumir a sala de aula, até porque eu passei logo no concurso público
e as informações que a gente tinha na faculdade era que a educação pública estava
atribulada por causa da violência da, agressividade, mas a gente sabendo lidar com
a clientela, o medo passa rapidinho quando agente gosta do que faz. (M.D, 2014).

A capacidade profissional está aquém das teorias, às experiências que se adquire com
o saber do conhecimento, gera além da satisfação pessoal um desejo de superação e
encontro com um, “eu” que antes era desconhecido. O profissional que se capacita em
conhecimento, proporciona aos seus condescendentes um respeito pelo que faz e acredita
que o medo inicial é transponível para a vontade de acertar, conquistar os objetivos
almejados ao longo do seu processo de formação, pois a escolha pela profissão de professor
não deve ser configurada em apenas ensinar, o processo docente é também um ato
discente.

Sala de aula e aprendizado

Um ambiente que é voltado para o aprendizado consiste em escolha e renúncias. O


educador precisa estar em constante formação, ele muitas vezes atua em mais de um setor
na área educacional, o desejo em fazer o trabalho, versa em dar significado melhor a sua
escolha profissional. As aprendizagens alicerçadas são repassadas de forma mais segura e
garante a este profissional o desejo de estar em uma busca constante.

Não é fácil a gestão da sala de aula, principalmente quando você procura educar o
sujeito. Educar de uma forma mais ampla e não apenas transmissão de conteúdos.

278
Segundo o dicionário Luft, sentimento de viva inquietação ante noção de perigo real ou imaginário.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1225
Uma coisa é você educar e outra coisa é ensinar conteúdos, você se preocupa que
esse sujeito opine, questione, tenha ideias, e, ao mesmo tempo, a gente precisa
cumprir um cronograma exigido burocraticamente pela instituição de ensino que é
os conteúdos. Enquanto que na sala de aula vão acontecendo inúmeros fatos que
exige um autocontrole do educador. (R M.2014)
A mudança no processo pedagógico pode gerar conflitos internos para o educador,
mas diante da globalização a exigência aumenta, e cada profissional precisa construir uma
carreira sólida, esses conflitos “são meios para transformação da natureza humana” no
conceito profissional.

Não é fácil, pois há vários fatores dentro de uma sala de aula. Temos crianças, e
várias situações que você tem que saber como lidar, não é fácil, mas quando você
faz o que gosta você corre atrás, você vai encontrar um meio de conseguir gerir a
sala de aula. Se eu falar que é fácil estar em uma sala de aula eu estaria sendo
omissa, pois existem várias barreiras, às vezes o professor até tem vontade, mas
falta recurso, falta à disposição da família para trabalhar com o professor e faltam
muitas outras coisas que facilitaria o nosso trabalho, pois as crianças têm o seu
mundo; cada uma tem suas dificuldades e nós temos que trabalhar em cima
daquilo. (M.D 2014).

A prática educativa coerente gera um movimento de superação e construção da


informação constante. Facilidade é uma palavra que praticamente inexiste no processo de
conhecimento de si e dos demais componentes. É Importante educar para a
contemporaneidade onde, as informações são rapidamente transformadas. O homem
moderno depende das tecnologias para interligar-se com o mundo. Na escola, não pode der
diferente e os professores têm um papel importante, pois eles podem desnudar
possibilidades no seu campo de atuação.

Resgatar oportunidade, porque a mídia, hoje em dia passa as informações de


maneira tão rápida. Na velocidade das tecnologias, a escola não tem só que passar
conteúdos, ela precisa adequar e oportunizar o desenvolvimento. (V.D, 2014).

Refletir sobre a caminhada diária que estabelecemos entre a formação inicial e a


continua construção do saber, nos possibilita consultar nossas memorias e trilhar o caminho
da docência de maneira positiva ou negativa, pois a nossa práxis é observada continuamente
pelos nossos educandos, cabe ao educador fazer a escolha do papel que ele deseja
desempenhar diante da sociedade. “A pratica educativa em que inexista a relação coerente
entre o que a educadora diz e o que ela faz é enquanto prática educativa, um desastre”
(FREIRE, 2012.p.148). Reafirmando as palavras do autor, é preciso investir no conhecimento
para descortinar a sabedoria adquirida com a profissão envolvendo novos atores para (re)
afirmar a importância de ser um educador.

Estudar mais, observar mais, avaliar e reavaliar as práticas docentes, e o mais


importante: trazer o aluno para a escola como parte integrante do meio, e,
aproveitar o desenvolvimento das tecnologias para fazer com que este aluno se
aproxime mais da escola. O bom professor tem que estar sempre estudando e
pesquisando para que a sua sala seja um laboratório de ideias. (V .D,2014).

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1226


Experiências marcam a vida profissional e intelectual das pessoas. Voltar ao tempo
dialogando com experiências, permite que o protagonista da ação docente se (re) conheça
como construtor de um saber e um propulsor das conquistas adquiridas para a melhoria do
ser educador.
Duas situações diferentes que marcaram minha vida, pois são duas formas de agir e
pensar que às vezes me deixa confusa: que é ser coordenadora e ao mesmo tempo
formadora de coordenadora. Eu formo coordenadores em outra instituição de
ensino é outro trabalho, e ao mesmo tempo eu estou coordenadora, e eu digo para
eles que têm que caber a me também, eu não posso ter um discurso lá, e na minha
prática como coordenadora ser completamente diferente do que eu digo, acho que
são duas coisas que marcam também, pois as pessoas que estão lá querem ter uma
formação continuada, sabem que precisam desse processo de todo mês parar e
estudar, enquanto você é coordenador você vivencia e tem que convencer o outro
que é preciso. São dois tipos de públicos que atendo; um que está lá por livre e
espontânea vontade, porque acredita que precisa disso, e outro que faz o curso
para se manter no cargo. Quando eu me coloco no mesmo lugar que eles, que é de
coordenadora e tenho que convencer esse outro, termino tendo os mesmos
conflitos que eles têm, com as queixas que eles me trazem, que é difícil, não é tão
fácil fazer a formação com os professores, planejar, eu também vivencio, dois
lugares, e as vezes é um conflito ser profissional lá, e ao mesmo tempo ser eu
mesma aqui nesta instituição(.R.M 2014).

O que nos permite observar no depoimento de R.M é o desejo de continuar a trilhar


o caminho da docência. As narrativas nos permite compreender a responsabilidade de cada
cidadão que escolhe a docência como o seu porto seguro, fazendo deste porto um espaço
para o ancoramento de sonhos não vividos, de desejos (re) construídos e de caminhos
trilhados ao longo da vida. Ancorar não significa esquecer, mas repousar um momento
energizar-se com ações que constituem o aprimoramento pessoal, e seguir em frente nas
conquistas futuras.

Considerações finais

Conhecer a história da vida profissional de alguns docentes permite que o trabalho


com narrativas se perpetue, pois este tem proporcionado experiências incríveis, educar
na/para contemporaneidade, nos leva a contextualizar a historicidade presente nas diversas
áreas do conhecimento que é desenvolvida pelos professores do ensino fundamental de
uma instituição soteropolitana. Este contato proporcionou um conhecimento e uma relação
de respeito por todos aqueles que exercem a profissão de professor. A construção do
conhecimento se dá ao longo da vida e cabe a nós, pesquisadores narrar as mais variadas
histórias que os nossos profissionais guardam em suas memórias, esperando que alguém se
encoraje, pesquise e escreva os seus depoimentos e suas experiências guardadas ao longo
do tempo. Essas construções merecem ser exploradas e relatadas trazendo um
enriquecimento na construção dos diversos saberes docentes.

Referências
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minidicionário Aurélio. 7a impressão – Rio de Janeiro, 2002.

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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1228


A narrativa autobiográfica como estratégia de construção e de compreensão da identidade
da professora formadora

Vera Luísa de Sousa


UNESP/FCT/Presidente Prudente
veraluisasousa@gmail.com

O texto se propõe a refletir sobre o papel da narrativa (auto)biográfica nos processos de subjetivação e
formação de professoras formadoras de professores. Apesar dos sujeitos sobre os quais a argumentação é
construída serem professoras não há intenção de se tratar da questão do gênero ou da feminização do
magistério. A opção pelas professoras se deve ao fato de ter encontrado, ao longo dos meus 14 anos de
profissão, mais colegas mulheres do que homens formando professores. Tendo como ponto de partida a
narrativa (auto)biográfica como elemento crucial para a compreensão das experiências formativas da pessoa e
da profissional o texto trata dos conceitos de escrita de si e de memória importantes aliados da (auto)biografia.
A narrativa, sobretudo a escrita é uma ação que implica uma reflexão mais cuidadosa do sujeito sobre si
mesmo, levando-o a analisar de forma mais detida e elaborada comportamentos, sentimentos e ações que ao
serem (re)vividos pela memória permitem à pessoa desconstruir aspectos da sua vida, para em seguida
reconstruí-los sobre bases novas e reelaboradas. Essa peculiaridade da narrativa escrita que se sustenta na
memória possibilita a transformação do sujeito pela ação da reflexão que contribui para a construção de novos
sentidos para sua existência seja pessoal ou profissional. Nessa direção a narrativa (auto)biográfica pode
também ser reveladora de experiências que vão se traduzindo em marcas constitutivas da identidade das
professoras explicitando o que pensam sobre o seu fazer docente, sua carreira e os cursos de formação; sobre
o movimento sindical, a escola e a atualização profissional; sobre o seu entorno sócio político cultural, o que
valorizam na profissão e o que sentem a respeito dela; sobre como analisam seu papel de formadoras, seu
tempo histórico e sua realidade social. Em suma o texto trata das possibilidades (trans)formadoras da narrativa
(auto)biográfica nos processos de formação.
Palavras-chave: Narrativa (auto)biográfica; Identidade; Professora formadora.

Introdução

Tratar das questões ligadas à docência é tarefa sempre complexa. A profissão por
lidar com a formação279 das gentes de todos os lugares, etnias e credos trabalha com
elementos tão diversos como razão, sentimentos e necessidades biopsicossociais que nos
compõem a todos280. Para acessar a infinidade de aspectos que engendram essa
complexidade as investigações vão sendo conduzidas a partir dos interesses, conveniências e
urgências de pesquisadores e instituições. Contudo, há dois elementos comuns a esse
universo de teorias, práticas, filosofias e políticas sem os quais a docência não se realiza: o
aluno e o professor. Desfilam as mais diversas tendências pedagógicas, crises e mágicas
soluções para os conflitos no campo da educação e os dois estão lá protagonizando as cenas
cotidianas do aprender e do ensinar. Neste texto, convidamos o colega leitor para juntos
pensarmos sobre as possibilidades (trans)formadoras que podem estar contidas nas
narrativas (auto)biográficas de um dos polos do processo aprender/ensinar: a professora,
particularmente a formadora de professores cujo campo de trabalho tem sido alvo de
ferozes críticas, sendo até mesmo responsabilizado pelas dificuldades que afligem a

279
Entendida de maneira ampla abrangendo tanto os aspectos específicos da escolarização, quanto a discussão
e o cultivo de valores, sentimentos e atitudes que irão compor o homem e a mulher em sua inteireza.
280
Adotarei o masculino numa perspectiva universal com o objetivo de tornar a leitura mais fluida, sem o
inconveniente das repetições das palavras no masculino e feminino.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1229
educação como se todos os problemas da área educativa tivessem raiz na sua atividade de
formadora.
Trabalhando numa investigação que pretende conhecer os caminhos percorridos
por professoras formadoras nos seus processos de subjetivação e constituição da identidade
profissional tenho consciência da importância das dimensões pessoal e profissional aí
imbricadas. Afinal como ensina António Nóvoa (2007):

A maneira como cada um de nós ensina está directamente dependente daquilo que
somos como pessoa quando exercemos o ensino: ‘Será que a educação do
educador não se deve fazer mais pelo conhecimento de si próprio do que pelo
conhecimento da disciplina que ensina?’ [...] Eis-nos de novo face à pessoa e ao
profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que
cada um de nós tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de
ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a
nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu pessoal. (Ibid.,
p.17, grifado no original)

Aquilo que o autor chama de eu pessoal é facilmente identificado em atitudes e


comportamentos assumidos no campo profissional porque a maneira como arquitetamos
nossas identidades como docentes espelha quem somos e o que pensamos como produtos e
produtores de uma realidade sócio histórica anunciando nossas concepções de homem,
mundo e sociedade. Assim, atribuímos maior valor àquilo que se identifica com nosso modo
de pensar e, consequentemente, desprezamos o que se distancia das nossas referências.
Este comportamento corrobora a percepção de que um dos pontos nevrálgicos da discussão
sobre a formação de professores sejam os critérios que utilizamos para considerar ou
desconsiderar as vivências que comporão nossos processos formativos. Nesse sentido,
construímos a reflexão que ora apresentamos como um primeiro subsídio para a pesquisa
que está em fase inicial.
Para começarmos a conversar preciso explicar por que os professores estão sendo
‘deixados de lado’ como sujeitos dessa reflexão. O fato é que na minha experiência como
professora formadora de professores281 tenho encontrado mais mulheres como colegas de
ofício do que homens. Não intenciono tecer considerações sobre a questão do gênero ou da
feminização do magistério, tema de brilhantes pesquisas que nos revelaram uma trajetória
profissional das professoras profundamente vinculada às relações de poder nos campos da
família, da política, do trabalho e do gênero. (Cf. CHAMON, 2005; ALMEIDA, 1998).
O convite segue na direção de contribuirmos com as reflexões sobre as
potencialidades da narrativa das histórias de vida como estratégia de construção e, ao
mesmo tempo, compreensão da identidade de professoras formadoras de professores e
também como uma possibilidade de enriquecer seus processos formativos. Afinal como já
disse António Nóvoa “A afirmação de Jennifer Nias (1991) não prima pela originalidade, mas
hoje ela merece ser de novo escutada: ‘O professor é a pessoa; e uma parte importante da
pessoa é o professor’” (2007, p. 15, grifado aqui). Indicando o entrelaçamento indissolúvel
entre o ‘eu’ pessoal e o ‘eu’ profissional.

281
Sou professora em cursos de Pedagogia (fui também em licenciaturas) desde o ano 2000. Creio ter passado
pelas formas mais conhecidas de trabalho precarizado dentro da profissão: professora part time e tutora na
iniciativa privada e professora substituta na instituição federal na qual hoje sou concursada .
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1230
Identidade: uma aproximação introdutória

A identidade não é, mas está sendo. Parece uma afirmativa simples e, até mesmo,
óbvia. Mas, será que é mesmo? Temos ce rta resistência em admitir as mudanças que nos
vão transformando a partir das experiências feitas ao longo da vida. Provavelmente esta
resistência tenha raízes na concepção moderna de que existe uma “essência universal” que
nos torna a todos racionais, objetivos e centrados. O que contraria o pressuposto da
concepção de identidade que adotamos aqui: identidade como processo. Porque estamos
sempre buscando caracterizar nossas particularidades para nos identificarmos ou nos
distinguirmos do outro e esse movimento é intenso, complexo e ocorre o tempo todo nas
relações que estabelecemos. Uma síntese muito apropriada do conceito e que exprime sua
ambiguidade foi elaborada por Maria Stela Lemos Borges e diz o seguinte:

Do latim identitas, identitate, identidade se traduz inicialmente pela percepção do


mesmo, do igual, daquilo que imprime caráter do que é idêntico. Por outro lado,
traduz a busca do que é mais peculiar ao indivíduo, do que lhe confere o caráter
de específico, que o distingue de outros indivíduos e lhe assegura que ele é ele
mesmo. Identidade se traduz ainda por conformidade, ajustamento, comunhão,
sugerindo um processo de identificação que permita a um indivíduo confundir-se
com outra pessoa, de quem assume as características. (1997, p.22-23)

Pensando a partir dessa definição percebemos que não há facilidade para


compreender ou para lidar com o conceito, especialmente se considerarmos que ao longo
de qualquer percurso, incluindo o da construção da identidade, encontraremos obstáculos
contra os quais deveremos lutar e questões que poderão nos conduzir a conflitos internos.
Exatamente porque não estamos falando de algo que aconteça de modo isolado, mas que se
dá num movimento complexo que envolve internalidades e externalidades, singularidades e
generalidades. Ninguém é ou se faz no isolamento. Somos sempre nós e o outro, nós com o
outro.
Neste sentido, “a identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não
é um produto [...]” e no caso da identidade profissional do professor “é um espaço de
construção de maneiras de ser e de estar na profissão” (NÓVOA, 2007, p.16). De modo que o
caminho percorrido por uma mulher que se torna professora formadora carrega
informações importantes sobre a profissional. Porque as lutas, os conflitos, os
enfrentamentos e as resistências que experienciou como pessoa certamente afetarão sua
maneira de “estar na profissão”, revelando o que subjaz aos seus posicionamentos éticos e
políticos em relação à docência.
Nessa direção a narrativa (auto)biográfica pode também ser reveladora de vivências
que vão se traduzindo em marcas constitutivas da identidade das professoras explicitando o
que pensam sobre o seu fazer docente, sua carreira e os cursos de formação; sobre o
movimento sindical, a escola e a atualização profissional; sobre o seu entorno sócio político
cultural, o que valorizam na profissão e o que sentem a respeito dela; sobre como analisam
seu papel de formadoras, seu tempo histórico e sua realidade social. A identidade
profissional das professoras inscreve-se no trajeto de suas vidas pessoais, incorporando
delas elementos que as marcam como docentes. Bolívar nos chama a atenção:
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1231
Bruner (1988) há defendido que no hay outro modo de describir el tiempo vivido
salvo em forma de narrativa. Por su parte, para Ricoeur (1996) la vida se puede
comprender como una narrativa o texto, entendida como un proyecto biográfico,
que puede ser narrado o leído. Narrar a sí mismo o a otros lo que ha sido o va a ser
el proyecto personal de vida es uma estrategia para construir una identidad. (2012,
p.34)

Assumir que a narrativa é uma estratégia de constituição da identidade é assumi-la


também como instância de mediação entre a pessoa que se foi no passado, a que se é hoje e
a que se projeta para ser no futuro, mas não apenas. Esta perspectiva indica ainda que a
identidade de uma pessoa não é construção isolada, mas coletiva a ser acessada pela
narrativa de vida que “no sólo expresa importantes dimensiones de la experiencia vivida,
sino que, más radicalmente, media la propia experiencia y configura la construcción social de
la realidade.” (Ib., p. 34). Uma vez mais afirmamos que não existe o eu sem o outro: “somos
sempre nós e o outro, nós com o outro”. O outro com quem desejo me identificar, o outro
de quem quero me distinguir, o outro que ambiciono ser.
Entender essa ambiguidade intrínseca ao conceito de identidade favorece outro
entendimento crucial para a formadora de professores: o de que ela é o agente de sua
formação. Agente construído com outros agentes, mas dela primordialmente depende
compreender a interrelação entre suas singularidades e as singularidades do outro.
Maria da Conceição Moita (2007) aborda a questão da construção da identidade
profissional do professor a partir da leitura de Derouet (1988) e de seu conceito de
“montagem compósita”:

É uma construção que tem uma dimensão espácio-temporal, atravessa a vida


profissional desde a fase da opção pela profissão até à reforma, passando pelo
tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes espaços institucionais onde a
profissão se desenrola. É construída sobre saberes científicos e pedagógicos como
sobre referências de ordem ética e deontológica. É uma construção que tem a
marca das experiências feitas, das opções tomadas, das práticas desenvolvidas, das
continuidades e descontinuidades, quer ao nível das representações quer ao nível
do trabalho concreto. O processo de construção de uma identidade profissional
própria não é estranho à função social da profissão, ao estatuto da profissão e do
profissional, à cultura do grupo de pertença profissional e ao contexto sociopolítico
em que se desenrola. (MOITA, 2007, p.115-116)

.
Tais reflexões sobre a questão da identidade serão essenciais para a organização do
estudo que ora iniciamos, sobretudo porque ajudam a apurar nosso olhar e nossa
sensibilidade para a percepção do entrecruzamento da diversidade de dimensões que
compõem a vida pessoal e a vida profissional, resultando na professora formadora que
desejamos conhecer.
Outro dado a ser considerado em estudos como esse, sobre a formação de
professores pautados em suas histórias de vida, é a peculiaridade de, por envolverem a
questão da identidade, adentrarem no terreno das políticas de formação que atualmente
primam pelo controle sobre o professor levando a uma confusão entre a pessoa e o
profissional e, como parece ser o caso, à desmobilização do profissional professor como
sujeito social e como categoria profissional.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1232
Narrativa, memória e experiência: acordes que compõem vidas

Narrar um fato, um acontecimento ou uma história implica em elaboração do


pensamento, pois não há como dizer algo que antes não tenha sido pensado, formulado. É
correto afirmar que não submetemos todas as narrativas que produzimos a um cuidadoso
processo de elaboração mental. Mas, também há assertividade na afirmação de que narrar
pode ser um corajoso exercício de reflexão e reelaboração de conceitos, ideias e práticas. Se
estendermos a afirmação para o campo da narrativa das histórias de vida como estratégia de
compreensão da identidade de professores podemos considerar o processo de
contar/escrever a história de vida uma poderosa ferramenta a guiar a professora formadora
na sua caminhada para a escrita de si. Contudo, devemos estar atentos para a seriedade e o
rigor que tal exercício irá nos exigir. Afinal a narrativa de uma vida trata de ‘uma’
singularidade que, no entanto, não existe por ela mesma. Está sempre atrelada ao plano da
coletividade, indicando a impossibilidade da narrativa da história de ‘uma’ vida
desconsiderar a história mais ampla e os contextos nos quais vai sendo tecida.
O entrelaçamento entre singular e plural inerente à construção histórica, aliado ao
esforço do pensamento para compreendê-lo, fundamenta a ideia de que a narrativa ao nos
obrigar uma reflexão mais detida que vá além da nossa subjetividade pode ser capaz de nos
(trans)formar na medida em que o exame do vivido permite que lhe atribuamos sentidos
novos, gerando também novos conhecimentos sobre nós e o mundo, sobre nossas relações
e nossas práticas. Não é no sentido piegas de uma análise superficial e sem fundamento que
vá nos tornar mais generosos, humanos ou conscientes que apostamos na narrativa como
estratégia de construção e compreensão da identidade da professora formadora de
professores.
Estamos falando sobre a adoção de uma postura epistêmica que rejeita o
determinismo das estruturas, mas que também não se funda na exclusividade do sujeito,
afinal “quem narra traz sempre os processos sociais de sua produção narrativa. Temos assim
uma ênfase no papel do sujeito em sua formação e no processo coletivo de construção dos
saberes” (BRAGANÇA, 2008, p.76), implicando numa perspectiva formativa orientada tanto
pelas singularidades dos sujeitos em formação, quanto pela multiplicidade de dimensões e
relações concernentes à vida em sociedade. Neste sentido, o ato de narrar dirige o olhar do
narrador para dentro de si, mas também para seu exterior desencadeando um processo de
análise daquilo que está sendo contado e, portanto, revisitado nos planos individual e
coletivo.
Nesta concepção, a narrativa de vida da professora formadora torna-se um artifício
de peso na busca por uma ontologia de si. Revisitar-se, dar-se a conhecer, reelaborar-se
como pessoa e como profissional, delinear sua identidade com consciência da ambiguidade
que cerca esse processo. Tal é a tarefa que se propõe, afinal identidade significa tornar igual,
mas também tornar distinto. É no limite entre esses dois polos que a narrativa da história de
vida deve circular para possibilitar à professora compreender os caminhos de sua ontologia.

Só uma história de vida permite captar o modo como cada pessoa, permanecendo
ela própria, se transforma. Só uma história de vida põe em evidência o modo como
cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias,
para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos. Numa
história de vida podem identificar-se as continuidades e as rupturas, as

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1233


coincidências no tempo e no espaço, as ‘transferências’ de preocupações e de
interesses, os quadros de referência presentes nos vários espaços do quotidiano.
(MOITA, 2007, p. 116-117)

E para que não se deixe perder o valor heurístico próprio das abordagens
(auto)biográficas e mais, especificamente, das histórias de vida um recurso fundamental na
composição de sua narrativa é certamente a memória que, não por acaso, tem sido
importante elemento de produção do conhecimento nas ciências humanas e sociais nas
últimas décadas. Talvez isto se deva ao sentimento de continuidade presente no sujeito da
memória, tornando o passado uma dimensão viva com potencial para compor uma relação
com o presente auxiliando-nos a entender e explicar acontecimentos e situações,
comportamentos e ações problemáticas do nosso cotidiano, sobretudo nos dias atuais em
que a “[...] a duração do fato é a duração da notícia, o novo – produzido incessantemente –
conduz as vidas, criando a sensação de hegemonia do efêmero” (D’ALÉSSIO, 1992, p.97).
Essa ênfase no registro feérico de um presente eterno, que ignora passado e futuro como
possibilidades temporais para além do imediato, funciona como um sinal a nos alertar para a
ameaça de não sabermos mais quem somos e qual papel nos cabe nos diversos setores da
vida. Assim, “segurar traços e vestígios é a forma de contrapor-se ao efeito desintegrador da
rapidez contemporânea” (Ibid., p. 98). Nada mais adequado para dar o suporte necessário à
tarefa de narrar histórias de vida, porque a memória é uma construção do sujeito e como
processo se estende ao longo do tempo, mantendo, retirando e acrescentando elementos e
análises que antes de se recorrer a ela não estavam ali, mas que a partir de sua retomada
são trazidos à consciência, configurando à memória o sentido de processo inerente à própria
experiência de viver.
O exercício narrativo como recurso para uma ontologia de si certamente remete,
neste caso das professoras formadoras, às memórias do seu grupo profissional. Neste
sentido, se deve estar atento para o conceito de ‘pertencimento grupal’, cunhado por
Maurice Halbwachs e explicitado por Márcia Mansor D’Aléssio (1992) no trecho abaixo:

[...] situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra


sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu. Aliás, ao qual pertence,
pois só se fez parte de um grupo no passado se se continua afetivamente a fazer
parte dele no presente. Se, no presente, alguém não se recorda de uma vivência
coletiva do passado é porque não pertencia àquele grupo – ainda que pertencesse
fisicamente -, já que é o afetivo que indica o pertencimento. A partir daí, é possível
supor que é tecida uma espécie de cadeia de pertencimento afetivo que mantém a
vida e/ou o vivido da memória. [...] é preciso que haja uma certa duração na
convivência. Ligações efêmeras, rupturas constantes não constroem passado
conjunto, não constroem memória. (p. 98-99. Grifado aqui).

Contrapor à noção de tempo efêmero, hegemônica na contemporaneidade, a


noção de tempo longo, essencial para a concepção de memória como “aquilo que ainda está
vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (HALBWACHS, 1990, p.81
apud D’ALÉSSIO, 1992, p.99), deve ser um exercício constante para o narrador da história de
vida, sobretudo para aquele que está em busca de sua ontologia. Seguindo esta linha de
pensamento podemos dizer que a memória opera sobre o passado por meio de uma ‘certa

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1234


racionalização’282 que o torna sempre relativo. Assim, o passado não é inerte, mas sujeito a
interferências e manipulações refazendo-se a partir do recurso à memória. Pode ser
retomado e entendido a partir da retirada ou do acréscimo de elementos incorporados pelo
sujeito das memórias. O que se pensava a respeito de uma situação pode ser reavaliado
atribuindo-se lhe atualidade. Ou seja, a memória trabalha com o passado, mas um passado
que se refaz tendo como ponto de partida elementos do presente possibilitando ao sujeito
olhar para sua trajetória como uma composição entre o agora e o já vivido concebendo o
tempo numa perspectiva de continuidade.
Contudo, como já aventado, a velocidade da vida contemporânea tem atuado como
impeditivo à ideia de tempo que se estende e, como corolário, o uso da memória e da
narrativa como elementos constitutivos do sujeito fica também comprometido. Muito
acertadamente, em O Narrador, Walter Benjamin (1994) destaca que a narração como arte
não pode prescindir da “[...] experiência que passa de pessoa a pessoa [posto que] é a fonte
a que recorreram todos os narradores” (p. 198) no esforço para elaborar um saber que por
ter a experiência cotidiana como pressuposto os habilita a dar conselhos, destacando que a
dimensão utilitária da narrativa constitui sua própria natureza: servir de ensinamento.
Anunciando o potencial formativo contemplado pela narrativa, Benjamim adverte “[...] se
‘dar conselhos’ parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de
ser comunicáveis” (Ibid., p.200), especialmente porque conselhos não garantem respostas
imediatas, antes propõem ao ouvinte que faça da narrativa uma experiência sua ao admitir
que dê à história uma continuidade acrescida de traços de sua subjetividade.
Se, como sugere Benjamin, a narrativa tem na experiência sua origem estamos
definitivamente diante de um problema. Vivendo numa época que valoriza a voracidade da
informação e o imperativo da opinião, a velocidade do tempo e o excesso de trabalho e, na
qual “nunca se passaram tantas coisas, mas [onde] a experiência é cada vez mais rara”
(LARROSA, 2002, p. 21), estamos a um passo da sua impossibilidade e, portanto, do fim da
arte de narrar “[...] por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de
memória, são também inimigas mortais da experiência” ( p.23).
Não há dúvida de que a continuidade, necessária à memória, fica prejudicada pela
banalização do efêmero. Por essa razão pensamos que um bom antídoto contra o caos de tal
banalização pode estar na abertura dos sentidos do corpo e da mente e ao que eles podem
proporcionar como experiência. Parece-nos que esta é uma das chaves de compreensão do
texto de Walter Benjamin: atribuir, pela força (trans)formadora da palavra, maior poder à
figura d’O Narrador como estratégia de enfrentamento ao repertório empobrecido das
experiências na contemporaneidade. Afinal como ensina Larrosa (op cit, p. 20-21) “[...] as
palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes
mecanismos de subjetivação”, ampliando a capacidade de sofrermos experiências como
“aquilo que nos passa, nos acontece ou nos toca” (Ibid.).
Sendo assim, no caso do objeto desta reflexão, podemos imaginar que colocar nas
mãos da professora formadora a responsabilidade de como narradora promover a abertura
dos seus sentidos para receber a experiência como acontecimento traduzindo-a em palavras
seria um passo importante no processo de (trans)formação. E aqui cabe retomar a discussão
de Larrosa (2002) em Notas sobre a experiência e o saber da experiência na qual conceitua
282
Ao retomar o passado o sujeito que se lembra recorre, ainda que de modo inconsciente, à análise e à
reflexão na tentativa de interpretá-lo num movimento que envolve razão e também emoção.
Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1235
experiência e sujeito da experiência, discorrendo sobre as relações entre ambos e afirmando
que “[...] o saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana.”
(p.26) alertando para o fato de que “[...] do ponto de vista da experiência, nem
‘conhecimento’, nem ‘vida’ significam o que significam habitualmente” (p.27). Pois,
sistematicamente o conhecimento vem sendo tomado por mercadoria e a vida reduzida à
sua dimensão biológica, configurando-lhes o caráter instrumental que a tudo se aplica nos
dias de hoje e que está muito distante da concepção de saber da experiência “[...] como uma
aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. [...] que se adquire no
modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no
modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece”. (Id.). Trata-se,
portanto de um saber que não busca a verdade, mas o sentido ou o sem-sentido do que nos
acontece, ou da possibilidade de nos apropriarmos da nossa existência.
Essa ideia, nos termos propostos por Larrosa, de que a experiência é um saber que
vai sendo construído na extensão das nossas vidas e no modo como lidamos com elas é
muito significativa para os estudos pautados nas narrativas das histórias de vida e nos ajuda
a sustentar a concepção que defendemos, segundo a qual as possibilidades de formação e
de transformação a partir da retomada das experiências feitas e de sua análise frente ao
movimento entre o vivido ontem e hoje são consideráveis do ponto de vista da formação de
professores ao longo da vida. Confirmando a ligação inequívoca entre vida e experiência:

Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que
não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida
que não tem nenhuma razão ou fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo
sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que
tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.
(LARROSA, 2002, p. 28, grifado aqui)

Fechar-se à experiência e ao saber que ela produz seria, então, impedir o fluxo da
própria existência. Podemos dizer que, estando aberta à experiência, a professora/narradora
poderá resgatar e traduzir em palavras reminiscências de uma vida que poderão compor
tanto sua identidade, quanto sua subjetividade caracterizando o vivido e o narrado como
poderosos elementos de compreensão desses processos.
Contudo, vale uma observação sobre os cuidados que se deve ter com o uso da
palavra ‘experiência’ apontados por Larrosa (2004) em seis recomendações aqui
sumariamente apresentadas:

1. Não a confundir com experimento. “[...] descontaminar la palavra experiencia de


sus connotaciones empíricas y experimentales.” (p.23)
2. Retirar da experiência toda e qualquer pretensão de autoridade, de imposição.
3. Desvinculá-la da ideia de prática. “Y eso significa pensar la experiencia [...] desde
uma reflexión del sujeto sobre sí mismo desde el punto de vista de la pasión.” (p.
23)
4. Evitar conceitua-la. Admitindo experiência “[...] no como lo que es sino como lo
que acontece, no desde uma ontologia del ser sino desde uma lógica del
acontecimento [...]” (p.24)

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1236


5. Não fazer da experiência um fetiche que deve ser buscado e reconhecido a
qualquer preço.
6. Tornar difícil seu emprego “[...] para evitar que la palavra experiencia quede
completamente neutralizada y desativada.” (p. 26)

Tomar a experiência como aquilo que nos afeta, num movimento de transformação
e, ao mesmo tempo, de permanência é algo a ser aprendido porque estamos habituados a
conceber experiência como experimento e não como afetação. O que nos afeta nos torna
outro, mas, ao mesmo tempo, não nos afasta do ‘Eu’. Acessar essa complexidade é uma
possibilidade posta pela narrativa, como afirma Antonio Bolívar (2012, p. 33) “la
investigacíon narrativa introduce una seria ‘fisura’ em la investigacíon cualitativa habitual: la
experiencia vivida nos es algo a captar por la investigacíon, es de hecho creada em el própio
proceso investigador.”

A escrita de si: caminhada formativa de professoras

A escrita de si assume neste trabalho a forma de um exercício do sujeito para


produzir conhecimento sobre si mesmo por meio do uso da memória e do acesso aos
saberes da experiência aprendidos no espaçotempo283 de uma existência. Uma das
atividades mais significativas desse exercício é a narrativa que no dizer de Souza (2008, p.
91) “[...] inscreve-se na subjetividade e insere-se nas dimensões espaço-temporal dos
sujeitos quando narram suas experiências”, potencializando nesse narrador a experiência
formadora ao colocá-lo em contato sua singularidade “[...] a partir de diferentes níveis de
atividades e registros”. (id.)
Para acessar sua singularidade é importante que a pessoa em formação previamente
busque o conceito de identidade. Tarefa nada simples, pois como já referido, o vocábulo
guarda em sua própria etimologia uma ambiguidade indicando que identidade pode tanto
ser definidora daquilo que nos iguala, quanto do que nos distingue e, por ser processo nos
coloca “invariavelmente diante da tarefa intimidadora de ‘alcançar o impossível’” (BAUMAN,
2005, p. 16), especialmente diante do desenraizamento operado por nosso presente fluido,
gerando em nós o sentimento do não-pertencimento.
Porém, de forma contraditória, esse desenraizar proporciona também a sensação de
liberdade ao romper as amarras do tradicionalismo dos costumes e da imutabilidade das
autoridades, das rotinas e das verdades. Esse movimento complexo que envolve a
construção da identidade presa a raízes, mas também liberta de tradições abre ao sujeito a
possibilidade de produzir não uma, mas várias identidades, porque “A fragilidade e a
condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas. O segredo
foi revelado” (BAUMAN, 2005, p. 22).
Neste embate entre insegurança e liberdade “as identidades ganharam livre curso, e
agora cabe a cada indivíduo [...] capturá-las em pleno voo, usando os seus próprios recursos
e ferramentas” (Ibid., p.35), ou como defendemos, cabe a nós professores iniciarmos a
escrita da narrativa de nós mesmos a partir do questionamento sobre o sentido das nossas
283
A junção das palavras espaço e tempo pretende atribuir-lhes um significado único, criando a ideia de que
espaço e tempo compõem uma mesma dimensão da vida e dos processos de formação.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1237


experiências, traduzidas em existência e aprendizagens, porque como ensina Souza (2008, p.
92) “a organização e construção da narrativa de si implicam colocar o sujeito em contato
com suas experiências formadoras, as quais são perspectivadas a partir daquilo que cada um
viveu e vive, das simbolizações e subjetivações construídas ao longo da vida”.
Nessa direção pode-se dizer que a escrita de si via narrativa guarda estreita relação
com a construção ética de si. Com o compromisso de viver uma existência ética que deveria
pautar nossas vidas. Porém, essa perspectiva bastante próxima de Foucault ficará aqui
apenas anotada para ser retomada em reflexões futuras.

Concluindo...

As reflexões que foram sendo tecidas neste texto permitem dizer que o ser humano
carrega o que se poderia chamar disposição para se tornar sujeito de sua vida e da história,
sendo assim podemos inferir que a realização de uma investigação (auto)biográfica, baseada
na narrativa da história de vida guarda significativo potencial de construção de
conhecimento sobre os processos de construção da identidade e de subjetivação de
professoras que se tornam formadoras de professores, pois “as narrativas autorreferenciais
[...] são suscetíveis de revelar os modos como os indivíduos de uma determinada época e
cultura interpretam o mundo e como dão forma a suas experiências”. (PASSEGGI, ABRAHÃO,
DELORY-MOMBERGER, 2012, p.34)
Daniel Pennac em seu Diário de Escola faz a seguinte constatação “[...] nada se passa
como previsto, é a única coisa que nos ensina o futuro quando vem a ser passado”. (2008, p.
43). Se o autor estiver correto e efetivamente “nada se passa como previsto” é
recomendável - para bem viver - buscar socorro no ensinamento socrático dedicando tempo
e atenção aos cuidados com a alma, com a razão e com a verdade. Assim, defendemos que o
caminho mais promissor para a escrita de si e também para a sobrevida da experiência
talvez seja a disposição para nos abrirmos para escutar os sentidos do nosso corpo e da
nossa alma fazendo brotar em nós o narrador definido por Benjamin (1994, p. 221) como
aquele que:

[...] figura entre os mestres e os sábios. [que] sabe dar conselhos: não para alguns
casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer
ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência,
mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância
mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida: sua
dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue
de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera
incomparável que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como
em Stenvenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.

Chegamos ao fim deste texto, mas não do trabalho incessante da investigação sobre
identidade, subjetivação e formação, questões que nos acompanham há tempos e que
provavelmente continuarão a nos afetar como pessoa e como professora formadora de
professores. Esperamos ter estabelecido um diálogo com você que, se veio até aqui,
também se interessa pelas mesmas e inquietantes questões da profissão docente.

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1238


Referências
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MOMBERGER, Christine. Reabrir o passado, inventar o devir: a inenarrável condição
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Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1239


Eixo Temático IV
ESPAÇOS BIOGRÁFICOS,
FONTES E ANÁLISE

Anais IV Simpósio Memória, (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1240


Fontes para a história da formação de professores no Piauí: narrativas de egressos de
instâncias formadoras atuantes no período de 1910 a 1970

Alessandra Raniery Alves de Sousa


UFPI
Samara Layse da Rocha Costa
UFPI
Maria da Conceição Sousa de Carvalho
UFPI

Esta pesquisa, ainda em andamento, busca compreender o percurso de formação de professores


primários e secundários no Piauí, interrogando sobre o sentido dessa formação no período estudado
(1910-1970). O estudo analisa diferentes fontes, dentre as quais as fontes orais constituídas por
narrativas de egressos da Escola Normal Antonino Freire, primeira escola normal pública do estado do
Piauí no século XX, bem como de egressos dos cursos e exames de qualificação promovidos pela
Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), que contribuíram para a
construção da identidade profissional do professor do ensino secundário. O estudo faz uso da
metodologia de entrevista narrativa, e dentre seus diferentes modos de emprego, optou-se pela
perspectiva proposta por Bertaux (2010), na qual os sujeitos informam suas práticas e o contexto em
que estas aconteciam. As narrativas de egressos até então analisadas permitem compreender a atuação
desses espaços de formação na constituição de uma cultura profissional docente.
Palavras-chave: Narrativas de egressos; Instâncias formadoras; Formação de Professores.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo colocar em realce pesquisa que investiga
o percurso de formação de professores primários e secundários no Piauí, interrogando
sobre o sentido dessa formação no período estudado (1910-1970).
Situamos, pois, historicamente, duas instâncias formadoras representadas pela
Escola Normal Antonino Freire e a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino
Secundário (CADES) que, à época, foram representativas no campo da formação de
professores, ambas de natureza pública, sendo que a primeira formava professores
para o magistério primário e a segunda oferecia qualificação profissional para
atendimento às demandas do ensino secundário.
Para desenvolvimento da investigação utilizamos, dentre outras fontes, a
metodologia da entrevista narrativa, na qual o pesquisador pede ao entrevistado que
conte sua experiência de vida dentro do contexto pesquisado. Muitas são as maneiras
de utilização da entrevista narrativa, mas neste estudo optamos pela perspectiva
etnossociológica, na qual os sujeitos informam suas práticas e o contexto em que estas
aconteceram. São atribuídos aos seus testemunhos “a priori um status de veracidade
que verificamos ao compará-los sistematicamente e cruzarmos suas falas com outras
fontes” (BERTAUX, 2010, p. 151).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1241


As narrativas coletadas e analisadas são de quatro egressas de cursos de
formação de professores atuantes no período estudado, a saber: professora Maria
Dagmar Feitosa da Cruz (aluna da Escola Normal Antonino Freire nos anos de 1969 a
1971), professora Angelita Etelvina de Amorim (aluna da Escola Normal Antonino
Freire nos anos de 1957 a 1959), professora Rosa RibeiroGuimarães (aluna e
professora da CADES nos anos de 1957 e 1971, respectivamente), professora Maria
Ester de Araújo (aluna da CADES nos anos de 1970 e 1971). Seus depoimentos foram
de grande importância para a pesquisa, pois trouxeram fatos que nos possibilitaram
encontrar respostas e, portanto, fechar uma série de lacunas, ainda abertas.
A Escola Normal Antonino Freire e a CADES, por serem da iniciativa pública,
sempre foram alinhadas aos governos da época, decorrentes dos grupos que se
alternavam no poder, o que de algum modo interferia nessas instituições de formação.
O recurso às narrativas enriquece significativamente esta perspectiva de análise,
permitindo perceber as lógicas de ação no desenvolvimento histórico e social da
época, conforme observa Bertaux (2010). Com este exercício o pesquisador pode
desenvolver sua análise na reconstituição de um fato histórico.

A formação de professores para o ensino primário

Os Centros de Formação de Professores Primários, as denominadas Escolas


Normais, tiveram início no Brasil no século XIX, expandindo-se no final deste mesmo
século. Nesse período despertou-se para a necessidade de escolarizar a população
brasileira, que em sua maioria era analfabeta, o que sinalizou para a necessidade de
formar professores qualificados para exercer o magistério primário no país. Nesta
perspectiva, no ano de 1833, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, foi instalada a
primeira Escola Normal do Brasil. Essa experiência se repetiu em outros estados, como
Bahia, Pará, Ceará, Paraíba, São Paulo, Mato Grosso, Goiás e Pernambuco, chegando
ao Piauí, na capital, Teresina, somente em 1865.
A escola recém-instalada em Teresina poderia ser frequentada por ambos os
sexos e começou a funcionar inicialmente no prédio da Assembléia Legislativa
Piauiense. Havia uma baixa procura de alunos, ocorrência que alguns historiadores
associam ao fato de a escola ser mista. Para outros, a escassez de matrículas decorria
da cobrança de uma taxa anual no valor de 80$000 (oitenta mil reis), pois para a maior
parte dos alunos, oriunda de famílias numerosas e que sobreviviam da agricultura,
esse valor acarretava grandes gastos. No entanto, mesmo com a posterior suspensão
da taxa cobrada, a medida não atraiu muitos alunos, e a Escola Normal foi fechada
através da Resolução n. 599, de 9 de outubro de 1867 (SOARES, 2008).
No ano de 1871 através da Lei n.753, de 29 de agosto do mesmo ano foi
estabelecido que o Ensino Normal deveria funcionar anexo ao Liceu (Centro de
Formação do Ensino Secundário). Este oferecia um curso especial de dois anos para
quem pretendesse lecionar no magistério primário. Aos alunos que concluíssem o
curso era conferido pela Secretaria de Governo, um título que proporcionava o direito

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1242


de ser nomeado professor do ensino primário. Mesmo com todos os incentivos, não
houve aumento no número de alunos, e a Escola Normal voltou a ser fechada, por
força da Resolução n.858, de 11 de julho de 1874, encerrando seu funcionamento no
Estado do Piauí (BRITO,1996).
Após muitos anos sem Escola Normal no estado do Piauí, intelectuais, políticos
e pessoas influentes da época constituíram um grupo denominado Sociedade
Auxiliadora da Instrução, que em 1909 criou a Escola Normal Livre. No ano seguinte,
por iniciativa do Governo do Estado, foi instalada a Escola Normal Oficial.
Em seus primeiros anos a escola atraiu um tímido número de estudantes,
embora tenha se mantido em funcionamento. A partir de 1922, entretanto, com a
reestruturação do Ensino Normal, após a aplicação do Regulamento Geral do Ensino,
houve um crescimento do número de formados pela instituição. Esta atraía pessoas
tanto da capital como também de outros municípios, e muitos políticos de cidades do
interior do Estado mandavam estudantes que se destacavam para estudar na Escola
Normal Oficial, para posteriormente darem aulas em sua cidade natal.
Por essa época, os alunos que estudavam na instituição vinham em geral de
famílias abastadas da cidade de Teresina, porque o título de professor era então
valorizado e tratado com muito respeito. O número de alunos cresceu muito,
predominando um número maior de mulheres, tendência que permaneceuno decorrer
de sua história. A Escola Normal Oficial passou a ser pautada por regras de
funcionamento bastante rígidas, procurando formar professores com bastante
qualidade e dar uma nova feição ao magistério primário no estado do Piauí. De 1910
até 1946, quando o ensino normal passou a receber maior aplicação de investimentos
e regulamentação Federal, o curso se modificou, e junto com isso trouxe novas
adaptações curriculares, quase sempre tomando como modelo experiências dos
grandes centros do país, com a intenção de melhor preparar os futuros professores
primários.
No ano de 1947, a partir da Lei Estadual n.46, de dezembro de 1947, a Escola
Normal Oficial passou a ser denominada Escola Normal “Antonino Freire”, em
homenagem a um dos seus idealizadores (SOARES, 2008). A Escola Normal Antonino
Freire, nos anos seguintes, experimentou um processo de desenvolvimento,
acompanhando o crescimento econômico do Estado, que necessitava instruir a
população, o que favoreceria o crescimento do número de professores primários
formados por essa escola.
Anexa à Escola Normal funcionava a Escola Modelo, como local de exercício
prático dos futuros professores. A instituição era muito bem conceituada na cidade,
cuidada de perto pelos professores da Escola Normal Antonino Freire e havia uma
grande procura por parte da população da cidade de Teresina e de fora desta.
Os alunos vinham em grande parte para concluir o ginásio e posteriormente
fazer o teste para ingressar no curso pedagógico na Escola Normal Antonino Freire,
como relata a professora Angelita Etelvina de Amorim:

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1243


Eu fui aluna do segundo, do terceiro e do quarto ano do ginásio na Escola
Normal, depois fiz o vestibular entre aspas para fazer o pedagógico, era a
elite que estudava o pedagógico, eu era a pobre da sala no meio da elite,
mas a minha inspiração maior era ser professora, vim do interior para isto.
Então em 1957 eu fiz essa prova para ingressar no curso pedagógico e fui
aprovada, e fiz realmente os meus três anos de curso pedagógico na Escola
Normal, a que eu iniciei, sendo que hoje fica ao lado da prefeitura da cidade.

O fato é que, nesse contexto, a Escola Normal Antonino Freire foi se


consolidando, ganhou força e identidade própria e promovia com isso a formação do
pessoal docente necessário às escolas primárias do estado do Piauí. O título de
normalista era tratado com muito respeito pela sociedade e muito bem visto por esta,
conforme a professora Maria Dagmar Feitosa da Cruz relembra:

A Escola Normal era rígida, não tinha moleza não, concluí o ginásio na escola
normal, e terminei a sétima série em 67 e em 68, já tinha a oitava, e em 69
eu ingressei no primeiro ano pedagógico, que eram as normalistas, o curso
pedagógico. Eles diziam assim, a filha de seu fulano está formada. Hoje é só
um curso técnico, mas naquela época tinha uma formatura com todos os
direitos que vocês da UESPI, que vocês da UFPI fazem. Eu fiz naquele tempo
na Escola Normal, com todos os direitos a gente fazia, tinha uma solenidade,
todos os formandos vestidos com as becas e muitas fotos eram tiradaspara
registrar esse momento marcante na vida das normalistas.

As solenidades de formatura eram realizadas com muita pompa, assistidas


pelas famílias dos formandos e contavam com a presença de autoridades convidadas.
Ficavam registradas nos jornais, em fotografias e na vida das normalistas. A foto
a seguir registra uma solenidade de formatura na Escola Normal Antonino Freire no
ano de 1959, vendo-se na mesa de honra o arcebispo de Teresina à época, Dom Avelar
Brandão Vilela.

Fonte: Arquivo pessoal da Professora Angelita Etelvina de Amorim.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1244


A Escola Normal Antonino Freire era uma instituição orientada por regras e
seriedade na formação dos alunos, seus professores pertenciam ao segmento mais
culto da população, imbuídos do papel de formar bons profissionais para a educação.
Isto é destacado na fala da professora Angelita Etelvina de Amorim: “As pessoas que
terminavam o curso de pedagogia [pedagógico] tinham um fundamento teórico bem
forte, para conduzir o homem e isso era passado pelos professores na Escola Normal.”
A professora Maria Dagmar Feitosa da Cruz confirma:

Naquela época não se tinha nenhum computador como se tem hoje, você tinha
que ter tudo na sua cabeça [...] nós víamos de tudo, Matemática, História,
Geografia e eram todas separadas, OSPB, Educação Moral e Cívica, assim eram as
nossas disciplinas. Em cada uma tínhamos que prestar uma prova no fim do mês, e
para cada matéria tínhamos um professor, e outras disciplinas como Língua
Portuguesa, Francês e Inglês [...] Ciências, Psicologia tudo isto era visto na Escola
Normal.

Outro ponto que chama a atenção no funcionamento da instituição diz respeito


às exigências relativas ao fardamento usado pelas normalistas. Os sapatos deveriam
ser iguais e bem engraxados, cumprindo as normas da instituição. Na escola havia
funcionários que inspecionavam os trajes, a estes cabia manter sempre a ordem e a
disciplina, como recorda a professora Maria Dagmar Feitosa da Cruz:

Na Escola Normal eram as exigências de se entrar de sapato de borracha


para não fazer barulho, já vinha desse contexto do ginásio, tinha que entrar
com o copo na mão para tomar água, tinha que entrar fardada, mangas
compridas, saia de pregas, tinha até inspetor para isso [...] isso no ginásio e
continuou durante o pedagógico.

O relato da professora Angelita Etelvina de Amorim complementa:

.A farda de gala era para você ir aos grandes eventos, a procissão era um
destes, não se ia à procissão de São Francisco com a farda comum, você
nãoia sem a farda de gala, pois ia representando a Escola Normal. Isso ai que
eu queria mostrar para vocês, a seriedade e o respeito que se tinha ao
professor.

A expressão simbólica do fardamento impecável, distintivo da normalista,


aponta para aquilo que a Professora Angelita considera como “a seriedade e o respeito
que se tinha ao professor.” De fato, a Escola Normal Antonino Freire funcionou
também como parâmetro para a criação de outras escolas normais no estado, como na
cidade de Parnaíba e Floriano. A Escola Normal Antonino Freire contribuiu
significativamente para a sociedade e a educação escolar do período. A partir do
momento em que essa própria sociedade passou a valorizar a mulher culta

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1245


(professora) e a própria educação, entre outras mudanças na mentalidade dessa
sociedade, o curso pedagógico contribuiu de forma visível para o crescimento e a
expansão do ensino primário no Estado do Piauí.
As contribuições da Escola Normal Antonino Freire para a constituição de uma
cultura profissional docente foram inúmeras. Além de ser a primeira escola normal
pública do Piauí a funcionar de forma ininterrupta por mais de seis décadas,
consolidou uma representação do magistério primário fundado na formação
específica. Isto pode ser percebido pelo relato da professora Angelita Etelvina:

A Escola Normal foi um ponto muito forte pra mim, porque me marcou na
minha vida e de meus colegas, me mostrou as responsabilidades que eu
tinha em educar desde muito cedo, uma responsabilidade de saber fazer, de
saber conduzir a criança.

Com o advento da Lei n. 5.692/71, que reordenou o ensino de 1° e 2° graus,


introduziu o ensino profissionalizante compulsório e estabeleceu novas exigências
quanto ano nível de formação dos professores, as escolas normais do país sofreram as
mudanças impostas pelo novo ordenamento da educação básica. Assim, o antigo curso
pedagógico passou a ser uma das habilitações oferecidas no ensino de 2° grau, dentro
outras, ajustando-se à nova lógica curricular em vigor. Soares (2008, p. 174) pondera
que, durante a vigência da Lei n. 5.692/71, “o curso normal sofre crise de identificação,
igualando-se aos demais cursos profissionalizantes da chamada década tecnicista e
ocorre a massificação do ensino oportunizando a demanda de uma clientela nem
sempre compromissada com o magistério.”
Em 1973 a Escola Normal Antonino Freire recebeu a denominação de
Instituto de Educação Antonino Freire, teve suas atribuições ampliadas e passou a
funcionar em um novo prédio, mais amplo e, tanto quanto o primeiro, especialmente
construído para abrigar a instituição. Contudo, a formação do professor primário e o
exercício profissional neste nível de ensino, no novo contexto, já não exprimiam o
mesmo significado.

A Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES): atuação


no Piauí

Durante a década de 1950 o Brasil passava por grandes transformações


políticas, culturais e econômicas, através das quais se buscava colocar o país na
direção do desenvolvimento e da modernização. Para tal, a atenção aos problemas
econômicos do país ganhou foco, o que motivou a criação de órgãos com o intuito de
estimular a industrialização e resolver os problemas pelos quais passavam a
administração, as finanças e a economia. Devido ao crescente incentivo, a
industrialização nacional passou a exigir uma força de trabalho mais qualificada. Nesse
contexto, ganhou força a premissa segundo a qual para melhorar o nível de
desenvolvimento do país era necessário ampliar o acesso à escolarização.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1246


Até então, o ensino secundário era destinado às elites que seriam preparadas
para assumir as posições mais elevadas na sociedade, ou seja, as posições de comando
de uma sociedade que se encontrava em crescimento rumo à modernidade.
Entretanto, o modelo econômico vigente no país, aliado aos processos de urbanização,
impulsionou a demanda pelo ensino secundário. Ratificando essa preocupação com a
educação, foram criados, em 1951, o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), e em 1953 a
Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES).
Houve vários motivos para a criação da CADES, dentre outros, uma maior
complexidade da vida social decorrente industrialização e urbanização do país, o que
promoveu uma maior demanda pela educação; a expansão do ensino secundário, que
passa a ser prestigiado por ser uma maneira de ingressar no ensino superior; a
insuficiência de professores habilitados. Outro fator que influenciou o aumento da
procura pelo ensino secundário foi o fato de a educação ser vista como uma maneira
de ascender socialmente, uma vez que o ensino secundário foi tradicionalmente
destinado aos filhos das famílias mais abastadas, que recebiam educação para
ocuparem os cargos mais elevados da sociedade e assumirem as grandes
responsabilidades da nação, enquanto os menos favorecidos economicamente eram
dirigidos para o Ensino Profissionalizante ou Ensino Técnico.
Contestando os interesses elitistas, o Ensino Secundário passou a ter uma
grande procura, principalmente daqueles que desejavam mudar a sua posição dentro
da sociedade. Deste modo, esse nível de ensino passou a exibir uma procura maior que
a oferta. As Faculdades de Filosofia, instituições que deveriam formar professores para
o Ensino Secundário, não conseguiam atender a essa grande demanda. Como resposta
a esse conjunto de fatores, pelo Decreto n. 34. 638, de 17 de novembro de 1953, foi
criada a CADES, cuja finalidade declarada consistia em tornar a educação secundária
mais ajustada aos interesses e possibilidades dos estudantes, bem como propiciar a
um maior número de jovens brasileiros o acesso à escola secundária. Foi uma das
medidas encontradas para tirar o país do atraso, pois se imaginava que ampliar o
acesso ao ensino secundário, conferindo-lhe um sentido social, seria o caminho para
alcançar o desenvolvimento social e econômico do país.
A CADES tinha como principais objetivos elevar o nível do ensino secundário e
difundi-lo, sobretudo nas regiões onde não houvesse professores formados pelas
Faculdades de Filosofia, que eram poucas e localizadas nas grandes cidades, fato que
dificultava o acesso daqueles que moravam nas regiões mais afastadas. Assim
procurava suprir a carência de professores nesse nível de ensino, uma vez que existia
uma elevada escassez de professores certificados para atuar no ensino secundário.
Como afirma em depoimento a professora Rosa Ribeiro Guimarães:

Havia muito interesse das pessoas por formação, é tão tal que existia uma
grande quantidade de professores leigos que estavam nas salas de aula sem
poder estar, mas que estavam, de certo modo, pela carência de pessoal.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1247


Como as necessidades eram muitas o MEC flexibilizava as suas exigências,
pois o pior era não ter professores e a escola ter que fechar. [...] Surgiu a
oportunidade de alguns professores se qualificarem e eu fui no meio deles
participar desse primeiro curso da CADES. Esse curso era para professores
que já estavam lecionando e tinham título precário ou título nenhum. Eu era
professora primária, recém formada, mas não podia lecionar além do
primário, eu estava dando aula naquilo que chamavam antigamente de
ginásio, que é o segundo seguimento do ensino fundamental maior, que vai
do 5° ao 9° ano hoje.

Em todo o Brasil existia um grande número de professores leigos, ou seja,


aquelas pessoas que não receberam formação para exercer o magistério, mas que
devido às situações de carência de professores licenciados, estavam lecionando, ainda
que sem qualificação para tal. No Piauí, assim como em muitas outras cidades do país,
a maioria dos professores em exercício neste nível de ensino não possuía a formação
adequada. O magistério secundário no Piauí era exercido por profissionais liberais,
militares, médicos, advogados, padres, e, em algumas situações, por normalistas.
Segundo relata Manuel Paulo Nunes, Inspetor Federal de Ensino no Piauí, a
CADES iniciou sua atuação no Piauí em 1958, sob a responsabilidade da Inspetoria
Seccional do Piauí, órgão do Ministério da Educação e Cultura (NUNES, apud
CARVALHO, 2013). Para participar dos cursos da CADES era necessário possuir, no
mínimo, o curso ginasial completo, não havendo necessidade de processo seletivo
formal para ingresso nos mesmos. Isto fica evidenciado na fala da professora Maria
Ester de Araújo: “a gente se inscrevia e preenchia lá uma ficha que naquela época eu
acredito que fosse o processo seletivo”.
Não ter a necessária formação e estar exercendo o magistério no nível
secundário eram os critérios de acesso aos cursos da CADES. Os cursos eram
intensivos, abrangiam as várias disciplinas no currículo escolar e tinham duração de
dois meses, sendo divididos em duas etapas: na primeira eram trabalhados os
conteúdos específicos de cada disciplina; a segunda era voltada para a orientação
didática, que mostrava ao professor como ensinar/aplicar os conteúdos aprendidos no
processo ensino-aprendizagem. A professora Maria Ester de Araújo explicita que “o
curso se realizava em período de férias (manhã e tarde)”. Ela ainda relata que “as
turmas eram mistas, homens e mulheres [...] e não eram tão grandes 25 (alunos) no
máximo.” Os cursos são lembrados como bastante organizados, contando com
professores convidados por sua reconhecida capacidade. Os cursos eram na verdade
preparatórios ao chamado exame de suficiência, de cujo resultado dependia a
autorização do MEC dada ao candidato para lecionar no ensino secundário.
O exame de suficiência era dividido em duas fases: uma prova teórica sobre os
assuntos referentes à disciplina para a qual o candidato requeria autorização para
lecionar, e outra prática, sob a forma de uma aula a ser ministrada pelo candidato
frente a uma banca examinadora. Sendo aprovado nessas duas fases o professor
recebia um registro expedido pelo MEC que lhe conferia habilitação, com validade

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1248


regional, e desde que não houvesse docentes formados por Faculdades de Filosofia.
Era, portanto, uma autorização limitada. Mesmo assim, a CADES possibilitou a muitos
professores qualificação profissional, o que lhes conferia não só uma maior segurança
para exercer o magistério, bem como elevava sua auto-estima, ao regularizar sua
situação no magistério secundário, tirando-os da condição de professores leigos.
A partir da conclusão dos cursos, muitos professores se viram motivados a
continuar se qualificando. Muitos foram os casos de “cadesianos” que se sentiram
motivados a fazer um curso superior depois do contato com a CADES, como foi o caso
da professora Maria Ester de Araújo que conta como veio de uma cidade do interior do
estado para continuar os estudos em Teresina:

Eu achava que não dava certo [fazer o vestibular] porque eu não tinha
emprego aqui [em Teresina] e nem eu podia vir sem um emprego, não tinha
como me manter. [...] Trabalhava na rede estadual [na cidade de Parnaíba]
num turno e no outro turno trabalhava em um colégio particular. [...] Fiz o
vestibular [...] da primeira vez passei. Esse foi o último vestibular que era
feito especializado [...]. No meu vestibular não havia Química, Física e nem
Matemática que para mim eram os “bichos-papão”. Então eu fiz numa boa e
fui bem classificada. Aí eu fui lutar pela minha transferência, quer dizer, o
curso da CADES me estimulou a continuar meus estudos e se eu tivesse
ficado em Parnaíba só com o pedagógico eu não teria me estimulado para
fazer o curso superior [...]. Consegui minha transferência e aqui consegui
outro emprego para dar certo pagar pensionato... Para sobreviver. Mas aí
foi dando certo com muito esforço, que na minha vida tudo foi com muito
esforço, mas valeu.

O que se percebe é que os cursos da CADES, apesar de breves, eram


reconhecidos por sua qualidade, são lembrados por sua organização e proporcionaram
a muitos professores leigos certificação e regularização do exercício profissional. A este
respeito, os depoimentos das professoras Maria Ester de Araújo e Rosa Ribeiro
Guimarães são bastante elucidativos:

A contribuição foi muito importante, porque quando a gente termina o


curso pedagógico a gente se sente assim um tanto solta, porque vai dar aula
e a gente viu muita teoria que muitas vezes não tinha nada a ver com aquilo
que a gente ia lecionar. [...] Eu me sentia muito insegura e o curso da CADES
veio me dar mais segurança porque eu passei a estudar mais, a ver melhor
como seria dada, principalmente, a parte de texto que na minha época não
era tão explorado [...] (Professora Maria Ester de Araújo).
A contribuição que eu acho que a CADES deu à educação, ao ensino de
Língua Portuguesa no Piauí foi ampliar, exatamente, o quantitativo de
professores, minimamente qualificados, porque passávamos por esse
processo de seleção, além do curso. Também tinha a didática, que era a
orientação de como dar aula, como encaminhar o processo de
ensino/aprendizagem, no domínio de Língua Portuguesa . (Professora Rosa
Ribeiro Guimarães).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1249


Além disso, cabe acrescentar que durante seu tempo de atuação no Brasil,
foram publicadas dezenas de obras educacionais. Calaça e Mendes Sobrinho (2013)
afirmam que por meio de levantamento realizado em bibliotecas de várias
universidades do Brasil foi possível encontrar referências de 116 obras publicadas pela
CADES, ou que tiveram apoio dela para publicação. Mostram que esse acervo
localizado era composto por “7 (sete) livros na área de matemática; 81 (oitenta e um)
livros das diversas áreas educacionais; 9 (nove) obras que discorrem sobre a CADES e
19 (dezenove) edições da Revista Escola Secundária.”
A CADES atuou na formação de professores secundários no Brasil durante o
período de 1953 a 1971, sendo que no Piauí sua duração foi de treze anos - 1958 a
1971. Com a expansão dos cursos de licenciatura, iniciava-se outra fase da história da
formação de professores, dispensando a continuidade das atividades da CADES.

Considerações finais

A demarcação de um período temporal sobre o qual seja possível lançar um


olhar mais atendo, tentando extrair dele fatos acontecidos – nunca tal qual
aconteceram, mas seus sinais, vestígios do passado trazidos para uma leitura presente
– é uma tarefa tão penosa quanto necessária à operação historiográfica. Assim,
quando nos propusemos a mergulhar na história da formação de professores no Piauí,
nos vimos diante do imperativo de estabelecer critérios demarcadores, mesmo
sabendo, de antemão, que os cortes na história são arbitrados pelo pesquisador ante
os limites de natureza metodológica. Por que, então, foram estabelecidos o ano de
1910 e o de 1970 como os demarcadores do período do qual este estudo se ocupa?
As tentativas de instalação dos cursos de formação de professores primários
não lograram êxito no Piauí até o início do século XX. Este processo só se instaura de
fato a partir da Escola Normal Oficial/ Antonino Freire, instalada em 1910 (embora um
ano antes tenha sido criada a Escola Normal Livre, que existiu apenas por um ano). Tal
fato não pode ser desconsiderado quando buscamos entender o sentido da formação
de professores no Piauí. Com efeito, a instalação desta escola foi influenciada pela
necessidade de formação de professores primários para atender às demandas de uma
escolaridade em expansão, ao mesmo tempo em que contribuía para a constituição de
uma cultura profissional docente calcada na formação específica, no desenho de um
modelo que diferenciava o professor normalista do professor leigo. Não por acaso são
recorrentes nas narrativas colhidas as referências à configuração curricular do
chamado curso normal, ao funcionamento disciplinado da escola, à valorização social
do diploma de professor primário, à figura da normalista, vestida de azul e branco e
imortalizada em canções, às expressões simbólicas dessa valorização materializadas
nas solenidades de formatura.
Mas a expansão do ensino primário, motivada pelo processo de crescimento
das cidades em decorrência da migração crescente da população rural para os centros

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1250


urbanos, potencializada pela instauração de um modelo econômico
desenvolvimentista que demandava mais escolarização, pavimentou o caminho para a
expansão do ensino secundário. Este, que desde o período Imperial havia sido
destinado à formação das elites, a partir da década de cinquenta do século vinte vê-se
impelido a incorporar um contingente populacional muito mais amplo e diversificado.
A expansão do ensino secundário, então, respondia, por um lado, aos imperativos do
crescimento econômico do país e, por outro, à demanda de uma parte crescente da
população desejosa de ascender socialmente pela via da escolaridade, o que lhe abriria
as portas também para prosseguir os estudos no nível superior.
Em tal contexto, um dos problemas mais agudos decorreu da quantidade
insuficiente de professores qualificados. As poucas Faculdades de Filosofia, instituições
à época responsáveis pela formação de professores para o ensino secundário, estavam
localizadas nas cidades de maior porte e não davam conta da demanda de professores
para todo o país. Assim, o magistério nas escolas secundárias era exercido por pessoas
oriundas de outras profissões, além de outras cuja escolaridade em muitos casos não
ultrapassava o curso ginasial. Esta situação, aliada às preocupações com o risco da
perda de qualidade do ensino secundário, serviu de argumento para acriação da
Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário – CADES.
É pertinente observar que no Piauí o período de atuação da CADES coincidiu
com o período de funcionamento da Faculdade Católica de Filosofia – FAFI, ou seja, de
1958 a 1971 (neste último ano a FAFI foi incorporada à recém-instalada Universidade
Federal do Piauí). Esta atuação paralela é explicada por três razões: a FAFI formava
professores apenas nas áreas de línguas neolatinas, história, geografia e filosofia, não
cobrindo todos os componentes curriculares do ensino secundário; mesmo nessas
áreas, o número de egressos da FAFI era inferior à demanda de professores no estado;
os professores das escolas de ensino secundário localizadas nos municípios mais
distantes de Teresina nem sempre podiam se deslocar para cursar a faculdade, como
fez a Professora Maria Ester de Araújo, conforme seu relato. De todo modo, o que
precisa ser acrescentado neste momento é que a FAFI também foi um dos lugares de
formação de professores atuantes no período estudado, constituindo por isso um dos
tópicos da pesquisa em andamento sobre a história da formação de professores no
Piauí, embora em razão dos limites deste trabalho não tenha sido trazida para a
presente discussão.
Como encaminhamentos conclusivos, resta explicitar os critérios que definiram
o marco final do estudo. Uma breve incursão pelas mudanças introduzidas na
educação básica, decorrentes da implantação da Lei n. 5.692/71, parece ser suficiente
para esclarecer as razões de tal delimitação. Ao reunir o ensino primário com o ensino
ginasial, constituindo o ensino de 1° grau, e ao suprimir do antigo colegial as
modalidades até então praticadas – clássico científico e técnico, para transformá-lo em
ensino de 2° grau obrigatoriamente profissionalizante, a Reforma não introduziu
apenas novos arranjos curriculares e uma nomenclatura diferenciada. Para, além disso,
como pondera Souza (2008, p. 268), o novo ordenamento impôs a reunião de “culturas

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1251


escolares diferenciadas – os professores primários e os professores secundaristas –
com níveis diversos de formação e salários, status e modos próprios de exercício do
magistério”.
As novas formas de organização da educação básica e seus desdobramentos
em relação à formação de seus professores tiveram como cenário os valores da
sociedade científica e tecnológicado final do século XX, quando o estudo das
humanidades perdeu prestígio. No caso brasileiro, os interesses ideológicos do regime
político vigente na década de 1970, representado por uma ditadura civil-militar,
enfatizaram os princípios de uma educação pautada na racionalidade técnica,
privilegiando os saberes instrumentais condizentes com os ditames de uma sociedade
urbano-industrial-tecnológica. É, pois, a virada da década de 1970 outro marco para a
análise e a escritura da história da educação brasileira. A interpretação dessas
mudanças, tanto quanto de tudo o mais que constitui a história da formação de
professores no Piauí, requer a retrospecção aos fatos que a gestaram. Nunca é demais
lembrar que a interpretação do passado ilumina a compreensão do presente.

Referências
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novos embates e representações. Cadernos de Pesquisa, vol. 40, n. 140. São Paulo,
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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1253


Manoel Balthazar Pereira Diégues Júnior (1852-1922): a tessitura de uma identidade
docente

Edna Telma Fonseca e Silva ViNlar


UFPB/UFAL
ednatelma@yahoo.com.br
Izabela Cristina de Melo Santos
UFAL
Iza3192@hotmail.com

A abordagem biográfica, em suas modalidades representativa ou de caso, pode favorecer a discussão de


processos formativos aproximados de uma geração, considerando-se uma categoria profissional
(FREITAS, 2006) - neste caso, a dos professores - como possibilidade de desvelar as tensões históricas,
bem como as problemáticas que foram marcantes em uma época e que ainda são recorrentes, embora
com outras abordagens e problemas, consoante à hodiernidade. Nesta comunicação, a identidade
docente do intelectual alagoano Manoel Balthazar Pereira Diégues Júnior (1852-1922) é discutida como
forma de reconhecer-se e ser reconhecido como professor. Para tanto, a formação e a atuação deste
homem de letras, professor, jurista, historiador e geógrafo é abordada como dimensão microssocial,
dialogando-se com a esfera macrossocial, via pensamento político-educacional da época. Foram
diversas as fontes utilizadas para a construção deste texto, considerando-se o vasto campo de atuação
do sujeito focalizado, a saber: o relatório que apresentou como Diretor da Instrução Pública em Alagoas,
os jornais, as biografias publicadas em revistas, os compêndios que escreveu, além das produções
historiográficas com as quais dialogamos. Tais documentos foram rastreados em função do nosso
objeto, visando apreender a identidade docente deste reconhecido personagem, cuja tessitura aponta
as tensões históricas que a profissão de professor vem enfrentando em relação ao lócus de formação,
conteúdos formativos e métodos, masculinização/feminização do magistério, significados da docência,
dentre outras. Destacamos que o sentimento de pertença do referido professor, a diversidade de
conhecimentos e de leituras que incorporara ao seu vasto repertório intelectual, a sua inserção social e
o seu espírito inovador são algumas dessas marcas que lhe imputaram uma identidade docente que,
aliás, se contrapunha à forjada nos discursos dos administradores da província das Alagoas no século
XIX.
Palavras-chave: História da educação; Biografia; Diégues Júnior; Identidade docente.

Considerações iniciais

No contexto educacional do século XIX, os chamados homens de letras,


geralmente com formação de bacharel ou médico, exerceram a função da docência,
principalmente no ensino secundário; assim como ocuparam sucessiva e
simultaneamente posições nas mais diversas ordens formativas ou profissionais a que
se afiliavam, a exemplo da política, da religião, da imprensa e da docência (GONDRA,
2009).
Todavia, este amplo leque de funções e pertencimentos a tantos grupos se
constituía como traço comum na atuação dos “intelectuais” no período dos

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1254


Oitocentos. Ocupar, portanto, ao mesmo tempo, alguma delas não era considerado
“acúmulo de cargos” ou “desvio de função”284.
Nessa direção, muitos destes intelectuais foram estabelecendo uma identidade
docente que se construía em terreno movediço, na medida em que não estava isenta
de tensões na perspectiva do conflito, mas também das engenhosidades que
acompanharam a história da profissão docente. Os salários dos professores; a sua
formação (incluindo-se lócus e modos); os critérios para se ingressar na profissão; a
especialização (com destaque também para os saberes necessários à docência); a
atuação em níveis de ensino (primário, secundário, superior); enfim os sentidos e
significados atribuídos a docência foram questões que estiveram na pauta das
reivindicações, posicionamentos, propostas, mas também estratégias e táticas
(CERTEAU, 1994285) adotadas tanto pelos professores quanto pelos administradores, a
exemplo dos presidentes de província e diretores da instrução pública, que tratavam
em seus relatórios de culpabilizar os professores pelo fracasso da instrução e a
justificar o que não realizaram por falta de recursos.
Nóvoa (2011, p. 2), caracteriza esse tipo de literatura como pueril, justificando
que por meio dela “ficamos a conhecer tudo o que devia ter sido feito, e não foi, por
culpa de todos (professores, alunos, famílias, autarcas…), mas nunca dos próprios”.
Acrescenta-nos o referido autor que “para manter as posições de poder, é preciso
chocar e agradar, o que só se consegue caricaturando e apontando ‘culpados’” (Idem,
Ibidem). Na contramão dessa problemática sempre envolvendo o professor,
certamente como tática, faz notar Costa (2011, p. 45): “o professor primário,
pessimamente remunerado, era um servo da política, constantemente de Herodes
para Pilatos e dessa sua condição miseranda vingava-se, descurando o ministério e
palmatoando a petizada”.
Cabe destacar que no contexto vivido á época que estamos nos referindo,
reclamavam todos – administradores e sociedade - pela difusão/organização da
instrução que se apresentava como desafio aos países civilizados. Deste modo, temas
relativos à atuação dos professores, sua formação, as formas de ingresso na profissão,
enfim, a situação do magistério de modo geral, foram amplamente discutidos.
Entendemos que as tensões oriundas dessas discussões foram configurando
uma diversidade de representações sobre a docência que, de certo modo,
contribuíram para a constituição de uma identidade dos professores e professoras em
um período em que a educação estava, em termos de formação docente, diretamente
vinculada à preocupação com o domínio dos conhecimentos a serem ministrados nas
escolas de primeiras letras, e a escola normal era reivindicada para cumprir este papel.
Assim sendo, questões como: quem seriam os professores (homens ou mulheres?);

284
Encontramos no jornal “o Orbe”, repetidos anúncios relativos ao exercício profissional de Diégues
Junior ao tempo que ocupava outros cargos: “Diegues Junior – Bacharel em Direito, continua a ter seu
escriptório à rua da Moeda onde pode ser procurado todas as horas do dia em que não estiver na
Secretaria de Instrução Pública. (O ORBE, 21/05/1886).
285
Para Certeau (1994, p. 100) “a tática não tem lugar senão o do outro".

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1255


quais conhecimentos e/ou atributos deveriam ser valorizados; quais papéis poderiam
ou deveriam desempenhar; motivaram a discussão referente ao “ser” docente.
Na tessitura desta narrativa, vinculada as discussões realizadas no Grupo de
Estudo e Pesquisa “Educação, Cultura e Literatura” da Universidade Federal de
Alagoas, intentamos, conforme se propõe no citado grupo, “compreender identidades,
imaginários e subjetividades nos espaços-tempos formativos”. Nesse sentido, a
identidade docente do intelectual alagoano Manoel Balthazar Pereira Diégues Júnior
(1852-1922) é discutida, neste texto, como forma de reconhecer-se e ser reconhecido
como professor. Para tanto, a formação e a atuação deste homem de letras, professor,
jurista, historiador e geógrafo é abordada como dimensão microssocial, dialogando-se
com a esfera macrossocial, via pensamento político-educacional da época. Sua
trajetória é apresentada levando-se em conta a história pessoal, social, e cultural, de
modo a agregar aspectos biográficos e relacionais. Os traços constitutivos de uma
identidade docente, indicada pelo biografado ou por outros autores que escreveram
sobre a sua faceta de professor são discutidos em um diálogo com as produções
historiográficas referentes à época.
Adotamos o pressuposto de que a abordagem (auto) biográfica permite o
diálogo entre o individual e o sociocultural, uma vez que “põe em evidência o modo
como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias,
para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos” (MOITA,
1995, p.113).
Considerando que a referida abordagem no âmbito da História da Educação,
perspectiva de escrita desta narrativa, “busca evidenciar e aprofundar representações
sobre as experiências educativas e educacionais dos sujeitos, bem como permite
entender diferentes mecanismos e processos históricos relativos à educação em seus
diferentes tempos” (SOUZA, 2006, p. 136), intentamos, neste trabalho, realizar essa
busca por “representações da docência” de sujeitos singulares e coletivos por meio da
relação possibilitada pela experiência educacional do nosso biografado com os
processos históricos relativos à formação, atuação e constituição de uma identidade
docente. Reafirmamos com Freitas (2006, p. 148) que se a abordagem biográfica não
favorece a generalização dos resultados pesquisados, “permite a percepção profunda
dos processos formativos aproximados de uma geração, ou categoria profissional”,
possibilitando o “registro da trajetória de educadores e intelectuais que ocuparam a
cena educacional” (Idem, p. 145).
Foram diversas as fontes utilizadas para a construção deste texto,
considerando-se o vasto campo de atuação do sujeito focalizado, a saber: o relatório286
que apresentou como Diretor da Instrução Pública em Alagoas, os jornais, as biografias
publicadas em revistas, os compêndios que escreveu, além das produções
historiográficas com as quais dialogamos. Tais documentos foram rastreados em

286
No texto, quando do uso desse tipo de fonte, optamos por realizar a referência pelo sobrenome do
seu autor, embora sejam documentos produzidos como uma demanda da administração pública.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1256


função do nosso objeto, visando apreender a identidade docente deste reconhecido
personagem, cuja tessitura aponta as tensões históricas que a profissão de professor
vem enfrentando em relação ao lócus de formação; conteúdos formativos e métodos;
masculinização/feminização do magistério; significados da docência, dentre outras
questões.
Enfim, o nosso percurso será guiado pela complementaridade entre as fontes e
o diálogo entre os processos de formação, escolarização e escolhas profissionais
(FREITAS, 2006) vividas por Manoel Balthazar Pereira Diégues Júnior, um bacharel,
geógrafo, historiador, jornalista, que se movendo por tantas facetas, instituiu a de
professor como a mais visível, além da que mais se identificava.

A formação e a atuação de Diégues Junior

A biografia histórica hoje reabilitada não tem como vocação esgotar


o absoluto do ‘eu’ de um personagem, como já o pretendeu e ainda
hoje o pretende mais do que deveria. E se a simbologia de seus fatos
e gestos pode servir de representação da história coletiva através de
um homem, tal como o retrato, ela não esgota a diversidade
humana, como mostrou Saul Friedländer. Ela tampouco tem que criar
tipos. Ela é o melhor meio, em compensação, de mostrar as ligações
entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade,
e de experimentar o tempo como prova de vida. [...] A biografia é o
lugar por excelência da pintura da condição humana em sua
diversidade, se não isolar o homem ou não exaltá-lo às custas de seus
dessemelhantes. (LEVILLAIN, 1996, p. 176).

Manoel Baltazar Pereira Diégues Junior teve uma vasta atuação no cenário
sócio-político de Alagoas e Recife no último quartel do século XIX, desde deputado
provincial, sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e membro de
sociedades filantrópicas. No entanto, foi como educador que se fez lembrado por seus
biógrafos Barros (2005), Vaz Filho (1962) e Costa (2011).
Nascido em Maceió em 1852, Diégues Junior iniciou seus estudos
primeiramente em âmbito familiar, ocupando, posteriormente, os bancos do Liceu
daquela cidade concluindo ali seu curso secundário. Matriculou-se depois na Escola
Normal, onde conforme Vilela (1982) cursou disciplinas pedagógicas no 1º ano e no 2º
ano se ocupou com disciplinas mais afinadas com o bacharelado em Direito.
Quando conclui as disciplinas da Escola Normal, muda-se para a cidade do
Recife para estudar Direito, vindo a formar-se em 1877. Nesta cidade inicia o exercício
do magistério no Colégio Santa Genoveva, uma instituição de ensino de caráter
privado. Ali lecionou Geografia e História. Depois, começa a ensinar Português no
colégio Dois de Dezembro. Mais tarde tornou-se vice-diretor desta instituição e
segundo Vaz Filho (1962) esteve à frente de um curso de Literatura.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1257


Exerce por duas vezes o cargo de diretor da Instrução Pública da Província de
Alagoas287: no império, no ano de 1885, com sua badalada demissão em 1887 e, na
república, retorna em 1891. Enquanto gestor da educação alagoana ele se ocupou com
a renovação da escolarização do povo, tanto no que se refere aos métodos de ensino e
a formação do professorado, quanto com o delineamento da função social da escola
(SANTOS, 2014). Não abandonou o ensino privado, aliás era um defensor da liberdade
de ensino, tendo realizado uma conferência a respeito do tema no renomado Colégio
Bom Jesus, do qual era diretor literário ao lado do companheiro da Escola Normal
Francisco Domingues. Assumiu a cadeira de Geografia e Cosmografia do Liceu de
Maceió, função exercida até o fim de sua vida (1922).
Além destas ocupações, Diégues esteve envolvido com causas sociais que
naquele período se tornaram cruciais para se pensar a formação de uma sociedade
moderna, dentre as quais podemos destacar a instituição do trabalho livre, advinda da
gradual libertação dos escravos e a instrução e moralização do povo a fim de que se
solidificasse uma mentalidade popular que apoiasse e se comprometesse com o
progresso material e moral da nação.
O intelectual alagoano foi membro da Sociedade Libertadora Alagoana de
caráter abolicionista; da Sociedade Protetora de Instrução Popular, do qual chegou a
ser secretário e do Comício Agrícola do Quitunde e Getituba288. Deste último, foi
escolhido para representar Alagoas no Congresso Agrícola do Recife realizado no ano
de 1878, e também o incumbiram da tarefa de elaborar um programa de ensino
profissional e rural.
Escreveu os seguintes compêndios: Gramática Elementar da Língua Nacional
(1876); Geografia e Cosmografia (1890); Teoria das Preposições: Curso de Língua
Nacional (1893); além de outras obras, a exemplo da Consolidação das Leis da
Instrução Pública (1889).
O conhecimento desses traços biográficos de Diégues Junior nos permite
compreender as intencionalidades conferidas às suas ações, tendo em vista o olhar
sobre o lugar social que ele ocupara, e assim também pensar sobre as possibilidades e
limites inerentes a esse lugar naquele período (CERTEAU, 1982). Destarte,
consideramos com Nobert Elias (1994) que a individualidade do sujeito, assim como
suas ações e comportamentos, mantém relações intrínsecas com o conjunto de valores
que norteiam a sociedade.

Traços constitutivos da identidade docente em/para/por Diégues Junior

A profissão de mestre-eschola está repleta de males que devem e


podem ser sanados, e que são de tres espécies: ordenados de pouco

287
Cargo hoje equivalente ao de Secretário Estadual de Educação.
288
De acordo com Santos (2014, p.37) tratava-se de uma Associação, “considerada a primeira a ser
criada com o interesse em discutir e promover o melhoramento das problemáticas agrícolas do país”.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1258


valor, falta de habilitações e carencia de moralidade. A primeira
depende da vontade dos poderes constituidos e do estado financeiro
-, a segunda e terceira estão ligadas à personalidade do funccionario.
(MIRANDA, 1875, p. 13-14).

O professor é a pessoa; e uma parte importante da pessoa é o


professor. (NÓVOA, 1995, p. 15)

A concepção de identidade docente com o qual trabalhamos neste texto


“refere-se a um conjunto de características, experiências e posições de sujeito
atribuídas (e autoatribuídas) por diferentes discursos e agentes sociais aos docentes
no exercício de suas funções, em instituições educacionais mais ou menos complexas e
burocráticas” (GARCIA, 2010).
Considerando que o professor focalizado teve uma vasta trajetória, conforme
apresentado em sua biografia, a faceta da docência foi escolhida por ter sido esta a
que mais se destacou segundo seus biógrafos, e a que mais se identificou, conforme
enfatizara o próprio Diégues Júnior.
A comunicação pelas vias da oralidade ou da escrita marcou a trajetória de
Diégues Junior. Reconhecido pelos seus biógrafos como orador eloquente, proferiu
muitos discursos e discorreu sobre temas relacionados à educação nas conferências
pedagógicas que participou.
Autor de compêndios à época, registrou no compêndio de Geografia e
Cosmografia publicado em 1890 a seguinte declaração289: “esse trabalho é
testemunho da solicitude que tenho por meos alumnos e alumnas, aos do 2º anno do
curso normal de 1890 o dedico, especialmente como penhor de sympathia que sempre
me mereceu a mocidade estudiosa”. Ou ainda no de Gramática Elementar: “a
anciosidade com que o esperão meos alumnos levou-me a compilar as lecções
explicadas naula de Grammatica, e reduzil-as a compendio” (DIÉGUES JUNIOR, 1876, p.
5). Costa (1927) corrobora essa declaração escrevendo a respeito de Diégues que “esse
soube amar deveras a sua terra e ser útil a sua gente. [...] Porque as preferências desse
formoso espírito foram sempre pela educação da mocidade, desdobrando-se-
maravilhosamente no magistério”.
Destarte, se esse era um traço singular da sua identidade docente, a sua
construção foi se evidenciando por meio de um longo processo, conforme destaca seu
filho Diégues Júnior (2012, p. 282) que este homem “se vinha dedicando, desde a
juventude, às tarefas pedagógicas”, referindo-se a proposta de uma escola profissional
e rural por ele apresentada no Comício agrícola do Quitunde e Getituba realizado em
Alagoas no ano de 1877.
Vamos encontrar nos discursos e ações de Diégues predicados que ao tempo
que os exercitava, certamente apontava como necessários a constituição de uma
identidade docente, a saber: firmeza, responsabilidade perante a sociedade, moral

289
Optamos por preservar a grafia original nas citações diretas.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1259


(cristã), zelo, dentre outros. Assim sendo, enfatizou Costa (2011, p. 133) que o
magistério sempre teve para Diégues “a austeridade de um sacerdócio”. E Diégues, em
seu “Regimen escolar” referira-se aos professores como “nobres continuadores do
Divino Mestre”. (O ORBE, 07/09/1886).
Ainda de acordo com Costa (2011), apesar da multiplicidade de funções
exercidas por Diégues Junior,

a feição mais bela do seu espírito era a de professor [...] porque ele
soube ser principalmente um mestre, ilustre pela sua cultura, querido
pela sua bondade, senhor de todos os seus segredos de pedagogia,
cuja evolução acompanhava solicitamente, adaptando-se a todas as
inovações da velha arte de ensinar” (Idem, Ibidem).

Tais aspectos podem ser identificados em suas decisões, a exemplo da


exposição de suas convicções ao se envolver em contenda com seu antigo mestre de
Pedagogia sobre o conteúdo da formação dos professores na escola normal, segundo
Diégues ainda pautada em Daligault290 e não no que havia de mais moderno à época,
que para ele era o método intuitivo e as lições de coisas. Assim referindo-se à
formação dos professores em Alagoas naquela época, professou:

Para honra de nossa província ha no magistério uma pleiade de


moços bem ajudados da natureza, porém mal orientados por um
conjuncto de causas que não vem a proposito discutir, assim como
alguns antigos mestres provectos na arte de ensinar, mas
inteiramente alheios ao progresso da pedagogia.
Para quasi todos as ronçosas compilações de Daligault são preceitos
de divino oraculo, e nenhum ouviu mais do que isso nem na Escola
Normal nem na Escola Pratica.

Ademais, respondendo incisivamente ao seu ilustre professor de Pedagogia –


Dr. Joaquim Araújo, de quem havia sido discípulo, enfatizou:

Conheci o compendio de Daligault e o estudei com aquella lucidez de


intelligensia e força de comprehensão que tantas vezes
enthusiasmou meu ilustre mestre, o Dr. Araújo, quando via em mim
bem empregadas suas lecções; e conheço theorica e praticamente a
excelência de outro regimem que com mm. Pape Carpentier

290
O “Curso Prático de Pedagogia” de Jean Baptiste Daligualt teve grande influencia na formação dos
professores no Brasil no século XIX, constituindo o que estudos historiográficos recentes denominam de
“Guia de Aconselhamento” (CARVALHO, 2017). Tratava-se de um manual prático para professores,
baseado em fundamentos pedagógicos difundidos à época e que se pautavam por preceitos morais e
cristãos.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1260


substituiu na França a rotineira lecção de Daligault. (O ORBE,
17/09/1886).

Interpretamos tal declaração como reafirmação da leitura e do conhecimento


como valores significativos para Diégues, tendo em vista que lhe atribuía autoridade,
neste caso, pedagógica. Outro aspecto a ser destacado é questão da inovação
pedagógica no pensamento do referido intelectual. Interessava-lhe, ao que se observa
reformular as orientações até então expostas para o ensino com vistas a aproximar a
sociedade das culturas tidas “civilizadas” do período e que já apresentavam
significativos avanços na instrução pública.
Após sua escolha unânime para presidente honorário do Instituto dos
professores primários, Diégues ao tempo que agradece a sua eleição apelou para que a
referida instituição lhe prestasse “esclarecimentos judiciosos e imparciais” para que
ele não se desvirtuasse do “respeito devido à justiça e ao bem público”. (O ORBE,
21/05/1886).
Cabe destacar que nestas e em outras situações, Diégues Junior valeu-se do
conhecimento que por sua vez, dava-lhe autoridade para o desenvolvimento de seus
saberes pedagógicos, decorrentes da sua leitura e experiência, condições por ele
sempre destacadas e amalgamadas na sua atuação, mas também de uma formação
moral que se fazia notar pela sua integridade.
Contudo, há que se destacar que Diégues fazia parte de um seleto grupo de
professores que atuavam no ensino secundário, e no seu caso também na escola
normal, tendo exercido funções políticas e administrativas como a de Diretor da
Instrução Pública, e também a de deputado provincial. Ademais, a sua formação de
bacharel lhe concedia autoridade, assim como outra alternativa de atuação ou fonte
de renda, razão pela qual deve ter mantido seu escritório.
Essas condições apontam para a dualidade e tensão que o exercício da
docência como processo histórico e cultural foi sendo constituído no Brasil. A (não)
moralidade, dos professores primários; as formas de ingresso na docência; os
(des)conhecimentos e/ou (in)capacidades dos professores foram algumas dessas
tensões que foram conformando uma identidade docente para os outros; e àqueles
que estavam ocupando cargos, cujas atribuições, dentre outras, era nomear
professores e fiscalizar o ensino, acabaram por assumir a responsabilidade de
(des)velar em seus escritos estas tensões, pautadas em convicções ou consoante com
articulações que se davam no plano político.
Ousamos abrir um parêntese para registrar alguns excertos ou pérolas
recortadas de um relatório de 1875, do então Diretor da Instrução Pública, Bacharel
Antonio Martins de Miranda na seção referente aos professores primários:

Dizem commummente que a profissão de mestre-eschola é ardua,


penosa e ingrata; que para ensinar meninos de varias indoles, de
caracteres dessemelhantes, requer-se muito trabalho e vocação bem

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1261


pronunciada. Eu penso de modo contrario, e apoio a minha opinião
comparando esta com outras profissões. A eschola está ao abrigo das
humidades do hinverno e dos rigores da canicula, que atribulam ao
agricultor; não está sujeita aos encontrados sopros da atmosphera e
á inconstancia da guerra, nem os riscos de tantas modificações da
industria.
[...] São bem acanhados os conhecimentos que possuem muitos dos
professores da provincia e principalmente os do sexo feminino. Em
geral ignoram o modo de ensinar o pouco que sabem.

Miranda (1875, p. 14) ainda propôs algumas medidas, dentre as quais


destacamos: “a creação de um tribunal administrativo para conhecer das acções ou
omissões dos professores que mal cumprirem os seus deveres” e ainda que fosse
“abnegada a disposição provincial que concede nos professores primarios o direito de
vitalicios em seus cargos”, justificando que “a instrucção elementar não póde esperar
que morra ou se aposente o professor immoral, negligente, ou ignorante”.
Embora o referido bacharel declare nessa mesma seção do relatório que “tem a
instrucção primaria alguns professores dignos de gratidão dos paes de familias e dos
louvores d’esta directoria”, citando os nomes de oito deles, sendo quatro do sexo
feminino e quatro do sexo masculino; registra igualmente os nomes da grande
quantidade de professores que tiraram licenças, totalizando trinta e um, sendo vinte e
um do sexo feminino e quinze do sexo masculino. Aludimos que ao mencionar a lei
que amparava esta concessão, razão do não obstamento por parte da Diretoria da
Instrução Pública, conforme deixa antever Miranda (1875), este estava expressando
sua indignação perante tal problema, ao tempo que cabe indagar se este não seria um
prenúncio do chamado mal-estar docente291 (ESTEVE, 1999) em decorrência dos baixos
salários, do excessivo número de alunos, da infraestrutura escolar inadequada, quando
sabemos que, historicamente, muitas escolas funcionavam nas casas dos professores
ou em espaços alugados sem ventilação ou mobília?
Contudo, alertava Diégues em seu relatório de 1892 que para atender aos fins
da instrução pública seria necessário, além de preparar bons mestres, adotar bons
métodos e prover as escolas de mobília e de material para o ensino das matérias, dar-
lhes remuneração que cobrisse as mais urgentes necessidades e garantias que lhes
dessem prestígio perante a sociedade. (DIÉGUES, 1892, p. 2).
Como educador, Diégues, pensava ser a educação um dos instrumentos
fundamentais da sociedade que poderia contribuir para a formação de uma cultura
civilizada de sujeitos socialmente úteis. Para tanto, pensar a formação do professor e
os saberes que norteariam este ensino tornava-se imprescindível e foi o que ele tentou

291
De acordo com Martinez (2010, p. 1) “o mal-estar docente se expressa no campo da subjetividade,
categoria que nos permite rastrear o processo no nível do singular e como fenômeno coletivo. Permite
desvelar representações, valores e atitudes que se constroem num marco de possibilidades que é
sempre histórico

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1262


expressar em seus discursos, atuação e inúmeras produções, tomando a questão como
motivo para propor, por exemplo, a criação do Instituto dos professores primários, as
Conferências pedagógicas, o Pedagogium, bem como a produção e a circulação da
“Revista do Ensino” entre os professores.
Costa (2011, p 158), dentre tantos outros predicados, destacou em Diégues sua
“inteligência multiforme servida por uma copiosa erudição”. Ao se referir aos insignes
professores alagoanos, contemporâneos de Diégues, complementou que para eles
“não havia especialização intelectual: todos eram oradores na tribuna das conferências
eruditas e nos meetings sugestionadores das multidões; todos eram poetas: todos
eram pelejadores da imprensa” (COSTA, 2011, p. 159)
Considerando-se a trajetória política e educacional do intelectual alagoano
Manoel Balthazar Diegues Junior há que se ressaltar que, além de conformar uma
identidade docente para si e para o(s) outro(s), também empreendeu esforços para
determinar um perfil apropriado à intelectualidade do professor, que para ele não
prescindia de valores morais requerendo, sobretudo, vocação, zelo e abnegação 292. De
todo modo, era um homem do seu tempo, movido pelo ideário de educação e
formação que circulou no século XIX e foi assim que tentamos enxergar a constituição
de sua identidade docente que pensada para si foi forjada por/para outros.
Em seu programa de/para a educação apresentado no Comício de Quitunde e
Getituba (1878), Diégues criticou a ausência de “academias industriais e profissionais”,
razão pela qual segundo ele, os filhos de comerciantes e donos de engenhos acabavam
ingressando nas academias jurídicas, médicas ou matemáticas, apenas para conseguir
um título para o qual não tinham “vocação” (DIÉGUES, 1877, p. 1).
Depreendemos do exposto que, embora estivesse propondo alternativas de
escolas de modo geral, a formação reclamada pela ausência de academias de outras
áreas, bem poderia aplicar-se ao seu caso, cuja vocação era para o magistério.
Em uma das tantas correspondências expedidas aos inspetores escolares, neste
caso ao de S. Luiz do Quitunde, informa-lhe a respeito da nomeação de um aluno-
mestre para reger a cadeira do sexo masculino da citada localidade em função da
dispensa de um cidadão que não era aluno-mestre. Entendemos que publicizar esta
medida vai além da função de comunicar, revelando que a formação adequada e
exigida para atuar como professor primário era uma condição e exigência importante.
Em outras correspondências dirigidas ao presidente do Instituto dos
professores primários, Diégues ao tempo que informa a respeito de uma exposição
escolar a ser realizada na Bahia em janeiro de 1887 para a qual os professores
capitaneados por esta instituição deveriam participar em maior número possível;
recomenda, igualmente, que os professores se conferenciem pelas razões e benefícios
assim explicitados:

292
Para Diégues era indispensável “preparar bons mestres, que o sejam não pelas habilitações, como
ainda e, sobretudo pela vocação, zelo e abnegação” (RELATÒRIO, 1892, p. 2)

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1263


Convindo muito ao progresso da instrucção publica que os snrs. Professores
conferenciem entre si sobre as questões de educação e ensino e procurem-
se ajudar mutuamente no sentido de transplantar para as escolas publicas
desta provincia os methodos avantajados que tanto preconisam os
progressos da pedagogia [...]. (O ORBE, 17/09/1886).

Para Diégues as conferências agregavam os professores, além de contribuir


com a sua formação e a socialização de saberes, razão pela qual ele participou de
tantas. Ademais, as conferências poderiam favorecer a adesão e implementação das
inovações pedagógicas nas escolas publicas.
Para finalizar esta seção, ressaltamos com Avelar (2011, p. 140) que na
narrativa histórica que apresentamos “o indivíduo foi compreendido como um modo
possível de acesso a realidades mais abrangentes, ou apresentado como ilustração
e/ou estudo de caso de um quadro sócio-histórico”, ao que acrescentamos: com
permanências nas mudanças e mudanças em meio às permanências como a reafirmar
com a poetiza Adélia Prado que “Nunca nada está morto.O que não parece vivo,
aduba. O que parece estático, espera. É por meio dessa bela metáfora que
continuamente ou melhor, historicamente se inscreve a possibilidade de
(re)construção de (des)conhecimentos.

Considerações finais

Ao modo de Reinhart Koselleck apud Nóvoa (2014), guiamo-nos na construção


desta narrativa pela necessidade de compreender e partilhar o modo como o passado
está inscrito na nossa experiência atual, dito de outro modo, como o presente de
então foi configurando o presente de agora, do mesmo modo que o futuro se insinua
na história destes e de outros possíveis presentes.
Investimos, igualmente. na perspectiva de que a abordagem biográfica como
possibilidade de discutirmos a identidade docente de Manoel Balthazar Pereira
Diégues Junior (1852-1922) poderia favorecer a discussão de outras que se
apresentaram no século XIX como expressão das tensões que desencadeavam as
discussões relativas à educação e a instrução no período dos oitocentos
A profissionalidade, conforme concebe (COURTOIS, 1996 apud LUDKE & BOING,
2010), referindo-se ao que foi “adquirido pela pessoa como experiência e saber e sua
capacidade de utilizá-lo em uma situação dada, seu modo de cumprir as tarefas”, foi
uma das lentes de leitura que selecionamos para delinear a identidade docente do
intelectual biografado nesta narrativa. Tal escolha esteve ancorada, igualmente na
possibilidade que este constructo favorece - a de poder agregar a história pessoal,
social, técnica e cultural do indivíduo em consonância com a dinâmica das sociedades.
Nessa perspectiva, a discussão da constituição da identidade docente de Diégues foi
realizada de modo a não perder de vista as tensões e dualidades do ser professor no
citado século.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1264


Argumentamos ao longo do texto que os aspectos basilares que foram
configurando a identidade docente deste intelectual alagoano estiveram pautados
e/ou foi expressa na sua atuação movida pela tríade conhecimento, autoridade e
inserção em diversas instituições, exercendo funções, produzindo e compartilhando
saberes e fazeres que foram publicizados.
Nessa perspectiva, as diferentes funções exercidas por Diégues Junior, a
diversidade de conhecimentos que mobilizou como oportunidades várias de
aprendizagens, foram contributivas para a constituição da sua identidade docente em
duas direções complementares: para si e para ou outros, pois assim o perceberam
Craveiro Costa (1927), Vaz Filho (1952) e outros que escreveram sobre a sua face de
professor.
Reafirmamos que o processo de constituição de uma identidade docente
por/para Diégues Junior, uma vez que consideramos tanto as suas ações quanto o
reconhecimento destas por aqueles que o biografaram, deu-se instanciada pela
profissionalidade como mecanismo de aperfeiçoamento docente.
Por fim, destacamos que o sentimento de pertença do referido professor, a
diversidade de conhecimentos e leituras que incorporou ao seu vasto repertório
intelectual, a sua inserção social e o seu espírito inovador, foram algumas dessas
marcas que lhe imputaram uma identidade docente que, aliás, se contrapunha à
forjada nos discursos dos administradores da província das Alagoas, no século XIX, em
relação aos professores da escola primária.
Se para Costa (1927), Diégues Junior bem poderia ser considerado um modelo
cívico pelo que fez pela educação da mocidade alagoana, ousamos afirmar, neste
artigo, que pela sua trajetória de formação e atuação – bem poderia ser considerado
um modelar representante das tensões que contribuíram para a configuração de uma
identidade docente.

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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1267


Arquivo pessoal de Moreira Campos: um lugar de memoria

Elisabete Sampaio Alencar Lima


UFBA)/FAPESB
bete.sa.lima@gmail.com

O arquivo pessoal do escritor cearense José Maria Moreira Campos, doado pela família à Universidade
Federal do Ceará, em 2007, encontra-se depositado na Biblioteca do Centro de Humanidades da
referida Universidade e compõe o Acervo do Escritor Cearense. O levantamento e a identificação de
todos os elementos que o compõem permitiram uma classificação inicial em séries: Documentação
pessoal, Correspondência, Matéria extraída de periódicos, Manuscritos, Estudos para obra, Álbuns,
Objetos diversos. Essa documentação será fonte para que os pesquisadores de diversas áreas possam
analisar a pluralidade existente em um arquivo de escritores. O conjunto desses documentos contribui
para que entendamos melhor a memória individual do titular e o contexto em que viveu. Essas
memórias individuais irão conformar a memória nacional. Objetiva-se, com esta comunicação,
apresentar algumas considerações sobre a importância da preservação de espaço como esses, bem
como mostrar as possibilidades de pesquisa em arquivos pessoais de escritores. Pretende-se analisar
como tal arquivo irá fundir tempos diferentes para melhor contar a história de seu titular, o que
possibilita a volta ao passado para construir o futuro. Tal construção será feita através do olhar único de
cada pesquisador, da nova significação dada por estes aos documentos que compõem esse arquivo
permanente. O arquivo é o local onde estão reunidos passado, presente e futuro, é lá que os
documentos arquivados ganham novos significados, onde se encontra imortalizada a memória dos
titulares.
Palavras-chave: Acervo do Escritor Cearense; Moreira Campos; Memória.

Introdução

Antes do surgimento da escrita, o homem dependia da memória para


transmitir oralmente seu legado, que passava de geração em geração, porém cada
narrador inseria um elemento novo em sua história, enriquecendo-a, transformando-a.
Dessa forma, a memória passou a ser vista como ponte entre passado e presente.
Mesmo após o surgimento da escrita, o homem continuou a depender da memória,
pois antes de escrever ele precisava lembrar-se do que iria registrar.
Para os antigos gregos Mnemósine, uma das deusas primordiais, filha de Urano
(Céu) e de Gaia (Terra) era irmã de Cronos, o tempo que a tudo devora, pois, para ele o
importante era construir o futuro. A única que se lhe opõe é Mnemósine, que
preserva, quando pode, a matéria sobre a qual é rainha – a memória. Esta era
responsável por ligar o passado ao presente, dando aos poetas o poder de voltar ao
passado e transmiti-lo à posteridade. Apenas a memória poderia conceder aos mortais
a imortalidade, uma vez que, sendo sempre lembrados, eles nunca desapareceriam.
Ainda segundo a Mitologia grega, cabe à Mnemósine a decisão sobre o que
será lembrado e o que será esquecido. É buscando não se deixar vencer por Lemosyne,
o esquecimento e por Tânatos, a morte, que surgem os espaços de memória.
Mnemósine gerou com Zeus as nove musas das artes e o templo a elas dedicado era o
Museu. É a Memória, através de suas filhas que garante a permanência, a imortalidade

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1268


e o futuro. Mas a Memória dos fatos pretéritos para que permaneça como um
patamar a passos futuros precisa ser conservada e transmitida. O sentido de lugar de
memória foi ampliado e tanto pode estar no museu, na biblioteca, no arquivo,
sacristias, cartórios etc, como nas paredes de uma gruta, nas tabuinhas de argila,
papiros, pergaminhos, livros, qualquer suporte sobre o qual foi depositada, através de
signos linguísticos, a memória de alguém.
Esses espaços particulares ou públicos possibilitam a construção da memória
coletiva, “embora selecionada segundo uma perspectiva pessoal” (ECO, 2010, p 45),
pois abrigam documentos que nos permitem conhecer uma parte do passado, parte
porque subsiste nesses lugares o que restou da vida de quem os produziu ou reuniu.
Além disso, a preservação da memória irá fornecer subsídios para a formação
da cultura e sua mudança, para Maria Célia Leonel (2012, p. 174),

A atividade cultural depende de algum tipo de acumulação, de


armazenamento – que pode se dar quer seja pela memória dos mais velhos,
quer seja pela memória conservada nos mais variados acervos – arquivos,
museus, pinacotecas, bibliotecas, hemerotecas e também na memória
eletrônica do hipertexto. Tais acervos, por sua vez, podem constituir, como
consequência de sua manipulação, novas memórias, proporcionando, assim,
mudanças na cultura.

Ao longo da vida, acumulamos papéis, objetos, cartas, fotografias, agendas,


diários e outros materiais que, se isolados do conjunto, poderiam não ter sentido. Por
exemplo: coleções de chaveiros, folhas secas dentro de um livro, tampas de vinho...
Compõem o que Philipe Artières (1998, p. 3) chama de “arquivamento do eu” e
responde a uma exigência social, ou intenção autobiográfica. Os documentos de
identificação: certidões, diplomas, registros, documentos de identidade, vida escolar,
fotografias, têm função prática, pois com esses papéis monta-se o curriculum vitae.
Mas, além desse aspecto circunstancial, também é possível extrair deles, segundo
Dardy, citado por Artières (1998, p. 7), “lições do passado, para preparar o futuro, mas,
sobretudo para existir no cotidiano.”
Não é diferente com pessoas que possuem um destaque social, político ou
cultural – músicos, escritores, artistas. Todos formam seus acervos e felizmente alguns
deles encontram-se dispostos a preservar esses documentos e torná-los disponíveis
para estudiosos e pesquisadores. As cartas e fotografias, por exemplo, contam muito
sobre o momento histórico e a vida do titular. Observando sua biblioteca,
acompanhamos seus interesses de leituras, o gosto pessoal e também as tendências e
o desenvolvimento editorial de uma época. Se os livros carregam marcas de leitura do
seu proprietário, tornam-se fonte preciosa para o estudo de suas influências e
procedimentos escriturais. Seus manuscritos e rascunhos nos conduziram pelas sendas
que o escritor percorreu para elaborar o seu texto. A correspondência com familiares e
amigos, pelo seu caráter confessional, desempenha um papel, poderíamos dizer,
autobiográfico e, para esclarecimento de dados importantes de suas obras, no caso

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1269


dos escritores, tais como datas, gênese, personagens. A correspondência de Mário de
Andrade, por exemplo, traz-nos o desenvolvimento das ideias modernistas desde o seu
nascedouro, as dúvidas, as polêmicas, as contradições, as dissidências, a evolução.
Através de suas cartas para os amigos, assimilamos de forma pulsante, viva, aquele
momento revolucionário de nossa vida cultural.
O conjunto desses documentos contribui para que entendamos melhor a
memória individual do titular e o contexto em que viveu. As memórias individuais que
se materializam em fotografias, cartas, recortes de jornais e revistas, documentos
pessoais, diários, anotações etc; os rascunhos de um escritor a revelarem o processo
de sua criação literária, sua biblioteca que não é apenas a indicação de interesses e
gosto pessoal, mas também das tendências e do desenvolvimento editorial de uma
época, tudo isso vem, a nosso ver, contribuir para a conformação da memória
nacional.
A preservação do legado de artistas e escritores é um ato responsável, que tem
levado instituições a investirem na formação de pesquisadores e na aquisição de
técnicas específicas. Famílias de escritores já confiam que o legado cultural herdado
estará seguro e constituirá um verdadeiro celeiro de pesquisas, que permite ver na
obra além do que foi publicado. Citamos aqui algumas instituições que possuem
arquivos pessoais ligados a universidades: o IEB/USP, o AEM/UFMG, o AES/PUCRS e o
AEC/UFC.
Acreditamos ser necessária, aqui, a definição de Arquivos e Acervos para que
possamos entender melhor a sua contribuição para o enriquecimento da cultura.
Segundo Maria da Glória Bordini (2012, p. 119),

Arquivos são considerados como lugares de guarda, com o propósito de


preservar fisicamente os documentos, neles contidos, implicando atividades
de higienização, embalagem, restauro e arquivamento. [...]. Acervos
consistem no conjunto de documentos em papel ou em objetos que
testemunham a vida e a obra de um escritor – já que se fala aqui de
literatura [...] Acervos são mementos, vestígios de um processo criativo, de
condições de produção e recepção, de peculiaridades de vidas humanas
tornadas texto, ameaçados pelo fluir da História e os esquecimentos dele
decorrentes.

Cada acervo contém a sua especificidade e demanda uma forma diferenciada


de tratamento. Mas, para todos, há um procedimento comum: organizar, preservar,
explorar e divulgar o conteúdo existente em todos eles. A respeito da dificuldade
encontrada durante o processo de organização de um acervo, ainda seguindo Maria da
Glória Bordini (2012, p. 121):

Aqueles que custodiam um acervo se defrontam com vários desafios:


entender os motivos de uma ordenação específica, ponderar se outra
organização os faria mais claros enquanto suprimento de dados, contornar
os compreensíveis pudores por trás de uma seleção como dos suportes e,

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1270


principalmente, ampliar a quantidade de documentos para melhor
representar o autor e sua obra.

Apesar das dificuldades encontradas para se organizar um acervo, sabemos que


tais dificuldades serão compensadas quando nos damos conta dos benefícios de um
trabalho como esse, dessa forma, concordamos com Maria Zilda Cury (1995, p. 57-58)
quando diz que:

[a] organização de acervos e a abertura de suas portas a um público mais


amplo, além do mais, indicam uma visão mais democrática das
possibilidades de acesso à cultura e para uma tentativa de retomada da
memória no seu aspecto efetivamente coletivo, comunitário.

Para Bordini (2012, p. 122), o trabalho em um acervo pode vir a esclarecer


dúvidas e possibilita à história literária resolver mal entendidos, em suas palavras:

A mobilidade num acervo significa retirar do inanimado o sentido,


estabelecer relações intra, inter e extradocumentais, que iluminem aspectos
desconhecidos, corrijam as distorções determinadas pelos aparelhos de
poder e desautorizem concepções firmadas sem o apoio de indícios
verificáveis. A história literária se obriga à revisão de pressupostos, de mal
entendidos, de preconceitos, de ausência de dados, e um acervo estudado,
perquirido, posto à prova, faculta, com sua materialidade, meios mais
confiáveis de correção de rumos e de interpretação.

Aqui, trataremos especificamente do Acervo do Escritor Cearense (AEC- UFC),


fundo Moreira Campos – cujo arquivo pessoal foi generosamente doado por sua
família após a sua morte em 1994 – para termos ideia de como os documentos lá
encontrados nos ajudam a entender melhor a sua produção literária.
Antes de iniciarmos a descrição da documentação constante no fundo Moreira
Campos, cabe a definição de arquivo pessoal dada por Heloísa Bellotto (2004, p. 266):

[...] pode-se definir arquivo pessoal como o conjunto de papéis e material


audiovisual ou iconográfico resultante da vida e da obra/atividade de
estadistas, políticos, administradores, líderes de categorias, profissionais,
cientistas, escritores, artistas, etc.
Enfim, pessoas cuja maneira de pensar, agir, atuar e viver possa ter algum
interesse para as pesquisas nas respectivas áreas onde desenvolveram suas
atividades; ou ainda, pessoas detentoras de informações inéditas em seus
documentos que, se divulgadas na comunidade científica e na sociedade
civil, trarão fatos novos para as ciências, a arte e a sociedade.
Os arquivos de escritores são classificados como arquivos permanentes, vale
aqui uma breve explicação sobre tal classificação. De acordo com a teoria da
arquivologia, o caráter dinâmico da produção documental criou o que chamamos de
ciclo vital dos documentos que compreende três idades. A primeira idade, arquivo
corrente, abriga os documentos produzidos durante seu uso funcional e que são

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1271


consultados com frequência pela administração. A segunda idade, arquivo
intermediário, comporta os documentos que já ultrapassaram seu prazo de validade,
mas ainda são armazenados pelo seu produtor por uma questão de precaução. Na
terceira idade, arquivo permanente, encontramos os documentos que não possuem
mais valor administrativo, mas que devem ser preservados pelo seu valor histórico,
probatório. Heloísa Bellotto (2006, p. 23) comenta a função dos arquivos permanentes
e destaca a questão do tempo como elemento responsável por agregar novos valores
aos documentos.
Sendo a função primordial dos arquivos permanentes ou históricos recolher
e tratar documentos públicos, após o cumprimento das razões pelas quais
foram gerados, são os referidos arquivos os responsáveis pela passagem
desses documentos da condição de “arsenal da administração” para a de
“celeiro da história”, na conhecida acepção do consagrado arquivista francês
Charles Braibant. E a chamada teoria das três idades nada mais é que a
sistematização dessa passagem.
A distância entre a administração e a história no que concerne os
documentos é, pois, apenas uma questão de tempo. Isto que dizer que os
arquivos administrativos guardam os documentos produzidos ou recebidos
por cada uma das unidades governamentais durante o exercício de suas
funções, e que vão sendo guardados orgânica e cumulativamente à medida
que se cumprem as finalidades para as quais foram criados. Esses
documentos são, na realidade, os mesmos de que se valerão os
historiadores, posteriormente, para colherem dados referentes ao passado,
já no recinto dos arquivos permanentes.

O Acervo do Escritor Cearense (AEC- UFC) – atualmente composto por quatro


fundos de arquivo, a saber: Moreira Campos, Natércia Campos, Antônio Girão Barroso
e Gilmar de Carvalho – foi criado por iniciativa da Profª Drª Neuma Cavalcante ao
escolher como objeto de pesquisa, para concorrer ao cargo de professora visitante da
Universidade Federal do Ceará (UFC), a organização dos “guardados” de Moreira
Campos. Seu Projeto, “O Arquivo Pessoal de José Maria Moreira Campos: memória de
uma vida criativa”, visava a organização e indexação dos documentos pessoais do
titular. Como resultado, mostraria as possibilidades de pesquisa que tais documentos
oferecem e a necessidade de se incentivar a preservação de acervos particulares.
O AEC-UFC, oficialmente cedido à Universidade Federal do Ceará em 2007, em
sistema de comodato, está na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade, e
vem sendo organizado, explorado e divulgado por estudantes bolsistas e voluntários.
José Maria Moreira Campos nasceu em 6 de janeiro de 1914, em Senador
Pompeu, cidade do interior do Ceará. Seu pai, Francisco Gonçalves Campos, era
funcionário da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (atual DNOCS), trabalho
que o levou a residir em várias cidades nordestinas, até fixar-se em Lavras da
Mangabeira (CE).
Formado em Direito (1946) e em Letras Neolatinas (1967), Moreira Campos
dedicou toda a sua vida ao magistério e à literatura. Embora tenha exercido funções

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1272


públicas em nível estadual e federal, é como professor da Universidade Federal do
Ceará que se destaca, ocupando, na vida universitária, vários cargos, inclusive o de
Reitor, em caráter eventual. Além disso, foi membro da Academia Cearense de Letras,
da Academia de Língua Portuguesa e Integrante do Grupo Literário CLÃ, que surgiu no
início da década de 40 e consolidou o Movimento Modernista do Ceará. Publicou mais
de dez livros de contos – Vidas Marginais, (Edições CLÃ); Portas Fechadas, 1957
(editora Cruzeiro do Sul, premiado pelo Instituto Nacional do Rio de Janeiro); As Vozes
do Morto, 1963 (editora Francisco Alves); O Puxador de Terço, 1969 (editora José
Olympio); Contos escolhidos, 1971, 1974, 1978 e em 1984 (pelas editoras Imprensa
Universitária, Antares/INL, Rio de Janeiro e a última pela Ed. UFC, Fortaleza). Em 1978,
foi lançado Contos, pela Imprensa Universitária, e em 1981 10 Contos Escolhidos
(Brasília, editora Horizonte). Ainda em 1978 foi lançado Os Doze Parafusos (pela
Cultrix) e em 1976, seu único livro de poesia, Momentos (Imprensa Universitária); A
Grande Mosca no Copo de Leite, 1985 (pela Nova Fronteira) e o último, publicado em
vida, Dizem que os cães veem coisas, com duas edições – 1987 (UFC) 1993 (Maltese).
Além disso, teve sua obra traduzida para diversos idiomas Colaborou também no
jornal O Povo, entre os anos de 1987 e 1994, no caderno Fame, com a coluna Porta de
Academia em que escrevia crônicas, notas, comentários.
O fundo Moreira Campos Moreira Campos cobre um período que vai do
nascimento do escritor (1914), até sua morte em 1994 e é constituído de documentos
relativos à sua vida pessoal e a suas atividades como contista, cronista e professor. Os
documentos que compõem esse Fundo são uma fonte relevante para o estudo de sua
vida e obra. Esse conjunto de documentos recebeu um tratamento preliminar do
ponto de vista de sua organização. Assim, o levantamento e a identificação de todos os
elementos que o compõem permitiram uma classificação inicial em séries, a saber:
- Série documentação pessoal – sobre a vida de Moreira Campos: funcionário
público, professor, escritor e cidadão;
- Série Correspondência – com editores, familiares, etc., postais e telegramas;
- Série recortes – de jornais e revistas, de e sobre sua obra e de terceiros; e uma
documentação complementar posterior à morte do escritor;
- Série Manuscritos – documentos datilografados e/ou manuscritos de obras
completas, obras incompletas, narrativas curtas publicadas e/ou inéditas, em estágios
diversos de elaboração;
- Série Estudos para obra – parte integrante da Série Manuscritos, pois também
é composta de documentos datilografados e manuscritos em diferentes estágios de
elaboração, principalmente das fases pré-redacionais e para-redacionais. Compõe-se
de cadernos, cadernetas. Folhas avulsas e bloco de rascunho;
- Série álbuns – organizados pela esposa do titular com documentação sobre a
vida e obra do escritor (cartas, telegramas, matéria extraída de periódico);
- Série objetos diversos – comendas, prêmios, fotografias.. Essa documentação
abre espaço para que os pesquisadores de diversas áreas possam analisar a
pluralidade existente em um arquivo de escritores.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1273


Além de permitir o estudo do processo de criação do escritor, através da
análise dos manuscritos, o Arquivo Pessoal de Moreira Campos permite-nos conhecer
as suas leituras, através das obras que cita ou resenha em suas crônicas e mesmo
através dos poucos livros que nos chegaram de sua vasta biblioteca. Algumas dessas
obras, principalmente as de cunho didático mostram o professor Moreira atento ao
preparo de suas aulas, com observações e contribuições com acréscimo de exemplos
nas questões gramaticais. As marcas de leitura revelam o escritor leitor.
As demais séries abrem os mais diversos caminhos para o conhecimento da
época e do contexto em que viveu o escritor e para a formação de sua personalidade.
O material que compõe o fundo Moreira Campos permite o acesso a
informações relevantes para a pesquisa, informações estas que talvez não chegassem
ao conhecimento do pesquisador, caso não estivessem lá acondicionadas. Exemplo
disso são mudanças ocorridas na composição e no título de algumas obras – As vozes
do morto, anteriormente chamava-se Palavras à meia sombra, Os doze parafusos
intitulado antes As estórias, A grande mosca no copo de leite inicialmente O elevador
de carga – mudanças essas discutidas em algumas correspondências do autor com
seus amigos ou editores ou citadas em jornais da época. Em entrevista ao jornal Diário
do Nordeste (janeiro de 1984), Moreira Campos afirma:

[...] segundo a Nova Fronteira, ele sai agora neste primeiro semestre. O
título inicial é O elevador de carga, totalmente apoético [...]. Mas depois
escrevi um conto a que dei o título meio chamativo A grande mosca no copo
de leite. Pedi à editora que incluísse o conto e mudasse o título, que deverá
ser portanto, este: A grande mosca no copo de leite.

Esses dados são importantes para que possamos entender melhor a trajetória
do texto, desvendar a forma única de sua escritura. É possível ver, através das marcas
deixadas pelo escritor e da leitura da documentação paratextual, como o caminho é
sinuoso e estreito, mas é a beleza desse percurso que encanta o pesquisador e ilumina
a interpretação do texto.
Ressaltamos aqui a importância de cotejar esse material com o texto, tanto
com o inacabado quanto com a obra já publicada, pois sem o conhecimento desse
espólio a análise textual seria realizada apenas com os elementos encontrados na obra
édita, ou seja, os bastidores dessa produção ficariam fora do espetáculo, deixando
encobertas informações relevantes para o estudo do texto.
Em sua autobiografia (1987), encontrada no AEC-UFC, temos a opinião de
Moreira Campos sobre a sua produção literária: “Arranco as minhas estórias da vida,
do cotidiano, das vivências de ontem e de hoje, em flashes, manchas. Fiel sempre ao
conceito de Ciro dos Anjos: ‘A literatura se nutre do real’”. Então, como não partir dos
documentos que nos mostram suas vivências para melhor entender suas obras?
Louis Hay (2007 p. 90), ao falar do trabalho com o manuscrito explica a sua
importância para a literatura,

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1274


Foram os manuscritos que abriram ao pensamento crítico uma nova
dimensão da literatura e, por sua vez, esse pensamento deu uma nova
existência aos testemunhos da escritura que repousavam (no sono, muitas
vezes) aos milhares nas prateleiras das bibliotecas.

Após conhecer a vida do escritor, vemos que o ambiente de trabalho e alguns


fatos que ocorreram em sua vida estão presentes em sua obra. Não estamos aqui
querendo fazer uma crítica autobiográfica, mas é inegável que suas vivências estão
inseridas nos contos. Como cita Nascimento, no jornal O Povo (junho de 1962), sobre a
obra de Moreira Campos.

Tendo conhecido de perto o cangaceiro, o beato, a desconfiança rude e a


sobriedade do sertanejo, o seu código de honra, ao lado daqueles
personagens sempre curiosos do possível mundo civilizado do interior,
representados pelo juiz, o farmacêutico, o escrivão, o vigário, afirma
Moreira Campos que, com seus trinta e poucos anos de capital litorânea,
tem em simbiose o mar e o sertão, podendo, por isso, contar histórias tanto
da cidade como do mundo agreste de sua infância. As fraquezas do homem,
suas paixões, seu heroísmo e suas hipotéticas virtudes, eis o campo de onde
tem extraído esse consagrado contista as suas melhores narrativas.

Ao adentrar o Arquivo Pessoal de Moreira Campos, reescrevemos a história da


cidade em que viveu e de sua vida, revivemos os costumes da época e vivenciamos o
crescimento da cidade de Fortaleza, ou seja, resgatamos a cultura dessa sociedade.
Sobre o deslocamento do material encontrado com os escritores para os
acervos e os novos valores agregados ao material existente nos acervos, Reinaldo
Marques (2011, p. 195), em O que resta nos arquivos literários, tece o seguinte
comentário,

[n]essa passagem, os acervos literários são drasticamente afetados quer em


termos topológicos, da acomodação espacial dos materiais, quer no sentido
nomológico, dos princípios e leis de organização e operação dos arquivos.
Tornam-se objeto de tratamento por parte de saberes daqueles saberes
especializados, tratamento que acaba realçando seu caráter híbrido. A esses
acervos agregam-se novos valores: histórico-cultural, estético, acadêmico,
expositivo, econômico.

Para Raúl Antelo (2011, p. 155), “O arquivamento, talvez mais do que o próprio
arquivo, poderia ser definido então como o processo de preservar imagens de valor
sagrado para uma cultura [...].” Mas como definir o que deve ser preservado ou não?
Como o titular quer ser lembrado? A experiência com a organização de dois arquivos
pessoais, o da escritora cearense Natércia Campos e o de Moreira Campos, seu pai,
permite-nos dizer que cada titular irá buscar a imortalidade de momentos que foram
marcantes em sua trajetória (formatura, premiações, recebimento de comendas,
morte de entes queridos) e de pessoas que foram relevantes na vida pessoal e
profissional, mas independente do que esteja contido em um arquivo literário, jamais

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1275


teremos a totalidade do que foi vivido pelo seu titular. Mesmo que nada fosse retirado
desse conjunto, ainda assim não seríamos capazes de remontar sua vida. Chegamos
então à mesma conclusão de Gabriela Nouzeille (2011, p. 137), em Os restos do
político ou as ruínas do arquivo, sobre o trabalho de Brodsky.

No caso de Brodsky, como para outros fotógrafos da catástrofe (penso aqui,


por exemplo, no fotógrafo e poeta japonês Masao), a resposta à violência da
memória historicizada não é um regresso a uma memória verdadeira, ou
mais “autêntica”; nele, não existe memória “objetiva” anterior à catástrofe,
nem qualquer evento fixo ou lembrança originária. Pelo contrário, o desejo
ou, mais precisamente, a compulsão pelo registro, por construir um arquivo
dos acontecimentos que permearam o terrorismo de estado, assim como o
advento do fim da história anunciado pela racionalidade neoliberal, supõe
em Brodsky o reconhecimento de que todas as formas da inscrição servem
como suplementos necessários à memória, mas sabendo que nunca
conseguirão dar contada totalidade do acontecido.

Além de ter consciência de que não é possível refazer exatamente os passos do


titular de um arquivo, devemos também sempre ter em mente, ao explorar a
documentação de um arquivo pessoal, que vamos reler a documentação contida nesse
arquivo com o olhar de hoje, por mais que pensemos na época em que o titular viveu,
não é possível voltar completamente àquele tempo. Nas palavras de Raúl Antelo
(2011, p. 157): “Um texto achado num arquivo sempre postula um para além da
significação, porque toda frase lida, é literalmente, uma transposição, uma tradução, o
vestígio de um corpo ausente que esteve ali.” Não veremos o que exatamente se
passou, mas teremos o nosso olhar sobre o que se passou. Nas palavras de Walter
Benjamin citadas por Reinaldo Marques (2011, p 197), em O que resta nos arquivos
literários:

[s]ão nessas ruínas e fragmentos, que potencializam esse encontro, na


medida em que “articular historicamente o passado não significa conhece-lo
‘como ele foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo.”

O arquivo é o local onde estão reunidos passado, presente e futuro, é lá que os


documentos arquivados ganham novos significados, onde se encontra imortalizada a
memória dos titulares. Ulpiano Bezerra de Meneses (2007, p. 33), em Os paradoxos da
memória, nos faz refletir sobre a questão do tempo e da memória ao dizer que

[a] contemporaneidade reúne em um tempo sincrônico diversas


temporalidades. Para entender melhor talvez valha a pena uma imagem
esclarecedora, a foto de uma família. O patriarca da família fez noventa
anos, então se reuniu toda a família no mesmo espaço para uma foto. Nela
temos o patriarca, com seus muitos anos, olhar baço, pele corrugada, dorso
encurvado, roupa fora de moda. No outro extremo o bebê que acabou de
completar nove meses, com sua pele de pêssego, seus olhos vivos, sua

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1276


agitação. No intervalo, as diversas idades e suas marcas. Portanto, cada um
traz consigo o que de específico a diversa espessura temporal de suas vidas
assinalou. Todos, porém estão presentes em um mesmo momento
cronológico e, por isso, o ancião e o bebê podem interagir. É nesse tempo
sincrônico com múltiplas temporalidades que opera a memória.

A memória se constrói a cada dia e o olhar de cada pesquisador sobre os


documentos preservados em um arquivo traz sua releitura única, tal pesquisador é
responsável por unir cada tempo desses e dar um novo significado ao passado. Essa
recriação dada por cada pesquisador irá manter viva a memória do escritor, ou seja, a
preservação do seu arquivo irá compartilhar com a Literatura essa função da ânsia de
imortalidade. Maria da Gloria Bordini (2012, p. 120) tece um comentário significativo
sobre a memória ao dizer que “[l]embrar, portanto, não é recolher uma imagem do
passado, mas construí-la. Se, como aponta Ricoeur, ‘o exercício da memória é o seu
uso’ [...].”
É nossa convicção, pois, que o resgate, organização e preservação de Acervos
de escritores contribui para consolidar maior conhecimento da cultura nacional e para
a maioridade da literatura brasileira, que, como falou Antonio Candido, efetiva-se com
memórias, cartas e documentos pessoais. Nas palavras de António Braz de Oliveira
(2007, p. 376),
Todo o trabalho de recolha, preservação e disponibilização dos espólios
literários em posse pública ou privada, ganha sentido na medida em que se
encontra com diferentes grupos de utilizadores [...] que desejam explorar as
múltiplas virtualidades informativas dos “papéis” que neles se conservam.

Um arquivo, cumprindo seu ofício de memória, irá nos possibilitar a volta ao


passado para construir o futuro, aquilo que está por vir, o arquivo é uma promessa,
como afirma Jacques Derrida (2001, p. 50).

Num sentido enigmático que se esclarecerá talvez (talvez, porque ninguém


deve ter certeza aqui, por razões essenciais), a questão do arquivo não é,
repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual
nós disporíamos ou não disporíamos já sobre o tema do passado, um
conceito arquivável do arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão do
futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma
responsabilidade para amanhã.

Os documentos que compõem um arquivo de escritor terão para nós,


pesquisadores, um valor diferente daquele que levou à sua produção, em primeiro
lugar, porque, ao serem considerados como arquivos permanentes, perderam a sua
função administrativa. Em segundo lugar, porque damos a esses documentos um novo
significado. Como cita Walter Moser (1996, p.1), em A reciclagem cultural, voltamos ao
passado “para explorar o futuro”, ou seja, é a partir dos fragmentos desse passado que

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1277


poderemos atribuir um novo significado para os documentos que fazem parte de um
arquivo de escritor. Dessa forma, é através de nosso olhar que iremos reescrever a
memória do titular. Fazemos de rascunhos sem valor, para a sociedade em geral, uma
peça fundamental para o melhor entendimento de obras premiadas, de anotações nas
marginalias dos livros, pistas para entender o processo criativo do escritor, é assim que
reciclamos papéis.
Para Gilberto Telles Sobral (2012, p. 283), “[a] construção da memória de um
povo está diretamente relacionada à preservação daquilo que, ao longo da história,
este povo produziu.” Concordamos com ele e acreditamos ser a preservação de
acervos um ato consciente que ajudará a consolidar, através da memória individual, a
memória coletiva.
Concluímos este trabalho com as palavras de Leonor Arfuch em seu texto A
auto/biografia como (mal de) arquivo (2009, p. 370-371):
O arquivo é então espaço, acumulação. Um espaço singular atravessado
pela temporalidade: constituído no passado se projeta até o porvir. Seu
presente é sempre uma construção, visto que é ativado pela leitura, pelas
atualizações sucessivas, pela forma do olhar, pela descoberta súbita ou pelo
retorno obstinado. [...] o arquivo opera no campo da memória, como aquilo
que se guarda, que resiste ao fluxo do desaparecimento, que por alguma
razão permanece, se estoura, se cultiva, se preserva.

REFERÊNCIAS

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DIÁRIO DO NORDESTE, Fortaleza, 6 jan 1984. Caderno Ler. P. 2. Seção Literatura

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1278


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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1279


Um teatro vivo, livre, colorido, popular: origem, trajetória, gestão cultural, modos de
produção e meios de sustentabilidade do Teatro Popular de Ilhéus

Elson Luis Cunha Rosário


PPGAC-ETUFBA
elsonrosario10@gmail.com

O grupo Teatro Popular de Ilhéus (TPI) surge em 1995, criado pelo ator, diretor e dramaturgo Équio Reis,
um dos fundadores da Sociedade Teatro dos Novos, grupo dissidente da Escola de Teatro da Bahia, que
construiu o Teatro Vila Velha em Salvador. Ao longo da sua existência, foram dezenas de montagens e
intervenções artísticas em bairros, distritos, ruas, espaços culturais, associações de moradores, igrejas,
terreiros de candomblé, assentamentos rurais, casas de farinha, barcaças de cacau em Ilhéus e
municípios da região sul baiana, além de apresentações em teatros nas cidades de Salvador, Rio de
Janeiro, São Paulo, Curitiba e países como Áustria e Itália. Desde o início, as manifestações da cultura
popular sempre estiveram inseridas na tentativa do grupo de retomada da própria identidade cultural e
na prática do teatro popular como mecanismo de transformação social, além da pesquisa sobre o Teatro
Épico de Bertolt Brecht. Nosso projeto de pesquisa cuja pista inicial do seu processo investigativo
aborda a origem, trajetória, gestão cultural, modos de produção e meios de sustentabilidade do grupo
teatral ao longo dos seus dezoito anos de atuação; visa analisar sua importância artística, cultural,
política e social; identificando com o auxílio de referências sobre história do teatro baiano, produção
teatral, teatro de grupo, teatro popular, gestão cultural e do método da cartografia a sua contribuição
para a sociedade produzindo novos conhecimentos para a área das Artes Cênicas.
Palavras-chave: Teatro; Teatro popular de Ilhéus; Cultura popular; História do tetaro.

O grupo Teatro Popular de Ilhéus (TPI) surge em 1995, criado pelo ator, diretor
e dramaturgo Équio Reis, um dos fundadores da Sociedade Teatro dos Novos, grupo
dissidente da Escola de Teatro da Bahia, que construiu o Teatro Vila Velha em
Salvador. A primeira formação do TPI foi composta pelos atores: Romualdo Lisboa,
Tânia Barbosa, Fabio Silva, Franklin Costa, Tereza Damásio, Adelson Costa e Val Kakau.
A estreia do grupo é com a encenação de A estória engraçada e singela de Fuscão – o
quase capão - e o Cabo Eleitoral, do próprio Équio Reis. Ao longo da sua existência,
foram dezenas de montagens e intervenções artísticas em bairros, distritos, ruas,
espaços culturais, associações de moradores, igrejas, terreiros de candomblé,
assentamentos rurais, casas de farinha, barcaças de cacau em Ilhéus e em teatros nas
cidades de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e países como Áustria e Itália.
Desde o início as manifestações da cultura popular sempre estiveram inseridas na
tentativa do grupo de retomada da própria identidade cultural e na prática do teatro
popular como mecanismo de transformação e mobilização social, além da pesquisa
sobre o Teatro Épico de Bertolt Brecht. Em 2001, Équio Reis morre e Romualdo Lisboa
assume a direção do grupo. Após a realização do projeto “Teatro de Grupo: estratégias
de sobrevivência”, em 2008, com participação de grupos de São Paulo, Belo Horizonte,
Rio de Janeiro, Salvador e Recife, na Casa dos Artistas (antiga sede do grupo), o Teatro
Popular de Ilhéus passa a ter seu trabalho conhecido e reconhecido pela crítica teatral

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1280


em âmbito nacional, o que consolidou seu trabalho e proporcionou convites feitos
para apresentações em diversos encontros e festivais de teatro pelo país, a exemplo
da VI Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo, do FRINGE, do FILTE - Bahia e do
Festival de Teatro Cidade do Rio de Janeiro. Por não se limitar apenas aos palcos,
levando suas montagens também às ruas, é difícil contabilizar o público que já
participou de tais atividades. No ano de 2012, mais de 10 mil pessoas assistiram aos
seus espetáculos, mas pode-se estimar que desde 1995, cerca de 200 mil espectadores
tiveram contato com o grupo. O Teatro Popular de Ilhéus também não se limita só a
fazer teatro. Como busca a transformação e mobilização social através da cultura,
organiza cursos e oficinas de várias modalidades artísticas. Em 2011, o grupo teatral foi
responsável 52% dos eventos culturais do município de Ilhéus, superando a soma de
todas as outras realizações na área de entidades públicas e/ou privadas. Querendo
sempre provocar o público, os artistas estabelecem um dialogo constante com seus
espectadores promovendo e participando de debates, seminários e encontros. Busca
ainda a convergência das artes e a união com novos grupos residentes no seu espaço
cultural trabalhando em conjunto com o grupo infanto-juvenil Cia. Boi da Cara Preta, o
Grupo Teatro/Circo Maktub, a A-RRISCA Cia. de Dança e o grupo musical Improviso
Nordestino. Em abril de 2013 inaugura sua nova sede, a Tenda do Teatro Popular de
Ilhéus, um centro cultural com capacidade para 500 espectadores, que recebe verba
de manutenção através de convênio com a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
Investigando sua gestão cultural, modos de produção e meios de sustentabilidade,
iremos conhecer a sua história e determinar através da construção de processo de
pesquisa, a importância e contribuição do grupo ilheense para a sociedade e fazer
teatral baiano e, por extensão, brasileiro. A produção de novos conhecimentos para a
área das Artes Cênicas a partir do estudo e investigação da produção teatral do TPI,
que possui trajetória brilhante e bem sucedida na história contemporânea do teatro
baiano, será o objetivo principal a ser atingido com a realização dessa dissertação de
mestrado. A proposta de pesquisa aqui apresentada adéqua-se a linha II, Poética e
Processos de Encenação, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal da Bahia (PPGAC-UFBA) por representar uma tendência
contemporânea das artes do espetáculo, a qual contempla os conceitos de “teatro de
grupo” e “teatro popular”. Segundo Marcio Meirelles:

A importância do trabalho de Romualdo e do Teatro Popular de Ilhéus não


está somente no que fazem no palco. Como quem faz teatro de fato, o jeito
como eles encaram seu ofício, para além da dramaturgia ou da cena, e a
reverberação do que fazem importa tanto ou mais do que elas. O que fazem é
um trabalho na, e para a cidade – a polis –, portanto, um trabalho político.
Eles interferem na vida local de várias formas: com projetos que extrapolam
as paredes da Casa dos Artistas, indo para distritos mais afastados do centro;
trabalhando em rede com artistas de outros municípios, estados e países; ou
em atos públicos que marcam suas posições em relação ao executivo e ao
legislativo locais. (LISBOA, 2011)

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1281


Nossos estudos sobre estes dois conceitos à luz da realidade da cena baiana e
brasileira irão estimular o debate e aprofundar as formulações teóricas a respeito
destas modalidades teatrais. Apontamos como aspecto relevante da pesquisa a
investigação da gestão cultural, modos de produção e meios de sustentabilidade do
grupo, ao longo dos anos de atuação, o que ainda pode se transformar em
oportunidade que permitirá o aprofundamento e ampliação do campo de estudos
sobre a produção teatral brasileira como propõe a pesquisadora e professora doutora
Deolinda Vilhena:
Todo projeto teatral repousa, necessariamente, sobre a organização de uma
infraestrutura, e não nos referimos apenas ao teatro profissional, mesmo o
teatro amador dela necessita. Entretanto, a produção é um dos aspectos
menos estudados nos cursos de Artes Cênicas no Brasil, onde a ausência de
uma política cultural acaba por agravar a situação da Produção Teatral. Torna-
se urgente um estudo sistemático dos métodos possíveis, bem como o
conhecimento das regrais sociais, fiscais, econômicas e culturais, que
permitam aos que trabalham em teatro, fazer escolhas com maior clareza.
(FRANÇA VILHENA, 2007)

O produtor e gestor cultural mineiro Rômulo Avelar diz que:

A conquista da estabilidade para um grupo ou entidade cultural é sempre um


desafio e que existe, no universo leigo, certa ilusão de que todas as iniciativas
na área podem ser auto-sustentáveis, porém esse mito da auto-
sustentabilidade não passa de utopia para maior parte das entidades culturais
brasileiras (AVELAR, 2010).

Ao contrário dessa maioria o TPI utiliza ferramentas de administração aplicadas


a sua gestão cultural como o planejamento e a logística imprimindo qualidade técnica
e artística aos seus espetáculos e atividades, porém ainda não conquistou essa
almejada sustentabilidade. Com a realização da pesquisa vamos encontrar pistas que
nos darão respostas ou mesmo soluções para a melhor gestão cultural e estabilidade
do grupo teatral. O estudo da trajetória e ações do TPI cumpre um papel importante
para documentação e reflexão crítica sobre as práticas artísticas grupais
contemporâneas, contribui para compreendermos a evolução do teatro feito na Bahia,
além de tornar visível a missão e princípios desses artistas ilheenses que fazem um
teatro vivo, livre, colorido e popular.

Referências
AVELAR, Rômulo. O Avesso da Cena: Notas sobre Produção e Gestão Cultural.
Belo Horizonte: Duo Editorial, 2010.
FRANÇA DE VILHENA, Deolinda Catarina. Produção Teatral, da prática à
Teoria. Projeto de pesquisa para realização de estágio pós-doutoral. São Paulo. 2007.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1282


LISBOA, Romualdo. Teodorico Majestade: as últimas horas de um prefeito; O Inspetor
Geral: sai o prefeito, entra o vice. Ilhéus, BA: Mondrongo. 2011.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1283


Memórias de um intelectual revolucionário (fragmentos de uma autobiografia)

Esmeralda Guimarães Meira


UNEB/Campus VI) /GEILC/MP/UESB; GPCSL/CAPES/UNEB; GPCLB/UNEB
esmelmeira@yahoo.com.br
José Rubens Mascarenhas de Almeida
PPGMLS/UESB; GEILC/MP/UESB; NEILS
joserubensmascarenhas@yahoo.com.br

Por considerar relevante o permanente diálogo entre o presente e um passado que ficou no âmbito do
esquecimento que este artigo se propõe a descortinar um dos vários aspectos que alicerçam a memória
e a história de Camillo de Jesus Lima (1912-1975), personalidade marcante da Bahia de meados do
século XX, em especial, do Sudoeste baiano. Trata-se da participação desse escritor como intelectual
ligado a atividades literárias, políticas e culturais na Bahia durante as décadas de 40 a 60,
correspondendo ao que Gramsci classificou como “intelectual orgânico”. Destacam-se, em documentos
de seu acervo pessoal – textos literários, jornalísticos e cartas – aspectos históricos da memória
autobiográfica e da memória social que justificam a sua inscrição como escritor ligado às causas sociais
de seu tempo e lugar, posicionando-se em defesa da classe trabalhadora. Trabalha-se, neste texto, com
a possibilidade dialógica entre vida e obra do autor, quando, ao explorar o movimento historiográfico
em seus arquivos, percebe-se a intrínseca relação entre ficção e realidade. Uma justifica e comprova a
existência da outra, em uma conjunção dialética. Compõem o corpus deste estudo poemas, crônicas e
correspondência que corroboram com a proposição de ser Camillo de Jesus Lima um poeta social
comprometido com a causa dos marginalizados.
Palavras-chave: Memóriaintelectual; Memória; Camilo de Jesus Lima; Atividades literárias.

Introdução
Camillo canta pelos oprimidos e seu
universo é povoado de famintos, de
prostitutas, de retirantes, de
revolucionários.
Zélia Saldanha (1987)

O arquivo pessoal d e Camillo de Jesus Lima se arquiteta em


extensão qualitativa e quantitativa, abrindo possibilidades para o
diálogo entre o tempo presente e a experiência de um tempo vivido. As
conjecturas desse intelectual sobre história, arte, política e literatura
ali registradas – posicionando-se, muitas vezes, como porta voz de
grupos colocados à margem por uma sociedade burguesa – seduz o olhar
pesquisador e instiga o desejo de entender de que lugar fala esse ator
social.
No arquivo desse escritor baiano abre -se uma janela de onde se
podem observar fragmentos de sua autobiografia, pois não há intenção
nesse espaço aqui circunscrito de abordar a complexidade que constitui
o seu todo. Alguns elementos encontrados, tanto em sua produção

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1284


intelectual, em correspondência, c omo em sua fortuna crítica indiciam
vínculos do escritor com quadros sociais 293 de ordem cultural ou política
do período em que ele trabalhou e produziu seus textos. Conheceram -
no as terras da ressaca, o alto sertão, fez -se admirado por toda a Bahia,
chegando a âmbito nacional, o que lhe atribui importância como
intelectual de seu tempo.
A relação entre a produção literária e a prática político -social de
Camillo de Jesus Lima respalda, hoje, a ideia de ser ele sujeito e objeto
desse discurso. Isto dito para justificar que, em alguns momentos nessa
exposição, toma-se da sua condição autobiográfica, dos registros
escritos sob o comando do próprio escritor que, de certa forma, ao
traçar uma trajetória pessoal também retrata a memória coletiva, uma
vez que, como sujeito não só se representa, mas ao se representar
apresenta uma coletividade, torna -se porta-voz dos que viviam reféns
de uma sociedade hegemônica, da qual a memória oficial exclui os
menos favorecidos, as minorias sociais, os marginalizados.
Já em outros registros vê-se revelada uma visão externa ao
sujeito, o seu entorno, seu contexto histórico. Apresenta -se, nessa
perspectiva, a visão do outro sobre o escritor; contudo, sempre
considerando a relação dialética com a memória interior, ou seja,
embora se valha de outros olhares que não o do próprio autor sobre si
mesmo, em ambas as posições, vê -se refletida a totalidade contextual
em que este homem histórico viveu, produziu e publicou as suas ideias.
Propõe-se, portanto, compreender o intelectual Camillo d e Jesus Lima
como ser histórico em sua totalidade , conceito muito bem explorado
por Karel Kosik (1976). As suas ações pessoais fazem parte do conjunto
social em que esteve inserido como literato, jornalista, professor,
militante político, pai, tudo isto vi sto numa dimensão dialética,
aspectos materializados em sua autobiografia.
Experiências, conceitos, ideais e sentimentos que, ainda hoje,
estão sob a guarda do arquivo pessoal desse escritor baiano, podem
ganhar dimensões que venham ampliar a ideia que se tem dele como o
“poeta Camillo de Jesus Lima”, conforme pregou a memória oficial. Para
além do lírico, está o militante político, o homem histórico ligado a uma
realidade material, circunstanciada em prosas e versos sociais que
vieram a público, contudo, m uito do que poderia contribuir como
intelectual de seu tempo ainda está no ineditismo ou, por que não
dizer, são memórias silenciadas, histórias arquivadas em sua

293
Conceito preconizado por Halbwachs (2006), quando explica a permanência da memória social a
partir de convivências coletivas em grupos sociais, em atividades comuns aos seus membros.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1285


autobiografia, permeadas, algumas vezes pela revolta, outras pela
utopia, nuanças que precisa m ser cuidadosamente abordadas.
Os trabalhos com arquivos ganham sentido quando, os
documentos que deles fazem parte, recolhidos e preservados por seus
arcontes 294, deixam o seu estado físico de papel ou de outro suporte que
os materializem para ganharem a multiplicidade informativa neles
contida. Pode-se dizer que este momento de reencontro com a cultura,
com a gênese, com a história, promovido pelo olhar investigativo do
pesquisador, é o processo dialético da memória, impulsionado pela
rememoração, conceito este que, segundo Ricoeur (2007) – e com bases
nos pressupostos aristotélicos sobre a revocação – é a busca consciente
por lembranças. O que leva à confirmação de que a realidade objetiva e
sensitiva do presente remete a uma busca ao passado.
O conceito de arquivo, na contemporaneidade, desconstrói, em
termos, a ideia que se tinha dele no inicio da modernidade, período em
que se buscava romper com as coisas do passado, distanciando -as do
presente, trancando -as em armários e bibliotecas, como se em
sepulturas e cemitérios. Na contemporaneidade cria -se quase que uma
antítese desse espaço arquivístico, uma vez que se opta pelo processo
dialógico entre passado e presente, ou seja, a memória revitaliza aqui
histórias ali adormecidas.
Este espólio pesquisado, e m especial, surpreende a cada página
amarelada. As marcas de rasuras de seu autor são reflexos das
condições difíceis em que se deu a sua produção intelectual, utilizando -
se dos mais diversos suportes para a escrita, o que se confirma em
cartas enviadas a amigos solicitando contribuições de maços de papel.
Escassez essa que não foi maior que o seu compromisso que tinha com o
ato de escrever, coisa que fazia compulsivamente, motivado pelas
causas a que se propôs defender.
Camillo de Jesus Lima esteve por mu itos anos como crítico
literário de alguns jornais. Em Salvador foi critico de rodapé do jornal A
tarde, em Vitória da Conquista escreveu e foi redator chefe do jornal O
Combate, colaborou com outros periódicos como O Malho, O
Conquistense, O Momento, Jo rnal da Bahia e com algumas revistas,
como é o caso da Leitura, do Rio de Janeiro. A sua produção intelectual
foi objeto de análise de muitos leitores daquele período, principalmente
quando trazia a sua colaboração aos conceitos que se formavam sobre
arte, cultura, literatura e política. Afinal, em meados do século XX, a
figura do intelectual ganhava espaço no meio jornalístico e era através
desse veículo de comunicação que as tendências políticas e literárias se

294
Terminologia usada por Derrida (2001) para identificar quem guarda ou pesquisa arquivos

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1286


tornavam conhecidas. Em uma entrevista, conc edida ao jornal 7 dias,
matéria intitulada “Inquérito sobre a crise da poesia” Camillo
argumenta:
Através dos tempos a arte tem sido um reflexo do
desenvolvimento econômico, histórico e social da
humanidade. Na épo ca em que v ivemos, a luta social
chega ao auge, a po nto de dividir o mundo em dois
campos opostos: capitalismo e socialismo. Sendo a
poesia, como todas as artes, um reflexo do
desenvolvimento humano, não se pode manter
indiferente às lutas que se desenrolam no mundo
moderno, lutas que atingem pro fundamente a
sensibilidade apurada dos poetas. [...] A poesia não pode
fugir à realidade de seu tempo, porque, se o fizer, não
será capaz de influir sobre ela, o poeta de hoje haverá
de ser um participante das transformações por que passa
a humanidade, nes ta hora convulsionada e definitiva em
que um sistema social entra em franca agonia (LIMA, In:
7 Dias, 1957).

Há no fragmento acima uma formulação consciente acerca do


dever do intelectual que faz parte de uma organização, seja ela cultural,
histórica, soci al e por isso sempre ideológica, atestando o que Gramsci
(1972) denominou de “intelectual orgânico”. E, conforme bem destaca o
poeta, a literatura não pode fugir da realidade de seu tempo,
enfatizando, assim, a importância que cada intelectual adquire no s eu
trabalho de conscientizar o mundo, sem a ilusão de homogeneidades.
Pelo contrário, ele está certo de que no mundo haverá sempre campos
antagônicos, e em cada um desses campos haverá sempre intelectuais a
serviço de uma ordem, seja a serviço da burguesia ou do proletariado.
No primeiro caso, como afirma Gramsci, tem -se o intelectual
empresarial, ou seja, aquele que faz parte de uma organização em prol
da produção/reprodução econômica. No tocante ao segundo grupo, tem -
se a adesão dos intelectuais que, cons cientemente, fazem uso de suas
atividades (culturais, educativas, literárias) em prol de uma causa
social, coloca-se a serviço de uma parcela da sociedade que não está
representada no processo de produção/reprodução, ou seja, estes
intelectuais possuem um vínculo ideológico com organizações que não
desejam servir ao poder hegemônico da sociedade burguesa. E na
mesma medida que os intelectuais empresariais servem a sua
organização, os intelectuais independentes, artistas, educadores, e,
sobretudo os literato s, exercem a sua função no organismo cultural e
social da sociedade, fazendo da sua arte uma missão, conforme expôs

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1287


Sevcenko (2003) ao estudar a participação de dois grandes romancistas
brasileiros, Lima Barreto e Euclides da Cunha, em Literatura como
missão. É importante ainda esclarecer que nem todos os grupos de
intelectuais que se autodenominaram independentes estiveram
vinculados às ideias utópicas dos idealistas, conforme destacou em nota
Serafim Ferreira, tradutor de A formação dos intelectuais (GRAMSCI,
1972, p.23).
O artista, no labirinto de sua criação, transita entre o real e o
imaginário, entre o factual e o ficcional e vai deixando inscrições dentro
e fora de seus textos. Por isso defende -se o reconhecimento desse
criador em dimensões que não se prendem apenas ao texto, muito
menos poderia a sua leitura acontecer de forma fragmentada,
descontextualizada sócio, histórica ou culturalmente. Diz -se do arquivo
documental de um autor tudo que se liga a ele, conforme afirma
Oliveira (2007, p.375): “ Desde o seu percurso biográfico quer como trânsito
individual balizado pelas humaníssimas datas de nascimento e morte, quer
como (com) vivências geracional e compromissos com a história,
circunstanciado este pelo tempo em que a obra e a intervenção cívica do
autor se inscreveram”.
Quando se propõe um trabalho com arquivos, é relevante destacar
o tratamento que se deve ter com o material físico e, principalmente,
com matérias históricas, políticas e sociais, que recaem sob a
responsabilidade do pesquisador ou ar quivista. Segundo Ricoeur (2007,
p. 177) “o arquivo não é apenas um lugar físico, espacial, é também um
lugar social”, por isso de suas fontes pode se valer o historiador, o
filólogo, o geneticista, o biógrafo, o crítico literário. Confirma-se,
portanto, que embora tenha por finalidade guardar registros do
passado, o arquivo não é estático; nele está contida a história como
cerne se sua constituição. Ele é dinâmico e conta com o instante
presente para movimentar a realidade histórica, reconfigurando o
passado. E conforme aponta Le Goff (2003, p.10): “O fato histórico não
é um objeto dado e acabado, pois resulta da construção do historiador,
também se faz hoje a crítica à noção de documento, que não é um
material bruto, objetivo e inocente, mas que exprime o poder da
sociedade do passado sobre a memória e o futuro”.
A história, embora localizada no tempo e no espaço, com seus
traços e registros, com suas marcas sociais no passado, se reconstrói no
presente, toma novas dimensões, não como abstração ou mito, mas
correspondendo às exigências da realidade posta, ao avaliar relações
outrora não autorizadas, não permitidas pela própria sociedade e seus
poderes ideológicos. Relações estas, revistas, no momento em que se
atualiza.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1288


Se o fato histórico não é algo acaba do, como apresenta Le Goff
(2003), a literatura também não o é, ela não está presa em si mesma,
pelo contrário, o texto literário é um link em que se pode abrir uma
diversidade de janelas, basta que, sob o domínio de seu leitor ou
pesquisador, sejam -lhe atribuídos os mais diversos valores, observadas
suas filigranas e explorado o contorno de onde fala o seu autor. Este,
jamais estaria neutro diante de sua própria obra. Mészáros (2004)
quando trata da pseudoneutralidade, afirma que nem um dicionário de
sinônimos é imparcial ou neutro.
Os espólios dos escritores contemporâneos representam grande
parte da herança cultural e histórica, preservadas na memória dos
arquivos. Perpassam pelas linhas do tempo uma diversidade de saberes,
de testemunhos, de práticas, de histórias que se cruzam e dialogam,
formando uma complexa rede de informação sobre a coletividade. Visto,
portanto, pelo viés da história e da memória, a arquivística literária é
um espaço que representa um patrimônio que circula do particular ao
público, do individual ao coletivo, são memórias autobiográficas e
memórias coletivas, conforme conceitos utilizados por Maurice
Halbwachs (2006), compreendidos nesta leitura como memórias
imbricadas, por se considerar o processo dialético que movimenta as
relações entre as memórias, assim como entre o presente e o passado.
Halbwachs foi o primeiro pesquisador que atribuiu à memória um
sentido social 295. Desde o seu primeiro livro, Les cadres sociaux de la
memoire, lançado em 1925, busca definir duas formas elementar es de
entendimento da memória social, ratificando e ampliando os próprios
conceitos em A Memoria Coletiva, publicado postumamente pela
primeira vez, em 1950. Fala -se de uma memória coletiva e de uma
memória individual que, embora se apresentem imbricadas n o processo
de revocação e construção do passado no presente, elas são definidas
de formas distintas pelo autor. Para ele toda a memória é coletiva, até a
memória individual depende das relações que se tem com os grupos aos
quais pertenceu e com os quais se relacionou. Afirma o autor que
ninguém lembra sozinho, que todo processo mnemônico é uma
reconstrução de experiências sociais (HALBWACHS, 2006).
O que fica patente nas leituras que se faz de Halbwachs é que a
sua preocupação sobre a memória social centra -se na apresentação das
memórias a partir dos grupos, cujas permanências se dão coletivamente
sob uma forma aparentemente harmoniosa. Os seus estudos não se
295
As influências de Maurice Halbwachs vêm de dois outros franceses, o filósofo Henri Bergson e o
sociólogo Émile Durkheim. Os seus estudos refutaram alguns princípios do primeiro e propuseram uma
continuidade ao estruturalismo durkheimiano, porém, com uma nova roupagem.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1289


dispõe a trazer à discussão os possíveis confrontos entre as memórias
de grupos ou dentro dos mesmo s grupos, geralmente permeadas pelas
relações de poder e de dominação, forças que deflagram a continuidade
da hegemonia burguesa. Seu propósito é localizar, enquadrar as
memórias no contexto social, sem questionar explicitamente as relações
dialético-histórico-sociais, próprias do ser humano. Ele prefere dar às
memórias um tratamento mais estrutural. Adverte -se, porém, que por
parte desse autor, há o reconhecimento de predominâncias de uma
memória sobre outras, mas não é esse o fato que chama a atenção em
sua obra.
O valor social da memória passa, a partir de então, a ser ponto de
pauta entre os estudos das ciências sociais, sendo reconhecido tanto
por contemporâneos de Halbwachs, como posteriormente a ele, por
outros autores, quase sempre remontando a tese inicial, mas com
nuances e acréscimos significativos. Para além dele, muitos outros
vieram acrescentar, principalmente no que diz respeito à condição
social das memórias que estiveram silenciadas, sejam as memórias
autobiográficas, memórias subterrâneas, m emórias populares. Dessa
forma, as memórias coletivas passam a depender de práticas políticas e
culturais que as tornem presentes e atualizadas, visto que, muito da
memória social ainda permanece silenciado, regido por uma ordem
hegemônica em que o esqueci mento ganha lugar enfático em
contrapartida com a lembrança.
Essa antonímia lembrança/esquecimento ou memória e
esquecimento está, segundo Ricoeur (2007), diretamente ligada aos
apagamentos de rastros, quer pela condição interna ao indivíduo ou
externa a ele, ou seja, o sujeito sofre uma afecção por um trauma
psicológico ou por uma coação política. Em ambos os casos há uma ação
imposta pela sociedade representada pela hegemonia de poder.
Já as memórias coletivas materializadas, seja através de
monumentos, narrativas ou comemorações, recebem o direito
autorizado para manifestarem -se como representantes legais da
sociedade e da cultura, o que Nora (1993) chamou de lugares de
memória em detrimento de tantos outros elementos que permanecem
no reino do esquecim ento, determinando, desse modo, a manutenção e
o controle das memórias e das histórias por alguns grupos sociais.
Dessa manutenção e controle da memória se destaca a intrínseca
relação entre memória e ideologia, entendendo que, do que se esquece
não se faz por acaso, assim como do que se lembra. Se existe uma força
que mobiliza o poder, essa força pode se denominar “ideologia”, vista
conforme a concepção marxiana, expressão de uma “falsa consciência”
(MARX & ENGELS, 1998). E em defesa da intrínseca relação entre

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1290


ideologia e poder de classes dominantes, Marx e Engels (1998, p. 48)
afirmam que:

Os pensamentos da classe dominante são também, em


todas as épocas, os pensamentos dominantes; em outras
palavras, a classe que é o poder material dominante
numa determinada sociedade é também o poder
espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios da
produção material dispõe também dos meios de
produção intelectual, de tal modo que o pensamento
daqueles aos quais são negados os meios de produção
intelectual está su bm etido também à classe dominante.

Mantem-se, portanto, em confronto na sociedade capitalista o


grupo que representa a sua continuidade através das memórias
coletivas colocadas em evidências, por um lado, mas não se pode deixar
de reconhecer, ainda que so b o fio da navalha, a permanência de grupos
de resistência, advindos dos explorados pela força de
produção/reprodução do capital. Da relação conflituosa entre esses
grupos, entre hegemonia e contra hegemonia, firmam -se os grupos de
resistência ao apagament o de memórias coletivas, construídos nos mais
variados campos em que os indivíduos não se veem representados pela
memória oficial.
Visto por esse viés, constrói -se a partir da práxis uma contra
ideologia à qual os sujeitos se filiam em uma rede de pertenc imento a
este e não a aquele grupo social, o que caracteriza e fortalece a
sociedade de classes, segundo o ponto de vista marxista desenvolvido
por Gramsci (1995). Corrobora com essa opinião Almeida (1999) em sua
pesquisa sobre o “processo de construção da contra-hegemonia do
exército zapatista de libertação nacional” e em defesa da publicização
das memórias dos subalternos ressalta:

Para que um ator social se insurja contra uma


determinada ordem, cremos ser necessária a construção
lógica e coerente de pe nsar a realidade sob o prisma de
seu grupo social e que aponte, a partir das condições
objetivas em que vivem, a possibilidade de reversão do
quadro. Deve, de algum modo, articular à ação política
o discurso (mesmo porque to da ideologia se materializa,
se corporifica), que tenha expressão própria e que se
contrapo nha à ideo logia hegemônica: uma contra -
hegemonia construída a partir da ótica do dominado . E,
como toda construção ideológica, deve representar a
materialidade das relações sociais, ou seja, a for ma de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1291


pensar, de movimentar, de agir de um determinado ator
em seu tempo histórico. Assim, para que uma contra -
hegemonia se co nsolide, deve representar a
materialidade das relações sociais ao reverso.
(ALMEIDA, 1999, p.131)

Atentos a esses valores e a que stões que envolvem memórias de


resistentes (ALMEIDA, 1999), memórias esquecidas (RICOEUR, 2007) ou
memórias subterrâneas (POLLAK, 1989), que os nós da pesquisa sobre a
trajetória intelectual de Camillo de Jesus Lima vão se desatando.
Percorrem-se caminhos que não se caracterizam nunca como rua de mão
única, mas sim, como nuanças e descaminhos, com idas e vindas, nos
quais algumas histórias de personagens e grupos marginalizados vêm à
tona, através das memórias literárias e autobiográficas desse ator
social, homem de seu tempo, que contribuiu, significativamente, com a
sua geração.
A forma com que Camillo de Jesus Lima falava sobre as pessoas e
suas realidades sempre chamou a atenção dos que lhe conheceram, seja
na convivência pessoal ou através de sua obra, em relatos de sua
história individual e das tantas histórias coletivas que absorveu.
Algumas notícias veicularam em torno da sua militância político -
partidária, destacando sua vinculação ao Partido Comunista e sua
relação com Carlos Prestes. Em “A missão d o artista é lutar pela
democracia e o progresso – um escritor a serviço do partido de Prestes”
(O Momento, 1945), Camillo de Jesus Lima afirma a necessidade de o
escritor se posicionar ao lado dos proletários na luta pelo respeito ao
trabalho digno, pelo r espeito aos direitos humanos.
Em visita ao seu acervo literário, qualquer leitor curioso
identificará a ligação do escritor baiano com as demandas sociais que
assolavam as terras brasileiras, em especial, o pedaço da Bahia onde
morou e materializou a sua obra. Destacam-se em Cantigas da tarde
nevoenta (1955) alguns poemas entre muitos textos que poderiam
ilustrar o lugar de onde fala este poeta ao se colocar em defesa de uma
classe oprimida, contra uma sociedade excludente. “Bate, Cesar!”, “A
canção da guerrilheira”, “As vinhas da ira”, “Entrevista com Garcia
Lorca”, “A um parnasiano” são alguns deles.

Nesses poemas ouvem -se vozes que ecoam em nome dos


infelizes, dos abandonados, dos guerrilheiros e das
guerrilheiras, dos que ficaram à margem numa sociedad e
cheia de desigualdade social. É a voz do poeta que não
se cala diante da força dos césares e dos cárceres; é a

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1292


voz da guerrilheira que alça ao ombro o fuzil em nome
da luta social; é uma homenagem aos guerrilheiros
mortos e aos poetas, ante a crueldade d o poder; é a voz
da revolta e da esperança, na releitura de “As vinhas da
ira”; é a voz dos escravos nas reminiscências do poeta
(MEIRA, 2012 p. 115 -1 16).

O canto destemido que ecoa em seus versos assume a condição de


porta-voz dos marginalizados, ao mesmo tempo em que também se
coloca a serviço de causas abraçadas pelo socialismo na época em que o
Partido Comunista ganha adesão entre os intelectuais brasileiros,
sobretudo de escritores. Destacam -se nesse meio Graciliano Ramos,
Jorge Amado e Camillo de Jesu s Lima, só para citar os que estiveram
mais próximos desse último. Foi ao lado desses dois ícones da literatura
brasileira que o poeta baiano – intelectual que se despontava pelos
trabalhos realizados no Sudoeste da Bahia e na sua capital – recebeu de
Carlos Prestes uma espécie de carnet de filiação ao partido e, a partir
de então, declara que a sua literatura terá uma missão social. E cantou
o poeta:

Não tenho, como tu, a alma de grego.


Tenho a alma de um bárbaro indômito
Crestada de sol, batida das intem péries.

Não posso levar minhas emoções para casa, como tu fazes.


Porque eu não resistiria trazer dentro de mim essa tormenta
E explo diria, com certeza, se guardasse dentro de mim esse
vulcão imenso.

Minha poesia vem como o anátema dos pro fetas:


Indômita, louca, sem peias, desatinada.
Sobe com a fumaça do meu cachim bo,
Sai dos meus lábios, ríspida e bárbara, como os meus gritos de
amor e sofrimento.

Eu tenho todas as dores humanas dentro de mim:


Gritam operários caídos dos andaimes.
Gemem meninos com fome .
Abençoam mães martirizadas.
Amaldiçoam prostitutas bêbadas.
Que rimas eu acharia para essa tormenta po ética?
Que metros meus dedos poderiam co ntar para esse turbilhão
emotivo?

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1293


Não. Minha poesia não é, como a tua, a flor cuidada nos
interiores silencioso s.

Minha poesia é aquele cardo selvagem de Bandeira,


Que as mãos dos homens nunca puderam tornar delicado .
Não tenho, como tu, a alma de grego.
Tenho a alma de mongol
Não nasci vendo o céu sereno e o mar azul.
Nasci recebendo na face a chicotada da neve d as estepes
imensas.

Tu contornas teus versos de mármore com o cinzel delicado,


Como se fizesses colunas para salões fidalgos.
Tu facetas teus versos de ouro com o buril,
Como se eles fossem um mimo de Celini para as mãos das
princesas.
Os meus versos, eu os atiro a esmo, nas faces dos maus.
São blocos de pedra que eu tiro da alma, co m marteladas fortes
Para construir, com a argamassa do sangue e das lágrimas,
O grande monumento, disforme e rude, ao sofrimento universal.

Não. Eu não tenho, co mo tu, a alma de grego.


(LIMA, 1955)

Em uma análise de caráter literário desse texto “A um


parnasiano”, Meira (2012) atenta -se para a intrínseca relação entre
estrutura poética e conteúdo, afirmando que a escrita de Camillo de
Jesus Lima não se limita à forma, vez que para ele a estética refletia
também a representação do conteúdo. Essa abordagem destaca o
quanto este escritor se preocupou com a apresentação de suas ideias,
partindo do princ ípio de que a realidade é determinante no processo da
escritura, tanto da forma como do conteúdo, por isso o sensato
questionamento: “Que rimas eu acharia para essa tormenta poética?
Que metros meus dedos poderiam contar para esse turbilhão emotivo?”.
A resposta vem de sua prática sócio -política, pois atento às convulsões
por que passavam os homens ante guerras e jogos de poder, um escritor
sensível à realidade opressiva, excludente e mutiladora, não poderia
deixar a palavra, sua arma de combate, omissa a t udo isso. Era preciso
que estivesse em riste, apontada em defesa das humanidades.
Outro poema bastante expressivo dessa feição social da escrita
camilliana e que representa a postura ideológica que o escritor assume
diante dos seus pares e de toda a socie dade que o viu publicando
outrora versos românticos é “O poeta escrevendo”, texto que não está

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1294


entre os éditos do autor, publicado apenas em jornais da época 296.
Mesmo sendo um homem que não se afastou de suas origens, Camillo de
Jesus Lima demonstra a pront a disposição de reconhecer a totalidade
que o cerca e revelar o compromisso que o intelectual deve ter para
com o mundo que lhe entra porta adentro, devendo, portanto, traduzir
de uma forma dialética tudo que lhe diz respeito como ser histórico,
tornando-se também responsável pela condução das memórias sociais:

Solidão uma conversa! Eu estou é no meio do mundo.


De que serve trancar a porta?
De que serve botar as mãos nos ouvidos?
De que serve fazer o papel do surdo que não quer o uvir?
Gritos de homens da r ua entram, apesar de tudo,
Vozes angustiadas de mulheres perdidas entram, apesar de tudo .

Uivos de seviciados entram, apesar de tudo .


Solidão uma conversa! Eu estou é no meio do mundo.

Os eunucos estão fazendo flores nas torres de marfim,


Mas eu estou é no meio do mundo.

O rumor das ruas confunde -se ao ritmo do teclado de máquina;


Metralhadoras escrev em poemas no teclado da máquina,
Cavalos estão batendo patas no teclado da máquina.
Gente lutando,
Suando,
Amando, nas cinco partes do mundo.

Quem pode esc rever poemas na solidão,


Se portas trancadas nada valem,
Se mãos nos ouvidos nada valem,
Se, fazer o papel do surdo que não quer ouvir nada vale,
Se os olhos dos moribundos ficam, do alto, iluminando as
páginas,
Se mãos alvas vêm acender o cigarro, devagar inho,
Se o rumor das ruas v em fazer coro ao ritm o do teclado da
máquina?
Solidão uma conversa! Eu estou é no meio do mundo...

Desse mesmo lugar de onde fala o eu lírico também ecoa a


voz do intelectual que, em carta a um amigo, relata a sua obstinação em

296
Este texto recebeu, no centenário de nascimento de Camillo de Jesus Lima, 8 de setembro de 2012,
novas leituras através da linguagem audiovisual por cineastas e músicos do sudoeste baiano.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1295


conhecer a vida e suas duras conquistas através de sua materialidade.
Encontra no materialismo dialético uma filosofia política que lhe chega
pela leitura dos clássicos Marx e Engels, que vem amparar teoricamente
a luta do intelectual comunista. Declara o leitor marxista, na conquista
do olhar de Eros:

Tenho lido muito e escrito muito mais. Estou elaborando


trabalho sério, em que tento estudar os fenômenos históricos de
nossa terra, digna de melhor sorte, tomando por base o
materialismo dialético . [...] Já vai longe aquela época em que os
homens obtusos tentavam explicar o desenvolvimento histórico
da sociedade através das imposições da natureza humana ou das
influências de entidades abstratas como ‘Ideia absoluta’ [...] É
quando surge um dos maiores gigant es do pensamento de todos
os tempos, - aquele que haveria de trazer ao mundo uma nova
concepção de vida: Marx! Ele lança os alicerces de uma
concepção objetiva da história. [...] Descobre que não é a
consciência que determina a existência do homem, mas sim a
existência que determina a consciência, e o prova. [...] É, pois,
Eratóstenes, através dessa filosofia objetiva que devemos
estudar a história do Brasil. [...] Sem ambição de ver o que
escrevo em jornais e revistas, mas com a profissão de fé de um
homem que confia no futuro, para quem o futuro não tem
mistérios. Esta é a hora amarga dos intelectuais livres do
mundo. Mas é também a hora histórica do s intelectuais que não
se dobram. [...] Quando esta carta não consiga despertar em
você o lutador que existe em cada homem, sirva ela para que
você fique sabendo que eu, quando penso no bem da
humanidade, na extensão da miséria e da fome, numa época de
justiça social e de um real aproveitamento dos valores, penso
nos verdadeiros amigos, como você, como o Laudion or, dignos
por todos os princípios, de estarem ao meu lado, conquistando o
futuro e afrontando a estupidez e a violência dos exploradores e
tiranos 297.

Assim como a missiva camilliana ao amigo “Eros”, este texto


também é um convite às lembranças, em reconh ecimento às lacunas
deixadas pelos caminhos do esquecimento, às memórias que
permanecem latentes no aguardo de novas evocações.

Referências

297
Fra g men to s d e u ma d as mu ita s ca rta s e s c rita s p or Ca m il lo d e J e su s L i ma,
d e st in ad a s a E r ath ó st en e s M en e s e s. E s ta p o s su i 11 lau d a s, d a tad a e m 2 0/ 02 /1 94 8.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1296


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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1297


Narrativas infantis: o olhar das crianças sobre o primeiro ano do ensino fundamental

Iêda Licurgo Gurgel Fernandes


UFRN
iedalicurgo@gmail.com
Evelyn Silva Soares
UFRN
evinha.silva23@gmail.com
Maria da Conceição Passeggi
UFRN
mariapasseggi@gmail.com

O que a criança recém ingressa no primeiro ano do ensino fundamental fala sobre suas vivências nesse
novo nível de ensino? Partindo dessa indagação, o presente trabalho objetiva investigar com crianças
entre cinco e sete anos de idade que ingressam no primeiro ano do Ensino Fundamental, acerca de suas
experiências escolares no processo de transição da Educação Infantil para o primeiro ano do Ensino
Fundamental. A pesquisa foi desenvolvida na Escola Municipal Professor Arnaldo Monteiro, a partir da
observação das narrativas das crianças que frequentavam o primeiro ano do ensino fundamental no
período de setembro à novembro de 2013 e do mês de fevereiro de 2014. Os relatos foram ditos
espontaneamente pelas crianças durante as situações diversas de sala de aula e transcritos para o diário
de campo. Com o passar do tempo as crianças foram conquistando o seu lugar na sociedade como
sujeito de vez e voz cuja fala deve ser respeitada e valorizada. Sendo assim, as crianças que narram
sobre suas experiências em momentos individuais e coletivos de aprendizagens, brincadeiras e
convivência social estão inseridas numa instituição que pouco para pra escutá-las e não leva em
consideração suas indagações, questionamentos, opiniões, sugestões e vontades. Possibilitando as
narrativas constituir um instrumento essencial para se compreender a criança como um ser ativo, crítico
e reflexivo, atribuindo-lhes significados construídos acerca de suas vivências no ambiente escolar.
Palavras-chave: Narrativas infantis. Pesquisa com crianças. Escolas de Infância.

Introdução

As crianças desejam falar. Desejam ser ouvidas. Elas desejam


conversar. Desejam perguntar. E... um detalhe; todas de uma
só vez! Ao mesmo tempo! Que overdose de vozes infantis! Boa
overdose, pois não mata, pelo contrário, está cheia de vida! E
a escola com tão pouco espaço! Tão pouco tempo! Que
desperdício de vidas! Que descaso com as narrativas.
(ALGEBAILE, 1996, p. 123, 124)

Nos primeiros períodos do curso de pedagogia nos deparamos com o conceito


de criança, como sujeitos sociais, históricos, de direitos, cidadãs, produtoras de
culturas e por ela produzidas (Brasil, 2006, p. 17). Este conceito foi por nós
internalizado e nos acompanhou durante nossos primeiros contatos em sala de aula e
até hoje na pesquisa pedagógica.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1298


Durante o estágio numa escola particular nos deparamos com uma situação
adversa ao conceito que tínhamos de criança. Uma criança que na época tinha seus
seis anos de idade, aluna do primeiro ano do ensino fundamental, se recusava fazer a
atividade que a professora havia colocado no quadro. A menina permanecia na cadeira
de braços cruzados e expressão chateada. Quando questionamos o motivo ela explicou
que viu durante o intervalo que a educação infantil tinha ganhado uma cozinha de
brinquedo, inexistente em sua época, e agora ela não podia mais brincar. Sua fala foi
concluída com um sono “Eu não gosto dessa escola”.
Esse simples fato nos despertou para alguns questionamentos de pesquisa
sobre essa criança que entra um ano mais nova no ensino fundamental. Como a
criança de seis anos de idade ver o primeiro ano no ensino fundamental? O que ela fala
sobre suas experiências nesse novo nível de ensino? Como esse primeiro ano é
visto/falado a partir de uma comparação, feita pelas crianças, com a educação
infantil? Quais são as falas das crianças que narram suas experiências nesse primeiro
contato com o ensino fundamental?
Para tentar responder nossas indagações inserimo-nos no Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Autobiografia e Representações (GRIFAR),
coordenado pela professora Dra. Maria da Conceição Passeggi para melhor
compreensão da criança enquanto sujeito autor e ator de suas narrativas de vida. E
definimos como objetivo investigar com crianças do primeiro ano do ensino
fundamental a cerca de suas experiências na transição da educação infantil para o
ensino fundamental.
A pesquisa foi realizada na Escola Municipal Professor Arnaldo Monteiro,
localizada no bairro Neópolis (Natal-RN), com as crianças que frequentavam o primeiro
ano do ensino fundamental no período de setembro a novembro de 2013 e do mês de
fevereiro de 2014. A escolha do primeiro período da pesquisa se deu pelo fato das
crianças já terem vivenciado mais de seis meses no primeiro ano, bem como, terem
formulado uma ideia sobre suas vivências nesse nível de ensino. O segundo período foi
escolhido, pois nos permitiu observar a criança desde o seu primeiro contato com o
ensino fundamental.
As narrativas das crianças foram transcritas a partir de seus “relatos
voluntários”, momentos de fala espontânea sem necessariamente responder a uma
pergunta prévia, conversas ente dois colegas, falas durante as brincadeiras, discussões
das crianças com a professora, momentos em sala de aula percebidos por mim
enquanto pesquisadora que acompanhou as turmas durante alguns dias de aula
durante a semana. As crianças tinham entre cinco e sete anos de idade.
É na voz das crianças que levei em consideração sua história de vida. Mesmo
com sua pouca idade as crianças são completamente capazes de falar, contar e citar
seus pensamentos, sua história e principalmente indagações. O desafio foi utilizar essa
fala como método e não apenas para ilustrar teorias e hipóteses, como aponta
Ferraroti (1988|2010). A pesquisa foi realisada voltada para

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1299


(...) a compreensão dos fatos narrados pelas pessoas [crianças] como
protagonistas de sua história pessoal, no contexto de história social como
história pessoal não seria apenas o objeto da Pesquisa (Auto)biográfica, mas
o seu método. (PASSEGGI, 2011, p. 26)

É nas narrativas/relatos das crianças que esta pesquisa está baseada a qual
procuramos perceber na fala das crianças pesquisadas relatos de suas experiências e
seus olhares sobre o nível de ensino na qual frequentavam e a partir disso ter um
diagnóstico de como a sociedade está tratando a escolarização dessa criança entre
seus seis anos de idade.

Se nós somos, se todo indivíduo é a reapropriação singular do universo


social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da
especificidade irredutível de uma práxis individual. [...] a biografia
sociológica não é só uma narrativa de experiências vividas; é também uma
microrrelação social. (FERRAROTTI, 1979/2010, p. 45)

A escola como um espaço biográfico

A partir do conceito de instituição estudado por Ramos e Nascimento (2008) é


possível classificar a escola como uma, pois eles lembram que para Scott (1996) a
instituição é um conjunto de normas reguladoras das relações dos indivíduos, e
também, como definido por Souto (1985), ela legitima o que é possível num sistema
social a partir de um conjunto de normas. A escola também pode ser apresentada
como uma instituição pois

As instituições são de grande importância para a organização da vida social.


Elas são grandes fomentadoras da ordem dentro das sociedades através de
suas normas, valores e papéis. Saber como agir em uma gama de contextos
sociais facilita a existência do individuo e suas relações com os demais
(RAMOS e NASCIMENTO, 2008, p. 470).

A escola como instituição tem uma grande importância por seu caráter
universal de atendimento às crianças, jovens e adultos, apresentando condutas sociais
e culturais de inserção na sociedade. É pela escola que todas as crianças passam, tanto
por ser direito da criança como por ser obrigatoriedade do Estado oferecer uma
educação de qualidade e gratuita para crianças do quatro aos 17 anos. A partir das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), resolução nº 5, de
17 de Dezembro de 2009 que fixa nos dois primeiros parágrafos do artigo 5º “§ 1º É
dever do Estado garantir a oferta de Educação Infantil pública, gratuita e de qualidade,
sem requisito de seleção. [e] § 2° É obrigatória a matrícula na Educação Infantil de
crianças que completam 4 ou 5 anos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a
matrícula.”

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1300


Depois da família, é a escola, portanto, única instituição brasileira na qual a
criança esta inserida, “A escola é a única instituição social que, pelo caráter de
obrigatoriedade, dispõe de um público sempre presente” (BARBOSA, 2007, p. 1073).
Todas as crianças frequentam a escola e esse espaço que pouco mudou do século XIX
pra o século XXI tem que estar preparado para receber e trabalhar com a criança
sujeito sócio-histórico e de direitos.
Nossa curiosidade de pesquisa nos faz questionar se as escolas estão realmente
preparadas para atender a essa criança, se pensam o seu currículo baseado nas suas
especificidades, se organizam uma proposta pedagógica dinâmica, viva, que atende
aos interesses infantis, cujo tempo apresente momentos de brincar por brincar e que o
desenvolvimento pleno da criança seja o maior interesse do funcionamento da escola.
È pensando num ideal de escola que Teixeira (1978, p.45) conclui que “[...] Logo, se a
escola quer ter uma função integral de educação, deve organizar-se de sorte que a
criança encontre aí um ambiente social em que viva plenamente. A escola não pode
ser uma simples classe de exercícios intelectuais especializados”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996) determina a
educação escolar como vínculo da criança para o mundo do trabalho e a prática social.
Mas a partir de que práticas? O que as crianças falam sobre essa instituição escola na
qual são obrigadas a frequentar? De que maneira elas se sentem pertencentes a essa
instituição? Como as crianças avaliam a escola a partir da contribuição da mesma para
a organização da vida social? Elas se sentem em um ambiente social em que vivem
plenamente?
As crianças falam sobre sua escola e sobre as experiências que vivenciam nesse
espaço. Elas falam o tempo todo. Escutamos em salas de aula que passamos narrativas
de alunos sobre os mais diversos assuntos, sobre o que fizeram no fim de semana, o
que fizeram no contra turno, o que outros colegas fizeram nas outras aulas, o que seus
pais fizeram, enfim, a escola passa a ser um ambiente de narrativas de vidas e como
afirmado por Bertaux (2010, p. 89 e 108) “Uma narrativa de vida não é um discurso
qualquer: é um discurso narrativo que se esforça para contar uma história real [e...]
comporta necessariamente numerosas indicações sobre fenômenos propriamente
sociais”. Vidas que narram sobre suas experiências, sobre coisas importantes que
marcaram momentos individuais e coletivos e sobre as suas vidas que estão inseridas
numa instituição que pouco para pra escutá-las, que não leva em consideração suas
indagações, questionamentos, opiniões, sugestões e vontades.
A relevância desse estudo está em sua especificidade de escutar e analisar o
que as crianças inseridas no primeiro ano do ensino fundamental da instituição escola
tem a dizer sobre ela. Concordamos com Quinteiro (2009, p. 41) que diz que

Com exceção da psicologia do desenvolvimento, que mantém tradição e


regularidade nos estudos sobre a criança, raras são as áreas de
conhecimento que a priorizam em suas investigações. Mais raras ainda são
as pesquisas que buscam articular a relação infância e escola e, mais
especificamente, que colocam o foco de suas análises na criança que está no

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1301


aluno do ensino fundamental. Até mesmo no campo da história oral é muito
recente a incipiente a presença de pesquisas que buscam ouvir a voz da
criança.

Com a escolha das narrativas temos como objetivo desenvolver os


conhecimentos sociográficos e sociológicos vivenciados por esse grupo do microcosmo
da sociedade global. Para, a partir disso, observar, com um olhar mais aprofundado, o
microcosmos composto pelo grupo de alunos que estudam no primeiro ano das
escolas escolhidas, identificando seus mecanismos, suas lógicas de ação, seus
processos de reprodução e transformação sociais (BERTAUX, 2010, p. 26).
Como filtro da pesquisa, nos baseamos nos relatos das experiências vividas
apenas no âmbito escolar. Para Daniel Bertaux (2010, p. 55) a escolarização faz parte
de toda experiência de vida, e portanto, as experiências vividas nos primeiros anos de
contato com a escola são de grande importância para a repercussão de toda sua vida
escolar, podendo ser positivas ou negativas.
As narrativas das crianças sobre o processo de inserção delas no Ensino
fundamental nos permitiu ter um olhar mais compreensivo do que se passa com elas e
apresentar dados diferenciados sobre o fenômeno. Sendo possível

(...) extrair das experiências daqueles que viveram uma parte de sua vida no
interior desse objeto social informações e descrições que, uma vez analisada
e reunidas, ajudem a compreender seu funcionamento e suas dinâmicas
internas.” (BERTAUX, 2010, p. 60).

Os relatos involuntários das crianças sobre suas experiências no interior da escola nos
dá a possibilidade de classificar essa escola como um espaço biográfico e até mesmo
ampliar o conceito de “espaços das crianças” apresentado por Barbosa (2007, p. 1078):

O conceito de “espaços das crianças” entende as escolas como sendo


ambientes de várias possibilidades – culturais, científicas e sociais,mas
também econômicas, políticas, éticas, estéticas, físicas -, algumas pré-
determinadas, outras não, algumas iniciadas pelos adultos, outras pelas
crianças. Escola é prática ética e política, que se dá no debate, na construção
de conhecimentos, como oficina e laboratório social e humano permanente.

As fontes de identificação do sujeito

A pesquisa focará na fala das crianças entre cinco, seis e sete anos de idade que
frequentam o primeiro ano do ensino fundamental e estão vivenciando a transição da
educação infantil para esse novo nível de ensino. Mas quais são exatamente as
características desse sujeito e a cultura na qual estão inseridos?
Utilizamos como aporte teórico a concepção de Sônia Kramer (1996, p. 14) a
qual afirma que “Aqui a concepção de criança é concebida na sua condição de sujeito

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1302


histórico que verte e subverte a ordem e a vida social [...] concepção que encara as
crianças como produzidas na e produtoras de cultura”.
As crianças são vivas, que agem sobre a cultura produzindo e sendo produzidas,
elas criam brincadeiras, linguagens, histórias, sempre descobrindo mais o mundo e a
sociedade que as cerca, “As crianças não são filhotes, mas sujeitos sociais; nascem no
interior de uma classe, de uma etnia, de um grupo social” (BRASIL, 2006, p. 19). E essa
inserção na sociedade permite à criança criar uma cultura que lhe é própria.
Elas aprendem com os adultos os modos de interagir, de pensar de se
comportar socialmente, mas trazem suas próprias perspectivas sobre agir na vida.
Spréa (2010, p. 02) em seus estudos sobre a obra de Florestan Fernandes (2003 e
2004) aponta que “as culturas infantis são produzidos a partir de elementos da cultura
dos adultos”. Sobre a cultura de crianças, Prado (2009, p. 101) citando Florestan
Fernandes considera que

A cultura infantil, aquela que se expressa por pensamentos e sentimentos


que chegam até nós, não só verbalmente, mas por meio de imagens e
impressões que emergem do conjunto da dinâmica social, reconhecida nos
espaços das brincadeiras e permeada pela cultura do adulto, não se
constituída somente em obras materiais, mas na capacidade das crianças de
transformar a natureza e, no interior das relações sociais, de estabelecer
múltiplas relações com seus pares, com crianças de outras idades e com os
adultos, criando e inventando novas brincadeiras e novos significados.

Percebemos isso claramente quando vemos as crianças brincando no intervalo de


“Polícia e ladrão” e ainda mais claro quando nomeiam o ladrão com os nomes dos
sujeitos que são notícia nos telejornais da nossa cidade.
Para Claude Javeau (2005) “As crianças não devem desde então ser vistas como
um universo prefigurando o dos adultos, e ainda menos como uma cópia imperfeita do
mundo adulto”. Temos esta como uma visão muito medieval das crianças, cujas ações
e tratamentos eram dados pensando como um adulto em miniatura, desde seu modo
de se vestir e até mesmo de relatos de casamentos políticos de homens com meninas.
Com o passar do tempo as crianças foram conquistando o seu lugar na
sociedade como sujeito de vez e voz cuja fala deve ser respeitada e valorizada e cujas
culturas infantis vão sendo modificadas a cada dia. As crianças elaboram culturas a
partir da “apropriação criativa”, pelas informações do mundo adulto que lhes
proporcionam a criação de saberes enquanto grupo de iguais (BARBOSA, 2007, p.
1064).
Após sofrer diferentes mudanças ao longo da história, hoje em dia o conceito
de infância remete-se apenas como um “objeto de uma definição social, mais ou
menos partilhada pela população interessada” (JAVEAU, 2005, p. 382), sendo mais
comum a utilização do termo “infâncias” por adequar-se melhor aos diferentes
sujeitos crianças que vivem modos de vida diversificados, seja pela sociedade em que
estão inseridas, seja pelo nível social, seja pela criação familiar, seja pelas

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1303


oportunidades de experimentar o mundo. As infâncias acompanham as crianças pelos
aspectos sociais, políticos, éticos, e sócias e culturais que envolvem essa fase da vida
(NASCIMENTO, 2006, p. 29).
E essa criança fala. As crianças naturalmente não são silenciosas. Criança fala,
grita, chora, reivindica, protesta, faz birra, reclama, elogia, questiona, interage e se
expressa verbalmente desde suas primeiras palavras. Como é possível então, não ouvi-
las?
As crianças fazem significações sobre sua vida e interpretam o mundo a sua
volta como um ser ativo que é. O seu olhar capta coisas que muitas vezes passam
despercebidas pelo olhar do adulto, do professor, dos pais e de familiares ou amigos
que estão a sua volta. A imaginação, fantasia e ludicidade natos da criança dão uma
riqueza a mais a sua fala, possibilitando ao adulto expandir sua compreensão a cerca
das infâncias e das culturas infantis.

A ênfase na escuta justifica-se pelo reconhecimento das crianças como


agentes sociais, de sua competência para a ação, para a comunidade e troca
cultural. Tal legitimação da ação social das crianças resulta também de um
reconhecimento e de uma definição contemporânea de seus direitos
fundamentais – de provisão, proteção e participação. [...] busca-se nessa
escuta confrontar, conhecer um ponto de vista diferente daquele que nós
seriamos capazes de ver e analisar no âmbito do mundo social de pertença
dos adultos. (ROCHA, 2008, p. 46).

Por essa questão, a pesquisa deixa de relacionar apenas a criança como um


objeto de estudo, mas passar a ser sujeito parceiro da pesquisa, que é agora
denominada pesquisa com crianças.

Pesquisa com crianças: relatos

Compreender o sujeito por intermédio da palavra


significa compreender o ato humano como um
texto em potencial, reflexo subjetivo de um mundo
objetivo, expressão da consciência no contexto
dialógico do seu tempo. Significa entender o
sujeito como ser inacabado, mergulhado em
sentidos transitórios. (MONTEIRO, 1996, p. 157)

A pesquisa aconteceu numa escola de educação básica municipal da cidade de


Natal. Frequentamos duas turmas do primeiro ano do ensino fundamental, a primeira
entre o período de setembro a novembro de 2013, com as crianças que já estavam à
pelo menos seis meses nesse nível de ensino (doze crianças), e a segunda com a turma
que estava iniciando o ano letivo de 2014, no mês de fevereiro (vinte e uma crianças).
As turmas eram diferentes, mas a professora continuou a mesma.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1304


A inserção na sala aconteceu de maneira tranquila, fomos apresentadas pela
professora como estudantes da universidade e que iríamos ficar uns dias com a turma
observando elas (as crianças). No início as crianças pouco deram ênfase aqueles
adultos estranhos que passavam as tardes em sua sala de aula, mas com o passar dos
dias fomos sendo recebidas com abraços, carinho e sorrisos que estreitavam nosso
laço com as crianças.
As crianças que estavam iniciando o ano letivo tinham cinco (prestes a
completar seis nos meses seguintes) e seis anos. As que estavam concluindo o ano já
tinham seis ou sete anos.
Os relatos foram ditos espontaneamente pelas crianças durante as situações
diversas de sala de aula e transcritos para nosso diário de campo. Analisando seus
relatos pudemos classificá-los em três pontos principais: o primeiro ano do ensino
fundamental; as tarefas e as brincadeiras.

O primeiro ano do ensino fundamental

As crianças entraram no primeiro ano do ensino fundamental com alguns


conceitos e perspectivas do que iriam encontrar no novo nível de ensino. Algumas
ficaram ansiosas com a possibilidade de fazerem prova neste ano:

“Só tenho três palavrinhas: aqui, tem, prova!” (Leandro, 5 anos)


“- Professora, aqui tem prova? (Amanda, 5 anos)
- Tem não, na sua série não, só quando você ficar maior. (Professora)
- Maior quanto? (Amanda, 5 anos)”

Estes relatos foram feitos no primeiro e no segundo dia de aula


respectivamente e as crianças faziam expressões preocupadas enquanto falavam. A
ideia de “prova” sempre foi a associada ao ensino fundamental e as crianças já tinham
certo receio de ter que enfrentar esse sistema tradicional de avaliação logo nos
primeiros contatos com o primeiro ano, e mesmo com a negativa da professora a ideia
de ainda ter que enfrentar um dia “Maior quanto?” ainda preocupava a criança. A
criança percebe na fala da professora que um dia serão grandes o suficiente para
fazerem uma prova avaliativa e este é um crescimento que assusta, saber o quanto
deverão crescer para fazerem um prova é motivo de preocupação sobre esse dia tão
que ao mesmo tempo parece tão perto quanto longe.
Outra relação bastante presente nas falas das crianças é com relação as notas,
mesmo o sistema de avaliação utilizado pela secretaria municipal de educação ser o
relatório para os três primeiros anos do ensino fundamental a questão da “nota” é um
discurso presente tanto na fala das crianças quanto da professora.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1305


“- É legal conversar enquanto a professora está falando? (Professora
questionando duas crianças que conversavam enquanto ela explicava a
atividade)
- Não! (resposta uníssona da turma que chamou a atenção da dupla que
conversava)
- Então desse jeito a nota dele vai lá pra baixo, ele não vai ganhar um dez, vai
ganhar um zero. (professora, fazendo sinal com o polegar para baixo)
- Eu tirei um seis uma vez!! (Natan, com um grande sorriso, 6 anos)
- Pois eu tirei um nove!! (Leandro, com expressão de deboche, 5 anos)”

A partir do discurso da professora e do que as crianças já traziam de suas


experiências de vida é perceptível ver que o comportamento delas está baseado na
obtenção de notas e as notas já apresentavam um “status” para quem as tinha, como
consta no sorriso e no discurso das crianças. Elas ao já demonstrarem uma noção de
ordem numérica já poderiam se avaliar com relação a nota que tinham, ganhar um
zero não é legal (gesto da professora), Natan já sabia disso e já relatava orgulhoso que
já tinha tirado um seis. Para Leandro, demonstrar com risadinha de deboche e
expressar claramente que já tinha tirado um nove mostrava que ele é melhor do que o
colega que tirou seis. A noção das notas traz para as crianças um sentimento de
melhor e pior umas com relação as outras.
Nossos sujeitos de pesquisa também relacionam o primeiro ano com o
“prezinho”, como eles denominam a única classe de educação infantil da escola, a qual
haviam estudado no ano anterior.

“Professora fazendo a chamada: - Pedro!


- Pedro não estuda aqui nessa sala. (Luan, 6 anos)
- Estuda sim! (Alguém que não identificamos)
- Estuda não. Estuda no prezinho, só quando ele fizer anos é que ele vem pra
cá. (Leandro, 5 anos)
Alice que estava prestando atenção na conversando fala com Samuel:
- Você sabe como é o prezinho? (ele balança a cabeça negativamente) Eu
conheço! (Alice, com expressão de sorriso de orgulho, 5 anos)”

Na fala de Leandro ele já sabe que a criança precisa “fazer anos” para ir estudar
no primeiro ano, eles tem o conhecimento de que estão nessa nova sala de aula
porque são mais velhos e já participaram ano passado da educação infantil,
reconhecendo a não retenção da criança na educação infantil (DCNEI, 2009) e que não
há um fator de promoção ou de reprovação na transição desses níveis de ensino.
Quem frequentava a escola desde o ano passado sente-se mais confiante e até mesmo
especial por terem estudado no “presinho”, como é narrado por Alice. Conhecer o
presinho significa pertencer a escola a mais tempos, ter mais experiência pra contar e
se exaltar ao outro que estudava noutra escola ou até mesmo nunca ter vindo para
uma escola antes.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1306


“Durante um a aula a professora nos pediu para ficar olhando a turma
enquanto ela ia na secretaria da escola fazer uma cópia de uma atividade.
Quando a professora saiu algumas crianças ficaram de pé e eu fui pra frente da
turma para conversar enquanto a professora não chegava. Aproveitei pra ler
os nomes dos alunos que estavam na parede como numa brincadeira de
“chamada”.
- Felipe (pesquisadora) - Não está. (Resposta da turma)
- Ele está no prezinho (Alice, 5 anos)
- No prezinho? Por quê? (pesquisadora)
- Porque sim, ele é de lá (Luan, 6 anos)
- E o que faz uma pessoa ser no prezinho ou do primeiro ano? (pesquisadora)
- A inteligência! (Alice, 5 anos) (todos concordaram)
- A inteligência? Então quer dizer que quem está no primeiro ano é porque é
inteligente? (pesquisadora) (todos concordaram). E quem está no prezinho, é o
quê?
- É BURRO! (Luan, 6 anos e Bruno, 5 anos, em uníssono)”

Ao afirmarem que por estarem no primeiro ano eles são mais inteligentes do
que as crianças do prezinho, não estão necessariamente relacionando que as outras
crianças são burras, mas sim que eles já apresentam uma carga de conhecimento
maior.
Constantemente relatam que não são mais pequenos e estão crescidos e que
“já tenho seis anos!” (Natan), “Amanhã é meu aniversário!! Já vou fazer seis anos!!”
(Alice). As crianças se autobiografam quando percebem seu crescimento, sua
importância em pertencer à um nível de ensino mais elevado e crescimento é relatado
como bom e consequentemente fazer parte do primeiro ano do ensino fundamental.
- As tarefas
Inicio os relatos sobre as tarefas das crianças no primeiro ano com uma
situação muito específica que aconteceu com a turma da pesquisa de 2013:

“Hoje a professora da educação infantil faltou, mas duas de suas alunas que
não sabiam que ela faltaria vieram para a aula. A solução da diretora foi levá-
las para a sala do primeiro ano. A professora as recebeu muito bem e logo
providenciou as carteiras para elas sentarem:
- Gente, hoje essas meninas da educação infantil vão ficar hoje aqui conosco.
Espero que vocês as ajudem (professora).
Fernanda se levanta vai até a carteira delas e fala:
- Olha, aqui não tem moleza, não. Vão ter que copiar o dever todo! (Fernanda,
7 anos)”

A presença das crianças da educação infantil na sala de aula despertou um


sentimento de cuidado para com elas das outras crianças e de alerta. Uma das crianças

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1307


tratou logo de avisá-las que não haveria brincadeiras no primeiro ano e que o dever
deveria ser copiado todo.
Durante minha observação da turma que já estava a mais tempo no primeiro
ano pouco havia reclamação com relação as atividades, eles faziam e apenas em
alguns momentos relatam preguiça, ou falta de vontade de fazer. Com relação as
crianças que estavam chegando no primeiro ano suas falas sobre as atividade e sobre
ler e escrever mostravam incapacidade de fazer por que não se sentiam motivadas,
nem sabiam fazer:

“- Quem aqui conhece as letras? (professora)


- Eu não sei professora (Samuel, 6 anos)”

“Estava lendo a lista de alunos da turma quando Alessandra se aproximou:


- Tem meu nome aí? (Alessandra, 6 anos)
- Tem. Procura aí seu nome. (pesquisadora)
- Eu não sei ler ainda não. Vou ler amanhã porque vou entrar na aula de
reforço. (Alessandra, 6 anos)”

“- Professora, eu não sei escrever tudo isso não! (Alice, 5 anos, sobre retirar do
quadro a rotina do dia)”

“- Tia, eu só fiz o meu nome porque eu não sei fazer o resto (Alessandra, 6
anos, sobre escrever a rotina do quadro)”

As propostas pedagógicas do primeiro ano do ensino fundamental não podem


ser uma cópia do que era feito durante a educação infantil nem adiantar assuntos os
assuntos das futuras séries do ensino fundamental, mas devem

propiciar as crianças práticas de leitura e escrita que provoquem a


imaginação, a fantasia, a reflexão e a crítica. Tais práticas devem mobilizar o
diálogo das crianças coma pluralidade de produções, com diferentes autores
e modos de expressão, e encorajá-las a brincar com as palavras, a buscar
novos sentidos, novas combinações, novas emoções e, assim, se
constituírem como autoras de suas palavras e modos de pensar, narrar o
mundo (BRASIL, 2007, p. 54)

Especificamente as atividades de cópia pouco mostravam interesses das


crianças em fazer, o quadro cheio de letras sem pouco significado nada se mostravam
atraentes para elas que pouco conheciam do mundo letrado.
Quando afirma que não sabem fazer, não sabem ler, não conhecem as letras, as
crianças se biografam como incompetentes, como incapacitadas de fazer as atividades
do primeiro ano e isso as deixavam tristes. Elas olhavam para o quadro e já ficavam
preocupadas com a dificuldade de fazer a tarefa.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1308


- As brincadeiras
Grandes foram os relatos das crianças sobre as brincadeiras. Principalmente no
primeiro dia de aula após a promessa da professora de que eles brincariam muito
durante o ano, logo surgiram os questionamentos de quando seria.
“Eu quero brincar logo, quando que a gente vai brincar? (Leandro, 5 anos)”
“No passeio pela escola Alice (6 anos) ao olhar o parquinho questiona a professora
quando que eles iriam brincar”
“Falta muito tempo pra agente brincar? (Leandro, 5 anos)”
“A professora conversava com um pai na porta da sala enquanto Alice nos pergunta:
- Professora, a gente pode brincar? (Alice, 5 anos)
- Brincar de quê? (pesquisadora)
- De escolinha. (Virando-se para Amanda) Você quer ser a professora?”

O brincar é natural da criança, faz parte da cultura infantil e é de grande


importância para o seu desenvolvimento cognitivo, psicológico, cultural e social. É por
meio da brincadeira que a criança interage com seus pares, tem uma nova visão do
mundo que a cerca e aprende as relações sociais.
Ao querer brincar as crianças estavam apenas sendo crianças, elas estavam
ansiosas pelo o que viria no seu novo ano letivo e olhar o parquinho, os novos colegas,
a quadra da escola, os espaços da sala de aula, tudo se transformava num convite para
a brincadeira, para explorar a imaginação, para a interação com o próximo, para
descobrir novos contatos com os espaços e a escola, tão repressora só adiava esse
momento para um tempo ainda não definido.

Certamente ficará mais claro para nós que o brincar é uma atividade
humana significativa, por meio da qual os sujeitos culturais se
compreendem como sujeitos culturais e humanos, membros de um direito a
ser assegurado na vida do homem. E o que dirá na vida das crianças, em que
esse tipo de atividade ocupa um lugar central, sendo uma de suas principais
formas de ação sobre o mundo! Percebemos também, com mais
profundidade, que a escola, como espaço de encontro das crianças e dos
adolescentes com seus pares e adultos e com o mundo que as cerca, assume
o papel fundamental de garantir em seus espaços o direito de brincar.
(BRASIL, 2006, p. 44)

A importância da brincadeira no mundo infantil está relacionado a


representação do mundo para a criança. Ela constrói sentidos, adquire conhecimentos
sobre a sociedade, se expressa e se forma. E ao chegar no primeiro ano do ensino
fundamental o que mais as crianças querem fazer é brincar, explorar através do que
elas sabem fazer melhor essa nova fase da vida escolar e social.

Iniciando uma conclusão


Grandes são as reflexões que as crianças nos apontam quando paramos para
escutá-las. Elas vivenciam diferentes fases escolares e da vida e a entrada no ensino

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1309


fundamental possibilita para elas relacionar este novo ambiente com suas novas
características com as vivencias que elas já trazem da educação infantil e da
perspectiva do mundo com a escola.
Ao narrarem espontaneamente que não conseguem fazer uma atividade, ou
que ainda não sabem ler, os nossos sujeitos de pesquisa se autobiografam como
incapazes de fazer parte do primeiro ano, pois ainda não sabiam produzir o esperado
que a professora, mas principalmente a cultura do ensino fundamental, exigia para
este tempo escolar. Suas expressões cansadas e olhares esperançosos sobre a hora da
brincadeira demonstram que essa criança ainda aguarda um momento em possa
realmente expressar-se livremente sem que a exigência do copiar e do “faça a tarefa”
a sufoquem na escola e a façam ter saudade do tempo do prézinho.
Contraditoriamente, o estar no primeiro ano representa para as crianças fazer
parte de algo especial, pois elas se consideram mais inteligentes por estarem ali. Mas
ainda assim é um especial que assusta, que provoca sentimentos de ansiedade por
esperar uma prova, por querer tirar uma boa nota, por querer aprender a ler um dia e
conhecer as letras.
A escola se apresenta a partir do nosso estudo como um espaço biográfico
onde os sujeitos ali presentes, crianças, professores(as) e demais funcionários, são
muitas vezes negligenciados e silenciados pela sociedade na qual estão inseridos, mas
que em suas narrativas se autobiografam nesse espaço que as constituem.
Para nós professoras é riquíssimo entender essa fala da criança, pois ao
pesquisar a transição da criança da educação infantil para o primeiro ano do ensino
fundamental podemos compreender com a criança seu olhar sobre a escola e
proporcionar uma prática acolhedora, estimuladora e envolvente que antes de querer
atender a perspectiva da cultura escolar, atenda ao sujeito principal da escola: a
criança.

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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1311


“Casa de pai, escola de filho”: notas biográficas sobre o processo de formação de um
vaqueiro do sertão baiano

Izabel Dantas de Menezes


UNEB
imenezes@uneb.br

Para compreender a dinâmica complexa da produção do conhecimento de uma comunidade rural do


semiárido baiano e sua relação com a mobilização política que resultou no reconhecimento legal, em
1989, desta comunidade como tradicional, a pesquisa que originou este trabalho apresentou a
Comunidade Tradicional de Fecho de Pasto Mucambo, Antônio Gonçalves - BA, como uma “unidade
socioafetiva de saber”. Nesta perspectiva, a pesquisa teve como foco as práticas constituídas no âmbito
dos “ecossistemas socioeducativos” tais como a casa, a igreja e a roça, ou seja, lugares de “sabenças” e
de produção dinâmica do aprender e do ensinar onde o encontro e a troca socioafetiva potencializam
vínculos de pertencimentos e identificações e, consequentemente, geraram situações educativas
fundamentais para a atuação política do sujeito “mucambeiro”. Para compreender o contexto e
sentidos que compõem estes “ecossistemas socioeducativos”, reconhecidos pelos próprios sujeitos
como fundantes na formação de cada um, utilizou-se das narrativas biográficas de cinco
lideranças/moradores do Mucambo. Em cada história de vida um leque de significações sobre a relação
entre os processos educativos da comunidade e a atuação política empreendida no período dos
conflitos envolvendo a terra comum utilizada por todos. A partir da narrativa escolhida apresenta a
potência do processo de formação do oficio de um vaqueiro e sua conexão com a luta pela terra.
Palavras-chave: Comunidade Tradicional de Fecho de Pasto; Sabenças; Narrativa biográfica.

Introdução

Eu sou pai de quinze filhos, ninguém vai acreditar


E agora eu vou dizer, todos vai, vai escutar
Quem é de gado, tem memória, cuidado pra não se atrapalhar, ah iê
Tem Zelito e tem Pedrinho, Liocato venha cá
Tem Jailson, Mailton pra confirmar
Tem Joelson e tem Eugênio, tem Euclides pra brincar, ah iê
Ainda tem seis garota, meu cuidado está lá
Marisol mais Joelma saí em primeiro lugar
Tem a Telma e tem a Selma eu lhe cito pra confirmar
Ainda tem a pequena, que se chama Lenimar, ah iê
Eu falei em catorze, faltou um pra completar
Esse chamava Manuelito, mas Jesus mandou chamar
Vida de gado iêeeee”. (CRUZ, MANOEL S., 2011)

O vaqueiro Manuel Souza Cruz, 76 anos, mais conhecido como Sr. Cizinho, nasceu na
comunidade Brejão da Grota, município de Antônio Gonçalves, BA. Desde o ano de 1965,
mudou-se para a localidade de Borda da Mata, onde reside atualmente. Viúvo e pai de 15
filhos, conforme descreve nos versos acima, o Sr. Cizinho faz valer o verso “quem é de gado

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1312


tem memória [...]”, ele é conhecido e até afamado como grande contador de histórias. As
entrevistas realizadas com ele foram férteis de “causos” e de muito divertimento. Narra, com
detalhes e bom humor, a história da luta da Serra da Várzea Comprida, conflito298 iniciado no
final da década de 1970 e que resultou no reconhecimento legal da terra de uso comum,
localizada no norte do Estado da Bahia entre os municípios de Antônio Gonçalves, Campo
Formoso e Pindobaçu. A narrativa do Sr. Cizinho, no entanto, ganha esplendor quando
descreve o processo sofisticado de aprendizagem de um vaqueiro.

Partindo do pressuposto de que a educação é um fenômeno amplo, um campo


epistemológico polissêmico de diferentes contextos histórico-culturais, ciclos de vida e tempo,
as reflexões postas neste artigo centram-se em compreender a dinâmica complexa e
multirreferencial do processo educativo do ofício de um vaqueiro do sertão baiano.

Neste artigo apresentam-se, portanto, notas biográficas sobre o processo de


aprendizagem do ofício de vaqueiro do Sr. Cizinho que, através da expressão casa de pai,
escola de filho, revela a potência da educação na ambiência familiar.

Nestes termos, procurei enxergar os lugares de sentido na formação de Sr. Manuel S. da


Cruz, já que não existe saber sem prática e sem atores sociais (SANTOS, 2005; 2010). O sujeito
ator-autor299, foco desta análise, acolhe na sua narrativa sentidos de práticas de saber de uma
“ecologia”300 de aprendizagens que, devido a sua condição dinâmica de criação e recriação,
existem e resistem contemporaneamente em movimento e diálogo com outros
conhecimentos.

A aproximação e a análise destes sentidos foram construídas pela abordagem teórico-


metodológica da História Orale. Dentro desta abordagem, usei a História de Vida das
lideranças como possibilidade de aproximação da complexidade e dinâmica dos processos de
formação nos ecossistemas socioeducativos (casa, roça e igreja).

Diante da diversidade de formas de se compreender o trabalho com história de vida,


Alessandro Portelli (2010) nos apresenta a do “artefato verbal”, em que a fabricação da
entrevista se desenvolve por meio do encontro do pesquisador com a autopercepção do
narrador. Ou seja, as “entrevistas” da História de Vida de Sr. Cizinho, nestes termos, foram
uma construção pensada e intencional, mediada pelo contexto, pelos objetivos da pesquisa e,
sobretudo, pelo sujeito portador de uma narrativa dinâmica, fascinante e significativa sobre
seu processo de formação de vaqueiro. Assim, o exercício do trabalho com a biografia do Sr.
Cizinho foi provocado, portanto, pelas seguintes questões: o que você aprendeu na vida de
mais importante? Quem lhe ensinou? Quando? Ou seja, as questões visavam a identificar
quais os ecossistemas educativos e os conteúdos e lógicas contidos neles, significativos para o
Sr. Cizinho. O desenrolar desta “prosa” trouxe perspectivas expressivas para o desenrolar da
pesquisa.

298
em que foi protagonista na qualidade de membro do grupo dos 12 (doze) fiscais que protegiam e
fiscalizavam a área em conflito.
299
ARDOINO (1998).
300
SANTOS (2005).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1313


As práticas constituídas no âmbito dos “ecossistemas socioeducativos”, tais como a
casa, a igreja e a roça, ou seja, lugares de “sabenças” e de produção dinâmica do aprender e
do ensinar, onde o encontro e a troca socioafetiva potencializam vínculos de pertencimentos e
identificações que geraram situações educativas fundamentais não apenas para a reprodução
material da sobrevivência dela, mas para a sua atuação como liderança política na luta pelo
reconhecimento legal da área de terra comum – Serra da Várzea Comprida. As lições de pai e
mãe para filho à beira do fogão, as infinitas trocas de informações e habilidades aprendidas na
lida da roça, as densas circularidades de ideias e lógicas entre vizinhos e compadres, as rezas e
discussões políticas na igreja-associação “criam e recriam possibilidades de trânsito dos
saberes” que nos revelaram um leque de significações sobre a relação entre os processos
educativos da comunidade e a atuação política empreendida no período dos conflitos
envolvendo a terra comum utilizada por todos. A seguir, notas sobre este processo biográfico
do vaqueiro Sr. Manuel de Souza Cruz – Sr. Cizinho – entre 24 e 26 de setembro de 2011.

A casa como ecossistema socioeducativo301: notas biográficas do processo de formação do


vaqueiro manuel souza cruz

A narrativa de Sr. Cizinho sobre sua história de vida e educação nos revela, em primeiro
plano, um lugar, a casa do pai. Em segundo plano, o termo escola é associado ao nome casa,
revelando o sentido fecundo desse lugar como topo privilegiado para a aprendizagem do filho.
A relação entre casa e escola desponta a força da transmissão da arte de um ofício difundido
de uma geração à outra, característica costumeira de iniciação e aprendizagem da profissão
tecida no seio da ambiência doméstica.

A instrução desse ofício específico é um dentre vários processos de ensino e de


aprendizagem que ocorrem no cerne do ecossistema educativo casa302. A partir do trabalho de
campo, destaco algumas dimensões que imprimem dinâmicas e processos complexos de
aprendizagens formadas no interior do ambiente doméstico. São dimensões de um olhar
particularizado que expôs processo de educação.
No primeiro feixe de falas, a atitude de ver a dimensão intergeracional e sua força
simbólica na transmissão, do “aprender pelo exemplo”, da força da identificação com a
sabedoria comum do grupo, no dizer de Sr. Cizinho que, ao observar o pai na “lida” com o
gado, aprendeu muito cedo o ofício de vaqueiro. No segundo feixe de falas, notar que, em
meio às idiossincrasias de um processo de endotransmissão de um saber, existem
circularidade, fluido e ambivalência que movimentam múltiplas influências, vários espaços,
sucessivas transformações, “rupturas e recomeços”, ou seja, uma rede sobreposta de lógicas
heterogêneas de acordo com os relatos de Sr. Cizinho.
Ao contar seu processo de aprendizagem como vaqueiro, o nosso narrador ressalta a
dimensão intergeracional da aprendizagem, bem como a teia cultural que delineia práticas e
saberes contextuais construídos ao longo do processo. De acordo com a narrativa, quem

301
Conceito de PIMENTEL (2000).
302
Cabe ressaltar também que ele não é único, ou seja, que todos os vaqueiros sejam formados por
meio do mesmo processo descrito aqui, em que pese a vitalidade dessa formação na região, ela não é a
única, é um exemplo que pode ser amplo, mas que é retirado da narrativa do sujeito da pesquisa em
foco.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1314


ensina o ofício de vaqueiro é quase sempre o pai, daí a afirmativa: “casa de pai, escola de
filho”. Acometido por uma grave doença, o pai do Sr. Cizinho acelerou o processo de
aprendizagem do filho ainda na infância. Assim, como quase toda criança e adolescente da
roça, o Sr. Cizinho trabalhava de dia e, à noite, frequentava as aulas do mestre-escola
Raimundo de Souza: “Mestre Raimundo era um cabra macho que pegava a caneta e escrevia o
nome sem tirar a caneta do papé”, lembra Sr. Cizinho, que lamenta o fato de nunca ter
participado de um argumento303, porque esta atividade pedagógica acontecia sempre aos
sábados, dia de vender doce, preparado pela mãe, na feira livre de Brejão da Grota304.
Do subterrâneo da memória do Sr. Cizinho, os ritos de passagem de um aprender e
ensinar de uma geração a geração são evocados e, neles, as tramas culturais antigas que se
revigoram a cada geração são apresentadas. Assim, o processo se inicia com a criança
ajudando o pai a tirar leite de vaca mansa e levar as vacas à roça pela manhã e, à tarde,
prendê-las no curral, a partir daí, a criança “[...] vai se acostumando... [...]”. Neste momento
inicial, o filho aprende observando os gestos, a fala, a técnica, a magia que envolve o ofício de
vaqueiro:
[...] o que ele vê o pai fazendo, ele faz também e o pai, para
estimular, o pai, o pai diz que vai dar de presente uma bezerra, aí o
mínimo fica ansioso e fica no maior prazer e vai se dedicar a aprender
a profissão [...] começa a ter o amor, sem amor não vai, gostar de
fazer com amor, ele sonha e pede a Deus, assim: ‘Vaqueiro que é
bom vaqueiro/ vê o seu gado e quer bem/ Todo dia vai a roça contar
as rês que tem/Quando ele vai, o gado vai e quando ele chama o
gado vem/E quem não gosta de vaqueiro, não gosta de mais
ninguém’ (SR. CIZINHO, 2011).

No trecho transcrito, é possível observar a descrição de um processo de identificação


fluido, em que a criança não apenas se identifica com o gesto do pai, mas, sobretudo, com a
afinidade lúdica com os animais. Brincando, participam do emaranhado cultural que integram.
Enquanto é motivada pela relação com o pai e com os bichos, a criança busca “funções
cognitivas superiores” a cada vez que lhe é proposto um novo desafio: tirar leite da vaca,
depois, prender a vaca, fazer os laços, pegar boi na caatinga, aboiar versos, rezar para curar,
tratar ferimentos. Ou seja, uma aprendizagem complexa e sofisticada que só pode ser
aprendida na relação com o outro e na medida em que observa, experimenta, erra, escuta,
enfim, vive.
Eurico Alves, ainda na introdução da sua obra, “Fidalgos e Vaqueiros”, utiliza-se de
descrição poética para relatar experiências infantis no universo pastoril sertanejo, destacando
aos possíveis leitores o cotidiano da criança que viveu (vive) na roça:

Para os que se criaram sujando os pés no estrume dos currais,


montando em cabalo-de-campo, tomando trompaços em galho de
candeia ou umburana, ou arranhando a pele em galho de jurema ou
pau-de-fuso, para os que se cortaram nas espátulas do milharal ou
compreenderam as glosas nas casas de farinha, ou educaram o

303
Mesmo que avaliação.
304
Pertence ao município de Antônio Gonçalves, BA e comunidade de FFP.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1315


ouvido ao aboio, que parece um trecho de cantochão na catedral do
sertão, pode este trabalho despertar uma lembrança velha, a
saudade dos serenos bois de ossos, ou do papuco de milho seco [...]
(ALVES, ANO, p. 11).

Na companhia dos pais ou dos mais velhos e/ou entre as brincadeiras no terreiro e no
curral, as crianças aprendem segredos do ofício, segredos do lugar e do próprio lugar dentro
da comunidade. De forma análoga ao que Thompson (1998, p. 17-18) observou na sociedade
rural da Inglaterra do século XIVIII, em que:

Encontramos uma herança importante de definições e expectativas


marcadas pelo costume. O aprendizado, como iniciação em
habilitações dos adultos, não restringe à sua expressão formal na
manufatura, mas também serve como mecanismo de transmissão
entre gerações. A criança faz seu aprendizado das tarefas caseiras
primeiro junto à mãe ou avó, mais tarde (frequentemente), na
condição de empregado doméstico ou agrícola. No que diz respeito
aos mistérios da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre seu
aprendizado junto às matronas da comunidade. O mesmo acontece
com os ofícios que não têm um aprendizado formal. Com a
transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente a
transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da
coletividade. Embora a vida social esteja em permanente mudança e
a mobilidade seja considerável, essas mudanças ainda não atingiram
o ponto em que se admite que cada geração sucessiva terá um
horizonte diferente (THOMPSON, 1998, p. 17-18).

No decorrer da descrição do aprendizado do ofício, nosso vaqueiro aposentado


enumera os princípios que norteiam o aprender e o ensinar de geração a geração. Neles, o
amor e o orgulho pela profissão aparecem como fundamentais, são uma conquista importante
no processo de aprendizagem que se completa com a descoberta da vocação. Por intermédio
do amor, elo fundante da aprendizagem, se descobre a “vocação”: “A partir daí é preciso ter a
vocação para a lida de vaqueiro [...] aquele que tem a vocação é perigoso, já se dedica e tem a
maior vontade de andar montado”. Atravessado por técnicas e manejos complexos, o ofício de
vaqueiro é considerado como arte que, para ser aprendida, deve ser amada, desejada em
plenitude pelo sujeito em formação. Dos seus 15 filhos (9 homens e 6 mulheres), apenas a
filha Selma desenvolveu a vocação para o ofício. No excerto a seguir, o Sr. Cizinho relata o
que podemos considerar como um paradoxo, uma ambivalência da concepção “tradicional” de
“ser vaqueiro”.

Eu tenho uma menina, ela hoje tá casada, mas ela, ela sabe tirar leite
e ela tira com as duas mão, oia, ela é perigosa, ela senta no
tamborete, prende o caldeirão aqui, entre uma perna e outra e a
vaca mansa, tcha, tcha, tcha, com as duas mão. Mas ela, aquela
menina já era pra ser era um home, porque eu nunca vi daquele
jeito, já andou encourada, ela corria em argolinha, jogava bola era

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1316


danada pra jogar bola. [...] Era nove home, dos nove home teve dois
ou três que mesmo que você quisesse, não tinha como, não era pra
ser vaqueiro mesmo. Você vê que mulher, a Selma [...] (SR. CIZINHO,
2011).

No imaginário nordestino305, vaqueiro é cabra macho, valente, destemido, a imagem de


um homem forte, bravo, de inquestionável coragem e força e capaz de vencer as adversidades
de uma vida hostil; homem que tem por costume cavalgar montado em cavalos e capturar bois
brabos. Ou ainda, aquele homem que aboia e conduz as "reses" campo a fora, montado em
cavalos, trajando terno de couro, perneiras, peitoral, chinelos e chapéu também em couro,
com chicote sempre em punho. O homem encantado, misterioso, dotado de força e dotes até
sobrenaturais. À mulher, neste imaginário, é reservado apenas o trabalho doméstico – a casa,
a labuta com os filhos, as tarefas cotidianas ou ainda o lugar de inspiração para aboios em dia
de missa:

Alegria do vaqueiro é quando o sol lhe vê saindo


É quando o sol lhe vê nascendo
Ele arreia o bezerro, escuta a vaca gemendo
Uma mocinha de lado, oi gado
Pedindo leite e bebendo.
Gosto do cavalo grande,
Que guenta toda pancada
Gosto do homem disposto,
Que guenta toda parada
e amo a mulher bonita, oi gado
embora seja falada, êêeeeeeeeee”. (risos) (SR. CIZINHO, 2011).

Selma vaqueira nos faz refletir sobre “quantas faces já teve o Vaqueiro e quantas terá
além daquela que pôde ser reconhecida” (REIS, 2012). Essas faces, aparentemente opostas,
são circulares, fluidas306e permitem novas visões sobre a estrutura dos mundos masculino e
feminino na caracterização do ofício de vaqueiro.

305
De acordo com Lysiê Reis (2012), a caracterização do oficio de vaqueiro é tema central no seu
tombamento legalizado em 17 de maio, Dia do Patrimônio, pelo Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia. Após o Decreto nº 13.150, de 10.08.2011, constam no Livro de Registros Especiais dos
Saberes e Modos de Fazer do Estado da Bahia as características do ofício, tais como: vestimentas,
maneiras de cantar, de falar, habitar, trabalhar e lidar com o gado. De acordo com Reis (2012), “embora
comemorado, o tombamento dos bens intangíveis guarda pressupostos que merecem reflexão como,
por exemplo, o fato de que tais registros devam ser atualizados periodicamente para acompanhamento
das suas transformações. Ao considerar sua dinâmica, prevê-se que o registro seja refeito a cada dez
anos. Constatada a descaracterização, o tombamento pode ser anulado. É desafiador pensar nisto,
afinal, quantas faces já teve o Vaqueiro? Quantas terá além daquela que pôde ser reconhecida?”
Acrescento outro questionamento “será que “as Selmas vaqueiras” estariam de acordo com a
caracterização do oficio?
Disponível em: <http://www.arqchronos.com/>. Acesso em: 13 set. 2012.
306
Para Hobsbawn (1997, p. 10), “O ‘costume’, nas sociedades tradicionais tem dupla função de motor e
volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1317


A despeito das faces que exibe, o ofício do vaqueiro, mapeado na descrição do Sr.
Cizinho, apresenta-se como uma arte. De acordo com a sua história, o ofício consolida-se por
meio de singularidades e manifestações racionais e “não racionais”, que se concretizam não
somente em cuidados técnicos veterinários, mas, sobretudo, através de sensações,
sensibilidades corporais, religiosas e amorosas para com os animais. Ser um vaqueiro significa
compartilhar sabenças que estão articuladas ao saber-fazer, saber-viver, saber-sentir e, assim,
saber ser.
Desta forma, a aprendizagem do ofício enraíza-se em racionalidades que caminham
lado a lado com as sensibilidades e sentimentos corporais e religiosos, ou seja, em uma
circularidade de influências, em que razão e sensibilidade se conjugam. Para falar, por
exemplo, dos poderes do vaqueiro, o Sr. Cizinho usa a história bíblica do “bom pastor” como
metáfora para explicar que a origem dos poderes do vaqueiro está na bênção recebida por
Deus: “O vaqueiro é abençoado por Deus, porque um dos bicho mais abençoado chama-se de
gado e o zelador... Deus ama o zelador, porque ele zela o gado, né...” (2011).
Esta condição de abençoado lhe permite ter o poder da curar algumas enfermidades da
criação por meio de rezas como essa:

Com três ramos de folha verde ele faz a cura, tira cigarro do bolso,
tudo! E cruzando, primeiro se benze com os ramos e marca o giro e
depois reza a oração, ela é válida: Mosca ponha, vareja seque, bicho
cai e enfermidade sara. Pelos poderes de Deus e da Virgem Maria (diz
três vezes). Depois joga o ramo para trás e quando o ramo começa a
secar, a enfermidade cura... tem que ter fé pra isso (SR. CIZINHO,
2011).

Uma habilidade em transmitir sensações, em uma relação de fé e identificação entre


homem e animal que, reunidos na trama da sobrevivência, encontram canais próprios de
comunicação. A circulação das rezas, do saber técnico relativo ao cuidado com os animais, dos
encantamentos e desencantamentos do ofício estrutura-se no processo de identificação
multissensorial, em que o circuito dessas sabenças é constituído tanto por estratégias racionais
como emocionais e sacrais.
O sacral ganha espaço especial também quando da ritualização e celebração do
aprendizado do ofício, o encouramento. Vestir-se de couro é um dos ritos de passagem mais
esperados pelo jovem vaqueiro, ele é o grande marco no processo de iniciação do neófito
aprendiz. Para o grande dia, o pai compra chapéu de couro, gibão e calça novos e autoriza o
filho a vestir-se a caráter, todo encourado. A ritualização desse marco é realizada durante a
missa dos vaqueiros, que acontece geralmente uma vez por ano. No decorrer da celebração

pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente [...] O ‘costume’ não pode se
dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. O
direito comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de flexibilidade implícita e
comprometimento formal com o passado”.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1318


religiosa307, o filho é apresentado publicamente como novo vaqueiro, ao tempo em que recebe
a bênção do padre em sinal de proteção divina. A seguir, relato do Sr. Cizinho (2011):

Ele vai todo invocado porque vai encorado e ai, o pai vai, compra um
chapéu novo e faz festa, [...] a festa é missa onde o vaqueiro é
entregue a Deus [...] uma formaturazinha, mais ou menos né? aí se
veste de couro, quando ele se enrola de couro, aí já saí com a
confiança. “vá lá pegar aquela rês”. Muitas vez, ele acha, empurra,
peleja pra pegar e não pode, vai embora. Volta sem ela. Volta sem
ela. Aí o pai vai, vumbora, aí chega lá, acha a rês, e ameaça a rês, a
rês corre... na rês “vai pegar menino”, aí o cara mete o cavalo na
caatinga, aí eles, mas os cara, eles se dedica, tem a vocação, o
menino que tem a vocação, ele é perigoso, ele se dedica mesmo, tem
aquela maior vontade de andar montado, de correr e aí, é a vocação,
né?

Assim, as missas dos vaqueiros, ritual de passagem que marca o momento em que o
jovem vaqueiro pode se encourar, foram difundidas de boca em boca, no subterrâneo do
sertão nordestino como uma mítica cultural do vaqueiro. Momento em que a tradição oral
chega ao seu paroxismo no recital de rezas em comum, nos aboios entoados em público e na
entrega e jura do ofício a Deus.
O vaqueiro que cuida do gado na área de terra comum da Serra da Várzea Comprida,
conhecida como refrigero, precisa acrescentar ao seu repertório outros saberes. Ainda criança,
Sr. Cizinho foi com o pai para a serra e um fato marcou seu aprendizado. Ao transportar o
gado para a serra, pai e filho foram surpreendidos por uma chuva forte, bem comum na
região, que encheu de repente o rio que atravessavam. A forte correnteza, então, tornou a
travessia de vaqueiros e animais perigosa. Admirado, o Sr. Cizinho observou naquele momento
uma vaca dentro do rio protegendo o bezerro com o corpo contra a força da correnteza. Esse
dia marcou o início do seu aprendizado “a conhecer a serra e aprender a lidar com o gado por
lá”. Os mistérios e perigos da serra são muitos e é preciso observar bem o que o pai dizia e
fazia para “aprender a se evitar, lá tem muita cobra, carrapato e muita erva que mata as
reses”.
Além de livrar as reses das ervas, é preciso saber curá-las caso sejam ervadas308, o
vaqueiro, em situações como esta, conta com poucos instrumentos de trabalho, como a corda,
que coloca no boi doente, o que chamam de colocar nas corrêa309, o alimento e a reza. O
processo de aprendizagem do ofício de vaqueiro, recuperado por uma espécie de memorial
mediado pelo contexto em que ocorreram as entrevistas (casa, quintal/curral), nos revelou a
fartura de simbologias, práticas de sobrevivência e características ambientais singulares, como

307
Neste dia de festa, os aboios com versos cantados por duplas de vaqueiros são o momento do ritual
mais esperado por todos. As melhores duplas ganham prêmios.

308
Expressão usada por Sr. Cizinho que significa que o animal foi envenenado por ervas.
309
Técnica em que o vaqueiro coloca de pé a vaca caída e sem forças por meio de cordas amarradas ao
corpo da vaca.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1319


também relações com recursos técnicos veterinários e agrícolas, relações parentais e
transformações entre modos de se relacionar com o ofício.
O universo das técnicas e manejos da fauna e flora que revestem os saberes produzidos
“na roça” constitui o “patrimônio cultural e simbólico” (RIOS, 2011, p. 173) dos moradores da
roça que, mediados pelos desafios do contexto em que estão inseridos e das relações e
experiências que estabelecem com seus vizinhos e familiares, praticam, segundo a autora, a
“ciência da roça”. Assim, fazem parte do universo racional dessa ciência os seguintes saberes
práticos: previsões climáticas; localização espacial e temporal; práticas de cura e simbologias
religiosas; conhecimento sobre o ciclo de vida de plantas e animais; rigor e método nas
aprendizagens individuais e coletivas; diversidade linguística: práticas de oralidade (RIOS,
2011, p. 170-187).
De forma análoga às reflexões de Rios (2011), percebo que os sentidos dos saberes
locais mapeados durante a pesquisa de campo possuem obediência às pistas deixadas nas
entrelinhas da natureza; práticas de localização espacial baseadas nas relações de parentesco
e vizinhança, bem como baseadas em nome e característica de bichos e plantas locais310;
noção temporal baseada na posição da lua e do sol; relação com a religiosidade na cura das
pessoas e animais; obediência a códigos de uso da fauna e da flora, atento aos benefícios e
riscos à saúde dos homens e dos animais311; rigor e método baseado na repetição,
memorização e obediência das práticas cotidianas; por último, possuem cultura oral marcante
e gramática peculiar312. Enfim, a biografia de Sr. Cizinho nos apontou sentidos do processo de
formação do seu ofício que podem ser esboçados por meio destas características
intergeracionais, contextuais, circulares, ambivalentes e multissensoriais.

Considerações finais

Os principais conflitos que marcavam a história de luta da comunidade tradicional


Mucambo, em Antônio Gonçalves, BA, se caracterizavam pela ação dos fazendeiros
pecuaristas, grileiros de terra e mineradores. O exercício interpretativo que tentei empreender
no processo da pesquisa foi capaz de identificar que os sentidos dos saberes empregados pelos
“sujeitos atores-autores”, no caso específico deste trabalho do Sr. Cizinho, se caracterizaram
como resposta ao conflito instaurado. Esses sujeitos dirigiram como resposta ao conflito
“táticas”313 de luta bem específicas e referenciadas na dinâmica dos saberes construídos e
mediados pelas relações de reciprocidade entre as famílias, as lições de pai e mãe para filhos e
filhas, o caráter lúdico e sacral do saber-fazer da comunidade, “o sentimento topofílico”, a
radicalidade da “dimensão geocultural” da produção de conhecimentos, a criatividade e força

310
Cito como exemplo os nomes dos rios que nascem na serra Gonçalu, os cari, mangabeira, mucambo
garimpo de esmeralda, várzea da cruz da queimada, grotão, etc.
311
Exemplo disso é a fala de Sr. Cizinho, a rês que tá intoxicada da erva da serra, você vai mexer com ela,
vai viajando, ela começa a ficar em pé, começa a urinar aos pouquinhos, vai como daqui ali, vai urinar
novamente, né. Aquela ali tá intoxicada, pode parar com ela.
312
Bater o caruá significa morrer;bimbarra - instrumento feito de pau que auxilia a passagem das
pessoas de uma margem à outra do rio quando está muito cheio; caniço - espécie de cerca feita por
dentro do rio; casa de enchimento - mesmo que casa de pau a pique; cavagem - mesmo que
terraplanagem ; boi ou pessoa inzonada - quer dizer teimoso (a), com ideia fixa.
313
No sentido de Certeau (2011), tática, a arte do fraco.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1320


da cultura oral e os paradoxos desses processos de identificação. Todos esses aspectos
recriaram possibilidades de trânsito dos saberes, tramados no interior do seu contexto, como
força política demonstrando, dessa forma, a vitalidade e a dinamicidade do “estado
pedagógico” constituído nesse contexto tenso.
Na narrativa do Sr. Cizinho, foi possível identificar o trânsito dos saberes e sentidos
educativos da sua profissão com as “táticas” empregadas por ele e seus pares na defesa da
terra. Foi possível compreender que, no momento da ameaça, os moradores usuários da área
de terra comum, inclusive o Sr. Cizinho, não tinham apoio político e material para enfrentar os
grileiros, fazendeiros e mineradores. Eles tiveram que enfrentar as ameaças com o que
dispunham – a vitalidade de suas sabenças costumeiras. Sabenças que tomaram força e se
ampliaram no momento em que a pressão sobre o território foi instaurada. Assim, a memória
do grupo passou a atuar como criadora de táticas, ao tempo em que recuperou códigos
internos permanentemente aprendidos na ambiência familiar, religiosa e do trabalho na roça.
Nesse sentido, a resposta dada por Sr. Cizinho e os demais moradores teve como base
a relação complementar entre o conhecimento aprofundado da área em questão, ocupada
desde tempos imemoriais por seus antepassados e, especialmente, com os sentidos familiares
e de compadrio tecidos na roça, na casa e na igreja. Assim, o arcabouço de sabenças alimentou
as seguintes táticas de luta: a roça comunitária organizada por 18 famílias do Mucambo na
área do conflito de terra; instalação do cruzeiro como marco de legitimação da luta, no local
do conflito os moradores organizaram uma romaria que culminou com a instalação de um
cruzeiro todo enrolado com arame farpado do grileiro e, na parte superior da cruz, prenderam
placa com a frase “Esta terra é do povo”; e o “vento da meia-noite”, mutirão secreto que agia
durante a noite retirando todo o arame farpado usado pelo fazendeiro para impedir a
passagem dos moradores.

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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1324


Passos iniciais do cronista João Ubaldo Ribeiro: o riso no contexto da ditadura militar

Karina Ramos Babosa


UFBA
karinarbarbosa@gmail.com

O contexto da ditadura militar marcou na Bahia as linhas do antigo Jornal da Bahia com marcas
indeléveis nas páginas do colunismo do periódico baiano. É nesse contexto, entre os anos 1969 e 1970,
que fica inscrita na coluna de crônicas Satyricon, os passos iniciais do cronista João Ubaldo Ribeiro.
Tendo já escrito o livro Setembro não tem sentido, bem como com contos e outros escritos, João Ubaldo
faz das páginas da referida coluna do jornal baiano um espaço de apreciações críticas e comentários e
narrativas, eivados de riso, ironia e sátira. Ainda nesse lugar, o cronista aponta para os passos iniciais da
sua produção romanesca, de sua trilha como colunista e de sua vida pessoal. A habilidade com a escrita
conduziu o escritor ao trabalho com o jornal desde a adolescência, sendo que ele, as duas trilhas, da
literatura e do jornalismo, são complementares. Entretanto, a coluna Satyricon apresenta, de forma
cômica, incertezas e inseguranças financeiras e profissionais de um escritor em ascensão. Além disso,
traz um subsídio valioso como retrato de problemas enfrentados pela população baiana e
soteropolitana, com a ironia peculiar ao estilo que marcaria a escritura ubaldiana. Ao seu olhar atento,
não passaria despercebida a tensão vivenciada pelo periódico com os reveses da ditadura militar. Diante
dos desafios dos jornalistas e intelectuais para sobreviver aos desafios da censura imposta pelo ato
constitucional número 5, foi preciso o uso da criatividade e da sutileza para não cair no discurso da
alienação ou do silêncio. Em Satyricon, João Ubaldo Ribeiro faz do riso e da comicidade grandes aliados
para driblar a mordaça ideológica.
Palavras-chave: João Ubaldo Ribeiro; Ditadura militar; Memória e história.

Introdução

É um desafio relatar como se deram os primeiros passos do escritor João


Ubaldo Ribeiro como cronista, na sua segunda experiência no antigo Jornal da Bahia,
entre os anos de 1969 e 1970. Essa trajetória deu-se no referido contexto histórico,
onde o então cronista compreende, reflete, analisa experiências vivenciadas pelos
cidadãos baianos e soteropolitanos contemporâneos. Em meio ao sucesso da copa do
mundo de 70, jornalistas e intelectuais sofriam com as marteladas e a mordaça
ideológica imposta pela ditadura militar no Brasil, especificamente delimitadas pela
ação impetrada através do ato institucional número 5. No campo do Jornal da Bahia,
os colaboradores e editores sentiram diretamente os reveses do golpe. Mas o poder
do uso da palavra escrita, na crônica diária, próxima do leitor, dialógica foi um
instrumento utilizado por João Ubaldo Ribeiro para retratar acontecimentos e eventos
inusitados e de importância história e social. O riso como recurso retórico e estético,
aliado à ironia e a sátira apresenta a dura realidade vivenciada pelos intelectuais,
silenciados pela imposição ditatorial. Uma saída com graça que merece ser deslindada
com apuro.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1325


A trilha inicial como cronista

Dentre os atributos mais conhecidos do escritor João Ubaldo Ribeiro, destaca-


se o de grande leitor. Reconhecida por ele mesmo, a sua trajetória como leitor inicia-se
desde a sua fase infantil. A sua habilidade com as palavras, decorrente da sua
familiaridade com livros e clássicos, rende-lhe a sua experiência como redator de
jornal aos 17 anos, quando juntamente com Glauber Rocha, atua no Jornal da Bahia.
Dessa sua primeira experiência, algumas trilhas se delinearam na trajetória do
escritor, dentre as quais a de romancista em ascensão, de contista, de redator de
jornal. Dessa experiência como redator, João Ubaldo Ribeiro retorna em momento
posterior, agora já graduado em Direito, mestre em Economia, e tendo já iniciado sua
carreira literária. Desta feita, ele será responsável pela produção da coluna Satyricon,
uma coluna de crônicas escritas desde janeiro de 1969 até agosto de 1970.
Nos idos dos anos 70, acompanhado por um grupo de amigos e num espaço
seminal de desenvolvimento intelectual, figura a importância do nome de Glauber
Rocha, reconhecido por João Ubaldo como grande amigo e inspirador para o início da
sua trajetória na produção literária. Decorridos alguns anos desse início entusiástico
que definiria o rumo de muitos intelectuais baianos, surgiria uma geração profícua em
textos idéias e reflexões críticas sobre a sociedade. É a respeito dessa geração e dos
conflitos ideológicos por ela enfrentados que Moacyr Scliar se refere a ela com as
seguintes palavras:

“Nossa geração começou a publicar nos anos 60 e 70. É uma geração


marcada, portanto, pela conjuntura política: pelo golpe de 64, pela
repressão pela censura. Tudo isto está em João Ubaldo... Poucos
escritores captaram, como ele, o espírito de nossa gente.( BERND,
2001, p.9)

É também esclarecedor o depoimento de Cacá Diegues, ao comentar como foi


seu encontro inicial com o João Ubaldo:

Num fim de tarde, fui procurar Ubaldo na sede do extinto Jornal da


Bahia onde, se não me engano ele já era coisa para burro na redação.
Jornalista ainda jovem, porém já muito conhecido e respeitado, ele
tinha acabado de chegar de uma temporada de estudos nos Estados
Unidos, de onde voltara com muita informação literária nova e um
inglês de humilhar. (FRANCESCHI, 1999, p.16)

A julgar pela descrição acima, percebe-se a referência ao segundo momento de


colaboração no Jornal da Bahia, onde João Ubaldo passa agora a atuar como colunista
na coluna Satyricon. As palavras de aparente falsa modéstia do escritor abaixo
confirmam, porém, a importância da imprensa na formação da sua carreira como
intelectual.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1326


Eu fui um péssimo repórter porque era tímido demais. Mas, como
falava inglês bem era sempre designado para entrevistar
personalidades que se expressavam nesse idioma. Outra qualidade
que me ajudou a subir nos jornais em que trabalhei: eu escrevia
rápido. Tinha bom senso e era ligeiro: quem trabalha na imprensa
sabe o quanto isso é importante na redação. Além do mais, eu
trabalhava muito. Fazia sozinho quase o jornal inteiro.
(FRANCESCHI, 1999, p. 31)

A trilha de jornalismo fomenta a de escritor que revela o aspecto modelador


imposto pela imprensa diária. “O Jornalismo dá disciplina. A matéria precisa ter 28
linhas e ponto. Quarenta e cinco linhas e ponto. Com horário marcado: o jornal fecha
às 11 e 30. Não há saída: você tem que escrever.” (FRANCESCHI, 1999, p. 32)

Em meio à modelagem das laudas exigidas no jornal e às exigências quanto à correção


na prática de redação, restava para Ubaldo e seus pares, o frescor do início de uma carreira na
qual abundavam sonhos, entusiasmo e expectativas de dias melhore, com direito à toda
espontaneidade que a juventude permite, como ele revela: “Estávamos lá, com nosso vigor e
nossa irresponsabilidade juvenil, todos se sentido (sic) poderosos, imortais, capazes de mudar
o mundo. O futuro era cor-de-rosa para nós.” (FRANCESCHI, 1999, p. 32)

O ofício diário de produção de jornais aguça a técnica e estabelece o ritmo da


produção literária inicial de João Ubaldo Ribeiro. Dos anos de experiência inicial no
Jornal da Bahia, ficou o incentivo do amigo Glauber estimulando-o a escrever sobre o
Brasil e a preocupação com questões de ordem política e social começam a serem
exploradas na coluna Satyricon.314

Presença e importância social e cultural da coluna

Os anos de 1969 e 1970 foram marcados no Brasil por muitos acontecimentos


ligados à história da ditadura militar recém-instaurada desde o golpe em 1964. Além
disso, eventos no entorno desse contexto atestavam um ambiente político de tensões
em todas as esferas da sociedade.
É nesse conturbado cenário, que se inscreve no histórico Jornal da Bahia a
produção de crônicas, numa coluna sugestivamente intitulada Satyricon predizendo no
nome o viés cômico, satírico e irônico de muitos seus escritos.
A coluna, assinada por João Ubaldo Ribeiro com as inicias do primeiro nome e
sobrenome, com o último sobrenome desdobrado, marcava o retorno celebrado do
escritor àquele periódico, agora como colunista. No referido locus histórico, o então

314
O comentário de João Ubaldo Ribeiro Em 20 de julho de 2012 confirma a influência do colega e
amigo Glauber Rocha no incentivo à produção literária.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1327


cronista compreende, reflete, analisa experiências vivenciadas pelos cidadãos baianos
e soteropolitanos, numa escrita reveladora, próxima do tom de bate-papo, de diálogo
intimista e, por vezes, confessional.
O espaço Satyricon é uma porta aberta ao diálogo, ao encontro com o leitor e do seu
leitor com sua escrita, também literária. Exemplo disso é a transcrição a seguir de
trecho de uma dessas crônicas, na qual o escritor-cronista delibera sobre como se dá a
recepção de seu romance “Setembro não tem sentido”315:

Mas não é isso. Eu tenho um livro escrito e algumas pessoas


compram êsse livro. Como o título é “Setembro Não Tem Sentido”,
suponho que os compradores são todos nascidos em Setembro, que
julga poder esclarecer, pela leitura do livro, tão insólita afirmação
sobre seu mês de aniversario. Pessoalmente eu nunca vi ninguém
compara meu livro, embora tenha feito diversas tentativas,
encostado pelos cantos das livrarias, olhando os balcões de soslaio,
com ares misteriosos. Dever ter gente que pensa que eu sou
investigador, ou coisa parecida. Mas só vi alguém pegar meu livro
uma vez e foi uma velhinha muito simpática, que segurou um
exemplar, abriu no meio, leu durante cerca de um minuto, cheirou e
largou o troço lá mesmo. Não deve ter gostado do cheiro. Outra vez,
presenciei uma devolução. Uma moça trocou meu livro por dois
romances policiais, daqueles portugueses. Bem, pelo menos valia
dois romances policiais. Só que ela não precisava ter usados aquêles
objetivos em relação a meu livro, feriu meus sentimentos. (RIBEIRO,
05 jul. 1969).

A coluna não apenas apresenta acontecimentos relacionados à carreira


iniciante do escritor, traz também um conjunto bastante variado de assuntos, numa
diversidade de temáticas entrelaçadas tão somente pela presença do viés de
comicidade na quase totalidade dessas produções de crônicas.

A crônica no universo tenso de Satyricon: ao rés do chão da Bahia

O lastro histórico em que é veiculado o Jornal da Bahia explica a necessidade de


um brado heroico que refletisse o discurso das vozes silenciadas, escondidas também
na linha editorial do Jornal da Bahia sob o comando editorial de João Carlos Teixeira
Gomes. João Falcão, sócio majoritário e mantenedor do periódico, narra alguns
acontecimentos marcantes daquele período.

315
O romance “Setembro não tem sentido” foi escrito em 1968, no ano anterior à crônica “O Sucesso
literário”, esta publicada no Jornal da Bahia em 05 julho de 1969 e citada nesse trecho do artigo.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1328


“O jornal da Bahia marchava firmemente seu caminho, quando em
abril de 1964, a vitória da ditadura, que chamaram de “revolução”,
impôs uma longa censura em toda a imprensa do país. Em 1970, foi
nomeado para governar a Bahia o ex-prefeito e governador biônico
Antonio Carlos Magalhães, que se tornou inimigo implacável do
jornal, obcecado pelo propósito de fechá-lo.”316

Três anos depois da posse do novo editor chefe, ocorreria outra que se
confundiria ainda mais com a história do periódico. Trata-se da posse de Antonio
Carlos Magalhães como prefeito da cidade de Salvador. O relato ainda fica por conta
de Teixeira Gomes pela relação estabelecida entre o evento e suas consequências
imediatas:

“Sua posse ocorreu em 13 de fevereiro de 1967 e tempos depois se


revelaria desastrosa para o Jornal da Bahia, pois foi ainda como
prefeito que ele iniciou, em 1969, as sistemáticas perseguições
destinadas a submeter ou silenciar o matutino, dando sequência ao
duro assédio militar contra o jornal e seus integrantes. Logo após
instaurado o golpe, além das minhas frequentes idas ao quartel da VI
Região para receber ameaças e das periódicas invasões da nossa sede
para a coleta de documentos nos arquivos (...).” 317

A disputa entre o prefeito e o Jornal da Bahia foi corporificada pela nota


publicada pelo colunista político Newton Sobral, escrita na página 3 da edição de 4 de
outubro de 1969, a qual registrava o desafeto e qualifica o político como
demasiadamente político e insuficientemente “polido” e por ser um elemento
desagregador da ARENA.318
A guerra citada acima pode ser compreendida a partir do destaque de Sobral.
Nele são registradas as tensões entre a autoridade política empossada de forma
arbitrária versus algumas correntes de pensamento de esquerda que reagiam aos
golpes da ditadura. Dentre estas, encontram-se os intelectuais colaboradores do Jornal
da Bahia.
Os conflitos ideológicos refletiram-se nas malhas da produção cronística e
jornalística como parte do cotidiano dos jornalistas e colaboradores do periódico. João
Carlos Teixeira Gomes registra a tensão daquele momento:

“Eu assumira a chefia da redação do Jornal da Bahia interinamente


logo após o golpe, em virtude de um colapso nervoso sofrido pelo

316
Id. p. 10.
317
Id. p. 61
318318
Id. 62-63. (Expressão usada na nota citada e disponível integramente no livro de João Carlos
Teixeira Gomes)

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1329


titular anterior que, diante de sucessivas da nossa rede por tropas
militares, em busca de documentos incriminadores, fora vítima de
uma disbulia e refugiara-se em casa, incapacidade de sair.(...) o fato
de nunca pertencera ao partido Comunista, nem desenvolvera
militância ideológica, fora providencial para a minha permanência no
cargo...
A minha independência moral conferia-me autoridade moral
para lidar com generais e coronéis ameaçadores.”319

Nesse tenso terreno ideológico, emerge a produção da coluna Satyricon, na


qual é encontrada uma infinidade de tipos e gêneros textuais que vão desde poemas, a
questionários, cartas, etc. Se quanto à estrutura encontram-se uma infinidade de
gêneros e tipos, a escolha temática também é diversificada. Assim mesclam-se dentre
os assuntos observados: Arte e cultura, Comida ou abastecimento de carne;
administração pública; política internacional, relatos; pessoal; notícias inusitadas;
insetos; linguagem; cidadania; viagem espacial; futebol; o seu ofício como cronista;
dentre outros.

A crônica: um entrelugar privilegiado

Algumas considerações sobre a crônica como gênero são necessárias, visto que
algumas das suas características são claramente encontradas nas produções da coluna
Satyricon.
A crônica, caracterizada pela fugacidade do jornal como periódico diário, sofre
com ele da pressa, do relato do circunstancial, da voracidade cotidiana dos
acontecimentos diários relatados que servem com substrato a muitas produções.
É João Ubaldo que descreve a rotina:

Se o simpático cavalheiro, ou a bela senhorita, que agora me lêem,


ficam sem saber porque levei tanto tempo para chegar ao assunto,
informo que esta crônica ocupa duas laudas e meia de papel a 30
linhas por lauda, de maneira que ninguém pode culpar-me por
encher um bocadinho de linguiça de vez em quando visto que não é
mole a gente cascar duas laudas e meia todo santo dia.. (RIBEIRO, 15
de jul.1969)320

O tom de aproximação e de bate-papo presente no trecho dessa crônica


estabelece uma oportunidade de diálogo direto com o leitor, permitindo ao cronista
desenhar uma persona narrativa num tom suposto de desabafo sobre as agruras do
seu ofício de redator diário.

319
GOMES, João Carlos Teixeira. Memórias das Trevas. São Paulo: Geração Editorial, 2001.p.53-54.
320
A crônica “O sucesso literário”, publicada novamente

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1330


O tom de diálogo permite à crônica transitar entre os terrenos escorregadios da
historiografia ao circunstancial, aproximando o tom formal de relato historiográfico
das margens da literariedade. O diálogo entre cronista e leitor se estabelece de forma
menos performática do que em outros tipos de narrativa literária.

O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literário, permitindo


que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento
provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo
tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas
conversas diárias e em nossas reflexões, quando também
conversamos com um interlocutor que nada mais é do que nosso
outro lado, nossa outra metade, sempre numa determinada
circunstância. (SÁ, 1985, p. 23)

Aliado ao dialogismo, o traço de leveza, presente no relato dos assuntos


cotidianos, faz da coluna Satyricon um espaço de entretenimento, ao mesmo tempo
em que permite o diálogo entre o relato jornalístico e historico. João Ubaldo Ribeiro
constrói nessa coluna um leque de produções onde transitam vários gêneros textuais
como carta, paródia de discurso histórico, poema, contos seriados e até reprodução
das falas de programas televisivos, dentre muitos outros. Nessa última categoria,
podemos encontrar um exemplo no excerto abaixo:

“Senhoras e senhores, a televisão baiana também está presente ao


lançamento da nave Apolo 9, com destino à Lua, através do satélite
Immersault. Alias não é bem assim o nome do satélite. Como é
mesmo o nome do satélite, Miranda? Intossalt? Iterzalt? Pois bem,
através dessa maravilha da era espacial, que é o satélite Iniusalt,
podemos finalmente proporcionar aos telespectadores, diretamente
de Cabo Kennedy, a oportunidade de contemplar em pri"meira mão a
vista do homem a lua. É verdadeiramente empolgante, senhores
telespectadores! Vamos agora tentar o primeiro contrato com a
imagem de Cabo Kennedy. Alô, alô, Cabo Kennedy. Alô, alô!.”
(RIBEIRO, 11 jan. 1969)

Além de representar o tom interativo dos programas televisivos, o relato acima


resgata a vibração do momento da ida do homem à lua, conferindo ao ocorrido uma
interpretação jocosa, instaurando o espaço dialógico, despretensioso e aproximado do
leitor diário do jornal. No diálogo previsto na crônica como gênero híbrido entre
literatura e jornalismo, reside a oportuna inserção do leitor, também cidadão e
portador de uma identidade cultura e social, nos assuntos da sociedade local.
O cronista registra não apenas o destino do Periódico, mas está também
interessado em saber quem são seus leitores.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1331


Considerando o contexto da recepção, o cronista de Satyricon relata a sua
reação quanto à receptividade de suas produções cronísticas:

“Finalmente, a recepção que obtenho nos lugares que freqüento é


suficiente para recompensar o trabalho diário. Geralmente, um
amigo meu me apresenta:
__ Este é o rapaz que escreve Satyricon.
__ Quê escreve o que? – pergunta o apresentado, polidamente.
__ O Satyricon. Ah-ah! Não sabe? Aquela coluna do Jornal da Bahia?
__ Pois não, pois não – diz o apresentado. – Agora que conheço o
senhor, vou procurar ler.
__ Não vale a pena – digo eu, modestamente, e vou saindo.
Aí, junto do bar, encontro sempre um conhecido, que me bate no
ombro entusiasticamente.
__ Como vai, tudo bem? Tenho lido sempre suas crônicas! A de hoje
está muito fraca, muito fraca!
__ Não espalhe – digo eu.”
(RIBEIRO, 14 jul. 1970)

O diálogo parece tão claro e direto nas cronicas que o narrador sai da sua
dimensão de redator para promover uma aproximação inusitada com seu público
leitor. E, dessa forma, tenta conquistá-lo.

O drible do riso: um recurso retórico e uma saída

Dos acontecimentos registrados no Jornal da Bahia, muito do que se escreve é


descrito e narrado com leveza no universo da coluna Satyricon, através da
experimentação de um estilo de escrita arguto, irônico, com sátira e humor. As
crônicas escritas apresentam uma apreciação lúdica e zombeteira no relato dos
acontecimentos circunstanciais, factuais, além das narrativas inventadas ou paródias
de relatos. O riso permite carnavalizar os fatos mencionados no periódico e inferir
interpretações inusitadas. Vale conferir as palavras de Mikhail Bakhtin a respeito:

”(...)o riso e a visão carnavalesca do mundo... destroem a seriedade


unilateral e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a
imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o
desenvolvimento de novas possibilidades. Daí, que uma certa
carnavalização da consciência precede e prepara sempre as grandes
transformações, mesmo no domínio científico.(BAKHTIN, 1996, p.43)

Historicamente, a comicidade não é observável apenas na crônica, mas


também em outras composições literárias e merece ser compreendida para além do
mero desejo de diversão.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1332


Para tanto, retornemos a Aristóteles, para quem a poesia cômica imita as ações
de personagens com as mais baixas inclinações, volta-se para as ações ignóbeis,
indesejáveis ou inaceitáveis. A comédia, assim compreendida, é imitação de homens
inferiores ou, pelo menos, em atitudes ignóbeis.
Percebemos que a análise de torpezas e baixezas ligadas à imitação da natureza
humana, nesse viés, coube à comédia e, por extensão, à comicidade observada em
outras composições literárias, dentre as quais a crônica.
A apreciação do risível confere ao relato das crônicas de Satyricon uma relação
mais direta com assuntos que, de forma séria, não seriam tratados com tanta
desenvoltura ou liberdade. O tom amoral dos relatos cômicos dessa coluna permite,
no conjunto das produções citadas, a abordagem de questões políticas, ideológicas e
de cidadania que no tom sério de alguns textos literários ou jornalísticos.
Para Henri Bergson, o cômico se destina à inteligência pura. E podemos
perceber que, para produzir a comicidade, é preciso que o narrador ou o poeta
mantenha seu olhar de cima para baixo. De outro modo, para fazer rir, é preciso
refletir, diferentemente do pathos evocado pelo olhar trágico.
Percebemos, conforme Bergson, ser necessária certa anestesia momentânea
do coração para a produção do efeito cômico. Além disso, segundo ele, é claramente
observável a dimensão social do riso: não se pode desfrutar o cômico estando isolado.
É nessa dimensão coletiva e de repercussão social necessária para produção do
cômico que se insere a tradição de produção cronística de João Ubaldo Ribeiro e, em
especial, a gênese dessa sua trajetória inicial como colunista do Jornal da Bahia.
A respeito do desvio produzido pelo cômico, é útil ler a observação de Bergson:

Homens como D. Quixote são também corredores que caem, e


ingênuos a quem se engana, corredores do ideal que tropeçam em
realidades, sonhadores cândidos que a vida maliciosamente espreita.
Mas sobretudo grandes desviados, com uma superioridade sobre os
demais, dado que o seu desvio é sistemático, organizado em torno de
uma idéia central – porque as suas desventuras estão também
ligadas, bem ligadas pela lógica inexorável que a realidade aplica para
corrigir o sonho – e porque provocam em torno de si, por efeitos
capazes de se somarem sempre uns aos outros, um riso cada vez
maior. (BERGSON, 1983, p. 11)

É compreensível a escolha do tom sugestivo da comicidade para tratar de


tensões que envolviam desde a sobrevivência do periódico até o risco de vida e o
silenciamento a que foram submetidos os seus redatores e colaboradores.
O riso estaria, de outra sorte, ligado ao traço de uma leitura diferente proposta
pela crônica, se comparada a outros gêneros presentes no jornal diário:

Dado que a função da crônica não é a de informar, sua relação mais


próxima com o jornal está com o fato diário, fato este que se torna

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1333


mote do cronista. Cabe avaliar em cada cronista se este mote é o que
sufoca a crônica ao papel degradável do jornal.
Quando lemos este gênero buscamos uma leitura breve, agradável,
com fluência. (MARTINS, 2010, p. 109)

No universo Satyricon, essa leitura agradável funciona também como um drible


à mordaça ideológica imposta pela ditadura militar e sentida naquele contexto local,
tanto na sociedade quanto na redação do jornal da Bahia. Nenhuma das crônicas faz
menção direta à ditadura, mas pelos elementos apresentados, fica clara a alusão à
mordaça imposta pelo regime.
Para resolver esse problema do silenciamento, João Ubaldo Ribeiro encontra
como saída o recurso do riso, da comicidade que, atenuando a tensão dos
acontecimentos, permite uma leitura alternativa e leve, embora nem por isso, ingênua
ou inócua.
O riso encontra na crônica o espaço ideal para manifestar suas verdades
incontidas no discurso oficial de outros textos, considerando que sua função seria mais
entreter do que propriamente informar:

Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de


informara e comentar (...) para ficar sobretudo com a de divertir. A
linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (...) se
afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar
poesia adentro.” (CÂNDIDO, 1992, p. 15)

A comicidade foi uma saída plausível e compreensível, especialmente no


contexto ditatorial, onde se encontrava inserida a publicação dessa coluna de crônicas.
Algumas das publicações fazem uso alusivo à situação, mesmo que de maneira
indireta.

Em muitas crônicas, foi necessário o uso da ironia, da paródia e em outros


casos, o de ambas. Para esclarecer melhor o termo paródia, é necessário citar a sua
definição, segundo aponta Afonso Romano de Sant’Anna (1988, p.12): “O dicionário de
literatura de Brewer, por exemplo, nos dá uma definição curta e funcional: “paródia
significa uma ode que perverte o sentido de outra ode (grego: para- ode)”.

Sant’anna aponta a definição de três tipos básicos de paródia definidas por


Shipley no seu dicionário de literatura. Dentre elas, está a paródia verbal, onde ocorre
alteração de uma ou outra palavra do texto. Essa relação da paródia com o texto
musica (ode) e sua modificação pode ser vista no excerto de crônica a seguir:

Esta edição de alguns trechos da Bíblia Sagrado é dedicada


especialmente aos deputados federais do Brasil.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1334


“O meu amado é para mim um ramalhete de mirra. Morará
entre os meus censurados.
“Eis como és gentil e agradável, oh amado meu: o nosso
censurado é viçoso.
“O meu amado é semelhante ao gamo ou ao filho do
censurado: eis que está detrás de nossa parede, olhando pelas
janelas.
“ O teu pescoço é como a torre de David, edificada para
pendurar armas: mil escudos pendem dela, dos broquéis de
valorosos.
“Os teus dois censurados são como dois olhos gêmeos de
gazela, que se apresentam entre os lírios.
“Favos de mel manam dos teus lábios, oh minha espôsa! Mel e
leite estão debaixo de tua censurada e o cheiro dos teus vestidos é
como o cheiro do Líbano.
“Os teus censurados são um pomar de romãs com frutos
excelentes: o cipreste e o nardo.
“Levanta-te, vento norte, e vem tu, vento sul: assopra no meu
jardim para que se derramem os seus aromas: ah, se viesse o meu
amado para o seu jardim e censurasse os seus frutos excelentes!
(RIBEIRO, 1970, caderno 2, p. 2)

Nesse texto, lê-se a paródia de alguns trechos do texto bíblico de Cantares de


Salomão ou Cântico dos Cânticos, onde o poeta faz uma descrição, no texto parodiado,
da mulher amada. A comicidade da crônica transcrita acima é produzida pela
supressão das palavras ligadas às partes eróticas do corpo ou quaisquer palavras
consideradas inaceitáveis naquele contexto repressor da ditadura. As palavras como
seio, seios, veado seriam objeto de censura e, portanto, substituídas pelas palavras:
censurado, censurada ou censurados.
A paródia, nesse caso, viabiliza uma crítica que só poderia ser velada, naquele
contexto ditatorial, onde o uso indiscriminado das palavras poderia representar uma
armadilha ou ameaça aos cidadãos. A crítica velada e, ao mesmo tempo, direta
(dedicada especialmente aos deputados federais) retoma a questão da censura, do
silenciamento, da falta de liberdade de expressão que marcavam aquela geração.
O riso espraia-se na coluna também como objeto de um discurso mais
autobiográfico. A coluna Satyricon coincide com o início da carreira literária de João
Ubaldo Ribeiro, desenvolvida paralelamente às suas atividades como redator, cronista
naquele contexto. O trecho da crônica abaixo citada serve como registro do espaço
biográfico, onde o escritor comenta a recepção da sua obra literária, de forma leve, e
despretensiosa:

“Mas não é isso. eu tenho um livro escrito e algumas pessoas com


pra êsse livro. Como o título é “Setembro Não Tem Sentido”,
suponho que os compradores são todos nascidos em Setembro, que

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1335


julga poder esclarecer, pela leitura do livro, tão insólita afirmação
sobre seu mês de aniversario. Pessoalmente eu nunca vi ninguém
compara meu livro, embora tenha feito diversas tentativas,
encostado pelos cantos das livrarias, olhando os balcões de soslaio,
com ares misteriosos. Dever ter gente que pensa que eu sou
investigador, ou coisa parecida. Mas só vi alguém pegar meu livro
uma vez e foi uma velhinha muito simpática, que segurou um
exemplar, abriu no meio, leu durante cerca de um minuto, cheirou e
largou o troço lá mesmo. Não deve ter gostado do cheiro. Outra vez,
presenciei uma devolução. Uma moça trocou meu livro por dois
romances policiais, daqueles portugueses. Bem, pelo menos valia
dois romances policiais. Só que ela não precisava ter usados aquêles
objetivos em relação a meu livro, feriu meus sentimentos.” (RIBEIRO,
15 jul. 1969)

Não apenas a sua obra é citada em Satyricon, mas nesse viés autobiográfico,
João Ubaldo faz também menção, por diversas vezes, de seu oficio como cronista,
como o que segue:

“É sempre consolador saber que o que a gente escreve tem um destino


condigno. O que a gente escreve são os nossos pensamento solidificados na
tinta e no papel para as gerações futuras. Dessa forma nunca morremos,
nós, os que escrevemos. Tudo o que sai de nossa mão e ganha a impressão
fica permanentemente incorporado ai patrimônio da posteridade. Isso
pode ser comprovado, inclusive, através de um levantamento que eu fiz
ainda outro dia, sobre o destino de minhas crônicas, que é o seguinte:
Exemplares estragados, enquanto o pessoal da rotativa acerta a máquina –
500.
Papel de embrulho para peixes, ovos, abacaxis e produtos diversos – 5.400
Embalagem para o chamado “pombo sem asa” – 600
Fôrros para latas de lixo, cachorrinho da madame e quejandos – 1.900.
Papel higiênico – 3.200.
Coleções dos membros do meu numeroso fã clube – 2.
Neste levantamento, é claro, há algumas imprecisões, porque nunca é fácil
a gente obter todos os dados referentes a determinado problema. Haverá,
na verdade, uns dois ou três usos para minhas crônicas que eu prefiro
ignorar, com altivez que me caracteriza”. (Ribeiro, 15 jul. 1969)

Além do exercício como redator diário, nas descrições feitas nessa produção,
Ubaldo ironiza a respeito da transitoriedade do texto de jornal, brincando com
números e situações diversas a que seriam destinadas as folhas do periódico.
A comicidade é um recurso favorável também ao enfrentamento da censura à
imprensa imposta pela ditadura. O fato não passa despercebido como objeto de crítica

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1336


em Satyricon, onde João Ubaldo Ribeiro, de forma mais explícita, faz uma leitura crítica
da postura de personalidades da política local em algumas produções da coluna.
Eis aqui um trecho de uma hipotética entrevista, onde se nota a menção ao
prefeito em exercício pelas iniciais do entrevistado321:

“- Então o senhor acha que o Ministro não é esquerdista?


- Não, meu filho, não ponha palavras em minha bôca. Êsse, aliás, é um
hábito de toda essa imprensa infiltrada e controlada por comunistas! Ficam
deturpando nossas declarações, escrevendo coisas que não dissemos,
contribuindo para lançar um clima de mal estar em toda a nação. Você sabe,
meu filho, pode ter certeza, essa corja, se vivesse na Rússia, estava toda na
Sibéria, em trabalhos forçados. Lá êles não passam a mão pela cabeça, como
aqui. Trabalhos forçados, trabalhos forçados! Aliás, é o que eles merecem
mesmo. Olhe, se eu fôsse alguma coisa neste país, se eu tivesse em minhas
mãos...”(RIBEIRO, 06 set. 1969)

A clara alusão ao político citado confirma-se pelo peso política que teve sua
nomeação como prefeito de Salvador. Naquele contexto, o discurso montado pelo
discurso ditatorial desqualificava toda e qualquer atividade da imprensa e fica evidente
o viés crítico na compreensão da ironia subjacente ao teor da entrevista. As críticas
veementes feitas pelo entrevistado representavam, naquele contexto, uma denúncia à
situação vivenciada nas editorias de jornal, onde colaboradores e jornalistas eram
perseguidos e presos por causa da sua opção política ou pelo uso desabusado das
palavras.322

Referências
BAKTHIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.O contexto de
François Rabelais.Trad. Yara Frateschi.3ª ed. São Paulo/ Brasília:Hucitec, 1996.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª Ed. Rio de Janeiro,
Zahar Editores. 1983.p.11.
BERND, Zilá, UTÉZA, Francis. O caminho do meio: uma leitura da obra de João Ubaldo
Ribeiro. Porto Alegre; Ed. Universidade; UFRGS, 2001, p.9.
CANDIDO, Antonio. A Crônica: O Gênero, sua Fixação e suas Transformações no Brasil.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992.

321
A crônica publicada em 06 de setembro de 1969, intitulada “Antonio Destro Medievo”, coincide com
a gestão de Antonio Carlos Magalhães, no contexto histórico dessa publicação. As iniciais – ADM (da
crônica) e ACM ( do prefeito) permitem inferir a crítica presente nessa produção, especialmente, pela
conhecida rivalidade entre o político e os editores do periódico onde era publicada a coluna Satyricon.
322
Conforme depoimento dado, em 14 de março de 2013, por um antigo colaborador do jornal da
Bahia, o jornalista Levi Vasconcelos, muitos dos colaboradores do referido periódico tinham uma ligação
pregressa com o comunismo, o que fazia deles “malditos” na atuação profissional. No caso do JBa., o
principal sócio e mantenedor do jornal, o jornalista João Falcão havia sido filiado no passado também ao
partido comunista e abrigava os colegas que sofriam com os reveses da ditadura.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1337


FRANCESCHI, Antonio Fernando (org.) Cadernos da literatura brasileira – João Ubaldo
Ribeiro Número 7, marco de 1999. – p.16)
MARTINS, Priscila Rosa. Estação Literária.Londrina, Vagão-volume 6, p. 107-114, dez.
2010, ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL.
RIBEIRO, João Ubado. Apollo vista daqui. Satyricon, Jornal da Bahia, 11 de janeiro de
1969, caderno 2, p.01.
RIBEIRO, João Ubaldo, Satyricon. Cântico dos cânticos. Jornal da Bahia, caderno 2, p.1,
17/18 maio de 1970.
RIBEIRO, João Ubaldo, Satyricon . Entrevista com Antonio Destro Medievo. Jornal da
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RIBEIRO, João Ubaldo, Satyricon. Está muito fraca hoje. Jornal da Bahia. Publicada em
14 de julho de 1970, caderno 2, p.01
RIBEIRO, João Ubaldo, Satyricon. Legião do Dêndê, Jornal da Bahia, caderno 2, p. 1, 05
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RIBEIRO, João Ubaldo, Satyricon. O sucesso literário. Jornal da Bahia, caderno 2, p.1,
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RIBEIRO, João Ubaldo. Programa Roda Viva. 20/07/2012. Entrevista. Disponível em: <
http://www.youtube.com/watch?v=lBPNEPRKrPg>. Acesso em: 20 mar. 2013.
SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. 3ª ed. São Paulo: Ática,
1988

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1338


Com o seio e conselhos, tornei-me professora

Lorena Passos
UFRB
loriinhasoouza@hotmail.com
Rony Henrique Souza
UFRB/ Colégio Estadual Professor Edgard Santos
rhsacaminho@hotmail.com

Trata-se de um trabalho inspirado pelas/nas discussões desenvolvidas na disciplina Filosofia da


Educação, componente curricular do curso Licenciatura em Biologia da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), campus de Cruz das Almas- Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e
Biológicas (CCAAB). A partir da construção do meu memorial percebo a minha história de vida como um
espaço de elaboração do meu ser professora, um momento impar de pensar a minha identidade. Nas
idas e vindas da vida, nos encontros e desencontros com minha Mãe/pedagoga nasce o desejo de iniciar
minha caminhada rumo à docência. Tenho a plena convicção que não nasci com desejo de ser
professora, pelo contrário esperava adentrar pelos caminhos da comunicação, pela minha facilidade
aparente de falar e gostar de estar permeada por pessoas. No entanto, nas inconstâncias da vida mudei
a trajetória. No trágico refiz minhas escolhas. Em um processo resiliente tomei rumos diferentes de
minha opção inicial pela comunicação. Hoje pretendo comunicar-me formando e educando e em um
processo de interação perceber o novo que se faz no processo educativo. Como bióloga em formação
comunicar e defender todo princípio de vida. Ao olhar para trás pude perceber que embora não tivesse
desde sempre caminhado rumo à docência, ela sempre esteve presente em minha vida: na colega que
ajudava os companheiros, que auxiliava o professor e também no cuidado que eu tinha para com todos.
Fatos estes que me fazem perceber que a faculdade é somente mais um processo de formação que vou
adquirindo ao longo da vida. O objeto central deste trabalho é minha própria história de vida. O
objetivo, dentre tantos, é repensar a minha identidade enquanto pessoa e dentro desta pessoa
encontrar os motivos que me levou a tomar esta decisão, ser professora.
Palavras-chave: Memorial; História de vida; Docência.

Pra começo de conversa...


“De tudo fica um pouco. Não muito”
(Carlos Drummond de Andrade).

Este trabalho foi inspirado a partir da disciplina Filosofia da Educação onde foi
solicitado como quesito avaliativo um memorial acadêmico. Sendo assim, trago como
proposta discutir o que significou para mim fazer um memorial e a partir disso, no
dialogo constante com o estado da arte, que aqui neste trabalho são representados
por ALMEIDA 2005, BUENO 2006, CATANI 2005, DELORY-MOMBERGER 2006, MALLET
2006, MENEZES 1992, , PASSEGI 2010, PASSINI 2007, SOUZA 2007, SOUZA 2008 e
SOUZA 2011 pensar a importância da construção do memorial para o processo
formativo docente em um contexto mais amplo. Trata-se de uma abordagem de uma
experiência vivida que me possibilitou evocar trechos da minha história acadêmica e
pessoal que são imprescindíveis para compreender as escolhas tomadas em meu
caminho.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1339


Todos nós guardamos lembranças boas e ruins da escolaridade, algumas
lembranças e imagens em seu tempo de escola, retornam precisamente à memória,
quando na fase adulta. As luzes e sombras também permeiam o processo humano.
Algumas dessas lembranças são frustrantes e ruins e de inicio parece ser irrelevante na
construção de um futuro brilhante, porém nem todo momento trágico acaba com uma
tragédia. E mesmo a tragédia pode ser um instrumento para pensarmos a contingência
de nosso ser.
Outro aspecto importante de se pensar é a passagem do tempo que pode
aperfeiçoar algumas dificuldades e lembranças ruins e ser a base de outros momentos
agradáveis, podendo ainda ser o divisor de águas para a escolha da carreira
profissional e um memorial nos proporciona reconhecer tais momentos. De tudo o que
na nossa vida fica um pouco, como disse Drummond, de cada momento que vivemos
algo vai ficar, seja bom ou ruim e são essas lembranças que constroem o presente,
realmente não fica muita coisa, mas o necessário para a construção da vida. A cada
instante de nossa vivida o tempo transforma o nosso olhar. Outras lentes são
acessíveis, outras provocações turvam a nossa visão, outras ainda iluminam o vivido,
fazendo com que eu contemple a montanha daquilo que vivi de outras formas. O
tempo me possibilita reinventar a mim mesma. Como salienta Passeggi,

A noção do tempo como dimensão constitutiva da vida e


aprendizagem pela reflexão sobre a experiência são retomadas
nos memoriais de formação, assim como em outras formas de
escritas de si como os diários de classe, os relatos de aula, os
portfólios, que constituem registros do processo de
aprendizagem e permitem a quem escreve retornos críticos
sobre o desenrolar cotidiano de sua formação (PASSEGGI 2010,
p. 23).

Trocando em miúdos este artigo trará em seu bojo uma reflexão que não tem o
objetivo de ser unânime. Contudo, sua singularidade está presente naquilo que vivi e
posso traçar no papel fragmentos de uma experiência que para mim foi marcante e, se
foi marcante para mim e para o meu processo formativo de professora/pesquisadora,
questiono-me até que ponto a construção de um memorial pode ser também
importante para outros que pretendem trilhar os caminhos da docência. No meu caso,
tenho a firme convicção que, aquilo que aprendi na vida com minha mãe, é muito mais
importante e significativo do que está/foi mencionado em “receitas” pedagógicas de
um ideal inalcançável em muitos livros. Os limites da linguagem não dão conta de
expressar toda complexidade de uma vivência.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1340


A difícil experiência de olhar para mim: construindo meu memorial

“Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo”


(Carlos Drummond de Andrade).

Construir um memorial para mim não foi e não é uma tarefa fácil. Entre as
teclas do notebook, do documento aberto sem saber por onde começar, com os
fantasmas povoando a minha mente, ao imaginar o que o outro vai pensar, reconheço
que no inicio foi muito difícil escrever a mim mesma. Contextualizar minha vida parecia
ser uma espécie de “missão impossível”, e eu precisei lutar comigo mesma, o que não
foi e penso não ser nada fácil. Nunca tinha feito algo parecido. Passeggi ilustra esta
reflexão quando diz que “Há pouco espaço, ou nenhum espaço, para narrar
experiências vividas fora do mundo acadêmico como situações de formação. A
descrição de “outras atividades” deve se restringir àquelas relacionadas à “áreas de
conhecimento em exame” (PASSEGGI 2010, p. 24)” .
Por fim, conseguir vencer as barreiras que eu mesma impus, os medos que eu
criei e os monstros que só existiam na minha própria mente. Lembrar de momentos
trágicos que só trazem lembranças ruins, e de momentos bons que hoje não existe
mais é complicado e é preciso coragem e como disse o poeta tem que ser lutador e
lutar consigo mesmo para conseguir escrever um memorial.
O meu medo e minha resistência em realizar esse trabalho foram os maiores
empecilhos, ou seja, quem o tornou mais complexo fui eu mesma. Se eu fui capaz de
dificultar precisava vencer-me e facilitá-lo, tentar torna-lo menos árduo, era um
exercício entre eu e eu, não poderia ter a ajuda de outras pessoas e ninguém poderia
fazer isso por mim, afinal só poderia ser construído um memorial com as minhas
lembranças, precisei ser forte e ser maior do que o meu eu para conseguir construir.
Era necessário refletir e repensar tudo o que eu vivi e eu não tinha ideia de como isso
deveria e poderia ser feito.
Crianças normalmente tem um amigo imaginário, um medo e um brinquedo
favorito e eu me vi como uma criança. Criei na ideia de fazer este trabalho um
monstro, e nas palavras um medo, e o brinquedo? Bem, esse eu demorei a encontrar.
Depois de horas apenas pensando enxerguei que meu brinquedo favorito naquele
momento nada mais era do que “brincar com o meu passado”, era um momento só
meu. Primeiro conseguir vencer o medo e algumas palavras soltas surgiram, sem o
medo vi que não existia um monstro, era apenas um gigante que eu teria que vencer
como o ser evangélico também perpassa o meu ser não posso deixar de mencionar a
história de Davi e Golias, e assim desenrolei o meu trabalho, como se eu fosse uma
criança.
Escolhi o que elencar sobre mim, afinal não poderia descrever tudo o que já
aconteceu, meu foco foi em entender a minha escolha pela docência, e só poderia
fazer isso com as lembranças que eu tinha, como salienta Souza 2011,

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1341


Portanto, visitar a memória para selecionar fatos, episódios que
contribuíram no meu processo formativo, especialmente na
constituição do meu ser professora, não é uma tarefa nada
fácil. Corro riscos de não ser mais fiel ao passado e omitir
situações ricas de aprendizagens, mas quero registrar um
pouco desta história de uma “eterna aprendiz” (SOUZA 2011, p.
26).
Foi com base nisto que comecei, ainda com muita dificuldade, a escrever meu
memorial. Iniciei juntando as maiores lembranças sobre minha vida acadêmica, desde
a primeira escola até onde estou agora. Para mim é muito interessante lembrar de
professores que tanto colaboraram minha escolha a docência, e aqueles que de não
foram bons pra mim servem de exemplo para que eu seja diferente deles na sala de
aula.
Este trabalho é foi um instrumento possibilitador de reflexões sociais,
educativas e culturais no qual pude- me (re)elaborar e (re)situar minha vida em relação
à sociedade, a minha futura carreira e minhas escolhas. A priori pareceu para mim
pouco relevante realizar um memorial, mas foi com a escrita do mesmo que tive a
oportunidade de fazer inúmeras reflexões, que além de me remodelar como pessoa
me fez dar mais valor a certas coisas que se perderam com o tempo.

A surpresa do olhar do outro

Após a entrega do memorial fui surpreendida por observações do meu


professor que admirou o meu trabalho e minha forma de escrever além de me fazer
reler a minha história de vida o que propiciou entender que minha mãe era mais
importante na minha escolha profissional do que eu tinha conseguido perceber. O
olhar de outra pessoa me fez refletir de forma mais profunda as minhas próprias
palavras, sei que pode soar estranho isso, mas o professor foi capaz de entender as
minhas escolhas com uma sensibilidade maior do que eu mesma. Penso que este
contínuo diálogo com o meu professor é reiterado por Passeggi (2010, p. 30) ao
afirmar que, “Elas se inserem na emergência de um sujeito que aprende, em formação
permanente, e se revelam como uma prática antropológica fundamental da qual o
sujeito se apropria como “uma arte formadora da existência ...”.
Surpreendi-me também com as palavras de um colega de curso que me disse
que eu seria uma excelente professora. Consequentemente repensei o meu ser
professor, e sem duvida o olhar do outro me modificou como professora me deu um
incentivo maior, ampliou a minha vontade de dar o máximo pra passar aos meus
alunos tudo o que eu tenho aprendido. Saber que sou vista como uma excelente
professora torna a minha missão ainda maior, e faz de mim um ser mais nobre.
Como vou ser vista sempre é uma preocupação, e isso é uma alavanca de ajuste
na profissão, pois essa preocupação aumenta a força de vontade e de certa forma a
responsabilidade que já existe sobre mim. Penso que ser reconhecida como boa

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1342


profissional é o desejo da maioria das pessoas. Alguns discordam que o olhar do outro
seja importante, mas quando um individuo se compromete a ser professor tem a
obrigação de transmitir conhecimento e quanto melhor ele fizer maior será seu
reconhecimento, o que deixa claro que o olhar do outro importa.
Um professor deve ser mediador do conhecimento na sala de aula, e é durante
este processo que os homens criam seus pensamentos críticos em relação à sociedade
e a vida “Ao produzir saber, ao dizer como as coisas são, o homem produz a
racionalidade, evidenciando uma estreita relação entre os dois termos – saber e
racionalidade” (HERMANN, 2003, p. 13). O que mais uma vez me mostra que o olhar
do outro constrói o meu ser professor, afinal temos esta responsabilidade, então o que
passamos para o outro reflete em nós mesmos. O olhar do outro sobre mim tem me
modificado e sem duvidas melhorado o meu ser professora.

Como nasceu o titulo Com o seio e conselhos, tornei-me professora

Contextualizando minha história tive a oportunidade de enxergar que, a


professora Márcia Fiuza Passos de Souza, além de minha Mãe, se configura em minha
história de vida como o meu maior e melhor exemplo. Durante a construção do meu
trabalho comecei a entender que foi ela a base de tudo, meu primeiro contato com a
sala de aula foi ao lado dela e que foi nessas experiências que aprendi a amar a
docência. Desde pequena acompanha-la em suas aulas era uma atividade diária e
prazerosa.
Em palavras é complicado descrever o meu amor pela docência, mas posso
dizer que, sem sombra de duvidas, devo a minha Mãe ser o que sou hoje. Tenho a
plena convicção que estas vivências me possibilitaram ter escolhido o caminho certo.
O ponto chave do meu memorial está na seguinte frase: Talvez as minhas primeiras
horas na sala de aula sejam difíceis, mas eu sei que estarei preparada. Afinal passei
anos acompanhando uma professora, aliais a melhor professora que conheço. E foi
pela importância dela que escolhi esse titulo “ Com seio e conselhos me tornei
professora”. Souza 2011, em seu trabalho conclusivo da pós-graduação nos coloca em
sintonia com a formação apreendida e vivenciada na família ao salientar que,

A família se constitui , assim,também um espaço formativo,


pois é quando as primeiras relações se estabelecem, é o lugar
onde surgem as primeiras negociações, um embate pela sua
autonomia enquanto pessoa. O sujeito não quer ser
simplesmente aquilo que o outro deseja que a pessoa seja, mas
tornar-se quem é. É um processo aonde as relações múltiplas
vão sendo geridas, ressignificadas, no qual cada um vai
progressivamente construindo sua história (SOUZA 2011, p. 93).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1343


Penso que os conselhos de uma mãe sempre constroem na vida de um filho e
na minha não foi diferente, foi a minha mãe meu porto mais seguro na escolha do meu
futuro profissional. Foi ela também que sempre acompanhou meu processo de
aprendizagem de perto sem esquecer-se do carinho e do amor diante de minhas
dificuldades, “o acompanhamento de seu desempenho escolar, ou seja, do processo
cognitivo, é importante, mas o aspecto afetivo não pode ser negligenciado em nenhum
momento do desenvolvimento infantil, principalmente na vida escolar.” (BALESTRA,
2001, p. 49). J á salientei isto anteriormente, mas sou redundante de forma proposital,
devo a minha mãe estar hoje no caminho da docência. Um caminho que embora não
esteja no início, pois já tive muitas andanças, se configura como um processo
dinâmico. Embora esteja iniciando minha carreira na universidade, penso a mesma
como mais uma etapa deste ser professora que vai se constituindo ao longo de minha
existência.
Outro fato que para mim é relevante é que, ao prestar o vestibular,
primeiramente fiz a opção pelo curso de comunicação, mas por uma inconstância da
vida não pude cursar. O que aconteceu foi que, no momento de iniciar o curso de
comunicação, minha mãe se encontrava enferma. Não sou filha única, mas no instante
do ocorrido minha irmã já estava no meio da faculdade e coube a mim cuidar de minha
mãe. No meio das trevas brilhou uma luz no fim do túnel, pois foi neste momento
que, ao parar para repensar minhas escolhas, deparei-me com os conselhos de minha
mãe e me vi professora.
Recordei também que amava estar na sala de aula, e que ensinar as pessoas o
que eu sabia era um exercício que eu já praticava a anos, muito antes do que seria
normal. Eu tinha um jeito incomum de estudar, o normal é sentar em uma mesa com
os livros, eu não, estudava todos os dias dando aulas para alunos imaginários o que
deixa claro pra mim que desde criança vivia as delícias do brincar de ser professora.
Enfim Delory-Momberger ilustra bem este momento do trabalho ao mencionar
que,

A narrativa não entrega os ‘fatos’, mas as ‘palavras’: a vida


recontada não é a vida. Essa constatação tão simples e, ao
mesmo tempo, tão difícil de compreender, tão forte é a ilusão
do realismo de linguagem, merece ser constantemente
relembrada. Nenhuma pratica de formação pode pretender
reconstituir por si só o que seria o curso factual e objeto do
vivido; ‘objeto’ sobre o qual trabalham as linhas de formação
pelas historias de vida não é, portanto, ‘a vida’ mas as
construções narrativas que os participantes do grupo de
formação elaboram pela fala ou pela escrita, quando são
convidados a contar suas vidas (DELORY-MOMBERGER, 2006, p.
361).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1344


Reconheço que há uma enorme distância do que vivi, relatei no memorial e
sobre aquilo que menciono aqui. Utilizo de uma etapa de minha vida para falar de
outra etapa. De um momento para reviver outro. Não se trata de um exercício fora de
mim, escrevo no mesmo instante do que vivo e me formo ao escrever. Vida e palavras,
palavras vividas, um gesto nada positivo ou vertical, mas que hoje diz de meu ser e
tornar-se.

Vida e profissão: a importância de construir um memorial para o processo formativo


docente

“Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar”.


(Carlos Drummond de Andrade)

Antes de passarmos para o próximo ponto, abrimos aspas para viver o instante
da poesia. O poeta pode e diz do não dito de forma leve e eficaz. Não cabe a nós
interpretar a poesia, penso que seria desastroso. O convite é que permitamos que, ao
teclar uma palavra e outra, que o ser da poesia se manifeste. Vivemos em uma
sociedade onde pregamos a igualdade, porém vale ressaltar que é a igualdade de
direitos porque somos todos diferentes. Tenho certeza que sou insubstituível, pois
ninguém é igual a mim. O meu não é diferente do seu, bem como a minha história é
diferente da sua. E é essa diferença que eu quero aplicar nas minhas aulas, é no meu
ser estranho ímpar que quero encontrar um valor, ser diferente de todos, embora com
direitos iguais.
Fazemos parte de uma gigante engrenagem- o mundo, que depende de cada
um isoladamente, mesmo existindo uma ligação permanente de cada um de nós com o
todo. Portanto tenho que evitar equívocos, erros, se como disse Drummond ninguém é
igual a mim eu tenho que cumprir a minha parte na história, pois se eu me negar a
fazê-la deixarei uma lacuna que ninguém conseguirá preencher. O que é seu, só você
mesmo pode fazer, por que você é único. Por isso após assumir que sou professora
tenho a responsabilidade de cumprir meu papel como tal.
Neste sentido o acontecimento biográfico é então entendido no sentido de um
acontecimento importante, ou marcante, como uma virada na existência: “todo
acontecimento biográfico é ao mesmo tempo um acontecimento no ‘meu’ tempo e
‘no’ tempo.” (LECLERC-OLIVE, 1997, p. 34). Todo acontecimento por menor que seja é
de extrema importância na construção de uma carreira profissional.
Ao olhar para nós mesmos entendemos que o exercício presente de (re)pensar
e (re)significar a nossa história nos lança para uma dinâmica de formação diferente do
que se predomina hoje. Não basta criar novos conceitos e não questionar os já
apreendidos.
Delory-Momberger salienta que

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1345


Esses saberes internos possuem um papel primordial na
maneira como os sujeitos investem nos espaços de
aprendizagem, e sua conscientização permite definir novas
relações com o saber e com a formação. Essa importância dada
à experiência individual está inserida em um movimento global
que associa intimamente os formadores aos processos
formativos e os consideram como os atores responsáveis por
sua própria formação (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 361).

Delory-Momberger 2006, ao citar Fabre 1994, nos leva a imaginar que “a


narrativa (auto)biográfica não seria um meio de formação, mas teria um fim em si
mesma. Narrar e formar são faces de uma única moeda. Ao narrar me formo e ao
formar-me construo narrativas.

Possibilitar um olhar para si

Para mim escrever um memorial é uma experiência ímpar de reflexão do


próprio eu, e deve refletir a história de formação profissional, as experiências no
exercício da profissão e, ainda, o aprendizado proporcionado pelo curso. Pesquisas
comprovam sua importância como disse SOUZA (2008, p.38),

[...] a vertente da pesquisa autobiográfica, com ênfase no processo de


Investigação-Formação por meio das narrativas de profissionais que estão em
formação inicial/continuada, ao compreender a abordagem autobiográfica,
expressa através das narrativas, como uma metodologia de trabalho que
possibilita tanto ao formador, quanto aos sujeitos em processos de formação
significar suas histórias de vida, através das marcas e dispositivos
experienciados nos contextos de sua formação.

Penso que são pertinentes os aspectos positivos de narrar sua própria vida. O
memorial mesmo com toda dificuldade que tive em escrever foi para mim um
momento único em que eu tive a oportunidade de escrever, pensar e dialogar com as
marcas que hoje levo em mim sobre o vivido. Penso que se trata de uma laboriosa arte
de pegar minhas memórias e transformar em palavras.

A história da vida não é a história da vida, mas a convicção


conveniente pela qual o sujeito se produz como projeto de si
mesmo. Não pode haver sujeito, a não ser em uma história a
fazer e é a emergência desse sujeito que intenciona a sua
história, que conta a história de vida (DELORY-MOMBERGER
2006, p. 365).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1346


Foi escrevendo que pude olhar pra dentro de mim, chorar ao tocar nas marcas
que ainda não foram cicatrizadas, que ainda doíam/doem, rir pelos momentos felizes e
pensar “nossa, eu fazia isso?” e foi assim que claramente vi que eu não me encaixaria
em qualquer outro lugar que não fosse em uma sala de aula. Passei a dar mais valor a
isso. Talvez eu nunca tivesse percebido a dimensão da minha escolha pela carreira
docente se não fosse a escrita deste trabalho.
Pode não parecer, mas olhar para mim e escrever minha história é mais difícil
do que falar sobre qualquer outra coisa, mas tem uma valor indescritível. Hoje eu vejo
que diferente de algumas pessoas eu não escolhi a licenciatura porque minha nota era
suficiente para isso, nem porque seria mais fácil encontrar emprego, ou somente para
ter um diploma não, eu escolhi porque amo a docência. E isso eu já era de certa
maneira visível, porém tornou-se mais claro para mim que sempre quis e quero ser
professora depois que escrevi o memorial.
Essa escrita é a oportunidade singular de refazer caminhos, e ninguém poderia
fazer isso por mim, e sem dúvidas se tornou imprescindível na minha formação,“o
trabalho biográfico sobre si mesmo dá início à aprendizagem da implicação
permanentemente em jogo, no trabalho individual e no trabalho coletivo” (JOSSO,
2004, p. 219).

Formação continuada e horizontalizada

A poesia mais uma vez reluz no contexto do texto. Penso que a poesia
dimensiona o nosso ser, apresenta possibilidades por carregar em seu bojo a riqueza
de não possuir uma definição. Sinto que cada um de nós nasce um personagem
intrínseco ao nosso ser, entretanto o mesmo só pode ser representado se
permitirmos. Eu escolhi representar meu personagem, que é ser professora, estou
convicta que posso ser muito feliz sendo a melhor docente que eu puder ser. Tenho
tido a oportunidade de entender cada dia mais que eu não me tornei professora, e sim
sou professora desde o primeiro dia que escolhi estudar dando aulas, desde o dia que
ao invés de ficar em casa vendo TV eu preferi ir pra sala de aula com minha mãe. E
esse sem dúvida é o personagem que há em mim.
Ser professora para mim é algo que se construiu ao longo da vida, desde
criança eu me vejo como tal, e tenho plena convicção que a universidade não fará de
mim professora, as circunstancias da vida me mostraram que já sou uma, não
completa, como também não serei ao fim do curso. Por estar tão intrínseco ao meu
viver percebo que o amor a docência é algo que vem de dentro de minha alma. Por
amar faço com prazer.
A universidade se configura em minha história de vida apenas como mais uma
fase da minha caminhada rumo à docência. Sei que só pelo fato de sair da mesma
universidade com o diploma nas mãos não caracteriza que eu estou pronta, apenas
qualificada a exercer a profissão, como salienta Passini (2007, p. 12) “não é o diploma
que nos torna professores, mas sim a história vivida e refletida como profissionais, a

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1347


cada dia, a cada aula, a cada confronto com novos desafios”. Sei também que não
acaba ali, buscarei outras formações e o aperfeiçoamento das minhas praticas. Penso,
contudo, que a formação é algo que se dá ao longo da vida. Tornei-me e estou
tornando-me professora, porém não estou ainda pronta para a sala de aula, é ao longo
da vida que tenho me preparado. Nenhum de nós nasceu pronto, é nas incertezas da
vida que nos construímos e reconstruímos, dentre o que deve ser feito e o certo
encontramos um equilíbrio isso nos proporciona viver. O mundo vive em constante
mudança, consequentemente a minha vida muda, e por conta disso penso na minha
formação não só para os dias de hoje, mas também para o futuro. Neste sentido a
formação se dá de forma horizontalizada, pois não se projeta para fora de si, mas na
possibilidade do ser,

[...] nós não podemos ser o que somos a não ser projetando o
ser, nós não podemos chegar a nenhuma forma de existência a
não ser que estejamos voltados para o nosso possível, a fim de
antecipá-lo, de temê-lo, de ceder-lhe, de assumi-lo. Nós
estamos constantemente em um ativismo que nos põe as
voltas com nossa implicação no real – nosso ser–no–mundo – e
nossa orientação para o futuro – nosso estar-diante-de si
(DELORY MOMBERGER 2006, p. 364).

O horizontal se encontra justamente no sujeito que busca respostas para o seu


ser dentro de si mesmo. O que muda são as janelas para o exercício de olhar para si.
Relato de outra forma o vivido e experimentado. Ao invés do pronto fora de mim, a
opção é pelo projeto não acabado que se manifesta em meu ser pessoa/professora.

Um instrumento avaliativo – Passos conclusivos: ao invés de ponto final,


reticências...

Considero também um memorial como um meio de avaliar os caminhos que


percorri até chegar à docência e até a mesma quando em exercício. Lembro ainda,
com pesar, que escolhi a licenciatura em um momento trágico da minha vida, apesar
de hoje entender que foi a melhor escolha que eu poderia ter feito, mas,
aparentemente, naquele momento me parecia um descaminho, estava tudo errado
para mim, e só depois as coisas foram se encaixando, e encontrei o caminho: encontrei
o meu caminho.
A caminhada até onde estou não foi fácil, porém acredito que se não tivesse
sido da maneira que foi talvez hoje eu estivesse no lugar errado. Lembrar do caminho
que percorri me mostrou que, assim como no meu passado, construir minha carreira
docente também não será fácil, e ninguém disse que seria, entretanto me sinto aberta
ao processo e “pronta” para esta batalha. Escrever minha história me fez enxergar

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1348


erros que não cometerei mais e acertos que foram construtivos e devem, portanto, ser
repetidos.
Meneses, em um artigo publicado em 1992, procura fazer um mapeamento do
tema memória e lembra que, muitas vezes, a memória é automaticamente relacionada
aos mecanismos de registro e retenção, como depósito de informações, conhecimento
e experiências, ressalta que a elaboração da memória é dada no presente para atender
às demandas deste presente, e isso pode alterar o valor de um dado passado. Afirma,
ainda, que a memória é um “sistema de esquecimento programado” (p.16), na medida
em que possui mecanismos de seleção e descarte. E fazendo uma retomada do que já
vivi, vejo que as coisas mais importantes estavam na minha memória.
Sem dúvidas aquilo que tem maior valor fica e é com essas lembranças que eu
vi claramente como tudo, simplesmente tudo se encaixava e que nada que eu vivi foi
atoa ou sem nenhum valor futuro, mas se encaixava em um contexto e futuramente
passa a fazer sentido, e começo a ver que cada momento vivido construiu o hoje,
talvez isso pareça obvio, porém para mim isso só ficou claro revivendo enquanto
escrevia, só ai cada coisa fez todo sentido.

Referências
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das instituições educativas. Revista FAEEBA, v. 14, p. 21-30, 2005.
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Paulo, v.32, n.2, p. 385-410, maio/ago, 2006.
CATANI, D. B. As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação.
Revista FAEEBA, Salvador, v. 14, n.24, p. 271-280, 2005.
________. Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo:
Escrituras Editora, 1997.
________. lembrar, narrar, escrever: memória e autobiografia em história da educação
e em processos de formação. IN: BARBOSA, Raquel lazzari leite. (Org.). Formação de
educadores: desafios e ontrealves. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e Socialização: os ateliês biográficos de
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LECLERC-OLIVE, Michèle. Le dire et l´événement (biographique). Paris: Presses
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(re)conhecimento In: Cordeiro, V. M. R; SOUZA, E. C. (Orgs). Memorias, literatura e
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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1349


PASSINI, Elza Yasuko. Introdução in: PASSINI, Elza Yazuko, PASSINI, Romão e MALISZ,
Sandra T. (Orgs.) Prática de Ensino de Geografia e Estágio Supervisionado. São Paulo:
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PONTALIS, Jean-Baptiste. O amor dos começos. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
SOUZA, Elizeu Clementino. (Auto)biografia, identidades e alteridade: modos de
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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1350


Memória e histórias da língua brasileira de sinais no processo educacional de pessoas
surdas no município de Jequié/Bahia

Lucília Santos da França Lopes


UNOPAR
lulibras@hotmail.com
Carla Sousa Ferreira
carla_letrasuesb@hotmail.com

Este trabalho pretende iniciar um registro da memória e da história do uso da Língua


Brasileira de Sinais no processo educacional das pessoas surdas no município de Jequié
na Bahia, que durante muitos anos foi utilizada por professores ouvintes, não como
língua na mediação simbólica dos surdos com o mundo, mas como método para
ensiná-los a ler e escrever. Para tanto a coleta de informações, através de entrevistas
filmadas com os próprios surdos, com os professores que iniciaram um trabalho
educacional específico direcionado a este público de alunos e com familiares, é o
instrumento usado para registrar a memória desta importante construção na
comunidade jequieense, em formato de documentário, que de acordo com alguns
autores a ação da prática fílmica documental como espaço de reflexão, criação,
interpretação, representação e mediação de olhares sobre o mundo, torna possível
estabelecer links teóricos e empíricos, possíveis, entre a utilização deste recurso
audiovisual e o registro da memória de uma história muitas vezes tornada invisível
pelos padrões de corpo, língua e cultura que legitima uns e não outros. A língua de
sinais dos surdos brasileiros, só é reconhecida legalmente no ano de dois mil e dois,
não obstante existe uma memória desta língua no país, que se perde se deixar de ser
registrada. A pesquisa se debruça sobre pressupostos teóricos em torno da memória e
história, cultura e língua, além de trazer autores que abordam aspectos sobre
educação e formação das pessoas surdas no Brasil.
Palavras-chave: Cultura; História, Língua de sinais; Memória

Introdução

No mês de abril do ano de dois mil e dois, a comunidade de pessoas surdas


brasileiras conquista em termos de legislação um grande avanço nos processos sócio-
políticos-educacionais, com a promulgação da Lei 10.436, que reconhece a Língua de
Sinais do Brasil como língua oficial das comunidades de pessoas surdas, ressaltando
que esta língua já era utilizada há muitos anos como forma de comunicação, expressão
por surdos, seus familiares e professores em território nacional.
Diante desta conquista o país envida esforços para regulamentação da citada
lei, através do decreto 5.626/2005, o qual prevê o uso da língua de sinais como língua
de instrução educacional, sem, contudo explicitar o percurso metodológico e
pedagógico desta ação, sem uma política linguística definida de convívio e ensino da

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1351


Libras e da Língua Portuguesa no espaço educacional. Sendo assim, as escolas que
recebem alunos surdos em suas turmas vivenciam uma inquietante discussão sobre o
trabalho pedagógico com a língua portuguesa e a língua de sinais, sendo que a língua
portuguesa deverá assumir status de segunda língua, e a língua de sinais língua natural
e primeira.
Este convívio das duas línguas no ambiente escolar ocorreu muitas vezes de
forma repressiva, pois sem uma lei que reconhecesse a língua de sinais dos surdos
brasileiros, esta não era encarada como uma língua de estrutura linguística completa
que favorecesse o desenvolvimento cognitivo dos usuários surdos, dificultando assim
que a educação dos mesmos fosse realizada por meio dela (CAMPELO, 2007, p.120).
Este trabalho propõe um registro da história e memória deste processo no
município de Jequié no sudoeste da Bahia, através dos estudos na disciplina Língua
Brasileira de Sinais no curso de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
em formato de documentário fílmico, tendo neste recurso uma importante ferramenta
de registro da história, na própria língua das pessoas surdas, pois sendo esta de
modalidade espaço/visual e com um sistema de escrita que legalmente não substitui a
língua portuguesa, necessita de um registro que resguarde a memória de sua própria
história, para as gerações de crianças e jovens surdos, que em sua maioria nascem em
famílias de pessoas ouvintes e não encontram em sua família, referencial para
aquisição desta língua, desconhecem sua história e por fim não asseguram uma
memória essencial para formação identitária e cultural.
A pesquisa ocorreu no município de Jequié, através de um trabalho acadêmico
dos alunos do curso de Letras do sexto semestre, turma que teve seu ingresso na
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB, no primeiro semestre do ano de
dois mil e nove.
Jequié fica localizada a trezentos e sessenta e cinco quilômetros de
Salvador/capital baiana, situada na região sudoeste, possuindo em torno de 151.895
habitantes, com uma população de surdos estimada em aproximadamente 1.500 pessoas.
Ressaltando que, este município representa as políticas públicas de educação inclusiva
do ministério da educação para a região sul e sudoeste, pois o mesmo é polo das ações
de formação de professores e das orientações legais sobre a inclusão de pessoas com
deficiência na escola regular.
Para tanto o país não possui uma grande quantidade de trabalhos acadêmicos
que registrem a memória do desenvolvimento do uso da Língua de Sinais nos
processos educacionais das pessoas surdas nos diversos municípios dos estados da
federação, nem nas escolas de Jequié, nem no Laboratório de Memória da Uesb, nem
na Associação de Surdos da cidade, fator que impulsionou a atividade de pesquisa
durante as aulas da disciplina Língua Brasileira de Sinais no curso de licenciatura em
Letras, pois os estudos desta língua deverão está intrinsecamente relacionados com o
uso que a comunidade de surdos e as escolas fazem, de como o fazem e em quais
condições.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1352


“A língua delimita um território ideológico de enunciação
saturado de valores e posicionamentos; a língua como arena de
guerras discursivas constitui o sujeito social, sua subjetividade,
seu lugar no mundo [...] Língua é ação sobre o outro, é poder e
transformação”. (FERNANDES, 2009, p. 31).

Diante da ausência de registros sobre a história e a memória da língua de sinais


na educação dos cidadãos surdos de Jequié, nos deparamos com a problemática da
fragilidade no processo de transmissão da herança cultural que a comunidade surda
poderia legar a outras gerações de surdos, aos professores ouvintes e ao município
como um todo, pois, os surdos que fazem uso da Libras representam uma comunidade
linguística minoritária, compreendida muitas vezes como pessoas sem narrativa
histórica e sendo a língua de sinais de modalidade espaço-visual, não substitutiva da
língua portuguesa escrita, a transmissão se dá na relação dos surdos adultos fluentes
na língua, nas esquinas, praças e ruas da cidade em seus encontros informais.

Uso, ensino e relação com os usuários da língua de sinais.

Atualmente as escolas contemplam o uso da língua de sinais em cumprimento a


uma obrigação legal do direito dos surdos à acessibilidade (Lei de Acessibilidade/2000),
sem incorporar, contudo, sua tradição cultura, memória e história, tomando como
referência estas e outras questões éticas, pontuamos neste texto que os fundamentos
do ensino da Libras nas licenciaturas da UESB/Jequié, se pautam nas discussões que se
identificam com surdos que fazem uso da língua de sinais como primeira língua ou
língua natural e com a cultura visual e buscam este reconhecimento social, motivando
assim as razões deste estudo (FERNANDES, 2009).
No desenvolvimento deste estudo propomos iniciar uma pesquisa para registro
da história da Língua de Sinais, no ensino aos surdos em Jequié, utilizando como
metodologia o documentário fílmico, que de acordo com LIMA (2009) et al, a ação da
prática fílmica documental como espaço de reflexão, criação, interpretação,
representação e mediação de olhares sobre o mundo, torna possível estabelecer links
teóricos e empíricos, possíveis, entre a utilização deste recurso audiovisual e o registro
da memória de uma história muitas vezes tornada invisível pelos padrões de corpo,
língua e cultura que legitima uns e não outros.
Nesse contexto, durante as aulas da disciplina Língua Brasileira de Sinais, no
curso de licenciatura em Letras, nos dispomos alunos e professora ao estudo desta
importante ferramenta de registro que é o documentário fílmico, utilizando para este
fim a obra da professora e jornalista Renata Farias Smith Lima, da Universidade
Estadual de Santa Cruz, em seu livro Documentário e Turismo Cultural: Um olhar sobre
Jorge Amado, no qual a mesma desenvolve um estudo detalhado sobre este
importante gênero audiovisual, afirmando que o documentário com seus mecanismos
de formas e conteúdos plurais veicula olhares sobre o mundo.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1353


Foi realizado o estudo dos textos da obra citada de forma que a fundamentação
teórica oferecida sustentasse a organização do roteiro do documentário que pretendia
iniciar o registro da história da Libras na educação de surdos em Jequié,
desenvolvendo assim o processo de construção do trabalho que se propôs a
organização de .... eixos de investigação, incluindo como fontes de informação
professores da sala de aula regular, professores especializados, gestores educacionais,
intérpretes de Libras, estudantes surdos e seus colegas ouvintes, surdos adultos da
comunidade e pais de surdos.
A escolha pelo método documentário fílmico se justifica, pois sendo a língua de
sinais de modalidade visual-espacial, para os próprios surdos e usuários ouvintes desta
língua, VER o registro de sua história se torna culturalmente mais eficaz do que outras
formas de registro, pois durante a produção do material audiovisual, este proporciona
condição do uso da Libras na fala dos surdos e da tradução para a libras das falas dos
ouvintes entrevistados, reafirmando a cultural visual que envolve o uso desta língua.
A produção deste trabalho, contudo, exigiu dos seus produtores o uso do
recurso fílmico por equipe especializada, para garantir a qualidade das imagens e
evitar a perda de qualquer dado ou informação durante as entrevistas, para LIMA
(2009), apud Colleyn,(1995), o olho mecânico da câmera amplia as possibilidades de
registro técnico de mundo, para construir uma narrativa onde os planos são como
letras de um texto.
Para elaboração da trajetória do documentário como recurso/metodologia de
registro da memória de uma história, faz-se necessário a elaboração de um roteiro
escrito, que sobre a orientação do texto da professora Renata Faria Smith Lima, sugere
que este ordena, estrutura ideias, guia o percurso de construção, enfim é “uma
ferramenta técnica que os documentaristas tomam como ponto de partida da jornada
de representação da vida e seus temas.”
Após construção do roteiro e da definição da abordagem teórica e prática da
produção do documentário, os autores vão a campo, em busca das informações
necessárias ao registro utilizando como recurso principal as entrevistas narrativas
SOUZA, E.C. 2011a, destacando a necessidade de um mergulho em dimensões diversas
dos entrevistados, proporcionado uma quantidade infindável de informações que
podem ser categorizadas em uma pesquisa com narrativa de memória.
Para tanto as categorias apresentadas no documentário em questão, intitulado:
“Libras: surdez e cidadania” contemplam aspectos relacionados ao vínculo de famílias
de pessoas ouvintes com os filhos surdos e a língua de sinais, os surdos e sua
aprendizagem na língua, tempo e espaço, os intérpretes como mediadores do mundo
ouvinte com o mundo surdo, e os professores ouvintes que durante muito tempo
acreditaram que a língua de sinais era mais um método para ensinar aos surdos não
refletindo o papel linguístico-cultural e o status de língua que mesma deveria ocupar
na escola e na vida dos seus alunos.
A crença de muitos professores que atuaram na educação de surdos que
através do uso dos sinais, se conseguiria “alfabetizar” os surdos na língua oral do país,

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1354


perdurou durante muitas décadas no Brasil, oriundo de um processo histórico de
banimento da língua de sinais das escolas de surdos em todo mundo, conforme
explicitaremos em outros pontos deste texto.

Narrativa, memória e história da língua brasileira de sinais.

Tendo em vista a escolha dos elementos que intitulam esta seção como
construtores da base teórica metodológica deste trabalho, explicitaremos em diálogo
com os autores os fundamentos que sustentaram a pesquisa e os elementos
conceituais que contribuíram na identificação das narrativas que constituem o corpus
do trabalho, visto que foi a partir da coleta de informações dos participantes da
pesquisa que se empreende a construção do roteiro e das seções que compõem o
documentário, que irão dar vida e forma a história que é contada, que precisa está
registrada, a qual é o foco e a constituição da memória de gerações que poderão
debruçar-se sobre este registro.
Para Souza (2014), narrar é centrar-se nas trajetórias, experiências e percursos
dos atores envolvidos com a temática em questão, marcadas por aspectos “históricos
e subjetivos frente às reflexões e análises construídas por cada um sobre o ato de
lembrar, narrar e escrever sobre si”. Sendo assim, ao realizar as entrevistas, os
entrevistadores estão envolvidos em um emaranhado de dados que precisam ser
selecionados para organização dos registros e nos caso específico de documentários
fílmicos, a objetividade das escolhas darão melhor clareza daquilo que poderá servir
como registro da memória.
Em se tratando da dimensão conceitual da memória enfocamos aspectos das
lembranças e do tratamento que se dá a estas, em que tempo e espaço aconteceram
os fatos, o que ainda está vívido, o que precisa ser rebuscado na lembrança, como se
deu, os sentimentos que evocam as emoções que surgem. Nesta dimensão nos
apoiamos no pensamento do historiador Pierre Le Goff, (SILVA, SILVA, 2006) o qual
utiliza o conceito de memória como “a propriedade de conservar certas informações,
propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao
indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como
passadas” (2006). Para tanto, as entrevistas intencionaram realizar um levantamento
das histórias que os entrevistados, tinham sobre o processo educacional das pessoas
surdas através do uso da língua de sinais no município de Jequié, que de acordo com
hipótese inicial, esta língua não assumia status de língua e sim de mais um mecanismo
didático para ensinar os surdos a ler e escrever a língua portuguesa ainda que de
maneira não proficiente, tal como um recurso pedagógico, assim como o uso de
imagens, da lousa, de objetos entre outros recursos comumente utilizados por
professores ouvintes no ensino a alunos surdos.
As histórias conhecidas no processo de construção do documentário em
questão revelam as trajetórias dos sujeitos, e como a política local, a sociedade da
época pensava a surdez e a educação das crianças, jovens e adultos surdos de Jequié,

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1355


as concepções da época, o conselho médico, a ausência de política educacional
direcionada, as iniciativas beneficentes, e a postura dos pais, e dos próprios surdos,
frente às condições educacionais oferecidas pela época.
Em parte a maioria dos entrevistados vivenciou o início do processo
educacional nos anos oitenta, nascidos em final dos anos setenta, período em que o
país emergia da infeliz ditadura militar e lutava pelo processo de democratização, no
qual as políticas educacionais favorecessem a todos sem distinção de raça, cor, etnia e
condição biológica, portanto o recorte histórico que as narrativas conseguem revelar
durante as entrevistas nos fazem concordar com Lulkin (2005), que afirma que as lutas
por identidade no âmbito educacional, solicita uma atenção especial para o conceito
de diferença, um aprofundamento maior nos temas relacionados ao multiculturalismo,
e uma posição mais crítica frente aos poderes da linguagem e dos discursos
hegemônicos desde muito tempo neste país.
A história educacional das pessoas surdas no Brasil inicia-se com a fundação da
primeira escola para surdos por D. Pedro II em 1857, nesta escola, hoje Instituto
Nacional de Educação de Surdos, a sistematização da Língua de Sinais Brasileira
ocorreu com a vinda de um professor surdo francês, que inicia os estudos com os
alunos surdos aqui do Brasil (CAMPELO, 2007). Desde então a língua de sinais passa a
ser usada pelos surdos que se formam professores no instituto e por professores
ouvintes. Contudo sem uma oficialização desta língua em âmbito nacional, traz
impedimentos de que haja maior esforço institucional nos estudos, pesquisa e difusão
da mesma como língua de instrução na educação dos surdos de forma mais ampla.
De acordo com a hipótese inicial em relação ao município de Jequié/Ba, a
primeira iniciativa educacional que contemplasse os surdos, surge com antiga
Organização não governamental, Cemar, a qual oferece matrícula para pessoas com as
diversas deficiências, estabelecendo nesta escola uma sala de aula só para o ensino de
surdos, na qual, de acordo com os relatos das entrevistas, a língua de sinais não gozava
do status de língua, pois não havia professores fluentes na língua, e a mesma era
utilizada nas atividades mescladas com o ensino da língua oral, através de cartilhas e
manuais com vocabulário ilustrado em sinais.
O processo de desenvolvimento desta língua entre os surdos ali matriculados e
os professores ouvintes, aconteceu no decorrer dos anos. Não foi propriamente no
ambiente da escola que se dera este contato, mas nos encontros com surdos mais
velhos de outros municípios que são falantes fluentes da língua e com outros
professores ouvintes, também fluentes na comunicação em Libras. Até o ano de
reconhecimento da língua oficialmente em dois mil e dois, o sistema educacional
recebia os surdos na matrícula escolar, ás vezes inserindo a Libras como forma de
promover acessibilidade, com a presença de tradutores intérpretes, mas não a
reconhece nos aspectos culturais e de construção de identidade de um grupo
minoritário, bem como não constrói um projeto político educacional bilíngue, onde a
língua de sinais assuma o status de língua de mediação e instrução, e a língua
portuguesa na modalidade escrita, seja trabalhada na perspectiva de segunda língua.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1356


Quando tratamos da história, consideramos o processo, as lembranças, os
marcos e construção social que acontece, em determinado tempo e espaço, de acordo
com Silva, Silva (2006), a diferença entre história e memória, reside em que a história
atua sobre o acontecimento colocado para e pela sociedade, e a memória considera a
reação que o acontecimento provoca no indivíduo. E, portanto o registro visual da
história da educação dos surdos do município de Jequié, mediada pela língua de sinais,
considerando neste registro a memória dos que vivenciaram estes processos, permite
a considerar a importância desta ação para gerações de educadores e de pessoas
surdas que usam esta língua, bem como para comunidade acadêmica que há tão
pouco tempo convive com o estudo da Libras como disciplina curricular obrigatória na
formação de professores, bem como em estudos de programas de pós-graduação de
diversas instituições públicas e privadas.

O documentário fílmico como ferramenta de registro para memória visual

A escolha por este gênero para registrar a memória da história da educação dos
surdos em Jequié, mediada pela língua de sinais, tem uma valor especial, pois a
intenção é que este registro alcance principalmente as pessoas surdas, as quais,
presentes na escola pública brasileira, por vezes são invisibilizados na sua forma de ver
e compreender o mundo pelo canal visual e não pelo canal auditivo, pela cultura visual
e não pela cultura e tradição oral.
Por documentário, ou prática fílmica documental, compreendemos de acordo
com Lima (2009), como um importante espaço de reflexão, criação, interpretação,
representação e mediação de olhares sobre o mundo, um tipo de registro no qual a
cultura visual dos surdos, marcada por uma língua tridimensional, rica em forma e
movimento, com parâmetros relacionados à expressão facial e corporal, que não
depende das línguas orais para existir, que é completa em sua estrutura, encontra
espaço para um registro mais próximo da necessidade visual de seus usuários/falantes.
A história deste tipo de registro num formato de documentário, no Brasil
acontece no século XIX, sendo que o primeiro registro foi feito em dezenove de julho
de mil oitocentos e noventa e oito pelo empresário Afonso Segreto, que mostrou a
entrada do navio francês “Brésil” na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, e a partir
do século XX, com as possibilidades do aparato tecnológico, este tipo de produção
perde lugar para filmes de ficção e outros tipos de montagens, só afirmando sua
identidade, em meados do século, como um tipo de produção que registra aspectos da
realidade capta a vida em seu cenário natural, fora do estúdio, ainda segundo Lima
(2009, p.15) apud Ramos (1990, p.17).
Os documentários ainda revelam em muitos casos o ponto de vista do autor,
guardando profunda relação com valores culturais e “ideológicos de quem o
desenvolve, como fruto do olhar sobre determinado aspecto da realidade, um
discurso, um argumento”, embora não tenha a intenção de convencer o espectador,
cabe ao mesmo a interpretação e reflexão sobre o tema (2009, p.24).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1357


Diante deste posicionamento teórico, a escolha pelo formato documentário
fílmico para registrar trechos da história, gravada na memória das pessoas surdas e
dos educadores ouvintes em Jequié, se dá pela necessidade visual que a comunidade
surda tem de representação através de sua língua, que de acordo com Campelo (2007,
p.113), é um campo pouco explorado nas ciências da educação, não levando em
consideração as formas como as pessoas surdas recebem e compreendem o mundo
pelo campo visual, utilizando para isso dos recursos imagéticos ou [...] semiótica
imagética que é a parte da semiótica geral ou uma ciência geral dos signos, um dos
sistemas de significação.
A sociedade que vivemos é também a sociedade da imagem, da visualidade,
observamos a importância dada aos vários suportes que se utilizam da imagem para
estabelecer a comunicação, tais como o próprio corpo, telas, cadernos, computador,
propagandas, ou seja, a linguagem não verbal é uma área de estudo importante a ser
explorada no campo educacional, e esta disposição para uma coerência ideológica no
que concerne o ensino da Língua Brasileira de Sinais, seus campos de pesquisa e o
povo surdo que usa esta língua, corrobora com as escolhas em torno das opções
metodológicas que são feitas na realização deste trabalho.
Para que este registro, alcance valor para comunidade de pessoas surdas, se faz
necessário que a linguagem imagética, sirva como eixo, pois o campo de luta
educacional dos surdos sugere um redimensionamento destes de deficientes auditivos,
para eficientes do olhar (LULKIN, 2009, p. 43), um grupo de pessoas que tem no código
sinalizado uma materialidade, uma representação sociocultural entendendo que os
olhares são interessados e servem para delimitar espaços políticos.
Durante a construção do processo de organização do documentário, “Libras:
surdez e cidadania”, conhecer a roteirização foi uma condição para que o trabalho
fosse realizado, e a leitura do texto de Lima (2009), esclareceu quais etapas deveriam
acontecer, organizou a estrutura e serviu como ponto de partida para ida ao campo
das vivências exploradas nos temas abordados no trabalho.
O roteiro organiza as ideias, sustenta o projeto, semelhante a uma planta de
um projeto arquitetônico que ajuda a contar a história com imagens, diálogos e
descrições, além disso, sem um roteiro clareza e objetividade necessárias a este tipo
de gênero fílmico, poderá comprometer a qualidade da produção.

Em campo com a câmera, as entrevista e os personagens da história.

O trabalho de construção do documentário depois de organizado todo o


processo, buscou ir ao encontro dos personagens (pessoas da comunidade), que são
citadas nos relatos dos próprios surdos, nos encontros e vivências práticas da disciplina
Língua Brasileiras de Sinais na licenciatura em Letras da Uesb/Jequié. Como se tratou
de um trabalho acadêmico com intenção didática, a produção do documentário não
envolveu a necessidade de crivo do comitê de ética da universidade, quando se trata
de pesquisas com seres humanos, mas foi necessário à organização de termos de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1358


consentimento livre esclarecido e autorização do uso das imagens pelos colaboradores
que são entrevistados para a produção.
O processo de construção teve uma duração de aproximadamente cem dias,
entre leituras, discussões e organização das equipes de produção entre os próprios
alunos da disciplina e a professora, envolvendo a contratação de uma equipe de
filmagem profissional, decisão que fora tomada pelo grupo, pois era intencionado
produzir um material em vídeo que fosse doado a comunidade (associação de surdos,
escolas, centros de atendimento educacional especializado, familiares) como produto
do registro de sua história conforme discutido durante todo o texto deste trabalho.
Assim a qualidade das imagens que iriam constar no vídeo, exigiu uma produção e
edição profissional com a necessidade de inserção de um trabalho com as técnicas de
montagem, áudio e iluminação, que são da competência de equipe especializada.
A disposição dos entrevistados em participar foi um fator que proporcionou
momentos de muita emoção aos alunos produtores do documentário, a facilidade em
encontrar em suas rotinas um tempo de gravação das entrevistas, as disponibilidades
em contar suas histórias, a riqueza de detalhes que envolvem este tipo de narrativa,
provocavam grande comoção em todos, principalmente ao confirmar na realidade das
narrativas as temáticas relacionadas ao estudo da história da língua de sinais e da
educação dos surdos que são abordadas, durante o curso na disciplina Libras.
Os grupos escolhidos pelos produtores para organização das categorias que
iriam compor o trabalho foram: os gestores que representavam as políticas públicas
educacionais de Jequié, os professores da sala de aula comum, os professores
especializados em educação de surdos, os alunos nãos surdos que estudam com os
surdos, os pais de surdos adultos e os próprios surdos, sendo que nesta categoria
foram divididos: surdos adultos que não concluíram seu processo de escolaridade e os
surdos que ingressaram na universidade, surdos que atuam no mercado de trabalho,
alguns que já atuam como professores de Língua Brasileira de Sinais todos estes
usuários da Libras.
As entrevistas foram feitas em vários momentos, em geral nos espaços
profissionais dos professores e nas casas das famílias dos surdos, conforme abordagem
teórica a escolha por entrevistas narrativas (SOUZA, 2014), se deu por identificação
desta metodologia como mais adequada para coleta de dados essenciais a este tipo de
registro da memória, embora não houvesse por parte do grupo maior dedicação ao
estudo deste tipo de metodologia, pois os estudos traçados de bibliografia da área no
Grupo de Estudo em formação territorialidade e infância (FORMATE), do qual as
autoras fazem parte, é recente embora o grupo mantenha uma intensidade de leituras
que atualizam as referencias para que os escritos do grupo estejam acompanhando as
publicações mais coerentes com as dimensões conceituais dos estudos na área de
memória, narrativa e formação de professores.
Explicitamos ainda que aqui não cabe uma análise das narrativas colhidas
durante a produção do vídeo documentário, pois para o mesmo seria necessário, um
tempo maior, além da necessidade de uma sistematização em formato de análise de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1359


conteúdo para um trabalho que exija um gênero acadêmico diferenciado deste em
pauta para participação no Simpósio, ao qual se inscreve este eixo de pesquisa.
A produção do documentário fílmico além de confirmar as hipóteses iniciais
sobre o uso da Língua de Sinais, não como língua, mas como recurso didático para
ensino aos surdos no início do processo educacional dos mesmos em Jequié, confirma
o histórico na educação dos surdos vivenciado pelo mundo todo, durante um período
de mais de cem anos, onde a língua de sinais era proibida de ser ensinada aos surdos,
fruto das decisões do Congresso de Milão em 1880 (CAMPELLO, 2007). Além de
retratar a dinâmica das famílias com a descoberta da surdez dos filhos, a influência do
conhecimento clínico-médico reforçando a surdez como patologia, entre as décadas de
setenta e oitenta no Brasil, e a influência de uma pedagogia da cura e não do respeito
à diversidade humana. Neste registro fica demarcado o espaço de submissão que os
surdos vivenciaram antes e depois de adquirirem a Libras como língua natural em sua
comunicação, quando não há registro de professores surdos que contribuíram com a
construção da escola Cemar (citada como primeira iniciativa educacional para surdos
em Jequié), embora o aprofundamento do conhecimento e a fluência na língua só é
adquirida no contato com surdos adultos externos a escola e só posterior ao
reconhecimento da Libras como língua nacional de uma comunidade linguística
minoritária no Brasil, que alguns surdos da cidade, se tornam professores não de
crianças e jovens surdos, mas de adultos ouvintes que desejam aprender a Libras.
Compreendendo que este trabalho não encerra a necessidade de um registro
mais aprofundado desta história, embora suscite uma discussão sobre este espaço no
tão recente ensino da Língua Brasileira de Sinais na formação de professores, traz uma
abordagem de elementos teóricos e conceituais recentes em torno da memória e das
narrativas de grupos invisibilizados pelo sistema educacional, contudo não atende toda
a necessidade de uma discussão mais densa que precisa ser feita neste país sobre a
educação dos surdos, as línguas nesta educação e o papel dos educadores ouvintes e
surdos neste processo, pois não é esta a pretensão do presente texto.
As linhas divisórias da história, as fronteiras dos discursos sobre os surdos, e o
envolvimento dos surdos em suas próprias narrativas, problematizam diversas
questões suscitadas após a aprovação da Lei de Libras, dentre elas nos interessamos
por aquelas que reconhecem os atores da história, suas subjetividades, que constroem
suas identidades e modo de ver o mundo, destacando aqui no campo educacional as
práticas que revelam as concepções sobre diferença, identidade, língua e cultura.

Referências
FERNANDES, Sueli. Libras e escolarização de surdos: o que quer e o que pode essa
língua. Direcional Educador. 2009. Disponível em
http://www.direcionaleducador.com.br/edicao-52-mai/09.
LIMA, Renata Farias Smith. Documentário e turismo cultural: um olhar sobre Jorge
Amado. Ilhéus: Editus, 2009.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1360


QUADROS, Ronice Muller e PERLIN, Gladis (orgs.). Estudos Surdos II. In. Pedagogia
Visual/ Sinal na Educação dos Surdos. CAMPELLO, Ana Regina. Pedagogia Visual / Sinal
na Educação dos Surdos. Petropólis, RJ: Arara Azul, 2007.
SKLIAR, Carlos (org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. In. LULKIN, Sergio Andres. O
discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle do corpo e a expressão
cultural amordaçada. Porto Alegre: Mediação, 2005, 3ª ed.
_________________. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. In. Os Estudos Surdos em
Educação: problematizando a normalidade. Porto Alegre: Mediação, 2005,3ª ed.
SILVA, Kalina Vanderlei e Silva, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos.
São Paulo: Ed.Contexto,2006.
SOUZA, E. C. Diálogos cruzados sobre pesquisa (auto) biográfica: análise compreensiva
- interpretativa e política de sentido. Educação | Santa Maria | v. 39 | n. 1 | p. 39-50 |
jan./abr. 2014. Disponível em http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/reveducacao/article/download/11344/pdf.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1361


A identidade na blogesfera: (auto)biografia feminina em questão

Manuela Cunha de Souza


UFBA / IFBA
manuelacsouza@yahoo.com.br

Narrar-se vai muito além do simples registro de momentos. Enlaçam-se, numa teia, memória e
(re)criação de si; passado e presente; performance e subjetividade. A partir do pensamento de
conceituados teóricos do campo biográfico, como Philippe Lejeune e Paul Ricouer, aliado às reflexões
contemporâneas nesta área, como os trabalhos de Leonor Arfuch, Diana Klinger e Beatriz Sarlo,
destacam-se algumas especificidades e aproximações possíveis entre a autobiografia virtual,
especialmente as produções em blogs, e o texto memorialístico impresso. Sendo assim, diante do afã
contemporâneo em divulgar memórias particulares, esgarçando possíveis fronteiras entre o público e o
privado, este artigo reflete como cada modalidade de escrita de si possui suas especificidades, lidando
com a memória, o tempo e o público de maneiras diferentes. Não cabe aqui reduzir o blog a uma mera
reconstrução do diário íntimo impresso, como se o contexto que o circunda não o implicasse de maneira
diferente; é preciso, em tese, destacar que o suporte memorialístico estabelece relações diversas com a
narrativa de si. Para tais discussões, são analisados dois suportes memorialístico de Paula Lee, prostituta
brasileira que vive em Portugal: o blog pessoal e a autobiografia impressa, intitulada Alugo meu corpo.
Em ambas as produções, pode-se perceber como são (trans)formadas suas identidades e como elas se
negociam diante de suas vivências. Dessa forma, ao escrever suas experiências, a mulher também se
inscreve socialmente, rasurando, assim, estereótipos que silenciavam suas vozes.
Palavras-chave: Identidade; Mulher; Memória; Blog.

Intrdução

Relatos ou registros de narrativas memorialísticas sempre existiram, seja em


depoimentos, cartas, livros autobiográficos ou biográficos, diários dentre outros
suportes que permitem a rememoração como fonte de preservação do acontecido,
reestruturação da história (muitas vezes, a partir de um ponto de vista aquém do
dominante), ou simplesmente como uma espécie de catarse. O desejo de transformar
em linguagem o que se viveu é uma das molas propulsoras desse gênero narrativo,
que hoje possibilita essa inscrição nos variados suportes virtuais.
Nas últimas décadas, é perceptível o espaço galgado pelas (auto)biografias nas
estantes das livrarias. Não mais os olhares são lançados apenas para pessoas de
grande notoriedade na sociedade. Paradoxalmente, os relatos dos sujeitos
marginalizados da História são um dos que mais têm destaque para o olhar
voyuerístico-leitor. Dentre esses indivíduos, uma categoria em especial demonstra
que, apesar de ainda existir o preconceito sobre sua ocupação, seus escritos
memorialísticos se mostram cativantes e, cada vez mais, plurais: o da meretriz.
De blog para livro autobiográfico, posteriormente midiatizado pelo cinema:
este é um caminho que vem se tornando comum no relato de prostitutas no Brasil e
no mundo. O exemplo brasileiro mais conhecido é o de Bruna Surfistinha (2005). Sobre
a tradução intersemiótica da memória impressa para as telas do cinema, apesar de não
ser o foco deste ensaio, é importante destacar suas diferentes perspectivas de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1362


produção e recepção. Quando não escrita por um ghost-writer323, a escrita
autobiográfica é solitária, enquanto o filme é produzido por uma equipe
contextualizada em outro tempo. A recepção também difere, afinal, o texto fílmico
reduz o espaço do imaginário por trazer imagens, bem como tem um tempo pré-
definido para a narrativa, além de ser visto coletivamente em salas de cinema. A
leitura do hipotexto impresso, comumente, se dá individualmente, nos mais variados
espaços e o leitor tem a autonomia de voltar ou pular páginas, preencher as lacunas do
texto escrito com suas impressões e criatividade.O hipertexto não pode ser ponderado
hierarquicamente em relação ao texto de partida, afinal, segundo Ricouer (2011), o
primeiro não objetiva ser a cópia do hipotexto, mas uma releitura (tradução).
Há muitos textos memorialísticos de meretrizes brasileiras, como Alugo meu
Corpo de Paula Lee (2008), brasileira que decide prostituir-se em Portugal, mantendo
hoje, três blogs e tendo uma publicação autobiográfica impressa; Eu, mulher da vida
(LETE, 1992) de Gabriela Leite que teve uma espécie de reescritura culminando na
autobiografia Filha, mãe, avó e puta (LEITE, 2009).A partir deste escrito, a autora teve
um papel significativo para desmistificar a vitimização das garotas de programa como
mulheres pobres e, simplesmente, vítimas de uma sociedade machista, afinal, ela
cursava a USP quando “decidiu”324 prostituir-se;paraense, Bianca Aguillara vai ao Japão
pesquisar sobre a prostituição e, por opção, experimenta a vida dos cabarés, deixando
suas impressões no livro Fui Prostituta na Terra dos Samurais (AGUILLARA, 2009).
Inúmeros são os textos memorialísticos de meretrizes brasileiras e, cada vez maior,
também, é o público-leitor dessas escritas.
Vale ressaltar, nesse contexto de comercialização da memória, as reflexões de
Huyssen (2000) no que tange a relação entre mídia, política e amnésia. Essa tríade
nasce da musealização do cotidiano e, posterior, consumo da cultura da memória. O
medo do esquecimento é combatido com estratégias de registro como álbuns,
monumentos, filmes históricos, datas comemorativas, diários, blogs etc. Nessa mesma
esteira, Meneses (2007) destaca ainda a importância destas inscrições memorialísticas
na recuperação da experiência com fins de construir respostas para o momento
presente/futuro.
Diante disso, este ensaio325 se propõe a refletir sobre algumas especificidades e
aproximações possíveis entre a autobiografia virtual, especialmente nos blogs, e o
texto impresso. Perceber a nuance entre esses suportes é fundamental para ponderar
sobre o atual mundo do “reality”, em que ficção e realidade se imbricam, além de
poder observar como, no escrito biográfico, blogueiras-meretrizes encontram o espaço
necessário para expor-se e impor-se em meio aos preconceitos, não mais deixando sua

323
Escritor contratado para, a partir da narração normalmente oral da vivência de alguém, transpor para
a linguagem escrita a memória do outro, todavia, o texto é assinado pelo autor das vivências. O ghost-
writer é um mediador entre a narrativa em si e o texto escrito.
324
Expressão utilizada pela autora.
325
Publicado pela revista Inventário em 2013.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1363


história ser contada por outros e sim tomando para si a possibilidade de escrever a sua
própria narrativa.
Tendo em vista a limitação espacial deste ensaio, é preciso fazer um recorte de
análise. Para tanto, analisar-se-á, em especial, o blog326 e a autobiografia impressa de
Paula Lee. Todavia, não se deixará de pontuar, quando necessário, os escritos de
outras autoras. A escolha deste objeto de análise dá-se, pois esta autora oferece, a
partir de seus escritos de si, um material vasto sobre suas vivências, bem como,
reflexões a cerca dos mais diversos temas que perpassam pelo mercado do prazer.
Carioca, Paula Lee decide prostituir-se na capital portuguesa e até hoje atua na zona
de alto meretrício em Lisboa, ainda que já anuncie que sua carreira está chegando ao
fim. Ela escreveu a autobiografia intitulada Alugo meu corpo, primeiramente pela
editora Dom Quixote (2007), em Portugal, posteriormente pela editora Planeta (2008),
no Brasil. Nela, a autora se revela para além de dicotomias estanques entre a mulher
“santa” e a prostituta327.
Para iniciar as reflexões acerca da escrita biográfica, vale tecer uma breve
consideração conceitual acentuando a nuance de algumas expressões que circulam
nesse âmbito. Escrita de si, autobiografia, autoficção são termos que estão sendo
utilizados nessa “nova” cultura da narrativa memorialística, muitas vezes,
erroneamente enquanto sinônimos. É salutar ressaltar que o desejo de narrar-se não é
uma modalidade particular da contemporaneidade. Além disso, destaca-se que o afã
de abordar a intimidade em um ambiente público rompe com a velha dicotomia dessas
esferas, bem como delineia novas formas biográficas com certas especificidades. Por
isso, é imprescindível situar a perspectiva na qual se tomará cada termo antes de
aprofundar nas discussões. Considera-se, neste ensaio, a autoficção, conforme os
estudos de Diane Klinger (2006), em que o autor é consciente da ficcionalidade de sua
biografia, afinal, o escrito é um ponto de vista rememorado e reconstruído por uma
pessoa. Nesse sentido, Klinger (2006, p. 24) afirma que: “[...] a autoficção se inscreve
no coração do paradoxo deste final de século XX: entre o desejo narcisista de falar de
si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma ‘verdade’ na escrita”.
Benjamin (1994) já apontava sobre a impossibilidade de abarcar no escrito
memorialístico todo o passado, além disso, sabe-se que não há como ser plenamente
imparcial no relato, afinal, o narrador deixa marcas ideológicas e identitárias na sua
linguagem. Huyssen (2000, p.16) chama atenção ainda para as falsas memórias criadas
por eventos traumáticos, destacando que “[...] nem sempre é fácil traçar uma linha de
separação entre passado mítico e passado real, um dos nós de qualquer política de

326
Provisoriamente, o blog funciona no sítio http://amanteprofissional.wordpress.com/
327
Vale salientar a perspectiva de Le Goff (2010) quanto ao papel da Igreja na dicotomização da mulher
divinizada e a meretriz. Ele considera que a exaltação da imagem de Maria, mãe de Jesus, gera, de um
lado, a promoção da mulher e seu “inerente” instinto materno, ao passo que ela se afasta do ser
feminino aproximando-se do divino. Dessa forma, a sacralização da mulher é alicerçada na relação entre
a Virgem Maria e todas as outras mulheres, agregando-lhes traços sublimes e angelicais. E, em
contraponto, quem subverte essa imagem seria posta à margem.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1364


memória em qualquer lugar. O real pode ser mitologizado tanto quanto o mítico pode
engendrar fortes efeitos de realidade”.Dessa maneira, pode-se afirmar que a narrativa
do passado aproxima-se muito mais da verossimilhança do que da Verdade.
O elemento de diferenciação entre o ficcional e o biográfico, para Lejeune
(2008), é o pacto implícito ou explícito estabelecido com o leitor de que aquela obra
não se trataria de um romance ficcional. Esta noção, apesar de ser ampla e subjetiva, é
a que mais dá conta deste terreno instável do real/imaginário biográfico. Por fim, a
escrita de si, ainda sob o olhar de Lejeune (2008, p. 14) é a “narrativa retrospectiva em
prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
individual, em particular a história de sua personalidade”. Logo em seguida, o autor
destaca que perpassa por esse individualismo do sujeito o âmbito social e o histórico,
afinal, as pessoas estão inseridas em contextos que,de alguma maneira, influenciam
suas atitudes particulares. Nessa perspectiva, ele toma como espaço biográfico o
conjunto de dados que compõem a vida do autor, como todos os registros
memorialísticos: entrevistas, biografias etc.
Neste complexo espaço que vai além da mera descrição de vivências enquanto
fatos, Lejeune (2008) chama de pactos indiretos quando há a aproximação do romance
e a autobiografia, é o caso dos romances em 1ª pessoa, como em Memórias da sauna
finlandesa, do paulista Marcelo Mirisola (2009), em que os papeis de autor, narrador e
personagem se imbricam tensionando as fronteiras entre o romance ficcional e o
autorreferencial.
A espetacularização do indivíduo é resultado de um fenômeno social que se
desdobra no campo literário. Entre 1970-80, houve uma intensificação de produções
autorreferenciais marcada pelo relato em primeira pessoa, seja em um romance (tanto
o contado pelo narrador-personagem, quanto no uso do discurso indireto-livre), seja
em uma autobiografia; essa revalorização do “eu” narrativo é chamada de “guinada
subjetiva” (SARLO, 2007). Nessa esteira, muitos escritores passaram a criar romances
na perspectiva de uma autobiografia, garantindo, no mundo ficcional, que se trataria
de uma biografia “real”. Para esses casos, vale lembrar o pacto, desta vez, proposto
por Iser (1983), o qual seria um acordo entre autor/leitor, em que este último leria o
romance como se fosse real, mesmo ciente de que se trata de uma ficção.
Essas visões tênues e, por vezes, paradoxais circulam no espaço biográfico da
produção à sua recepção. A noção temporal da escrita, por exemplo, demonstra a
impossibilidade de apreender o real na linguagem. Falar em passado é articular dois
elementos conflitantes: memória e história. Um “desconfia” do outro: de um lado, o
lembrado e do outro, o escrito. Assim, “o retorno do passado nem sempre é um
momento libertador da lembrança, mas um advento, na captura do presente” (SARLO,
2007, p.9), pois é no presente que a lembrança nasce e se concretiza. Em um texto
memorialístico, narra-se no presente um fato passado visando aos desdobramentos
futuros. Esse tempo tridimensional está sujeito às lacunas da memória, aos interesses
do autor, bem como à recepção do leitor. Dessa maneira, ainda não há como prever
qual será a leitura realizada por um indivíduo, sendo que cada leitor lê de acordo com

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1365


seus conhecimentos de mundo, horizonte de expectativa e local social. Benjamin
(1994), nessa perspectiva, considera que a história tenta organizar o caos que são os
fatos da vida selecionando e combinando as passagens, por isso pode-se afirmar que
quem constrói a história é o presente.
Vale salientar que, apesar de estar materializado na mesma pessoa, o sujeito
que vivenciou os fatos não é o narrador, tampouco o personagem; ambos são
representações/criações do autor que protagonizou a situação narrada. Arfuch (2010,
p.54-5), nesse sentido, afirma que “[...] para além da captura do leitor em sua rede
peculiar de veridicidade, ela [a autobiografia] permite ao enunciador a confrontação
rememorativa entre o que era e o que chegou a ser, isto é, a construção imaginária de
‘si mesmo como outro’”. Logo, considera-se que, para além de buscar uma verdade, a
leitura de autobiografias é uma forma de, a partir do pacto com o autor, o receptor se
inspirar com as vivências relatadas, aprender com as experiências e, de alguma
maneira, estabelecer um laço de cumplicidade confessional entre o autor, que, no
momento da leitura, será virtual, e o leitor real.
Por outro lado, no momento da produção biográfica, o autor real escreve sobre
um “si” imaginário para um leitor, por enquanto, virtual. É um espaço privilegiado de
reflexão, como aponta a autora em estudo, Paula Lee: “Meu blog é minha terapia, já
disse isso muitas vezes: é aqui que eu descarrego, que eu coloco tudo para fora, que
eu tento refletir sobre o que vivo e sobre o que sinto [...]”. [Postagem: As ‘estratégias
de marketing’ das acompanhantes (1); 19 julho 2012]. Logo, para ela, escrever sobre si
é uma maneira de maturar os acontecimentos vividos (ou não) de maneira reflexiva e,
por vezes, confessional. Mas, neste contexto, não se pode desconsiderar que sua
postagem foi registrada em um espaço público e, com isso, surgem algumas
considerações quanto a essa espontaneidade do discurso memorialístico.
Pensando nisso, vale ressaltar que, segundo Ricouer (2007), a narração é um
discurso por ter uma escrita persuasiva; como em todo discurso, os tempos verbais do
passado não são livres do presente da enunciação. O presente conduz o passado
rememorado. Além dessa reconstrução consciente ou não das lembranças, o registro
memorialístico também se afasta do real ao passo que se materializa na linguagem.
Uma palavra (significante) só é seu significado por uma convenção e, caso a
desloque de contexto, a mesma expressão pode tomar contornos diferentes. Foucault
(2011) já indicava que instituir um conceito fixo sobre algo seria uma violência e, esta
escolha, por sua vez, não se daria arbitrariamente, mas através de um jogo de poder.
Significar é interpretar, é estabelece-se um centro enquanto ponto de referência
provisório (DERRIDA, 2009). Sendo assim, no instante em que se tenta transpor através
da linguagem uma situação vivida, a experiência deixa de ser ela mesma e passa a ser
um conjunto de palavras (orais ou escritas) ou gestos convencionalizados, apenas
simbolizando o acontecido. Dessa forma, não se pode captar o real na linguagem.
Todavia, é incorreto categorizar a escrita memorialística como simplesmente
ficção ou a verdade. Ela é resultado das impressões vivenciadas pelo autor, com suas
expectativas quanto à sua escrita, bem como ressignificação diante do presente. Essa

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1366


representação do passado é uma rica fonte de prazer estético e aprendizado, além de
ser um espaço de inscrição identitária privilegiado, pois na autobiografia é o “eu”
quem se constrói e se afirma diante da história oficial; é neste espaço que a narrativa
histórica coletiva pode ter outro olhar – particularizado, não homogeneizante, o que
denota e ressalta que a História é feita de histórias.
É muito comum, na atualidade, ver as esferas privadas e públicas imbricarem-se
de maneira que dificulta a compreensão do que diz respeito ao sujeito ou aos outros.
Basta observar a quantidade de reality show no Brasil e no mundo. Há, na mídia,
reality em que membro de uma família troca de lugar com outra para tentar se
adaptar; outros em que confinam sujeitos diversos em uma casa de luxo a fim de ver
com qual deles o público simpatiza; ou ainda os que colocam pseudo-celebridades em
um espaço que, na teoria, não dominam, dando-lhes afazeres comuns – esgarçando a
barreira invisível de uma personalidade da mídia que também é uma pessoa comum.
É interessante notar que, nessas “construções” midiáticas, há o consentimento
dos indivíduos em serem expostos em rede, cientes de que quem ganha o “jogo” é
quem o público decidir. O desejo de agradar ao outro é cada vez maior quando os
limites público/privado se aproximam, o que faz rasurar o seu próprio desejo. Busca-se
ser querido, ser amado, por uma gama de estranhos (tel)espectadores que, após o
show, buscará incessantemente saber cada passo de sua vida para saciar a sede de
“amar” aquela criação. Pode-se perceber como isto tem afetado a conduta das
blogueiras que adquiriram certo número de leitores na seguinte postagem de Paula
Lee:

Antes eu contava tudo no blog: pra onde ia, quanto tempo ia ficar fora,
quando voltaria. Os leitores não só sabiam a minha vida, como também
conheciam bastante da minha agenda e dos planos futuros. Isso foi algo que
tive que deixar de fazer; estava expondo certas coisas em demasiado, e isso
estava me prejudicando. Vocês sabem como é: há pessoas que estão do
nosso lado para nos dar apoio, como há aquelas que ficam obcecadas por
nós, ou mesmo aquelas que usam tudo o que aprenderam contigo para
usarem para fazer coisa errada. [Postagem: O Universo das Acompanhantes
(Independentes) Internacionais; 20julho 2012].
A nuance entre quem apenas acompanha a vida da blogueira (em seu blog) e as
pessoas “obcecadas” inicialmente não é bem estabelecida. Entretanto, quando os
comentários e a vontade de acompanhar sua trajetória saem do mundo virtual e
passam ao real é sinal de que essa relação transcende a mera observação, deixando o
leitor de ser apenas o espectador.
O termo voyuerismo é readaptado às condições de desejo de ver o outro, ao
passo do prazer em ser visto. No dicionário de fetiches, Schommer (2008, p. 217-8)
desdobra quatro tipos de voyuerismo: o voyuerismo pornográfico, no qual há a
aspiração sexual ao olhar imagens ou a própria cena de sexo; voyuerismo presente,
feito com o consentimento do casal (chamado pelo autor de objetos do desejo);
vouyerismo fotográfico, realizado através do direcionamento daquele(a) que registra

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1367


as poses à(ao) sua (seu) modelo; e, por fim, e que interessa para pensar no mundo
virtual, no que tange aos blogs, o voyuerismo oculto.
Este é realizado de longe, com binóculos, ou através de uma janela. Ao pensar
nos dias atuais, a tela do computador cria um muro visível e invisível permitindo o
“espiar” por cima desta divisória ao entrar em sites. É como se cada página da internet
fosse um mundo diferente, o qual se pode invadir sem ser visto, observar cada passo
do autor do blog, por exemplo, no silêncio do anonimato, podendo saciar seu desejo
(sexual ou não) de ver o outro, sentir-se próximo a ele, sem ao menos este saber da
existência do“voyuer-oculto”.
Claro que, com o desenvolvimento do espaço virtual, a facilidade na compra de
computadores e acesso à banda larga, o número de usuários da internet cresceu,
consequentemente, o que se expõe em rede virtual acaba sendo visto e, por vezes,
compartilhado, por várias pessoas. O campo antes reservado para o particular, como
nas escritas do diário, passa a ser público. O blog, então, se instala neste ambiente
movediço do contar-se para o outro. Sobre isso, Luiza Lobo (2007, p. 59-60), acredita
que:

A causa para este voyerismo seria, então, a mecanização, a previsibilidade e


a hierarquização da sociedade, que fixam as pessoas em papeis dos quais
não podem mais escapar, Estabelece-se, no blog, uma relação dramática
entre um batalhão de atores e de voyers, num processo imaginário de
interação, em que falar da vida alheia não é um problema moral, mas uma
questão pedagógica de aprendizado e sobrevivência no novo mundo pós-
moderno da era eletrônica (grifo da autora).

O empréstimo do termo exibicionista, por sua vez, não se encaixa nos anseios
dos autores dos blogs, por exemplo. Segundo Schommer (2008), o exibicionista sente o
desejo em mostrar seu corpo a quem não tenha solicitado (vale salientar que esta
categoria não abarca a realização sexual na frente de estranhos, isto se chama
agorafilia), ele vive no plano no imaginário, não na concretização sexual.
No caso das blogueiras, elas, primeiramente, não se desnudam (no sentido
metafórico, tampouco no literal), não se revelam para quem não deseja saber de sua
vida. A página virtual se encontra na internet e só acessa quem tiver interesse. As
autoras, então, não podem ser consideradas exibicionistas, pois as exibicionistas não
estão interessadas em causar prazer no outro, elas se interessam em expor seus
corpos causando-lhe excitação, sem pensar na recíproca do desejo; paradoxalmente,
nos blogs, a escrita busca revelar-se, mas também cativar o leitor que, certas vezes,
entra nos sites com a ânsia de saber o que o outro experimentou ou o que ele tem a
dizer.
É imprescindível destacar que nem todo blog de mulheres tem o cunho
autobiográfico. A autoficção no meio virtual,por exemplo, enquanto escrita consciente
do autor de autoreferenciar-se em uma ficção, é comum. Inúmeras são as páginas
virtuais em que as autoras criam uma persona para assinar a autoria de seu blog de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1368


conteúdo confessional/autobiográfico. Neste último caso, conhecido como os fakes
virtuais, que seria quando o sujeito se esconde em imagens e nomes ficcionais, a
autora real constrói um pseudônimo para assinar seus textos autorreferenciais, não
buscando falar sobre sua realidade, afinal, ela tem consciência da ficcionalidade de seu
texto.
Seja na autoficção, na escrita de si ou na autobiografia, os relatos vão além do
cotidiano. Reflexões filosóficas, indicações de leituras ou atividades culturais,
considerações sobre fatos históricos são tópicos comuns nos blogs de mulheres. A
escrita memorialística é fragmentária, não se pode descrever tudo o que se passou em
um dia, mas registram-se impressões, reconstituem-se lembranças explorando o
passado, agregando-lhe sentido e coerência. Assim, o tempo pode se manifestar por
duração ou intensidade, por isso, por vezes, faz-se necessário a indexação, criando
título para cada registro ou marcando-o em categorias. No meio virtual, essa
organização é mais visível, pois, comumente, os blogs agrupam as postagens em
mês/ano e ainda dá a possibilidade da sistematização de postagens de períodos
diferentes em uma mesma categoria, organizando os textos não pelo tempo, mas pelo
tema (HESS, 2006). No blog pessoal de Paula Lee, há a indexação por temática, como:
“acompanhamento x prostituição”, “quotidiano”, “perguntas dos leitores”, “vida
dupla”; em cada uma dessas categorias, há dezenas de postagens que abordam, de
alguma maneira, o mesmo tópico de discussão, independente de quando foi escrito.
Considerar o blog como uma simples variação do diário íntimo é um grande
equívoco, afinal além de o suporte material ser diverso (o papel e a caneta dá lugar ao
computador), o receptor e o contexto de produção são os maiores diferenciais entre
ambos. Na blogesfera, escreve-se, comumente, no ambiente privado da casa, à noite,
para um leitor virtual que, na teoria, deve ser a própria autora. As informações ali
contidas são sigilosas, uma espécie de segredo que se materializa na escrita como uma
forma de catarse, ou momento reflexivo das experiências vividas.
No blog, por sua vez, bem diferente do diário íntimo, os “segredos” querem ser
revelados. A escrita deixa de ser geralmente à noite e passa a ser em qualquer
momento e em qualquer lugar, especialmente com o desenvolvimento das tecnologias
e da internet via celular, notebooks, ipad e afins. É cada vez mais comum observar
pessoas, no instante em que estão em um evento, postarem fotos de onde estão,
demonstrando esse anseio em exibir-se, ao passo que outros têm o desejo de vê-los. A
escrita antes diária (o próprio nome já denota diário) dá lugar à instabilidade de
publicações, podendo ser duas, três vezes ou mais no dia, ou semanal. A escrita no
blog vai de acordo com a necessidade e a vontade da autora.
Além da diferença de quanto e onde serão postados os seus relatos, no blog há
a possibilidade do diálogo entre autor e leitor a partir dos comentários. Neles, o
receptor, quando quiser, pode expressar suas impressões sobre as experiências das
autoras, ou afirmar a importância ou não de seus depoimentos, podem sugerir temas
para postagens futuras etc. Algumas vezes, a autora opta por moderar esses
comentários, a fim de evitar manifestações desrespeitosas ou que não sejam de seu

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1369


interesse. Como só acessa o blog quem tem o interesse nele, é reduzido o número de
considerações maldizentes ou ofensivas. Essa ferramenta de diálogo só alimenta o
interesse de ambos em manter o contato. Entretanto, nem sempre os comentários
refletem o que a autora quer “ouvir/ler”. Paula Lee, no trecho abaixo, chama atenção
para algumas interessantes questões: o lugar da verdade em seus relatos e o feedback
de seus leitores:
Desde quando criei o blog que, tudo o que escrevo ou desabafo, sempre
vem alguém questionar se não será uma estratégia de marketing…
Ai que tolinhos e ingênuos! Vocês acham realmente que são os meus
desabafos sentimentalóides que vão encher a carteira de clientes? Vocês
acham realmente que, depois de ler um post meu, um homem sai correndo
a pegar o telefone, tentando marcar um encontro para aquele mesmo dia?
Vocês acham que, quando decide procurar uma acompanhante, a primeira
coisa que um homem pensa é “deixa eu cá ver se não encontro um blog de
uma acompanhante bem legal, com quem eu possa ter um papo bacana”?
Meus queridos, se fosse tudo estratégia de marketing, eu nem teria um
blog!Porque é por conhecer este mercado que digo: o blog pode funcionar
mais contra do que a favor. (grifo da autora) [Postagem: As ‘estratégias de
marketing’ das acompanhantes (1); 19 julho 2012

Se tem efeito negativo a escrita no blog, por que, então, ela ainda opta em
escrevê-lo? Por que não fazer uma autoficção resguardando sua identidade real, ou
sua identidade profissional? A desconfiança de seu leitor tem origens na estrutura
social, em que as pessoas buscam a cada instante apresentar uma imagem que lhe
traga benefícios. É óbvio, por sua vez, que caso a autora tenha uma história que a
qualificasse como antiprofissional ou trazendo à tona um grande segredo pessoal, a
menos que não queira, ela pode resguardar-se na omissão desses fatos. Talvez a
estratégia de marketing seja não da promoção de si, mas na não degradação de suas
atitudes, especialmente, profissionais.
Sendo assim, a escrita em blogs, tanto enquanto autoficção como
autobiografia, é uma ferramenta rica para se observar como suas autoras afirmam-se e
recriam-se. No blog de prostitutas, pode-se vê-las para além de sua ocupação no
mercado do prazer. Mães, amigas, filhas, trabalhadoras de outra ocupação, esposas
são, muitas vezes, outros locais sociais assumidos por elas durante suas vivências. Não
se pode perder de vista, então, que a identidade é construída a partir dos valores
adquiridos e ressignificados de diversas instâncias da vida cotidiana: o Estado, a
família, a Igreja, a escola etc (BOURDIEU, 2010). Nesse sentido, a leitura de biografias
das minorias sociais é uma maneira de desmistificar os estereótipos de cada categoria,
não dando voz, mas abrindo os ouvidos (ou os olhos) para a narrativa do outro, para
que este “outro” possa se revelar.
A identidade é uma convenção socialmente necessária que serve para
identificar e agregar os indivíduos em grupos. Porém, a participação nessas
comunidades identitárias não é permanente, tampouco exclusiva. Quando um novo
contexto surge, o sujeito cria alianças diversas com outras confrarias. Assim, cada local

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1370


social institui suas leis, as quais devem ser obedecidas a fim de manter sua
permanência nele. Todavia, muitas vezes, as regras de um desses espaços conflituam-
se, ou até mesmo contradizem, os de outros ocupados por uma mesma pessoa. Sendo
assim, a partir da leitura de uma autobiografia, pode-se observar o indivíduo, por
exemplo, como um sujeito múltiplo, diferentemente da visão cartesiana do ser
humano.
Com a figura da prostituta não seria diferente. Sua ocupação é apenas uma
parte de si. Entretanto, a sociedade, especialmente depois da Idade Média e os ideais
cristãos, a fim de marcar as diferentes identidades a partir de hierarquias, estabeleceu
que essa mulher não teria dignidade por não se inserir nos moldes de sua ordem
social. Essa depreciação do diverso não se dá apenas com a meretriz, mas também
com qualquer pessoa que subverta e se inscreva fora dos valores sociais e morais
vigentes. Historicamente, entretanto, as meretrizes não tiveram sempre sua figura
depreciada, muito pelo contrário, antes de Cristo, elas eram consideradas cultas e, por
vezes, até como uma divindade (FONSECA, 1982).
A partir do quinto descentramento do sujeito cartesiano, proposto por Hall
(2006), o feminismo, que explode na década de 60, coloca em xeque a dicotomia do
privado e público ao politizar a subjetividade, permitindo novas formas de lidar com a
memória, com as relações sociais e com a (trans)formação identitária. De alguma
maneira, tornar público a vivência particular de mulheres desprestigiadas socialmente
tem servido para repensar o estigma agregado à sua imagem, bem como tem gerado
reflexões acerca do esgarçamento de fronteiras entre o pessoal e o social,
especialmente no campo da blogesfera.

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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1371


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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1372


Reflexões sobre a criação de conhecimentos na EJA (Educação de Jovens e Adultos):
o espaço biográfico como parte da formação

Miriam Araújo Nascimento


UNEB
miriamufba@yahoo.com.br

O estudo aqui apresentado tem como proposta socializar a discussão sobre a criação
de conhecimentos na EJA (Educação de Jovens e Adultos) tendo em conta o espaço
biográfico como parte da formação. Como parte da pesquisa de contextualização
conceitual (base) epistemológica que estamos desenvolvendo, optamos por uma
pesquisa de cunho quantitativo/qualitativo; quanto aos objetivos trata-se de uma
pesquisa exploratória, com estudos determinados e observados em sala de aula;
quanto aos aspectos instrumentais, trata-se de um estudo de caso, com metodologia
participativa. Como objetivo geral está verificar o potencial de criatividade dos
estudantes na EJA (Educação de Jovens e Adultos) priorizando a questão de que a
produção de sentidos (conhecimentos) é recorrente dos processos de vida. Assim, este
estudo centra-se em apresentar reflexões sobre o espaço biográfico dos sujeitos e
sobre o potencial de criatividade destes sujeitos, tendo em vista que é no percurso que
acontece a criação (de conhecimentos e obras de arte). Sendo que essas criações
constituem-se continuamente a partir das relações histórico-social, possuem caráter
contextual e local. E, por isso mesmo, essas criações também provêm da relação do
sujeito com suas experiências, com sua dinâmica interna e com a própria dinâmica do
viver. A proposta deste estudo, todavia, evidencia que o ser humano forma-se num
contexto de diálogo, transformação e criação, no qual cada um tem a possibilidade de
experienciar, criar, criar-se e ao mesmo tempo ampliar potencialidades geradas nas
relações, desse modo, nesta pesquisa, consideramos cada estudante da EJA (sujeito)
que cria revelando sua inteligibilidade.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos (EJA); Criação de Conhecimentos;
Espaço Biográfico; Formação

Introdução

Neste artigo discutimos a criação de conhecimentos na Educação de Jovens e


Adultos (EJA) tomando o espaço biográfico como parte da formação. Destacamos de
forma crítica que cada estudante da EJA pode ser considerado um sujeito criativo. Este
cria conhecimentos a fim de gerar sentidos e significados para o seu viver.
Intencionamos apresentar reflexões sobre o espaço biográfico dos sujeitos e
sobre o potencial de criatividade destes sujeitos, tendo em vista que é no percurso que
acontece a criação de conhecimentos e obras de arte. Priorizamos a questão de que a
produção de sentidos (conhecimentos) é recorrente dos processos de vida.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1373


A metodologia adotada neste trabalho refere-se a uma pesquisa de
contextualização conceitual (base) epistemológica que estamos desenvolvendo,
optamos por uma pesquisa de cunho quantitativo/qualitativo. Entre os autores que
corroboram conosco neste caminhar estão Paulo Freire, que conceitua a Educação
entrelaçada às vivências de cada sujeito, Tânia Regina Dantas apresenta reflexões
sobre a Educação de Jovens e Adultos, Silvio Zambone, que caracteriza a Arte
elencando suas inter-relações com outros conhecimentos, Maria da Conceição
Passeggi que destaca aspectos sobre o Espaço autobiográfico, Sidnei Macedo
apresenta conceitos de formação e de atos de currículo e Valdo Barcelos reflete sobre
a criação de conhecimentos e o currículo na Educação de Jovens e Adultos.
A Arte aqui é entendida como “uma forma de conhecimento que nos capacita a
um entendimento mais complexo, e de certa forma, mais profundo das coisas”
(ZAMBONE, 2006, p. 23). Pensando com Freire (1990) temos que a Educação é uma
relação dialética dos seres humanos com o mundo e com a linguagem e ação
transformadora, a parte de um processo pelo qual alguém se torna autocrítico a
respeito da natureza, historicamente, construída a partir de sua própria experiência. E,
o espaço autobiográfico como aponta Passeggi (2010, p. 110) é o espaço de figuração
da narrativa que acompanha o percebido de nossa vida. Espaço-tempo no qual nos
situamos.
Ressaltamos que a relevância do espaço biográfico de cada estudante da EJA
possibilita a valorização de suas singularidades, especificidades e do conhecimento de
vida de cada um. Assim, tendo em conta que o processo de construção do
conhecimento se constitui aliando conhecimentos prévios, contato com a realidade
circundante, bem como novos conhecimentos, este pressuposto torna-se
indispensável na promoção do conhecimento na EJA. Como bem ressalta Barcelos
(2010, p.50) "não existe separação entre aquilo que as epistemologias tradicionais
chamam de dimensão biológica e dimensão cultural da pessoa, e, consequentemente,
nos seus processos de viver". Ainda para este pesquisador, "dentre esses processos se
situam a produção de conhecimentos e, como não poderia deixar de ser, a
aprendizagem de homens e mulheres no e com o mundo". O importante, ainda
pensando com Barcelos, é estarmos sempre atentos e vigilantes no sentido de nunca
fechar os espaços para a imaginação e para a criação.
Entendemos, pois, que os espaços das experiências autobiográficas apresentam
conteúdos valiosos para a formação do sujeito, especialmente dos jovens e adultos,
homens e mulheres, que não seguiram uma regularidade escolar. Estes, por motivos
diversos, têm que dar continuidade a sua formação buscando novas perspectivas de
aprendizado. Portanto, considerar as vivências e deixar que os jovens e adultos
manifestem em seu espaço biográfico suas experiências é uma necessidade na
Educação de Jovens e Adultos. Como enfoca Pimenta (2002, p. 95):

As necessidades dos jovens são mais amplas do que a frequência à


escola. Os jovens buscam na escola um espaço de sociabilidade, de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1374


troca de experiências que ultrapassam as dimensões da simples,
porém importante, busca da instrução. Daí a sua capacidade de
intervir, até pela própria incapacidade da escola as funções para as
quais foi criada. Os jovens conseguem transformar espaços
estruturados por horários e atividades rígidas em espaços de
descontração, criando redes de relações sociais que ampliam a sua
sensibilidade.

Pensar, pois, numa EJA comprometida realmente com a aprendizagem efetiva


dos jovens e adultos, repercute repensar nas questões do currículo, da metodologia, e
da formação. Vale lembrar as palavras de Moacir Gadotti (2008, p.27) os jovens e
adultos alfabetizados já foram desrespeitados uma vez quando teve seu direito a
educação negada. Não podem agora, ao retornar sua instrução, serem humilhados
mais uma vez por uma metodologia que lhes nega o direito de afirmação de sua
identidade, de seu saber, de sua cultura. Tânia Dantas (2012, p. 159) em seus estudos
também constatou que,

Como campo epistemológico, a Educação de jovens e Adultos é


marginalizada ou colocada em segundo plano no currículo dos cursos
de pedagogia e nas licenciaturas de formação de professores para as
diversas áreas do conhecimento, provocando uma importante lacuna
na formação inicial dos professores que poderão atuar (às vezes já
atuam) na modalidade da EJA (DANTAS, 2012, p. 159).

Sendo que há, portanto, uma necessidade de que a formação de profissionais


para atuar na modalidade de ensino de Jovens e Adultos, como ressalta Dantas (2012,
p. 153) atente para “a diversidade desta clientela formada por jovens e adultos com
diversos interesses, observando suas demandas peculiaridades, diferenças culturais,
experiências de vida, percursos históricos, saberes, características específicas
considerando-os como sujeitos históricos e atores sociais”. Neste sentido o espaço
biográfico está implicado na formação.
Estes enfoques suscitam uma visão aprofundada quanto à importância do
espaço biográfico na formação de jovens e adultos. Visão esta da necessidade de uma
Educação comprometida com a intenção de elevar o sujeito através de práticas
criativas desenvolvidas em seu espaço biográfico. Tendo em vista que uma Educação
focada neste compromisso possibilita a valorização de tudo que o adulto e o jovem já
vivenciaram, resgata a importância da história de vida destes e, ainda contribui para a
promoção de uma qualidade social e política. Para Froes Burnham (1998),

o currículo escolar tem a função de formar cidadãos críticos,


produtivos, que participem responsavelmente da transformação de
sua sociedade. Para tanto, e necessário que o currículo tome como

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1375


ponto de partida a vida concreta dos sujeitos que aprendem suas
experiências, seu saber no nível do senso comum.

As discussões acima suscitadas apontam o aluno da EJA como um sujeito


criativo, que possue aspirações ideológicas diferentes dos alunos do ensino regular.
Para o aluno, sobretudo da EJA, o espaço da escola deve ser de crescimento pessoal,
de valorização de suas experiências e de suas vivencias. Para Barcelos (2010, p. 94) a
escola é um dos territórios de experiências humana sensível. Um lugar de palavras, de
gestos, de silêncios e de atitudes. Um território de experiências vivas e vividas. Lugar
onde conhecimentos e saberes se encontram, se confrontam, se antropofagiam ou se
anulam.
Entender, portanto, a escola como um espaço biográfico, parte da formação
dos sujeitos da EJA, torna-se fundamental no desenvolvimento social, criativo, crítico e
emocional destes jovens e adultos. A escola neste sentido, como bem afirma Gadotti
(2003, p. 171) é "um espaço político, limitado, mas de importância relativa na
superação das contradições da sociedade". Subtendemos desse modo, que a escola é
um espaço biográfico de criação – de si, de conhecimentos e de obras de arte –
tomando, pois, estas criações como obras da vida.

ESPAÇO BIOGRÁFICO, CRIAÇÃO DE CONHECIMENTOS E EJA

Neste estudo entendemos o conhecimento segundo a abordagem de cunha


(1998, p. 24), como “espaço conceitual, no qual os alunos e professores constroem um
saber novo, produto sempre contraditório de processos sociais, históricos, culturais e
psicológicos”. Conceber o conhecimento dessa maneira é compreender que dúvida,
incerteza, ansiedade, reflexão predominam no processo de criação. Desse modo é
importante enfocarmos que o conhecimento é constituído imbuído de histórico, bem
como é provisório e relacional. Sendo que a subjetividade, a cultura e a identidade do
sujeito estão totalmente implicadas. Para Cunha (1998, p.13) a criação de
conhecimentos envolve, “uma visão de mundo, uma perspectiva de transitoriedade,
uma concepção de movimento, de vida. Esta presidida pela perspectiva de que o
homem e um sujeito histórico e que toda a sua produção é construída tendo esta
condição como referência. Assim, o conhecimento não se produz ao acaso e sim a
partir deu necessidades e contradições humanas e sociais”.
Tomando, portanto, a criação de conhecimento como um ato artístico, vale
pensarmos com Vygotsky (2001, p.325), para este “o ato artístico é um processo que
amplia a personalidade, e enriquece-a com novas possibilidades”. E, além disso, “a arte
exige resposta, motiva certos atos e atitudes” (idem, p.318), assim como a leitura.
Nesse sentido, atribui à arte, um papel “imanentemente social; o meio social extra-
artístico, afetando de fora da arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela”
(Bakhtin).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1376


A criação de conhecimento como um ato artístico compõe-se a partir da
capacidade criativa do sujeito, como também de um fazer, de uma construção, de uma
produção, de um processo. Refletindo com Bosi (2000, p. 13, grifos nosso) temos que
“a arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria
oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade humana,
desde que conduzida regularmente a um fim (em “metamorfose”), pode chamar-se de
artística”. E mais ainda, “a arte é uma produção; logo supõe trabalho. Movimento que
arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos”
(BOSI, 2000, p. 13). Subtendemos desse modo, que a arte, enquanto processo criativo
possibilita que aos sujeitos criar conhecimentos e obras de arte (obras de vida).
Para a filósofa Chauí (2002, p.112) conhecer é "passar da aparência a essência,
da opinião ao conceito, do ponto de vista individual a ideia universal de cada um dos
seres e de cada um dos valores da vida moral e política". Para esta filósofa as fontes e
formas do conhecimento são: sensorial, percepção, imaginação, memória, linguagem,
raciocínio e intuição intelectual. Sendo que por meio dessas fontes e formas do
conhecimento, cada sujeito pode manifestar-se como "sujeito do conhecimento" ou
"consciência reflexiva" (Chauí, 2002, p. 118), e mais, este "formando-se como
atividade de análise e síntese, de representação e significação voltadas para a
explicação, descrição e interpretação da realidade e das outras três esferas da vida
consciente – a vida psíquica, moral e política –".
Para Macedo (2013, p. 36) “o conhecimento é uma construção humana, estão
valores, sensibilidades e motivações são componentes necessários de sua constituição,
e a distinção entre valores fatos colapsa”. Este pesquisador, fundamentado no
construtivismo social, alerta que "ao invés de descobrir uma realidade objetiva e
independente, o ser humano constrói o conhecimento por meio de suas interações".
Para o construtivismo social, ainda pensando com Macedo (2013, p. 35) nós
construímos teorias a respeito do funcionamento do mundo ativamente, mas sempre
ao longo da interação social. Nisto funda-se "a crença de que o sujeito do
conhecimento constrói esse conhecimento por meio da linguagem". Corroborando
com Macedo, Cunha (1998, p. 12) intensifica que conceber “o conhecimento numa
perspectiva de que o homem é um sujeito histórico, e levar em consideração que o
homem é por natureza capaz de investigar, simplesmente por que pensa, tem dúvidas
e vive”. Nesta perspectiva há uma valorização do pensamento divergente por ser este
condição para a criatividade.

O SUJEITO CRIATIVO DA EJA E A FORMAÇÃO

Para Dominicé (2010, p. 95) os conhecimentos adquiridos pelos adultos


resultam de uma rede de fontes de informação. Sendo que “o saber de referência está,
sobretudo relacionado com a maneira como os adultos voltam a trabalhar ou
modificam o que os agentes da sua educação quiserem ensinar-lhes”. A formação,
neste sentido, depende do que cada um faz do que os outros quiseram, ou não

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1377


quiseram, fazer dele. Ainda pensando com Dominicé (2010, p. 95) “a formação
corresponde a um processo global de autonomização, no decurso do qual a forma que
damos à nossa vida se assemelha ao que alguns chamam de identidade”.
Também quanto à formação, em seu estudo sobre atos de currículo, Macedo
(2013, p.53) afirma que: "ao avaliar a formação como um ato de currículo é
fundamental a contextualização das circunstâncias com as quais a aprendizagem
acontece", ainda, "a formação se realiza num laboratório a céu aberto. Nesses termos,
as circunstâncias fazem parte do próprio ato de avaliar, porque a aprendizagem reflete
essa realidade.
Para este pesquisador (MACEDO, 2013, p. 53) “quem aprende e compreende é
o sujeito, sempre em relação, mas é o único que ao final pode demonstrar a sua
condição de estar em formação ou formando-se, com todas as ambivalências que
podemos viver nessas experiências. Até porque a formação na sua base semântica
mais elaborada quer dizer modo de ser". Em correlação com este pensamento
Fulanetto (2010, p.170) ressalta que "a formação não é algo que acontece em paralelo
a vida, mais que se articula a ela". Sendo que "ao retornar sua história de vida nos
espaços de formação, e ao pensar sobre ela, os sujeitos se reencontram com
experiências simbólicas que se apresentam como ideias, emoções, acontecimentos
que se destacam do pano de fundo da existência e pedem para serem
compreendidos". Ainda para esta pesquisadora (2010, p. 170), “o adulto, ao entrar em
contato com seu percurso, pode buscar, de certa forma, em sua vida, em suas
experiências tomar consciência de um plano que vem permeando suas ações. Ao
retornar sua história de vida, percebe que elas se articulam, desenhando um plano
nem sempre conhecido”.
A formação, ainda pensando com Fulanetto (2010, p. 170), expande seus
limites. Pois, "ao acolher os conteúdos 'não sabidos' possibilita que a consciência,
também, se expanda na vivência desse processo. Dessa forma estará o adulto mais
equipado". Neste sentido, ao valorizar os espaços biográficos, enquanto espaço
também de formação, de criação de conhecimentos e, de obras de arte, cria-se a
possibilidade de que cada jovem e adulto – sujeito criativo – promova intervenções no
mundo, desenvolva experiências respeitosas de liberdade, e como diria Freire (1996, p.
107) desenvolva “a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo,
é vir a ser”.
A pesquisadora Dantas (2012, p. 152) ressalta que os jovens e adultos são
sujeitos da aprendizagem. Sendo que o trabalho educativo desenvolvido com estes
deve estimular o exercício da criticidade, a promoção da curiosidade, a valorização dos
aspectos emocionais, a afetividade, os sentimentos, a sensibilidade e de suas histórias
de vida. Pois, tudo isto está implicado na formação, ou seja, no ato de formar e
formar-se.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1378


As criações, pois, constituem-se continuamente a partir das relações histórico-
social e possuem caráter contextual. E, por isso mesmo, essas criações também
provêm da relação do sujeito com suas experiências, com sua dinâmica interna e com
a própria dinâmica do viver. Cada ser humano forma-se num contexto de diálogo,
transformação e criação. Desse modo, nesta pesquisa, consideramos cada estudante
da Educação de Jovens e Adultos, sujeito criativo, que cria revelando sua
inteligibilidade.
Evidencia-se neste estudo, portanto, que as criações acontecem tendo nas
relações um manancial, na qual cada sujeito tem a possibilidade de experienciar, criar,
criar-se e ao mesmo tempo ampliar potencialidades. Destacamos, pois, que priorizar o
espaço biográfico destes sujeitos é conscientizar-nos de que a produção de sentidos
(conhecimentos) é recorrente dos processos de vida. Implica, pois, numa valorização
de tudo que o adulto e o jovem já vivenciou, no resgate da biografia destes, na
possibilidade da construção de uma qualidade social e política, na valorização da
cultura e da identidade do sujeito. Aí incide uma Educação de Jovens e Adultos
comprometida com a intenção de não apenas educar, mas sobretudo elevar o sujeito
através de suas criações e da recriação de si.

REFERÊNCIAS
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pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes.
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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1379


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Paulo: Autores associados.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1380


Eu quero ouvir minha voz – Henfil cronista

Priscila Paschoalino
UEMG
priscilapaschoalino@yahoo.com.br

A mistura entre o real e o ficcional, na confecção do universo discursivo de Henfil,


assinala uma identificação entre as figuras do escritor e do Cronista. Nas Cartas da
Mãe, o “como se” é colocado em prática pelo Henfil-indivíduo que, em sua vida
particular, vivenciou os movimentos contra o governo militar e sentiu, ao lado de sua
família, a força do poder autoritário. Suas experiências pessoais e familiares e sua
atuação intelectual são substratos para o discurso do sujeito-Cronista, nas “Cartas da
Mãe”. Nesse sentido, a expressão sujeito-cronista acaba por agrupar o sentido de
cronista como o enunciador construído por Henfil e o de cronista benjaminiano que, se
opondo ao historiador, conta a história de um ponto de vista “miúdo” e fragmentado.
A experiência do sujeito escritor, relatada na ficção, é interpretada pelo leitor real, que
pode comprovar a verossimilhança do fato comentado, “como se” este fosse real. Tal
relação se justificada por meio de pistas biográficas deixadas por Henfil escritor, tais
como sua própria assinatura ao final das cartas e o nome de sua mãe como
destinatário da carta. As análises desenvolvidas neste estudo privilegiam as “Cartas”
cujos atores do ato de comunicação são declaradamente Henfil filho (sujeito
enunciador) e Dona Maria (sujeito destinatário) e que, não coincidentemente, são
maioria e, por isso, dão nome ao livro-objeto desta pesquisa. A mistura entre o real e o
ficcional, na confecção do universo discursivo de Henfil, assinala uma identificação
entre as figuras do escritor e do Cronista e se concretiza como um espaço biográfico
privilegiado para a análise da experiência vivida pelo enunciador Henfil.
Palavras-chave: Real e ficcional; Experiencias de escritor; Memórias.

Introdução

Existem quantos gêneros quantos forem necessários à comunicação humana. Os


secundários absorvem os primários moldando-os ao seu interesse discursivo. Ao serem
retirados da esfera social, os gêneros primários perdem seu elo imediato com a realidade;
entretanto, mantêm seu traço próprio do cotidiano, quanto à forma e ao significado,
mediados, por exemplo, pela arte ou pela mídia.

É o que ocorre no projeto de escritura a obra Cartas da mãe (1981), em que Henfil
apresenta sua incansável luta para alcançar a liberdade protelada durante a ditadura militar. O
autor integra à crônica - gênero secundário, já composto por outros gêneros - a estrutura da
correspondência - gênero primário. As “Cartas” são retiradas de seu espaço de origem - a
realidade e a intimidade familiar - e prestam suas qualidades à crônica - cujo espaço de origem
é o midiático e social.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1381


Sabe-se que os gêneros literários são gêneros secundários, portanto híbridos por
natureza. No entanto, este estudo aponta para um campo híbrido além do indicado pela
natureza, a saber, para o ponto que se encontra no espaço da intencionalidade, ou seja:
considera-se que o gênero adotado, conscientemente, por Henfil em seu projeto de escritura é
o gênero híbrido “carta-crônica”. Isso porque, as “Cartas da Mãe” conservam em si
características dos dois gêneros que lhe deram origem, valendo-se de suas qualidades para
conseguir adesão de seus leitores.

Na obra Cartas da Mãe, a hierarquia entre mãe e filho é respeitada, o que não impede
que a liberdade, fixada pela intimidade familiar, se instale na linguagem. A informalidade
conduz o discurso de um locutor, que conhece bem seu destinatário. Livre, a linguagem revela,
nas nuances do seu uso, as intenções do locutor. A discussão sobre a linguagem utilizada na
tessitura da obra ocupará o próximo item desta análise.

Esses modos de organização do discurso também se prestam à crônica, gênero


secundário, complexo, que abarca outros gêneros primários (BAKHTIN, 2000). Liberdade,
intimidade e informalidade são as principais características do “gênero carta”, que foram
absorvidas pelas “Cartas da Mãe”, crônicas semanais publicadas por Henfil na Revista Isto É.

Por se encontrar na fronteira entre o literário e o jornalístico, a crônica é considerada


um gênero literário híbrido, o que lhe permite assumir variadas formas, uma vez que
diferentes gêneros podem amalgamar-se para formá-la. Trata-se um gênero textual único,
com características singulares que permitem aos cronistas terem estilo próprio. Seu propósito
é circular no espaço público, veiculando o informações atuais sobre temas de interesse do
cronista.

As crônicas veiculam representações, julgamentos e discursos dominantes, oriundos


de práticas sociais. Seu contrato de comunicação deve obedecer às mesmas normas práticas e
éticas do jornalismo informativo, tendo sempre em vista o bem estar e o desenvolvimento da
comunidade. Além disso, seu modo de organização prevê a construção de um texto com
mirada para opinião e o espaço público.

Mesmo ‘livre’, o jornalista/escritor ou cronista segue certas regras ditadas pelo gênero
para a realização do seu trabalho. Sendo assim, pode-se que entre as principais características
da crônica estão: publicidade, informatividade, liberdade. A publicidade a direciona para o
espaço público; a informatividade sustenta seu caráter de comentário midiático; e a liberdade,
que garante a expressão do ponto de vista do enunciador e que pode, ao mesmo tempo,
imprimir subjetividade ao texto e expressar o engajamento do cronista em relação às idéias
circulantes na sociedade.

Até este momento, foram descritas características tanto do “gênero carta”, quanto do
“gênero crônica”. Importa, contudo, para esta pesquisa, compreender as intercessões que
permitem classificar como “cartas-crônicas” o gênero dos textos da obra Cartas da Mãe.
Visando esclarecer os pontos de intercessão que singularizam o “gênero carta-crônica”,
utilizado por Henfil, desenvolveu-se o esquema abaixo:

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1382


Cartas-crônicas de Henfil
Crônica jornalística Carta familiar
Carta familiar + Crônica jornalística

público privado Público-privado


Liberdade Liberdade
Informalidade Informalidade
Informatividade
Informatividade Subjetividade Subjetividade

Presente tanto nas cartas quanto nas crônicas, a liberdade permite o aflorar da
subjetividade e dos pontos de vista do enunciador, que se fazem presentes na escolha dos
fatos a serem comentados, na informação levada ao leitor. A liberdade e a informalidade
abarcam a seleção de eventos comentados e os modos organização do discurso, rompendo as
barreiras entre o espaço público e o espaço privado.

As “Cartas de Mãe”, como já se disse, eram veiculadas na última página da Revista Isto
É, importante espaço midiático de contestação política, no final dos anos 70. As cartas que
compõem o corpus deste estudo abrangem fragmentos de um período que se estendeu de 06
de abril de 1977 até 02 de dezembro de 1980. Trata-se de um momento crítico de articulações
em torno da distensão política promovida pelos Generais Geisel e Figueiredo.

Transgressões discursivas ocorreram em todas as esferas sociais e a mistura, a


heterogenia e a diversidade, estética e temática, ocuparam lugares de destaque nas
linguagens artísticas. Intensos diálogos com a sociedade foram estabelecidos com o propósito
de testemunhar as mutações cotidianas e transformá-las em matéria-prima para a arte. Esta
acompanhou o pêndulo criativo dinamizado pelos “homens da cultura”, que visavam burlar a
censura através do constante movimento das idéias na esfera pública. Segundo Dominique
Wolton (2004), a comunicação livre, que admite diferenças, é a condição de existência da
democracia, concluí-se que, por isso, este teria exigido tanta atenção dos intelectuais desse
período.

Os textos que compõem o livro Cartas da Mãe encontram-se na tênue linha que
separa os gêneros discursivos carta e crônica, por isso, receberam os benefícios dos gêneros
originais, o que lhes imprimiu desenvoltura e blindagem contra a censura. A criação do um
terceiro gênero discursivo – as “cartas-crônicas” - surgiu da necessidade de comunicação e
realizou-se de acordo com as condições da sociedade de seu tempo.

Segundo o crítico russo,

o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade


e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-
se e desenvolve-se na forma do gênero determinado. Esse tipo de gênero
existe, sobretudo, nas esferas muito diversificadas da comunicação verbal

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1383


da vida cotidiana (inclusive em suas áreas familiares e íntimas). (...) A
diversidade desses gêneros deve-se ao fato de eles variarem conforme as
circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal dos parceiros.
(BAKHTIN, 2000, p. 301-302).

As circunstâncias sociais dos anos de chumbo, acabaram impondo aos intelectuais


uma missão transgressora: a de agir na esfera pública, com a finalidade de abrir os espaços
dominados pelas autoridades do poder vigente. As determinações da censura geraram, como
já foi dito em capítulo anterior, a auto-censura. A censura social, feita pelo governo, e a
censura psicológica, interna ao autor, determinam a escolha do objeto para apreciação
reflexiva e influem tanto na estrutura, quanto na argumentação dos discursos. Para fazer
circular suas vozes, os homens de idéias tiveram que se enveredar por diferentes caminhos
discursivos, a fim de estabelecer novas perspectivas de combate em nome da liberdade.

O sentido de diálogo, primeira privação imposta pelos militares, foi aos poucos se
apagando do cotidiano do povo brasileiro. Vigiadas e perseguidas, as vozes sociais foram
abafadas pelo discurso ufanista do Governo. As mídias, em consonância com as regras do
governo, não divulgavam notícias ou críticas sem a aprovação dos censores. Fontes espaças de
contestação social surgiram, como O Pasquim e os Festivais da Canção, porém não deixaram
de passar pelo escrutínio militar. Somente no final da década de 70, com o início da “abertura
segura, lenta e gradual”, a mídia começou a agir como maior liberdade.

A possibilidade de abrir espaços para o diálogo social e para a permuta de idéias que
reconduzissem a sociedade à democracia atraiu Henfil, que arquitetou sua encenação
discursiva inteiramente voltada para a troca dialógica:

Recuperando idéias de Mikhail Bakhtin, tem-se que

as relações dialógicas (...) são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém,


não podem ser separadas do campo do discurso (...) A linguagem vive
apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente
essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da
linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de
emprego (...) está impregnada de relações dialógicas (1981, p.158).

Enquanto gênero discursivo, as cartas-crônicas se caracterizam por um dialogismo


muito maior do que aquele presente nas crônicas. A intenção discursiva de Henfil ao criar as
cartas-crônicas foi ativar o diálogo, intensificando a ilusão de proximidade com seu leitor, já
que toda carta prevê uma atitude responsiva do destinatário. Ao levar o leitor da crônica para
o ambiente privado, onde circulam as cartas familiares, o escritor abriu o espaço para um
diálogo ficcional, onde denúncias contra o governo eram feitas em tons de conversa informal e
íntima.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1384


A mistura dos espaços público e privado amplia a área de manobra discursiva nas
“Cartas da Mãe”. A voz polifônica do cronista instala-se no movediço terreno discursivo da
ficção e da ironia. A visada de atualidade e o compromisso ético do jornalismo remetem o
leitor à realidade social, por meio de suas representações. A visada subjetiva o conduz à
verossimilhança, ao discurso criativo e livre. Unidas num único discurso e amalgamadas pela
ironia, tem-se a criatividade a favor das representações sociais do artista que, num duplo
discurso, revela a realidade social moldada ao seu olhar.

No caso do gênero das “Cartas da Mãe”, alguns procedimentos discursivos próprios


das cartas foram levados para o novo gênero, visando além do efeito de semelhança, o efeito
de diálogo. São eles: o cabeçalho, com local e datação por extenso; o vocativo de abertura,
que presentifica o destinatário textualmente; os cumprimentos iniciais e finais, que tem efeito
de dramaticidade e intimidade; a assinatura do locutor, que o responsabiliza pelo ato de
escritura.

O vigor desse diálogo estabelece a confiança entre os interlocutores das “Cartas da


Mãe”. Durante a encenação discursiva, a ilusão da presença de um destinatário, tão íntimo
quanto a própria Mãe, abre espaço para que o enunciador faça as mais diferentes
confidências, veiculando valores sociais e culturais em seu discurso.

A confiança constitui-se como condição sine-qua-non para o contrato de confidência,


que segundo Charaudeau, “contribue para dar a ilusão de que estamos diante de uma
narrativa oral, que nos seria apresentada por uma pessoa em carne e osso, ou seja, por um
EUc, o que provoca um efeito de real” (2008, p. 55). Para ele, este contrato se funda na
interpelação do leitor, na atualização da história através de verbos no passado e presente
simples e nos enunciados com valor de aforismos.

O gênero discursivo “cartas-crônicas” constitui-se, portanto, como uma estratégia do


escritor Henfil para intensificar o dialogismo no discurso do Henfil Cronista. O gênero
determinado pelo contrato de comunicação, motiva, por sua vez, a linguagem, que imbuída de
dialogicidade, vive em função o outro e de seu contexto sócio-comunicacional. “Quem fala e a
quem fala. Eis o que determina o gênero, o tom e o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2000, p.
394).

A questão da identidade dos parceiros da encenação discursiva foi discutida por


Charaudeau (2008), que apontou, no circuito externo do contrato de comunicação, a
existência de um “autor-indivíduo”, que pode emergir na encenação discursiva como
personagem e “testemunha de uma história vivida que lhe é pessoal, ancorada num contexto
sócio-histórico” (2008, p. 185). Esse autor-indivíduo transmite sua experiência vivida e convoca
um leitor real, que acredita no fato narrado devido ao seu caráter de experiência. “É claro que
os fatos narrados não correspondem necessariamente ao que aconteceu, mas são
apresentados como se” (idem, ibidem).

Em seu conjunto, a construção do projeto de fala do sujeito comunicador das “Cartas


da Mãe” pertence ao universo literário, espaço em que a ficcionalidade funda a realidade
entre parênteses, “como se fosse” real (ISER, 2002, p.973). “A realidade representada no texto
não deve ser tomada como tal, ela é a referência de algo que ela não é, mesmo se este algo se

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1385


torna representável por ela” (idem, ibidem). Como os elementos da ficcionalidade estão
literalmente colados no real, como as características da vida do sujeito comunicador são muito
equivalentes àquelas representadas nas “Cartas”, o pacto ficcional se instalou na obra um
efeito de verossimilhança muito forte, fazendo que o uso pragmático da ficção cumprisse sua
função emotiva e persuasiva.

As “Cartas da Mãe” trazem consigo o estatuto da veracidade, marcado pela presença


do “autor-indivíduo”. A identificação deste com o sujeito-Cronista se concretiza no circuito
interno do contrato de comunicação, onde interagem os sujeitos protagonistas durante a
encenação discursiva. Moldado segundo as intenções do “autor-indivíduo”, o EUe concretiza-
se nas “Cartas” como “narrador-contador”. Ele ambienta suas histórias num universo
inventado (cf: CHARAUDEAU, 2008). Para isso, ele recolhe fatos da realidade e recria a história
num mundo ficcional.

A mistura entre o real e o ficcional, na confecção do universo discursivo de Henfil,


assinala uma identificação entre as figuras do escritor e do Cronista/filho. Nas Cartas da Mãe,
o “como se” é colocado em prática pelo Henfil-indivíduo que, em sua vida particular, vivenciou
os movimentos contra o governo militar e sentiu, ao lado de sua família, a força do poder
autoritário. Suas experiências pessoais e familiares e sua atuação intelectual são substratos
para o discurso do sujeito-Cronista, nas “Cartas da Mãe”. Nesse sentido, a expressão sujeito-
cronista acaba por agrupar o sentido de cronista como o enunciador construído por Henfil e o
de cronista benjaminiano que, se opondo ao historiador, conta a história de um ponto de vista
“miúdo” e fragmentado.

A experiência do sujeito escritor, relatada na ficção, é interpretada pelo leitor real, que
pode comprovar a verossimilhança do fato comentado, “como se” este fosse real. Tal relação
se justificada por meio de pistas biográficas deixadas por Henfil escritor, tais como sua própria
assinatura ao final das cartas e o nome de sua mãe como destinatário da carta.

O “como se” é responsável, igualmente, pela variedade de sujeitos enunciadores


presentes no texto. Henfil-Cronista escreveu “como se” fosse Henfil filho, Henfil irmão, Henfil
Mãe, Henfil sindicalista, Henfil brasileiro. Henfil-Cronista escreveu para um Leitor-iniciado e o
camuflou de Mãe, Betinho, Geisel, Figueiredo, Seu João. A diversidade os interlocutores,
viabilizada pelo pacto de ficcionalidade, obedece à intencionalidade do Henfil-escritor. A
despeito dos diferentes nomes que ocupam os espaços de interlocução, o comportamento
enunciativo do Henfil-cronista mantém-se o mesmo em todas as cartas.

É pertinente esclarecer que a mudança de interlocutores não implica em mudanças de


comportamento discursivo. Em verdade, trata-se um recurso estilístico que visa enfatizar os
protagonistas do fato comentado, no espaço enunciativo da “carta-crônica”. Por isso, as
análises desenvolvidas neste estudo privilegiam as “Cartas” cujos atores do ato de
comunicação são declaradamente Henfil filho (sujeito enunciador) e Dona Maria (sujeito
destinatário) e que, não coincidentemente, são maioria e, por isso, dão nome ao livro-objeto
desta pesquisa.

A mistura entre o real e o ficcional, na confecção do universo discursivo de Henfil,


assinala uma identificação entre as figuras do escritor e do Cronista/filho. Tal identidade é

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1386


justificada através de pistas biográficas deixadas por Henfil escritor, tais como sua própria
assinatura ao final das cartas e o nome de sua mãe como destinatário da carta.

O trecho abaixo, de 9 de Julho de 1980, comprova a possibilidade de o leitor tomar o


fato narrado como “se fosse” real:

Mãe,

Sumi porque estou temendo pela minha vida. Entenda a pressa do bilhete e
a falta de remetente.

Procure alguma autoridade competente. Vê se o Papa está por aí. Mas,


preste atenção, nunca o padre Marcinkus.

Diga que eu fui testemunha do seqüestro do professor Dalmo Dallari e que


posso fazer o retrato falado, com uma fidelidade de aproximadamente
100% do eventual agressor (...). (Henfil, 1981, p. 216).

No enunciado da “Carta”, as referências à realidade deixam transparecer avaliações do


Cronista que, em sua visada crítica, seleciona elementos dos fatos reais e os combina no
espaço ficcional. A linguagem telegráfica remete à impossibilidade de comunicação, às escutas
e aos olheiros que circulavam à paisana durante os anos militares. A expressão “falta de
remetente” indica a clandestinidade do ato comentado e o medo de ser pego em delito, que
parece ser grave, pois o Cronista pede ajuda de alguma “autoridade competente”, comparada
ao Papa, autoridade máxima no mundo católico. Em tom de advertência irônica, emerge a
contraposição de imagens, quando o Cronista convoca, para a mesma cena discursiva, o Padre
Paul Marcinkus - o padre americano conhecido como “banqueiro do Papa Paulo VI” – e o
Dalmo Dallari – jurista que presidiu a Comissão Justiça e Paz nos anos da ditadura militar. A
crônica comenta o seqüestro de Dallari, em 1980, por um grupo de paramilitares, caso que
ganhou repercussão internacional.

Na continuação da crônica, Henfil-cronista acentua a ironia e descreve o agressor: “É


um senhor de 16 anos, óculos de aumento, careca, ouvidex acústico e isolante. Dedos de
pianista. Sapatos numerados. Nacionalidade itinerante. Cor? Furta-cor. (...)” (HENFIL, 1981, p.
216). A descrição colabora na criação de outra oposição de imagem: o jovem-idoso governo
militar, personificado por um tradicionalista caquético, nascido em 1964.

Além das marcas sociais, as marcas de construção sujeito-enunciador direcionam a


interpretação do discurso das “Cartas” para a presença do locutor. Esta é uma condição
inerente ao próprio gênero “carta-crônica”, que aponta para a subjetividade e para a
manifestação e troca de intimidades. Henfil-cronista revela-se explicitamente, de vários
modos: primeiramente, por sua própria inclusão no enunciado: “Sumi porque estou temendo
pela minha vida.” Os verbos em primeira pessoa do presente do indicativo apontam para a

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1387


realidade discursiva, colaborando para a fusão entre os universos real e ficcional. O locutor
mostra-se distante (fisicamente) do seu interlocutor, pois solicita: “o Papa está por aí”.
Mantendo a coerência discursiva, o pronome demonstrativo enfatiza o distanciamento entre
os sujeitos da cena, indicando, neste contexto, que o sujeito-enunciador está escondido. Isso
porque ele sugere saber informações importantes, que o tornam alvo dos censores militares.

A superfície discursiva desta “Carta” apresenta uma relação de respeito filial, mediado
por uma linguagem livre e espontânea. Henfil Cronista coloca-se como o filho carinhoso de
uma mãe zelosa. Entretanto, trata-se de uma aparente hierarquia, pois o Cronista se coloca em
nível de ‘superioridade disfarçada’ em relação ao seu interlocutor, comportamento discursivo
assinalado no enunciado.

Esta interessante face do locutor, que se repete ao longo das outras “Cartas”
apresenta-se trecho acima, por meio de uma seqüência enfática de verbos imperativos. Estes
verbos expressam injunções, estabelecendo e impondo uma ação ao interlocutor: “Entenda a
pressa (...) Procure alguma autoridade (...) Vê se o Papa está por aí. Mas, preste atenção (...)
Diga que eu fui testemunha.” (HENFIL, 1981, p. 216.). Este procedimento é característico da
modalidade alocutiva da linguagem (CF: CHARAUDEAU, 2008), que prevê uma relação de
influência do locutor em relação do seu interlocutor. A alocução expressa, portanto, a posição
que o enunciador se coloca frente ao seu destinatário.

Apesar de sugerir sua clandestinidade, o enunciador não se declina de sua posição de


superioridade, destacada pela denúncia que pretende fazer contra o seqüestrador de Dallari. O
Cronista sabe além do retrato falado feito acima, sabe a “ficha” do “agressor”:

Filiação: PDS CCC e Dona Arena CCC (já falecida).

Profissão: indireta.

Título de eleitor: apresentou 10 milhões de títulos só da capital.

Altura: mede uns 100 quilômetros de processos.

Sinais particulares: furinho na nádega, provavelmente provocado por uma


traça.

Hobby: coleciona vaias. (HENFIL, 1981, p. 216).

O Governo Militar é delatado pelo Cronista, que não poupa sarcasmo na descrição
carnavalesca da “ficha”. Ela expõe os militares, sem poupar-lhes da encenação carnavalesca,
coroando - os pelo sinal particular – um furo nas nádegas - e explode com as vaias. As imagens
hiperbólicas – “cem milhões de títulos” e “100 quilômetros de processos” enfatizam o perigo
representado por um agressor, a quem “uma traça” diz o quanto é velho, aos 16 anos:
“furinho na nádega”. O baixo-corporal e sua destruição irônica – “furinho na nádega” -
sinalizam a ridicularização do governo, e apontam para a mudança da ordem por eles
estabelecida. (cf: BAKHTIN, 1981).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1388


Mantendo em si o foco do discurso, o locutor impõe ao seu interlocutor as funções
“fazer-saber” e “fazer-prazer”, estabelecendo sobre ele uma “relação de influência” (cf:
CHARAUDEAU, 2008). A função de “fazer-prazer” é inerente, tanto ao discurso literário,
quanto ao discurso da mídia de entretenimento. Já a função de “fazer-saber” tem incidência
diferente conforme o gênero que organiza o discurso.

Na obra Cartas da Mãe, além da função “fazer-prazer”, que perpassa todo discurso, a
função “fazer-saber” se destaca. Na carta acima, o enunciador coloca-se na posição daquele
que detém um saber e declara: “Diga que eu fui testemunha do seqüestro do professor Dalmo
Dallari” (HENFIL, 1981, p. 216).

Este comportamento discursivo de superioridade e concentração do saber se mantém


ao longo da obra Cartas da Mãe, o que se confirma nos exemplos a seguir:

Deixei passar uma semana de propósito para comentar com a senhora a


coisa (HENFIL, 1981, p. 13);

A senhora não imagina o que eu não vi! (idem, p. 15);

Hoje resolvi tomar uma decisão. O momento é agora. Espero que a senhora
compreenda minhas razões e me apóie, mãe. (idem, p. 26);

Nem te conto! (p.34);

Deixa eu contar pra senhora as minhas pesquisas. (idem, p. 68);

Se vi? Então não vi? (idem, p. 74).

O enunciado das “Cartas da Mãe” expressa a concentração de força do sujeito


enunciador, que se apresenta como “aquele que sabe”. Henfil-cronista não se esquiva se
posicionar acima de seu destinatário, usando sua visada de “fazer saber”. Mesmo no último
exemplo, quando o locutor se coloca de modo dialogal, ele se coloca em grau superior, pois
seu questionamento aponta para a verificação de saber do interlocutor e, ao mesmo tempo,
aponta para o saber que ele já detém.

Esta faceta da identidade do Cronista se completa com imagens que ele constrói de si
para o destinatário. A cada posicionamento ou justificativa, ele deixa rastros de sua
performance discursiva: seja atuando em solilóquio, nos momentos em que assume sozinho
suas posições e se mostra ao leitor como responsável pelo que diz; seja representando a voz
de num grupo, do qual se comporta como porta-voz; ou ainda, o enunciador usar estratégias
para apagar seu sujeito no enunciado.

As formas de auto-apresentação do locutor no texto serão aqui entendidas como


máscaras discursivas, usadas pelo enunciador para expor ou camuflar sua responsabilidade
acerca dos comentários que mesmo tece, durante a encenação discursiva. Estas formas de

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1389


“mascaramento” do sujeito enunciador podem ser identificadas em diversas “Cartas”. Em 22
de novembro de 1978, Henfil-cronista comenta:

Mãe,

Tem dia que a gente faz coisas que depois duvida. Quer dizer, faz coisas
que não sabia que ia fazer. Assim: vai dar beijo em alguém e na hora dá
uma mordida. Nunca aconteceu com a senhora?

(...)

O que quer dizer isto? Dizem os profissionais que é só nosso consciente se


distrair, que o subconsciente ataca e mostra nossa real intenção.

Pois bem, tô muito preocupado com o que li na Folha de S. Paulo de


quinta. Diz lá que o presidente Geisel preencheu seu voto, se distraiu e, em
vez de levá-lo à urna, entrou com ele no banheiro. Valha-me Deus!

A benção do seu alarmado filho (HENFIL, 1981, p. 109-110) (grifos nossos).

O caso é narrado e comentado pelo enunciador, que não assume diretamente o que
fala. Ele se esconde atrás da incerteza e da impulsividade dos atos, camuflando sua opinião,
que é pronunciada na assertiva inicial: “Tem dia que a gente faz coisas que depois duvida.” O
locutor busca amparo no discurso popular para garantir uma boa encenação discursiva. Ao
misturar sua voz à voz popular, o Cronista se esquiva de quaisquer problemas gerados pelo
comentário crítico que será tecido. Ele também busca cumplicidade de seu interlocutor e
espera uma resposta afirmativa: “Nunca aconteceu com a senhora?”.

O auto-mascaramento continua quando o locutor recorre às vozes de autoridades


científicas: “Dizem os profissionais que é só nosso consciente se distrair, que o subconsciente
ataca e mostra nossa real intenção”. O verbo em terceira pessoa isenta o locutor de
responsabilidades sobre a informação dada e a presença de autoridades profissionais torna-se
índice sua destreza argumentativa.

O locutor, momentaneamente, assume-se discursivamente e finaliza, maestramente,


usando o argumento irrefutável da verdade contida naquilo que está escrito, assumindo: “li na
Folha de S. Paulo”. Esse argumento dialoga com cultura popular brasileira, que ratifica o valor
de veracidade da palavra escrita. Assim, a palavra de outrem lida, torna-se incontestável e
legitima a fala de seu enunciador.

A despeito desta manifestação, Henfil-Cronista lança mão de um recurso discurso para


afastar-se do seu comentário e isentar-se de responsabilidade: “diz lá que”. Afastado da
danosa notícia veiculada no jornal (lá), o sujeito enunciador faz uma citação da Folha,
localizando-a espaço-temporamente. A citação marca o desfecho súbito da crônica. Depois de
preparar seu interlocutor durante toda a crônica e de esconder-se atrás de enunciados
socialmente legitimados, com ares de quem justifica o “ato falho” do presidente, Henfil-

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1390


cronista assume sua voz no final, marcando ironicamente seu espanto: “Valha-me Deus!”. Esta
crônica apresenta um enunciador que se esconde como elefante atrás do poste.

Em outros momentos, o sujeito-enunciador apresenta-se diluído entre os brasileiros e


se posiciona ao lado de seu interlocutor. Isso ocorre em momentos de indignação extrema, em
que o locutor parece expandir-se, assumindo proporções equivalentes ao motivo de sua
revolta. Ao lado povo subtraído em seus direitos, Henfil-cronista reage contra a atitude
incoerente e passiva do governo militar frente à invasão internacional:

Mãe,

Houve época que chamavam a gente de quintal dos Estados Unidos e eu


nunca entendia, mãe. Mas, aos poucos, fui compreendendo.

Primeiro, quando soube que as multinacionais decidiram instalar no Brasil


suas fábricas aproveitando nossa farta mão de obra. (...)

Ano passado ficamos sabendo que os laboratórios das multinacionais usam


homens, mulheres e crianças brasileiros como voluntários para testar suas
drogas. Muitos de nós morreram ou ficaram deformados (...)

Mas agora parece que chegamos ao ponto culminante da nossa carreira. A


Alemanha vai nos dar a preferência e fazer aqui seus testes atômicos.
Clama! Calma! (...) Mas Deus é grande. DEUS É GRANDE! Muito antes do
que esperávamos, vamos poder cumprir nossa suprema vocação nacional:
churrasquinhos atômicos!

Cento e vinte milhões em carvão, pra frente Brasil! (...) (HENFIL, 1981, p.
136-137) (grifos nossos)

Ao comentar as atrocidades pelas quais o povo brasileiro passou ao longo da história,


o Cronista lança mão da narração e recua no tempo para, em perspectiva, comprovar o que
afirmou no primeiro parágrafo: “nunca entendia mãe. Mas, aos poucos fui entendendo.” O
verbo em primeira pessoa apresenta o único momento de descolamento do sujeito do
conjunto ao qual ele se inseriu, usar termo “a gente” para referir-se a si próprio e aos outros
brasileiros. Além disso, o verbo em primeira pessoa indica que a orientação discursiva se dará
pelo ponto de vista, único, do enunciador-narrador.

Todos os verbos posteriores, que indicam o processo de compreensão citado pelo


Cronista, estão na primeira pessoa do plural, indicando a inclusão do sujeito enunciador num
grupo maior (cf: BENVENISTE, 1989), no caso, os brasileiros: ficamos, chegamos, esperávamos,
vamos. Os pronomes possessivos cumprem a mesma função. Essa inserção do enunciador num
conjunto maior se mantém até o final, quando o verso do Hino da Copa de 70 é subvertido,
expondo outra vez o ponto de vista irônico do locutor: “Cento e vinte milhões em carvão, pra
frente Brasil!”.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1391


O discurso é atualizado pela expressão temporal “mas agora”, no início do penúltimo
parágrafo, que situa o locutor no tempo e no espaço, fazendo coincidir acontecimento e
discurso: “a Alemanha vai nos dar preferência e fazer aqui seus testes atômicos”. O adjunto
adverbial de lugar “aqui” situa o Brasil em oposição ao lá, a “Alemanha”, e intensifica a
contradição comentada: dar preferência para os estrangeiros prejudicarem e usurparem a
dignidade dos brasileiros. A ironia aflora na bivocalidade assumida do termo “preferência”,
que desmonta a informação veiculada pelo jornal.

O enunciador, prevendo a reação de seu interlocutor ao ouvir tal fato disfarçado pela
naturalidade científica, aconselha: “Calma! Calma!”. Porém, ele mesmo, indignado e temeroso
frente ao fato narrado, suplica a piedade divina. A urgência da ajuda é destacada pelas letras
maiúsculas, que parecem gritar, na ansiedade e urgência de serem ouvidas. “Mas Deus é
grande. DEUS É GRANDE!”

Mas a presença preocupada do locutor se desfaz nas evidências da perspectiva


histórica, traçada por ele mesmo, cujo ponto culminante se revela no desfecho: “Muito antes
do que esperávamos, vamos poder cumprir nossa suprema vocação nacional: churrasquinhos
atômicos! Cento e vinte milhões em carvão, pra frente Brasil!” Henfil-cronista se dissolve entre
os brasileiros e se mantém ao lado deles até o final do enunciado, quando ele sai do meio do
povo e assina a “Carta”.

Outra maneira de apresentação do sujeito-enunciador o coloca, inicialmente, ao lado


do sujeito destinatário. Aos poucos, eles se distanciam e o Cronista assume sua própria
identidade.

Mãe,
(...)
Faz tempo que eles vêm insinuando que a gente desperdiça: não passe dos
80, poupe, sabendo não usar não vai faltar. Não foram poucas vezes que
nos deram carão e ameaçaram que, se não aprendêssemos a economizar,
eles iam ter que tomar providências enérgicas.
(...)
Quarta feira o primo, em pessoa, ocupou a televisão para anunciar medidas
mais severas, comunicar que vamos passar a viver sob uma economia de
guerra!
(...)
Nem vem! Nós, o povo, não somos culpados de porcaria nenhuma!
(...)
Aqui, ó!
Não faço racionamento nenhum! Acostumei. Se vierem tomar meus
chicletes, vão levar bico na canela e tapão no pé do ouvido! (HENFIL, 1989,
p. 150). (grifos nossos)

Nesta “carta-crônica”, os verbos em destaque comprovam o processo de


descolamento entre o enunciador e o povo. Mais uma vez a argumentação acerca do fato é

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1392


apresentada em perspectiva histórica, estratégia utilizada pelo locutor quando deseja
evidenciar a reincidência da acusação feita pelo contra o povo, pelo retrocesso econômico do
país. As formas “a gente” e “nós” apontam para o conjunto formado entre ele e os brasileiros,
na cena enunciativa.

O fato comentado é o pronunciamento do presidente Figueiredo, feito em rede


nacional de televisão, anunciando medidas de contenção da crise econômica. O episódio
causou indignação no enunciador que, num ímpeto de fúria, se separa do destinatário e
afirma-se no enunciado: “Aqui, ó! Não faço racionamento nenhum”. Esse enunciado,
intensamente dialógico, aponta para a expressão linguageira popular e insinua um
comportamento ‘renitente’ e individualista do Henfil-Cronista. Ele se empirraça e assume um
comportamento infantil, evidenciado na seqüência: “Se vierem tomar meus chicletes, vão
levar bico na canela e tapão no pé do ouvido!” O comportamento polêmico, dissonante torna
o enunciado mais polifônico (cf: BAKHTIN, 1981).

Além das formas de apresentação da identidade, as auto-referências podem desnudar


traços da personalidade sujeito-enunciador. A fim de conquistar adesão do seu interlocutor,
ele modela seu discurso e permite que alguns índices de sua personalidade sejam revelados
pelo enunciado.

A abertura da obra Cartas da Mãe é feita por uma carta verdadeira, escrita pelo
Cardeal Dom Evaris Arns, a convite de Henfil, para Dona Maria. O Cardeal foi uma importante
personalidade católica que lutava pela anistia. Sua voz, representativa da presença da Igreja
Católica, dialoga com Dona Maria ao apresentar o livro: “Parabéns pelo seu filho e por este
novo netinho que ele lhe deu, o livro, que hoje começa a encontrar-se com o Brasil” (HENFIL,
1981, p. 10).

Abonada pelo Cardeal Arns, as mésalliances carnavalescas modelam religiosidade que


permeia toda obra Cartas da Mãe: “Peço que a senhora dê licença para mais esta peraltice”
(idem, ibidem). O enunciador mostra outra face de sua identidade, agora, ligada à ideologia
das tradicionais Igrejas Católicas de Minas. A sua educação católica se destaca, por meio de
reminiscências narradas ou por descrições comentadas. Apesar da simulação e das inversões, a
religiosidade é reiterada na saudação de despedia do filho, que toma emprestado a voz
católica pedindo “a benção” de sua mãe.

A despedida, além de retomar parte do contrato de comunicação das “cartas-


crônicas”, aponta para a religiosidade familiar criada no espaço ficcional. A “benção”,
cumprimento típico de famílias católicas, está presente em todas as “Cartas”, indicando que
apesar dos rebaixamentos submetidos, a ideologia Católica não perde seu status, na obra. As
imagens religiosas e passagens da bíblia são apropriadas pelo Cronista e as dispõe como lhe
convém, como nos seguintes trechos: “Dona Maria, Lembra quando chegava o carnaval e a
senhora mandava a gente para a igreja de S. Efigênia ouvir o pároco dizer para tapar os olhos,
os ouvidos e o nariz para Satã não infiltrar na gente?” (HENFIL, 1981, p. 62); “Esqueça as
avencas, samambaias e o casal de periquitos. Pode levar a bíblia e a palha benta, que são leves
e de utilidade nos dias de incerteza ou de temos” (idem, p. 205).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1393


Aos poucos o cronista mostra outras características de sua personalidade, construindo
diversas imagens de si para o leitor iniciado. Ele apresenta-se irritado: “Tô muito irritado com
minha incapacidade em reconhecer a imensa sabedoria do primo” (p.220); “Tô irritado de
ficarem me caribando pelas costas” (p.168); diplomático - “A senhora sabe que eu sempre fui
muito jeitoso para falar coisas nas piores situações” (p. 42); bem educado - “Expliquei tudo
como mandou (a mãe)” (p.222); aflito – “Tô numa aflição. Mil coisas superimportantes para
tratar” (209); ansioso – “Tô que não agüento de ansiedade” (p. 190); impaciente: “Por Deus!
Não podemos deixar nossos exilados na sala de espera do barbeiro!” (p.164)

Além de todas das facetas apresentadas, há ainda momentos em que o cronista simula
sua ausência no enunciado. Isso acontece quando ele se apropria de discursos alheios e os
subverte parodísticamente. Leis e decretos são apresentados por um enunciador que se
esconde na terceira pessoa para proclamar a inversão da ordem militar. Esse comportamento
do enunciador pode ser identificado em diversas “Cartas” onde a paródia se instala. O sujeito
que fala no enunciado das “Cartas” constrói sua identidade e sua personalidade à medida que
apresenta seus pontos de vista e desenvolve comentários sobre os fatos do cotidiano.

A visão crítica de Henfil emerge na obra Cartas da Mãe, espaço em que cumpre seu
ideal intelectual de orientar o povo em direção à liberdade e à justiça. A fraternidade,
instituída pela familiaridade, apresenta-se como fio condutor por onde os valores morais e
éticos são colocados em evidência. Com o fito de subverter o discurso ditatorial, o Cronista
atuou pontualmente na crítica ao governo e na campanha pela redemocratização,
denunciando as injustiças políticas e fazendo-as reverberar no espaço público. O discurso,
dissimulado e pretensamente familiar, veiculou as vozes da insatisfação social e efetivou a
ação do escritor, que, usando da palavra, incomodou insistentemente os agentes da ditadura e
acendeu o interesse crítico em seus leitores.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 1981b.
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Campinas: Pontes, 1989. Vol. I e II.
CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2007.
HENFIL [Henrique de Souza Filho]. Cartas da mãe. Rio de Janeiro: Codecri, 1981a.
ISER, Wolfgang. O ato de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. V.2.
WOLTON, Dominique. Pensar a comunicação. Tradução de Zélia Leal Adghirni. Brasília:
Universidade de Brasília, 2004.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1394


As canções de alto-falante: fontes de memórias biográficas

Silvio Roberto Silva Carvalho


UNEB
silvio14@terra.com.br

Neste trabalho, intitulado As canções de alto-falante: fontes de memórias biográficas, discute-se a


potência da música popular brasileira em ler e em produzir memórias biográficas, considerando-se três
pontos: a ideia de que a canção cria o lugar onde o “ego difuso” é embalado e que, desse lugar, absorve
fragmentos do momento histórico, gestos, imaginários, pulsões latentes e contradições; a hegemonia
que a canção popular exerce no cenário artístico brasileiro; e o fato de as canções de alto-falante terem
sido imperativas na formação musical e nas primeiras percepções de mundo do autor. A partir de
imagens construídas por clássicos do cancioneiro popular, bem como, de estudos realizados por
diversos autores, o alto-falante é pensado como mediador da escuta e símbolo da cultura de massa que
rompe a dicotomia do bom e do ruim, do erudito e do popular, da música comercial e da música letrada.
Já as canções de alto-falante são compreendidas como aquelas que pousam em nossos ouvidos, sem
que tenhamos controle da sua recepção, independente da sua estrutura rítmica, melódica, harmônica
ou poética. Quanto à potência das canções, considera-se o fato de que essas estão aptas a desnudar
demandas afetivas, uma vez que as suas estruturas são comparadas a armadilhas que prendem ou
engatam o sujeito ouvinte.
Palavras-chave: Canções de alto-falante. Memórias biográficas.

Introdução

Na primeira semana do mês de abril de 2014, um festival, realizado na cidade


de Jerusalém, fez católicos, judeus e árabes dançarem juntos, no lugar sagrado para as
três religiões, ao som de muitas misturas musicais. Naqueles dias, a música se tornou o
meio para restabelecer comunicações rompidas por diversos motivos. Uma matéria
exibida pelo Jornal Hoje, da Rede Globo de Televisão, destacava dois momentos
inimagináveis, diante das circunstâncias políticas em que vive a região. No portão de
Jaffa, uma das entradas da cidade velha, uma banda misturava música iraniana com
jazz americano. Mais adiante, um grupo formado na maioria por israelenses, mas muitos
com origens árabes, tocava música árabe. Para finalizar a matéria, o repórter conclui: “É
um encontro desses dois mundos de um jeito que muita gente gostaria de ver”.328

328
Matéria do Jornal Hoje, intitulada “Festival de música em Jerusalém mistura música iraniana com jazz”.
Encontrado no site: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/04/festival-de-musica-em-jerusalem-
mistura-musica-iraniana-com-jazz.html. Acessado em 05/04/2014.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1395


A referida matéria jornalística me remeteu ao que Jacques Rancière chama de
“partilha do sensível”. Ou seja, a música evidenciou “a existência de um comum e dos
recortes que nele definem lugares e partes respectivas” (RANCIÈRE, 2009, p.15),
possibilitando o partilhamento de espaços, tempos e atividades, a despeito das difíceis
circunstâncias políticas em que vive a região. Assim, movidos por uma performance329
musical que fixa “um comum partilhado e partes exclusivas” (idem), reconciliam-se pela
“força estranha” da arte e compartilham o êxtase de dançarem juntos. O sentimento de
desejo coletivo, identificado pelo repórter ao ver três religiões com posições políticas tão
distintas reunirem-se em torno da arte musical, parecer ser o de que as práticas artísticas,
modos de fazer, possam intervir nas relações com as “maneiras de ser”.
No cinema, os filmes As Canções330 e A Música Nunca Parou331 também
abordam a questão do partilhamento, através do poder da música. O primeiro, trata-
se de um documentário composto por depoimentos de pessoas comuns que associam
suas experiências de vidas a canções com que se identificam e que as fazem cultivar a
lembrança de fatos. Ao fazerem essa associação, os personagens evidenciam, nelas
[nas canções], a presença do comum, ao interagirem com fragmentos biográficos
performatizados nas letras. Assim, essas pequenas peças musicais parecem conservar
a sensação e a intensidade das imagens criadas pelas narrativas presentes no citado
longa. Ampliando, As Canções proporciona um sem número de sentimentos, tanto nos
seus entrevistados como em quem está assistindo, uma vez que as experiências dos
dezoito personagens levam o espectador a performatizar, também, a sua própria
narrativa biográfica. Em ambos os casos, a canção serve como ponte para o passado,
só que esse é performatizado no presente.
O segundo filme citado, por sua vez, retrata o drama de uma família que
reencontra o filho em uma clínica neurológica, impedido de criar novas memórias em
razão de um tumor no cérebro. Separados por questões geracionais, a reconciliação
entre pai e filho vai dar-se através das canções dos Beatles, Bob Dylan e,
principalmente, Grateful Dead – a banda preferida de Gabriel, personagem inspirado
em Greg F, paciente tratado pelo neurologista britânico Oliver Sacks. Ao conseguir
demonstrar que cicatrizes antigas podem ser curadas, sem cair no academicismo – no
caso de Henry e Gabriel isso se dá no compartilhamento de canções –, o filme de Jim
Kohlberg é mais um exemplo do poder da música em restabelecer comunicações
rompidas.

329
Amparo-me na noção de performance, apresentada por `Mike Pearson, quando diz ser essa “um
modo de comunicação e de ação distinto da ação ‘normal’ ou cotidiana’, caracterizando-se por certos
tipos de comportamento e diversos registros de engenhosidade”. (PEARSON, 1999, p.157).
330
O longa-metragem As Canções tem a direção de Eduardo Coutinho e foi lançado em 2011.
331
Longa-metragem baseado no artigo “The Last Hippie”, escrito por Oliver Sacks. Dirigido por Jim
Kohlberg, o filme tem roteiro de Gwyn Lurie e Gary Marks e conta a história do personagem Gabriel
Sawyer, inspirado em paciente tratado pelo Dr. Oliver Sacks. O filme foi lançado no Brasil em março de
2014.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1396


Considerando os fatos acima, quero ressaltar que me limitarei a discutir, apenas, a
canção brasileira como fonte de memórias biográficas. Faço esse recorte, basicamente,
considerando três motivos: por entender que a forma musical em questão exerce, no
cenário artístico brasileiro, certa hegemonia; por compartilhar da ideia de que a nossa
canção cria o lugar onde o “ego difuso” é embalado, performatizando, assim,
memórias biográficas; e pelo fato das canções terem sido imperativas na minha
formação e me ajudado a compreender e a sentir o mundo, pois, nas palavras de
Gilberto Gi, Tudo que eu sei aprendi / Olhando o mundo dali / Do patamar da
canção.332
Antes de ampliar a análise sobre os três motivos que me levaram a pensar a
canção brasileira como fonte de memórias biográficas, ressalto que esta comunicação
deriva da pesquisa que ora desenvolvo no doutorado em Artes Cênica da Universidade
Federal da Bahia, ainda em fase de execução.

A hegemonia da canção no cenário musical brasileiro

Não é difícil observar o quanto a canção está presente na vida dos brasileiros. O
próprio filme de Eduardo Coutinho, citado acima, pode ser uma demonstração
significativa da presença dessa forma musical em diversas situações do nosso
cotidiano. Temos canções para todos os gostos e fins. Ademais, os cantos de trabalhos,
bem como os religiosos, os dançantes, os românticos e mesmo aqueles destinados à
pura diversão, trazem a marca da nossa gênese: são permeados por misturas rítmicas,
melodias, harmônicas, poéticas e filosóficas, evidenciando uma vocação em acolher e
agregar elementos diversos de outras culturas e de outras artes.
A forte presença da canção na vida brasileira deve-se, em muito, à forte
influência da indústria cultura. Naves (2010) destaca que, pelo menos em
determinados momentos do século XX, a canção adquiriu certa posição hegemônica
no cenário musical brasileiro, “estatuto que lhe foi conferido pelo público e outras
vezes pela crítica” (NAVES, 2010, p.7). Convém lembrar que no Brasil, até os anos vinte
do século passado, música só era reproduzida e ouvida ao vivo. A partir de então a
escuta musical passa a ser mediada por alto-falantes, entendido aqui como meio que
transforma um sinal elétrico em pressão sonora.333 Entre os anos 30 e 60, século
passado, o rádio se torna grande responsável pela divulgação de ídolos da canção
brasileira. Nos locais onde as emissoras radiofônicas não alcançavam, os sistemas de
alto-falantes334 assumem o seu papel e, também, vão contribuir para a mediação da

332
Amo tanto viver, canção de Gilberto Gil, gravada por Maria Bethânia no LP Talismã, 1980.
333
Essa ideia de “escuta mediada por alto-falantes” é retirada da discussão feita por Garcia (2004, p.46),
sobre as grandes transformações, tanto tecnológicas como perceptivas, ocorridas a partir da invenção e
do desenvolvimento de novos meios e instrumentos de reprodução, transmissão e produção de sons.
334
Quando falo de sistemas de alto-falantes, refiro-me aos serviços de comunicação com campo de
recepção limitado, também conhecidos como “rádios comunitárias”, “rádios amplificadoras”, “rádios de
poste” e “rádios populares”. (SOLON, 2006, p.18). Segundo Uribe (2004, p.114-115), os sistemas de alto-

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1397


escuta, bem como para a consolidação dos produtos da chamada indústria cultural. Só
na segunda metade do século passado é que a televisão vai invadir os lares brasileiros.
É importante destacar que a forte relação da música com a televisão se dá,
principalmente, nos últimos anos de 1960, quando os festivais e os programas
comandados por cantores e cantoras de sucesso tornaram-se os carros-chefes na
busca por audiências. Entre esses programas, estão o Fino da Bossa, a Jovem Guarda e
os festivais de música popular brasileira.335 Hoje, são as trilhas sonoras das novelas que
emplacam os sucessos musicais.
Atualmente, além dos citados, outros formatos de alto-falantes continuam
mediando e ampliando os espaços de escuta da canção. São eles: celulares de diversos
tipos, ipods, tablets, caixas de som portáteis e etc.
Diante do sintético relato, é possível afirmar a forte contribuição da indústria
cultural para que a nossa música popular adquirisse essa posição hegemônica.
Entretanto, no meu ponto de vista, o fato da canção brasileira traduzir com
competência “conteúdos humanos relevantes” (TATTIT, 2004, p.11), bem como a sua
forte articulação com o cotidiano brasileiro e a sua capacidade de renovar-se, são,
também, questões a serem consideradas.
Ao pensar sobre a música popular brasileira, Wisnik (2004) argumenta que o
seu uso mais forte “nunca foi estético-contemplativo”, mas “como um instrumento
ambiental articulado com outras práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa”
(p.177). Artesanalmente, foi se desenvolvendo “nas dobras e nas sobras, nas barbas e
rebarbas do processo de modernização” (idem), convivendo com a diversidade de
músicas estrangeiras e difundindo-se pelos meios elétrico-industriais. Ou seja, o fato
de estar tão presente na festa, na brincadeira, na religiosidade, no trabalho, a canção é
“algo que completa o lugar de morar, o lugar de trabalhar, (...) papel de parede, pano

falantes são apenas um parente da radiodifusão, uma vez que amplificam os sons, eliminando a fase do
receptor. Eles podem ser fixos ou móveis. Os fixos são aqueles “instalados em locais comerciais,
comunitários, religiosos, educativos, governamentais e de outra natureza”; os móveis, além de serem
instalados em carros, “se encontram casos nos quais o sistema é carregado em bicicletas, carrinhos
rodantes, e inclusive em veículos de tração animal (cavalos, burros)”.
335
Fino da Bossa, programa comandado por Elis Regina e apresentado na TV Record, buscava recuperar
o “samba autêntico” e adequar a tradição da Bossa Nova ao contexto pós-golpe militar de 1964. “Esse
programa era o maior sucesso da televisão brasileira e nascera da sagacidade empresarial dos donos da
TV Record de São Paulo, Paulo Machado de Carvalho e seus filhos, em perceber o apelo de público – o
potencial de audiência e prestígio – que a música popular representava no Brasil”. (VELOSO, 2008, p.
122). O Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, era um programa
de música jovem e visava competir com o Fino da Bossa, ambos da mesma emissora. Na verdade, uma
ideia audaciosa da agência de publicidade de Magaldi, Maia & Prosperi, que visava “transformar o
pessoal da “música jovem” em ídolos nacionais, fabricar calças, camisas, chaveiros, bonecos, bonés,
brinquedos e tudo o mais que pudesse ser comercializado com a marca Jovem Guarda”. (MOTTA, 2009,
p.91). Os festivais, conforme Caetano Veloso, eram uma ideia “emprestada do Festival de San Remo, na
Itália, mas, no Brasil, (...) ganharia características diferentes – e um outro peso. Depois da bossa nova,
passara-se a levar música popular muito a sério no Brasil”. (VELOSO, 2008, p. 122). Portanto, os festivais
fizeram com que a canção se tornasse assunto vigente nas rodas de conversas.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1398


de fundo, ponto de fuga, (...) uma espécie de cenário, jardim portátil. (WISNIK, 2004,
p.181). Junto a isso, ainda que de forma artesanal, foi se instituindo como meio
construtor de uma “identidade sonora” e/ou, nas palavras de Wisnik, como “um modo
de pensar” (2004, p.215) que, segundo o próprio autor, começa a ser explicitado a
partir da bossa nova, quando se estabelece um dos traços mais notáveis da nossa
música: a permeabilidade entre a chamada cultura alta e as produções populares. Ao
invés de gerar um mero ecletismo, essa mistura vai forjar critérios que tornam a nossa
música “capaz de trabalhar com a simultaneidade e a diferença de um modo inerente
à enunciação da poesia cantada, com delicado e obstinado rigor, mesmo sob efeito
consideravelmente homogeneizador ou pulverizador das pressões de mercado”
(WISNIK, 2004, p.215).
A utopia da modernização, representada pela bossa nova, ressoa como “sinais
de um país capaz de produzir símbolos de validade internacional ao mesmo tempo
particular e não pitorescos ou ‘folclóricos’”. (WISNIK, 2004, p.216). Portanto, o
movimento bossanovista vai oferecer elementos musicais e poéticos para a
fermentação política e cultural dos anos de 1960, elementos esses que vão ajudar
outras gerações, principalmente os tropicalistas, a compreender e a se apropriar da
“lógica paradoxal ou complexamente contraditória, que nos distinguia e ao mesmo
tempo nos incluía no mundo” (WISNIK, 2004, p.216-217).336 Nesse sentido, Wisnik
afirma ser possível
postular que se constitui no Brasil, efetivamente, uma nova forma da
Gaia Ciência!, isto é, um saber poético-musical que implica uma
refinada educação sentimental (...), mas, também, uma “segunda e
mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais ingênua e
cem vezes mais refinada da qual ela pudesse ter sido jamais” (a frase
é de Nietzsche na abertura de A Gaia Ciência). De fato. A agudeza
intelectual (...) e a ‘inocência na alegria’(...) saem potencializadas
pelo seu rebatimento, nesta linhagem da canção popular brasileira.
(2004, p.218).

Potencializada pela incorporação de variadas fisionomias, ao longo do Século


XX, a nossa canção soube renovar-se, atraindo público de setores diversos da
sociedade e atendendo gostos simples e refinados. Esse “organismo mutante” que é
canto de trabalho, é brincadeira, é “jardim portátil”, mas é também meio para o
pensamento fruir, “converteu-se em território livre, muito frequentado por artistas
híbridos que não se consideravam nem músico, nem poetas, nem cantores, mas um
pouco de tudo isso e mais alguma coisa.” (TATIT, 2004, p.11-12). Assim, ao desenvolver

336
Wisnik chama de “lógica paradoxal” a potência do contexto político e cultural dos anos 60. Para ele,
“a democracia e a ditadura militar, a modernização e o atraso, o desenvolvimentismo e a miséria, as
bases arcaicas da cultura colonizada e o processo de industrialização, a cultura de massa internacional e
as ‘raízes’ nativas não podiam ser entendidas simplesmente como oposições dualistas, mas como
integrantes de uma lógica paradoxal ou complexamente contraditória, que nos distinguia e ao mesmo
tempo nos incluía no mundo”. (2004, p.216-217).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1399


um esforço consciente em traduzir conteúdos humanos relevantes em pequenas
peças, a canção brasileira, através dos seus compositores, arranjadores e intérpretes,
vem possibilitando que a gente dessa parte extrema do ocidente, pelo menos as que
falam português, nela se reconheçam e, até, se justifiquem, como destaca Caetano
Veloso em sua crônica semanal, intitulada Sob o jugo de sua calma, em que faz uma
bela homenagem a Dorival Caymmi.337
Em entrevista à Revista Rolling Stone (2011), Chico Buarque de Holanda, ao se
referir sobre a datação de músicas mais agudas, compostas por ele no tempo da
ditadura, destaca: “Acredito que as pessoas que não tinham posições políticas claras
na época possam ouvir Apesar de Você hoje e encontrar um valor afetivo muito
grande, independentemente do que a letra diz”.338 Essa fala de Chico Buarque se
concretiza nos personagens do filme As canções, citado no início deste texto. Entre
eles, o homem que canta Esmeralda, de Carlos José, e chora lembrando-se da mãe de
oitenta e cinco anos – que, ao contrário do que se poderia imaginar, está viva – e uma
bela mulher que encerra o filme cantando Retrato em Branco e Preto, de Chico Buarque,
canção que marcou o final de sua longa e tumultuada história de amor. Em ambos os
casos, as canções fazem a ponte com à memória afetiva de cada um deles, muito embora
suas histórias pouco têm a ver com as respectivas letras. Possivelmente, isso ocorre pelo
fato de a canção ser composta por diversos fragmentos biográficos: melodia, ritmo,
harmonia e letra. A partir desse “mosaico de signos” ela “desperta em nós as potências
eróticas dos nossos ouvidos” (ALVES, 2005, p.43), retirando-nos dos s pequenos
redutos e nos fazendo viajar para outros universos.
Por estes motivos e outros que, possivelmente, não foram aqui comentados, as
canções têm sido, no cenário artístico brasileiro, o meio pelo qual demonstramos a
nossa capacidade de acolher, assimilar, lembrar, pensar, registrar e transformar
memórias, informações, dados históricos, afetos e influências diversas. Talvez em
razão dessa potência, a canção caiu nas graças dos meios elétrico-industriais, que
foram, e continuam sendo, fundamentais para a sua difusão e, consequentemente,
para a sua hegemonia no cenário artístico brasileiro, mas, também, ao performatizar
dados biográficos a canção torna-se lugar de (re)encontro permanente. “Um
reencontro com a experiência que o homem médio não pode buscar, dado seu
limitado contato com o mágico domínio da arte”. (GLUSBERG, 2011, p.103).

Canção: lugar do “ego difuso”

Em crônica intitulada Antibiografia, Maria Rita Kehl fala do que não viveu e
sobre a sua lista infinita de coisas perdidas. No final, entretanto, revela que apenas as
canções ela não deixou passar. Argumenta:

337
VELOSO, 2014.
338
HOLANDA, 2011, p.106.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1400


A lista das coisas perdidas não tem fim. Só as canções eu não deixei
passar. As canções me salvaram de ficar fora do mundo. Estavam
todas no ar, trazidas pelo vento diretamente para minha memória
musical. Respirei as canções, sonhei canções, entendi o Brasil desde o
primeiro samba, porque existem as canções. Vivi sempre a condição
dessa cidadania dupla, uma vida no chão, outra no plano das canções
que recobrem o mundo ou, pelo menos, o país em que nasci. As
canções ampliaram o meu tempo, transcenderam o presente e,
numa gambiarra genial, juntaram um monte de pontas soltas desde
antes de eu nascer até... (KEHL, 2011, p.24).

Diante da importância que a canção teve e, pelo que parece, continua tendo
para a cronista, é possível compartilhar do argumento de José Miguel Wisnik, quando
este afirma ser a canção a criadora do “lugar onde se embala o ego difuso, irradiado
por todos os pontos e intensidades da voz, como de um alguém que não está em
nenhum lugar, ou num lugar ‘onde não há pecado nem perdão’”. (WISNIK, 1989,
p.199). O autor acrescenta, ainda, ser a partir desse lugar que ela [a canção] absorve
fragmentos do momento histórico, gestos, imaginários, pulsões latentes e
contradições. Ao nos identificarmos com o que a voz canta, reconstruímos as nossas
histórias, as nossas identidades, as nossas memórias, bem como, ampliamos o nosso
tempo, transcendemos o nosso presente e juntamos pontas soltas, uma vez que
Cantar é mais do que lembrar / É mais do que ter tido aquilo então / Mais do que viver
do que sonhar / É ter o coração daquilo.339
É oportuno lembrar, como nos coloca Tatit (2012, p.11), que há um esforço
consciente do cancionista340 para que a mensagem da sua obra se torne mais acessível,
chegue mais fácil. Na primeira faixa de Carrossel, intitulada Uma Canção É Para Isso, a
banda Skank evidencia esse esforço ao afirma que uma canção é feita prá acender o sol
/ no coração da pessoa / Prá fazer brilhar como um farol / o som depois que ressoa...
(...) / Uma canção é prá trazer calor (...) / Prá consertar / Prá defender a cidadela / Prá
celebrar / Prá reunir bairro e favela... (...) / Prá clarear a escuridão (...) / Prá reunir o
céu e a terra... 341
Nessa perspectiva, relembro a cantora Nara Leão ao dizer que a canção pode
dar às pessoas algo mais que divertimento e deleite. A cantora completa: “A canção
popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo onde vivem e a se identificar
num nível mais alto de compreensão”. (apud TINHORÃO, 1978: 242). Quando Maria

339
Trecho da canção Genipapo Absoluto, autoria de Caetano Veloso, gravada no disco Estrangeiro, de
1989.
340
Em certo sentido, Tatit considera cancionista todos envolvidos na performance da canção. Afirma: “O
compositor traz sempre um projeto geral de dicção que será aprimorado ou modificado pelo cantor e,
normalmente, modalizado e explicitado pelo arranjador. Todos são, nesse sentido, cancionistas”. (2012,
p.11).
341
Uma Canção É Para Isso, autoria de Samuel Rosa e Chico Amaral, CD Carrossel, álbum do Skank
lançado em agosto de 2006.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1401


Rita Kehl diz que as canções ampliaram o seu tempo, transcenderam o presente e
juntaram um monte de pontas soltas está, certamente, reafirmando o argumento de
Nara. Portanto, salvo melhor juízo, é nesse sentido, pela sua aptidão em “produzir
efeitos num sujeito desejante” (ROSSI, 2003, p.22), pela sua capacidade de fisgar o que
a linguagem não consegue dizer e por nos fazer “ouvir aquilo que dentro de nós pede
licença para expressar-se” (ROSSI, 2003, p.66), que vejo a canção criando o lugar para
que o “ego difuso” seja embalado.
As canções de alto-falante
Em seu livro de crônicas musicais, intitulado “Solidão no fundo da agulha”,
Ignácio de Loyola Brandão conta que ao entrar em um restaurante, na cidade de São
Paulo, estremeceu e ficou paralisado ao ouvir uma música que havia desaparecido em
sua memória. Diz ele: “Eu tremia por dentro, as noites de domingo de quarenta anos
antes voltaram” (BRANDÃO, 2012, p.142). Diante desse impacto, o autor afirma que,
naquele momento, o pianista que tocava lhe entregara tudo o que nunca perdera. E
conclui: “O tempo anda, mas, até o final, as músicas vão me devolver momentos que
desenham a trajetória de minha vida” (ibdem, p.143). A música emblemática dos seus
dezoito anos era “Cumana”,342 um clássico dos anos de 1950 que o escritor ouvia no
alto-falante da sua cidade.
A história de Ignácio de Loyola Brandão, certamente, é apenas uma entre
outras tantas, uma vez que as canções de alto-falante continuam imprimindo registros,
embalando egos difusos e despertando nos sujeitos aquilo que pede licença para sair.
Como a audição não gera distanciamento nem separa o sujeito do objeto, tal quais os
demais sentidos, as canções que nos marcaram, na qualidade de “objetos
biográficos”,343 tornam-se “pontos de junção” “entre duas ou várias biografias e, desse
encontro, diversas possibilidades de relações e instrumentais podem se desenvolver”
(LIMA, 2013, p.35). Assim sendo, as canções podem representar o “papel de
mediadores, tais como entende Bruno Latour, ou seja, são ‘atores dotados da
capacidade de traduzir aquilo que eles transportam, de redefini-lo, de desdobrá-lo e
também de traí-lo” (LIMA, 2013, p.35).
Mas, o que são canções de alto-falante? Antes de responder, quero,
inicialmente, destacar que a imagem do alto-falante vem sendo pensada por diversos
compositores da música popular brasileira. Ao tentar sintetizar o movimento
tropicalista na canção Tropicália,344 Caetano Veloso pinta um quadro cheio de

342
Autoria de Carmem Cavallaro (1913-1989).
343
Lima (2013) traz a noção de “objeto biográfico”, desenvolvida por Violette Morin. Conforme a sua
descrição, “existe um tipo de consumo que promove uma interação dinâmica entre sujeito e objeto, na
medida em que este último pode fazer parte ‘não apenas do ambiente, mas também da intimidade ativa
do usuário’. Nesse caso, ambos se utilizam mutuamente e ‘se modificam um pelo outro na mais estreita
sintonia’” (LIMA, 2013, p.34). Baseando-se em Bernard Blandin, a autora destaca que o caráter sígnico
do objeto faz “com que ele possa ser experienciado não apenas como utensílio, mas também como
fetiche, relíquia, prótese, etc.” (Idem, p.35).
344
Tropicália é a primeira faixa do disco Caetano Veloso, 1968.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1402


contrapontos, misturas e contrastes, onde a convivência criativa entre paradoxos é a
tônica. De um lado, esse quadro/canção apresenta “uma presentificação da realidade
brasileira (...) através de uma colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias
do contexto” (CAMPOS, 1978, p.163); do outro, “constitui a matriz estética do
movimento”. (FAVARETO, 2000, p.63).345 Ao construir essas imagens fragmentadas e
ambíguas do Brasil, Caetano quebra dicotomias, entre elas a da música comercial e
música letrada, a do popular e erudito. Isso fica claro nos versos da canção: Emitem
acordes dissonantes / pelos cinco mil alto-falantes. O alto-falante, apresentado como
símbolo da cultura de massa (são cinco mil), é que emite os acordes dissonantes,
marca da sofisticação bossanovista.
Também outra voz baiana se deteve a pensar o alto-falante. Em Tu És o M.D.C. da
Minha Vida,346 Raul Seixas, semelhante à estratégia de Caetano em Tropicália, constrói “uma
colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias do contexto” (Nada me
interessa / Nesse instante / Nem o Flávio Cavalcanti / Que ao teu lado / Eu curtia na
TV; E no auge da minha agonia / Eu citava Shakespeare...; E não tem Pepsi-cola que
sacie; Na Faculdade de Agronomia / Numa aula de energia). Contudo, é no final que o
roqueiro baiano vai trazer a imagem do alto-falante, utilizando da mesma expressão
cunhada pelo seu conterrâneo e colega, mas imprimindo-lhe um sentido pop: É por
isso, é por isso / Que de agora em diante / Pelos cinco mil alto-falantes / Eu vou
mandar berrar / O dia inteiro / Que você é: / O Meu Máximo Denominador Comum!...
Apesar de Raul Seixas desdenhar da chamada MPB, ao cantar, sarcasticamente,
em As Aventuras De Raul Na Cidade De Thor, que não tem nada a ver com “a linha
evolutiva da música popular brasileira”347 (a única linha que conheço / é a linha de
empinar uma bandeira), seus discos não escondem a grande mistura rítmica que ele
utiliza nas suas canções. Ao comentar o LP Krig-há bandolo!, lançado em 1973, Ana
Maria Bahiana destaca o que chamo aqui de antropofagia rauldiana: “O som do disco é
bem retrato de Raul, com misturas incríveis, como ‘Rochixe’(rock com maxixe) e
‘Mosca na sopa’ (rock jovem gravado com candomblé)” (BAHIANA, 2006, p.376).
Assim, entendo que a ironia e o sarcasmo desse compositor, com relação à nossa
música, sugerem muito mais uma atitude anárquica de não querer se filiar a grupos ou
movimentos que derivem daquela dualidade ideologizada, apontada por Sérgio

345
Favareto (2000) argumenta que a canção Trocipália se constitui matriz estética do movimento
tropicalista por pressupor um “projeto de intervenção cultural e um modo de construção que são de
ruptura”, configurando “um painel histórico e resulta em metaforização do Brasil” (p.63).
346
Essa canção, autoria de Raul Seixas e Paulo Coelho, está no disco Novo Aeon – Philips/Universal
Music – 1975.
347
“(...) a chamada ‘linha evolutiva da música popular brasileira’ – expressão criada por Caetano Veloso
em 1966 e adotada por Augusto de Campos e por alguns críticos da música popular até os dias de hoje –
acaba dando organicidade ao processo, pois apresenta os compositores ‘modernos’ como aqueles que
deram um ‘passo à frente’, mas continuam herdeiros naturais de uma ‘tradição’ da nossa música
popular, que remete aos sambas de Ismael Silva, Noel Rosa, Wilson Batista e outros bambas”. (ARAÚJO,
2010, p.343).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1403


Schaefer (2010, p.83),348 do que desprezo pela música popular brasileira. Daí, arrisco-
me a dizer que o desejo de estar livre para compor canções é o que, parece-me,
aproxima Raul de Caetano. Assim sendo, penso não ser por acaso que Caetano Veloso,
em seu depoimento no filme Raul – início, meio e fim,349 afirma ser o roqueiro baiano
um gênio.
O tema do alto-falante é retomado, na atualidade, por Zélia Ducan em
Borboleta.350 A referida canção diz que Música é que nem borboleta / Ela voa pra onde
quer / Ela pousa em quem quiser / Não é homem e nem mulher. Ao romper o
casulo/alto-falante, os acordes e palavras da canção voam livres e leves para pousar
nos silenciosos ouvidos, às vezes suavemente, outras, violentamente, fertilizando
novas memórias, novos imaginários. Ao nos invadir sem pedir licença, a canção parece
impregnar-se em nossos corpos, pois depois que entra não quer mais sair / quer
repetir, repetir, repetir.351
Ao contrário das composições dos dois baianos, Borboleta é uma metalinguage.
É a canção pensando a própria canção. Entrentanto, ao fazer a analogia do casulo,
Zélia Ducan reforma a imagem do alto-falante como símbolo da cultura de massa e do
pop (Música que nem borboleta / sai do casulo do alto-falante / Do carrossel e da roda-
gigante / pra que você e todo mundo cante), como fazem Tropicália e Tu És o M.D.C. da
Minha Vida. Exalta, também, questões do consumir, uma vez que do alto-falante/casulo
sai música de toda cor / De acalanto, de baile de amor / De restaurante, de elevador,
bem ao gosto do freguês.
Tomando como referências as imagens criadas pelos três cancionistas, diria que
o alto-falante produz uma estética própria.352 Ao coletivizar a recepção de uma
diversidade de estilos sonoros e poéticos, transgride a dicotomia do bom e do ruim, do
erudito e do popular, da música comercial e da música letrada; entretanto, como
sistema que não permite o receptor desligar ou mudar de canal, impõe um discurso.
Diante disso, como parte dessa estética, vejo certa ambigüidade. Na condição de
mediador,353 o “alto”-falante viabiliza a potência das canções ao produzir, “pela força
348
Schaefer (2010) afirma que a “campanha antropofágica ressignificadora”, deflagrada por Caetano
Veloso, é contra dois Brasis: “o Brasil da dogmática ideologia pluri-esquerdizante revigorada no país, a
partir do governo Goulart, e o Brasil da monolítica e repressora ideologia direitista, instalada no poder
pelo golpe militar de 1964”. (p.83).
349
O documentário conta a vida de Raul Seixas, mostrando todas as suas facetas, seus casamentos, suas
parcerias e seus fãs que ele ainda mobiliza mesmo depois de anos da sua morte. O filme, lançado no
Brasil em março de 2012, tem a direção de Leonardo Gudel e Walter Carvalho, roteiro de Leonardo
Gudel. Distribuição da Paramount Pictures.
350
Canção de autoria de Marcelo Jeneci e Zélia Ducan, gravada no DVD Pelo Sabor do Gesto em Cena –
Zélia Ducan.
351
Fragmento da canção Borboleta. (idem)
352
Refiro-me ao alto-falante, especialmente, como forma autônoma de expressão, como sistema de
transmissão local de curto alcance, fixo ou móvel, usado com finalidades políticas, comerciais, religiosas,
sociais e culturais, como define Uribe (2004, p.114-116).
353
Martin-Barbero (2009) afirma ser a comunicação, mais que meio, mediação. Garcia, referindo-se às
formas de amplificação sonora, argumenta: “Se a mediação dos alto-falantes proporcionou o

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1404


da música, com a qual se dissipam o peso e a espessura do existir”,354 um estado de
suspensão. Vale a pena destacar que a ideia de suspensão não pode ser confundida
com a de alienação, uma vez que aquela, diferente dessa última, “não negligencia a
realidade, não subtrai o poder de crítica e da visão. Pelo contrário, é um estado
propício à leitura mais atenta das ruas e das cidades”.355 De outro lado, apesar de
romper a dicotomia do erudito-popular, de possibilitar uma “escuta autônoma” e de,
pela força da música, produzir um estado de suspensão, o alto-falante tem algo de
autoritário. Diferente dos outros meios, a recepção da sua programação é
compulsória, impositiva. Nesse caso, arrisco-me a dizer que não se trata, apenas, de
um “alto”, mas de um “auto-falante”.356 Ou seja, a “estética do alto-falante” é
caracterizada, também, por uma ambigüidade entre o democrático e o autoritário.
A partir dessa estética, defino o que são canções de alto-falante. Não me limito
a compreendê-las, apenas, como aquelas chamadas de “brega” ou algo parecido, nem,
tampouco, às que colocamos para tocar em nossos aparelhos de som domésticos, com
o intuito de nos deleitarmos. Para mim, as canções de alto-falante são aquelas que
saem do casulo (dos “cinco mil alto-falantes”) e pousam em nossos ouvidos, sem que
tenhamos controle da sua recepção, desnudando uma demanda afetiva e
reverberando em nossas histórias individuais e coletiva, independente da sua
estrutura rítmica, melódica, harmônica ou poética.357 A princípio, podem ser
entendidas como mera manifestação artística, como forma de entretenimento.
Entretanto, podem ajudar a guardar momentos, a divulgar dados culturais de uma
sociedade, bem como a configurar imaginários, uma vez que, vistas como “mosaico de
signos”, trazem nas suas estruturas uma espécie de armadilha que faz o indivíduo nela
se prender ou engatar-se.
Canções: fontes de memória
Particularmente, fui profundamente marcado pelas canções de alto-falante. O
fato da cidade de Inhambupe, onde nasci, não dispor de bibliotecas, públicas ou
privadas, bancas de revistas e livrarias, as canções do alto-falante tornaram-se, para
mim, a radiação de um corpo negro / Apontando pra a expansão do Universo, como
canta Caetano Veloso.358 Não tenho dúvida de que as canções ouvidas e aprendidas me

desenvolvimento de uma escuta altamente refinada por parte das pessoas que lidam diretamente com a
produção sonora, também é verdade que ela é responsável pela autonomia adquirida pelos ouvintes no
século XX e pela grande variedade de formas que essa escuta autônoma pode assumir”. (GARCIA, 2004,
p.94).
354
LOPES, Cássia. A pequena leitora. Disponibilizado no site: <http://www.caramure.com.br/a-pequena-
leitora/>. Acessado em 13/01/2013.
355
Idem.
356
“Auto”, prefixo com origem na palavra grega autos, remete a ideia de si mesmo, si próprio.
357
Ao discutir as canções de amor, Rossi (2003, p.20) afirma: “A linhagem da linguagem das canções,
através de sua performance, se la(n)ça aos nossos sentidos, porque fala justamente daquilo que o
desejo humano mais procura: o tenso arco da demanda amorosa dirigida ao Outro”.
358
Versos da canção intitulada Livros, autoria de Caetano Veloso e gravada pelo autor no CD Livro, de
1997.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1405


ajudaram a ler o mundo, salvaram-me de ficar fora do mundo, ampliaram o meu
tempo e transcenderam o meu presente, como afirma Maria Rita Kehl. Elas ocuparam
o lugar onde faltavam as palavras359 e, principalmente, serviram-me de concavidades
embaladoras para os afetos.360 As canções saídas do casulo do alto-falante
mobilizaram-me e me fizeram romper tratados, trair ritos, abrir portas que dão pra
dentro,361 construir outros horizontes e reinventar mares e cais. Portanto, as canções
não foram apenas entretenimento e fruição, mas, fruição e algo mais. Esse “algo mais”
que metaforizo aqui como a “força que me leva a cantar”,362 o que sustenta o meu
fazer artístico.
Os meus espetáculos são uma grande colcha de memórias, em que as canções
de alto-falante são os retalhos; a narrativa, ilustrada por fragmentos de poeta
consagrados, a linha que junta tudo. Neles, as canções, na condição de retalhos,
tornam-se “objetos biográficos”. Ou seja, produtos de consumo que parecem ter alma
e que, assim, promovem a interação entre sujeito-objeto, entre artista-plateia. Na
condição de produto que rompe a dicotomia cartesiana (sujeito-objeto), a canção é
lida como um “ponto de junção entre duas ou várias biografias e, desse encontro,
diversas possibilidades de relações afetivas e instrumentais podem se desenvolver”
(LIMA, 2013, p.34).
Considero oportuno destacar que fazer um espetáculo com a pretensão de
contar a própria história é, sem dúvida, um grande desafio que produz um sentimento
de medo e, até certo ponto, de pavor. Mas o desejo de abrir as cortinas, de sentir o
refletor no rosto, e me entregar totalmente à experiência da arte é, certamente,
compreender o que Nietzsche chama de “miraculoso ato metafísico”.363 Portanto, para
ilustrar o argumento de que as canções são fontes de memórias biográficas, retiro do
espetáculo Mar Noturno, estreado em julho de 2003 na Sala do Coro do Teatro Castro
Alves, dois exemplos. O primeiro, à canção Coração Materno364, de Vicente Celestino; o
segundo, Baby, de Caetano Veloso.

A canção Coração Materno, carregada de sentimentalismo, faz parte do


referido espetáculo por dois motivos. O primeiro, por ser uma das canções preferidas
dos meus padrinhos, minhas referências afetivas. O segundo, contribuir para a redução

359
Argumento defendido por Rossi (2003, p.30).
360
A imagem de “concavidade embaladora para os afetos” é construída por Wisnik (1989, p.199).
361
Janelas Abertas n° 2 – Autoria de Caetano Veloso.
362
Verso contido em Força Estranha, canção da autoria de Caetano Veloso.
363
Em “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche defende que construção da arte encontra-se ligada à
dualidade apolínea e dionisíaca, assim como a geração à dualidade dos sexos. Esses impulsos distintos
caminham lado a lado, provocando-se para que novos nascimentos sejam criados, “cada vez mais
rigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição que a palavra comum “arte” só aparentemente
supera; até que finalmente, através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica, eles surgem
acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte, tão dionisíaca como apolínea, da
tragédia ática”. (NIETZSCHE, 2005, p.23).
364
Canção de autoria de Vicente Celestino, gravada por ele e, também, por Caetano Veloso.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1406


de preconceitos, pois a inclusão de algo trágico e considerado cafona parecia-me cair
como luva naquele contexto. Vicente Celestino narra a história de um campônio que
arranca o coração da mãe, a fim de provar o seu amor por uma mulher. Mas, ao levá-lo
para a amada, o apaixonado cai, quebra a perna e o coração materno rola pelo
caminho. Em meio à dor, ouve uma voz que diz: Magoou-se, filho meu? Vem buscar-
me que ainda sou teu. Esse drama celestiniano me marcou profundamente, pelo medo
que me provocava ao ouvi-la. Retrato esse sentimento de pânico quando, ao concluir a
canção, em tom de brincadeira e com certa ironia, comento com o público: “Eu ouvia
Vicente Celestino e, tomado por um misto de terror e piedade, perguntava em pânico:
‘Para casar é preciso matar a mãe?’ A madrinha respondia: ‘Não, meu filho, é só a
música’”. A minha pergunta tinha sentido, pois havia uma pedagogia na canção e com
ela eu me preparava para o amor “com todo seu tenebroso esplendor”.365 Nas palavras
de Carlos Drummond: “Eu estava me preparando para sofrer... assim como os rapazes
estudam para médico ou advogado”.366
Abro um parêntese para dizer que existem duas versões dessa canção. Segundo
Favaretto, “a cantada por Caetano e a relembrada de Celestino” (2000, p.96).367
Comentando a gravação feita por Caetano, e simulando um diálogo entre aluno e
professor, Aguilar (2010) explica porque uma canção considerada cafona e kitsch pode
acarretar um fluxo de mudança. Diz ele, assumindo o personagem do professor:

“Essa música (...) é tão cafona e kitsch como as tragédias gregas de


Eurípides, as óperas de Wagner e as pinturas de Andy Warhol. O
leitmotiv da canção gira entre o amor incondicional e a paixão. A
paixão é destrutiva, é o Eros em espiral direcionada por Tanatos, a
Morte, nesse caso o gozo final. Agora, o amor incondicional é
transformador e é muito difícil de receber. Se você recebe amor
incondicional, você se transforma, não tem mais causa e efeito, crime
e castigo, não tem mais culpa e não tem mais ego. É muito difícil de
receber porque você perde a individualidade e fica uno com o
universo. Daí o grande potencial revolucionário e transformador
dessa canção magnificamente traduzida por Caetano. E o amor
incondicional se apresenta na forma de um coração falante de mãe”.
(AGUILAR, 2010, p. 24-25).

365
Verso contido na canção Tá Combinado, autoria de Peninha, gravada por Maria Bethânia no CD
Maria, 1988, Universal Music.
366
Amor, sinal estranho (DRUMOND, 2006, p. 18).
367
Favaretto argumenta que Caetano Veloso, ao reinterpretar Coração Materno sob os arranjos de
Rogério Duprat, “canta com distanciamento e reverência; um canto frio, despojado, fazendo algo
parecido com a releitura oswaldiana dos primeiros cronistas do Brasil. Sem sentimentalismo ou
morbidez, Caetano canta o que a letra diz literalmente, revelando-se, assim, o artificialismo do texto
como algo ridículo, absolutamente kitsch” (2000, p.96). Já com relação à interpretação de Vicente
Celestino, diz que “é feita de estilemas operísticos – retórica, sentimentalismo, exagero – com
sobrecarga emotiva na entonação”. (2000, p.96-97). É como se este relembrasse a cena.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1407


Vista como um dramalhão cafona e kitsch, Aguilar diz que “A importância dessa
música é ser a força motriz da mudança que vem primeiro como símbolo, ou seja,
como arte, para depois interagir com a realidade”. (AGUILAR, 2010, p.25). Ao regravá-
la de modo terno e doce, dentro de um disco que provocou um fluxo de mudança que
ainda hoje reverbera, Caetano Veloso levanta, com a sua interpretação, questões
existenciais: paixão, amor incondicional, solidão, família e competição. De uma forma
ou de outra, todas elas estão presentes nas histórias de vida de qualquer pessoa.
Apesar de considerar as versões de Celestino e Caetano definitivas, não queria
seguir nenhuma delas, pois tinha como ideia transformar o referido drama em um
momento de humor, a fim de dar leveza à cena. Luciano Bahia, diretor musical do
espetáculo, apresentou-me um arranjo que dava à canção ares de filme de Alfred
Hitchcock.368 O clima de suspense, proporcionado pelo arranjo, permitiu-me brincar
com a situação, sem perder a dramaticidade das questões existenciais presentes em
Coração Materno. O resultado foi tão interessante que a canção terminou sendo
indicada ao Troféu Caymmi,369 na categoria de melhor arranjo.
Com Baby, a história foi outra. Lembro-me bem de um tio materno chegando
de Salvador com o novo disco da Gal Costa e reunindo, em sua casa, um grupo de
amigos para ouvir a “novidade”.370 Eu fique encantado com o disco. Não foi difícil
aprender, rapidamente, todo o repertório. Talvez por captar um “tempo urbano”
semelhante àquele que ia se construindo na minha imaginação, fui marcado
profundamente pela canção “Baby”.371 Todas as vezes que eu ouvia Gal cantar Você
precisa / Saber da piscina / Da margarina / Da Carolina / Da gasolina / Você precisa
Saber de mim, pensava: “essa música é pra mim”. A insistência segura de que era
preciso saber da piscina, da Carolina, da gasolina, de aprender inglês, chamava-me a
atenção. Os versos Você / Precisa aprender / O que eu sei / E o que eu / não sei mais
me deixavam em pavorosa. O “você” era eu? O que é que essa pessoa sabe e o que
não sabe de tão importante? Por que eu precisava saber de tudo aquilo? Essas
questões não saiam da minha cabeça. E, finalmente, o trecho: Você precisa / tomar um
sorvete / Na lanchonete / Andar com a gente. Eu tinha nove anos de idade e não fazia
nenhuma relação da música com o regime imposto pela ditadura militar, o que me
mobilizava era o desejo de ter acesso a tudo aquilo, pois em Inhambupe não tinha
lanchonete e sorvete, não tinha piscina, curso de inglês e nem era a melhor cidade da

368
Alfred Joseph Hitchcock, cineasta inglês, morto em abril de 1980, foi considerado o mestre
dos filmes de suspense, pelo fato de trazer inovações técnicas.
369
O Troféu Caymmi, criado em 1985 pelo produtor Tucá de Morais, foi considerado um dos mais
importantes prêmios de música da Bahia. Mar Noturno recebeu quatro indicações para o Troféu
Caymmi: melhor show, melhor banda, melhor direção musical e melhor arranjo.
370
O álbum Gal Costa, lançado em 1969, trazia em seu repertório a canção urbana Baby (Caetano
Veloso), com a participação de Caetano Veloso, que se tornou a mais tocada do disco. O referido álbum
foi um sucesso inesperado, com mais de 100 mil cópias vendidas.
371
A ideia de “tempo urbano” é trazida por Favaretto, quando argumenta que Baby, além de lírica e de
tematizar a dominação, “Capta o tempo urbano como o espaço de uma vida leve e descontraída,
sensibilidade à flor da pele: ‘Não sei, leia na minha camisa’.” (2000, p.97-98).

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1408


América do Sul. Além disso, “a gente” a que o autor se referia eu imaginava ser uma
turma bacana, inteligente, moderna, jovem, transgressora. Eu tinha vontade de andar
com aquela gente, de vê-la de perto e também de ter uma camisa com a frase: I love
you.372 A canção criou, em mim, o desejo de ir morar na cidade grande.Se eu já
inventava Salvador inteira, ouvindo minha madrinha cantar as músicas de Caymmi,
com Baby eu decidi: é prá lá que eu vou.
Apesar de a Jovem Guarda ter lançado minhas escolhas para o mundo, foram as
cores, os barulhos, os ritmos alucinantes, psicodélicos e mutantes do tropicalismo, em
especial as canções de Caetano Veloso, que me possibilitaram um novo olhar sobre a
música popular brasileira. Portanto, com um arranjo muito semelhante ao da
gravação de Gal Costa, lançada em 1969, homenageie a Tropicália e o tio responsável
por me botar em contato com aquela música e que, involuntariamente, influenciou
muito o meu gosto musical, cantando Baby.
Finalizando, arrisco-me a dizer que o Mar Noturno é uma performance
sustentada por uma seleção de valores, de fatos da minha história e de “objetos”
biográficos” (as canções) que possibilitou, no êxtase do palco e na integração artista-
público, a “partilha do sensível”. Chego a essa conclusão considerando o texto que
Mabel Veloso me escreveu, com o qual encerro essa comunicação.

Silvio Carvalho descobriu o Mar Noturno e num feliz mergulho na


memória encontra o mistério de passar fantasia e beleza a quem o
ouve. O contador/cantador tem uma importância vital. Sua voz abre
portas e janelas, acende luzes e dá um colorido ao caminho a seguir.
(...). Nos leva a mergulhar nas águas misteriosas da imaginação. (...).
É hora de pedir: Conte outra! Cante outra vez!!!373

Referências
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Paulo: Iyá Omin, 2010.
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Janeiro: Editora Senac Rio, 2006.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Solidão no fundo da agulha. São Paulo: LivroParaTodos,
2012.

372
Frederico Coelho (2010, p.70-71), em texto sobre a referida canção, entende ser “Baby” alguém que
parece não saber o que está acontecendo ao seu redor e, por isso, é alertada por alguém exigente,
sabedor de que estamos vivendo em um mundo em plena convulsão e que exige mudança.
373
Mabel Veloso, nascida em Santo Amaro da Purificação, é escritora, poeta e contadora de histórias.

Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1409


CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 3.ed. São Paulo: Perspectiva,
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Anais IV Simpósio Memória (Auto)Biografia e Documentação Narrativa 1411


Siglas das Instituições

CES/UC – Centro de Estudos Sociais/Universidade de Coimbra


UA – Universidade de Antioquia/Medellín
CMEIJST – Centro Municipal de Educação Infantil José da Silva Tavares
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
EERCA – Escola Estadual Reunidas Castro Alves
ENMSP – Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
EPCAR – Escola Preparatória de Cadetes do Ar /Barbacena-MG
ESPEC – Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará
ES-UEMG – Escola Guignard/Universidade do Estado de Minas Gerais
ETUFBA – Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia
FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
FCT – Faculdade de Ciências e Tecnologias
FDPII – Faculdade Dom Pedro II
FRB – Faculdade Ruy Barbosa
FURB – Fundação Universitária Regional de Blumenau
FVC – Fundação Visconde de Cairu
GRAFHO – Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e História Oral
IAT – Instituto Anísio Teixeira
IFBA – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia
IFBAIANO – Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnoligia (Campus Bom Jesus da
Lapa)
IFMT – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (Campus
Sorriso)
IFPI – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí-Campus Parnaíba-PI
IFSERTÃO – Instituto Federal de Educação do Sertão (PE)
PMVC – Prefeitura Municipal de Vera Cruz
PPGEduC – Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade
PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
RMA - Rede Municipal de Amargosa-BA
SEMED – Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu/RJ
SME-RJ – Secretaria Municipal de Educação do Rio de Jnaeiro
SUDESB – Superintendência de Desportos do Estado da Bahia
UBA – Universidade de Buenos Aires/Argentina
UCSal – Universidade Católica do Salvador
UCSF – Universidade Católica de Santa Fé/Argentina
UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina
UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana
UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais
UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
UEPA – Universidade do Estado do Pará

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UEPB – Universidade Estadual da Paraíba
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP)
UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Campus Jequié)
UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz
UFBA – Universidade Federal da Bahia
UFC – Universidade Federal do Ceará
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
UFF – Universidade Federal Fluminense
UFG – Universidade Federal de Goiás
UFMG – Universiadde Federal de Minas Gerais
UFMS – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso
UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto
UFPA – Universidade Federal do Pará
UFPB – Universidade Federal da Paraíba
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UFPel – Universidade Federal de Pelotas
UFPI – Universidade Federal do Piauí
UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UFS – Universidade Federal de Sergipe
UFSC – Universidade Federal de Santa Catariana
UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
UFSM – Universidade Federal de Santa Maria
UG – Universidade de Genebra/Suiça
UnB – Universidade de Brasília (UnB)
UNEB – Universidade do Estado da Bahia
UNESP – Universidade Estadual Paulista (FCT/Presidente Prudente)
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
UNICID – Universidade da Cidade de São Paulo
UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo
UNISINOS – Universidade do Vale do Rios do Sino
UNOPAR – Universidade Norte do Paraná
UP13/Nord – Universidade de Paris 13-Nord
UPE – Universidade de Pernambuco (Campus Garanhuns)
UPN – Universidade Pedagógica Nacional/Mèxico
US – Universidade de Sevilla/Espanha
USP – Universidade de São Paulo

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