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Ana Lúcia Lana Nemi

Antonio S. de Almeida Neto


Lucília Santos Siqueira
(Organizadores)

1ª edição

Brasília-DF, 2021
Comissão Editorial do Departamento de História

Coordenação - Glaydson José da Silva

Representação docente Liz Santos de Jesus


Patrícia Teixeira Santos Mestrado Profissional
Wilma Peres Costa
Matan Ankava
Representação discente Mestrado Acadêmico
Felipe Vaz
Mestrado Acadêmico Victoria Lacerda
Graduação
Joyce da Silva Serafim
Mestrado Profissional

Financiamento
Proeb/ CAPES/ Núcleo Unifesp ProfHistória

Conselho Consultivo

Ana Luiza Martins Camargo de Oliveira Gianluca Fiocco


Ex Condephaat/Pós-doc – FFC/Unesp-Marília Università degli studi di Roma Tor Vergata

Andrew Britt Gustavo Junqueira Duarte Oliveira


University of North Carolina School of Arts Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Armelle Enders Jeffrey Lesser


Université de Paris IV Emory University

Carlos Antonio Garriga Acosta José Manuel Viegas Neves


Universidad del País Vasco Universidade Nova de Lisboa

Eugénia Rodrigues Marcelo Cândido


Universidade de Lisboa Universidade de São Paulo

Fabrícia Cabral de Lira Jordão


Universidade Federal do Paraná

Departamento de História
© 2021 by Ana Lúcia Lana Nemi, Antonio S. de Almeida Neto e
Lucília Santos Siqueira (Organizadores)

Esta obra é publicada sob a Licença Creative Commons Atribuição-Não


Comercial 4.0 Internacional.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Projeto Gráfico e Diagramação: Rosivan Diagramação & Artes Gráficas

Capa: Pedro Ribeiro de Almeida

Revisão: Tikinet

Catalogação da Publicação na Fonte.

Ensino de História, memória e linguagens [recurso eletrônico] / Ana


Lúcia Lana Nemi, Antonio S. de Almeida Neto e Lucília Santos Siqueira
(organizadores). – Brasília: Rosivan Diagramação & Artes Gráficas, 2021.
1 PDF.

ISBN 978-65-80423-16-3

1. Ensino - História. 2. Memória. 3. Linguagens. I. Nemi, Ana Lúcia


Lana. II. Almeida Neto, Antonio S. de. III. Siqueira, Lucília Santos.

CDU 37:93/94
E59

Elaborada por Verônica Pinheiro da Silva CRB-15/692.

O conteúdo deste livro é de exclusiva responsabilidade dos autores.


SUMÁRIO

7 INTRODUÇÃO
Antonio S. Almeida Neto

9 A HISTÓRIA DA MEMÓRIA NO ENSINO DE HISTÓRIA


Alexandre Pianelli Godoy

30 CINEMA E ENSINO DE HISTÓRIA: AS FICÇÕES NAS PRESCRIÇÕES DA


SÉRIE APONTAMENTOS (1986-1993)
Claudio Eduardo da Silva

46 HISTÓRIA, MEMÓRIA E ENSINO: UMA ANÁLISE DOS FILMES BATISMO


DE SANGUE E O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS.
Cristal Guerra Donatti

59 A ESCOLA COMO PALCO DE UMA GUERRA NÃO DECLARADA:


O DISCURSO ANTICORDIAL DO RAP E DA LITERATURA PERIFÉRICA
NO ENSINO DE HISTÓRIA
Cristiano Aparecido Mendes

73 PRODUÇÃO DE PRESENÇA NO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA


INDÍGENA NA EDUCAÇÃO BÁSICA.
Elizabeth Fernanda Machado Serra.

89 EDUCAÇÃO E MEMÓRIA NAS ESTÓRIAS E HISTÓRIAS: UM QUEBRA


CABEÇAS “HESTÓRICO”.
Igor Martins Fontes Leichsenring

110 CINEMA, PRODUÇÃO AUDIOVISUAL E ENSINO DE HISTÓRIA, MEMÓ-


RIA E LINGUAGENS
Jonas Tadeu Amaral Pinto

123 UM MONUMENTO AOS BANDEIRANTES COMO FONTE DOCUMENTAL


NO ENSINO DE HISTÓRIA: MEMÓRIA SOCIAL E DIFERENTES
LEITURAS DO PASSADO
Janaina Franzoni Caetano
Lucília S. Siqueira

148 SOBRE OS AUTORES/ORGANIZADORES


INTRODUÇÃO

A primavera é quando ninguém mais espera


A primavera é quando não. (Zé Miguel Wisnik)

“Manter a enteléquia / ativa”, escreveu o poeta Haroldo de Campos, “a enteléquia /


mantê-la / viva1”, bradou. E assim definiu: “A enteléquia (a força que nos conduz ao telos, à
completude)2”. A enteléquia refere-se à atividade vital que aspira à completude, que vislumbra o
horizonte de criação, que almeja experimentar novas experiências.

Vivemos tempos de ataques. Em tempos torpes. Em tempos de inúmeros ataques torpes


à educação básica e seus professores, ao ensino de História, ao conhecimento historiográfico,
ao ensino superior, à universidade pública, aos cursos de formação de professores. Senão
vejamos: fortalecimento do movimento autointitulado “escola sem partido” e seus congêneres
que atacaram covardemente (e, subitamente, sumiram...) a escola pública e seus professores,
notadamente os de História; disseminação de ondas de fake news, negacionismos, revisionismos
históricos e obscurantismo; instituição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
pasteurizando conteúdos e procedimentos em escala nacional, na modalidade currículo avaliado;
instituição da BNCC-Ensino Médio, que retira a disciplina escolar História do currículo e o
dilui na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, uma mescla de História, Sociologia,
Filosofia e Geografia; instituição do chamado Novo Ensino Médio, que dissimula um ensino
profissionalizante precário em “trilhas formativas” supostamente opcionais para os filhos da
classe trabalhadora, além de abrir as escolas públicas para possíveis convênios com empresas
privadas; criação de “disciplinas” escolares alienígenas como Projeto de Vida e Empreendorismo;
instituição, ainda em implementação, da BNC-Formação de Professores, que pretende
transformar as licenciaturas em cursos de formação de aplicadores da BNCC, com diminuição
da carga horária dos conteúdos específicos e ampliação dos conteúdos pedagógicos e práticas,
separando-a da pesquisa, acarretando precarização da formação dos professores de História.

Tais ataques mal disfarçam o achaque dos reformadores empresariais da educação3


às verbas públicas, interessados nos negócios altamente lucrativos que envolvem o ensino
em todos os níveis (do infantil ao superior) e produtos diversificados (escolas, cursos,

1
Campos, Haroldo de. Opúsculo Goetheano. In A educação dos cinco sentidos. SP: Iluminuras, 2013, p. 38.
2
Campos, Haroldo de. O Arco-íris Branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 20.
3
FREITAS, Luiz Carlos de. Os Reformadores Empresariais da Educação e a disputa pelo controle do processo
pedagógico na Escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, nº. 129, p. 1085‐1114, out.‐dez., 2014.

* 7 *
materiais didáticos, softwares, assessorias, etc). Esse assédio, ampliado pela violência política
institucionalizada dos últimos anos e pela pandemia da Covid-19, fragilizaram ainda mais
a combalida educação escolar brasileira, a condição de atuação de seus professores e suas
possibilidades criativas. Fragilizaram projetos de ampliação do acesso à universidade pública
e gratuita de qualidade, de formação consistente de professores para a educação básica e
de professores pesquisadores. Fragilizaram as conquistas das leis 10.639/03 e 11.645/08 que
determinam o ensino de história e de cultura da África, afro-brasileira e indígena com a
instituição da BNCC-EM, que retira História do currículo, e com a BNC-FP que, ao subtrair
conteúdos específicos de história da formação de professores, poderá diminuir (ou excluir) a
presença desses temas no currículo da Licenciatura em História.

Contudo, a utopia não pode dispensar a enteléquia, é preciso mantê-la ativa. A


Universidade Federal de São Paulo, campus Guarulhos, seu Departamento de História e
o Mestrado Profissional em Ensino de História, ProfHistória4, aspiram essa completude,
vislumbram um horizonte de criação.

Os dois livros que ora vêm a lume – Ensino de História - Currículos em disputa e Ensino
de História - Memória e Linguagens – traduzem essa possibilidade de criação no âmbito do
ProfHistória, núcleo Unifesp. Trata-se de 14 artigos escritos por docentes, mestres e mestrandos5
que abordam temas de extrema atualidade e que expressam, justamente, a enteléquia viva e ativa
na educação escolar e no ensino de História: pan-africanismo, Educação de Jovens e Adultos
(EJA), movimentos estudantis de ocupação, Hip-Hop, Rap, Graphic Novels/HQs, coletivos
negros, intelectuais afro-periféricos, histórias e memórias em disputa, história da memória,
cinema, literatura periférica, patrimônio, literatura, história e cultura indígena, quilombo e
decolonialidade. Decorrem de pesquisas qualificadas que emergiram de problemas suscitados
pela observação e análise da cultura escolar e a ela retornam com proposições consistentes e
criativas, abrindo novas perspectivas para o ensino de História.

A leitura desses 14 artigos constitui um convite, “quando ninguém mais espera”, a manter
a atividade vital que mantém professores de História/historiadores em sua lida: a possibilidade
de criação. Não podemos descuidar desse intento.

Boa leitura!

Antonio S. Almeida Neto

4
O núcleo Unifesp do ProfHistória faz parte da rede de Mestrado Profissional em Ensino de História que
congrega 39 núcleos espalhados em todas as regiões do território nacional.
5
Convém lembrar que todos os mestrandos do ProfHistória são professores de História em exercício na educação
básica, sendo que algo em torno de 2/3 atuando em escolas públicas.

* 8 *
A HISTÓRIA DA MEMÓRIA NO ENSINO DE HISTÓRIA

Alexandre Pianelli Godoy

Resumo: Este artigo parte do diálogo entre a teoria da historiografia de François Hartog sobre
os “regimes de historicidade” e os estudos realizados sobre a história do ensino de história,
ambos relidos e confrontados em seus conceitos de memória. Acompanharemos, por meio desse
debate, as permanências e transformações desses conceitos de memória, de modo a refletir sobre
algumas questões que incidem sobre a história acadêmica, escolar e a de circulação pública
nos dias de hoje: quais as semelhanças e diferenças em seus usos da memória? Não estaríamos
vivendo uma espécie de “emparedamento da memória” entre “velha” memorização de conteúdos
na escola e o “novo” dever de memória na história? Quais as saídas para esse suposto impasse de
um “cativeiro da memória”?

1. Introdução:

O conceito de “regime de historicidade” de François Hartog pretende ser uma “ferramenta


heurística”, de acordo com suas palavras, para compreender “não o tempo, todos os tempos ou
a totalidade do tempo, mas principalmente os momentos de crise do tempo, aqui e lá, quando
vêm justamente perder sua evidência as articulações do passado, do presente e do futuro” (2013,
p. 37). Ou seja, é um conceito construído pelo historiador, que não deve ser visto de maneira
mecânica, e não coincide necessariamente com as épocas, aproximando-o mais do “tipo-ideal”
de Max Weber, adverte o autor.

Dessa forma, e de maneira bastante resumida, correndo o risco de simplificar e trair o


pensamento do autor, Hartog faz uma longa distinção em seu livro Regimes de historicidade:
presentismo e as experiências do tempo (original de 2003 e publicado no Brasil em 2013) entre três
regimes de historicidade, o “antigo” e o “moderno”, que não só contrastam entre si, mas também
do atual regime de historicidade “presentista”, que nos interessa mais de perto. O “antigo”
(que prevaleceu da Antiguidade até o Renascimento) seria aquele da história como “mestra da
vida”, no qual o passado era um exemplo e criava uma relação de autoridade com o presente e
para a plenitude do presente em uma espécie de continuum temporal. O moderno regime de
historicidade (a partir da Revolução Francesa até meados do século XX) rompeu com essa ideia
de restituição antiga do passado por meio do presente (continuidade), pois o apelo ao passado
se articulava doravante com a abertura para o futuro (mudança), isto é, a ideia de que o passado

* 9 *
se separava do presente com vistas ao futuro devido a uma certa consciência de sua mudança
temporal (consciência histórica).

Já, por sua vez, no “regime de historicidade presentista”:

Historiador da história, entendida como uma forma da história intelectual, eu


pouco a pouco fiz minha a constatação de Michel de Certeau, que lembrava, no
final dos anos 1980, que “sem dúvida, a objetivação do passado, há três séculos,
tinha feito do tempo o impensado de uma disciplina, que não cessava de utilizá-
lo como instrumento taxinômico”. O tempo tornou-se tão habitual para o
historiador, que ele o naturalizou ou instrumentalizou. Ele é impensado, não
porque seria impensável, mas porque não o pensamos ou, mais simplesmente,
não se pensa nele. Historiador atento ao meu tempo, eu, assim como muitos
outros, observei o crescimento rápido da categoria do presente até que se impôs
a evidência de um presente onipresente. É o que nomeio aqui [de] “presentismo”.
(...) Por exemplo, no quadro da história profissional francesa, a aparição de uma
história se reivindicando, a partir dos anos 1980, como “história do tempo
presente” acompanhou este movimento. Às demandas múltiplas da história
contemporânea ou muito contemporânea, a profissão foi solicitada, algumas
vezes intimada a responder. Presente em diferentes frentes, esta história se achou
posta sob os projetores da atualidade judiciária, quando os processos crimes
contra a humanidade, que têm por característica primeira de se haver com a
temporalidade inédita do imprescritível. (HARTOG, 2006, p. 262).

Em um regime de historicidade “presentista” se perceberia não apenas a ascensão de


histórias do tempo presente, mas também do imperativo de uma “onda memorialista” em que
nada deve ser esquecido, do “dever de memória” e, por extensão, do patrimônio, seu alter ego. O
problema reside que em tais histórias, memórias e patrimônios o presente se torna um horizonte
absoluto de explicação mesmo quando recorre ao passado ou se mostra preocupado com o futuro.
O que traria, para o autor, sérias repercussões sobre a memória nos dias de hoje:

“Nossa” memória não é mais aquela, ela agora só é “História, vestígio, triagem”.
Preocupada em fazer memória de tudo, ela é apaixonadamente arquivística,
contribuindo a essa cotidiana historicização do presente, já observada. Inteiramente
psicologizada, a memória se tornou um assunto privado, que produz uma nova
economia da “identidade do eu”. “Pertence a mim [doravante] a atividade de lembrar-
me e sou eu que lembro”. Assim, “ser judeu é lembrar-se de ser, mas essa lembrança
irrecusável, uma vez interiorizada, exige pouco a pouco dedicação integral. Memória
de quê? No limite, memória da memória.” Enfim, essa memória opera a partir da
relação com o passado na qual sobrepuja a descontinuidade. O passado não está mais
“no mesmo plano”. Por consequência fomos “de uma história que se procurava na
continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na descontinuidade de
uma história”. Tal como se define hoje em dia, a memória “não é mais o que se deve
reter do passado para preparar o futuro que se quer; ela é o que faz com que o presente
seja presente de si mesmo”. Ela é um instrumento presentista (Ibidem, p. 162-163).

* 10 *
Nessa perspectiva, é tentador tomar como verdadeiro que o ensino de história teria
acompanhado esses grandes “tipos-ideais” que constituem os “regimes de historicidade” e suas
relações com a memória e que hoje viveríamos o advento do presentismo no ensino de história
tal como verificado na historiografia acadêmica por meio das histórias do tempo presente,
do imediato, das histórias das memórias, das relações entre história e patrimônio e, mais
recentemente no Brasil, entre a história e sua divulgação para públicos mais amplos, a “História
pública” como um novo “campo de investigações”, apesar de ser uma antiga prática exercida por
leigos e/ou profissionais (SANTHIAGO, 2016, p. 28).

No entanto, ao estudarmos as relações entre memória e o ensino na história, outros


efeitos, igualmente duráveis, próprios e diversos parecem resistir a essas “histórias do atual” e
aos modismos da “teoria da história sobre o atual” e que, para o bem e para o mal, incidem na
formação de professores e alunos de história.

2. As finalidades do ensino de história no passado e a memória

Para tanto, me parece necessário retomar algumas pesquisas que tratam das finalidades
diversas que o ensino de história adquiriu no passado, tanto antes quanto durante o seu processo
de se tornar uma “disciplina escolar”, para tentar compreender até que ponto a relação entre
memória e o ensino de história se aproxima e se distancia desses regimes de historicidade e
como entender as permanências e as mudanças da memória no ensino da história em nossa
contemporaneidade.

De acordo com pesquisa de Annie Bruter (2005), a história nos colégios do Antigo Regime
era ensinada de modo “não-disciplinar” dentro de uma concepção humanista e integradora
da retórica antiga conciliando finalidades de prática de domínio da linguagem, cognitiva de
aquisição de conhecimentos e religiosa de acesso à ciência e à virtude.

O ensino era o da imitação de textos-modelos (“lições-modelo”) que visavam o domínio


das línguas antigas (latim) e das técnicas (retórica e filologia). Ao explicar os textos antigos
recorria-se a várias ordens de conhecimentos (gramaticais, filológicos, geográficos, históricos
e até mesmo botânicos, zoológicos e mineralógicos) e a capacidade de ressaltar máximas e
sentenças que deveriam enriquecer o discurso do orador. O objetivo era formar o homem de
bem e que sabia falar.

A finalidade retórica do conhecimento não significava que o ensino humanístico não


transmitisse conhecimentos, mas eles não eram estudados por si mesmos e não eram expostos
sistematicamente (a não ser em caráter recreativo em momentos de erudição), mas a medida da
leitura dos textos e em função dos conteúdos a serem explicados:

É assim que conhecimentos que dizem respeito, para nós, à história – o


desenrolar de certos acontecimentos, a descrição das instituições ou dos
costumes de uma certa época – podiam ser apresentados no momento da
explicação de uma poesia ou de uma obra de oratória de Cícero... Inversamente,

* 11 *
a leitura dos historiadores antigos, que faziam parte dos programas das classes
oportunizavam não tanto o estudo dos acontecimentos mas os procedimentos
de escrita próprios ao historiador: mais que a própria história tratava-se
conforme as finalidades gerais – as do ensino das humanidades, de aprender
como escrever (BRUTER, 2005, p. 13).

Os conhecimentos necessários para compreensão das obras históricas eram os geográficos


para se ter ideia do teatro das operações e o desenrolar dos combates descritos. A cronologia era
apenas um acessório de estudo, pois seu domínio era um campo “preciso” (uma “ciência” muito
nova) para ser exposto em sala de aula e exigia um vasto conhecimento filológico.

Já os materiais utilizados em tal ensino eram advindos dos textos antigos, pois seu
conteúdo era basicamente histórico, isto é, palavras, fatos, pensamentos da Antiguidade, mas que
não eram ordenados em função de uma cronologia, mas do grau de sua dificuldade linguística.
Os alunos dos colégios do Antigo Regime francês tinham um conhecimento até mais profundo
que alunos e mesmo professores atuais de história, porém, era um conhecimento desordenado
e lacunar, não só por ignorarem o que hoje designamos de “Idade Média”, mas pela imprecisa
consciência temporal sobre a época em que viviam.

A história para os regentes dos colégios humanistas não era um conjunto de conhecimentos
fundada como produto de uma metodologia, pois não designava um campo particular do saber,
pois todo o saber da época vinha do passado como história, isto é, como um ramo da retórica
e definido por um modo específico de escrita, o modo narrativo. Portanto, não se tratava de
“ensinar história”, mas de ensinar a arte de escrever e falar em público.

Parece-nos, portanto, que a história antes de se tornar uma disciplina escolar e quando
atendia a essa finalidade retórica do conhecimento se aproximava mais da concepção antiga
da história como “mestra da vida”. No entanto, dentro de um contexto de transição de uma
aprendizagem baseada no passado como autoinstrutivo (continuum temporal) para um “método
instrucional de ensino” baseado na memorização de conteúdos.

O historiador inglês dos currículos, David Hamilton, em um artigo provocativo


intitulado “O revivescimento da aprendizagem?”, publicado na revista Educação & Sociedade
de abril de 2002, traça em linhas gerais essa alteração importante ocorrida no século XVI: a do
“aparecimento da escola moderna”.

O surgimento das palavras programa [(aprox.)1500] e currículo [1573]


assinalava a reorganização pedagógica de corpora existentes de doutrina
aprovada, ao passo que a atenção dada aos catecismos [(aprox.) 1540] e à
didática [1613] refletiria a reorganização dessas inovações assumia-se que
uma doutrina podia ser suavemente transmitida pelos ouvidos, olhos, mentes,
corpos e almas dos alunos. Na sua forma mais simples, essa transformação do
século XVI marcou uma transição da atenção pública da aprendizagem para a

* 12 *
instrução. Antes da fundação de São Paulo, por exemplo, os escritos educativos
europeus focalizavam o que e como as crianças deveriam aprender, enquanto,
pouco depois, esses escritos davam muito mais atenção ao que e como se
deveria ensinar às crianças (HAMILTON, 2002, p. 189).

Essa “viragem” ou “guinada instrucional” (da aprendizagem para a instrução) a que se refere
Hamilton está nos “princípios da escolarização moderna” e marcou a entrada de um método de
ensino baseado na memorização na forma de “catecismos” (respostas formais decoradas para
questões formais prescritas) que deveriam ser absorvidos de maneira mais fácil de modo a
cumprir não apenas o que estava disposto nos currículos, mas de instruir mais alunos em um
espaço ampliado e em tempo mais curto.

Entretanto, o nascimento do “método instrucional” (de memorização de conteúdos) no


século XVI também combinou-se com outras mudanças de concepções que ocorreram no século
XVII quando, paradoxalmente, o ensino das humanidades clássicas eclodia com toda a força: a
vitória da fidelidade monárquica que pôs fim às guerras de religião; o triunfo do absolutismo e
paroquialização da vida mundana ao provocarem o interesse pela história nacional por meio da
história das dinastias e de suas cortes; a importância das práticas escritas como critério de ortodoxia
confessional que acentuou os fins moralizadores da educação e o uso da narração histórica como
modo de interiorizar as verdades e os valores do catecismo desde a infância; no plano cultural, o
progresso da produção impressa fez circular os saberes por meio da leitura para um público mais
amplo e o uso de uma literatura mais mundana, atraente e de fácil acesso do que o latim e o grego;
além da diversidade e especialização dos gêneros literários. Todos esses fatores confluíram ainda
para outra mudança no plano científico que foi a elaboração de uma linha do tempo única sobre
o qual se ordenavam os fatos até então dispersos. Os resumos de história em latim e em francês
começam a vulgarizar a aquisição da “ciência” cronológica da Renascença.

Desse modo, a utilização da linha do tempo conferia aos estudos históricos um novo modo
de apreender os fatos por ordem de sucessão cronológica e não mais por contiguidade temática
ou geográfica. Não só fornecia as datas, mas colocava em evidência as lacunas na exposição
dos conhecimentos, incentivava a preenchê-las e contribuía para a transformar a noção tempo,
conferindo uma visão linear, o que vai minando o respeito pelos historiadores da Antiguidade.

Houve, portanto, uma relação mais natural e direta com o passado, isto é, mais próximo e
acessível, contornando os obstáculos da aprendizagem das línguas antigas por meio da literatura
de vulgarização científica, dos projetos ou tratados de educação e da tradução de autores antigos.
Portanto, assistia-se a um enfraquecimento da finalidade retórica da história e um crescimento
do alcance moralizante da leitura dos historiadores antigos para mais alunos.

Porém, uma nova pedagogia da história autônoma e que se deu fora da escola era
ainda um ensino extremamente elitizado com uma finalidade política restrita apenas à
aprendizagem dos príncipes e dos “Grandes” que deveriam fornecer modelos mais próximos
aos deles do que dos heróis da Antiguidade sobre assuntos do reino por meio do presente
ou do passado próximo. Assinala Bruter:

* 13 *
Uma nova pedagogia da história surge, assim, conjugando a aprendizagem da
cronologia com o curso dialogado no qual o aluno escuta e discute o relato dos
acontecimentos, que deverão ser em seguida redigidos: tal é, ao menos, a pedagogia
descrita pelos preceptores dos príncipes no fim do século XVII. Quanto aos
primeiros “manuais escolares” de história, não provêm da educação principesca,
mas das pensões aristocráticas onde se ministravam os cursos particulares de
história pelos “chambristes”. (...). Compreendemos, vendo a história assim
colocada como disciplina central da educação ao mesmo tempo subtraída ao
comum dos mortais, o seu estatuto marginal, inacessível no último século do
Antigo Regime. Era objeto de um ensino, sobre o qual encontramos vestígios
através de resumos explicitamente destinados à juventude, de exercícios públicos,
até mesmo de redações dos alunos. Mas excetuando as instituições inovadoras
que foram as pensões particulares e as escolas militares, esse ensino não foi, em
geral, integrado ao currículo escolar – a história continuava sendo um tipo de
matéria facultativa sob a responsabilidade das famílias (BRUTER, 2005, p. 18).

Contudo, houve a invenção de uma pedagogia da história, com métodos e materiais


específicos no século XVII, mas essa invenção se fez fora do âmbito escolar e no espaço flexível
da educação principesca ou do pensionato aristocrático, independente da leitura dos autores
antigos, e a partir de uma apresentação contínua dos acontecimentos. Não há aqui uma escala
evolutiva que deu “origem” ao ensino de história atual, muito embora exista uma longa duração
dos processos de criação e de um funcionamento no devir de uma disciplina, em nosso caso, da
constituição da história como uma matéria “ensinável”.

O modo como a memória, a história e seu ensino se relacionaram nesse período não
permite simplesmente enquadrá-los em um regime de historicidade “antigo” na medida em
que a concepção de história como “mestra da vida” ao se tornar ensinável também começava a
conviver numa perspectiva de metodização do ensino que criava uma ideia de temporalização
de conteúdos a serem ensinados em sequência (currículo), de forma memorizada (didática) e,
no caso da história, valendo-se cada vez mais de textos reprodutíveis (impressos), vulgarizados
(traduzidos), e que tratavam de histórias dinásticas valendo-se de cronologias. Esses seriam os
aspectos que constituíram os “métodos (e que ainda não eram vistos como) tradicionais” do
ensino de história e que ganhariam uma nova tradução no século XIX com a criação dos Estados
Nacionais e das disciplinas escolares (CHERVEL, 1990).

No artigo de Arlette Gasparello (2011), o conceito de “disciplina escolar” de história já


pode ser utilizado para o seu objeto de estudo. Mostra em seu artigo a criação de uma “pedagogia
da história” no final do século XIX que se beneficiou dos intelectuais da história acadêmica
e como professores na escola secundária. Charles Langlois e Charles-Victor Seignobos se
dedicaram a escrever livros didáticos e se propuseram a refletir sobre a metodologia do ensino
de história. Tiveram influência direta na produção didática de história no Brasil reverberando
nos livros de João Ribeiro e Jonathas Serrano.

A pergunta central da autora parte da constituição de uma pedagogia histórica no final do


século XIX e início do XX e sua relação entre a história dos intelectuais, a circulação de saberes

* 14 *
científicos e escolares e suas sociabilidades relacionadas à história dos materiais e dos livros didáticos.
A autora não pensa os intelectuais como “gerais”, como se determinassem abstratamente o saber,
mas como intelectuais específicos que atuam na sociedade. Gasparello evita a dicotomia entre a
pesquisa histórica e o seu ensino a partir das relações entre os intelectuais da história e sua atividade
docente, mostrando que historicamente participaram de maneira antropológica na constituição
desses saberes. Não elimina a diferença entre conhecimento histórico acadêmico e conhecimento
histórico escolar, mas pensa nas suas relações e imbricações. As fontes disponíveis são manejadas
de modo a mostrar que os intelectuais da escola metódica se preocuparam com o seu ensino ao
passo que os manuais escolares no Brasil se beneficiaram das preocupações com o ensino dos
historiadores da escola metódica. Aqui é importante ressaltar que os livros didáticos se tornaram
uma realidade na França e no Brasil desde o século XIX. As finalidades do ensino de história
constantes nas produções didáticas desses professores-intelectuais-historiadores apareceram como
uma “educação social”, o que indiciava o surgimento de uma pedagogia à disciplina escolar de
história, além de uma metodologia e de uma seleção de conteúdos adequados aos alunos.

A história metódica representou uma ruptura com o chamado “ensino tradicional” de


memorização de conteúdos, pois Langlois e Seignobos, no apêndice do livro Introdução aos Estudos
históricos (de 1898) intitulado O ensino secundário da história na França (1896) criticavam o ensino
de um grande número de fatos, da história reduzida à oralidade do professor, dos livros escolares
apenas com quadros cronológicos, da reunião de datas e nomes próprios resumindo-se na história
de guerras, tratados, reformas e revoluções. Os autores propunham nesse apêndice escrito de
maneira reflexiva uma organização geral baseada nas finalidades em relação à cultura do aluno; na
escolha dos assuntos a partir da proporcionalidade entre conteúdos de história nacional, de outros países
e histórias especiais; na ordem sobre os critérios de seleção dos conteúdos e sua sequência adequada à
aprendizagem histórica; e, por fim, nos procedimentos de ensino, isto é, ensinar tudo ou fazer o aluno
pesquisar, como fazer usos das gravuras, como fazer compreender os acontecimentos, costumes
e suas condições etc. Propunham assim um ensino racional a partir da renovação dos materiais e
métodos e não apenas de uma teoria da pedagogia histórica. Formularam tais princípios baseados em
sua experiência docente. A finalidade não era mais o ensino moral tampouco o patriotismo, mas
a história como instrumento da cultura social e política por meio de uma pedagogia ativa. Portanto,
o professor deveria primeiro refletir sobre qual ação educativa poderia ter a seleção de um conteúdo
e depois verificar os meios necessários à compreensão do aluno. A renovação dos métodos de ensino
vinha acompanhada das finalidades sociais da educação. Contudo, não era mais possível ensinar a
história sem três vetores básicos: o quê, o como e o para quê ensinar. Ou seja, na íntima relação entre a
história e a pedagogia, pois a educação social proposta por esses professores/intelectuais possibilitou
o movimento em direção a uma educação voltada à cidadania, ainda que se possa questionar o
óbvio limite eurocêntrico e temporal de suas visões de mundo.

Embora esses historiadores/autores/professores/intelectuais da escola metódica possam


ser vistos dentro de um “moderno regime de historicidade”, isto é, em uma época que adquiria
maior consciência histórica sobre o seu tempo para distinguir o presente e o passado e da
história como um singular coletivo com vistas ao futuro, principalmente relacionadas aqui

* 15 *
com as finalidades sociais da educação, não nos parece que o método instrucional baseado na
memorização de conteúdos do século XVI tenha desaparecido no ensino de história europeu
e brasileiro entre os séculos XIX-XXI. Não houve uma transformação massiva para os novos
“métodos ativos de ensino” e no ensino de história que supostamente trariam um “revivescimento
da aprendizagem”, repetindo aqui o título irônico do artigo de David Hamilton supracitado.

Se, de fato, Langlois e Seignobos podem nos surpreender pela atualidade de suas
preocupações com a história ensinada, surpreende-nos ainda mais que suas ideias e práticas,
mesmo tendo circulado na Europa, e no Brasil até meados dos anos 1960, não alteraram o
quadro do ensino de história em grande parte das escolas de ensino primário e secundário
baseados em “catecismos” e que hoje são renovados pelos “testes de múltipla escolha”
(BITTENCOURT, 2018, p. 85-86).

3. Qual presente e qual memória no ensino de história?

Contudo, não quero com essas reflexões historiográficas contrariar o já sabido e desprezar o
conquistado, isto é, que o ensino de história passou por inovações em suas práticas, metodologias
e propostas curriculares mais críticas e na ampliação como um campo de pesquisa, sobretudo a
partir dos anos 1980 no Brasil (BITTENCOURT, 2011). Ainda que muitas dessas propostas
encontrassem um lastro histórico, como na pesquisa realizada por Arlette Medeiros Gasparello
(2008), e que práticas de ensino renovados tenham se verificado nos ginásios vocacionais e
colégios de aplicação públicos nos anos 1960 (BERGAMIM, 2018), a permanência de uma
concepção de “método instrucional” baseada na memorização de conteúdos foi ocultada pelas
relações de poder das novas propostas de ensino e de currículos mais abertos e flexíveis baseadas
na aprendizagem dos alunos. Essas propostas, ao “empoderarem” os alunos para “aprender a
aprender”, e não para aprenderem o que o professor ensina, omitem suas dimensões de poder – e
sem qualquer compromisso com as disciplinas escolares e suas finalidades educativas –, pois, no
dizer de David Hamilton:

(...) a sociedade de aprendizagem não passa de uma visão. Seus pressupostos


relativos à morte da escolaridade estão inscritos apenas nas palavras, imagens e
afirmações dos fazedores de significados culturais – educadores, economistas,
peritos em relações públicas, pesquisadores de mercado, escritores de discurso
e políticos –, que reproduzem, reciclam e formam a opinião popular. Ora, essa
visão é comercializada por órgãos que têm um alcance global e, sendo atraente,
reconfortante e niveladora, ela é amplamente aceita. A linguagem da sociedade
de aprendizagem projeta um sentido de redenção humana (...) [HAMILTON,
2002, p. 194].

O autor não está defendendo um retorno ao “método instrucional de ensino”, e


que jamais deixou de fazer parte das práticas de ensino e das aprendizagens em história na
escola contemporânea, mas nos alerta que o discurso do “revivescimento da aprendizagem”
não se desprendeu dos “primórdios da escolarização moderna” quando o propósito educativo

* 16 *
também era o de garantir a “salvação de jovens”, ainda que sua intenção fosse de ordem
espiritual, mas que hoje se seculariza:

Os engenheiros de software, assim como os web designers, recorrem a uma gama


cada vez maior de dispositivos para cativar a atenção e interação dos usuários
da Internet. Eles são os pedagogos da aprendizagem em linha, tornaram-se os
novos guardiões da ordem ‘sociodigital’. Obviamente, na medida em que um
site na Web provoca as respostas desejadas, ele é um descendente digital direto
do catecismo (Ibidem, p. 195).

Em que sentido, portanto, o ensino de história hoje estaria dentro desse “regime de
historicidade presentista” de François Hartog? “Presentismo” para quem e a partir de qual lugar?
Em que medida a memória no ensino de história deixou de ser aquela do “método instrucional”
(de memorização de datas e fatos) e passou a incorporar esse discurso atual da “sociedade
de aprendizagem” no qual “a memória se tornou um assunto privado, que produz uma nova
economia da ‘identidade do eu’”? (HARTOG, 2013, p. 162). Não estaríamos vivendo uma
espécie de “emparedamento da memória” entre a “velha” memorização de conteúdos na escola e
o “novo” dever de memória na história?

O sentido de um regime de historicidade “presentista” parece ser bem questionável no


ensino de história de hoje, pois os alunos ainda memorizam datas e fatos do passado para se
enquadrarem na “história ensinada” em sala de aula em função de avaliações “catequistas”, mesmo
que as rejeitem em sua vida cotidiana e os tornem reféns do presente. Em contraposição, no
novo “dever de memória”, os professores se sentem obrigados a incentivá-los na busca por “suas”
histórias de vida, de “seus” ancestrais e de “seu” presente para os autorizarem ao estudo do passado
e romper com a culpa na qual todos estão submetidos pela “velha” memorização de conteúdos
na “nova” sociedade de aprendizagem, na qual se finge que o professor seria dispensável (morto)
na construção de uma versão da “história” (viva) pelos alunos, ainda que continuem “cativos da
memória” na historiografia (MENEZES, 1992) e no seu ensino escolar.

Um bom exemplo desse “emparedamento da memória” está na internacionalização da


“História pública” e do “dever de memória” que prescrevem materiais para alunos e professores
em âmbito mundial. É o caso das publicações da UNESCO baseadas na coleção História da
África e os seus “desdobramentos didáticos” nas escolas desde 2009.

Trata-se de um material didático baseado na coleção cuja proposta é o de valorizar as


mulheres africanas e que pode ser acessado livremente no site da UNESCO (www.unesco.org/
womeninafrica) e está disposto na página em inglês e em um ambiente mais interativo com
mapas e ilustrações do que o apresentado na sua versão em português. A versão em português em
PDF foi elaborada pela “Delegação Permanente da Angola junto da UNESCO” e que começa
a circular nas redes sociais no Brasil sem grandes referências sobre a origem de sua publicação
tampouco uma problematização sobre suas intenções, esquecimentos e ambições. A intenção
primeira é que o leitor entrecruze os dados do material didático Njinga a Mbande: rainha do
Ndongo e do Matamba (2014) do século XVII, na atual Angola, com o seu correspondente

* 17 *
acadêmico da coleção História da África (2010). A linha narrativa do material foi elaborada a
partir de uma história em quadrinhos que no português de Portugal é designado como “banda
desenhada”. A ficha catalográfica traz informações importantes sobre a publicação:

Figura 1 – “Ficha catalográfica”, p. 2.

O selo da UNESCO confere respaldo para publicação digital do seu projeto editorial
voltado para igualdade de gênero e foi financiado pelo governo da República da Bulgária. Em
tempos de dever de memória não é de se estranhar que o órgão sediado na França e com o apoio
da Bulgária revele a iniciativa da Europa em dar visibilidade às mulheres africanas que fazem
parte de um grande contingente de imigrantes africanos nos países europeus e com intuito de
fazer mea culpa sobre o esquecimento (neo)colonialista a que foram submetidas por séculos
de invasões, guerras e exploração territorial, mas cuja versão para o português pela delegação
angolana parece “traduzir” o fim dos conflitos, o que justifica também o fato de ser uma obra
licenciada, mas de acesso aberto, embora “as ideias e as opiniões expressas nesta publicação são
as dos autores”, adverte a UNESCO.

A introdução do material parece corroborar com esse tom de apaziguamento e sua


disseminação livre em nome da “Luz sobre as mulheres!”:

* 18 *
Figura 2 – “Introdução”, p. 5.

O mapa da África à direita da página é estilizado para formar um perfil feminino e logo
abaixo podemos observar uma pequena foto sem legenda e que mais à frente descobrimos na
publicação se tratar de “crianças na Escola de Capoeira Njinga no Brasil”, com créditos atribuídos
a Rita Ribeiro de 2013 (p. 53). O texto pretende conciliar passado e presente entre a diplomacia da
UNESCO e a “diplomacia e estratégia militar” de Njinga a Mbande e de outras “personagens” na
“defesa dos direitos humanos” ou da “protecção do ambiente”, o que também justifica a estratégia
editorial da publicação de “dar luz a uma selecção de figuras femininas da História da África”. A
seguir, traz seus objetivos, mostrando a relação entre o material didático e a coleção:

A presente publicação inscreve-se no âmbito da fase II do Programa da UNESCO


intitulado “História Geral da África”. (...) A sua primeira fase, lançada em 1964,
permitiu a produção de uma colecção completa sobre o tema, agrupando oito
volumes traduzidos em treze línguas, acessíveis gratuitamente em versão digital
nos sites da UNESCO. (...) A sua fase II, lançada em 2009, intitulada “A Utilização
pedagógica da História geral da África”. (...) O seu objectivo é adaptar os conteúdos
dos volumes para o ensino escolar a fim de melhorar o conhecimento dos alunos e
estudantes africanos da história do seu continente” (p. 6).

Entretanto, a concepção de “utilização pedagógica” e de “adaptação dos volumes para


o ensino escolar” não se trata nem de uma “transposição didática” propriamente dita, pois não
mostra claramente como o professor pode basear-se no conhecimento histórico acadêmico
da coleção (UNESCO, 2010) para o conhecimento pedagógico dos conteúdos, tampouco
de uma “mediação didática”, uma vez que ignora os múltiplos usos que possam ser feitos
nas “culturas escolares” pelos professores e pelos discentes a partir de seus “saberes docentes”

* 19 *
e das “práticas sociais de referência dos alunos” (MONTEIRO, 2007). O que vê são dados
biográficos de Njinga a Mbande como grande diplomata e estrategista que opôs “resistência
tenaz aos projetos coloniais portugueses até à sua morte em 1663”, mas em nenhum momento
é indicado o questionamento de sua figura histórica também como um “mito” e suas relações
com uma “memória de exceção” a não ser pelo trabalho indicado isoladamente na bibliografia
final da publicação na página 54: Mata, I. (éd.) 2012. A Rainha Nzinga Mbandi: História,
Memória e Mito [Reine Nzinga Mbandi, Histoire, Mémoire et Mythes]. Colóquio Internacional
sobre a Rainha Nzinga [Colloque international sur la Reine Nzinga Mbandi]. Lisbonne.1 Tudo

1
Cabem aqui vários esclarecimentos sobre a complexa teia de relações temporais entre textos historiográficos,
iconográficos e da literatura de ficção sobre Njinga a Mbandi como sujeito histórico e como produto da
reconstrução memorialística de cronistas, litógrafos, romancistas e historiadores que vão desde o século XVII
ao século XXI e que de modo algum pretende ser exaustivo devido às dimensões deste artigo. Em primeiro
lugar, a autora referida na bibliografia, mas cuja relação não foi estabelecida com o material didático, se trata de
Inocência Mata, que é professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora do Centro
de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, que organizou o livro A Rainha Nzinga Mbandi: História,
Memória e Mito (2012), o que provavelmente resultou na sua apresentação para o artigo do citado Colóquio
Internacional. Em segundo lugar, sobre as variações de nome de Njinga ou Nzinga (derivativos do Kimbumdu),
Jinga ou Ginga (aportuguesados) são correntemente utilizados, por isso de acordo com essa autora “depende da
origem etnolinguística considerada” (p. 25), mas aqui vou adotar o nome do material didático em análise: Njinga
a Mbandi. Nesse livro, a autora analisa em capítulo de sua autoria as representações contrastantes de Njinga
nos “romances históricos” de Manuel Pedro PACARIVA. Nzinga Mbandi. Lisboa: Edições 70, 1975 e Arthur
(Pestana) PEPETELA. A gloriosa família: o templo dos flamengos. Lisboa: Dom Quixote, 1997, considerando
que: “Nzinga Mbandi destaca-se pelo pioneirismo na tematização explícita do passado, intentando a reescrita da
visão (então oficial, vale dizer colonial) da ciência histórica. Romance que é publicado em 1975, nos alvores do
novo país, pode dizer-se que a sua intenção, a começar pelo título, foi provocar a inversão da imagem ‘portuguesa’
que representava a rainha africana a raiar o sub-humano pela sugestão de canibalismo e da crueldade. Na
contramão, e buscando reedificar o passado, pela via da mitificação da imagem desta figura da história pré-
colonial de Angola, A Gloriosa Família resgata a mesma figura histórica procedendo ao desvelamento dos sentidos
cristalizados na história – nacionalista e colonial-expansionista, respectivamente.” (p. 26). Em terceiro lugar, essas
novas representações literárias “nacionalistas” e/ou “anticoloniais” só foram passíveis de desconstrução a partir do
farto material fornecido pelas crônicas de três autores contemporâneos da Rainha Njinga: do italiano António
de GAETA (1617-1662) “capuchinho desembarcado em Luanda a 11 de Novembro de 1654, liderando uma
missão de sete religiosos – a Quarta Missão dos Capuchinhos – destinada ao Congo” (PINTO, 2014, p. 4) que
reconverteu Njinga ao Cristianismo em 1658 após o seu casamento e foi o confessor da rainha até falecer em
julho de 1662, deixando escrito La maravigliosa conversione allá Sante Fede di Cristo della Reigna Singa e del suo
Gregno di Matamba nell’Africa meridionale de 1654, embora haja controvérsias sobre a data de sua publicação,
pois coincide com sua chegada em Luanda e pelo fato de descrever as exéquias da rainha em 1663 e que não
poderia ser de autoria de GAETA visto que morreu um ano antes (Cf. PINTO, idem). Outra crônica importante
foi do português António de Oliveira de CARDONEGA (1623-1690), que foi “um cristão-novo fugido à
Inquisição que aos quinze anos de idade e acompanhado de um irmão, desembarca em Luanda a 18 de outubro
de 1639” (PINTO, ibidem) e como juiz ordinário de Massangano onde continuará após a “Restauração” do
domínio português em Luanda sobre os holandeses e se correspondeu com a rainha Njinga e ao retornar a
Luanda deixou escrito os três tomos da sua obra História Geral das Guerras Angolanas (1680-1681) concluída em
1681 (Cf. PINTO, ibidem). Por último, o biógrafo mais completo e contemporâneo da Rainha Njinga, o italiano
João António CAVAZZI de Montecúccolo (1621-1678) “chegado a Luanda em 1654, integrando a Quarta
Missão dos Capuchinhos, liderados por António de GAETA (...) [que] substitui-o na corte da Matamba junto
da Rainha Njinga, rezando a primeira missa da Igreja do Uamba e dando a ‘extrema-unção’ à soberana em 1663”
(PINTO, p. 05), deixando a sua Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola de 1687 e ilustrada
por pintores italianos (a data corresponde à da publicação nove anos após a sua morte em Roma, Cf. PINTO,
ibidem). Em quarto lugar, todas as crônicas são de uma perspectiva europeia, cristã, masculina e estrangeira e

* 20 *
deve ser encaixado numa cronologia que explica sua genealogia e culmina na independência
de Angola em 1975:

Figura 3 – “Cronologia”, p. 8.

Embora os autores façam uma advertência de que a “banda desenhada” (história em


quadrinhos), que domina praticamente toda a publicação com 29 páginas: “(...) propõe uma
interpretação de algumas passagens da vida de Njinga a Mbande” e de que as “ilustrações (grifo meu)
apresentadas advém de um trabalho de pesquisa histórica e iconográfica sobre Njinga a Mbande
e Angola do século XVII” são também “uma interpretação e não pretendem de modo algum
representar com exactidão os factos, as personagens, a arquictetura, os penteados ou indumentárias
da época” (p. 9), não há qualquer discussão sobre a história em quadrinhos como representação ou
documento histórico em sala de aula e as variações históricas de suas imagens no tempo (ver o final

apoiada em depoimentos orais e escritos para agradar a Igreja e dentro da retórica colonial com “classificações
negativas e reducionistas do homem africano” (PINTO, p. 6) e descrevendo a rainha como selvagem, sensual,
belicista, despótica, diabólica e antropófaga. Em quinto lugar, há toda uma literatura inglesa e francesa dos séculos
XVIII e XIX chamada “negrófila” relacionada aos movimentos antiescravagistas que positivaram a imagem de
Njinga, mas dentro da chave do “bom” e do “mau selvagem” e do desconhecimento do Outro baseados nos escritos
de CAVAZZI e, por vezes, com menção a GAETA; e a chamada “literatura negrófoba” de matriz portuguesa
baseada nos escritos de CARDONEGA com visões negativas associadas à rainha Njinga à pinga, à catinga
e à mandinga. (Cf. PINTO, p. 11-16). E, em último lugar, essa literatura reverberou nas imagens que foram
produzidas de Njinga no século XIX, principalmente pelo francês Achille Déveria (1830), que se baseou nos
pintores italianos do livro de CAVAZZI, sensualizando e tornando-a exótica, e foi essa a imagem símbolo do
nacionalismo angolano (reproduzida em destaque no material didático da UNESCO); e do século XX em um
“retrato” mais verossímil produzido pelo pintor luso-angolano Albano Neves e Sousa (1967) cujo “busto da
soberana evidencia um machado de guerra ao ombro e um rosto seco de malares salientes, encoberto por um
toucado de ráfia que substitui a coroa – e que, aliás, se aproxima da kijinga tradicional –, onde sobressaem,
além dos estereótipos do nariz achatado e dos lábios grossos atribuídos à raça negra, dois olhos encovados que
parecem carregados de ódio” (PINTO, p. 17), e que não aparece na publicação da UNESCO. Aliás, várias dessas
referências são citadas a esmo e não são articuladas para o leitor incauto.

* 21 *
da nota da página anterior), restando ao leitor acreditar na memória representada como “história
ilustrada” em que o mito desenhado se consubstancia numa “estátua (do) real”:

Figura 4 – “Njinga a Mbande – Banda desenhada”, p. 38.

Figura 5 – “Estátua de Njinga a Mbande em Luanda” (inaugurada em 2003), p. 51.

Após a apresentação da “banda desenhada” diversas “ilustrações” secundam os textos da


publicação na parte denominada de “dossier pedagógico”, que nada mais é do que “o contexto
histórico” que vai desde a presença dos “Portugueses no Ndongo e a resistência” (p. 41-45), passa
pelo subtítulo “Uma governança feminina fora do comum” (p. 46-47) até chegar nas partes finais
de “Njinga, uma inesgotável fonte de inspiração” (p. 48-50) e “Njinga para lá das fronteiras”
(p. 51-53), mostrando como a rainha foi desenhada no passado e no presente por europeus

* 22 *
ou por conterrâneos; as representações religiosas nas comunidades de Afrodescendentes; uma
personagem ligada à identidade angolana, mas também como símbolo do pan-africanismo e
uma referência nas sociedades de Afrodescendentes. Não por acaso, o Brasil também se torna
uma grande referência no final da publicação mostrando que a rainha foi tema de enredo de
uma escola de samba no Carnaval do Rio de Janeiro de 2010, baseado no romance de Alberto
Mussa “O trono da Rainha Ginga” (2007) 2, e também foi tema de um filme de Octávio Bezerra
“Atabaque Nzinga” (2007) 3, ilustrado por um cartaz de sua divulgação (figura 6); além de fazer
parte do Candomblé de “religião afro-brasileira” como “senhora dos trovões” e da “tradição
brasileira na Congada” (p. 50) e na capoeira como “símbolo de resistência” (p. 52) 4, pois: “(...) A
sua memória é conhecida em diversas comunidades afrodescendentes através de histórias, lendas
e espírito de resistência que atravessaram o Atlântico com os navios negreiros. A rainha Njinga
faz parte da memória comum do mundo afro-Atlântico” (p. 52).

2
O romance O trono da Rainha Ginga do escritor brasileiro Alberto MUSSA foi publicado originalmente em
1999, mas disponho somente da edição de 2007 editado pela Record, tal como disponibilizado na bibliografia
da publicação do material didático da UNESCO. Esse romance, assim como o do escritor angolano José
Eduardo AGUALUSA A Rainha Ginga. E de como os africanos inventaram o mundo, de 2014, são as mais recentes
produções ficcionais escritas sobre o tema e foram analisados na perspectiva das epistemologias sul-sul e dos
estudos feministas africanos no artigo de Doris WIESER (2017) questionando: “De que maneira se discute
a legitimidade do trono de Njinga (na sua condição de mulher) na historiografia e na ficção? Que significado
é atribuído à sua suposta crueldade e promiscuidade? De que forma as crónicas da época e a ficção debatem a
questão teológica / filosófica do mal no mundo em relação a Njinga?” (p. 33). Cabe lembrar ainda que todas
essas representações, assim como as de PACARIVA e PEPETELA, são baseadas nas releituras das fontes de
João António CAVAZZI de Montecúccolo (1687), António de GAETA (1654?) e António de Oliveira de
CARDONEGA (1680), conforme referenciado na nota anterior.
3
De acordo com a mesma Doris WIESER (2017) há um filme angolano realizado pelo português Sérgio Graciano
intitulado Njinga, Rainha de Angola de 2013 (p. 32) que poderia ser confrontado com o de Octávio Bezerra
(2007), mas o material didático da UNESCO não propõe qualquer atividade com as narrativas fílmicas e suas
produções, circulações e usos e que são fundamentais não apenas para entender as suas relações com a memória
e o ensino de história, mas para a própria produção acadêmica e suas circulações com a história pública. Sobre
isso consultar a excelente tese de doutorado de Rodrigo de Almeida FERREIRA. Cinema, História Pública e
Educação: circularidade do conhecimento histórico em Xica da Silva (1976) e Chico Rei (1985), que embora não trate
do mesmo tema mostra como esses filmes foram produzidos no diálogo entre os campos literário, carnavalesco,
musical, turístico, historiográfico e didático.
4
No Brasil, do ponto de vista da atualização historiográfica, há produções paradidáticas e/ou voltadas à formação
de professores de ótima qualidade que tratam das religiões e outras manifestações culturais afro-brasileiras e da
História da África como é o caso do livro de SOUZA (2006) e de SERRANO; WALDMAN (2007) e que são
bem melhores do que esse material didático da UNESCO, porém, do ponto de vista do ensino de história, ainda
são muito prescritivos e hierarquizam o saber acadêmico em detrimento do saber escolar, tal como o material
didático da UNESCO, ao não levar em consideração a diversidade e historicidade das culturas escolares, as
práticas docentes e suas relações de trabalho no complexo processo de “mediação didática” e escolha axiológica
dos saberes (MONTEIRO, 2007) que torna possível o diálogo com os alunos.

* 23 *
Figura 6 – “Cartaz do filme Njinga”, p. 50.

Não se trata de criticar o material para invalidar seus resultados e tampouco despolitizar
a publicação sobre o papel das mulheres africanas na História e suas influências em outras partes
do mundo de modo a valorizar as mulheres angolanas e outras mulheres negras que construíram
uma história de luta, resistência e sobrevivência diante do “patriarcalismo” e do “racismo”, se bem
que esses conceitos não podem ser utilizados sem o devido cuidado para o contexto de Nzinga
a Mbande no século XVII com o risco de produzir anacronismos e reduções ocidentais5, mas
5
No artigo já citado de Doris WIESER (2017) a autora enfatiza que: “Partindo, por um lado, da crítica dos
feminismos pós-coloniais, cujas teóricas denunciam a necessidade de conduzir os debates feministas para
além das lutas das feministas brancas ocidentais, e, por outro, do conceito da ‘colonialidade do poder’ do
sociólogo peruano Aníbal Quijano, a filósofa argentina María Lugones (...) argumenta que também existe uma
‘colonialidade do género’ enraizada no que ela chama ‘modern/colonial gender system’. Lugones denuncia o facto
de que na modernidade capitalista e eurocêntrica todos os corpos são marcados não só pelo que é considerado
‘raça’, mas ao mesmo tempo pelo seu género, chamando a atenção para a necessidade de se ter sempre em conta
a interseccionalidade das categorias. Recorrendo a vários estudos sobre culturas indígenas, tanto na América
como na África, evidencia que o sistema social de género não necessariamente tem que ser binário, heterossexual
e patriarcal. Os estudos etnológicos que Lugones cita (...) confirmam que muitas tribos americanas pré-coloniais
eram matriarcais, conheciam a homossexualidade, e tinham um sistema de mais de dois géneros. Ainda de acordo
com a autora, em certas culturas, inclusivamente em termos de produção de conhecimento, o género não era
relevante (...). A filósofa Nkiru Nzegwu, também nascida na Nigéria, argumenta na mesma linha quando critica o
princípio de desigualdade inerente nos termos binários, ocidentais ‘homem’ e ‘mulher’. A epistemologia ocidental,
ao conceptualizar a mulher em oposição ao homem, institucionaliza a diferença de género, tornando-a a base
naturalizada para a discriminação da mulher. Portanto, é necessária atenção redobrada quando se fala de outros
contextos culturais, nos quais estas categorias não nasceram”. (p. 40; 41, respectivamente). E continua mais à
frente: “Se bem que não dispomos de informações suficientes sobre as relações de género entre os mbundu da
época da rainha Njinga, tanto os relatos da época como os estudos historiográficos recentes permitem questionar
certas afirmações, feitas com base no sistema de géneros, rígido e binário, ocidental. (...) Talvez não tenha sido

* 24 *
de analisar o modo como a memória acaba substituindo o conhecimento histórico sob a égide
do olhar na dimensão escópica que alcançou na contemporaneidade e sem precedentes com a
multiplicação dos suportes midiáticos. Para o filósofo espanhol Manuel Cruz:

(…) La historia de la cultura se ha convertido en un auténtico depósito del


que se nutren las páginas culturales de los diarios y semanarios, las editoriales
que publican libros que se venden en los quioscos para no dejar de proponer
colecciones a bajo precio, las administraciones públicas a la hora de organizar
grandes exposiciones, etc. Pero tal vez donde con más claridad se perciba la
consolidación del proceso sea en los medios audiovisuales y, en concreto, en el
lugar que ocupa en la televisión la historia de las artes. Tanto las plataformas
digitales como la televisión por cable han dado lugar a una espectacular
multiplicación de las cadenas (y a la aparición de canales temáticos), con
el consiguiente aumento de las horas de emisión. Ello está obligando, en
concreto, a que la televisión re-presente casi continuamente, como única
forma de cubrir tan desmesurada programación, toda la historia del cine.
(...) Este permanente retorno del pasado genera, por lo pronto, un primer
efecto sobre nuestra forma tradicional de relacionarnos con lo sucedido. La
memoria, con tanta repetición, va perdiendo su aura. A dicha pérdida han
contribuido otros factores, en cierto modo complementarios del anterior;
pero asimismo relevantes. El desarrollo tecnológico está permitiendo una
renovación de los suportes materiales (en vídeo a través del DVD, en música a
través de la remasterización de antiguas grabaciones, en fotografía a través de
digitalización de la imagen...) de tal manera que ha desaparecido de la concreta
realidad de los objetos toda huella temporal. Las modernas técnicas limpian de
tiempo nuestros recuerdos, lo desactivan a base de hacerlos indiferenciables de
los objetos del presente. Ese tiempo que se había posado, como una fina capa
de polvo, sobre nuestros recuerdos, cubriéndolos con una pátina de melancolía,
de pronto ha desaparecido. El soporte no deja rastro alguno de memoria. El
dictum de Yourcenar (‘el tiempo ese gran escultor’) ha sido puesto en cuestión.
(...) El alcance del cambio va mucho más allá del mero hecho de que el pasado
haya adquirido una nueva coloración: el cambio afecta, si se puede hablar así,
a su propria naturaleza. Que todo se re-presente una y otra vez, que en cierto
sentido nada desaparezca por completo impide seguir pensando en el pasado de
la misma manera que antaño. Este pasado sin pátina, sin aura, termina siendo
no un pasado-pasado (esto es, abandonado, superado), sino una modalidad,
apenas levemente anacrónica, del presente. (CRUZ, 2002, p. 20-21.)

Por isso, é imprescindível pensar na relação entre História pública e ensino de história
não apenas pela crítica da memória cujo papel é tarefa primordial do historiador, mas também
tão extraordinário que uma mulher chegasse ao trono do Ndongo; talvez o título de ngola não predispusesse
o género do seu possuidor; talvez o comportamento de Njinga não tenha sido considerado ‘viril’ pelos nativos
daquelas geografias; talvez os homens do seu harém não se sentissem humilhados pelas roupas [as quais] tinham
que vestir; talvez fosse antes uma honra e talvez estas roupas nem sequer fossem consideradas femininas; talvez a
própria categoria de ‘mulher’ seja inadequada para falar de Njinga; talvez fosse mais apropriada a referência à sua
identidade social em termos de linhagem e senioridade. São questões legítimas e urgentes” (p. 42).

* 25 *
de interpretar a historicidade e a fabricação desses suportes de memória pelos seus agentes que
tornam possíveis a sua produção, circulação e usos: o mercado editorial de livros, a imprensa diária,
periódica, escolar e educativa, as redes sociais e toda a indústria do entretenimento e do audiovisual
que podem “limpar o tempo” de nossas recordações e tornar todo passado quase que indiscernível do
presente, mas altamente atrativos para os professores de história que precisam resolver problemas
de ordem prática como o de atender normativas institucionais às quais são submetidos.

Pesquisas que estudam os impactos da Lei 10.636/2003 nas práticas dos professores
de história e seus saberes docentes vêm mostrando um panorama muito diverso e a sua difícil
execução em sala de aula que vão desde o racismo estrutural que invade as culturas escolares, a
inadequação de conteúdos e metodologias deslizando dos estereótipos à heroicização dos sujeitos
e culturas, o desconhecimento da bibliografia sobre o tema, mas sobretudo diagnosticam a pressão
de cumprir a normativa e também incômodo sobre sua obrigatoriedade em contraposição às
práticas militantes de professores negros anteriores à Lei e que julgavam mais consistentes e
não como um ato inaugural em sala de aula, embora tenha trazido um respaldo legal para a ação
docente (MAZZONE, 2014, p. 103).

As demandas do presente invadem a sala de aula, mas certas conquistas sociais podem ser
perdidas, como a referida Lei, caso não se reflita sobre qual presente e qual memória devemos
problematizar e como estabelecer um diálogo consistente com a “História pública”, os “saberes
docentes”, as “práticas sociais de referências dos alunos” (ANDRADE; ANDRADE, 2016, p.
180), bem como a “operação historiográfica escolar” (PENNA; SILVA, 2016, p. 205) que torna
possível sua existência e sua crítica.

O material em questão me deixa pouco otimista sobre os usos da memória que professores
e alunos podem fazer desse tipo de história pública para o ensino de história e que tem muito mais
apelo e sedução do que os estudos de historiadores sobre o “campo” ou das prescrições de “boas
práticas” de histórias com “autoridades compartilhadas” (FRISCH, 2016, p. 62) numa dada ilusão
de horizontalidade. Por isso, não devemos renunciar a nosso papel crítico “que deriva não de um
engajamento com a audiência, mas dos escritos derivados do engajamento” (SHOPPES, 2016,
p. 82). Nesse sentido, para quebrar o emparedamento do método instrucional de memorização
de conteúdos que persiste na escolarização contemporânea e do atual dever de memória na
história me parece central não só a crítica da memória, mas também interpretar historicamente
as suas condições de reprodutibilidade técnica por meio da análise de sua produção, circulação
e usos desses suportes da memória pelos seus agentes que a tornam transparente e “à prova do
tempo” (DOSSE, 2001).

* 26 *
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* 29 *
CINEMA E ENSINO DE HISTÓRIA: AS FICÇÕES NAS
PRESCRIÇÕES DA SÉRIE APONTAMENTOS (1986-1993)

Claudio Eduardo da Silva

Cinema e Ensino de História: os bons companheiros.

Certamente, você que está lendo esse artigo já assistiu ou passou um filme em sala de
aula, pois é muito comum ver professores utilizando a sétima arte como recurso no processo
de ensino como recurso pedagógico. Essa relação entre Cinema e Ensino é mais antiga do que
podemos imaginar, visto que, com menos três anos de existência – considerando que a primeira
exibição cinematográfica foi realizada em 28 de dezembro de 1895 na França – a sétima arte
adentrava às salas de aula. Eugène-Louis Doyen, médico francês, filmou uma de suas cirurgias e
depois a exibiu para os alunos, talvez, inaugurando aí a inserção do cinema em um meio do qual
ele nunca mais irá se desprender: o escolar.

Esse status científico do cinema está em sua gênese. Os irmão Auguste e Louis Lumière
inventaram na década de 1890 uma máquina que tirava fotografia em sequência – 24 fotogramas
– e que depois, quando reproduzidas, essas criavam a ilusão de movimento. Essa invenção, segundo
os mesmos, tinha como finalidade estudar os movimentos para complementar teses e teorias
científicas, por isso se recusam a acreditar que sua invenção fosse usada para o entretenimento:
ambos estavam enganados. Pouco tempo depois da criação dos irmãos franceses, o mágico
conterrâneo George Méliès e o estadunidense Thomas Edison, dentre outros criadores e
cientistas, já estavam usando a invenção dos irmãos Lumière para contar suas histórias. Portanto,
o cinema nasce como ciência, mas se desenvolve também como arte, como ficção.

Ao mesmo tempo que essa modalidade, intrigante e expansiva, nos traz algumas questões
quando a intenção é observar esse filme inserido dentro do espaço escolar, dentro do ensino e,
principalmente aqui, relacionado ao Ensino de História, o historiador Marc Ferro, na década de
1970, tirou o filme da esfera do mero entretenimento para transformá-lo em documento, ou seja,
o filme passa a ser observado como produto e como produtor de uma determinada sociedade,
podendo ser analisado como fonte histórica.

Intrigante, também, é pensar que dentro da relação Cinema e Ensino é preciso acautelar-
se, pois os filmes podem ter uma ambiguidade: ao mesmo tempo que informam, através de um
ponto de vista, sobre o passado, o cinema é mais ainda um retrato da sociedade que o produziu.

* 30 *
Assim como Jacques-Louis David, pintor jacobino francês, recorria às histórias da Grécia e
Roma Antiga para propagandear os ideais de Democracia, República e Igualdade entre seus
conterrâneos, os cineastas também assim o fazem. Por assim dizer é essencial, por exemplo,
entender a diferença entre um filme sobre fascismo feito na década de 1940 de um filme sobre
o mesmo tema feito nos anos 2010.

Para tanto, nosso artigo se propõe a fazer uma análise do Cinema e do Ensino de História
dentro de um panorama específico: a videoteca do Centro de Documentação e Informação para
a Educação, chamada Ceduc-vídeo. O material contém mais de mil títulos e está arquivado
no Centro de Referência em Educação Mário Covas (CREMC). É importante lembrar
que a videoteca continua em funcionamento, mas não é utilizada por conta de seu material
tecnicamente obsoleto, uma vez que é formada majoritariamente por VHSs. Desses mil vídeos,
separamos 153 que são elencados para as aulas de História.

Na videoteca cada filme vinha acompanhado de um livreto, denominado Série


Apontamentos, contendo informações e textos sobre a película, e esses materiais estavam divididos
nas seguintes seções: Ficha técnica — que contava com informações técnicas do filme, como ano
da produção, país, direção, produtora, etc.; Resumo — uma breve sinopse do filme; Indexação —
trazia os temas que a obra poderia ser trabalhada; Aspectos cinematográficos — tratava-se de uma
seção que abordava a leitura da obra como estética cinematográfica, trazendo pontos como
a fotografia, a edição, o enredo etc.; Aproximação — abordava o filme pelo viés da disciplina
indicada para que o mesmo fosse usado em sala de aula; Disciplinas indicadas — parte que
trazia uma ideia da matéria e em qual tema esse filme poderia ser trabalhado, incluindo algumas
propostas de interdisciplinaridade; e, por fim, Afinidades — sugeria para o leitor filmes e livros
que serviam de complemento para trabalhar a obra cinematográfica em sala de aula1.

É válido ressaltar que são nas seções Aspectos Cinematográficos e Aproximação onde estão
os textos que indicam nominalmente os seus autores, sendo ausente a autoria nas demais seções,
embora seja possível imaginar o realizador ou realizadora do texto por algumas palavras usadas
que conversam com as seções principais.

Esse material ainda era amparado por uma série de artigos, que inicialmente foram
impressos separados e depois compuseram a Coletânea Lições com Cinema Vol. 1, e esse mesmo
caderno teve um segundo volume com outro artigos, mas que foi lançado quando a videoteca já
se encontrava em seus últimos anos de fomento, por isso essa segunda coletânea não é citada na
Série Apontamentos, o que não torna seus textos menos importantes também.

O nosso recorte ainda tem um outro parâmetro: a Proposta Curricular para o Ensino de
História 2º Grau, impressa em 1993. O currículo em questão é o primeiro depois da criação da
Lei de Diretrizes e Bases e da descentralização dos currículos a tratar o cinema como parte
integrante do seu texto. Embora nunca tenha sido oficialmente aprovada, essa proposta circulou
nas redes de ensino, pois trazia em seu bojo a ideia de participação dos professores de maneira
democrática na formulação do currículo, além disso ela trazia também uma seção discutindo
audiovisual e Ensino de História.

* 31 *
Nesse documento encontramos 19 filmes da videoteca Ceduc. Desses 19, 4 não são
indicados para História, mas ali estão e confirmam a interdisciplinaridade do material, e os
outros 15 filmes podem ser divididos em três categorias que estão distribuídas entre a 1ª, 2ª e
3ª séries do 2º grau, são essas categorias: Documentário Televisivo, majoritariamente indicados
para a 1ª série, mas aparecendo uma vez na 2ª e 3ª séries; Documentário, majoritariamente
indicado para a 2ª série, mas aparecendo também nas outras duas; e Filmes de Ficção, indicados
exclusivamente para a 3ª série do 2º Grau.

Uma tabela facilita nosso entendimento dessa organização desses títulos:

Tabela 1 - Filme por Gênero e Série indicada na Proposta Curricular para o


Ensino de História 2º Grau versão preliminar de 1993

Título Gênero Série


1 - Mãe Terra (1987) Documentário Televisivo 1ª
2- Somos Nove Milhões (1983) Documentário 1ª
3- Ernesto Varela em Serra Pelada (1984) Documentário Televisivo 1ª
4- A Década da Destruição - Montanhas de Ouro (1987) Documentário Televisivo 1ª
5- Antônio Ribeiro Santos, Cearense, RG 674.230 (1987) Documentário 2ª
6- Libertários (1976) Documentário 2ª
7- Sobre a Origem da Riqueza (1980) Documentário 2ª
8- Getúlio Vargas (1974) Documentário 2ª
9- Lembrai-vos de 37 (sem data) Do2cumentário 2ª
10- Acidente de Trabalho (1987) Documentário 2ª
11- Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979) Documentário 2ª
12- A Sangue Frio (1989) Documentário Televisivo 2ª
13- Desaparecido - Um Grande Mistério (1982) Drama 3ª
14- Giordano Bruno (1973) Drama 3ª
15- Liberdade de Imprensa (1984) Documentário 3ª
16- Quilombo (1984) Aventura 3ª
17- A Batalha de Argel (1965) Drama 3ª
18- A Guerra dos Pelados (1970) Drama 3ª
19- A Década da Destruição: Chico Mendes “Eu Quero Viver”
Documentário Televisivo 3ª
(1987)
Fonte: Elaborado pelo autor.

Sendo esse um artigo, temos poucas páginas para discorrer sobre as inferências acerca dos
19 filmes citados. Portanto, proporemos aqui uma discussão acerca somente dos Filmes de Ficção
abordados no documento, e traremos a seguinte questão: quais são as perspectivas das prescrições
para o trabalho com os filmes de ficção, ou filmes históricos, dentro da Série Apontamentos?

* 32 *
Ficção: algo muito além da própria ficção.

Há sempre a pergunta, pertinente e necessária: qual tipo de filme devemos passar em sala
de aula? Essa resposta muitas vezes atravessa o âmbito moral, mas também encontra ecos nas
questões relacionadas ao conteúdo da película para a sua disciplina. Primeiramente, esse sendo
um artigo sobre o Ensino de História, é sempre importante salientar que: todo filme é um filme
histórico. Essa ideia basicamente reforça o que fora citado acima sobre Marc Ferro e Marcos
Napolitano. Portanto, qualquer filme de qualquer gênero, pode entrar em algum momento na
sala de aula nem que seja como fonte histórica e assim ser analisado. Basta, apenas, elaborar um
caminho e um recorte no qual seu filme se encaixe e pensar que toda obra cinematográfica sobre
o passado também tem muito de presente, e que talvez isso não possa ser deixado de lado.

Outra discussão, essa que eu já considero menos importante, é a do gênero. Delegar e


enquadrar um filme em um gênero como Drama, Comédia, Romance e Filme-histórico sempre
cria expectativas que podem trazer problemas na hora da leitura da obra na tela. O essencial é,
no mínimo, problematizar essa questão com os alunos. Por exemplo, dificilmente um aluno dos
anos 2010 sentirá medo ao assistir O Gabinete do Dr. Caligari e isso pode esvaziar o conceito de
terror e medo, assim como o filme Quilombo da nossa lista, que consta no gênero “aventura”, uma
classificação que torna-se um tanto quanto exagerada ao se ver o filme.

Outra percepção comum e que deve ser problematizada é a dos documentários e


documentários televisivos versus os filmes de ficção. Muitas vezes levamos para sala de aula os
documentários com a ideia de se tratar de um filme mais verdadeiro do que os filmes ficcionais,
mas isso não é necessariamente uma condição. Podemos fazer, por exemplo, uma pergunta:
por que fazer um documentário sobre o movimento grevista de 1917 no Brasil em 1980? As
respostas podem ser muitas dependendo do tipo de filme, mas normalmente se trata de um
retorno ao um ideal de passado que deve ser visto como exemplo no presente, mas para isso é
necessário entendermos que tanto documentarista quanto o diretor do filme de ficção fabricam
ideias e imagens para alcançarem seus objetivos: nenhum filme é feito sem propósito.

Talvez por isso nós deveríamos trazer aqui alguns pensamentos. Três autores falam sobre
documentário e ficção trazendo perspectivas que podem alavancar nossas ideias para um outro
patamar, facilitando a nossa análise. Primeiramente o cineasta russo Andrei Tarkovski. Para
ele: “[...] o documentário e a objetividade não têm lugar na arte. A única objetividade possível
é a do autor, que se torna, portanto, subjetiva, mesmo que ele esteja montando um cine-jornal”
(TARKOVSKI, 2010, p. 180). Como podemos perceber, nesse ponto Tarkovski traz a ideia de
que até o cinejornal, um gênero aclamado por sua imparcialidade e por sua veracidade inconteste
é algo subjetivo, e isso muitas vezes passa desapercebido.

Essa falta de percepção para com o diretor do filme é explicada pelo teórico franco-
brasileiro Jean-Claude Bernardet. Segundo o autor: uma das mais ilusórias facetas do cinema é
a crível ausência de autoria, como se uma frase ficasse solta no ar depois que ela fosse proferida
e ninguém soubesse de onde veio (BERNARDET, 1980, p.19-21), por isso:

* 33 *
A história do cinema é em grande parte a luta constante para manter oculto os aspectos
artificiais do cinema e para sustentar a impressão de realidade. O cinema, como toda área cultural,
é um campo de luta, e a história do cinema é também o esforço constante para denunciar este
ocultamento e fazer aparecer quem fala. (BERNARDET, 1980, p. 20).

A ilusão é, por vezes, muito mais comum em documentários do que em filmes de ficção,
justamente pelo fato de que no documentário se enraizou uma ideia de verdade que vem sendo
trazida desde muito tempo. Como exemplo temos Jonatas Serrano, historiador brasileiro que em
seus primeiros escritos acreditava que o cinema era uma possibilidade de ressurreição da história.
Cabe lembrar que o mesmo posteriormente revisou sua ideia, o que não fez com que os professores e
professoras no geral não dispusessem mais do filme como ressurreição em sala de aula.

Por fim, o pensamento de Marc Ferro sobre a questão do documentário pode nos responder
essa questão de o porquê esse gênero de filme estar com seu status de filme verdade praticamente
fossilizado entre os professores. Para Ferro uma das finalidades do documentário é:

...sua utilização para escrever a História de nosso tempo: as enquetes fílmicas que lançam
mão da memória e do testemunho oral são numerosas. O filme ajuda assim na constituição
de uma contra-história, não oficial, liberada, parcialmente, desses arquivos escritos que muitos
amiúde nada contém além da memória conservada por nossas instituições. Desempenhando
assim um papel ativo, em contraponto com a História oficial, o filme se torna um agente da
História pelo fato de contribuir para uma conscientização. (FERRO, 2010, p.10-11)

Assim, se tornou então pertinente para muitos docentes trazer à tona, através do
documentário, uma outra escrita da História, aquela que dá voz aos excluídos, aos vencidos, aos
esquecidos. Como a História é, por muitas vezes, um terreno em disputas de memórias, dentro
da sala de aula um filme documental pode cumprir muito bem esse papel.

Na Série Apontamentos, por sua vez, é assim que a maioria desses filmes aparecem.
Muitos autores das prescrições delegam ao Documentário e ao Documentário Televisivo pouca
manipulação e fabricação dos fatos e muito da ideia de resistência. Das prescrições selecionadas
na minha dissertação de mestrado intitulada Entre Prescrições e Lições: As Perspectivas da Série
Apontamentos para o Ensino de História no Estado de São Paulo (1986-1993), defendida em 2020,
somente um texto sobre documentários enfatizava o ponto de vista do diretor, assim como a data
da produção, demonstrando como as informações do filme estavam descoladas da realidade na
qual a videoteca estava sendo elaborada.

No caso se trata da prescrição concernente ao filme Sobre a Origem da Riqueza, de Peter


Overbeck, na qual o autor José Roberto Martins Ferreira3 faz um apontamento essencial: “a
relação capital-trabalho; a distribuição de riqueza de um ponto de vista marxista” (SÃO PAULO,
SD, nº 251)4. Ou seja, nesse quesito temos claramente uma ideia de orientação política do diretor
e é isso que vai guiar a perspectiva do filme sobre o sistema capitalista e as relações de trabalho.

Se os documentários e documentários televisivos trazem e guardam suas reflexões, a


ficção também o faz. Mas temos que pensar de maneira bastante abrangente para entender

* 34 *
o que isso pode significar dentro da ideia do Ensino de História. Primeiramente proponho a
reflexão básica acerca da ideia do filme-histórico, ou, aquele filme baseado em fatos reais. Ao se
deparar com as duas obras é de praxe termos a percepção de que se trata de filmes que trazem
a verdade, independentes de sua abordagem ou não. Isso exige um certo grau de cautela, pois
se os documentários estão sujeitos à subjetividade de seus diretores e diretoras, a ficção está
ainda mais, portanto conhecer o diretor, seu movimento cinematográfico, origem e pensamento
político traz revelações que facilitam a leitura e o entendimento da obra.

Em um artigo sobre seu livro homônimo O Conceito de Ficção, o ensaísta argentino Juan José
Saer discute que a ficção não se trata de uma reivindicação do falso, mas sim que é uma multiplicidade
de tratamento do acontecido, assim como também diz que uma biografia, por exemplo, não é
necessariamente a realidade completa e sem suas linhas. Portanto, se biografia e ficção se confundem,
filme histórico e ficção também podem ter essa mesma relação (SAER, 2012, p.1-6).

Portanto, podemos pensar ficção como um gênero no qual prevalece uma ideia prévia de
falseamento, mas que ao fim é possível também pensar a ficção como algo que se coloca como
uma forma de reelaborar uma ideia sobre o passado. Aqui temos duas formas de ver esses filmes.
Marc Ferro aponta: “[...] mesmo controlado, um filme testemunha” (FERRO, 1993, p. 31);
já Robert A. Rosenstone nos serve de complemento: “... os filmes históricos, mesmo quando
sabemos que são representações fantasiosas ou ideológicas, afetam a maneira como vemos o
passado” (ROSENSTONE, 2015, p. 18).

Assim como vemos, as tratativas acima justificam as formas de pensar acerca dos filmes
de ficção que serão aqui colocados, uma vez que, como parte integrante da representação de
um certo contexto histórico ou biográfico, não se tratam necessariamente detentores de uma
verdade, mas também que como filmes históricos trazem seus testemunhos e visões do passado,
e por isso têm sua importância.

Entre os muros da escola: o cinema de ficção na sala de aula.

Antes de trazer qualquer análise das prescrições é preciso lembrar de um aspecto essencial
e principal do cinema, aquilo que o faz ser uma arte diferente dentre todas as artes: cinema
é ilusão. Cinema é ilusão em dois aspectos, no mínimo. Primeiramente a própria noção de
movimento do cinema não passa de trucagem, pois 24 quadros sequenciais rodados em um
segundo dão aos nossos olhos a noção de movimento. Outra questão de valor é a noção de
ausência de autoria. De acordo com Bernardet (1980, p.20-21), para o espectador a construção
das imagens de um filme, muitas vezes, se demonstram libertas de um autor, assim Bernardet
imagina: “[...] suponhamos que [...] a pessoa que fala sumisse e que a frase ficasse solta [...]”
(BERNARDET, 1980, p. 19).

Por essas questões muitas vezes o filme passa por um filtro que aparenta lhe dar isenção
acerca dos fatos. Isso porque o cinema é uma arte que produz verossimilhança, aquilo que
confundimos com verdade, mas que, de acordo com Antônio Candido:

* 35 *
...isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo
que poderia ter acontecido; ou a coerência interna no que tange ao mundo imaginário das
personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão profunda — de ordem filosófica, psicológica
ou sociológica — da realidade. (CANDIDO et ali, 1968, p. 18)

Uma vez como parte dessa ideia daquilo que podemos chamar de arte da realidade, o
cinema, dentro da História, se viu, a partir da década de 1970, alçado ao status de documento:
os filmes passaram, já no começo do século XX, a construir a imagem dos Estados nacionais,
e reis, rainhas, chefes de Estado tiveram suas imagens edificadas pelo cinema. No entanto, ao
mesmo tempo, o filme também teve o papel oposto de destruir aquilo que Estados passaram
anos erguendo (FERRO, 2010, p. 15-21).

Levando em consideração o espaço escolar, vamos aqui com três possíveis formas de
olhar esses documentos elaboradas por Circe Bittencourt. Para ela:

...cabe ainda indagar que trabalho os professores têm efetivamente realizado


com a linguagem cinematográfica: usam-na como ilustração de um tema?
Trabalham com os alunos como se os filmes fossem “ressurreições históricas”,
ou são apenas considerados, e portanto, analisados como veículos da ideologia
dominante? (BITTENCOURT, 2009, p. 372).

Porém é preciso considerar nesse escopo de análise a ideia de “contradocumento” elaborada


por Elias Tomé Saliba, bebendo na teoria de Jacques Le Goff de “documento monumento”.
Saliba aponta:

O que transforma o documento em monumento é, no fim das contas, a sua


utilização pelo poder; não existem, a rigor, documentos ou “registros puros” – são
as perguntas que fazemos ao documento que o transformam em tal condição,
ou seja, tudo depende da nossa construção, da forma como recortamos nosso
objeto. Isto pode ser talvez ainda mais válido no caso do material fílmico, que
trabalha com imagens capazes de provocar um efeito de realidade quem sabe
mais ou menos forte, mas certamente desconhecido nos signos verbais.

Diretas Ontem* (1985), da Associação Brasileira de Vídeo Popular – ABVP –,


montagem realizada com direção coletiva, ao contrário do Imagens1 ... *, já
trabalha com o que poderíamos chamar de “contradocumentos” ou (nos
termos da distinção anterior) com a crítica dos monumentos, possuindo um
aspecto externo à sua produção, talvez mais importante ou decisivo do que sua
qualidade técnica. A montagem foi realizada quase que somente com cenas de
São Paulo, compondo seqüências bastante limitadas e repetidas até à exaustão.
Este aspecto, por si mesmo, é revelador, pois sintomático da atitude ambígua
da cobertura jornalística da campanha das “Diretas Já”, quase sempre omissa,
principalmente por parte das grandes redes de TV. A repetição exaustiva das

1
A citação de Saliba se refere ao filme Imagens do Brasil República que consta na videoteca como nº 49, porém na
prescrição não consta data da produção. De acordo com o resumo, feito pelo próprio, Elias Thomé Saliba, trata-se
de uma obra

* 36 *
imagens foi, parece, o único caminho encontrado para suprir a falta das imagens
“televisivas” – mostrando, indiretamente, como os media, no caso específico a
televisão, trabalharam para empobrecer a dimensão do fato, ignorando-o e, no
limite, chegando a negar a própria existência do evento. (SALIBA, 1993, p. 97).

Portanto, ilustração, “ressurreição histórica”, veículo das elites dominantes ou


“contradocumento” são as possibilidades de análise que teremos aqui, essas formas das quais as
prescrições podem nos trazer os filmes, mas é preciso atentar o leitor que essas formas podem
ser articuladas entre si na mesma prescrição, algumas vezes podendo até se contradizer, uma vez
que os materiais são escritos algumas vezes por dois ou até três autores.

Antes de mais nada é preciso lembrar que as prescrições são no geral uma forma de
ensinar pessoas a usarem algo. Como uma espécie de instrução a prescrição diz o que deve ser
feito e como determinado objeto seja usado. Embora os elaboradores da Série Apontamentos
reneguem o caráter prescritivo do seu material, a liberdade de atuar dos autores e autoras também
contribuiu para isso. A Série tinha uma diretriz, mas não aderiu a um controle rígido do que
deveria ser escrito nas prescrições.

Sendo assim, da mesma forma que o filme não é isento e seu diretor, portanto autor, não
está ausente, a prescrição funciona da mesma forma. A seguir temos uma tabela com os nossos
filmes selecionados e os autores das suas prescrições assim como a formação dos mesmos.

Tabela 2- Filme por autor e formação de acordo com a prescrição

Título Autor 1/ Formação Autor 2/Formação 5


Autor 3/Formação

Victória B. Della Coletta


Fernão Ramos - Bacharel em Ciências
- Bacharela em História
Sociais pela USP; mestre em Sociolo-
pela PUC/SP; bacha-
gia pela Universidade de Paris e doutor
rela em Geografia; foi
1- Desaparecido - Um pela ECA/USP; foi assessor cultural e
professora secundária;
Grande Mistério crítico dos jornais Folha de S. Paulo e O
atualmente é diretora
Estado de S. Paulo; organizador e autor
administrativa da FVV
de História do Cinema Brasileiro, pela
Comunicação Empre-
Art Editora.
sarial e Marketing Ltda.

Luiz Nazário - Historiador e crítico


de Cinema; atualmente integra a equi-
pe de críticos da revista Set, colabora
no jornal O Estado de S. Paulo e na
revista Atlante e doutora-se em Cine-
2- Giordano Bruno
ma na Alemanha; autor de O Cinema
Industrial Americano e À Margem do
Cinema, ambos pela Nova Stella (SP);
e de Pasolini: Orfeu na Sociedade In-
dustrial, pela Brasiliense (SP).

* 37 *
Victória B. Della Co-
letta - Bacharela em
História pela PUC/SP;
Ricardo Picchiarini - Graduado em bacharela em Geogra-
Cinema pela USP; tem experiência fia; foi professora se-
3 - Quilombo como roteirista, diretor de fotografia, cundária; atualmente é
produção e som em vários curtas-me- diretora administrativa
tragens. da FVV Comunicação
Empresarial e Marke-
ting Ltda. Bacharela
História /PUC-SP

Katia Gerab - Bacha-


rela e licenciada em
História pela USP; Maria Angélica Re-
mestranda na área de sende - Bacharela e
Antônio Carlos Gonçalves - Formado
História Social pela licenciada em História
em Comunicação Social pela PUC/
USP; foi professora da pela USP; pós-gra-
SP; tem curso específico de Cinema;
4 - A Batalha de Rede Pública Estadual duanda em História
autor de reportagens e críticas cinema-
Argel e da Universidade Fe- da América Latina na
tográficas para a Folha de S. Paulo, para
deral de Ouro Preto; USP; autora de A Re-
a revista Nueva Espanha Internacional
autora de A Rebelião de belião de Túpac Amaru,
e para Leia Livros.
Túpac Amaru, com Ma- com Katia Gerab, pela
ria Angélica Campos Brasiliense (SP).
Resende, pela Brasi-
liense (SP).

Elias Thomé Saliba -


Bacharel e licenciado
em História e doutor
em História Social pela
USP; assessor editorial
e colaborador do su-
Ricardo Picchiarini - Graduado em plemento Cultura de
Cinema pela USP; tem experiência O Estado de S. Paulo;
5- A Guerra dos
como roteirista, diretor de fotografia, professor da USP; au-
Pelados
produção e som em vários curtas-me- tor de Idéias Econômicas
tragens. de Cincinato Braga, pela
Fundação Casa de Rui
Barbosa (RJ), e de Uto-
pias Românticas, pela
Brasiliense (SP); é co-
laborador de inúmeros
periódicos.

Fonte: Elaborado pelo autor.

A diversidade da Série Apontamentos é notada na formação dos prescritores. Nesse caso


mais específico dos filmes ficcionais que constam na Proposta de 1993 percebemos que há
sempre a análise de um especialista em cinema embora nem sempre haja o ponto de vista de um
historiador. Porém isso não significa que há um distanciamento da noção de História quando o
filme é tratado apenas por um especialista em cinema ou comunicação.

* 38 *
Outro dado importante trata sobre o contexto Histórico de produção, temática dos
filmes e contexto histórico da escolha dos mesmos. Todos esses filmes, e isso será tratado em
cada caso, foram produzidos dentro de contextos políticos onde eram muito marcantes as
relações de repressão e resistência, por isso em todos o tema da resistência é figura central, além
disso a videoteca Ceduc foi elaborada a partir de professores que viveram com intensidade o
chamado período da redemocratização e da elaboração da Constituição de 1988, conhecida
como Constituição Cidadã, por isso muitos deles também tocam nas questões da minorias, da
cidadania e dos direitos humanos, afinal o Brasil havia terminado há pouco o seu processo de
distensão “lenta, gradual e segura” da Ditadura civil-militar.

Na seção indexação dessas prescrições podemos ver essas relações de repressão e


resistência expressas em termos como: “coronelismo”, “inquisição”, “Igreja”, “ditadura”,
“militarismo”, “intervencionismo”, “escravidão”, “colonialismo”, “liberdade de expressão”,
“comunidade”, “religiosidade”, “messianismo”, “resistência popular” e “terrorismo”. Essa
última expressão usada no filme A Batalha de Argel traz significado que serve tanto para o
contexto da resistência quanto da repressão.

Doravante essas considerações iniciaremos a análise da prescrição do primeiro filme da


lista: Desaparecido – Um Grande Mistério. A obra foi finalizada no ano de 1982 e é uma adaptação
do livro The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice de Thomas Hauser. A prescrição
é realizada por Fernão Ramos e Victória B. Della Coletta, ambos com suas formações expressas
na tabela 2. Na seção resumo temos uma menção à questão de que o filme é uma adaptação e
também uma indicação dizendo que no filme “há cenas de violência”.

Na seção Aspectos Cinematográf icos, o sociólogo Fernão Ramos iniciará sua análise
partindo da carreira do diretor, o franco-grego Constantin Costa-Gravas. O texto vai em
direção ao padrão estético criado pelo diretor assim como suas intenções políticas, o que
é marcante em seus filmes, mesmo que esse diretor tenha passado por duras críticas uma
vez que o conteúdo de seus filmes é mais político do que as formas do mesmo. Percebemos
que Ramos reconhece a existência de uma autoria e uma influência do diretor na história: o
filme não se desdobrará como uma palavra solta.

Nas linhas seguintes da prescrição o autor resolve dar cabo à ideia de que o filme não
se trata de uma “ressurreição histórica”, por isso já informa que a Ditadura Chilena é apenas
pano de fundo para uma outra história, que denomina ser “um drama humanista”, e assim faz
a seguinte menção ao filme: “é um filme político, embora este conteúdo não esteja no centro de
suas preocupações políticas” (SÃO PAULO, SD, nº 88)6. Assim alude ao conflito de gerações
que aparece no filme em relação aos personagens Ruth, namorada de Charlie que desapareceu e
ao personagem do pai, Edmond, que procura o seu filho, alertando para uma falta de perspectiva
chilena sobre o golpe, uma vez que esses personagens citados são estadunidenses.

Nesse sentido podemos considerar que a perspectiva de Fernão Ramos assume que o
filme é uma ficção, que do ponto de vista da militância do diretor talvez elabore a questão
chilena se tornando um “contradocumento”, mas que também serve como ilustração do tema.

* 39 *
A seção Aproximação tem o objetivo de trazer relações entre o conteúdo do filme e as
disciplinas indicadas, por isso se espera que essa análise justifique porquê e para que essa película
deve ser passada em sala de aula, porém uma análise desconsiderando alguns aspectos como
o contexto de produção da obra e o ponto de vista político ideológico do diretor pode trazer
alguns problemas para o professor ou professora ao envolver essa obra no cotidiano dos alunos.

Nesse sentido, a análise feita pela historiadora Victória B. Della Coletta busca um
diálogo com a de Fernão Ramos. A autora traz essa ideia de conflitos de geração explicitando
que basicamente esse é o tom da obra: a dicotomia de pensamento entre Ruth e Edmond. Assim
como perceberemos no trecho a seguir:

Charlie e Beth são o típico casal idealista, romântico e ingênuo, característico


do final da década de 60 e início dos anos 70, certamente influenciados
pelo movimento hippie, pela luta pacifista contra a guerra do Vietnã, pela
“revolução” de maio de 1968 na França, quando os estudantes aliados a setores
de vanguarda do movimento operário colocaram em xeque as estruturas de
poder no país (SÃO PAULO, SD, nº 88).

Essa descrição dos personagens é uma demonstração do caráter ideológico, mas também
maniqueísta do filme uma vez em que divide os grupos dos bons, os apoiadores do socialismo
de Salvador Allende, contra os maus, aqueles que não compactuam com as ideias antes do
golpe. Porém as semelhanças com a leitura de Ramos sobre o filme vão até aí. Coletta traz uma
perspectiva de que a obra é uma ilustração, mas também se trata de uma “ressurreição histórica”,
assim como vemos no trecho a seguir:

Os primeiros dias do golpe no Chile foram perfeitamente focalizados por


Costa-Gravas, que não esqueceu nem o detalhe dos cadáveres de prisioneiros
políticos que flutuavam sobre o Mapocho, um rio que cruza a cidade de
Santiago. Milhares de presos, como bem mostra o filme, foram conduzidos
ao Estádio Nacional de Santiago (um estádio esportivo), pois não havia mais
lugares – nas prisões para tanta gente. (SÃO PAULO, SD, nº 34).

Ao trazer para o destaque o acontecimento de 1973 a autora trata o filme como se ele
tivesse o poder de trazer o passado de volta à tela “exatamente assim como foi”. Mesmo sabendo
dessa impossibilidade parece estarmos diante daquilo que um dia o historiador brasileiro Johnatas
Serrano escreveu, que o cinema alcançou o máximo de uma utopia da ressurreição histórica.

Giordano Bruno, de 1973 e dirigido por Giuliano Motaldo, é o segundo filme da nossa
lista. Embora somente com Luiz Nazário realizando essa prescrição, temos aqui um especialista
em História e crítico cinematográfico, o que pode nos trazer uma contemplação completa da
obra, afinal, o autor em questão escreve as duas seções: Aspectos Cinematográficos e Aproximação.

No princípio de sua análise na seção Resumo, Nazário já traz uma especificação preciosa
que conversa com aquilo que Saer propôs. A obra é “um drama que reconstitui ficcionalmente
o processo de condenação do filósofo e escritor Giordano Bruno, com uma exposição quase

* 40 *
didática dos mecanismos ideológicos que pautaram a atuação da inquisição papal” (SÃO
PAULO, SD, nº 34). Isso permite o entendimento de que o filme pode ser direcionado inclusive
ao público leigo em História.

Na seção Aspectos Cinematográf icos temos um ponto de contato com o texto de


Desaparecido – um grande mistério. Luiz Nazário faz uma breve história do cinema político
italiano dos anos 60 e 70 a fim de localizar ideologicamente e historicamente o filme, e a
indicação política passa pelo ator que interpreta Giordano Bruno, Gian Maria Volonté, ator
participante de vários filmes da esquerda italiana. A seção termina com uma sinopse do
filme, mas sem tocar nos aspectos que pretendemos observar.

Na seção Aproximação o trabalho de Luiz Nazário vai de encontro àquilo que


chamamos de ilustração. O autor não dá muita ênfase à estética cinematográfica da obra e
escreve muito a história de Giordano Bruno se concentrando na tortura e na condenação
do personagem. Essa forma de trazer o filme como uma ilustração de um período pode
nos remeter a um recado que fala muito do Brasil de 1973, onde a Ditadura Civil- Militar
ganhava mais um ano e caçava seus opositores.

O primeiro filme brasileiro da nossa seleção é Quilombo, o filme produzido em 1984 e


dirigido por Cacá Diégues. A obra foi uma das mais caras do cinema nacional da época e pode
ser considerada uma superprodução. Na sua prescrição temos Ricardo Picchiarini, escrevendo
os Aspectos Cinematográficos; e novamente Victória B. Della Coletta com o texto da Aproximação.

Em Aspectos Cinematográficos, Picchiarini inicia um retrospecto da carreira de Cacá


Diégues e da produção do filme, ressaltando que um membro da equipe de Quilombo, Jorge
Duran, já trabalhou com o diretor Costa-Gravas, por exemplo. Além disso é mencionado que
dois livros foram usados como base para o filme, são eles: Palmares, guerra dos escravos, de Décio
Freitas; e o romance Ganga Zumba de João Felício.

A análise de Picchiarini aborda muito o aspecto religioso abordado no filme, partindo


de aspectos que envolvem aquilo que é mostrado pela câmera e a música que acompanha as
imagens. Predominam também as características técnicas do filme, como podemos ver no trecho:

Na cena de transição para o domínio de Zumbi, as características da nova fase


travam uma luta bastante coreografada com as que estão para cair. Quando
Ganga Zumba está tentando convencer os habitantes de Palmares a aceitarem
a paz com os brancos, tudo é euforia, as pessoas se mexem inquietas, a fotografia
é bastante clara e viva e muitos cortes são feitos. A partir do momento em que
Zumbi intervém, a figuração se cala, o silêncio é tenso e grande, a iluminação
se torna mais escura e fosca. (SÃO PAULO, SD, nº 90).

Portanto, nem “ressurreição histórica”, nem ilustração, muito menos veículo das elites
dominantes, o filme de Cacá Diégues é um “contradocumento”, pois se trata de uma representação
cultural do Brasil, especificamente de um grupo minoritário. O próprio diretor mencionou em
um documentário sobre sua carreira dirigido por Hermes Leal: Quilombo não é um filme sobre
o que foi, mas sobre o que está por vir.

* 41 *
Victória B. Della Coletta escreve seu texto sobre Quilombo no sentido de abordar
escravidão e resistência. Também são abordadas questões historiográficas relacionadas ao
caráter autoritário e monárquico do Quilombo dos Palmares: “a forma autoritária de governo,
entrevista no filme, tem caráter autoritário, seguramente herdado da África” (SÃO PAULO, SD,
nº 90). Em outro trecho, uma busca pela verdade histórica, onde o filme contradiz aquilo que foi
engendrado pela história oficial:

Uma lenda surgiu desse episódio: a de que Zumbi ter-se-ia atirado de um


despenhadeiro ao reconhecer a derrota. Entretanto, como mostra o filme,
Zumbi, traído por um mulato que fora torturado pelos portugueses, é atacado
em seu esconderijo por uma coluna de paulistas e resiste com seus homens
até ser morto por André Furtado de Mendonça, que depois se gabaria
enormemente desse feito (SÃO PAULO, SD, nº 90).

Aqui vemos um apontamento que, por si só, caminha para dois lados. Primeiramente as
ideias de Coletta acompanham Picchiarini ao trazer aspectos de um “contradocumento”, mas por
outro lado a autora traz algumas colocações que fazem da película uma “ressurreição histórica”, e
os aspectos históricos do filme são sempre tratados como fatos, poucas vezes como cenas.

Um trio formado pelo especialista em cinema Antônio Carlos Gonçalves e as historiadoras


Maria Angélica Campos Resende e Katia Gerab escreveram a prescrição do filme A Batalha de
Argel, lançado em 1965 e dirigido por Gilo Pontecorvo.

Assim como nas prescrições citadas anteriormente, Gonçalves dá início ao seu texto, na
seção Aspectos Cinematográficos, falando da ideologia política do diretor: “o cinema de Pontecorvo
tem uma forte afinidade com as questões sociais e políticas” (SÃO PAULO, SD, Nº 45). Ainda
comenta a censura que o filme sofreu na França, somente sendo liberado quase dez anos depois.
O autor também aponta para a questão do contexto histórico que envolve a produção, assim:

O substrato do filme é o imperativo histórico do momento. O colonialismo


já estava com os dias contados ao final da Segunda Guerra. A Europa se via
compelida a abandonar seus domínios africanos e asiáticos, em tempos de reação
violenta. A Batalha de Argel é a radiografia de uma etapa terminal do colonialismo
do século XX, de um inevitável e irreversível fim. (SÃO PAULO, SD, nº 45).

Vários elementos do texto de Gonçalves deixam claro que, para ele, Pontecorvo buscou
realizar uma obra de arte mesmo e não um retrato da realidade, inclusive dizendo que o trabalho do
diretor foi um processo de reconstrução dos momentos que envolvem o domínio francês da Argélia.
Antônio Carlos Gonçalves também não abre mão do vocabulário cinematográfico para expressar a
ação de Gillo Pontecorvo e seu controle sobre o que quer narrar, onde a violência dos atos tanto do
Estado francês quanto do movimento de libertação argelino fazem vítimas entre os civis.

Por esses aspectos podemos considerar que a análise de Gonçalves parte no sentido de
que o filme é um “contradocumento”, assim como o mesmo chama de “obra-manifesto” com o
cineasta fugindo da visão oficial dos fatos.

* 42 *
Gerab e Resende vêm com a seção Aproximação. Lançando mão de citar Albert Camus e
Frantz Fanon, as autoras vão delinear o momento histórico que o filme trata. Principalmente com
Camus, apontam que a violência é maligna independentemente do lado, inclusive atrapalhando
os argelinos revolucionários. Embora em algumas partes da análise as autoras tragam noções
que levam a entender que o filme se pretende como ilustração, majoritariamente o texto
aborda, em acordo com Gonçalves, a noção de que A Batalha de Argel é um “contradocumento”
principalmente voltado contra o Estado Francês colonizador da Argélia.

Na última prescrição analisada nesse artigo temos a volta de Ricardo Picchiarini em


dupla com Elias Thomé Saliba, elaborador da ideia de “contradocumento”. Trata-se do filme
Guerra dos Pelados dirigido por Sylvio Back e concluído em 1970. A seção Resumo indica que
a obra se trata de uma adaptação do livro Geração do Deserto de Guildo Wilmar Sassi, onde é
elaborada uma breve relação entre literatura e cinema.

Em Aspectos Cinematográficos, Picchiarini dá o tom de Guerra dos Pelados explicando o


movimento cinematográfico que ocorreu no Brasil e ficou conhecido como Cinema Novo. Porém
Picchiarini não aborda nada da obra em si e seu texto funciona apenas como uma base teórica
que será trabalhada por Saliba.

Em Aproximação, o historiador Elias Thomé Saliba entra em cena para trazer suas
impressões sobre o filme, e suas palavras são diretas em acordo com o que aqui pretendemos:

Observe-se, em primeiro lugar, que o filme se inspira no romance Geração


do Deserto, de Guido Wilmar Sassi e que, portanto, como ficção, não tem
compromisso de ser fiel aos fatos e personagens do Movimento do Contestado.
Ainda assim, o filme trata talvez de um dos episódios mais sangrentos do
movimento [...] (SÃO PAULO, SD, nº 179).

A ausência de fidelidade com os acontecimentos relatados pelo autor, portanto, nos fazem
excluir a ideia de “ressurreição do passado”, o que não significa que esse não sirva de ilustração, uma
vez que a obra se encaixa no contexto de várias rebeliões que aconteceram no início da República.

Considerações finais: todo filme tem um final aberto.

O Cinema e o Ensino de História sempre caminharam juntos. Vimos que desde os


primórdios do surgimento da sétima arte, o seu potencial educacional sempre foi explorado.
Nesse sentido diversos governos e docentes fizeram esforços para inserir o cinema em sala de
aula e fazer o seu proveito, seja como veículo da classe dominante para reforçar aquilo que a
história oficial já inculcou na cabeça das pessoas, seja como forma de reescrever a história como
“contradocumento” para usar o termo de Elias Thomé Saliba.

Vimos nas páginas acima algumas chaves de leitura possíveis para o cinema em sala de
aula, mas sempre ressaltando que muitas dessas formas de se abordar as películas dentro do
processo de ensino muitas vezes são criticadas uma vez que esvaziam das obras o seu caráter de

* 43 *
arte e de documento, lhe conferindo uma dimensão de “ressurreição histórica” essa a qual, por
muitas vezes, o diretor ou as diretoras nunca tiveram intenção de fazer das suas obras. Portanto,
essas formas de leitura requerem cautela, pois o filme, muitas vezes, também faz uma imagem
do passado que é difícil de desfazer.

Notas

1
Nem todas as prescrições da série possuem essa organização, essa sequência é a mais completa encontrada, e a
menos completa são de filmes que somente tem as seções: Ficha Técnica, Resumo e Indexação.
2
O filme aparece sem data na prescrição, mas de acordo com o acervo da Universidade Federal Fluminense (UFF)
foi concluído em 1987.
3
José Roberto Martins Ferreira - Bacharel e licenciado em História pela PUC/RJ; mestre em Ciências Sociais pela
PUC/SP; doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp; autor de coleção de livros didáticos para Editora FTD;
professor de Teoria Sociológica Contemporânea da PUC/SP.
4
Essa forma de referência foi criada na dissertação para citar as prescrições. Como os livretos não continham data
de impressão ou publicação, página, e eram diversos autores, optamos por colocar São Paulo como responsável e
o nº do livreto.
5
A formação acadêmica dos autores e autoras das prescrições condiz com aquilo que está colocado no próprio
material da Série Apontamentos elaborado no final da década de 1980 e começo da década de 1990, portanto
pode não condizer com a atual carreira do prescritor.
6
Na ausência de informações para compor uma citação mais adequada optamos pela ordem do estado responsável
pelas prescrições, sem data uma vez que não menção a esse caso na prescrição e o número do filme na videoteca,
para acessar o material acesse o acervo virtual do Centro de Referência Educacional Mario Covas em http://
infoprisma.fde.sp.gov.br

Bibliografia

BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema? 4. ed. São Paulo, Sp: Brasiliense, 1981.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2. ed.


São Paulo: Cortez, 2008. (Coleção docência em formação, Ensino Fundamental).

CANDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.

FERRO, Marc. Cinema e história. Trad. Flavia Cristina S. Nascimento. 2. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2010.

ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

SAER, Juan José. O Conceito de Ficção. Revista FronteiraZ, São Paulo, v. 0, n. 8, p. 1-6, jul. 2012.

SALIBA, Elias Thomé. A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narrativa fílmica.
In: Coletânea lições com cinema/ Marília da Silva Franco [et al.]; Antônio Rebouças Falcão e
Cristina Bruzzo, coordenadores. São Paulo: FDE, 1993. p. 87-107.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

* 44 *
Fontes

SÃO PAULO, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. A Batalha de Argel. Série


Apontamentos, SD, sp.

SÃO PAULO, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. A Guerra dos Pelados. Série
Apontamentos, SD, sp.

SÃO PAULO, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Desaparecido - um Grande


Mistério. Série Apontamentos, SD, sp.

SÃO PAULO, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Giordano Bruno. Série


Apontamentos, SD, sp.

SÃO PAULO, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Quilombo. Série


Apontamentos, SD, sp.

* 45 *
HISTÓRIA, MEMÓRIA E ENSINO: UMA ANÁLISE DOS
FILMES BATISMO DE SANGUE E O ANO EM
QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS.

Cristal Guerra Donatti

1. O cinema como espaço de memória.

Afim de propor uma aproximação entre o Cinema e a História, este artigo parte da
análise de dois filmes de cunho históricos que trazem consigo a temática da Ditadura Civil
Militar no Brasil. O primeiro é o filme Batismo de Sangue de Hevécio Ratton e o segundo, O ano
em que meus pais saíram de férias de Cao Hamburger.

Ambos os filmes foram analisados na dissertação defendida no Programa de Pós


Graduação em Ensino de História da Unifesp, dessa forma esse artigo é fruto da conclusão
desta pesquisa. Proponho reflexões e pontuações acerca das representações fílmicas que foram
realizadas nos filmes e sua relação com a memória e o ensino de história.

As discussões teóricas acerca do cinema como objeto de estudo da historiografia já estão


bem consolidadas, e cabe destacar aqui a perspectiva de Kellner (2001) a respeito da questão da
cultura da mídia em que o autor afirma que os textos das culturas da mídia não são apenas simples
veículos de uma ideologia dominante, nem apenas entretenimento, ao contrário, são produções
complexas que incorporam discursos sociais e políticos, cuja análise e interpretação exigem métodos
de leitura crítica capazes de articular sua inserção na economia, política, nas relações sociais e no
meio político em que são criadas, veiculadas e recebidas (KELLNER, 2001, p.13).

O autor indica que os filmes são parte da cultura da mídia, por isso são estratégias
ideológicas, ou seja, sistema de dominação. Nesse sentido, ocorre pela cultura da mídia a
transcodificação de posições dentro das lutas políticas existentes. Por exemplo, a masculinidade,
raça e poder são construídos por meio da indústria do cinema em seus gêneros e subgêneros.
Portanto, existiria uma ideologia fílmica que empregaria posições políticas, de modo que as
ferramentas cinematográficas transcodificariam os discursos sociais e reproduziriam efeitos
ideológicos, por meio de figuras, códigos, imagens, aparatos técnicos (KELLNER, 2001).

Portanto, um estudo cultural crítico não este apenas interessado em fazer


leituras inteligentes de textos culturais, mas também em tecer uma crítica

* 46 *
das estruturas e das práticas de dominação, dando impulso a forças de
resistência e de luta por uma sociedade mais democrática e igualitária
(KELLNER, 2001, p. 126).

O cinema visto como documento histórico possui características que possibilitam a


manipulação do seu conteúdo e de sua representação, o que muitas vezes não é perceptível ao
espectador, porém ao analisá-lo é possível identificar processos de recortes do conteúdo. A opção
de usar alguns elementos e não outros no filme implica dizer que ele é uma construção social
de um determinado tempo e grupo, mostrando que a subjetividade do autor faz parte da obra.
(NAPOLITANO, 2008, p. 247)

Sendo assim o cinema traz consigo uma representação que parte de uma realidade
histórica, de modo que em seu âmbito se faz uma construção memorialística desses eventos
históricos, gerando disputas pelos discursos narrados.

Atualmente, vemos uma abundância enorme em relação aos usos do passado, pensar
os usos e abusos da memória, nas significações do passado. Rousso (2014) afirma que dessa
movimentação surge novos regimes de historicidade.

As significações do passado em relação ao presente ganham espaço e se tornam cada


vez mais comum, o que gera um desconhecimento do critério e método utilizados na pesquisa
histórica, que por sua vez difere da memória, que parte das lembranças individuais e coletivas.
Aqui o interesse não é em excluir a memória, mas sim debatê-la a fim de se reconhecer as
diferenças existente entre História e Memória.

Nesse sentindo o filme com sua linguagem própria é produto e produtor de futuras
memórias. Enquanto elemento da cultura da mídia o filme comunica os discursos inseridos
na sua narrativa.

Os filmes Batismo de Sangue e O ano em que meus pais saíram de férias retratam aspectos
da Ditadura Civil Militar do Brasil que ocorreu de 1964 a 1985. O Brasil vivenciou anos sem
democracia, ausência de direitos individuais como liberdade de expressão, censura, tortura e
prisões arbitrárias.

O primeiro filme, dirigido por Helvécio Ratton, de 2006, baseado no livro homônimo de
Frei Beto, conta a história dos padres dominicanos que se juntaram ao militante Carlos Mariguela,
líder do grupo guerrilheiro ANL, em apoio à resistência à Ditadura na década de 1970.

O segundo filme, dirigido por Cao Hamburger, também produzido em 2006, conta a
história do garoto Mauro que tem sua vida transformada devido à perseguição dos seus pais pela
Ditadura. O menino então tem que ficar com seu avô, contudo o mesmo morre e ele passa a ser
cuidado por um judeu. Longe dos pais, Mauro passa por uma série de conturbações da adolescência.

Em ambos os filmes é perceptível uma representação social na qual Aumont (2002)


aponta como um dos elementos do discurso cinematográfico, pois apresenta visões da sociedade
ditatorial anos após esse acontecimento.

* 47 *
No filme de Cao Hamburger, essa apresentação ocorre de forma sutil em que o autor
utiliza poucas cenas explicitas sobre a ditadura. Ela, no caso, está no plano de fundo da vida
de Mauro, personagem principal. Cenas como pichação no muro por um militante com os
dizeres “ABAIXO A DITADURA” ou até mesmo quando a universidade PUC foi invadida são
exemplos de transtornos que muitas famílias passaram por terem parentes ligados diretamente
ou indiretamente à oposição à Ditadura.

Em contrapartida, o filme de Helvécio Rattton aborda de forma mais direta o evento


ditatorial ocorrido no Brasil, apresentando de forma clara e proposital as ações dos militares
diante do grupo de padres que iam contra a Ditadura. O filme contém cenas longas em que os
padres são torturados de diversas formas, com agressões físicas no pau de arara, sendo afogados
e tomando choques na cadeira do dragão.

A condição da criança e dos padres dominicanos explicitada indica que há ainda uma
memória que necessita ser lembrada, a memória dos grupos que sofreram com o regime militar.

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa,


em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil
dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que
resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar
e impor (POLLACK, 1989, p. 3-15).

Dessa forma, os filmes O ano em que meus pais saíram de férias e Batismo de Sangue
trazem em sua representatividade a memória de diversos brasileiros que, por muitos anos, foram
esquecidos e não foram enquadrados na memória oficial do país. O silêncio desses indivíduos
faz parte do que são as relações de memória, e o filme, portanto, abre possibilidade para ancorar
as memórias de outras crianças que foram vítimas da Ditadura e que agora podem reconhecer
sua história dentro de outras histórias.

2. A violência empreendida no exílio

O filme Batismo de Sangue traz uma perspectiva do exílio por meio dos personagens Frei
Oswaldo, que logo no começo da trama refugia-se na França onde continua exercendo seu ofício
religioso, e o caso mais explícito do Frei Tito, que é solto do presídio e é obrigado a deixar o país
e se refugiar no Chile, depois na França. No filme é retratada a angústia do personagem diante
da impossibilidade de decisão sobre a sua própria vida, o qual foi obrigado a seguir um destino
decidido pelo governo, além do fato de o personagem apresentar melancolia e saudade da sua
terra natal, da sua família e amigos. O exílio, tanto para uma criança quanto para um adulto, é
uma violência instituída a partir da ordem governamental.

Como no caso do filme O ano em que meus pais saíram de férias, o personagem narrador
Mauro, ao final do filme, quando sua mãe é reencontrada, ele diz que se tornou algo que ele nem
sabia o que era: um exilado. Na condição de uma criança o exílio carrega consigo um afastamento
obrigatório de parte da família, da escola, da casa, dos amigos, gerando uma violência que pode
ser percebida ainda na infância ou posteriormente na fase adulta.

* 48 *
Porém é analisado que os exílios apresentados são diferentes no seu interior. Apesar de
haver uma causa que os ligue como elemento comum, o processo de ruptura entre a vida de
Mauro e a vida de Frei Tito são percebidos de forma diferente. A violência imposta ao Frei Tito,
que é um adulto, já construiu suas raízes e identidades no Brasil, e é obrigado a deixar o país é
muito mais dolorosa diante do que é vivenciado por Mauro, que, por ser uma criança, não tem
ainda a percepção do que está acontecendo e leva a situação com um ar de brincadeira. Ele se
encontra nos lugares que esteve, mesmo que parcialmente, ele continua a vivência da infância.

3. As cenas de tortura como denúncia do terrorismo de Estado.

O filme de Cao Hamburger traz a repressão e a tortura evidenciados de forma sutil,


promovendo e prevalecendo o olhar da criança, que no caso é Mauro, sobre a situação, deixando
um ar de mistério nos telespectadores, pois em nenhum momento a tortura é representada no
filme claramente.

A partir da cena em que a mãe de Mauro é encontrada e volta para o apartamento do


seu sogro, supõe-se que ela sofreu agressões físicas por ter um médico examinando-a. Também
entende-se que, pela fragilidade de Bia, as violências também foram psicológicas, na qual a
personagem apresenta cansaço e desconexão com a realidade.

A cena em que mais fica evidente a repressão é quando a polícia invade a Pontifícia
Universidade Católica (PUC) e retiram os estudantes à força da universidade, colocando-os
contra as paredes na rua, entrando em camburões violentamente, evidenciadas pelo uso de
cassetetes, batendo nos estudantes que resistiam ao comando. Outro destaque é para o uso da
cavalaria, tomando proporções de grandiosidade.

Entretanto, mesmo de forma não tão explicita, os filmes que abordam contextualmente
a ditadura, como no caso de O ano em que meus pais saíram de férias, de algum modo servem
ao telespectador como denúncia e expõe os crimes ditatoriais. Como afirma Caroline Gomes
Leme (2013, p. 29):

A ditadura é apresentada como inerentemente ligada à tortura, e mesmo filmes


que abordam apenas tangencialmente o contexto sócio histórico [...] parecem
ter a necessidade de denunciar, por meio de seus personagens, a existência da
tortura, ainda que seja em breve referências verbais.

Dessa forma, ela entende ser que a tortura no filme é denunciada em certos momentos
e vinculada a uma prática institucionalizada. Observamos isso em dois momentos no filme:
o primeiro na sequência da invasão da universidade, feita pela polícia militar, um aparato do
próprio Estado para conter subversivos, e o segundo é quando Shalomo, procurando Bia, a
mãe de Mauro, é levado pela polícia até uma delegacia. Nela Shalomo passa algum tempo e é
acusado pelo investigador de tornar-se comunista, que diz que o interrogatório vai demorar e
o questiona se ele é parente de Bia.

* 49 *
As cenas de tortura e violência chocam o telespectador ao deparar-se com a explicitação
do corpo nu sendo violentado. Em ambos os filmes analisados existe a referência direta ou
indireta sobre a tortura empreendida pelos militares.

Segundo Caroline Leme (2013, p. 42), a imagem do feminino não é representada pela
tortura explícita em grande parte dos filmes. Em Batismo de Sangue, o “corpo feminino sob
tortura também é um âmbito não representado. O que vemos, em determinada cena, é uma
moça voltando das torturas, com os pulsos e tornozelos feridos, que diz: “Me colocaram no pau
de arara, mas não foi só isso... preciso me lavar…” deixando para o espectador a dedução de que
ela foi vítima de sevícias sexuais.

Já a mãe do menino Mauro em O ano em que meus pais saíram de férias reaparece ao final
do filme bastante debilitada, necessitando cuidados médicos, e se deduz que passou por torturas
no período em que esteve afastada do filho.

Portanto,a explicitação da tortura em ambos os filmes não é visível devido às intencionalidades


do diretor, de apontar por meio da narrativa. Diferentemente do que ocorre com a tortura masculina
em Batismo de Sangue, dentre os filmes que representam a ditadura, ele conta com as cenas mais
longas de tortura. Em seu livro, Leme utiliza-se de uma citação do diretor Helvécio Ratton, que
explica que as cenas não são meramente ilustrativas, possuindo um teor de estruturação dramática
do filme. Contada do ponto de vista do torturado, a tortura, utilizada como instrumento do Estado
e constituinte da história e dos rumos que o país tomou, deve ser explicitada para valorizar a devida
memória aos dominicanos, a Frei Tito e todos os outros que passaram por essa situação (Ratton in
Patararra e Ratton, 2008, p. 13 apud Leme, 2013, p. 48).

Leme (2013) afirma que o filme Batismo de Sangue traz duas questões importantes, que
são a responsabilidade dos frades Ivo e Fernando pela morte de Marighella, e o suicídio de
Tito enquanto uma prática condenável pela Igreja. Sendo assim, deveria ficar evidente para o
espectador o grau de sofrimento dos freis para chegarem a esse ápice. A escolha por usar essas
cenas, ao mesmo tempo, faz com que o filme se torne um clichê e afaste o espectador do real,
além de obrigá-lo a assistir tais cenas, tornando-se o torturador.

Partindo disso, cabe ressaltar que esses filmes, por tratarem de temas históricos, são
recorrentemente utilizados por professores a fim de ilustrar, elucidar e analisar a fonte no ensino de
história. Sendo assim, cabe ao professor então a responsabilidade de mediar o filme e os aspectos
violentos que nele contém, o que seria uma forma livre de leitura e interpretação dos estudantes.

Do ponto de vista de Leme, referindo-se ao público geral, é complexa a questão, já que


envolve diferentes possibilidades de uso da linguagem cinematográfica pelos direitos, bem como as
diferentes formas pelas quais os espectadores assumem as expressões audiovisuais, não sendo possível
determinar com precisão e previamente que efeitos as representações terão sobre um público diverso.

O filme Batismo de Sangue possui uma narrativa fílmica tensa, pelo modo como apresenta
no seu enredo o sofrimento psíquico. Essa questão é trabalhada de forma clara desde as
primeiras cenas, quando Frei Tito caminha em um ambiente denso e enforca-se com uma corda

* 50 *
pendurada na árvore. Apesar de não mostrar detalhadamente o rosto da personagem, a cena
choca o espectador pela ausência de subentendido, já que expõe claramente o corpo num plano
geral e em detalhe os pés pendurados, sem manifestação de movimento.

A morte é uma das certezas da vida mais misteriosas para o ser humano, o desconhecido
gera angústia e medo, e é a partir dessa situação que o filme vem para a realidade, criando uma
conexão entre o espectador e a ficção. A questão problematizada, em torno da morte do Frei
Tito, é o que levaria alguém a ter coragem de tirar sua própria vida.

Ao contrário desse filme, O ano em que meus pais saíram de férias trata a morte de forma
cautelosa. Essa questão aparece nele de acordo com seu propósito de narrativa fílmica sob o olhar
da criança Mauro. Temas como a morte de uma criança podem não ter a mesma dimensão do
que a de um adulto. De modo geral, os responsáveis tentam afastar as crianças desse sofrimento,
tratando a morte de forma irreal ou até mesmo fantasiosa. No caso do filme, Mauro, o personagem
principal, depara-se com duas situações de óbito familiar. A primeira quando seu avô vem a
falecer, o que dá origem a toda narrativa do filme que, devido à ausência do avô, Mauro fica aos
cuidados de um vizinho, Shalomo. Nessa primeira circunstância, o menino não demonstra um
sofrimento exacerbado, e é apresentado como confuso, sendo essa uma situação incompreensível
para ele. É nas cenas que abordam o enterro do avô que o diretor utiliza-se de artifícios cômicos
e satíricos em relação à postura e ao comportamento de Mauro, trazendo uma leveza para a cena
que, apesar de ser mórbida, acaba levando o espectador a sentir a graça da linguagem.

A segunda situação, que está diretamente relacionada às consequências da ditadura no


Brasil, é quando, no final do filme, Shalomo traz a mãe de Mauro de volta, e ele encontra-a
no apartamento do avô, toda fragilizada e debilitada, e pergunta a ela sobre seu pai. A mãe,
sem condições de responder, silencia-se. De modo subjetivo, o diretor apresenta a morte do pai
de Mauro como um não dito, não declarado, como se naquele momento não pudessem falar
abertamente disso, e o medo assombra diante de tanta violência sofrida.

Essa interrupção na infância pode ser vista em vários fragmentos da sociedade. Hoje não
ocorre nenhum tipo de regime autoritário abertamente, que iniba a liberdade dos indivíduos.
Porém, ocorre um sistema político que despreza os problemas sociais que afetam a infância
de muitos brasileiros, principalmente da parcela da população que vive em periferias e passam
por gravidez precoce, menores que se envolvem no narcotráfico e trabalho infantil. Esses são
obstáculos para essas crianças que, quando se veem em meio a essas situações, deixam de viver as
virtudes que a infância proporciona. Tanto essas crianças que vivenciaram a ditadura quanto as
de hoje em dia são vítimas de políticas das quais elas não possuem consciência e estão fadadas a
carregar marcas dessas situações que influenciaram no futuro de suas vidas.

4.A diferença linguística utilizada nos filmes.

De modo geral, ambos os filmes trabalhados nessa pesquisa apresentam, apesar de temas
em comum, elementos linguísticos que os distanciam. O filme O ano em que meus pais saíram
de férias constrói sua narrativa sob a visão de uma criança. Portanto, cada eixo apresentado

* 51 *
no filme é descrito como uma criança o representaria, com sutileza. Por outro lado, o filme
Batismo de Sangue segue uma linha mais carregada, dando a sensação a todo momento do
sofrimento e da angústia dos freis.

Essa escolha possivelmente é resultado do corte com a memória vivenciado pelos


diretores. Nesses dois casos, os diretores Cao Hamburger e Helvécio Ratton vivenciaram a
década de 1970, e fizeram parte da história enquanto sujeitos e constroem suas memórias a
partir do que vivenciaram. Hamburger relata que a sua infância foi vivida no período ditatorial,
e que muitas crianças como ele passaram por situações e foram condicionadas a terem suas vidas
como resultado do regime militar. Neste caso, a cronologia e a linearidade da vida do diretor
fazem o corte da memória representada no filme O ano em que meus pais saíram de férias.

No caso de Helvécio Ratton, a história do filme está ligada à sua vida pessoal. O próprio
diretor relata que foi militante opositor ao regime militar a partir de 1966, e em 1968 entrou
para a luta armada. Após dois anos, foi exilado no Chile e retornou ao Brasil em 1974, ano em
que foi preso no Rio de Janeiro por quarenta dias no Destacamento de Operações Internas –
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) (RATTON, 2020).

Em minha leitura, a memória individual do diretor guarda relação com o seu tempo na
medida em que a representação da ditadura no filme Batismo de Sangue é uma representação
e tentativa de construção da memória dos torturados que, como ele, passaram por traumas e
necessitam de um reparo memorialístico no presente. Muito mais do que a memória de Frei
Tito, o filme traz a memória do próprio Ratton.

Dentro das representações contidas em cada filme, reconheço que as produções


tiveram duas linhas memorialísticas. O filme O ano em que meus pais saíram de férias carrega
a intencionalidade de abranger um público mais amplo, o que é demonstrado já a partir da
classificação do filme, que indica a permissão de assistir a partir dos doze anos. Por outro lado,
Batismo de Sangue é indicado para maiores de quatorze anos. O diretor Hamburger produziu
um filme sobre a juventude dos anos 70, não exatamente direcionado a retratar a Ditadura, e isso
faz com que o filme seja mais recepcionado, pois ele acaba não sendo rotulado como um filme
sobre a Ditadura. O que é diferente de Batismo de Sangue, que intencionalmente tem o caráter
didático de apresentar a Ditadura às novas gerações que não vivenciaram o período. Entretanto,
um filme desse porte não chega até a grande mídia, e sua circulação é muito reduzida aos espaços
acadêmicos, a sessões independentes e ao meio artístico. Aí que cabe a atuação do professor de
levar esses filmes até as salas de aula e popularizá-los.

5.A representação do futebol e os supostos anos de glória

O futebol, enquanto esporte, foi bem popularizado no Brasil pelas suas glórias
em competições e por seus atletas exímios e teve um grande destaque na década de 1970,
principalmente devido à conquista do título na Copa do Mundo de 1970, o que coincidiu com
o auge do regime ditatorial no Brasil. Ela representou naquele contexto uma forma de chamar

* 52 *
a atenção do povo para elementos de entretenimento, que satisfazem seus prazeres de lazer, e é
nessa situação que o regime militar apoia-se para glorificar o título como sendo a conquista do
Brasil, mais especificamente do regime militar, como apontado por Gianordoli-Nascimento:

O Futebol foi sem dúvida um dos principais pilares para a sustentação ideológica
do regime militar (Branco, 2006), favorecendo que um vasto repertório
musical que enaltecesse o futebol nacional e fortalecesse sua relação com a
identidade nacional. Em 1970, em meio à Ditadura Militar brasileira, tivemos
a consolidação ideológica implantada pela política de segurança nacional
havendo novo resgate da vinculação do futebol à identidade brasileira, criando
a sensação de uma nação unida e única, que expressava seu amor à pátria através
da seleção brasileira de futebol, representando os 70 milhões de Brasileiros que
formavam “de repente (...) aquela corrente pra frente” parecendo que todo o
Brasil, naquele momento polarizado, “deu a mão”. Imagens entoadas em um
dos mais representativos ícones da memória futebolística, a música da copa
do mundo de 1970, composta por Miguel Gustavo, intitulada “Para a frente
Brasil”, na qual a máxima da propaganda ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o”
pode ser aludida nos versos “todos juntos vamos, pra frente Brasil do meu
coração”. Quem não estava a favor do Brasil, representado pelo governo, estaria
fora dele (GIANORDOLI-NASCIMENTO, 2014, p.145).

No filme “O ano em que meus pais saíram de férias”, Cao Hamburger mostra a narrativa
fílmica a partir do olhar de Mauro, um garoto apaixonado por futebol, como outros de sua
idade. A visão de Mauro é aquela de muitas crianças que vivenciaram a década de 70 no Brasil,
na qual o maior orgulho do brasileiro era o futebol. Como é mostrado no filme, a Copa do
Mundo apresenta-se de duas formas antagônicas: uma ao lado da festa e das comemorações, em
que amigos e famílias reúnem-se em casa, e outro à espera dos pais que lhe prometeram voltar
durante o torneio. Nessa situação, Mauro vivencia o espetáculo do futebol e da transmissão dos
jogos na televisão, uma tecnologia recente incorporada no cotidiano das famílias brasileiras, que
antes ouviam pelo rádio e agora conseguem visualizar em cores os craques do futebol, como o
jogador Pelé. Como ressalta Gianordoli (2014, p. 148):

A copa de 1970 foi disputada no México e transmitida diretamente para o Brasil


“em cores, em caráter experimental” (Rinaldi, 2000), o que o Regime Militar
não poderia deixar de associar à sua imagem, como progresso, modernização
e estabilidade econômica (GIANORDOLI-NASCIMENTO, 2014, p.148)

Para alguns historiadores o fato de o Brasil ganhar a copa do mundo seria um ponto
positivo para enaltecer as vitórias do regime militar, como se esse mérito fosse do governo. Como
afirma Magalhães (2008, p. 3), “A seleção também seria bastante utilizada, principalmente após
a conquista do tricampeonato, quando associou-se à vitória em campo com o próprio modelo de
país”. Essa associação do regime militar acontece de modo oportuno para beneficiar a sua imagem
como algo bom, positivo, como o governo que melhorou a vida do povo, que agora tem um televisor
em cores em suas residências e podem usufruir desse tempo com sua família fortalecendo os laços
da tradicional família brasileira, comportada, antissubverssiva, dentro de suas casas.

* 53 *
Outro debate importante apresentado no filme, presente na construção da memória
da ditadura, é a discussão da escolha dos jogadores. Em diversos momentos os personagens
conversam nas cenas discutindo a posição e a escalação do jogo, e até Mauro envolve-se nesse
debate, em uma cena com seu pai, e depois em um bar onde alguns homens conversam, como
se fossem especialistas na montagem de um time, dando a ideia de que o conhecimento sobre o
futebol e sua discussão nos lugares públicos estava acima de temas políticos.

Além do filme apresentar também a ideia de que a escolha dos jogadores dependia
da posição política que ele escolhia, quando na mesma cena do bar, um dos homens fala “tal
jogador” é comunista, estereotipando o jogador a partir da sua posição política e diminuindo seu
potencial e habilidade como um jogador da seleção.

A Copa do Mundo de 1970, na qual o Brasil conquistou seu tricampeonato, significou


o momento em que a nação incorpora o povo, transformando-o num único desejo de participar
do sentimento nacional assistindo aos jogos da seleção e torcendo junto. Isso era o sentimento
coletivo que foi muito bem retratado no filme, mostrando a paixão de Mauro e a de outras
crianças por futebol quando eles jogam futebol e colecionam figurinhas da copa. Também vemos
a paixão dos outros torcedores que estavam assistindo e torcendo pelo Brasil. Principalmente,
percebemos o código sonoro utilizado no filme, em que toca em todas as cenas da Copa do
Mundo a música enredo “Pra frente Brasil”, despertando no espectador, ao ouvir a música, quase
a mesma sensação daqueles que acompanharam esse momento da seleção. O futebol, ainda hoje,
sustenta essa característica de nação unida, quando a grande maioria da população para todas
suas tarefas durante jogos do Brasil na Copa do Mundo, e quando ouvimos aquela frase clássica
“Brasil é o país do futebol” o sentimento de orgulho é evidente.

Quando é feita uma analogia entre a solidão do personagem com o goleiro de futebol,
Mauro se identifica com o goleiro por ser o jogador essencial e estar sempre sozinho no gol. Esses
sentimentos são decorrência da sucessão de acontecimentos que ocorrem na vida de Mauro, são
ações que se iniciam a partir do momento em que os pais de Mauro fogem, e tais mudanças
em virtude da política ficam marcadas na vida do garoto por terem lhe tirado de uma infância
apreciável para uma vida de conturbações e tristezas.

6. O ensino de história e a potencialidade do uso de filmes e o debate sobre a memória.

Usar filmes de cunho histórico no ensino de história é uma forma de apresentar uma fonte
histórica produzida no presente, para que os alunos, enquanto protagonistas da construção do seu
conhecimento, reconheçam que dentro dos espaços de manifestação artística, como o cinema,
ocorre uma disputa pela memória, sendo nesse caso a da Ditadura Civil Militar. Para isso, os alunos
precisam perguntar-se por que o filme foi produzido naquele ano, por quem, qual era o contexto,
para qual público, e qual a linguagem utilizada. Essas perguntas simples condicionam o aluno a
pensar que uma produção fílmica tem suas intencionalidades. Como afirma Napolitano (2013, p.
236), “é perceber as fontes audiovisuais e musicais em suas estruturas internas de linguagem e seus
mecanismos de representação da realidade, a partir de seus códigos internos”.).

* 54 *
Do ponto de vista de Bittencourt (2009), são necessários alguns critérios para inserir o
filme na sala de aula. O primeiro é observar as preferências dos alunos em relação ao gênero e
tipo de filme. Outro ponto fundamental é questioná-los sobre suas escolhas e o que os fazem
gostar desse tipo de filme, além de ser necessário o professor elencar questionamentos sobre o
que constitui um filme, sua função e produção. Por fim, deve-se realizar a construção de uma ficha
técnica com os alunos, na qual deve constar informações importantes, desde as características
técnicas quanto as características da produção e do contexto de produção.

Dentro do ensino de história o que cabe é conseguir estabelecer a construção e o debate


sobre a memória da Ditadura. Como ressalta Leme (2013), sobre a filmografia que tem como
tema o regime militar, é um processo duplamente seletivo de resgate do passado, pois coloca-
se em destaque fatos, questões que interessam àquela narrativa que está sendo construída, ao
mesmo tempo que as escolhas sociais que alavancam a popularização do filme acontecem ou
não, deixando muitos filmes de grandes cineastas relegados ao esquecimento.

Tendo em vista a escolha do filme apresentado, o professor deve indagar os alunos sobre
a relação do filme com o tempo presente, para que os alunos desenvolvam o senso crítico e a
curiosidade investigativa, a ponto de quererem compreender o contexto em que o filme foi
produzido e o porquê. A contextualização da produção é de suma importância para que o filme
não fique no campo da ilustração ou apêndice de algum conteúdo.

Segundo o historiador Rodrigo Ferreira (2018):

(...) a produção de um filme está imersa no cenário político, econômico, social


e cultural do momento em que foi realizado. O cinema-história possui, nesse
sentido, uma dupla temporalidade: uma é referente ao período histórico
representado; outra diz respeito ao contexto em que é filmado. Buscar essas
dimensões, portanto, amplia a compreensão de significados do filme para além
de seu enredo (FERREIRA, 2010, p. 115).

Dessa forma, compreendo que o filme é uma fonte histórica na qual os alunos possam
compreender os aspectos políticos e sociais de sua produção no tempo presente.

Outro ponto em relação à produção dos filmes é seu financiamento. É importante que os
alunos procurem de onde vem a captação para realização dos filmes, que em muitos casos vem
do investimento do Estado e de patrocínios que promovem a cultura. Entender que o aporte
financeiro de um filme pode trazer consequências positivas e negativas, ou seja, um filme com
uma boa capitalização tem mais capacidade de pagar profissionais, investir no cenário e enredo,
bem como fazer a propaganda e o marketing de produto. A pergunta que se deve fazer é: por que
uma empresa/instituição privada ou pública patrocina uma produção fílmica e quais seriam seus
interesses? Com esse questionamento é possível que os estudantes percebam mais um elemento
do filme como parte de um projeto político-ideológico.

Após terem reunidas todas as informações sobre a produção do filme externas, chega
a hora de contextualizar a narrativa histórica do filme, ou seja, analisar os aspectos internos.

* 55 *
Dentre os aspectos internos proponho que o professor escolha algumas técnicas de filmagem
para apresentar aos alunos e explicar a construção do filme. Técnicas como cena, sequência,
planos e enquadramento. Tendo ciência dessas técnicas, os estudantes conseguirão ter uma
noção maior do filme como um conjunto de montagens, ou seja, de seleção, na qual o produtor
escolhe representar determinadas cenas em detrimento de outras.

Essa leitura criteriosa capaz de reconhecer as montagens e construções da linguagem


cinematográfica bem como a narrativa histórica representada no filme possibilita a compreensão
dos fatos históricos.

Considerações finais

Os meios de comunicação são lugares de memória e fomentam as narrativas que se


apropriam do passado a partir de testemunhos e vivências. Dentre esses, deve-se considerar o
cinema como meio de comunicação de massa que possui uma linguagem própria e que transmite
aos seus espectadores.

Nesse sentido, o cinema produz uma narrativa que é construída a partir das representações
que seus produtores exprimem no seu enredo, e também criam representações a partir da
apropriação que o espectador gera por sua narrativa, tornando uma fonte histórica audiovisual
que permite investigar e questionar a sua produção no presente.

A memória parte das lembranças coletivas e individuais sobre o passado enquanto a


História baseia-se em fatos evidentes e a construção da sua narrativa parte de um rigor
metodológico que prova, por meio das fontes históricas, as evidências sobre o passado.

Diante disso, os filmes como parte de uma produção imprimem a memória dos seus
produtores sobre o período retratado. Mesmo que haja um estudo histórico e uma pesquisa para
a realização do longa, ele é produzido a partir das intencionalidades de seus idealizadores, que
carregam consigo as subjetividades de cada um.

O filme O ano em que meus pais saíram de férias traz as memórias do próprio produtor
Cao Hamburger, que vivenciou o período ditatorial e quis retratar a memória de uma criança
que sofreu com as consequências da Ditadura por seus pais serem militantes. Essa memória
não pertence a uma única criança, como Mauro, personagem central do filme, mas sim a tantas
outras que se reconhecem na história e tiveram vivências similares como a retratada no filme.

Já o filme Batismo de Sangue carrega as memórias dos padres dominicanos que se aliaram
à luta armada em nome da justiça, liberdade e igualdade. A história é narrada pelo personagem
principal Frei Tito e a intenção do diretor nesse caso foi rememorar a luta dos freis contra a opressão
ditatorial e como essa luta levou as consequências da tortura e violência empreendidas pelo Estado.

Ambas as produções analisadas carregam suas especificidades enquanto memória


retratada neles, contudo foram analisados pontos que se cruzam nas histórias. O primeiro ponto
é a questão do exílio no filme O ano em meus pais saíram de férias. O garoto Mauro sofre essa

* 56 *
violência em dois momentos: primeiro quando deixa Belo Horizonte e se muda para São Paulo
e depois quando sua mãe volta e eles são obrigados a sair do país. No Batismo de Sangue, essa
questão aparece quando um dos Freis tem que fugir para o Sul do país e depois, com a soltura de
Tito, ele é obrigado a deixar sua terra e ir para o exílio em outros países. Nesse caso, a violência
empreendida pelo Estado não é somente física, é uma violência moral e psicológica na qual os
militantes são obrigados a deixar para trás suas identidades.

Outra questão analisada nos dois filmes: a Tortura. No primeiro, devido a sua linguagem
mais sútil e o olhar da criança, a tortura e a violência são identificadas na invasão da Universidade
e quando a mãe de Mauro é reencontrada e se apresenta frágil e debilitada. Diferente do segundo
filme, que apresenta uma linguagem mais densa, as cenas de tortura são destaque no filme,
ocupando bastante tempo, e as ações dos militares são explícitas, já que a intencionalidade do
diretor é de relembrar a memória dos dominicanos.

Como são filmes diferentes, foram destacadas duas questões que se diferenciam entre
eles. Em O ano em que meus pais saíram de férias o futebol e a Copa do Mundo de 1970 são eixos
importantes de debate. No filme, é mostrado como o futebol tinha espaço na vida dos brasileiros
e o regime militar usa disso para trazer a vitória do Brasil como uma conquista política.

Em contrapartida, no filme Batismo de Sangue a questão que aparece é a memória religiosa,


tema central do filme, a luta empreendida pelos dominicanos, a forma como eles atuaram na
militância e sua denúncia de Marighella, levando-o a ser morto pelos oficiais.

De fato, o filme é um lugar de memórias depositadas, que nesses casos serviram como
denúncia das atrocidades cometidas pelo regime militar e também como uma forma de reivindicar
o direito à memória das pessoas que sofreram com o regime: filhos, mães, avós, avôs e cônjuges,
que têm o direito de terem o nome de seus entes lembrados como uma indenização, no mínimo.

Sendo assim, os filmes analisados são importantes fontes para serem trabalhados no ensino
de história, carregando consigo histórias e linguagem diferentes, podendo ser selecionados de
acordo com nível e a idade dos estudantes.

Por meio dos filmes, o professor pode levantar questionamentos como esses que foram
apontados, mas que não se limitaram a isso. Existem amplas possibilidades de trabalhar os filmes
em sala de aula. As produções têm uma potencialidade de despertar as emoções dos alunos e
sensibilizá-los, envolvendo-os com a temática.

* 57 *
Referências bibliográficas

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BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Luz, câmera e história! : práticas de ensino com o cinema. 1ª
Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

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Monteiro Naiff. ““Salve a seleção”: ditadura militar e intervenções políticas no país do
futebol.” Psicologia e Saber Social 3.1 (2014): 143-153.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidades e política entre o


moderno e o pós-moderno. Bauru, São Paulo: Editora Edusc, 2001.

LEME, Caroline Gomes. Ditadura em imagem e som. 1ª. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

MAGALHÃES, Lívia Gonçalvez. Futebol em tempos de ditadura civil-militar. Anais do XXVI


Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011

NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla (org.). Fontes históricas.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 235-289.

NAPOLITANO, Marcos_________. Como usar o cinema na sala de aula. 2ª Ed. São Paulo:
Contexto, 2003.

POLLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,


vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15

ROUSSO, /Henri, “Rumo a uma globalização da memória”. In: História Revista da


Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFG. Goiânia,
v.19, n. 1, jan./abr. 2014

* 58 *
A ESCOLA COMO PALCO DE UMA GUERRA NÃO DECLARADA:
O DISCURSO ANTICORDIAL DO RAP E DA LITERATURA
PERIFÉRICA NO ENSINO DE HISTÓRIA1

Cristiano Aparecido Mendes

INTRODUÇÃO

Carlos Eduardo Taddeo é um rapper bastante notório entre a comunidade do movimento


Hip Hop paulistano e brasileiro. Sua fama se deu, sobretudo, à frente do grupo de rap Facção
Central, com o qual colecionou polêmicas devido, principalmente, às letras de suas composições
musicais, consideradas, por muitos (muitas vezes dentro do próprio movimento) violentas e
apologéticas ao crime. Conhecido simplesmente como Eduardo, em 2012 lançou um livro
intitulado “A Guerra Não Declarada na Visão de um Favelado”, onde é possível identificar a
ira típica das suas músicas, com o diferencial próprio da densidade literária. Em 2016 lançou,
ainda, o Volume II da mesma obra, totalizando 1.280 páginas de denúncias sobre um possível
Estado de Guerra permanente em que vivem os brasileiros. Sem editora e publicada de forma
independente (com o apoio e patrocínio de lojas de discos, roupas, produtoras musicais, etc.),
tornou-se difícil conseguir os exemplares. Vez ou outra o artista imprime algumas centenas de
cópias e vende em suas redes sociais. Outra opção é procurar em sebos físicos e virtuais. Para
facilitar o uso pedagógico do mesmo, foi disponibilizado na dissertação original2 um Guia de
Leitura que percorre os principais temas, com excertos da obra.

Para essa investigação de caráter bibliográfico – onde a obra foi analisada sem recorrer a
entrevistas ou pesquisas de campo – foram analisadas questões acerca do caráter anticordial do
discurso presente no Rap e na Literatura Periférica, bem como sua relevância para a construção
de uma pedagogia própria, na qual seja possível explorar e ressignificar saberes de origem popular
no contexto educacional.

Para tanto, leva em consideração o conhecimento prévio dos educandos e se utiliza da


cultura dos mesmos numa tentativa de melhorar a prática docente. A partir deste conceito, o Hip
Hop, de modo geral, o Rap mais especificamente, e a Literatura Periférica, como confluente de
ambos, surgem como catalisadores dessa possível forma de fazer pedagógico.

1
Esse artigo decorre de dissertação homônima defendida no programa Profhistória/Unifesp.
2
Idem.

* 59 *
No intuito de municiar o leitor pedagogicamente, a investigação analisa teóricos da
educação que procuram repensar a prática docente a partir de outras pedagogias. É o caso de
Miguel Arroyo, com sua ideia de “Pedagogia dos Movimentos Sociais” e Nilma Lino Gomes,
com a descolonização do currículo, além de pensadores voltados ao ensino de história e história
da cultura, como Roger Chartier e Peter McLaren.

O discurso anticordial do rap e da Literatura Periférica no ensino de história

Com a ascensão dos saraus e influenciados pela cultura Hip Hop, diversos artistas
despontaram na periferia, chamando a atenção para a qualidade de seus textos, bem como pelo
jeito novo de escrever, gerando uma gama incalculável de documentos, importantes para se
entender a realidade daqueles e daquelas que, durante toda a história, foram marginalizados e
preteridos dos circuitos considerados oficiais, sejam eles artísticos, políticos ou econômicos.

Em outras palavras, a geografia nacional influencia as tomadas de decisão, ou seja, quem


mora no centro é quem expressa qual obra literária tem valor, qual artista plástico é genial,
onde será investido o orçamento da cidade, qual modelo econômico vigente, entre outras coisas.
No entanto, de tempos em tempos a periferia subverte essa realidade exigindo, no mínimo, a
escuta, e a Literatura Periférica é um significativo exemplo disso, principalmente se pensarmos
no conceito de representações presente em Chartier (2009):

As representações não são simples imagens, verdadeiras ou falsas, de uma


realidade que lhes seria externa; elas possuem uma energia própria que leva
a crer que o mundo ou o passado é, efetivamente, o que dizem que é. Nesse
sentido, produzem as brechas que rompem às sociedades e as incorporam
nos indivíduos. Conduzir a historia da cultura escrita dando-lhe como pedra
fundamental a historia das representações é, pois, vincular o poder dos escritos
ao das imagens que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los, com as categorias
mentais, socialmente diferenciadas, que são as matrizes das classificações e dos
julgamentos (p. 51 - 52).

Voltando-se para a educação oficial, torna-se imprescindível refletir sobre o modo como
a escola se constituí em espaço de confluência de ideias e vivências que extrapolam o saber
acadêmico, de modo que deve-se considerar os diversos aspectos que permeiam a vida dos(as)
estudantes, no intuito viabilizar a produção de sentidos.

Este trabalho, portanto, enxerga a pedagogia presente no Rap e na Literatura Periférica


como uma estrutura efetiva a serviço do conhecimento. Para analisar, compreender e exemplificar
isso, recorrer-se-á, como fonte e documento histórico, ao livro do rapper e escritor Carlos
Eduardo Taddeo “A guerra não declarada na visão de um favelado” (vols. I e II), em que o
discurso anticordial típico do Rap é apresentado como catalisador.

Nesta obra, Eduardo, como é mais conhecido, sugere que, no Brasil, vivemos em um
Estado de Guerra que, apesar de não declarada, vitima a sociedade diariamente, principalmente

* 60 *
os membros da periferia, elo mais fraco do capitalismo, grande responsável pelo belicismo velado.
A escola pública, uma das poucas instituições públicas a adentrar essa mesma periferia, acaba
se tornando mais um local onde essa guerra acontece e, por representar os anseios de toda a
sociedade, acaba sendo palco desse grave problema.

Da mesma forma, a questão da anticordialidade, presente no título da pesquisa e na


Literatura Periférica, é trazida aqui como ponto central de expressividade, reivindicação e
resistência, sendo compreendida como um projeto da coletividade.

Segundo o dicionário de sinônimos on-line3, cordial é o mesmo que: educado, agradável,


civilizado, cortês, diplomático, gentil, polido, respeitoso, afável, amável, amigável, amistoso, entre
outros. Ao pensar um discurso “anticordial”, se pensa justamente em uma fala que se opõe a essas
expressões e sentimentos, despreocupando-se com gentileza e diplomacia. É exatamente isso
que Eduardo faz, tanto em suas músicas quanto no livro.

Claro que o conceito histórico (não unânime) de “homem cordial” é um pouco


diferente da simplificação de um dicionário. Segundo Sérgio Buarque de Holanda (2011),
a cordialidade é uma herança da sociedade colonial e patriarcal e vem do personalismo
que condecora os laços políticos, de parentesco e amizade como critérios para benefícios
e privilégios. Para ele, a “cultura da personalidade” gera a corrupção e transforma o
Estado numa ampliação do círculo familiar, ou seja, a cordialidade é entendida como uma
relação dominada pela afetividade e pelo íntimo, típicas da esfera familiar e privada. Este
aculturamento gera confusão às diversas relações que permeiam a sociedade: público e
privado, família e Estado, pessoal e impessoal, rua e casa, razão e emoção, lei e favor, etc.

Esta influência da lógica familiar nas relações que permeavam a sociedade,


complementada pela mentalidade colonial que separava casa-grande e senzala, vai determinar
as relações entre os governados e governantes, que impera até hoje na administração
pública. “[...] A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo
com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas
capacidades próprias [...]” (HOLANDA, 2011, p. 146).

Cordialidade não é mesmo que bondade, se aproximando mais de uma submissão em


troca de favores que beiram as “migalhas”. O que se quer enfatizar com isso é que, enquanto a
cordialidade está no campo do favor, a anticordialidade está no campo do direito.

Sendo assim, é possível perceber que a postura radical de credores irredutíveis dos(as)
rappers, que querem receber o que lhes é devido a qualquer custo, evocando uma ira social
legítima, levou os meios de comunicação a considerá-los perigosos e violentos, acompanhados
por instituições como a escola. “No caso específico do movimento ‘rapper’, o sofrimento gerado
por sucessivas segregações provocou ódio, acumulou forças e inspirou uma inédita resistência
dos jovens periféricos contra as tiranias do capital e a mesmice do cotidiano [...]” (SOUSA,
2006, p. 257). De outra forma, a anticordialidade própria do discurso periférico, seja através da

3
https://www.sinonimos.com.br/cordial/: Acesso em 13/09/2020.

* 61 *
música ou da literatura, dialoga tanto com o conceito mais simples do “ser cordial” quanto com
a definição histórica de Sérgio Buarque. Isso porque, além de enfatizar o uso de uma linguagem
ríspida e um tom irado e indignado, ainda reconhecem na burguesia a responsabilidade pela
manutenção dos privilégios – que são típicos da sociedade patriarcal com sua moral doméstica
que precisa ser, ora protegida, ora disseminada.

Trazemos aqui essa coletividade a partir do conceito de Pedagogia dos Movimentos


Sociais, elaborado pelo sociólogo e educador Miguel Arroyo, o qual destaca a luta das organizações
coletivas e o seu modo próprio de fazer Educação, de forma que o saber oficial é questionado e,
muitas vezes, combatido, na intenção de exigir o devido reconhecimento do papel pedagógico
dos saberes e das práticas populares.

Em seu artigo “Pedagogia em Movimento: o que temos a aprender dos movimentos


sociais” (2003), o autor procura extrapolar a academia para pensar outras possibilidades, ao
mesmo tempo em que convoca sua intelectualidade a não ignorar essas novas perspectivas de
educação autônoma e afirmativa.

A história dos movimentos populares vem questionando a vulgata “progressista”


e seu viés “racionalista” e “modernista” e a sua crença nos processos progressivos
de chegar a uma lógica única, a um modo único de conhecer a realidade
(ARROYO, 2003, p. 46).

Seguindo nesta ótica, no texto “Ações Coletivas e Conhecimento: Outras pedagogias”,


Arroyo (2009) coloca a importância da coletividade, pois, para que os sujeitos antes invisibilizados
ocupem a arena política, econômica, cultural e pedagógica, é preciso que se reconheçam como
agentes no processo de construção do conhecimento.

Mostram-se presentes na arena política, econômica, cultural, pedagógica, nas


marchas, ocupações, nas cidades e nos campos. Uma presença coletiva afirmativa
em que não se reconhecem, mas contestam as formas negativas, inferiorizantes
em que foram pensados. Nessa afirmação como sujeitos existentes, contestam
de maneira radical, na raiz, o pensamento que os pensou e classificou como
inexistentes, como meros objetos e produzem outras formas de pensá-los (p. 04).

Cada aluno e cada aluna da escola pública tem uma história. Infelizmente, por vivermos
uma “guerra não declarada”, o sofrimento está presente em muitas delas. É muito importante
evitar qualquer processo de generalização (principalmente entre aqueles que pensam a educação),
pois isso acaba produzindo preconceitos.

No entanto, é possível perceber que problemas sociais como a fome, o desemprego, a


violência e carências em geral se fazem presentes na vida de todos os brasileiros, sem exceção. Se
não afeta diretamente, atinge através da consequência de se viver em um país que não se importa
com injustiças e desigualdades.

Portanto, pode-se afirmar que as periferias (urbanas e rurais) são mais atingidas pelas
catástrofes sociais que qualquer bairro de classe média e alta. Mesmo que, com muita sorte, o(a)

* 62 *
pequeno(a) morador(a) da favela (com escasso recurso financeiro) tenha uma família estruturada
e presente, que consiga protegê-lo(a) da maior parte das agruras que acomete a comunidade,
acompanhando os estudos e fornecendo uma alimentação minimamente adequada, será
impossível, ao frequentar a instituição escolar do governo, não se deparar com um colega que
vive em meio ao caos da tragédia sociopolítica brasileira.

O que se quer dizer é que, por mais que não haja uma vida igual a outra, existe sim uma
proximidade cultural e uma identificação entre os(as) estudantes de Escola Pública. Quando
criança, o rapper Eduardo viveu em meio à criminalidade das ruas do Glicério4, cercado por uma
enorme pobreza econômica e social, carente de referências positivas, por isso reconhecemos nele
um arquétipo típico desses sujeitos que os(as) professores(as) encontram no seu dia a dia.

Enfim, por ser um sujeito social complexo e reflexivo, Eduardo apresenta, assim como
nos aportou Arroyo, um jeito próprio de pensar a educação, construído do lado de fora do muro
da escola, mas passível de ser transferida para a construção de uma nova forma de enxergar
a pedagogia na atualidade: “A carga educacional tóxica, ao ser injetada em um povo desde o
prézinho, resulta no trágico assassinato dos preciosos QIs inconciliáveis com cabrestos e
subordinação” (EDUARDO, 2016, p. 227).

É nesse ponto que “A Guerra Não Declarada na Visão de um Favelado” desponta como
um documento histórico, capaz de apresentar aos educadores uma nova pedagogia, pautada,
justamente, em todos os elementos próprios dessa cultura popular, como: linguagem coloquial
(com uso de gírias e palavrões), análises críticas, descolonização, musicalização, poetização,
reconfiguração geográfica, valorização dos espaços típicos da periferia, politização, consciência de
classe, conhecimento socioeconômico e histórico, protagonismo, multiculturalismo, organização,
criatividade, rebeldia, autoestima, entre muitos outros.

Como profissionais da pedagogia, teríamos de agradecer aos diversos


movimentos sociais a posta em cena, e de maneira tão rigorosa das grandes
questões humanas que sempre revigoraram o campo da teoria pedagógica. Eles
nos oferecem um prato cheio para sair dos recortes pontuais, dos olhares pobres
em que se isolou o didatismo escolar e também o metodologismo da educação
não formal. Eles nos educam e educam os coletivos que deles participam.
Educam a sociedade. Agem como pedagogos (ARROYO, 2003, p. 47).

Portanto, histórica e pedagogicamente, o livro em questão tem a mesma importância que


o diário de um preso político durante a ditadura militar brasileira, ou o relato de uma mulher
saxã perseguida pela inquisição na Idade Média ou, até mesmo, cartas de um soldado norte-
americano durante a Segunda Guerra – só para ficarmos em alguns poucos exemplos.

A questão é que relatos próximos à realidade dos alunos e das alunas, como é o caso,
revelam o quanto a história é vívida e próxima, metamorfoseando cada um em documento,
demonstrando para os professores e as professoras a importância de resgatar a autoestima desses

4
Bairro pobre do centro de São Paulo.

* 63 *
indivíduos para que se vejam como protagonistas da história e não apenas telespectadores,
unindo a história tradicional (pautada nos “grandes eventos) com a história “vista de baixo”, das
pessoas “comuns”. É imprescindível ratificar que ela não é feita por reis e “heróis”. “O rap, de
modo geral, tem percorrido esse caminho ao problematizar os aspectos sociais contemporâneos
a ao fazer circular opiniões sobre modos de ser e estar na sociedade” (OLIVEIRA, 2015, p.
110). Infelizmente, o que vem acontecendo, como visto, é o oposto, ou seja, o tolhimento das
personalidades e culturas consideradas “impróprias”.

Em consequência da sabotagem educacional, após temporadas de intensa


sonegação de informação dentro de uma escolarização deficitária, o educando
que milagrosamente conclui o segundo grau, deixa o recinto escolar sem ter
noção de um décimo de sua própria história (EDUARDO, 2016, p. 474).

A ideia, então, é que os(as) estudantes percebam que o movimento tropicalista ou a bossa
nova foram de extrema importância para a História Nacional; mas que o grupo de Rap Facção
Central, (ou os Racionais Mc’s) também transformou a música brasileira de tal forma que estará
para sempre nos anais da história, porém de uma forma diferente, isto é, mais próxima da vivência
da imensa maioria da população. Isso porque fica difícil pensar em “terra do nosso senhor”
ou “moças de corpo dourado”5 quando se sente a ausência de coisas básicas, como alimento,
moradia, vestes e tranquilidade para a contemplação e reflexão: “[...] a imagem de Brasil que
ganha forma na arte produzida por muitos rappers não é grandiosa, a da “terra boa e gostosa”,
mas a de um país mergulhado na catástrofe social” (OLIVEIRA, 2015, p. 27). Ou, como bem
observou Sousa (2006):

Ao perceberem o descaso com que os pobres e suas demandas são tratadas, os


“rappers” resolvem, então, dar destaque a assuntos, até então, obnubilados no
debate, de sorte que, a violência e todas as suas matizes: orfandade, desemprego,
enfim, tudo aquilo que se relaciona com a pobreza, é agora exposto sem
maquiagem pelos “rappers” em suas crônicas musicais (p. 274).

Compreende-se, então, que essa cultura periférica, muitas vezes considerada violenta,
não tem a pretensão e não precisa ser, necessariamente, bela aos olhos da sociedade burguesa. É
neste ponto que o rompimento proposital com a cordialidade histórica ganha importância.

Na vida dos periféricos, o sentimento gerado por sucessivas segregações


provocou ódio, acumulou forças e inspirou uma resistência de seus mais ilustres
e autênticos representantes: os jovens, que desamparados e desassistidos em
suas necessidades básicas, cultura e lazer notadamente, resolveram arregimentar
forças em torno de objetivos comuns e, com ousadia e proposição, revelar
para a sociedade suas mazelas cotidianas por meio da comunicação musical
(SOUSA, 2006, p. 277).

5
Referência às músicas “Aquarela do Brasil”, de João Gilberto; e “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim.

* 64 *
Mesmo porque essas manifestações culturais são representações do real, não fruto de
uma imaginação, ou seja, artisticamente, nessas atividades literárias (como é o caso), não há
nenhum desejo de esconder a dor e a raiva, ou fingir uma harmonia que não existe, tornando
seus textos produtos da marginalidade (de quem a vive) e não apenas reflexo dela (de quem a
retrata). É por esse motivo que a exploração dos veios documental, descritivo e biográfico ganha
destaque e valor de autenticidade, como bem apontou Nascimento (2006, p. 84):

Nesse sentido, a primeira problematização que merece ser desenvolvida é


que a ficcionalização de aspectos sociais relacionados às periferias urbanas (o
ambiente, as práticas, os valores, o linguajar, etc.) é um instrumento que conduz
a produção e a atuação desses escritores e tem um sentido social: do mesmo
modo que expressa carências sociais e culturais, é uma maneira diferenciada
de formular identidades coletivas e de reproduzir a “cultura da periferia”. Este
sentido social é parte do projeto intelectual (não codificado) dos escritores, que
tem desdobramentos pedagógico, estético e político.

Esses fruidores nos ensinam – com pedagogia própria – como se utilizar do


Multiculturalismo Revolucionário e da anticordialidade para forçar sua presença na sociedade,
à revelia dos agentes que tentam, a todo custo, suprimir suas identidades, moldar seu caráter e
invisibilizar – ou mesmo inviabilizar – suas existências:

O mundo da cultura aparece como um espaço privilegiado de práticas,


representações, símbolos e rituais no qual os jovens buscam demarcar uma
identidade juvenil. Longe dos olhares dos pais, professores ou patrões,
assumem um papel de protagonistas, atuando de alguma forma sobre o seu
meio, construindo um determinado olhar sobre si mesmos e sobre o mundo
que os cerca. Nesse contexto, a música é a atividade que mais os envolve e
os mobiliza. Muitos deles deixam de ser simples fruidores e passam também
a ser produtores, formando grupos musicais das mais diversas tendências,
compondo, apresentando-se em festas e eventos, criando novas formas de
mobilizar os recursos culturais da sociedade atual além da lógica estreita do
mercado. (DAYRELL, 2002, p. 119 – grifo meu).

O que se destaca nesta citação é que o(a) professor(a) também é visto como um agente
da moralidade, um obstáculo a ser superado ou ignorado, que mais atrapalha do que ajuda. Isso
demonstra que a “Pedagogia da Inclusão” – que procura encaixar a juventude em um modelo
correto de se expressar e agir, dentro de uma cordialidade socialmente aceita é problemática. “[...]
atentos à manobra, os jovens afastam-se resolutamente da “proteção” oferecida pelos “projetos
prontos”, a fim de correr o risco da experimentação” (SOUSA, 2006, p. 254), ou como nos propõe
Miguel Arroyo (2003): “assumir a cultura como ela de fato nos chega através dos próprios sujeitos
coletivos, como inquietação e até resistência a formas de inclusão homogeneizadoras” (p. 41).

Essa crítica revela, de certo modo, que a educação se dá de diversas formas e é necessário
estar atento, pois, como é possível perceber, o protagonismo brota naturalmente neste solo
arenoso da periferia, influenciado pelo Rap e pela Literatura Periférica. Eduardo (2012, p. 535)

* 65 *
corrobora Dayrell quando afirma que outras formas de pedagogia podem ser mais relevantes que
as institucionalmente aceitas:

[...] os semianalfabetos munidos de canetas e microfones, fizeram com que


todo favelado, do mais intelectualizado ao menos informado, se tornasse ciente
e convicto, de que são os ricos que produzem e trazem os tijolos de drogas para
serem desmembrados e vendidos nos varejo pelos excluídos.

Ao abordar o tema “cordialidade”, torna-se inevitável se pensar na disciplinarização


dos corpos, posto que o discurso anticordial da Literatura Periférica, por possuir linguagem
e estrutura próprias, comumente relegado à margem da norma, pode ganhar a conotação de
indisciplina. Esse é um ponto sensível, já que se trata de um problema real, que afeta educadores
de forma drástica, causando doenças psíquicas e afastamentos médicos.

Todavia, ao nos aproximar da Pedagogia do Rap e da Literatura Periférica, tendemos


a compreender melhor a frustração dessa juventude, para conseguirmos criar uma ponte que
aproxime, ao invés de um muro que afasta e estigmatiza de forma simplista: “Para o arremate
final dos absurdos, os educandos dilacerados pelas agressões terroristas, ainda serão taxados de
desinteressados, vagabundos e bagunceiros. [...]” (EDUARDO, 2016, p. 354).

Apesar do aparente pessimismo, a proposta de pensar uma nova pedagogia tem sim o
objetivo de pretender caminhos que guiem os professores(as) em uma busca da melhora da
educação. O próprio Eduardo (2016) tem a convicção de que é exatamente aí que reside a saída
mais viável e significativa: “Bato com todas as minhas forças na tecla da educação, pois sei, que o
caminho primordial para o crescimento de um ser humano em todos os aspectos, é o da escola”
(p. 438). Assim, o ensino de história ganha um papel primordial nesta reformulação, afinal,
enquanto ciência, tem como princípio a revisão e a evolução constante.

É possível perceber, então, que a Literatura Periférica, de forma original, desempenha um


papel de formação. Porém, não apenas. No que tange ao principal objetivo da história enquanto
disciplina escolar, que é o de formar cidadãos críticos e atuantes, importa frisar que

O hip hop, sendo um movimento social, permite aos jovens desenvolverem


uma educação política e, consequentemente, o exercício do direito à cidadania.
Nunca, na história social do país, houve uma mobilização social tão expressiva
[...] (ANDRADE, 1999, p. 89).

Tudo isso vai reforçando a relevância da Pedagogia do Rap e da Literatura Periférica. No


trecho a seguir, a relevância do estudo da história é apontada pelo então DJ do grupo Racionais
Mc’s, no sentido de indispensável impulsão do reconhecimento e compreensão da realidade
social: “Estudando história, você vê que tudo hoje é fruto da exploração do homem pelo homem.
Não é possível que todo mundo seja rico um dia: para ser rico é preciso explorar o próximo, de
alguma forma” (DJ KL JAY apud PIMENTEL, 1999, p. 109).

* 66 *
A escola deveria ser o lugar privilegiado deste aprendizado cidadão, levando em conta a
produção de conhecimento como metodologia de ensino. A fala (ou a falta dela) é uma questão
importantíssima para esses jovens. Voz Ativa é nome de uma música dos Racionais Mc’s e
também uma grande reivindicação, muitas vezes implícita, dos nossos educandos e educandas.
Essa juventude encontra no Rap o espaço para falar, o quê e da forma que quiser, criando uma
literatura própria, a Literatura Periférica.

A partir de interpretações construídas sobre o período escravista e em função


de certa segregação social e racial ainda presente nos bairros periféricos, os
rappers forjaram uma noção de periferia como “quilombo urbano”, numa das
comparações possíveis para representar certa territorialidade e relacioná-la
a uma identidade étnico-racial [...] Estratégia quilombola: que esse modelo
circularia no imaginário social construído por alguns movimentos negros
como expressão máxima de resistência aos modelos econômico, político e
social vigentes. (NASCIMENTO, 2011, p. 86).

O que se vê é uma verdadeira apologia da história como emancipadora. É da compreensão


do presente a partir do conhecimento do passado que vem a potência necessária para a constituição
dessa pedagogia periférica e, agora, quilombola, ou seja, de resistência.

Para que as questões relativas ao ensino público sejam revistas e o ensino e a aprendizagem
sejam repensados, faz-se necessário começar com a construção de um currículo sólido e
democrático.
Descolonizar os currículos é mais um desafio para a educação escolar. Muito
já denunciamos sobre a rigidez das grades curriculares, o empobrecimento
do caráter conteudista dos currículos, a necessidade de diálogo entre escola,
currículo e realidade social, a necessidade de formar professores e professoras
reflexivos e sobre as culturas negadas e silenciadas nos currículos (GOMES,
2012, p. 102).

Para isso é oportuno ter clareza a respeito das subjetividades e identidades sociais dos
alunos e alunas – afinal, o currículo, como objeto de disputas e elemento não neutro, está inserido
num contexto regional, social e cultural que não deve ser ignorado. Sendo assim, os(as) docentes
precisam renovar a cultura escolar, sempre, uma vez que a construção do currículo é um processo
intermitente. Para tanto, o Multiculturalismo Revolucionário se apresenta como libertador:

O multiculturalismo revolucionário é um multiculturalismo feminista-


socialista que desafia os processos historicamente sedimentados, através dos
quais identidades de raça, classe e gênero são produzidas dentro da sociedade
capitalista. Consequentemente [...] não se limita a transformar a atitude
discriminatória, mas é dedicado a reconstruir as estruturas profundas da
economia política, da cultura e do poder nos arranjos sociais contemporâneos.
Ele não significa reformar a democracia capitalista, mas transformá-la,
cortando suas articulações e reconstruindo a ordem social do ponto de vista dos
oprimidos [...] O multiculturalismo revolucionário não deve apenas acomodar

* 67 *
a ideia do capitalismo, mas deve também defender uma crítica ao capitalismo e
uma luta contra ele. A luta por libertação com base em raça e gênero não deve
permanecer desligada da luta anticapitalista (McLAREN, 2000, p. 284).

Além da participação democrática de toda a comunidade escolar, uma das primeiras


intervenções para a construção de um currículo eficiente é o ato intelectual de recortar o universo
escolar a partir de três pontos: a região, o tempo histórico e a realidade sociocultural onde a
instituição está inserida – lembrando que as fronteiras político-administrativas não coincidem,
necessariamente, com a separação dos costumes e das crenças de cada um.

Sem o rigor acadêmico (algumas vezes desnecessário), os saraus periféricos já “recortaram”


o universo escolar (mas não só) a partir dos três tópicos enunciados, afinal, a região, o tempo
histórico e a realidade sociocultural estão imbricadas e amalgamadas este movimento. Os muros
da escola se converteram em verdadeiras fronteiras que a aparta da comunidade e promove,
inclusive, uma guerra contra ela. Assim como os saraus romperam fronteiras, a Pedagogia do
Rap e da Literatura Periférica podem romper também.

O que se quer dizer com isso é que a instituição escolar precisa se apropriar desses e de
outros movimentos para ressignificar a educação a partir do protagonismo juvenil e periférico,
acabando com o desperdício de talento e potencialidades que acontece hoje: “[...] vi com os
meus próprios olhos o tamanho do potencial intelectual do gueto, que o sistema desperdiça
todos os dias. [...]” (EDUARDO, 2016, p. 666).

[...] a maioria das coletividades juvenis – “punks, skinheads, góticos, darks,


reggaes e, agora, os rappers”, apesar de ganharem destaque nos centros
iluminados da cidade, nascem, crescem e, geralmente, encerram suas atividades
nas regiões periféricas, onde os conflitos urbanos são mais intensamente
sentidos, vale dizer, vividos (SOUSA, 2006, p. 255).

O enfoque na periferia paulistana não significa, no entanto, ignorar a realidade histórica


da cidade como um todo ou, até mesmo, do Brasil e do mundo. Trata-se de partir do micro para
entrelaçar o conhecimento como um todo. Ainda que predomine no ensino uma atenção global,
devemos, enquanto historiadores, partir da especificidade para fundamentar o(a) aluno(a) a
partir da história local, suas relações pessoais, seus espaços de frequência, seu cotidiano, seus
costumes, suas memórias, etc.

Essa abordagem prevalece, inclusive, no trabalho com eixos-temáticos. Portanto, nada


mais natural que sigamos as orientações de Eduardo (2016) para realizar um recorte territorial
a partir dos “campos de refugiados” da “guerra não declarada”, onde o exílio se dá de diversas
formas, do cultural ao geográfico, do econômico ao linguístico:

Fomos confeccionados lentamente, para sermos os estrangeiros em sua própria


pátria, que não entendem o idioma falado por seus ditadores genocidas. O
resquício de cultura que nos permitiram assimilar, nos deu as gírias e as
expressões populares, mas não o conteúdo necessário, para a decodificação do
planeta do homem polido.

* 68 *
O dialeto aprendido nas quebradas e fortificado dentro do processo de
deseducação, garante aos inimigos, que os temas mais importantes passarão
despercebidos por nossos radares. Ao ouvirmos apresentadores de telejornais
falando sobre times de futebol, os nossos sistemas nervosos geram o estado de
concentração máxima, já, quando o assunto é política e problemas sociais, os
nossos neurônios adestrados produzem grandes taxas de desatenção.
Para se cultivar uma legião de analfabetos e analfabetos funcionais, é vital que,
enquanto palavras como bola, arquibancada, lantejoula, fantasia e carnaval,
soem familiares as frases contidas nas manchetes que revelem a face real do
Brasil, pareçam ditas em aramaico aos ouvidos dos crucificados (EDUARDO,
2016, p. 424).

É possível perceber, então, que o Rap e os sujeitos dessa movimentação coletiva têm
um papel estimulante e determinante na educação desses jovens, bem maior que a maioria
dos métodos pedagógicos presentes hoje no ensino oficial. Não se trata, portanto, do “fetiche
dos novos objetos”6, como apontou Silva e Fonseca (2010). O Hip Hop é, entre outras coisas,
uma forma de expressão e de diversão para o povo da periferia, e surge contra a espoliação, o
preconceito e a marginalização dos pobres. O rapper, enquanto o sujeito social dessa ação e
que, no caso analisado, representa a coletividade e o engajamento político é, antes de tudo, um
educador. E qual a formação desse professor não acadêmico? Com a palavra, Eduardo (2012):

Meu nome é Carlos Eduardo Taddeo, mas pode me chamar de Eduardo.


Meu currículo profissional não é muito extenso: sou um rapper ativista e nem
é por formação acadêmica, mas sim por auto proclamação. Não estudei em
Harvard, não sou cursado, pós-graduado, mestrado ou doutorado [...] Sendo
bem franco, eu nunca nem entrei em uma universidade. A bagagem cultural
que propicia a minha inserção no ramo literário, foi formada pelas informações
negadas ao coletivo popular, que por livre e espontânea vontade, eu adquiri
de maneira clandestina e marginal [...] Assevero sem medo de errar, que hoje
sou um autodidata em morticínio. É bem verdade, que do alto da minha 5ª
série não concluída do ensino público fundamental, nunca publiquei teses
ou dissertações, porém, sou mais capacitado para escrever sobre a atmosfera
agonizante abaixo da linha da pobreza do que qualquer sociólogo playboy que
estuda a crise humanitária nacional através de livros e computadores! Eu não
assisti filmes, documentários ou matérias jornalísticas sobre a Guerra Não
Declarada do Brasil, eu estou 24 horas diárias dentro de suas trincheiras. Eu
estou 24 horas tentando me proteger das agressões bélicas de um impiedoso
exército rival. Infelizmente, eu sou morador cativo do parque onde as anomalias
maquiavélicas guiadas por cifrões, se divertem aflorando as suas psicopatias
mórbidas (p. 13/14 – grifo do autor).

Novamente há uma referência implícita à educação formal como responsável por um certo
fracasso enquanto nação. No entanto, só será assim se continuarmos ignorando representações
6
O termo se refere à crítica de alguns historiadores à uma história “essencialmente” temática que, segundo eles,
por estarem apartadas da contextualização (social, cultural e política), perderiam a criticidade e ganhariam ares
de mera curiosidade.

* 69 *
potentes, como, por exemplo, as produções literárias da periferia. Por isso, Eduardo “bate com
tanta força na tecla da educação”, assim como, com o mesmo entusiasmo, faz e refaz uma
verdadeira apologia do Hip Hop como movimento pedagógico:

Volto aqui a destacar a importância do RAP no desenvolvimento da


identidade dos jovens da periferia. Dos anos 80 pra cá, não existiu no Brasil
um instrumento de transformação, que colaborasse tanto para a afirmação
da juventude pobre a afra, quanto a trilha sonora das favelas. Através das
rimas ousadas dos rappers (especialmente os considerados radicais como eu),
crianças, adolescentes e adultos, começaram a conhecer parte de sua verdadeira
história [...] (EDUARDO, 2012, p. 138 - grifo do autor).

Em suma, torna-se urgente uma aproximação dialógica entre a educação formal e a


comunidade, entre saber acadêmico e cultura popular, entre a Pedagogia e a Literatura Periférica,
entre a historiografia e o Rap. Se esse tipo de vínculo não se consolidar, o muro, esse simples
objeto de concreto, permanecerá como uma fronteira intransponível entre a escola e a rua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio desta pesquisa foi possível conhecer pontos de grande relevância em relação à
anticordialidade do discurso do Rap e da Literatura Periférica, além de vislumbrar possibilidades
de concepção de uma pedagogia pautada no conflito e no dissenso.

Ao buscar um aprofundamento na questão da Cultura Popular, nota-se que, pedagogicamente,


existe uma recusa na sociedade como um todo em reconhecer e validar os saberes e as experiências
do povo. Assim, a Cultura Escolar reproduz este modo de operação normalizante, no qual o saber
oficial é imposto aos estudantes de modo a anular o que cada um vivencia e conhece como realidade.
Procurei, portanto, dar destaque ao Rap como prática exitosa neste intento, por trazer uma linguagem
mais próxima da cultura de nossos alunos e alunas, além de fomentar o questionamento sobre essa
norma e seus padrões, que tenta modelar a sociedade como um todo.

A Literatura Periférica potencializou a arte ao adotar o discurso anticordial como forma


de dar voz a quem, normalmente, não a tem, questionando a posição de vítima passiva que a
sociedade lhe atribui.

Outro ponto vital foi a aproximação com teorias educacionais que elevassem a cultura
popular a um patamar de reconhecimento e valorização. Para isso, os conceitos de Pedagogia dos
Movimentos Sociais, Descolonização do Currículo e Multiculturalismo Revolucionário foram
importantes para aproximar os saberes academicamente construídos com visões de mundo
típicas do ativismo cultural dos coletivos periféricos da cidade de São Paulo.

Ao debruçar-me sobre a obra “A guerra não declarada na visão de um favelado” (vols.


I e II), verifiquei o quanto é importante valorizar a cultura periférica em sua integralidade,
ou seja, sem deixar de reproduzir discursos controversos, questionamentos às instituições e
linguagem coloquial. Concluiu-se que o livro, por ser o produto de um sujeito que representa

* 70 *
uma coletividade e exerce influência cultural, é um documento importante para repensar a
pedagogia vigente a partir da problematização e da crítica sociocultural. No entanto, procurei
não adotar um parecer reducionista e tratar tal obra como uma verdade absoluta sobre um
aspecto da realidade social ou como explicação de fenômenos socioculturais. O próprio Eduardo
coloca que sua escrita deve ser questionada. A criação ficcional pode ser baseada na realidade,
mas não é a realidade em si mesma.

Ao utilizar a literatura como preceito básico desta dissertação, optei por analisar o
livro enquanto leitura, sem recorrer ao autor para corroborar interpretações. Por isso, procurei
construir a pesquisa com base na linguagem artística, pois, como demonstrado, nas sociedades
onde existe algum reconhecimento de suas mazelas, principalmente aquelas que têm origem
na desigualdade social, as artes de um modo geral, e a literatura especificamente, encarregam-
se de levar conhecimento aonde o poder público falha, catalisando emoções, conscientizando
politicamente, debatendo a ética, exigindo direitos, denunciando violências, entre outras coisas.

Tendo esmiuçado a obra, parece pertinente a realização futura de uma ampliação, ou


mesmo um desdobramento do presente estudo, em que seja realizada uma entrevista, focando
em outros aspectos que perpassam a escrita.

Todo este processo culminou na constatação de que pode-se considerar apropriado


nomear o cenário da sociedade, e da Educação mais especificamente, como uma guerra não
declarada, no sentido de que os sujeitos são alvo de um perigo que se apresenta de diversas
formas: velado ou explicito, físico ou psicológico, direto ou indireto, etc. Por isso, reconhecer a
existência desse Estado de Guerra é o primeiro passo para a superação, e nada mais lógico que
essa inserção se dê nas salas de aula das escolas públicas e periféricas.

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EDUARDO. A Guerra não Declarada na Visão de um Favelado - v. I. São Paulo: sem editora, 2012.

* 71 *
EDUARDO. A Guerra não Declarada na Visão de um Favelado - v. II. São Paulo: sem editora, 2016.

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SILVA, Marcos e FONSECA, Selva G. Ensino de história hoje: errâncias, conquistas e perdas.
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* 72 *
PRODUÇÃO DE PRESENÇA NO ENSINO DE HISTÓRIA E
CULTURA INDÍGENA NA EDUCAÇÃO BÁSICA.

Elizabeth Fernanda Machado Serra.1

Em tempos em que as demandas sociais batem às portas da escola pública, e que se faz
necessário refletir sobre as abordagens que a disciplina de História propõe aos diferentes grupos
étnicos brasileiros, este artigo sugere reflexões sobre o ensino de história e cultura indígena na
escola pública contemporânea, considerando a produção de presença (ou ausência) destes povos
com base na análise de livros didáticos.

Através de pesquisa desenvolvida para dissertação de mestrado2 do ProfHistória,


programa de mestrado profissional em ensino de história que abordou o ensino de história e
cultura indígena na educação básica, houve intenção de contribuir para as ações de formação
continuada dos docentes do tempo presente.

Refletindo sobre as tensões entre as representações hermenêuticas no ensino da temática


indígena, e as possibilidades de produção de presença de Gumbrecht (2010) para o trabalho
pedagógico em ciências humanas, foi estabelecido um diálogo entre legislação, livros didáticos,
mercado editorial e sensibilidades afirmativas étnico-raciais em sala de aula.

A partir da dissertação intitulada “Produção de Presença no Ensino de História e Cultura


Indígena: Representações no Livro Didático”, tendo como ponto de partida a Lei nº 11.645/2008,
que torna obrigatório o ensino de história e cultura indígena na educação básica, analisamos
as tensões relativas ao currículo, as definições do mercado nesse campo e os impactos destas
relações para as práticas pedagógicas envolvendo a história e as culturas indígenas.

O ensino de história e cultura indígena em escolas não indígenas tem sido caracterizado
por tensões entre o que se expressa em relação às culturas indígenas e sua história propriamente
dita. Estabelecemos aqui relações entre o conceito de “produção de presença” desenvolvido por
Gumbrecht3 (2010) e as interpretações hermenêuticas no ensino de história e cultura indígena,

1
Licenciada em História pela Universidade UNICASTELO e mestre em Ensino de História pelo programa de
mestrado profissional ProfHistória (2020) na Unifesp em 2020 – E-mail: elizabeth.fmserra@gmail.com.
2
SERRA, Elizabeth Fernanda Machado. Produção de presença no ensino de história e cultura indígena:
representações no livro didático. Dissertação: Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos, 2020. Orientador:
Prof. Dr. Antonio Simplício de Almeida Neto.
3
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.

* 73 *
considerando como ponto de partida a aplicabilidade da Lei 11.645/08 e as implicações do mercado
de livros didáticos para as representações dos povos indígenas expressas nos materiais didáticos.

O conceito de produção de presença

O conceito de produção de presença desenvolvido por Gumbrecht (2010) proporciona


uma alternativa para as disciplinas de ciências humanas, que, segundo este autor, estão desde
a modernidade fundamentadas em pressupostos de racionalidade calcados no pensamento
cartesiano, apresentando como característica um possível distanciamento entre o sujeito e o
objeto nas relações de conhecimento. Desta forma, entendemos ser oportuno que o conceito de
produção de presença fosse explorado na disciplina de História, mais precisamente no caso do
estudo das culturas indígenas. De acordo com Gumbrecht:

A qualidade das observações e das interpretações depende da “distância adequada”


que o observador é capaz de manter em relação ao fenômeno que observa. Assim,
temos que fazer um esforço intelectual específico para entender o quanto é
problemático falar constantemente do “mundo” ou da “sociedade”, como se “mundo”
e “sociedade” fossem objetos distantes, em relação aos quais somos capazes de (ou
devemos) ocupar uma posição de afastamento. (2010, p. 44).

A crítica apresentada pelo autor refere-se à tradição epistemológica de predominância da


hermenêutica no desenvolvimento do exercício das ciências humanas, em que noções de razão
e de racionalidade privilegiaram a interpretação em detrimento da sensação, ou seja, a partir da
modernidade as experiências tangíveis com o saber perderam espaço por se considerar que as
sensações são impressões enganosas, e que por meio da hermenêutica o saber seria expresso e
apreendido de modo mais confiável por estar calcado em pressupostos aceitos e reconhecidos
nas comunidades intelectuais e científicas daquele período.

Nesta perspectiva, Gumbrecht (2010) propõe uma outra forma de lidar com o
conhecimento em ciências humanas, que denominou de “produção de presença”, em que sugere
uma maior aproximação entre o sujeito e o objeto, privilegiando a experiência estética em
primeiro lugar, objetivando que a interpretação hermenêutica não seja o principal ponto de
partida nas construções de conhecimento nas ciências humanas e prejudicial ao conhecimento
tangível. O conceito de produção de presença se expressa no que o autor chama de experiência
de “presentificação do passado”, que proporciona uma forma de relacionamento com o saber que
não provém de uma interpretação prévia a ser apreendida, mas que oportuniza novas construções
baseadas nas sensibilidades do corpo. Assim, tocar, ouvir, cheirar e experimentar passam a ser,
na visão do autor, uma forma legítima de apreensão dos conhecimentos, que não precisam ser
obtidos somente através de critérios de racionalidade, até então expressos através do exercício da
hermenêutica nas humanidades.

Destacamos que a tradição hermenêutica embora tenha legitimadas as suas ricas


contribuições para o exercício da construção do conhecimento e para o aprofundamento de
reflexões produzidas no campo intelectual, guarda também consigo a implicação de legitimar

* 74 *
uma cultura de estranhamento étnico devido à forma como se constituiu como condutora de
saberes de um dado período histórico. Nesse sentido, o que procuramos por meio deste estudo
é tão somente apontar algumas implicações da predominância da hermenêutica nas construções
de saberes envolvendo as alteridades.

Nesta abordagem pensamos que o primeiro contato relativo às experiências do passado,


a partir do exercício da hermenêutica como tradição pedagógica no ensino de história, pode ter
trazido prejuízo às construções de saber devido ao fato de promover o distanciamento entre o
sujeito e o objeto de estudo, neste caso nos referimos à história e à cultura indígena.

Entendemos ser adequada a aplicabilidade do conceito de produção de presença


desenvolvido por Gumbrecht (2010) para a disciplina de História, pois no concernente aos
estudos relacionados às populações indígenas, percebemos que as críticas desenvolvidas pelo
autor nos permitem concluir que com a primazia da interpretação em detrimento da sensação,
os povos indígenas juntamente com suas histórias e culturas já ficaram de fora em um primeiro
momento, tendo em vista que durante a modernidade não havia reconhecimento por parte da
comunidade científica das especificidades da variedade de etnias presentes no Brasil. O que
existia em relação às populações indígenas era uma série de narrativas equivocadas, calcadas em
impressões de povos europeus alheios às especificidades da diversidade de culturas indígenas,
que propagavam seus saberes através de práticas intelectuais em que a interpretação das culturas
partia de um viés colonizado.

O indígena no ensino de História: a Lei 11.645/08

Em estudos envolvendo livros didáticos desenvolvidos por Bittencourt4 aprendemos que


as representações dos povos indígenas aqui no Brasil foram construídas com base em concepções
de indígena expressas nos livros escolares originárias de obras francesas com uma definição bem
eurocêntrica do sujeito indígena. Segundo a autora:

Os editores de livros brasileiros têm sido compradores de fotolitos de


ilustrações das editoras francesas, principalmente para as obras didáticas de
História. Para diminuir gastos e proporcionar preços mais acessíveis aos alunos,
as editoras brasileiras usam desenhistas para reproduzir quadros ou gravuras
de livros estrangeiros ou mesmo de edições anteriores, com reproduções mais
cuidadosas. (2003, p. 76).

Com base nos apontamentos desenvolvidos por Bittencourt podemos estabelecer uma
relação entre a crítica de Gumbrecht (2010) acerca da predominância da hermenêutica nas
humanidades e a tradição do ensino de história e cultura indígena. É oportuno recuperar neste
momento um pouco da trajetória do ensino da temática indígena, que através de recente pesquisa

4
BITTENCOURT, Circe Fernandes. (org.) O saber histórico na sala de aula. 8ª edição. São Paulo:
Contexto, 2003.

* 75 *
desenvolvida por Russo e Paladino5 (2016) evidenciou que críticas desenvolvidas por Grupioni6
(1996) referentes às fragilidades encontradas nos livros escolares tiveram características de
permanência em relação aos equívocos e às generalidades relativos à abordagem das histórias
e culturas indígenas para discentes não indígenas. Estas autoras destacaram ainda que Silva7
(2010), analisando livros escolares após a promulgação da Lei 11.645/08, observou a recorrência
de abordagens em que os povos indígenas apareciam nos livros didáticos como figuras do passado.

Evidencia-se a partir destes estudos que as abordagens aos povos indígenas a partir
dos livros didáticos constituíram uma série de impressões equivocadas e genéricas dos grupos
indígenas brasileiros, tanto nas primeiras obras didáticas oriundas da França como nos materiais
produzidos no Brasil e inspirados nas reproduções e representações de indígenas baseadas nos
olhares que os povos europeus tinham em relação os nativos brasileiros.

É importante destacar que embora haja uma predominância de grupos sociais interessados
na manutenção destas impressões equivocadas, há de outro lado uma contracorrente de grupos
minoritários que procuram meios de desfazer os equívocos construídos na longa duração. Esses
grupos minoritários se organizaram e se engajaram na defesa de uma educação que mudasse o
olhar do não indígena para os indígenas.

Em recente dissertação de mestrado intitulada A Lei 11.645/08: história, movimentos


sociais e mudança curricular, a autora Giovana de Cássia Santos Fanelli8 recuperou a trajetória
histórica da Lei 11.645/08 ressaltando que:

Para chegar a sua iniciativa, houve um longo debate na sociedade, mudanças


na legislação nacional, a conquista de direitos históricos pelo Movimento
Indígena na Constituição de 1988, além de mudanças significativas na
educação brasileira e na educação escolar indígena, com a LBDEN de 1996
(2018, p. 99).

O estudo desta autora nos revela a preocupação de mudança de olhar em relação aos
povos indígenas e a tensão sentida em relação ao distanciamento existente entre o que se
expressava por meio das representações e a realidade cultural dos povos indígenas do Brasil.
Também foi destacado pela autora as importantes contribuições dos professores de educação
escolar indígena, que expressaram a insatisfação com o que se propagava acerca das etnias por
meio dos materiais escolares. Os professores envolvidos com a educação indígena demonstraram
preocupação para além de seus limites de atuação, pois como explicou Fanelli:

5
RUSSO, Kelly e PALADINO, Mariana. A Lei 11.645 e a visão dos professores do Rio de Janeiro sobre a
temática indígena na escola. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, vol. 21, nº 67, out-dez 2016.
6
GRUPIONI, L. D. Imagens contraditórias e fragmentadas: sobre o lugar dos índios nos livros didáticos. Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF: INEP, v. 77, n. 186, p. 409-437, maio/ago. 1996.
7
SILVA, M.P.A. “Presença” dos povos indígenas nos subsídios didáticos: leitura crítica sobre as abordagens das
imagens e textos impressos. Mnemosine Revista, Rio de Janeiro:UERJ, v. 1, n. 2, p.268 -290, jul./dez. 2010.
8
FANELLI, Giovana de Cássia Ramos. A Lei 11.645/08: história, movimentos sociais e mudança curricular.
Dissertação Faculdade de Educação da Pontífica Universidade Católica. São Paulo, 2018.

* 76 *
Em relação à luta pela organização dos processos formais da educação escolar
pelos indígenas, os professores perceberam que lutar por uma educação
intercultural não bastava, era necessário que a sociedade envolvente mudasse
seus olhares e modos de se relacionar com os povos originários. Essa modificação
passaria necessariamente pela escola e, nesse sentido, o Estado deveria ter o
compromisso de realizar políticas públicas para descompor imagens como a do
“índio genérico”, cristalizado no século XVI. (2018, p. 99).

Ficou evidente que a preocupação dos professores voltados à educação do público


discente indígena não se encerrava aos grupos étnicos, mas ampliava o olhar na direção dos não
indígenas, objetivando dirimir as desigualdades verificadas entre os diferentes grupos sociais.

Embora a Constituição de 19889 tenha avançado em relação aos direitos dos povos
indígenas, compreendemos que por vezes as representações dos grupos étnicos ficaram à mercê
de órgãos estatais que nem sempre corresponderam aos anseios e às necessidades reais dos povos
indígenas, como é o caso por exemplo da Fundação Nacional do Índio –FUNAI –, que sendo
órgão indigenista oficial do Estado por vezes deixa lacunas no que concerne ao protagonismo
indígena, mantendo caráter de permanência em pressupostos que foram alicerçados quando da
sua criação, como observaram Silva e Costa 10(2018, p. 85): “A FUNAI surgiu, assim, no cenário
nacional, com propósitos que não deixaram para trás as perspectivas assimilacionistas e integracionistas
que permearam as políticas indigenistas desde o início do século XX”. Ainda no tempo presente
percebe-se que ações dos órgãos indigenistas muitas vezes atendem aos interesses de grupos
hegemônicos portadores de valores contrários à preservação cultural indígena, favorecendo
ações deletérias à sua memória, história e cultura.

Silva e Costa ainda destacaram que “é importante ressaltar que, em pleno século XXI, muitas
das políticas e ações empreendidas pelo Estado brasileiro ainda são baseadas no Estatuto do Índio de 1973”
(2018, p. 86), fato este que nos permite compreender as dificuldades em ressignificar e caracterizar
a história e cultura das populações indígenas do tempo presente, pois as referências de indígena
construídas no passado ainda ecoam no imaginário não indígena brasileiro.

Tanto no passado como no presente os docentes manifestam preocupação com os


distanciamentos entre o que é resolvido no campo legal em relação às populações indígenas
e aquilo que é veiculado a seu respeito nos espaços escolares, especialmente no que tange aos
conteúdos presentes nos livros didáticos como criadores de conceitos e significações envolvendo
os diferentes grupos sociais. No desenvolvimento de nossas reflexões entendemos que existem
diversos fatores que contribuíram ao longo da história para que os equívocos e preconceitos
relacionados à história e à cultura indígena se sustentassem, entre eles destacamos a manutenção
dos estereótipos operada através dos livros didáticos, que como formatadores de saberes tiveram
larga utilização nas salas de aula de todo o território nacional.
9
BRASIL. Constituição Federal, 1988. Brasília. Senado. 2001.
10
SILVA, Giovani José da; COSTA, Anna Maria Ribeiro F. m. da. Histórias e culturas indígenas na educação
básica. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. 152 p.

* 77 *
Se de um lado temos a criação da Lei 11.645/08 como importante ferramenta de
legitimação e de reconhecimento da história e cultura indígena a ser explorada nos espaços
escolares, de outro lado temos a permanente tensão entre o que é resolvido no campo legal e o
alcance efetivo das ações no cenário escolar. Segundo Silva e Costa:

A promulgação da lei de 2008 tornou o ensino de história e culturas indígenas


obrigatório na Educação Básica, especialmente em alguns componentes
curriculares tais como História. Contudo, muitos professores se queixam que
não tiveram acesso a essa temática em seus cursos superiores de licenciatura e
temem reproduzir imagens estereotipadas e preconceitos por falta de material
pedagógico de qualidade. (2018, p. 67).

A dificuldade apontada por estes autores nos permite indagar sobre as fragilidades a que
o ensino da temática indígena está exposta, mesmo após doze anos de implementação da Lei
11.645/08, especialmente no que tange aos materiais de uso pedagógico, onde o livro didático se
destaca como importante ferramenta de legitimação de saberes.

Desta forma procuramos perscrutar os caminhos percorridos pelo livro didático a fim
de compreender como se deu a provável perda de referência da trajetória histórica dos povos
indígenas nos meios escolares.

Ensino de História e produção de livros didáticos no Brasil.

Ao analisar a trajetória histórica da produção, circulação e consumo dos livros didáticos


no Brasil, bem como as implicações destes trâmites para a disciplina de História e principalmente
para as representações dos povos indígenas por eles veiculadas, contemplamos o livro didático
como importante instrumento de formação de saberes e constituidor de valores sociais. Neste
contexto, consultamos pesquisas educacionais que suscitaram dados relevantes para a amplitude
de significações e de representações dos grupos étnicos contidas nos livros. Estudamos as relações
entre as sensibilidades despertadas nas relações de ensino e aprendizagem a partir da maneira
como as representações dos grupos étnicos é apresentada através dos livros didáticos.

Ao perscrutar a historicidade dos livros escolares, importantes estudos desenvolvidos na


França nos apontaram o livro didático como revelador de discursos muitas vezes ocultos na vida
prática, mas que são expressos nos livros e que são determinantes nos processos envolvendo as
tensões entre os diferentes grupos étnicos, de acordo com Choppin11:

O que os manuais pretendem mostrar têm, por isso, menos interesse para o
historiador do que a maneira como são feitos. Estudar por exemplo, a imagem
que os manuais americanos apresentam dos Negros, apreende-se bem mais
da sociedade americana contemporânea que sobre os próprios Negros, pois o
discurso sobre o outro remete uma certa imagem daquele que a tem. Há, portanto
11
CHOPPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. História da Educação: ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v.
6, n. 11, p. 5-24, 15 abr. 2002. Jan/jun. Disponível em:https://seer.ufrgs.br/asphe/article/view/30. Acesso
em: 22 set. 2020.

* 78 *
nos manuais também uma leitura em espelho! Mas o que é “marcante”, não é
somente a escolha dos textos e das ilustrações, mas os procedimentos retóricos,
os questionamentos, as definições, a paginação ou a tipografia. (2002, p. 22).

Nesse sentido, observamos que essa “leitura em espelho” a que se referiu o autor também
se aplica em relação às abordagens aos povos indígenas nos livros didáticos, às permanências
nos equívocos, às recorrentes generalizações, aos estereótipos e à manutenção de olhares
preconceituosos como se houvesse escalas evolutivas entre os diversos grupos étnicos. Estes
apontamentos são reveladores do tipo de sociedade que produz e mantém a circulação destes
valores nos meios escolares.

No Brasil, de acordo com Bittencourt 12 (2016, p. 193), a trajetória da disciplina de


História já na época do Império a partir de 1838 no colégio Pedro II foi marcada pelo uso de
manuais escolares de programas educacionais franceses, o que garantiu que a disciplina fosse
fundamentada em uma concepção eurocêntrica de mundo, que viria a comprometer a visão e a
compreensão relacionada aos povos indígenas na longa duração.

No final do século XIX os interesses e as finalidades do ensino de história foram se


modificando de acordo com as transformações sociais daquele período, e desta forma verificava-se
a preocupação com o delineamento da identidade brasileira. Segundo Bittencourt13 (2018), foi uma
época marcada por projetos educacionais que operavam no sentido de um passado homogêneo,
notadamente marcado por ideais patrióticos e que privilegiava a genealogia das nações europeias.

Já no século XX a disciplina de história buscava uma forma de educação que visava


a formação cidadã do alunado em consonância com os ideais democráticos do Pós Segunda
Guerra Mundial. Estudos desenvolvidos por Bittencourt (2018) apontaram que entre as décadas
de 1950 e 1960 a disciplina de História “mantinha-se como um ensino propedêutico com conteúdos
selecionados para atender aos exames vestibulares”. Nesta perspectiva fica evidente que o ensino
estava voltado às elites sociais operando relações de “seletividade” entre os diferentes grupos
sociais. Era um momento em que as elites queriam “salvaguardar” um ideal de “democracia
racial” que, negando as diferenças, mantinha a hegemonia europeia nos currículos.

Ainda com base nos apontamentos de Bittencourt (2016, p. 196), “até o início dos anos 70
predominou um estudo de história do Brasil vinculado a uma “genealogia de nação” com alternâncias
entre uma valorização do político ao econômico”. Sendo assim, mesmo que nos anos de 1980 a
disciplina de História tenha ganhado novos contornos em um período de redemocratização
do país, com os currículos mais abertos à participação democrática e com vistas a produzir no
alunado protagonismo no sentido de discutir a realidade na qual estavam inseridos, percebemos
que as raízes da disciplina de História ainda estavam alicerçadas em pressupostos ocidentais de
maneira tão naturalizada que não houve muito espaço para repensar as identidades étnicas.

12
BITTENCOURT, Circe Fernandes. Identidade Nacional e Ensino de História no Brasil. IN: KARNAL,
Leandro(org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2016. 216 p.
13
BITTENCOURT, Circe Fernandes. Reflexões sobre o Ensino de História. Revista Estudos Avançados. Vol. 32.
nº 93, p. 127-149, São Paulo 11 dez, 2018. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562.

* 79 *
Posteriormente, temos como divisor de águas na educação no ano de 1996 a aprovação
da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LBD 9394/96 –, seguida do estabelecimento
dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs –, que entre outras questões favoreceu o
desenvolvimento de discussões envolvendo as pautas étnico-raciais, momento este em que foi
questionado o “mito da democracia racial” no Brasil. Este foi um momento importante que abriu
caminhos para uma abordagem pluriétnica nos currículos, permitindo que ações educacionais
étnico-raciais pudessem figurar nos espaços escolares.

No presente século temos um cenário em que as demandas sociais batem à porta das
escolas com a manifestação dos diferentes grupos étnicos requerendo seus direitos e reclamando
seus espaços legais. Vemos neste contexto o cenário escolar como território de disputas, em
que tanto os espaços quanto os materiais destinados a estes espaços de formação são objeto de
dominação e de propagação de valores sociais.

Os livros didáticos ganham destaque nesta discussão por sua larga utilização e pelo alcance
de suas construções e representações, com uma tradição que reflete o impacto da dominação
eurocêntrica, hegemônica, canônica e patriarcal expressa por meio da cultura letrada, e pela
tradição hermenêutica contida nos livros.

Nesta perspectiva recorremos aos estudos de Cassiano14 (2013) para compreender a


influência dos aspectos mercadológicos envolvendo a produção, a circulação e o consumo de
livros didáticos, bem como para discutir as implicações decorrentes destas relações econômicas
para a produção de memórias étnico-raciais. A partir dos estudos desenvolvidos por esta autora,
os conteúdos abordados por meio dos currículos atendem a uma lógica social, sendo que agentes
externos ao meio educacional acabam por influenciar e/ou determinar as tramas da política
educacional brasileira. Segundo Cassiano, ao refletir sobre a entrada das editoras espanholas no
Brasil e o oligopólio formado por elas, é afirmado que:

Nos traz elementos para entender a complexidade do currículo desenvolvido


nas escolas, que está além dos muros, visto que nossa abordagem nos faz
estabelecer o vínculo estreito entre Estado, economia, cultura e educação,
inclusive em dimensão internacional (2013, p. 217).

Pensando por esse viés entendemos que compreender um currículo proposto para o povo
brasileiro torna-se complicado a partir do momento em que temos de considerar uma série de
interferências difíceis de serem elencadas em sua totalidade, e que incidem o tempo todo nas
relações sociais decorrentes do ensino escolar, se considerarmos tanto as influências internas
quanto as externas, como foi o caso da entrada das editoras espanholas.

É importante destacar que, ainda com base em Cassiano (2013, p. 98), o investimento do
Banco Mundial nos programas de livros didáticos no Brasil tem revelado congruência em alguns

14
CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada
do capital espanhol na educação nacional. São Paulo: Unesp, 2013. 340 p.

* 80 *
momentos da história entre o Ministério da Educação e o Banco Mundial, com a presença de
medidas consonantes a discursos e posições defendidos por grupos dominantes.

Ao considerar a abordagem didática aos povos indígenas percebemos que os livros


didáticos se enquadram nos parâmetros definidos pelo Programa Nacional do Livro Didático –
PNLD –, que por sua vez procura adequar-se às determinações legais para o ensino das disciplinas,
porém é notório que existem diversos embates sociais por trás dos currículos expressos através
do material didático. Desta forma, como bem disse Fanelli:

A lei aqui é entendida como um “campo de batalha”, considerando que é


operada em uma sociedade de classes, composta por grupos com interesses
contraditórios e antagônicos. Conforme salienta Thompson, a lei tem diversas
interfaces, não pode ser compreendida apenas como um arbítrio puro de uma
classe sobre a outra, mas por ser “espaço de conflito”, nas batalhas travadas
entre diferentes grupos da sociedade, pode se constituir também como local de
garantia de direitos. (2018, p. 68).

De acordo com Goodson (2014) estamos subordinados ao que o tempo histórico em


que vivemos nos impõe, sendo tanto sujeitos como reféns do capitalismo ao mesmo tempo.
Discorrendo sobre os sistemas de acumulação do capital e as implicações deste para as minorias,
o autor nos adverte que:

Assim, a noção de uma democracia que represente a todos é minada pela ordem
econômica em que a governança se realiza. Operando plenamente dentro do
mantra de acumulação por espoliação, os governos abandonam seu dever
anterior de “representatividade”. Ao invés de ser um processo de representar
“o povo” contra interesses poderosos, a democracia é invertida e representa os
poderosos grupos de interesse contra “o povo”. Essa inversão da democracia
anda de mãos dadas com a nova ordem econômica. (2014, p. 28).

Essa inversão da democracia contemplada por Goodson (2014) nos permite compreender
por que a abordagem dos livros didáticos em relação à cultura indígena ainda se mostra tão frágil,
pois os livros didáticos atendem a uma lógica social que privilegia interesses de determinados
grupos em detrimento de outros.

Em recente estudo desenvolvido por Fernanda Pereira da Costa15, mapeando os discursos


constantes em propostas curriculares brasileiras em vigor entre 2008 e 2016, para a história e
cultura indígena a partir da criação da Lei 11.645/08, a autora observou que, em relação à
abordagem étnico-racial, a maioria das propostas:

Opta por uma inserção genérica destas questões, não pontuando relações de
poder, conflitos e não definindo sujeitos e contextos históricos, como é o caso das
propostas de São Paulo, Rio Grande do Sul, Sergipe, Minas Gerais, Amazonas,

15
COSTA, Fernanda Pereira da. O ensino de história indígena nas propostas curriculares oficiais do Brasil.
(2008-2016). Dissertação Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos, 2020.

* 81 *
Santa Catarina, Rio de Janeiro, Amapá, Mato Grosso e Piauí. (p. 120).
Distintamente as propostas do Espírito Santo, Distrito Federal, Alagoas, Ceará,
Pernambuco, Tocantins, Acre e Mato Grosso do Sul evidenciam as hierarquias
sociais e as tensões que envolvem as relações étnico-raciais. (p. 120).

Teríamos muito mais a dizer para aprofundar as reflexões em torno das relações entre o
mercado editorial e a produção de livros didáticos como formatadora de compreensões étnico-
raciais, porém, devido ao espaço limitado de que dispomos, vamos procurar sintetizar a discussão
nos apropriando das considerações desenvolvidas por Silva16:

É através do vínculo entre conhecimento, identidade e poder que os temas da raça


e da etnia ganham seu lugar na teoria curricular. O texto curricular, entendido
aqui de forma ampla – o livro didático e paradidático, as lições orais, as orientações
curriculares oficiais, os rituais escolares, as datas festivas e comemorativas – está
recheado de narrativas nacionais, étnicas e raciais. (2019, p. 101).

A partir das reflexões desenvolvidas até aqui podemos dizer que o ensino de história e
cultura indígena que observamos nos livros didáticos foi constituído em meio a tramas sociais
que, sendo fruto de intensas disputas, legitimou determinadas formas de fazer pedagógico.
Em um contexto no qual a criação da Lei 11.645/08 aparece como propulsora de ações de
ressignificação na abordagem das diferenças, temos de um lado grandes oportunidades para
rediscutir as relações étnico-raciais no país, ao mesmo tempo em que verificamos embates
envolvendo os materiais pedagógicos, que por várias permanências observadas revelam perda de
espaço para repensar o que a tradição hegemônica estabeleceu como referência de saber.

Os conteúdos escolares, fundamentados em pressupostos europeus, ocidentais, cristãos e


patriarcais, norteados por formas de abordagem ao saber vinculadas a uma visão cartesiana de mundo
e calcadas no exercício hermenêutico, promoveram formas de construção de saber que ignoravam
as cosmogonias indígenas e todas as possibilidades de expressão de “ser indígena” delas decorrentes.

Contribuições ao ensino de história e cultura indígena a partir da proposição de produção de


presença de Gumbrecht (2010)

Neste momento encontramos o ponto de convergência entre a proposição de produção


de presença de Gumbrecht (2010) e as abordagens à história e à cultura indígenas veiculadas a
partir do uso dos livros didáticos, pois este objeto cultural figura como protagonista na formação
de saberes e na construção e na fixação de identidades e de memórias.

Entendemos que a formação de sensibilidades a partir da experiência estética


proporcionada pela articulação entre textos e imagens e o modo como estas estão entremeadas
nos livros didáticos legitima determinada impressão de ordenação social que impacta nas relações
extra muros a partir das construções operadas no âmbito escolar.

16
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019. 156 p.

* 82 *
Devemos destacar que antes de falar em produção de presença a partir da experiência
estética, tangível e sensível é importante recuperar que no século XIX houve a propagação do
chamado “método intuitivo”, que embora naquele momento tivesse pressupostos diferentes
daqueles que modelaram a história dos sentidos e das sensibilidades do século seguinte, serviu de
presságio do que estaria por vir. Braghini17 nos apontou que esse método surgiu como “novidade
formativa”, com a utilização de “objetos pedagógicos” que propiciavam que a partir do concreto
os estudantes conseguissem em seguida desenvolver abstrações, afirmando que “um rol desses
objetos pedagógicos que passaram a fazer parte do universo escolarizado, na busca de um conhecimento
de tipo empírico, de modo a perceber como os sentidos eram acionados e educados”. (2017, p. 67).

É importante ainda destacar que ao longo dos estudos aqui desenvolvidos estabelecemos
relações de distinção entre a proposta de produção de presença de Gumbrecht (2010) e
a história dos sentidos e das sensibilidades, para evitar confusões entre conceitos próximos.
Ao nos referirmos à produção de presença estamos nos aproximando mais do campo estético,
da experiência sensível, transcendendo a racionalidade e a experiência científica pautada nos
pressupostos cartesianos da modernidade, que tem como implicação o distanciamento entre
o sujeito e o objeto de estudo. Ao mencionar a história dos sentidos e das sensibilidades,
entendemos a partir das considerações de Pesavento18:

Principiemos pelo entendimento da sensibilidade como uma outra forma de


apreensão do mundo para além do conhecimento científico. As sensibilidades
corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência
humana que se encontra no âmago da construção de um imaginário social. O
conhecimento sensível opera como uma forma de reconhecimento e tradução da
realidade que brota não do racional ou das construções mentais mais elaboradas,
mas dos sentidos, que vêm do íntimo de cada indivíduo. (2005, s/p).

A autora desenvolveu reflexões sobre as sensibilidades nas relações de apreensão de


conhecimentos através da valorização da experiência sensível, porém tinha ao mesmo tempo a
hermenêutica como ferramenta de diálogo com o passado, fundamentada em fontes referenciais
de conhecimento estabelecidas e reconhecidas pelas comunidades científicas legitimadas no
século XIX. O processo desencadeado pela história dos sentidos e das sensibilidades trazia para
dentro da escola um caráter de “materialização dos discursos científicos”

Nesta perspectiva nos interessa distinguir as duas diferentes abordagens à história e à


cultura indígena, pois como a história dos sentidos e das sensibilidades foi fundamentada em
pressupostos estabelecidos na modernidade e as populações indígenas não tinham reconhecimento
de sujeito de protagonismo histórico na época em que este método se consagrou nos meios
escolares, vemos na proposição de produção de presença de Gumbrecht (2010) uma porta aberta

17
ASSIS, Paula Maria de. Educação dos sentidos e a formação do cidadão e cristão católico no Guide des écoles: o
modo marista de educar. In: BRAGUINI, Katya, MUNAKATA, Kazumi e TABORDA, Marcus Aurélio (Orgs.)
Diálogos sobre a história da educação dos sentidos e das sensibilidades. Curitiba, Ed. UFPR, 2017.
18
PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
Colloques/ 2004, fevereiro 2005. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/229>. Acesso em: 01/09/2019.

* 83 *
a novas formas de se relacionar com o passado a partir das experiências de “presentificação do
passado” que privilegiam a sensação antes de passar pelas representações operadas no campo
hermenêutico, que tiveram efeitos deletérios nas percepções e sensibilidades relacionadas à
diversidade dos grupos étnicos brasileiros.

Ao refletir sobre o livro didático e o alcance de suas construções, analisamos em


dissertação de mestrado intitulada “Produção de Presença no Ensino de História e Cultura
Indígena: Representações no livro didático” os livros didáticos mais consumidos nas edições do
PNLD no triênio 2017 - 2019 e no quadriênio 2020 -2023. Ao longo da análise dos livros
foi observado que as imagens utilizadas para ilustrar os livros didáticos operaram em relação
ao discurso subentendido a partir de hierarquias de importância atribuídas aos diferentes
sujeitos étnicos, no modo como as imagens e ilustrações foram organizadas em relação aos
grupos étnicos que constaram nas obras.

Apontamentos de Bittencourt19 (2014) nos indicaram caminhos para a análise dos


livros didáticos, e entre eles ganharam destaque, neste estudo, além dos conteúdos escritos, da
forma, tendência historiográfica e abordagem pedagógica, a escolha de imagens que auxiliam na
construção de identidades relacionadas aos grupos étnicos.

No caso da história e da cultura indígena observamos que tanto as abordagens realizadas


como a ausência destas, analisadas com atenção, nos trazem dados dos enfrentamentos a que a
educação étnico-racial está exposta, afinal, segundo Bittencourt:

A natureza dos conflitos vividos pelos indígenas difere dos demais grupos
sociais estigmatizados na nossa sociedade e cumpre que seja dada a devida
atenção e esclarecidas suas especificidades na atual conjuntura histórica e
política do país. (2014, p. 159).

Na coleção mais vendida nos dois últimos PNLDs, História, Sociedade & Cidadania, na
resenha disponibilizada pelo site da FDE20, a coleção didática foi descrita como promotora de
uma abordagem positiva em relação à história afro-brasileira, quilombola e dos povos indígenas,
sendo enaltecedora de ”valores, tradições, organizações sociais, saberes, formas de participação social,
política e cultural no Brasil e em outras partes do mundo, no passado e no presente.”

Ao analisar as imagens contidas na referida coleção foi observado que, ao longo dos quatro
volumes que compõem os conteúdos destinados ao ensino fundamental para anos finais, há
prevalência de fotos de pessoas brancas, com exceção do volume destinado ao 7º ano. De modo geral
na coleção, pessoas brancas foram colocadas em situação de protagonismo em 63,39% dos casos,
sendo que este número cai para 22,61% no que se refere à temática afro-brasileira, diminuindo
para 9,52% em relação à temática indígena e restando 4,48% das abordagens pluriétnicas.

19
BITTENCOURT, Circe Fernandes. Reflexões sobre currículo e diversidade cultural. IN: BUENO, José Geral do
Silveira; MUNAKATA, Kazumi; CHIOZZINI, Daniel Ferraz(org.) A escola como objeto de estudo: escola,
desigualdades, diversidades. Araraquara – SP. Junqueira & Marin, 2014. 256 p.
20
Resenha do PNLD 2020 disponível em: https://pnld.nees.ufal.br/pnld_2020/componente curricular/
pnld2020- história.

* 84 *
Devemos destacar que embora a quantidade de fotos representativas de indígenas
na coleção fosse pequena, a escolha das imagens demonstrou preocupação por parte dos
organizadores da obra em contemplar diferentes etnias de variadas partes do país.

A partir destes dados houve a impressão de que a coleção, embora reconhecida no meio
educacional como a que mais se destaca em atender as demandas educacionais contemporâneas,
ainda no século XXI opera em um formato que foi produzido para livros escolares do século
XIX, pois de maneira subentendida, ainda, através da escolha de suas ilustrações privilegia um
grupo étnico, ao passo que as culturas afro-brasileira e indígena são apresentadas como um
acréscimo à cultura dominante branca.

Notadamente, ao longo da análise evidenciou-se uma tensão entre o discurso textual


e a qualidade das proposições de pesquisas e atividades e os recursos imagéticos contidos ao
longo da coleção. No que concerne aos discursos textuais percebemos boas problematizações e
oportunidades para o desenvolvimento de debates e atividades profícuas para o enriquecimento
do debate étnico-racial.

Em um segundo momento foi percebido que as fotos que mencionamos acima perdiam
para a quantidade de desenhos representativos dos diferentes grupos étnicos, pois os desenhos,
pinturas, charges e outros desenhos representativos de diferentes grupos sociais apareciam com
maior incidência do que as fotografias destes sujeitos. Dos desenhos constantes na coleção,
67,02% tinham identificação com brancos, 22,55% com afrodescendentes, 7,65% relacionados
aos indígenas e 2,78% de desenhos com abordagem pluriétnica.

Ao abordar os objetos identificados com os grupos étnicos, as edificações por grupo


étnico e os mapas referentes a estes grupos, a equivalência foi muito próxima à verificada nas
abordagens das fotografias e dos desenhos, tendo sempre destaque tudo o que é relacionado
à cultura branca, ocidental, e tendo os afrodescendentes e indígenas um papel coadjuvante na
abordagem da história (tanto nacional quanto mundial).

Percebemos desta forma que, mesmo após passados doze anos da implementação da Lei
11.645/08, a aplicabilidade da lei expressa nos livros didáticos ainda constitui um grande desafio
no tempo presente. Ainda procuramos meios de conhecer, significar e ressignificar o protagonismo
histórico dos povos indígenas na construção da identidade e da memória histórica do povo brasileiro.

Infelizmente os livros didáticos destinados à educação básica ainda favorecem o


silenciamento da presença indígena, em que, através da experiência estético/sensorial com
estes materiais de estudo, a importância dos povos indígenas é mantida em um lugar ou
papel social há muito tempo determinado para eles por grupos hegemônicos que usurpam
o direito à memória e à história da nação.

Dentro do contexto que apresentamos tomamos como parâmetro os apontamentos de


Chartier21 (2011, p. 17), que ao abordar o conceito de representação afirmou que o mundo social é
21
CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 23, p.
15-29, 23 jan./ jun. 2011.

* 85 *
construído através da “violência simbólica” em processos em que a representação é determinante
para delimitar os espaços de ação dos sujeitos promovendo um ordenamento social sem que as
partes prejudicadas tenham força para ressignificar seus papéis sociais.

Nesse sentido, entendemos que a proposição de Gumbrecht (2010) de produção de


presença para as disciplinas de Humanas seja expressivamente oportuna aos estudos envolvendo
as populações indígenas, suas histórias, culturas e memórias, privilegiando uma abordagem
estético/sensorial ou sensível/tangível a partir de um viés não hermenêutico, nem calcado nos
pressupostos ocidentais que estão ainda sendo ratificados nos livros escolares. Os próprios
livros didáticos podem ser reconfigurados na direção contrária do que foi imposto pela tradição
hegemônica, porém a empreitada não é fácil tendo em vista que muito do que se produziu nas
ciências humanas é fruto de representações construídas para a manutenção da ordenação social
que se pretendia manter.

Ainda no tempo presente temos o enfrentamento de processos redutores de narrativas


étnicas que operam no universo da linguagem, como afirmou Lutfi 22 (1996, p. 93), evocando Henri
Lefebvre, “dissimulam ações concretas”, se utilizando de símbolos e signos, imagens e representações
silenciadoras dos conflitos e das identidades. Infelizmente este parece ser o caso dos livros didáticos
do tempo presente, pois embora tenham avançado na abordagem dos conteúdos étnico-raciais a
partir da Lei 11.645/08, ainda demonstram fragilidades importantes a serem dirimidas.

Entendemos que a proposta de produção de presença de Gumbrecht (2010) possa ser


explorada em relação à temática indígena, principalmente se utilizada tendo como ponto de
partida elementos da cosmogonia indígena, que servindo como provocadores de sensibilidades
sejam disparadores de situações de aprendizagem significativas, calcadas na experiência estética,
isentas do domínio da primazia do fazer cartesiano e hermenêutico criticados por Gumbrecht, em
que os espaços e materiais de aprendizagem se constituam em um laboratório de aprendizagem,
para que estudantes não indígenas se apropriem do universo de significações das diferentes
etnias que compõem o atual cenário brasileiro.

Neste contexto há uma imensa gama de possibilidades de ações pedagógicas de produção


de presença possíveis de se realizar, entre elas destacamos a exploração de alguns elementos
que são significativos dentro das cosmogonias indígenas e que podem ser utilizados a partir
da experiência estética (sensível e tangível) para evocar significações e sentidos que somente
podem ser dimensionados dentro de uma perspectiva indígena. Assim, explorar elementos como
a terra, os grafismos, os instrumentos musicais, as bebidas, os cantos e as sonoridades, entre
outros aspectos, poderá servir como ação de reparação e de superação ao que foi construído
através dos fundamentos cartesianos e hermenêuticos, aqui entendidos como distanciadores de
sensibilidades afirmativas étnico-raciais.

A exploração das significações relacionadas ao universo indígena pode ser propulsora


de uma série de compreensões que podem recuperar parte do que foi perdido das histórias
22
LUTFI, Eulina Pacheco et al. As representações e o possível. IN: MARTINS, José de Souza (org.) Henri
Lefebvre e o retorno da dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.

* 86 *
e culturas indígenas na longa duração, além de proporcionar o refinamento do olhar para as
diferenças entre os diversos grupos étnicos, que em sua coexistência formam o povo brasileiro, a
identidade e a memória nacional.

Referências bibliográficas

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Guide des écoles: o modo marista de educar. In: BRAGUINI, Katya, MUNAKATA, Kazumi
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* 87 *
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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo.
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* 88 *
EDUCAÇÃO E MEMÓRIA NAS ESTÓRIAS E HISTÓRIAS:
UM QUEBRA CABEÇAS “HESTÓRICO”.

Igor Martins Fontes Leichsenring

“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.


(ROSA, 1994. p. 436).

O objetivo deste artigo é apresentar uma pequena contribuição à melhor integração entre
o ensino de história e de literatura. Para isso, realiza-se um panorama geral das ideias de educação,
memória, narrativa e ludicidade dos dois autores que embasaram este estudo, Guimarães Rosa
(1908-1967) e Walter Benjamin (1892-1940). As reflexões aqui desenvolvidas configuram um
recorte temático de questões defendidas em minha dissertação de mestrado, Hestória: estória
contando história – “A terceira margem do rio” como uma releitura, por Guimarães Rosa, da teoria de
história de Walter Benjamin, pelo Programa de Pós-Graduação Profhistória1. Ao final do artigo,
em caráter de apêndice, é reapresentado um jogo voltado ao público da educação fundamental,
elaborado sob a inspiração de tais ideias, representando a culminância da parte pedagógica da citada
pesquisa. A hipótese central da dissertação é a de que o conto de Rosa teria sido desenvolvido a
partir do tema central do ensaio de Benjamin – a memória – utilizando-se de diversas releituras
metafóricas do texto, o qual só cresceu em importância desde a morte do autor. Nele, o alemão
usa a imagem de um rio para criticar a noção de progresso adotada pela classe operária alemã,
que o autor considerava estar flutuando “com a corrente (...) na qual ela supunha estar nadando”.
A noção do tempo historicista que, segundo Benjamin, estaria representada pelo rio “continuum”
da história, é substituída pelo autor por uma história “como montagem”, em que o historiador
“comprometido” seria responsável por captar o evento histórico em seu “relampejo fugaz”, por
meio da memória. No conto, a “canoa” do pai, que representa a história, também surge ao filho de
maneira fragmentada, fixando-se numa utópica “terceira margem” graças à resistência do filho, o
único que ainda se lembra dele. A tradição e o progresso não estão, respectivamente, atrás (passado)
e à frente (futuro) no fluxo do rio-tempo, como queriam os “historicistas”. Ambas foram colocadas
em margens opostas, tão inevitáveis como inconciliáveis no interior do “tempo-de-agora” vivido,
assim como a imagem criada por Benjamin.

1
Mestrado profissionalizante em Ensino de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – Guarulhos,
em 2020.

* 89 *
A aproximação de uma teoria de história com a literatura configura um limiar, para usar
um outro conceito benjaminiano, entre as áreas. A história costuma aparecer no interior da
literatura como possibilidade, não como paradigma. A representação literária de uma teoria de
história parece um artifício de Rosa para destacar certos paralelismos existentes entre a estória
como narrativa e a história como disciplina. Se o alemão contribui para a teorização da história
sobre a literatura, o brasileiro, de forma espelhada, teria elaborado o que poderíamos chamar de
uma literatura sobre a história. Benjamin se aproxima da literatura ao criar conceitos metafóricos
chamados de “imagens de pensamento” – outro importante conceito do autor – visando uma
melhor representação de questões filosóficas. Rosa aprofunda esses conceitos ao criar literaturas
não menos filosóficas a partir das principais “imagens de pensamento” presentes no ensaio do
alemão. Com esses elementos, nossa análise se transforma em uma espécie distinta de Literatura
Comparada, em que se relacionam e se confundem textos de história e de estória, no que chamei
de “hestórias”, por inspiração guimaroseana. Pela mesma lógica, o conto mais lido de Rosa, “A
terceira margem do rio”, poderia ser considerado “hestórico”.

Ressaltando o valor da memória e recontando estórias que estão no limiar das histórias,
Rosa vai na contramão da prática segregacionista que tão comumente é adotada pelos
“especialistas” de ambas as áreas, algo que é inversamente proporcional à atratividade do ensino,
que enfraquece quanto mais distantes aparecem ambas as áreas nas relações de aprendizado.

Em Ensino de história: diálogos com a literatura e a fotografia, Julio Pimentel Pinto e Maria
Inez Turazzi afirmam, ao discorrerem sobre algumas afinidades entre história e ficção, que a
proximidade da literatura com:

a experiência historicamente vivida também é notável. A função historiador,


de resto, é exatamente esta: refletir sobre experiências históricas e identificar
seus sentidos gerais e específicos. E a ficção, em inúmeros casos, igualmente
parte de situações realmente vividas e as recria imaginativamente. Ou, ao
contrário, sugere alternativas para a história em curso, avalia caminhos que
poderiam ter sido seguidos e não foram. (…) As duas narrativas – a histórica
e a ficcional – são como vizinhas: compartilham elementos de construção,
têm vista para horizontes próximos, trocam informações e confidências,
preocupam-se com problemas parecidos e se visitam regularmente2.

A noção de ‘vizinhança’ sintetiza bem a relação entre ambas. Se “A terceira margem


do rio” foi realizado a partir da releitura de uma teoria de história, portanto, partiu também
de uma análise filosófica, mais que de uma invenção. Neste caso, a literatura estaria a recriar
imaginativamente os “sentidos gerais e específicos” da história. Seus “horizontes próximos”
seriam talvez o que os alemães chamam de zeitgeist – o espírito do tempo –, ou seja, o ambiente
social, cultural e intelectual que permeia a experiência humana numa dada época. Para
designar o mesmo fenômeno, Benjamin usa o termo “extrassensível”, e Rosa, o termo “supra-
consciente”. A história de Benjamin valorizava fortemente a literatura, relatos e anedotas,

2
PINTO. Júlio Pimentel e TURAZZI, Maria Inez. Ensino de história: diálogos com a literatura e a fotografia.
1a ed.– São Paulo: Moderna, 2012 –p. 13.

* 90 *
podendo-se facilmente considerá-lo um precursor da “virada linguística”. Tal movimento
filosófico, também chamado, no Brasil, de Giro Linguístico, ampliou a importância da
linguagem no interior das áreas de humanas em nível internacional, principalmente a partir
da década de 1970. A linguagem, deixa de ser mero transmissor da realidade, e passa a ser
entendida como parte dela, na medida em que a limita3. Décadas antes, Benjamin já criticava
as insuficiências e contradições do discurso histórico de que era coetâneo, abandonando a
ilusão de produzir uma história ‘universal’. Ao contrário, em suas já citadas “passagens”, ele
intuitivamente se lança a um arsenal de anedotas de sua época e busca extrair de seu conjunto
uma síntese do sentido histórico por elas ensejado. Desta forma, se esmera por “refletir sobre
experiências históricas e identificar seus sentidos gerais e específicos”. Já Rosa, que também
parte de anedotas para criar suas estórias, “igualmente parte de situações realmente vividas e
as recria imaginativamente”. Enquanto a história busca aproximar-se da experiência passada,
sem lograr jamais reproduzi-la, a literatura parte inevitavelmente de tais experiências, sem se
limitar a elas, acrescentando-lhes outras, imaginadas dentro das certas “margens” predefinidas
pela história. Por isso ela “sugere alternativas para a história em curso”. Não se estabelece
relações diretas de causa e efeito, menos ainda explícitas. Entretanto – completam Turazzi e
Pinto – “inúmeras vezes é preciso decifrar os sinais que a obra ficcional traz para, por meio
deles, encontrar a história – uma operação que nem sempre é simples”.

Benjamin e Rosa: infância, linguagem, educação e tradição

“Aprenda o ABC; não basta, mas aprenda!


Não desanime! Comece!
É preciso saber tudo!
Você tem que assumir o comando!”
(BRECHT, 1986, p. 121).

Comecemos esta parte com uma curiosa intersecção entre o padroeiro da educação
nacional, Paulo Freire, e Guimarães Rosa, quanto à linguagem. A libertação, para Freire, se
daria pelo aprendizado da língua, num país até então majoritariamente analfabeto. A relação
entre educação e liberdade, aliás, é um pensamento já encontrado no iluminismo4. Seu método
de alfabetização se consagrou pela importância que atribui à realidade do educando e seus
interesses, além de sua experiência e conhecimento prévios. Também para Rosa a linguagem
pode ser instrumento na transposição de fronteiras, ainda que sob outro viés. Na sua famosa
entrevista para Gunter Lorenz, ele afirma que se alegrou pelo acerto do seu interlocutor ao
criticá-lo, dizendo que em “Grande Sertão eu havia liberado a vida, o homem… É exatamente
isso que eu queria conseguir. Queria libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em sua
forma original. Legítima literatura deve ser vida”. Também para ele a língua é instrumento de
3
Para entender melhor a importância da ‘virada linguística’ nas ciências humanas, vale recorrer a: NIGRO, Raquel
Barros. Desconstrução Linguagem Política. Tese de Doutoramento – PUC Rio. 2007. p33. Segundo a autora, a
virada: “aponta para uma filosofia que quer pensar a linguagem e o complexo processo de significação em outras
bases. (…) através de uma investigação sobre o funcionamento da própria língua, tenta esclarecer os problemas
filosóficos tradicionais através de uma crítica da própria linguagem em que tais problemas são elaborados”.
4
ZATTI, Vicente. Autonomia e Educação em Immanuel Kunt & Paulo Freire. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2007. p64

* 91 *
libertação e busca pelas origens. Segundo Willi Bolle, tratando de afinidades entre Benjamin e
Rosa, o alemão intencionava uma “escrita de trânsito universal”, enquanto Rosa queria “renovar
o mundo por meio da renovação da linguagem”. A sonhada língua “universal” acabou sendo
proposta na forma do esperanto, estudado também por Rosa, mas que até hoje não vingou como
a sonhada segunda língua universal. Por outro lado, a comunicação imediata entre línguas avança
velozmente com as tecnologias de tradução virtual. Bolle também destacou o poder das novas
tecnologias, as quais impactariam significativamente os ideais educativos de Benjamin e Rosa:

O desafio dessa geração atual é como dar continuidade a esse legado altamente
criativo de Benjamin e de Guimarães Rosa. Com base nesse laboratório de
‘renovação da linguagem’ (…). A minha expectativa, ou melhor, o meu desejo,
é que ocorra uma grande expansão do uso do letramento, ou seja, da habilidade
de escrever, no sentido de que cada cidadão – inclusive os que pertencem às
camadas mais pobres da população, os ‘iletrados’ – se torne virtualmente um
autor, que possa apresentar o seu pensamento no espaço público5.

Recorrendo ao conceito benjaminiano de “autoria”, Bolle afirma ter “expectativa” – logo


reduzida a um “desejo” – pela expansão do letramento na era virtual. Mas, afinal, o que é um
“autor” num universo extremamente pulverizado, em que os “iletrados” podem dizer o que pensam,
mas que ninguém os ouve? Imaginando um futuro em que as escolas públicas de fato utilizem
as ferramentas virtuais para catapultar seus projetos pedagógicos, ainda assim, como seus alunos
vão se transformar em verdadeiros autores, ultrapassando a condição de meros reprodutores de
conteúdos, dentro do maremoto virtual de informações? Há boas razões para acreditar que os
poderosos interesses por trás das principais tecnologias virtuais utilizadas continuarão a pautar
nossos gostos, interesses, ideias e, atualmente, até mesmo sentimentos. Há muitas dúvidas entre os
que esperavam que o letramento e o acesso à comunicação consolidariam uma educação libertadora.

Novamente devemos nos preocupar com as reflexões que Benjamin fazia em relação
à “tempestade do progresso”. Isto porque a maior parte da população permanece vendo o
“desenvolvimento técnico (…) como o declive da corrente, na qual ela (supõe) estar nadando”6,
manipulada pelos interesses de monopólios midiáticos. A apropriação instrumental da linguagem,
portanto, não significa necessariamente um reforço à autonomia do indivíduo, caso permaneça
presa à “arena da classe dominante”7. Desta forma, assistir a aulas virtuais por meio de um tablet,
por si só, não necessariamente significa para os ‘clientes’ das plataformas um progresso humano
ou uma melhora na qualidade da comunicação. Bolle, referindo-se ao Grande sertão, diz:

O projeto de Guimarães Rosa de renovar e reinventar a linguagem tem sua


base numa reflexão crítica sobre a falta de comunicação entre a camada social
superior, considerada ‘culta’ e ‘letrada’, e as camadas de baixo, ‘os iletrados’. (…)
uma espécie de laboratório para um diálogo entre as classes. A começar pela
forma como é construída a situação narrativa. Um doutor da cidade tem a
paciência de escutar durante cerca de 500 páginas a fala de um sertanejo”8.

5
BOLLE, Willi. Entrevista In Testemunho e Melancolia. BENTIVOGLIO, Júlio. p. 164.
6
BENJAMIN, Op. cit. Walter. Sobre o conceito da História. Tese 11, p. 227.
7
BENJAMIN, Op. cit. Walter. Sobre o conceito de história. Tese 14. P. 230.
8
BOLLE. Op. cit. p. 165.

* 92 *
Não discutirei aqui até que ponto a internet poderia ser chamada de um “laboratório para
um diálogo entre as classes”, mas é indiscutível que o domínio da comunicação ocupa um espaço
talvez nunca antes visto no interior das relações de poder. No mundo virtual, o analfabetismo
funcional torna-se ainda mais prejudicial que outrora, mudando-se os próprios parâmetros
da comunicação. Entretanto, sublinhemos nesta passagem um aspecto curioso a respeito da
renovação da linguagem. Trata-se de uma premonição de Rosa em entrevista a Walter Hollerer.
O crítico literário nota que as obras do brasileiro teriam iniciado em um grande romance,
passando por contos longos (novelas pequenas?) – “Manoelzão e Minguilin” – e culminando
em contos curtos – “Primeiras estórias”. O entrevistador diz, em tom de brincadeira, que Rosa
acabaria publicando um livro de poemas, desconhecendo ter sido esse o início de sua carreira,
com o livro Magma, não publicado. A resposta de Rosa, ainda antes de suas mais curtas estórias –
reunidas no livro Tutameia – foi: “Chegarei até o hieróglifo”9. Curioso que a tendência se fez
não apenas factível, décadas depois, como possibilitou que alguém, arrastando o dedo de letra
em letra na tela do celular, desenhasse rabiscos ao estilo de hieróglifos, formando outros signos,
as palavras. Isso sem contar os tais ‘emojis’, resumindo, através de desenhos rudimentares, um
sentimento. Seligmann-Silva busca em Benjamin aspectos semelhantes aos que Bolle encontra
em Rosa, a respeito dos possíveis impactos de sua obra na atualidade, dizendo que o alemão:

[...] estabelece uma nova reflexão a respeito dessa relação entre as artes e o corpo
para o homem do século XX. Deste modo, ele nos apresenta como proceder
para (nos) pensarmos diante da revolução midiática que nos é contemporânea.
A situação de abalo da tradição que ele descreve só fez se agravar com o tempo
dos cerca de 75 anos que nos separam de seu ensaio”10.

Tratando-se de um artigo cuja proposta é eminentemente pedagógica, visando


a recuperação e a valorização da memória, vale ressaltar que ambos, Benjamin e Rosa,
empreenderam uma batalha contra o desaparecimento das culturas tradicionais, consequência
natural da urbanização moderna. Em sua obra Passagens, Benjamin realiza um resgate
de centenas de narrativas que se passam em meio à tensa relação entre campo e cidade,
transformando em proletários os antigos camponeses. Por outro lado, alerta para a tentativa
dos interesses comerciais típicos das urbes de assimilá-los, dizendo que Daguerre, precursor
da fotografia e do cinema, realizaria um “incansável (…) esforço em tornar os panoramas,
por meio de artifícios técnicos, locais de uma imitação perfeita da natureza” em que “figuras
situadas plasticamente no primeiro plano, e cujo fundo informativo corresponde ao segundo
plano pintado (…) como figurante de um idílio”. Desta forma, o citadino, cuja “superioridade
política em relação ao morador do campo se manifesta inúmeras vezes no decorrer do século,
tenta inserir o campo na cidade”, de forma pulverizada, como posteriormente faria a figura do
flaneur, espécie de colecionador de fragmentos do passado.

9
HOLLERER apud VILELA, Soraia e JACOBSEN, Adriana. Outro sertão. Documentário. 73 min. Brasil, 2013.
10
SELLIGMANN-SILVA, Márcio. Walter Benjamin Para uma nova ética da memória In Testemunho e
Melancolia. Júlio Bentivoglio e Augusto de Carvalho (Org). Serra: Milfontes, 2019. p. 31.

* 93 *
Consideremos agora como a relação entre campo e cidade também preocupava Rosa.
Este, saído do interior de Minas Gerais para estudar em Belo Horizonte, nunca voltou a viver no
campo, todavia, teria buscado em seus escritos resgatar, pela memória, suas raízes e tradições. Isso
fica claro pela qualidade dos volumes de sua biblioteca, atualmente alojada no IEB-USP, bem
como em suas cartas pessoais, dentre as quais, por exemplo, solicita ao pai que lhe conte anedotas
de sua terra, além de nomes de bichos, plantas etc.11 Seu Primeiras estórias corrobora tal sentença.
Quase todos os contos tratam de questões migratórias, primária ou secundariamente. Mesmo o
primeiro e o último de seus contos, cujos enredos se passam em ambiente urbano, demonstram
a cada linha o choque operado pela construção de uma cidade (Brasília?) na mentalidade rural
preponderante entre seus construtores. A migração configura o contexto ou o próprio tema
de quase todas as estórias, tal qual um persistente pano de fundo de caráter eminentemente
político. Esmera-se no resgate das estórias contadas pelo seu povo, incluindo os sonhos dos que
partiram e suas tradições. É este o seu grande compromisso literário.

Experiência: tecido da memória e leitura do mundo

Em entrevista a Ascendino Leite, depois da publicação de Sagarana, seu primeiro livro,


Rosa disse que:

À medida que vou vivendo e sonhando, participando de um mundo diferente


do da minha infância, vou sentindo que mais tarde serei capaz de me tornar
um escritor da cidade, quando os fatos e as pessoas de hoje forem partes da
minha memória, constituírem lembranças e saudades, como as de Cordisburgo
e Itaguara, que me fizeram escrever Sagarana12.

A memória aparece em sua fala de forma especialmente singular, tal qual uma promessa
de um sentido longínquo, que viria somente após sua lenta maturação. É o reconhecimento
da perda que lhe emprestará valor, já na urbes, quando as transformações da vida confirmarem
a distância adquirida em relação às suas raízes. Ana Nemi, em seu artigo “Para quê ensinar
história?”, parte de temática semelhante para formular sua análise:

A pobreza e a exclusão social que leva milhares de pessoas a se movimentarem


pelo planeta em fronteiras e barcos clandestinos, a procura de melhores
condições de vida, não é um dado da natureza: ela possui História e é só
pelo conhecimento dessa História que se podem encontrar os caminhos para
a sua superação. É atrás dessa pista que vamos andar neste pequeno texto:
ensinamos História para conhecer os muitos tempos sobrepostos no mesmo
espaço, para compreender como os tempos modernos, especialmente nos países
ditos atrasados, reconstruíram espaços, recolocaram problemas, transformaram
culturas e, ao mesmo tempo, guardaram as marcas dos tempos passados13.

11
Cf. VILELA, Soraia e JACOBSEN, Adriana. Outro sertão. Documentário. 73 min. Brasil, 2013.
12
ROSA apud. LARA. Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa In LARA, C. de. Rosa por Rosa: memória e
criação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 41, pp.17-34, 1996. p. 19.
13
NEMI, Ana Lúcia Lana. Para quê ensinar história? In. Revista Tempos Históricos – M. C. Rondon – v.09 –
p245-256 - 2osem/2006. p. 247. Disponível em:<http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/
view/8091/6013>. Acessado em: 14.08.2020.

* 94 *
Historicizar as migrações é tarefa do historiador, e será tanto melhor sucedida, nos tempos
atuais, quanto mais se puder separar as camadas de tempo “sobrepostas no mesmo espaço”. A
autora parece dialogar com a feliz metáfora das “camadas”, consagrada no canônico ensaio de
Benjamin, “O Narrador”. Neste, a tradição oral expressa a “melhor imagem do processo pelo
qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento de várias camadas constituídas pelas
narrações sucessivas”. Tais narrativas, independentemente de sua origem real ou imaginada,
seriam estórias cujas diversas camadas adquiridas no sedimentar de séculos de transmissão
cultural se revestiriam de historicidade. A cada camada algo se ganha e algo se perde. O objetivo
do ensino de história, de acordo com a autora, estaria justamente em compreender de que forma
sobrevivem “marcas dos tempos passados” na atualidade.

A história humana é o que se pôde desenterrar dessa sedimentação desde o surgimento do


homo sapiens. Foram pelo menos 200 mil anos de nomadismos e trocas que deixaram seu rastro
humano pela Terra, antes que as primeiras experiências sedentárias fossem possíveis. Só que há
uma diferença entre o significado das antigas migrações, em que tribos inteiras transladaram
suas tradições para um novo território, e as migrações do período contemporâneo, em que
massas de indivíduos atomizados carregam suas culturas para dissolvê-las no caldo hegemônico
das megalópolis. Na multiplicidade das culturas ali dispostas, o máximo que se pode construir
são o que Nemi chama de “identidades compartilhadas”, as quais devem ser trabalhadas em sala
de aula partindo da situação local, embora sem negligenciar sua simultaneidade com o contexto
universal com o qual se relaciona. Buscando esta integração, ela propõe uma “abordagem do ensino
de História por meio de temas de estudo”, destacando a “importância da transversalidade na
execução de projetos, não como um momento diferenciado e fragmentado da grade curricular”14,
mas como prática diária. A seguir, a autora nos fala sobre a relação entre história e política.

A ampliação dos temas estudados pelos historiadores trouxe complexidades


que dificultam a apresentação desses mesmos novos temas. O uso da narrativa,
neste sentido, é um recurso que permite apresentar melhor o tema abordado,
mas isso não significa, necessariamente, que o historiador esqueceu-se das
grandes questões que apontam para o estudo das estruturas15.

Ela introduz a questão das narrativas, que paulatinamente tem ganhado espaço na
historiografia a partir da Virada Linguística, com impactos na literatura e desdobramentos na
educação. Chegamos, então, à narrativa, tema fundamental em Benjamin e Rosa. O primeiro
equiparava a memória e a narrativa aos próprios “registros” históricos, distintamente chamados
de “os bens culturais” pelos historicistas. O segundo faz questão de nomear alguns de seus livros
como “estórias”, valorizando o caráter de narrativa, ainda que sem negar sua validade histórica.

Como tais narrativas, muitas vezes memórias de velhos, podem auxiliar na educação
dos dias de hoje? Que significação cultural podem ter? Como ajudariam na construção de uma
história local? Ecléa Bosi, tratando sobre o tema, afirma haver coerência

14
Idem. p. 249.
15
Idem. p. 250.

* 95 *
no pensamento de Halbwachs: o que rege, em última instância, a
atividade mnêmica é a função social exercida aqui e agora pelo sujeito que
lembra. (...) neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma
função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da
instituição, da sociedade16.

Lembrar das mudanças nas paisagens, culturas e hábitos, bem como auxiliar a articulação
de uma história ‘regional’, seria uma possível resposta às questões levantadas. A “função própria”
da fugaz velhice é a lembrança. Uma análise historiográfica sobre um acontecimento passado
será tanto mais criteriosa quanto menos prescindir do ‘avivamento factual’ produzido pela
lembrança de quem o viveu. A diversidade das narrativas apresentadas pode transformar-se no
‘fiel da balança’ sobre sua real significação no momento do ocorrido, incluindo as possibilidades
alternativas sonhadas pelos que hoje rememoram.

Voltemos agora às afinidades entre Rosa e Benjamin. A importância do lúdico na


transmissão cultural é uma delas, mas permanece, até hoje, praticamente inexplorada.

Importância do lúdico

“Um dia hei de escrever um tratado de brinquedos para meninos quietos.


Havendo imaginação, é uma boa escola”17.Rosa

Segundo defendi na dissertação de mestrado, Rosa teria feito, em suas Primeiras estórias,
uma espécie de jogo metametafórico com determinadas teorias de Benjamin, transitando no
limiar da história real, questionando os limites e relações entre a literatura e a história. A base
para tal experimentação literária seria dotar suas personagens, principalmente as infantis, com
características fantásticas (fantasmagoria de tipo Benjaminiana?), como “A menina de lá”,
cuja visão de mundo superaria a dos adultos, já enrijecidas em conceitos predeterminados. O
mesmo ocorre com o filho de “A terceira margem do rio”, com sua extraordinária capacidade de
‘acessar’ o pai. Nos contos que iniciam e finalizam o livro vemos o desenvolvimento da criança
experienciando cada uma de suas perdas. Em “Partida do audaz navegante”, as crianças adubam
sua imaginação com resquícios de um esterco de vaca que, boiando no riachinho, foi adornado
com pedrinhas e flores, transformando-se em embarcação para o herói de suas histórias. Da
mesma forma, as crianças do conto “Pirlimpsiquice” brincam de criar versões para a estória que
deveria ser representada no teatro da escola. Mesmo as ilustrações do livro foram feitas com
traços que remetem a desenhos infantis.

Em entrevista a Ascendino Leite, Rosa nos brinda com algumas impressões negativas
sobre sua própria infância, as quais poderiam ter inspirado a criação de algumas de suas fantásticas
personagens:

16
BOSI, Eclea, Memórias e sociedade: Lembranças de velhos. Companhia das Letras. SP. 3ª Ed. 1994
17
DIJCK, Sônia Maria van. Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa. João Pessoa. Editora Universitária/
UFPB, 1997. p. 43.

* 96 *
Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com
pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando, perguntando,
mandando, comandando, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos,
ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. (...) Gostava
de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade,
só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder
fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias,
poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagens,
misturando as melhores coisas18

A “pátria ocupada” nos remete à educação conservadora, cuja rigidez tenderia a coibir a
imaginação da criança, considerada um pequeno adulto. A infância se transforma em um território
em disputa, e a libertação desta prisão criativa só poderia ser conquistada, paradoxalmente,
encerrando-se em seu próprio quarto. A liberdade lúdica só se encontra quando se está longe
dos “policiais do invasor”. E completa: “arte e céu… países de primeira necessidade”. No mesmo
sentido, o livro Brinquedo e cultura, de Gilles Brougère, também associa diretamente ludicidade
e arte, concluindo que o brinquedo

[...] é marcado, de fato, pelo domínio do valor simbólico sobre a função ou,
para ser mais fiel ao que ele é, a dimensão simbólica torna-se, nele, a função
principal. Esse domínio da imagem aproxima-o da obra de arte e nos indica a
grande riqueza simbólica da qual ele dá testemunho. (…) Mas, precisamos, para
começar, justificar essa análise do brinquedo, que rompe com todo o discurso
que o torna funcional, baseada em dados, relativamente vagos, originados na
psicologia infantil19.

Também Benjamin demonstra real interesse nas brincadeiras das crianças. Em “Livros
infantis antigos e esquecidos”, o alemão afirma que “esse tipo de coleção – de livros infantis – só
pode ser apreciada por quem se manteve fiel à alegria que experimentou quando criança, ao ler esses
livros”20. A imaginação infantil teria que se libertar das “sedimentações” operadas pela experiência
adulta. Em outro ensaio do livro, “Rua de mão única”, novamente a perspectiva infantil é o foco:

Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos – material educativo,


brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é tolice. Desde
o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos pedagogos.
Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a Terra
estaá repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis.
E dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são inclinadas de modo especial

18
Idem. Ibidem. p. 39.
19
BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. 8ª. ed. Coleção Questões de Nossa Época. SP: Cortez, 2010. p. 12.
20
BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e
Política. Terceira Edição. Ed. Brasiliense, 1987. p. 235.

* 97 *
a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a
atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que
surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou
na marcenaria21.

Benjamin destaca a inutilidade das teorias pedagógicas que visariam direcionar – de


forma limitadora – a brincadeira infantil. Ele, levando a ludicidade a sério, aplica seu conceito
de flaneur para a infância, sublinhando a predileção das crianças pelos “resíduos” de obras
e oficinas. O mesmo se dá nos ensaios de seu livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a
educação. Em “História cultural do brinquedo”, ele nos alerta que, mesmo com a especialização
paulatina de sua fabricação, “esses brinquedos não foram no início invenções de fabricantes
especializados, e surgiram em primeira instância nas oficinas de entalhadores de madeira, de
fundidores de estanho, etc.”. É curioso notar que Rosa, na citação do prólogo desta sessão,
sonhava em escrever um “tratado de brinquedo para meninos quietos”, cuja escola seria a própria
imaginação. Possivelmente não o tenha levado a cabo, justamente, porque um “tratado” poderia
ser contraditório com a liberdade imaginativa que defendia para a criança. Reflexão neste sentido
também faz Brougère, dizendo que a “psicologia infantil” atual, focada em “uma abordagem
funcional” que arrisca “passar ao largo da essência do brinquedo”22. O conceito benjaminiano
de flaneur trata da busca de fragmentos como percurso para se estabelecer um sentido para a
história. Traduzido normalmente por “trapeiros”, o conceito reserva ao historiador a tarefa de, no
“tempo-de-agora”, encontrar resíduos de acontecimentos passados, os quais, pela resistência de
seu valor ainda ativo, ainda fosse capaz de encontrar eco no presente. Tal ‘garimpo’ historiográfico
guardaria semelhança com a atitude (herética?) de uma criança, ao preferir uma apara de tecido
do que um brinquedo industrializado, involuntariamente defendendo a liberdade de sua “leitura
de mundo”. Gagnebin aborda tal aspecto de sua filosofia ao afirmar que “Benjamin substitui,
nas pegadas de Proust, a questão da perda irremediável do passado e, não obstante, da sua
salvação (Rettung), em particular aqui a perda e a salvação da infância com modo privilegiado
de percepção”23. A ludicidade infantil, igualmente à “salvação” da história, passaria pela sua
libertação frente às cadeias de significados prefixados.Vale notar que a mesma lógica foi aplicada
por Benjamin para formular sua teoria de que “a obra de arte na era da sua reprodutibilidade
técnica”, ou seja, o cinema e a fotografia, seriam livres para ‘jogar’ com as formas de representação,
sobrepondo-se às artes “miméticas”24, para as quais tal liberdade não seria permitida. A liberdade
simbólica praticada na arte, assim como na livre escolha de brinquedos infantis, teria em ambos
os casos um potencial revolucionário. Benjamin, sob este viés, parece reivindicar para os artistas
de seu tempo o direito de serem ‘arteiros’ como as crianças. A diferença se daria, não pela forma,
mas pela função. Vejamos o que nos diz Brougère:[...] o vocabulário usual, aquele que as crianças e pais
empregam espontaneamente, também usado nos catálogos e revistas de brinquedos, distingue, no conjunto dos
objetos lúdicos, os brinquedos dos jogos. Aquilo que é chamado de jogo […] pressupõe a presença de uma função
21
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 18-19. (fragmento
“Canteiro de obras”).
22
BROUGÈRE. Op. cit. p. 23.
23
GAGNEBIN, Op. cit. Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. p. 75.
24
BENJAMIN, Op. cit. Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

* 98 *
como determinante no interesse do objeto e anterior a seu uso legítimo. […] O brinquedo, em contrapartida, não
parece definido por uma função precisa: trata-se, antes de tudo, de um objeto que a criança manipula livremente,
sem estar condicionado às regras ou a princípios de utilização de outra natureza25.

Dialogando com a passagem acima, a concepção de arte benjaminiana somente se


separaria da brincadeira infantil pelo que se refere à sua função. No plano simbólico, atuariam com
semelhante liberdade de criação. A ludicidade da arte do adulto, ainda que tenha um elemento
‘funcional’, tem seu valor derivado da permissividade típica do lúdico. E Brugère complementa:
“o brinquedo é um objeto infantil e falar de brinquedo para um adulto torna-se, sempre, um
motivo de zombaria, de ligação com a infância. O jogo, ao contrário, pode ser destinado tanto
à criança quanto ao adulto”26. É como se somente às crianças fosse permitida a imaginação
despretensiosa, sendo o adulto envolto em um ambiente social sabidamente preconceituoso,
como se devesse justificar seu direito à ludicidade. A mesma reflexão extravasa pela voz do
menino do conto “Nenhum, nenhuma”, de Rosa, ao voltar de sua viagem onírica. Revoltado com
a preocupação do pai em aumentar o muro do quintal, e da mãe sobre o estado de suas roupas,
bem como a integridade das medalhinhas que ela lhe pendurara ao pescoço, dirá: “Vocês não
sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que algum dia sabiam!”.
Suas preocupações materializadas demonstram uma perda de visão sobre a essência das coisas,
‘condenados’ que estavam à vida adulta. Não há reconhecimento, e sequer comunicação, entre os
mundos antagonizados do adulto e da criança. Camila Rodrigues, num texto em que trata do
multiartista e escritor de livros infantis Pedro Bloch, nos fala que:

O intuito de escutar os pequeno e dialogar com eles era a chave do trabalho


bloquiano com a meninada, o que chamamos Projeto Criança diz cada uma!,
mas também correspondia a uma tendência na época, seguida por intelectuais
como João Guimarães Rosa e Walter Benjamin, que não apenas passaram a
ouvir a meninada, como também a registrar suas elocuções, sempre na intenção
e inseri-las no diálogo histórico cultural27.

O trecho “ouvir a meninada” chama atenção para o fato de, atualmente, a intersubjetividade,
infelizmente, não ser incentivada efetivamente na maior parte das escolas atuais. Isso ocorre
ou por se renderem ao conteudismo literalmente insignificante, com suas aulas picadas e
apostiladas, cobrando métricas velozes – a fórceps – de pseudo aprendizados de tipo ‘decoreba’,
ou por outros motivos, como, por exemplo, o excesso de alunos por sala, mazela antiga das
escolas públicas, a baixa qualidade dos momentos de experimentação e a falta de espaços para o
convívio extraclasse nas escolas. Enfim, a parca intersubjetividade não apenas entre alunos, mas
destes com os professores, infelizmente não é muito pedagógica. Em tais condições, dialogando
com a frase do epílogo desta seção, dificilmente um mestre, “de repente, aprende”. É visível o
engessamento da profissão docente, cujos membros estressados, desinteressados, mal pagos e,
muitas vezes, malformados, prensados entre as cobranças de equipes gestoras burocratizadas,
25
BROUGÈRE. Op. cit. pp. 12 e 13.
26
BROUGÈRE. Op. cit. p. 13.
27
RODRIGUES, Camila. Pedro Bloch: um escutador da graça das crianças In Childhood & Philosophy, Rio de
Janeiro, v. 14, n. 29, jan.-abr. 2018, pp. 109-128. p.109 (grifo da autora).

* 99 *
muitas vezes autoritárias, alunos desestimulados, e responsáveis ausentes. A tudo isso devemos
somar a crescente influência das mídias e a ansiedade de uma geração com reduzidas perspectivas
de futuro. A dispersão do mundo virtual se junta a diversos conflitos de âmbito familiar e,
assim, chegamos a um padrão de “cultura escolar” explosivo, o qual se expande a boa parte das
periferias. É para esta escola real, e com enorme flexibilidade, que se deve preparar qualquer
projeto educacional, trabalhando no limiar entre interesses muitas vezes antagônicos dos diversos
atores envolvidos no processo educativo. Uma escola que não escuta o aluno pode ensiná-lo a
ouvir os outros? Este projeto se pretende uma gota d’água na dissolução dessa barreira. Devemos
urgentemente “ouvir a meninada”.

E chegamos a uma das maiores dificuldades ainda encontradas pelos educadores de hoje.
Como motivar os alunos? Na pedagogia moderna, muitos são os autores que propõem o que se
convencionou chamar de “métodos ativos”, que visam justamente uma educação que parta de um
interesse do próprio aluno, distanciando-se da ideia de obrigação. A disposição dos alunos para o
aprendizado vai totalmente contra a lógica de “dar aulas”, termo muito utilizado pelos professores.
Pode-se considerar ter ensinado um aluno que não aprendeu? Se não há intersubjetividade, nem
vivências interessantes que motivem o aprendizado, o aluno, voluntária ou involuntariamente,
acaba dispensando a nossa arrogante ‘doação’, por mais caridosa que pareça.

E isso não significa que devemos fazer “vista grossa” quanto à cobrança de aprendizado,
como supõem as mentalidades mais autoritárias. Em vez disso, se estabelece outra lógica no
aferimento de resultados. Entra em cena a avaliação de longo prazo, num processo de múltiplas
associações do saber, em que a significação que os educandos são capazes de atribuir a um
conteúdo é que será capaz de engendrar sua verdadeira ‘fixação’. A mera explicação de temáticas
escalonadas não caminha no mesmo sentido. Pelo contrário, aproxima-se do “ensino bancário”
sobre o qual falava Paulo Freire, enquanto a outra vai em direção à “educação libertadora”. O
ambiente, a proposta, a forma, o conteúdo, a relação e o planejamento são muitas das variáveis que
influenciam na experiência educativa de um aluno, entre a busca de uma nota boa e a conquista
do conhecimento. Ainda que tratando de outro nível de ensino, as reflexões de Benjamin, em
“A vida dos estudantes”, sobre as diferenças entre a ciência e a técnica também são válidas: “as
ciências atuais, no desenvolvimento de seu aparato profissionalizante (através do saber e de
técnicas), foram desviadas de sua origem comum fundada na ideia do saber, origem essa que
se transformou para elas em mistério, quando não em ficção”28. O debate é epistemológico. De
que modo o problema colocado acima afeta indiretamente o ensino fundamental? O que deve
ser ensinado na escola? Para que serve a história? Segundo Selva Guimarães Fonseca, a relação
entre a universidade e o ensino de história possui,

[...] no mínimo, dois vínculos concretos. O primeiro dá-se pela tarefa da


universidade como centro de formação de professores de História para o 1o
e 2o graus. O segundo vínculo é pelo papel da universidade como produtora e
divulgadora de conhecimento histórico. Entretanto, as relações estabelecidas

28
BENJAMIN, Walter. Vida dos estudantes. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. São Paulo:
Cultrix; Edusp, 1986. p. 152.

* 100 *
por estes dois espaços de produção e reprodução do saber – Universidade
e Escola Fundamental – variam de acordo com as concepções teórico-
metodológicas e, sobretudo, políticas das forças atuantes em cada época29.

Vejamos as relações concretas entre a universidade e a escola a partir do ponto de vista de


um docente-pesquisador. Este artigo foi escrito por um professor do ensino público fundamental
que, ao mesmo tempo, acumula a função de pesquisador na universidade pública. Este é o
valoroso objetivo do programa de mestrado do ProfHistória, que publica este livro: valorizar o
caráter do professor enquanto pesquisador, atuando nos dois lados desta relação necessariamente
complementar. A culminância da parte pedagógica da dissertação de mestrado que serviu como
base para esse artigo foi a criação de um jogo de quebra-cabeças histórico, anexado a este artigo.
O conceito benjaminiano de história, descrito exaustivamente nos primeiros capítulos, pode ser
resumido nesta poética passagem:

[...] aplicar à história o princípio da montagem. Isto é: erguer as grandes


construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e
precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o
cristal do acontecimento total30.

A história é aqui apresentada como um quebra-cabeça, em que as peças seriam os


acontecimentos, que se ligam uns aos outros, no sentido de um tecido, em determinado tempo.
Esta é a base do conceito benjaminiano de “mônada”. A mesma ideia, transposta para a questão
da linguagem, aparece no ensaio “A doutrina das semelhanças”. Nele, ao explicar a importância da
faculdade mimética na gênese da linguagem escrita, Benjamin afirma que a “grafologia ensinou-
nos a identificar na escrita manual imagens, ou antes, quebra-cabeças, que o inconsciente do seu
autor nela deposita (…) [e] a escrita transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo
de semelhanças, de correspondências extrassensíveis”31. Assim, compreensão de um texto somente
ocorreria como adaptação dos fragmentos ‘escavados’ do passado, no sentido de um ‘encaixe’,
como uma arqueologia da linguagem, cuja lógica se estende para a história escrita. Muitas vezes a
mensagem que nos chega foi enviada de forma inconsciente, como um “ato falho” da língua:

O texto literal da escrita é o único e exclusivo fundamento sobre o qual pode


formar-se o quebra-cabeça. O contexto significativo contido nos sons da frase
é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do
relâmpago32.

Não é à toa que a metáfora do “relâmpago” também aparece como peça fundamental de
seu conceito de história, surgindo involuntariamente na memória e sendo trazido muitas vezes
por uma percepção ‘extrassensível’ que encontra sentido no assim chamado “tempo-de-agora”.
Entretanto, o mais importante para os efeitos visados nesta análise é destacar a ideia do quebra-
29
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas, SP. Papirus, 1993. pp. 118-19.
30
BENJAMIN, Op. cit. Walter. Passagens. p. 503.
31
BENJAMIN, Op. cit. Walter. A doutrina das semelhanças. p. 111.
32
BENJAMIN. Op. cit. p. 112.

* 101 *
cabeça. Guimarães Rosa também propõe diversos ‘quebra-cabeças’ em sua obra, sendo talvez
o maior deles a decifração do que se trata as “segundas estórias” por ele jamais publicadas. Seu
amigo Carlos Drummond de Andrade também não deixa de notar tal característica em seu
poema de homenagem póstuma:

Um estranho chamado João / para disfarçar, para farçar / o que não ousamos
compreender? (…) / seu fado era saber / para contar sem desnudar / o que não
deve ser desnudado / e por isso se veste de véus novos? (…) / Embaixador do
reino / que há por trás dos reinos, / dos poderes, das / supostas fórmulas / de
abracadabra, sésamo? / Reino cercado / não de muros, chaves, códigos, / mas
o reino-reino? Por que João sorria / se lhe perguntavam / que mistério é esse?
/ E propondo desenhos figurava / menos a resposta que / outra questão ao
perguntante? (ANDRADE, 2001. p. 13)33.

A leitura cifrada, de tonalidade enigmática, é mais uma das estranhas semelhanças que
merecem ser ressaltadas entre as obras de Rosa e Benjamin, e que acabou justificando a proposta
pedagógica da citada dissertação.

Considerações finais

Este artigo buscou destacar as muitas “afinidades eletivas” existentes entre a filosofia
da história do alemão Walter Benjamin e a literatura de seu leitor brasileiro, Guimarães Rosa.
Dentre elas, vemos a importância dada à experiência, guia-mestra da leitura de mundo, analisada
conjuntamente com a memória e a narrativa; à infância enquanto momento da aquisição da
linguagem, em que a criatividade ainda está livre das cristalizações de pensamento normalmente
adquiridas na vida adulta; à educação e à ludicidade, elementos fundamentais da formação
do caráter. Tais afinidades é que teriam motivado a releitura de Benjamin por Rosa no livro
estudado. A linguagem cifrada e enigmática utilizada pelos autores também inspiraram a criação
do jogo de quebra-cabeça, reproduzido, na íntegra, abaixo. Por meio dele, fomenta-se a reflexão
sobre certas concepções de narrativa, memória e história compartilhadas por estes dois gigantes
da literatura internacional.

Apêndice: Projetos pedagógicos interdisciplinares

O jogo trata-se, em verdade, de dois projetos modulares que podem ser realizados juntos
ou separadamente. Ele se inicia com a leitura de “A terceira margem do rio”, seguido de debate
sobre o conto e de atividades de registro das passagens mais significativas da história, visando
a sensibilização dos alunos para as entrevistas com migrantes que serão realizadas na segunda
parte. Ele se adapta bem ao conceito de atividade pedagógica, sendo tão simples em seus recursos
que se assemelha a um brinquedo de criança, embora possa ser jogado por qualquer faixa
etária, seguindo a mesma lógica, desde que aumentando o grau de dificuldade correspondente.
33
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Introdução” In ROSA, G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p. 13. A saber: trata-se de um poema de Drummond feito em homenagem a João Guimarães
Rosa, poucos dias após sua morte.

* 102 *
Trata-se, portanto, de um jogo totalmente flexível, que pode ser facilmente adaptado por
educadores que trabalham com outros públicos.

Ele consiste numa construção coletiva que é, ao mesmo tempo, um exercício de registro,
de memória e de narrativa. A partir do contato com a narrativa, criam-se registros escritos e
desenhados que auxiliam na memorização e na posterior ‘recontagem’. Para isso, usa-se uma folha
de papel sulfite, que é paulatinamente recortada e amarrotada a cada jogada, até transformar-se
em fragmentos – numa representação do que ocorre com a história ao longo do tempo. A partir
da memória, chega-se à criação de registros na forma de imagens legendadas. Por meio destes –
desde que se consiga restaurá-los minimamente ao juntar os fragmentos – retorna-se à memória
e, então, tenta-se reconstruir a narrativa.

O Projeto é interdisciplinar, podendo envolver as áreas da história, geografia, artes e


língua portuguesa. Ele foi inventado em meio à pandemia e por isso não pôde ser testado.
Confio em seu funcionamento apenas pelas duas décadas de experiência em sala de aula. Por
isso, também, ele é bastante flexível, para que cada educador possa fazer as modificações que lhe
parecerem ampliar sua eficiência para chegar aos objetivos propostos, além de reparar possíveis
imperfeições na aplicação da idealização aqui descrita. Como é possível executá-lo como dois
projetos, aplicando isoladamente apenas a primeira ou a segunda parte, optei, para efeitos
didáticos, por apresentá-los separadamente.

PRIMEIRO PROJETO – Histórias na literatura.

1 Realizar a leitura do conto “A terceira margem do rio” (havendo acesso a equipamentos


de projeção, pode-se utilizar algumas boas interpretações do mesmo disponíveis na internet).
Em seguida, fomentar uma análise dos alunos sobre o seu entendimento da obra, bem como suas
impressões. Visa-se, neste momento, somente repassar a narrativa com maior distanciamento,
visto que a primeira leitura é sempre mais sensitiva e a segunda, mais racional. A rememoração
coletiva ajuda na compreensão dos sentidos e na fixação mnemônica. À medida que cenas
lembradas surgirem, organizá-las, na lousa, em uma cronologia, numerando-as para facilitar a
reconstituição da história. Os alunos não precisam (não devem) copiar. Registrar esta configuração
num papel ou foto para uso posterior. Destacar a importância da memória na construção das
narrativas e da história. (duração – 1 aula)

2 Fazer debates e atividades sobre o conto nas aulas de geografia, história, língua
portuguesa e artes, durante as aulas da semana. Pode-se trabalhar, por exemplo, as seguintes
questões do conto:

Geografia (duração – 1 aula)

a) O fenômeno da migração: “certas pessoas… passadores” ou “Minha irmã se mudou,


com o marido, para longe daqui. Meu irmão, resolveu e se foi, para uma cidade”.

b) O trabalho infantil (e inversão das responsabilidades): “Eu mesmo cumpria de trazer

* 103 *
para ele, cada dia, um tanto de comida furtada” ou “Eu permaneci, com as bagagens da vida.
Nosso pai carecia de mim, eu sei”.

c) A ausência paterna: “nosso pai sempre fazendo ausência”. Pode-se fazer uma estatística
interna da sala sobre quantos são criados por pais, mães, ambos ou outros.

d) as diferenças de gênero: “nossa mãe era quem regia, quem ralhava no diário com a
gente” ou “mandou vir o mestre para nós, os meninos”.

• História (duração – 1 aula)

a) A noção de tempo: “Os tempos mudavam no devagar depressa dos tempos” ou “mesmo
quando foi, não faz muito” (refere-se a algo que só pode ter acontecido há muito tempo, mas
aparece já no fim do conto, quando ele está velho, denotando confusão).

b) A história como construção individual: “Sempre que às vezes me louvavam, por causa
de algum meu bom procedimento, eu falava: ‘Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim…’; o
que não era certo, exato; mas, que era mentira por verdade”.

c) As narrativas populares: “me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma
vez, tivesse revelado a explicação”.

f ) A fragmentação da memória: “pois agora me entrelembro” ou “já tinha morrido,


ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais”.

h) A presença institucional: “Incumbiu ao padre que um dia se revestisse” ou “vieram os


dois soldados” ou “dos homens do jornal”.

i) A religiosidade popular (diferenças com a institucional): “Nossa mãe jurou muito


contra a ideia”, “me botou a benção”, “poder também ser pagamento de promessa”, “fosse o
avisado que nem Noé” e “ele me pareceu vir: da parte de além”.

• Língua portuguesa (duração – 1 aula)

a) A norma padrão e a linguagem oral.

b) A linguagem dialetal e os neologismos.

c) A cadência da narrativa.

d) Lugar de fala e polissemia: a história no ponto de vista dos dois soldados, do padre, dos
homens do jornal, e dos diversos membros da família (mãe, tio, irmãos).

c) Gêneros textuais: descrição, narração.

d) Tipos de discurso: direto, indireto, indireto livre.

e) Modernismo na literatura: fases e tendências.

* 104 *
• Artes

Propor que os alunos desenhem alguma imagem sobre o conto que tenha lhes parecido
significativa durante a leitura, propondo que ultrapassem a mera imagem do pai dentro da canoa, no rio.

SEGUNDO PROJETO – Quebra(das)-cabeças. Remontando histórias das quebradas.

PRIMEIRA PARTE

1 O espaçamento entre as duas partes do projeto deve ser de aproximadamente um


bimestre, para dar tempo ao esquecimento de alguns detalhes. Esta parte da atividade tem a
duração de três aulas, necessariamente de história, preferencialmente ‘dobradinhas’. Na primeira,
ocorre o jogo em si, deixando para a terceira as reflexões propostas em diversos dos itens. Estas
últimas, escritas em letra maiúscula (REFLEXÕES) são mantidas ao lado dos itens por mera
facilitação pedagógica, e não ao final de todo o bloco, como seria de se esperar.

2 Ao final de uma aula qualquer, solicitar aos alunos um trabalho de pesquisa extraclasse,
a ser realizado durante a próxima semana. Os alunos devem se dividir em grupos de três pessoas,
ou quatro, caso a divisão numérica não seja exata. A atividade consiste em uma entrevista com
alguém com mais de 60 anos –familiar, vizinho ou conhecido – que tenha migrado de outro
estado ou país e que possa compartilhar experiências de vida. Perguntar aos entrevistados,
minimamente, as questões abaixo, que podem ser gravadas em áudio:

a) Como era a vida em sua terra natal (alguma lembrança que lhe marcou daquele tempo)?

b) Como foi a viagem da migração e como se sentiu? Sonhos? Esperanças? Tristezas?

c) Acredita ter conseguido realizar tais sonhos? Esperanças? Expectativas?

d) Como foi o período de adaptação?

e) Qual sua profissão?

f ) Chegou a voltar para sua terra? Quantas vezes?

g) Manteve contato com seus familiares?

h) Começou a trabalhar com que idade?

i) Teve a oportunidade de estudar?

3 Artes (duração – 1 aula). Pedir que cada grupo desenhe livremente, em apenas uma
folha de papel, algumas cenas imaginadas a partir das experiências relatadas na entrevista. Todos
devem participar da confecção do desenho e, por isso, eles devem sentir-se livres, sabendo que
se trata de um jogo de um registro histórico que envolve visões diferentes, indistintamente
importantes, de forma que não se atribuirá pontuação para a ‘perfeição’ artística. Avisar que não
se deve colocar os nomes dos alunos na folha. Esta parte da atividade pode ser feita na aula de

* 105 *
artes, dando preferência ao uso de cores no desenho. Ao final da aula, os desenhos deverão ser
armazenados para uso do professor de língua portuguesa. (REFLEXÃO: Registro imagético
auxilia na fixação mnemônica das histórias?)

4 Língua portuguesa (duração – 1 aula). Os alunos serão orientados a fazer a lápis, no


verso da folha utilizada para o desenho, um resumo das partes consideradas mais interessantes
da entrevista, na forma de narrativa em terceira pessoa. A folha será recolhida ou guardada pelos
alunos para ser utilizada na aula de história. (REFLEXÃO: O registro textual auxilia na fixação
mnemônica das histórias?)

5 História (duração – 1 aula). Cada grupo apresentará seus resumos e desenhos para a sala,
narrando também o que lembrarem sobre a história do seu entrevistado. Ao final das apresentações,
refletir sobre as semelhanças e diferenças entre as histórias relatadas. E destas em relação à narrativa
do conto – podendo-se usar para isso o registro realizado no dia da projeção. (REFLEXÃO: Os
registros auxiliam na construção de uma narrativa sobre a história?) Além disso, este é o momento
de relacionar as experiências narradas pelos indivíduos com o desenvolvimento da história local e
nacional. Por que as pessoas migraram? Como, quando e por que se deram os maiores processos
de migração interna no país? Como a concentração das terras e poder político influenciaram no
deslocamento massivo das pessoas do campo? Como foi a adaptação dessas pessoas ao novo local
de moradia? Quais as marcas sociais, políticas e econômicas deixadas por esse processo? Após o
debate, o professor deve recolher os desenhos e guardá-los para uso na segunda parte do projeto –
o jogo – avisando que só será retomada em outro bimestre. (REFLEXÃO: Como a história local
se relaciona com a história regional, nacional, internacional?)

SEGUNDA PARTE – O JOGO

a) O professor coloca todas as folhas com os desenhos aparentes (com o texto para baixo)
em cima de uma mesa para visualização dos alunos. (REFLEXÃO: As imagens são boas como
recursos mnemônicos?)

b) Após esta rápida rememoração, cada grupo deve pegar seu desenho e reunir-se de
forma a manter equidistância em relação aos outros, com a região central da sala livre, em forma
circular, e as histórias passarão em sentido horário. (REFLEXÃO: As histórias passam de um
para outro tal qual a passagem do tempo.)

c) Cada grupo deverá fazer um avião com a folha de sua história. (As Primeiras estórias
de Rosa começam e terminam em aviões, como representações de uma viagem, de chegada e de
partida de um menino urbano que vai conhecer histórias da vida rural)

d) Um dos membros de cada grupo deverá lançar a folha (avião) apenas uma vez para
o grupo ao lado, no sentido horário, para que alguém daquele grupo possa pegá-la no ar, sem
deixar cair. Caso a proximidade seja muita, para não ficar sem graça, o aluno deve dirigir-se ao
centro da sala para realizar o lançamento. (REFLEXÃO: A história, ao ser passada de um para
outro, adquire outra noção de temporalidade e velocidade.)

* 106 *
e) Se os grupos ao lado não conseguirem pegar no ar sua respectiva folha, já transformada,
ela deverá ser colocada em cima da mesa do grupo que ‘falhou’, esperando para ser lançada para
o grupo conseguinte, na próxima rodada. (REFLEXÃO: Não havendo habilidade, esforço e
interesse, não se pode acessar a história ali representada.)

f ) Caso eles a peguem no ar, poderão desdobrá-la, lendo seus conteúdos imagéticos e
textuais. (REFLEXÃO: A história muitas vezes só é reconhecida pelos seus desdobramentos.)

g) Depois da leitura de cada grupo que puder realizá-la, seus membros deverão dobrar
a folha ao meio três vezes seguidas e depois desdobrá-la, demarcando no papel oito retângulos
iguais. O grupo deve escolher um deles e recortar, destacando-o do todo e colocando-o em
um saco – providenciado pelo professor – que deverá rodar pela sala. (REFLEXÃO: Partes da
história muitas vezes são extraviadas, podendo perder-se para sempre.)

h) Cada membro de cada grupo deverá escolher uma parte, dentre os sete retângulos restantes
demarcados na folha original, e cortará dela um pedaço do tamanho de um polegar seu, contornando
apenas a sua primeira falange. A parte recortada deve conter um fragmento – do texto ou desenho
do verso – que o aluno considere representativo do todo, e deve ser realizado com o próprio decalque
da caneta, marcando o papel. Essa parte ficará guardada com o dono do dedo. (REFLEXÃO: A
história não tem dono. Cada um que tiver acesso a ela acaba por deixar suas marcas, transformando-a,
e retirando dela apenas um ‘dedinho’ para si, de acordo com seus interesses.)

i) A folha original – retalhada – será então amassada pelo grupo, transformando-se em


uma bola de papel ou em um cometa, dialogando com a metáfora benjaminiana da história
como constelação. (REFLEXÃO: Muitas vezes a história só pode avançar por estar compactada,
como ocorre com os provérbios ou com a mitologia grega.)

j) Começa a segunda rodada, em que cada grupo terá em seu poder um avião (caso não
tenha conseguido pegar no ar) ou a bolinha, os quais serão lançados para o próximo grupo
‘receptor’, no sentido horário.

k) Segue-se novamente a instrução contida no item ‘e’.

l) Os grupos receptores que conseguirem pegar um avião sem deixar cair devem seguir as
coordenadas dispostas nos itens f, g, h, i e j.

m) Os grupos receptores que conseguirem pegar um “cometa” (bola) sem deixar cair
poderão abri-lo, desde que cuidadosamente, para que não rasgue, tentando compreender seus
conteúdos imagéticos e textuais, ainda que retalhados e amassados, auxiliados pela memória.
Cada aluno deste grupo escolherá apenas um dentre os retângulos das folhas, no qual deverá
intervir, recortando um pedaço do tamanho de uma moeda (se ele não tiver qualquer uma no
bolso deve emprestar do professor ou de algum colega). O método do recorte é novamente
o decalque com a caneta. O retalho deve ser extraído de forma a dificultar que o próximo
grupo compreenda a essência da história ali contada. As moedas retalhadas no papel devem ser
colocadas no “saco de retalhos”. (REFLEXÃO: A influência do poder econômico na história.)

* 107 *
n) As rodadas de “lançamentos” e “retaliações” devem durar quantas rodadas (de três a
seis, aproximadamente) forem necessárias, e acaba quando cada uma das sete subdivisões (oito
no original, menos uma, inteiramente retirada), tiverem duas lacunas de moedas ou dedos a
menos, ou seja, que foram retirados. A cada rodada, deve-se intercalar a retirada de retalhos em
formatos de dedos e de moedas; no primeiro caso, os alunos guardam os retalhos para si, no
segundo, eles devem ir para o saco. (REFLEXÃO: Diferenciar o poder econômico da recordação
individual no que tange aos interesses existentes no tratamento da história.)

o) Finalizando a última rodada, o professor, representando neste momento a opressão


das guerras, deve passar de grupo em grupo com uma tesoura, retalhando mais um pedaço (um
oitavo do original) dentre aqueles sete que sobraram. Para não permitir a associação da figura do
professor com um general autoritário, pode-se fazer um chapéu de soldado de origami que, junto
à teatralidade (marcha?), deve deixar claro que aquilo não passa de uma representação. O retalho
subtraído se juntará aos outros, no saco. (REFLEXÃO: A destruição da história pelas guerras.)

p) A quantidade de grupos, quando maior do que a de rodadas, faz que qualquer grupo, neste
momento, receba um registro de uma história que só foi vista por eles – completa – no bimestre
anterior. O objetivo passa a ser completá-las, apoiando-se na rememoração e nos fragmentos de
desenho e de escrita (registros) ainda disponíveis. (REFLEXÃO: A história, às vezes, se apresenta
em forma de vestígios tão fragmentados que sua reconstituição total se torna impossível.)

q) Cada aluno terá três minutos para trocar com qualquer colega da sala os retalhos de
dedos que tem guardados consigo. Pode-se recorrer a trocas cruzadas, envolvendo um terceiro
grupo. (REFLEXÃO: Muitas histórias só podem ser reconstituídas por meio do esforço conjunto.)

r) A depender dos vestígios e lembranças que tiverem, cada grupo decidirá se começa
pela imagem ou pelo texto. A folha deve ser aplanada o máximo possível e afixada a uma outra,
branca, por um clipe, sobrepondo-as. A reconstituição histórica ou imaginária dos desenhos e
textos deverá ser feita nas partes brancas da folha de baixo que aparecerem pelos buracos da folha
de cima. Do mesmo modo, virando ambas as folhas e novamente afixando-as, tenta-se preencher,
na folha branca, o texto que aparecer entre os buracos da folha original. Desta forma, a folha
branca também terá fragmentos de desenho e de texto, um em cada lado. Os desenhos, nesta fase,
só poderão ser realizados a lápis (grafite). (REFLEXÃO: A história, após ocorrida na forma de
experiência vivida, perde o brilho de suas cores, empalidece, perde o sabor de sua época.)

s) O saco deverá rodar pela sala, com cada aluno colocando a mão dentro dele e retirando
sem ver uma moeda de papel, visando restituir parte da história do grupo. Cada grupo tem direito,
também, a retirar do saco dois oitavos de desenho, sem ver, com os mesmos objetivos. Depois da
rodada do saco, pode-se ainda recorrer a uma última troca de quaisquer fragmentos, desde que
com grupos que estejam posicionados exatamente ao lado do seu. Cada grupo deve utilizar todas
as peças que conquistou para montar, da melhor forma possível, o quebra-cabeça da história que
ficou consigo, expondo-a na mesa com os desenhos voltados para cima. (REFLEXÃO: Às vezes
pequenos vestígios ajudam a reconstituir uma história.)

* 108 *
t) Deve-se dividir os grupos da sala em dois grandes blocos, de acordo com a constituição,
maior ou menor, dos seus respectivos quebra-cabeças. A metade dos grupos que melhor
reconstituírem suas histórias ficarão no bloco da história. A metade restante ficará no grupo da
literatura. (REFLEXÃO: Tanto a narrativa histórica como a literária guardam marcas de um
tempo, do momento em que se realizam no decorrer da história.)

u) Os grupos reunidos no bloco da história deverão completar as lacunas das folhas-


registro sob o viés histórico, valendo-se da análise dos elementos que compõe o registro,
buscando a reconstituição mais precisa que conseguirem, ainda que valendo-se da memória e da
imaginação, mas mantendo o compromisso com a verdade.

v) Os grupos reunidos no bloco da literatura também deverão completar as lacunas das


folhas que ficaram consigo. Porém, devem fazê-lo sob uma perspectiva mais livre, buscando
transformar aqueles fragmentos de narrativas em alguma outra história, ainda que possível, mas
sem se preocupar com a veracidade, podendo inventar livremente, inclusive de forma exagerada,
tudo que acharem que pode ser incluído naquela narrativa, de modo a torná-la uma ‘estória’ que
considerem interessante.

w) Os grupos apresentam para toda a turma seus desenhos e textos sobrepostos, narrando
suas histórias e ‘estórias’. A turma deve, então, avaliar conjuntamente até que ponto as narrativas
historiográficas foram fieis aos originais e até que ponto as narrativas literárias/artísticas conseguiram
‘fugir’ da narrativa original. (REFLEXÃO: Diferenças e interseções entre história e literatura.)

* 109 *
CINEMA, PRODUÇÃO AUDIOVISUAL E ENSINO DE HISTÓRIA,
MEMÓRIA E LINGUAGENS

Jonas Tadeu Amaral Pinto1

O cinema é transformação contínua do que há. Pelo


menos nos bons filmes, o mundo não está separado de
um desejo de mundo.
MIGLIORIN, Cezar2

Esse artigo é fruto da dissertação de Mestrado A hipótese – cinema: Escola, produção


audiovisual e Ensino de história (2019), apresentado ao programa ProfHistória da Universidade
Federal de São Paulo – UNIFESP, sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Pianelli Godoy.

Ao longo do texto buscaremos apresentar parte do fazer pedagógico em seu dia a dia e
as possibilidades que se abrem para o ensino de história a partir do debate sobre a Pedagogia
da Criação proposta por Bergala (2008) e a reflexão sobre o uso de fragmentos de filmes para a
construção de propostas pedagógicas.

Pretendemos assim contribuir com o debate sobre os usos do cinema na escola, trazendo
outra forma de uso do cinema que não seja apenas a exibição de filmes seguida de sua análise em
sala de aula. Apontamos para a possibilidade de inserir no percurso formativo dos estudantes a
produção audiovisual escolar como forma de o aluno desenvolver seu aprendizado.

De fato o cinema está na escola, antes mesmo da proposta de uma exibição cinematográfica
ou de qualquer outra atividade pedagógica com filmes. Dessa forma, não é incomum que
estudantes associem a imagem de Chaplin à de Hittler. Michele Lagny cita em seu texto, O cinema
como fonte de história, publicado no livro Cinematógrafo: Um olhar sobre a história, organizado por
Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson, como opera a força da imagem
cinematográfica na memória coletiva:

[...]Godard em história(s) de cinema, sabe que nos lembraremos dos campos de


concentração graças a alguns planos de um filme de ficção polonês A passageira

1
Professor na rede Estadual e Municipal de ensino da Cidade de São Paulo - Mestre em Ensino de História pela
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – 2019;
2
MIGLIORIN, Cezar, Inevitavelmente Cinema: educação, política e mafuá, 2015 p.35.

* 110 *
(Passazjerka) de Andrzej Munk em 1962, como nos lembramos de Guernica
graças a Pablo Picasso e a Alain Resnais.” (LAGNY IN NOVOA, FRESSATO e
FEIGELSON (orgs), 2009, p. 99)

Atualmente, é cada vez mais necessário incluir o cinema no processo de ensino e


aprendizagem. Duarte (2009) defende a aproximação entre cinema e educação a partir de uma
série de pressupostos. Muitas pesquisas comprovam essa aproximação, indicando que é cada vez
mais necessário incluir o cinema no processo de ensino e aprendizagem.

Conforme a referida autora, ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de
vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias. Nesse
sentido, a escola precisa buscar estratégias para que os alunos desenvolvam tanto o gosto pela
literatura como pelo cinema.

Por incrível que pareça os meios educacionais ainda veem o audiovisual como
mero complemento de atividades verdadeiramente educativas, [...] como recurso
adicional e secundário em relação ao processo educacional propriamente dito.
Defendemos o direito de acesso amplo e universal ao conhecimento, mas não
defendemos o direito de acesso ao cinema – o Brasil é um dos países em que o
ingresso de cinema está entre os mais caros do mundo. Até quando ignoraremos
o fato de que cinema é conhecimento? (DUARTE, 2009, p. 18-19)

Passados mais de 15 anos da primeira edição do texto, o valor dos ingressos de cinema
ainda é elevado para grande parcela da sociedade brasileira. Além disso, a maioria dos espaços de
exibição estão concentrados nos shopping centers das grandes cidades, o que por si só valeria uma
reflexão e indica a importância da escola como espaço de acesso a produções audiovisuais diversas.

Trazer filmes, textos ficcionais e outros produtos artísticos para a cena da


Pesquisa e do Ensino de história, portanto, é fazê-los dialogarem com o
trabalho dos historiadores, ao invés de os tratar como parceiros menores e
ignorantes, a serem corrigidos pela ciência. E descobrir que muitas são as vozes
com direito à fala reflexiva (no plano do conceito ou no plano do sensível) sobre
história. Uma delas é a voz dos filmes. (SILVA, IN NOVOA, FRESSATO e
FEIGELSON (orgs), 2009, p. 156).

No tocante ao cinema no ensino de história, desde o final dos anos 80, um número cada
vez maior de pesquisas e publicações têm se apropriado dessa temática, especialmente através
do debate sobre como os filmes devem ser trabalhados pelo professor em sala de aula, tomando
como premissa a necessidade de romper com a prática da ilustração de conteúdos históricos
através do cinema. Moretin (2017) afirma que o número de trabalhos triplicou em relação à
última década, entre 2000 e 2010.

Para diferentes autores a partir dos anos finais da década de 1980, tais como Carlos
Alberto Vesentini, Eduardo Moretin, Elias Thomé Saliba, Monica Korns, Marco Napolitano,
Marcos Silva, e mais recentemente Mariana Villaça, Rodrigo de Almeida Ferreira entre outros,

* 111 *
o cinema deve ser entendido como documento histórico e produto cultural, portanto necessita
de uma análise interna: linguagem, estética, estrutura narrativa, composição visual etc, bem
como uma análise externa: contexto de produção, censuras, recepção, circularidade e críticas,
conforme Napolitano (2009). Esses procedimentos seriam um caminho para que os estudantes
e o professor pudessem refletir sobre o processo histórico em diálogo com o filme.

Levando em consideração os estudos mencionados, é importante pensar formas possíveis


de trabalhar com cinema no ensino de história, inclusive por meio da produção audiovisual
escolar. Porém, não almejamos propor um novo método de ensino, mas uma possibilidade
que será sistematizada a partir de diferentes práticas de produção audiovisual escolar3. Nossa
intenção é trazer a possibilidade de os estudantes experimentarem um exercício de feitura de um
filme como objeto produzido, conferindo vez ao aluno de intervir como produtor desse material,
para sair da posição que costumeiramente recebe apenas na condição de receptor.

Quais as possibilidades que a produção audiovisual escolar abre para o ensino de história?
Vamos buscar debater essa possibilidade apoiados nos estudos das práticas de ensino de história
e do uso do cinema em sala de aula desenvolvidos por Circe Bittencourt, Selva Guimarães,
Marcos Silva, Marcos Napolitano e Rodrigo de Almeida Ferreira, juntamente com os estudos
de práticas de produção audiovisual escolar na linha de pensamento de Allain Bergala (2008),
Adriana Frequet (2013), Cezar Miglorin (2015) e Cezar Miranda (2001).

Nesse ponto é importante destacar a contribuição de Alain Bergala para o debate da


relação entre cinema e educação, segundo Fresquet:

Bergala desconstrói o que entendemos por cinema e por educação. Em


primeiro lugar, porque inaugura um interesse de aproximação que nasce do
cineasta, o que aparece quase inédito. Além disso, propõe uma forma de
aprender arte “fazendo arte”, algo nada convencional no contexto escolar.
(FRESQUET, 2008, p.7)

Bergala despertou o interesse de muitos pesquisadores no Brasil4 por ter apostado em


uma proposta na qual o fazer arte fosse o eixo central, de forma a valorizar a experimentação, a
produção e a criação cinematográfica em ambiente escolar.

O projeto de Bergala5 colocava os estudantes em contato com a prática cinematográfica,


não somente pela análise dos filmes, mas também pela produção dos mesmos. “No lugar
de uma imagem pronta apresentada ao estudante, a imagem é vista como algo manipulável

3
Sobre a produção audiovisual escolar como prática de ensino de história, foi recentemente publicada a Tese
“Escola, História e Claquete: A produção audiovisual escolar e o Ensino de História” de Thiago de Faria e
Silva, 2017, em que o autor faz o levantamento de mais de 780 vídeos produzidos em contexto escolar e que se
relacionam com o ensino de história.
4
Podemos destacar os estudos realizados no núcleo vinculado a UFRJ em especial a produção da Professora
Adriana Fresquet, os trabalhos produzidos pelo professor Cezar Miglorin na UFF; e em Campinas os estudos
realizados na UNICAMP – OLHO Laboratório de pesquisas audiovisuais.
5
Aqui cito o projeto desenvolvido pelo autor Le Plan de Cinq Ans no início dos anos 2000 junto ao ministério da
Educação e da Cultura da França.

* 112 *
transformável. Não porque o estudante interfira diretamente na imagem, mas porque deve entrar
nas decisões criativas que a forjaram e nos possíveis daquela imagem.” (MIGLIORIN, 2016, p.
20). Segundo Bergala, estaríamos a fazer uma análise da criação, essa análise seria então parte de
uma pedagogia da criação, onde a análise é parte do processo criativo, ou seja, investiga-se como
foi feito pensando em como fazer.

Esse processo não elimina uma análise do filme enquanto fonte histórica ou produto
cultural, por outro lado pode somar-se a esses procedimentos para uma perspectiva de produção
do conhecimento a partir das imagens.

Nesse sentido, recorda-nos da obra do educador brasileiro Paulo Freire (1967) que já na
década de 1960 centrava sua crítica na concepção da escola como um espaço de reprodução e
transferência de saberes. Assim como Freire, Bergala discorda desse modelo escolar e propõe
que devemos ensinar e incentivar os estudantes a criarem, inventarem, expressarem-se sobre o
mundo. Desse modo, defende uma educação não acumulativa, mas inventiva, o que seria possível
através da experiência sensível da produção audiovisual.

Retomando o pensamento de Cezar Migliorin na epígrafe, o cinema e a produção


audiovisual escolar se coloca como diálogo e um instrumento de mediação e interação, por
apresentar infinitas possibilidades de o estudante e o docente se relacionarem com desejos de
mundo que estão espalhados pela sociedade, além de ser um espaço de interação ao permitir que
os estudantes criem formas de se expressar sobre o mundo.

Eis o primeiro risco do cinema na escola. Com o Cinema na escola, não se


ensina mais isso ou aquilo, e sim o abandono; a potência de não ser mais isso ou
aquilo. A experiência com o cinema instala-se na insegurança, estranhamento
e instabilidade da criação. (MIGLIORIN, 2010 p.106)

O autor utiliza o termo “risco”, pois o cinema coloca ou pode colocar em risco o que está
estabelecido, é um convite ao abandono de práticas de ensino verticalizadas, onde o lugar de fala
está sempre com o docente no seu anseio por fazer aprender algo que ele já sabe e que julga que
os estudantes não sabem. Segundo Rancière (2002), “Explicar alguma coisa a alguém é, antes de
mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só.”(p. 20). A escola estrutura-se
em torno desse mito da pedagogia, por isso para Rancière ela se torna “embrutecedora”, no entanto,
ao ser “invadida” pelo cinema, estaria sob o “risco” da democracia, assim como defendeu Migliorin.

Rancière (2002) propõe a prática do mestre ignorante, tomando como referência a história do
educador francês Joseph Jacotot que, expulso da França, teve que lecionar em um país estrangeiro,
sem ter domínio do idioma de seus alunos, logo impedido de realizar exposições e explicações, o
que o levou a desenvolver um método de ensino que Rancière resgata de forma muito interessante.

Para Rancière, um mestre que ensina o que ignora pratica o seguinte método: na medida
em que o aprendiz vai mergulhando no conteúdo que deseja aprender – e ele o faz por meio
de uma coisa, que pode ser um livro, mas poderia ser um filme, por exemplo – ele vai sendo

* 113 *
inquirido pelo mestre. O que você vê? O que pensa disso? O que poderia fazer com isso? Essas são as
três perguntas básicas. Dessa forma, o mestre vai demonstrando curiosidade pelo conhecimento
que o aprendiz vai construindo, permitindo a este expressar o que está aprendendo e, assim,
consolidar e sistematizar o que absorve do mundo.

O movimento proposto por Migliorin, a partir de Rancière, diz que frente ao cinema
todos estão emancipados, no sentido político-estético, frente ao filme todos têm algo a dizer.
Isso desestabiliza os mitos acerca dos “bons” e “maus” alunos, a imagem convida para o diálogo,
não para a transmissão ou ilustração de conteúdos. A potência está em provocar novas formas de
relação professor/aluno, aluno/escola, aluno/cinema.

A chave do movimento proposto está na inversão. Ao invés de tentar fazer o aluno


interessar-se pelo conteúdo, ou aproveitar a curiosidade dos estudantes, a proposta é que quem
demonstre curiosidade seja o próprio mestre com relação ao que o estudante já sabe e está
descobrindo, valorizando a experiência do estudante em seus avanços e o apoiando em suas
dúvidas e dificuldades.

Para uma escola verdadeiramente democrática e emancipatória será necessário aprender


a (des)aprender6. Aprender que todos têm algo a falar leva-nos a desaprender que somente
alguns são capacitados para falar. Aprender que a imagem é mobilizadora por si e não somente
pelo seu conteúdo narrativo leva-nos a desaprender que o conteúdo é mais importante que o
filme. Aprender a partilhar o lugar de fala é desaprender a prática expositiva não dialógica.

Guimarães (2009), muito preocupada com uma educação para a cidadania, defende que
“a proposta de metodologia do ensino de história que valoriza a problematização, a análise
e a crítica da realidade concebe alunos e professores como sujeitos que produzem história e
conhecimento em sala de aula.” (p. 94). Sendo assim, essa é uma outra forma para que o aluno
possa se desenvolver como sujeito que produz conhecimento e história por meio da produção
audiovisual no âmbito escolar.

E a potência do cinema na escola está justamente em poder retomar o protagonismo


partilhado do processo de ensino. O filme, ou a feitura de um filme, pode ser o instrumento
de mediação entre mestre e estudante como propunha Rancière, espaço para investigação e
descoberta. Dessa forma, proporcionemos então meios para que o aluno produza conhecimento
e se expresse através dos filmes. Nesse ponto, o trabalho de Bergala torna-se referência pelas
novidades que proporciona na relação cinema e educação.

Pedagogia da Criação

A principal aposta de Bergala está na alteridade do cinema dentro da escola, que passa
a ser tratado como arte, como perturbação do estabelecido, como um estrangeiro que chega e
causa ruído, não como uma mera ferramenta pedagógica. Uma pedagogia que parte do ato da
criação, da invenção e das inúmeras possibilidades que esse processo pode gerar.

6
Esse conceito é desenvolvido em diversas obras de Adriana Fresquet, cito em especial: Aprender com Experiências
do Cinema: desaprender com Imagens da Educação, 2009.

* 114 *
Bergala sugere retomar o princípio do cinema, ou seja, os gestos cinematográficos, no
caso, adotar a prática dos irmãos Lumière, ou seja, iniciar pela filmagem.

Para fazer filmes na escola, Bergala sugere iniciar pelo “minuto Lumière”, que
consiste na experiência de fazer o aluno passar pela vivência de filmar como se
filmou pela vez primeira, como os irmãos Louis e Auguste, lá no fim do século
XIX.[...] Ao fazer um exercício de um minuto, se supõe fazer a experiência
de vivenciar o que ele chama “gestos cinematográficos”: a escolha (de espaço,
enquadramento, momento, etc.), a disposição (dos elementos a serem filmados)
e o ataque (a própria filmagem). Deste modo, fica evidenciado o interesse
último de Bergala na aproximação do cinema como arte: “que o espectador
experimente a emoção não já com a história em si, mas com a criação mesma”
(FRESQUET, 2008, p.7).

Bergala (2008) faz uma reflexão a partir do projeto desenvolvido nas escolas francesas. O
projeto tem diversas fases e eixos, desde a formação de um acervo cinematográfico diversificado,
7

formação de professores e a proposição de uma pedagogia própria para o trabalho do cinema na


escola, denominada pedagogia da criação. Dessa forma, já não bastava exibir os filmes.

[...] talvez fosse preciso começar a pensar – mas não é fácil do ponto de vista
pedagógico – o filme não como objeto, mas como marca final de um processo
criativo como arte. Pensar o filme como a marca de um gesto de criação. Não
como um objeto de leitura, descodificável, mas, cada plano, como a pincelada do
pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação. Trata-
se de duas perspectivas bastante diferentes. (BERGALA, 2008, p. 33-34)

É preciso que o estudante se torne um cineasta em potencial. Para o autor não basta “ler” o
filme e suas representações sociais, analisá-lo como um documento histórico ou um objeto cultural,
pois apesar de afirmar que a análise é importante, seu foco está nas possibilidades criativas dos filmes.

A pedagogia da criação propõe: a análise da criação, ou seja, um procedimento metodológico


sugerido por Bergala (2008) como uma maneira de se apropriar dos filmes, pois, segundo o autor,
“trata-se de fazer um esforço de lógica e de imaginação para retroceder no processo de criação até
o momento em que o cineasta tomou suas decisões, em que as escolhas ainda estavam abertas”
(BERGALA, 2008, p. 130). Dessa forma, o referido autor está interessado no ato-criador.

Ao tratar do cinema como arte, o filme não pode ser tratado como reprodução, nem
validação de um real. A perspectiva criativa só é possível a partir da dúvida que leva à investigação.
Esta poderia ser a palavra de ordem da pedagogia da criação: recolocar essas telas de cinema sob
a luz duvidosa e incerta de sua origem, no ponto mais extremo do ato cinematográfico. O filme
deve ser tomado enquanto arte e a possibilidade de criação como base para o processo educativo.

7
Neste aspecto, uma proposta similar foi desenvolvida pela Secretária Estadual de Educação do Estado de São
Paulo, Cinema vai à escola, 2008-2015; Contudo, tal proposta se limita no aspecto da ampliação do acesso à
produção audiovisual, não tocando em uma estratégia clara para estimular esse acesso, diferentemente do projeto
desenvolvido por Bergala, onde o acesso é parte de uma estratégia, a pedagogia da criação.

* 115 *
Há uma forma de ver e refletir sobre os filmes que constitui uma primeira
iniciação da passagem ao ato. Podemos denominá-la, análise da criação. [...]
A análise da criação, contrariamente à análise fílmica clássica – cuja única
finalidade é compreender, decodificar, “ler o filme”, como se diz na escola –
prepararia ou iniciaria à prática da criação. Nos dois casos, análise didática e
análise da criação, a análise tem um caráter transitivo que a distingue da análise
clássica. A análise não ocorre como uma finalidade em si, mas como passagem
para outra coisa. (BERGALA, 2008, p.129)

A análise da criação, diferente de outros tipos de análise de filmes, é o meio para o qual
queremos desenvolver um pensamento e uma postura criativa, inventiva sobre o mundo.

Desse modo, incentiva o aluno a desenvolver um desejo para assistir mais filmes e possibilita
aproximações com aqueles considerados filmes “difíceis” por serem lentos, apresentarem uma
construção narrativa não convencional ou outro aspecto que dificulte a sua compreensão.

Essa forma de leitura fílmica pode ser muito interessante para que o estudante perceba
inclusive elementos internos e externos que compõem o filme, aprofundando uma leitura
histórica de tal obra e desenvolvendo a educação do olhar.

Desse modo, reconstruir o processo criativo do diretor, analisando a construção da sua


narrativa, da temporalidade do filme, suas escolhas estéticas e éticas, a partir de uma (des)
montagem da obra cinematográfica em questão, por meio de alguns questionamentos, como: “o
que você faria nessa cena? Qual movimento de câmera? O que e como retrataria? E se o ator/atriz
não quisesse seguir tal procedimento, se não houvesse espaço físico, quais outras possibilidades?
Retroceder ao gesto criativo, às escolhas do diretor, é também desnaturalizar o processo de
produção audiovisual, bem como colocar em dúvida os recortes de realidade apresentados nas
múltiplas telas disponíveis em nosso mundo.

Sendo assim, provoca os estudantes a desnaturalizarem a produção audiovisual, a terem


a “postura de um espectador criador”, a descobrirem novas possibilidades, entre elas a de se
expressar sobre o mundo através do cinema, extrapolando o real, os lugares comuns e os consensos.

O Fragmento e o Todo

Bergala defende a utilização de fragmentos de filmes nos trabalhos com os alunos,


deixando claro que é essencial a formação de um acervo fílmico em DVDs nas escolas ou em
plataformas virtuais acessíveis aos alunos. Em um primeiro momento, o autor cita que trabalhar
fragmentos dos filmes seria uma solução pedagógica para o empecilho da falta de tempo, já que
há um excesso de conteúdos que precisam ser trabalhados durante o período letivo. Além disso,
ao trabalhar fragmentos, estaríamos despertando o interesse no aluno, que poderia solicitar o
empréstimo da obra completa, o que seria mais produtivo do que oferecer uma única obra a
todos, já que cada um tem suas preferências.

* 116 *
Nessa linha de entendimento, podemos citar produções dos anos 1990, como o artigo
de Carlos Alberto Vesentini, História e ensino: o tema do sistema de fábrica visto através de filmes
(1998), e produções recentes, como o já citado livro Luz, Câmera e História: Práticas de Ensino
com o Cinema (2018), de Rodrigo de Almeida Ferreira. Em seu texto, Ferreira (2018) apresenta a
seguinte possibilidade: o professor prepara um dossiê temático, com fragmentos de vários filmes
sobre determinado tema. Ainda segundo o autor, determinadas passagens podem favorecer a
análise mais pormenorizada do conteúdo histórico e da narrativa fílmica da história.

Quanto ao risco de a seleção restringir a educação do olhar, vemos por outro


ângulo. Mesmo fragmentando o filme, a atividade apresenta ao estudante obras
cinematográficas, muitas delas desconhecidas para ele. Ademais sendo um
primeiro contato, o assistir e analisar a linguagem fílmica pode ser o estimulo
para que o jovem se interesse por outros títulos. A educação do olhar não se faz
somente no âmbito escolar (FERREIRA, 2018, p.131).

Conforme já abordamos anteriormente, a educação não se dá exclusivamente no espaço


escolar, de tal modo que se aposta na disponibilização dos filmes para os alunos através de acervos.

Por meio de tal disponibilização, há uma abertura do leque de filmes acessíveis aos alunos,
ainda que por fragmentos, o que traz ganhos significativos ao desenvolvimento discente. Essa
linha de entendimento também está relacionada a uma concepção do filme como um texto
visual, de modo que podemos realizar uma análise de fragmentos, assim como realizamos a
interpretação de trechos de textos escritos (ALMEIDA, 1993).

O filme, como um texto falado/ escrito, é visto/lido. Como num texto/ fala que
à primeira letra/ som sucedem-se outros, formando palavras que se sucedem
em frases, parágrafos, período até lermos/ouvirmos a última letra/som e termos
o texto/ fala completo, o primeiro quadro, os seguintes, as cenas, as sequências,
o filme completo. O significado de um texto/filme é o todo, amálgama desse
conjunto de pequenas partes, em que cada uma não é suficiente para explicá-lo,
porém todas são necessárias e cada uma só tem significação plena em relação a
todas as outras (ALMEIDA, 1993, p.134).

Bergala (2008) volta ao tema tomando como ponto de partida a experiência da produção
audiovisual, recordando a autobiografia do Diretor Frank Capra (1997) “Todos os diretores
se confrontam com esse problema: precisam cuidar para que o trabalho de cada dia esteja em
harmonia com o conjunto do filme”(p. 143). Por mais que o cinema seja um produto coletivo, o
diretor é o autor da obra, pois a ele compete manter a visão do todo e articular os fragmentos do
filme, que, na maioria das vezes, são gravados fora da ordem de exibição.

O professor, ao articular fragmentos de diferentes filmes, pode ressaltar as filiações


estéticas de uma escola de diretores ou, pela contraposição de fragmentos de escolas diversas,
apresentar diferentes formas de produção. O argumento é que, ao assistir um filme inteiro, o
aluno não terá a mesma percepção das construções criativas, ou seja, escolhas estéticas, que teria
se tivesse analisado trechos de filmes de diferentes “escolas”, por exemplo.

* 117 *
Para Bergala, o problema não está exatamente no fato de assistir ou não o filme todo,
mas no fluxo da narrativa. Para o referido autor, quando estamos presos ao fluxo da narrativa
do filme, ficamos à espera dos acontecimentos que dão sentido àquela narrativa e ao prazer que
sentimos ao assistir a obra, aliás como deve ser. Do ponto de vista pedagógico, esse fluxo, no
entanto, não seria interessante, pois não ajudaria os estudantes a vislumbrarem outras camadas
possíveis de observação.

Ao trabalhar com trechos, o professor também teria maior facilidade em decompor as


cenas até a célula básica do cinema, o plano, para realizar uma análise da criação de cada plano,
assistir em alta e baixa velocidade, rever e rearticular os fragmentos, contribuindo assim para
uma postura de “espectador criador”.

Bergala sugere como método de análise de criação uma “pedagogia de articulação de


filmes ou fragmentos” (Bergala, 2008, p. 113) que se caracteriza por um didatismo leve, em que
já não é o discurso que detém o saber. Assim, o conhecimento surge da observação das relações
múltiplas entre imagens convergentes e divergentes, ou seja, uma pedagogia que faça apelo ao
imaginário e à inteligência do utilizador.

A tomada de um plano ou sequência fílmica possibilita a análise da relação espacial


(dimensão, quadro, ponto de vista) em relação ao tempo (movimento, duração ritmo e relação
com outras imagens). O fragmento permitiria acessar o todo e o detalhe. Além disso, o arquivo
digital possibilitaria a aceleração e a desaceleração do fluxo de imagens em movimento.

Para o professor de História seria a possibilidade de demonstrar o contraditório,


procedimento muito importante para o estudo e o ensino de História, comparar versões
cinematográficas sobre um mesmo fato ou período, apoiado na perspectiva da análise da
criação, pensando com os alunos a respeito dos elementos utilizados para a formação do
gesto criador de cada narrativa.

Ao utilizar o fragmento, Bergala imagina o professor como o montador do filme, aquele


que dá harmonia à narrativa, no sentido da coerência estética. O professor como um articulador
das demandas do grupo de estudantes e também como um articulador de filmes.

A ideia de articular diversos fragmentos de filmes busca oferecer aos alunos a


possibilidade de acesso a diversas escolas cinematográficas, bem como de fruição estética,
onde o aluno tem que criar sua síntese dialética, como Sergei M. Eisentein8 propunha. Para
esse cineasta, ao cortar de um plano para outro, o espectador cria uma terceira imagem na sua
cabeça. Foi contando com esse movimento dialético que o diretor apoiou-se para a construção
da sua estética. Ao contrário da escola Hollywoodiana que buscou deixar o corte o mais
imperceptível possível, no supernaturalismo, para Eisentein, o espectador não precisava ser
conduzido por imagens fluídas que levassem diretamente ao desfecho da história como uma
radionovela. Para ele, cada imagem tem uma força de atração, “a colisão de atrações verso a
verso [imagem por imagem] produz o efeito psicológico unificado” (ANDREW, 2002, p. 53).

8
Cineasta Soviético do início do século XX e grande teórico da montagem cinematográfica.

* 118 *
A montagem é parte desse processo, mas o espectador é o agente principal, nunca tomado
como passivo, pois ele também está criando no momento em que assiste o filme.9

A figura do montador nos traz de volta a pedagogia do cinema de Migliorin (2016). Tal autor
defende os seguintes preceitos: “Nesta pedagogia, podemos falar de uma dupla horizontalidade
que se expressa na materialidade dos filmes: 1) Uma horizontalidade nas relações entre sujeitos –
cineasta espectador; 2) Uma horizontalidade nas relações entre imagens, discursos, saberes.” (p.26).
O docente na posição de montador/articulador, ao utilizar os fragmentos de filmes, poderia retomar
a dialética da montagem tão cara a Eisentein, retomando essa horizontalidade entre sujeitos –
cineasta espectador, cineastas em potencial e professor.

(...) a horizontalidade acontece entre elementos internos às obras, através da


colocação da multiplicidade em ação. Ou seja, na montagem que aproxima,
tenciona, contrapõe elementos de múltiplas naturezas, espaços e tempos, um
duplo movimento se faz, por um lado constroem-se linhas de continuidades,
discursos, retóricas, signos, por outro se impossibilita que essas linhas
de continuidade garantam um lugar verídico ao mestre. Uma lógica dos
múltiplos que opera justamente na construção de uma pedagogia que não
abandona a necessidade de uma produção de saber compartilhada, garantida
pela descontinuidade entre imagens, discursos e saberes que estão nos filmes
(MIGLIORIN, 2016, p.27).

O fragmento revelaria essa lógica da multiplicidade de discursos, retóricas e signos. Ainda


segundo Migliorin, impossibilitaria um lugar de conforto, cômodo ao mestre, evitaria que se
caísse no fluxo narrativo das imagens e na construção da verdade interna do filme que reforça o
lugar de fala do mestre como explicador do filme.

A produção do saber de modo compartilhado estaria garantida na descontinuidade das


imagens, que levaria ao diálogo constante e, a cada nova exibição, a uma nova síntese imagética,
um novo debate, um novo aprendizado.

Conclusões: Pedagogia da Criação e Ensino de História

A pedagogia da criação, proposta por Bergala (2008), busca que o estudante tenha uma
postura criativa frente aos filmes, ou seja, que, para além de ver e analisar, possa criar e inventar,
alterando a relação do cinema com a educação, propondo, portanto, uma forma de aprendizagem
através da produção artística.

Esse ato não elimina o conhecimento histórico produzido através da análise dos filmes,
potencializa-o ao dar vazão para que o estudante busque o processo de análise através de uma
demanda própria, o seu desejo de expressão.

Contudo, a análise da criação pressupõe uma passagem ao ato, ou seja, um processo


criativo, ainda que o filme seja criado apenas na imaginação. Portanto, é fundamental a realização
9
Para mais, consultar os textos do próprio autor: A forma do Filme, 1929 e O sentido do filme 1942.

* 119 *
de dispositivos de criação10 de imagem com os estudantes, pois o ato da criação é o fato que
os mobiliza e propicia a ampliação das potencialidades do processo educativo, ajudando-os a
observarem novas camadas do filme.

Analisar quem produziu, em que contexto, qual forma de financiamento, bem como a
linguagem visual adotada, posicionamento de câmeras e atores, cores, construção da narrativa,
além de todo o processo de análise historiográfica, se soma aos questionamentos: como vocês
fariam essa cena? Essa sequência? Ou esse filme? A esse processo também chamamos de educação
do olhar, ou seja, perceber os elementos de composição e construção de uma narrativa, portanto,
os jogos de poder presentes na imagem e, assim, transcender esse movimento percebendo
possibilidades criativas para suas próprias inquietações.

A produção audiovisual pode ser um modo para que os alunos investiguem o entorno
escolar ou a própria escola e, a partir de sua realidade, possam se situar historicamente, além de
perceber as diversas narrativas que entrecortam seus espaços sociais.

Ao fomentar a produção audiovisual na escola, não estamos buscando que mais estudantes
postem vídeos em plataformas de streaming e redes sociais, que capitalizam com os sonhos de
jovens e adultos, através de algoritmos nem sempre bem intencionados. Pelo contrário, buscamos
que, ao produzirem suas imagens, os jovens estudantes possam se perceber enquanto sujeitos
históricos, produtores de identidade e cultura, portanto, produtores de sua própria história, aqui
entendida na relação entre indivíduo e coletividade, como potência e expressão de mundo, como
desejo de uma cidadania plena em direitos no campo material e simbólico.

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10
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com a Difenrença” com propostas de dispositivos de criação muito interessantes. Disponível em: https://www.
academia.edu/30703627/Cadernos_do_Inventar_com_Diferen%C3%A7a acesso em: 05/01/2021

* 120 *
CAPRA, Frank. The Name Above the Title. An Autobiography. Nova York: Da Capo
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* 122 *
UM MONUMENTO AOS BANDEIRANTES COMO FONTE
DOCUMENTAL NO ENSINO DE HISTÓRIA: MEMÓRIA SOCIAL
E DIFERENTES LEITURAS DO PASSADO

Janaina Franzoni Caetano1


Lucília S. Siqueira2

Resumo

Este texto se construiu a partir das reflexões e pesquisas realizadas no programa de mestrado
profissional de formação de professores, o ProfHistória, baseadas em três eixos: monumento,
memória social e Ensino de História. Aqui se propõe o uso do monumento no Ensino de
História, com o objetivo de contribuir para o conhecimento de diferentes leituras que são feitas
do passado, entre as quais as perpetuadas intencionalmente pelos objetos públicos monumentais.
Na análise do Monumento aos Bandeirantes, localizado na cidade de Santana de Parnaíba/
SP, busca-se estudar os processos históricos e a construção da memória social da cidade. Para
tanto, apresentamos aqui algumas atividades do material para professores formulado como parte
propositiva da dissertação. Composto por uma sequência didática de sete etapas – distribuídas
em pré-campo, campo e pós-campo; contendo cada uma: atividades, orientações, mediações
para o(a) professor(a) e bibliografia –, o material destina-se aos alunos do Fundamental II ou
do Ensino Médio, e pretende auxiliar os docentes a tratar de monumentos historicamente, de
forma a desconstruir suas narrativas, compreender qual leitura do passado invocam e analisar a
relação entre memória e esquecimento neles contida.

Palavras-chave: Monumento. Ensino de História. Memória Social. Bandeirantismo. Santana


de Parnaíba

Abstract

This article was built from the reflections and research carried out in the professional
master’s program, ProfHistória, based on three axes: monument, social memory and History
Teaching. It is proposed to use the monument in History Teaching, with the objective
1
Licenciada em História pela Universidade UNIFIEO e mestre em Ensino de História pelo programa de
mestrado profissional ProfHistória (2020) na Unifesp em 2020 – E-mail: historiatudodebom@gmail.com.
2
Professora de História, Memória e Patrimônio no Curso de História na UNIFESP, onde integra o programa de
mestrado profissional de formação de professores, o ProfHistória – E-mail: lsiqueira@unifesp.br.

* 123 *
of contributing to the knowledge of different readings of the past, including those that are
intentionally perpetuated by monumental public objects. In the analysis of the Monument to
Bandeirantes, located in the city of Santana de Parnaíba / SP, we seek to study the historical
processes and the construction of the social memory of a city. For that, we present the material
that was formulated as part of the research. Composed of a didactic sequence of seven stages
distributed in pre-field, field and post-field, each one contains: activities, guidelines, mediations
for the teacher and bibliography. It is intended for elementary school or high school students, and
aims to help teachers dealing monuments historically, in order to deconstruct theirs narrative,
understand which reading of the past they invoke and analyze the relationship between memory
and forgetfulness that they contained.

Key-words: Monument. History Teaching. Social Memory. Bandeirantism. Santana de Parnaíba

Alvos de protestos e intervenções, não é de hoje que os monumentos públicos atraem


manifestações que questionam as homenagens feitas a personagens históricos ligados aos sistemas
escravagistas e colonialistas em alguns países. No Brasil, podemos citar um ocorrido no dia 02
de outubro de 2013, quando o Monumento às Bandeiras, em São Paulo, foi o objeto central
da manifestação de grupos indígenas que questionavam, entre outras coisas, a homenagem aos
bandeirantes. Nesse dia, segundo reportagem feita pelo jornalista Márcio Pinho, os participantes
“jogaram tinta vermelha e picharam a frase “bandeirantes assassinos” com tinta branca. (...) No
fim do ato, os manifestantes deram um abraço simbólico no monumento.” 3

Em junho de 2020, a morte sob violência policial de George Floyd, um cidadão


negro estadunidense, motivou inúmeros protestos pelo mundo. Muitas dessas manifestações
antirracistas foram em torno de estátuas e monumentos. Em Bristol, na Inglaterra, a estátua
do traficante de escravos Edward Colston, erguida em 1895, foi derruba e jogada no rio Avon.
Este fato fez reacender os questionamentos sobre quais memórias devemos perpetuar e o que
fazer com as memórias presentes em monumentos que prestam homenagens às pessoas que se
beneficiaram com a escravidão e a exploração colonial.

Por aqui, em alguns momentos, o debate ficou polarizado entre os que desejam a
derrubada dos monumentos e os que defendem a sua permanência, pautando a discussão sobre
uma possível reparação histórica ou a tentativa de revisionismo. Exemplo disso foi a deputada
estadual Erica Malunguinho, da bancada do PSOL na Assembleia Legislativa de São Paulo
(ALESP), que protocolou no dia 24 de junho de 2020 um projeto de lei que propunha retirar
das ruas de São Paulo e colocar em museus estaduais os monumentos que prestam homenagens
a figuras ou eventos históricos ligados à prática escravista no país. Contrapondo-se a este projeto,
Paulo Garcez Marins, em entrevista ao site Terra, diz que:

A transferência de local é possível para monumentos de porte menor ou de bronze,


como as estátuas de Lenin retiradas de cidades que pertenceram à União Soviética.
Mas vamos remover o Monumento às Bandeiras para colocá-lo onde? Fora o custo
de desmontar uma escultura em granito. É preferível, do ponto de vista financeiro,

3
Pinho, Márcio. Na rota dos protestos, Monumento às Bandeiras vira alvo de pichações. Data: 03/10/13.
Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/10/na-rota-dos-protestos-monumento-bandeiras-
vira-alvo-de-pichacoes.html.

* 124 *
construir um museu ao redor dela. O mesmo vale para o Borba Gato, uma estrutura de
concreto e alvenaria, como retirar aquilo? O intolerável não é a estátua estar lá. É estar
lá sem nenhum tipo de mediação.4

O monumento não é inócuo, é um objeto intencionalmente criado e utilizado para


perpetuar uma memória, ou seja, “o monumentum é um sinal do passado” 5 e, conforme as
reflexões de Le Goff (2013), pode ser visto como documento. Devemos formular perguntas
para o monumento a fim de “fazer falar os traços que, por si próprios, muitas vezes não são
absolutamente verbais, ou dizem em silêncio outra coisa diferente do que dizem”6, tornando-o,
assim, um instrumento, uma fonte histórica que contribui com o Ensino de História.

Este texto, oriundo da dissertação intitulada Diferentes leituras do passado no Monumento


aos Bandeirantes em Santana de Parnaíba/SP: Ensino de História e memória social, propõe o uso do
monumento no Ensino de História para que, através de sua análise, possamos conhecer de modo
crítico a memória e a leitura do passado que este objeto almeja perpetuar.

Refletimos sobre a relação entre a construção da memória social e este objeto cultural
para pensá-lo historicamente e entender como o Ensino de História pode ajudar na leitura
crítica e na desconstrução da memória preservada no monumento, de forma a desmontar sua
narrativa, compreender qual leitura do passado ele invoca e a quem prestigia.

Para Alves, o Ensino de História, ao apropriar-se da arte estatuária como documento,


utiliza-a levando em consideração a memória representada no objeto, a intenção daqueles que a
ergueram e o significado atual que ela tem para as pessoas.

Em tais inter-relações, a arte estatuária como fundamento para o ensino da História,


pode ser estudada a partir de três pressupostos básicos: o objeto da memória, ou seja,
aquele ou aquilo que se desejou perpetuar; a intenção da memória, em uma referência
aos intentos daqueles que promoveram a ereção do monumento; e os sentidos da
memória, em alusão ao significado contemporâneo das estátuas.7

O objeto escolhido nesta análise é o Monumento aos Bandeirantes da cidade de


Santana de Parnaíba/SP, localizado numa grande rotatória na entrada do centro histórico.
O conjunto monumental é de autoria do escultor Murilo Sá Toledo8, e foi esculpido em
4
Cáceres, André. O que fazer com estátuas, filmes e livros com discurso de ódio?. Disponível em: https://www.
terra.com.br/diversao/o-que-fazer-com-estatuas-filmes-e-livros-com-discurso-de-odio,7e429f89fe2efdad769b
8ed4ed3a359duff7by22.html.
5
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013. p. 486.
6
FOUCAULT, M. L´archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969 (trad. port. São Paulo: Forense Universitária,
1969, p. 13 Apud Le Goff, 2013, op. cit. p. 495.
7
ALVES, Francisco das Neves. Estatuária, Patrimônio Histórico E Ensino De História: O Caso Do Monumento
Ao Barão Do Rio Branco Na Cidade Do Rio Grande. Historiæ, Rio Grande, v. 6, nº2: 167-212, 2015. p. 171
8
A obra tem autoria do escultor Murilo Sá Toledo, artista plástico, morador de Santana de Parnaíba, conhecido
por suas esculturas figurativas e obras públicas. Uma obra sua de grande destaque é a do Apóstolo São Paulo,
Padroeiro da Cidade de São Paulo, localizada na Praça da Sé. O artista trabalha principalmente com cerâmica e
bronze. Em Janeiro de 2020, o escultor me recebeu em sua casa e falou do processo de criação do monumento e
de um novo conjunto monumental, que será em breve inaugurado, com a mesma temática dos Bandeirantes, bem
próximo a este que está sendo estudado, com 16 esculturas e uma pira.

* 125 *
bronze e pedra. É composto por 23 esculturas e alegorias, entre elas: 9 bandeirantes; 1 índio;
1 índia; 3 crianças indígenas; 1 bebê mameluco e 1 negro. Os tais personagens e um cenário
que os envolve evocam a formação da vila e a expansão do território brasileiro no período da
colonização a partir daquele ponto geográfico.

No estudo do conjunto escultório foram analisados a localidade, a materialidade, a


inauguração, o tema, as diferentes temporalidades que encerra, e sua função memorial e educativa.
Para utilizá-lo como objeto do Ensino de História e pensar como a História pode ajudar a
desconstruir o que a memória construiu, buscamos a relação entre o monumento, a história da
cidade e o bandeirantismo heroicizado.

Decorrendo da pesquisa, formulou-se uma parte propositiva9 em forma de sequência


didática, com atividades utilizando diversos materiais e documentos, em uma inter-relação
crescente entre monumento e Ensino de História. Pensadas para serem realizadas dentro e
fora da sala de aula, tais atividades propostas em nenhum momento desejam limitar ou moldar
as práticas dos professores; ao contrário: respeitamos a autonomia deles para escolher e avaliar
qual a melhor maneira para realizá-las, adaptando-as e acrescentando ou extraindo materiais
conforme seus objetivos, sua realidade e tempo disponível.

A Cidade de Santana de Parnaíba: sua história e seu monumento

Figura 1 - Visão Aérea do Monumento e parte do centro histórico - Fonte: Site Vero |
Foto: Linda Marinho – Acessado em 20/01/2019

9
O programa de mestrado do ProfHistória exige a criação de um produto final, uma parte propositiva, na qual
deve-se utilizar os conhecimentos adquiridos durante a pesquisa, transformando-os em diferentes formatos de
materiais, que auxiliem os professores em suas aulas.

* 126 *
Localizada no Estado de São Paulo, na Região Metropolitana da capital paulista,
Santana de Parnaíba possui atualmente uma área de 184 km² e uma população de
aproximadamente 136 mil habitantes, segundo os dados do IBGE em 2018. Sua economia
baseia-se hoje nos setores de comércio e serviços, especialmente na região do bairro de
Alphaville, e nas atividades oriundas do turismo atraído pelas festas tradicionais, como o
Tapete de Corpus Christi e o Carnaval de Samba de Bumbo.

Em 2003, a cidade ganhou novo destaque turístico quando foi inserida no Roteiro
Turístico dos Bandeirantes, junto a outros quatro municípios, formando o Circuito Taypa de
Pilão, organizado pela Secretaria de Esporte, Lazer e Turismo do Estado de São Paulo (SELT-
SP), que tem o objetivo de promover os bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico,
Artístico e Nacional (IPHAN). Essa inserção está ligada às construções do centro histórico
que são, em grande parte, do século XIX, e formam o maior conjunto urbano arquitetônico
tombado e preservado do Estado de São Paulo, reconhecido em dois momentos: em 1958,
o IPHAN realizou o tombamento da residência bandeirista urbana, onde hoje funciona o
Museu Anhanguera; e em 1982, outras 209 edificações foram tombadas pelo Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo
(CONDEPHAAT).

Morgado (1987), em seus estudos sobre os relatos de moradores feitos para os processos
de tombamento, lembra-nos que

“o trabalho de preservação é essencialmente seletivo. Seleciona-se o que


preservar ao mesmo tempo em que se libera o restante à destruição. E, na
maior parte das vezes, essa escolha tem sido orientada por uma história oficial,
linear, que pretende dar conta do todo social”10.

Em Santana de Parnaíba, a preservação patrimonial e memorial não fugiu a essa “regra”:


buscou-se conservar uma parte da história que está inteiramente ligada à intervenção dos bandeirantes
na região, na formação do município e na importância de sua ação na expansão territorial colonial a
partir daquela vila, unindo assim a história local à paulista, e a história dessa região à nacional.

Poucos são os registros historiográficos, mas o que foi possível resgatar da história da
região nesta pesquisa nos mostra que, antes da chegada dos portugueses, nela habitavam diversas
etnias indígenas como os Guaianá, os Tupis e Carijós, e a relação entre nativos e colonizadores
foi baseada em conflitos, acordos e resistências. Conforme nos mostra John Monteiro11, essa
relação era baseada em acordos feitos por interesses de ambos os lados, pois sem tais acordos era
muito improvável que os colonizadores conseguissem sobreviver e prosperar na capitania.

10
MORGADO, Naira Iracema Monteiro. O espaço e a memória: Santana de Parnaiba. Dissertação de Mestraso.
Unicamp. 1987. p. 7.
11
MONTEIRO, John M. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, 3ª Ed; São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 55. Em sua tese de doutorado, defendida em Chicago em 1985, e publicada no
Brasil com o nome de Negros da Terra, em 1994, o autor deu visibilidade ao protagonismo indígena na construção
da sociedade colonial de São Paulo e evidenciou que o processo de colonização dependia em grande parte das
populações indígenas e de sua mão de obra.

* 127 *
Os primeiros núcleos de povoamento na região, segundo o memorialista Camargo12,
ocorreram entre 1567 e 1580. Foi neste período que Manoel Fernandes Ramos, esposa e filhos
se apropriaram das terras a eles doadas e fixaram-se a cerca de oitenta léguas a jusante de São
Paulo de Piratininga. Formou-se, então, uma fazenda às margens do rio Anhembi, hoje Tiête,
denominado pelos índios de “parnaíba”, que significa “lugar de muitas ilhas”, pois neste ponto
o rio tinha um grande obstáculo fluvial que formava quedas d´água. Após a morte de Manoel,
seus herdeiros, André, Domingos e Baltazar, e sua mulher, Suzana Dias, ergueram em 1580 uma
nova capela em honra de Sant’Ana, que substituía a anterior construída em homenagem a Santo
Antônio, marcando assim a fundação da Vila de Parnayba.

Ao estudar inventários da região de São Paulo e Parnaíba, de 1600 a 1729, Monteiro


mostra-nos que, nas décadas que se seguiram à fundação da vila, a população aumentou em
número de proprietários de terras e de indígenas escravizados que trabalhavam nas lavouras13,
tornando a região um entreposto do comércio de índios provindos das expedições bandeirantes.

Essas expedições tinham como objetivo principal capturar e escravizar indígenas. Os


“colonos de São Paulo e de outras vilas circunvizinhas assaltaram centenas de aldeias indígenas
em várias regiões, trazendo milhares de índios de diversas sociedades para as suas fazendas e
sítios na condição de “serviços obrigatórios”” 14. Monteiro reforça que, ao contrário do que se
acreditava, a maior parte da mão-de-obra capturada ficou em São Paulo mesmo:

Portanto, quase todos os índios capturados neste período foram, sem dúvida,
integrados à economia florescente do planalto. É o que mostra a própria
documentação paulista: verifica-se o crescimento da concentração de índios
arrolados em inventários de bens nas vilas de São Paulo e de Santana de
Parnaíba [...] Nesse importante momento do desenvolvimento de uma lavoura
comercial [...] as expedições de grande porte se mostraram como um eficiente
modo de constituir uma força agregada de mão-de-obra indígena.15

Essa atividade de alta lucratividade foi a operação escravista mais predatória da história
moderna; segundo Alencastro (2000), cerca de 100 mil indígenas foram aprisionados no período
de 1627-164016, e a partir dos séculos XVIII e XIX novas atividades econômicas trouxeram
significativas mudanças sociais, abrindo espaço para uma agricultura comercial – o açúcar –, e
uma nova forma de escravização de mão-de-obra – a dos africanos17.

A vila somente foi elevada à categoria de cidade em 1906, após um considerável


crescimento populacional motivado pela inauguração da primeira usina hidrelétrica no país, a
Usina de Parnahyba.
12
CAMARGO, Mons. Paulo Florêncio da Silveira. História de Santana de Parnaíba. Col. História. São Paulo:
Conselho Estadual da Cultura, Tipografia Fonseca, 1971.p 326.
13
MONTEIRO, John M. op. cit. p. 80.
14
Idem, p. 57.
15
Ibidem, p. 79.
16
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 193-194.
17
MORGADO, Naira Iracema Monteiro. op. cit.p. 20.

* 128 *
O intuito aqui não é se aprofundar na história da formação da cidade, mas buscar as
grandes linhas que darão elementos para compreendermos como as mudanças das atividades
econômicas ao longo do século XX, os tombamentos e os planos turísticos atuais fazem do
passado da cidade as suas formas de expressão memorial no presente.

Sobre memória, Meneses explica que opera um processo de construção e reconstrução


dos fatos ocorridos, dando-se no presente em relação ao passado18. Dessa forma, a memória
não vive apenas do passado, mas muito do presente, ou seja, ela é fruto do presente, que busca e
recorta a parte do passado que se deseja preservar.

No espaço público, a escultura se faz um recurso da memória. Ao olhar para o Monumento


aos Bandeirantes, suas formas se tornam um texto ao ar livre, produzido em bronze, pedras e
água, que deseja expressar uma narrativa da fundação da cidade ligada à expansão territorial
brasileira. Para Knauss Mendonça (2010), essa percepção não é necessariamente feita de forma
consciente, mas o monumento, por ser também arte, tem potencial para despertar uma memória:

A partir do processo de ritualização da festa cívica e da estrutura narrativa da escultura,


portanto, é possível perceber que a escultura de lógica monumental não é apenas uma
imagem plasticamente definida. Ao procurar promover a presença do passado no
presente, a lógica do monumento apresenta e favorece a experiência sensível de uma
leitura da história que mesmo quando não compreendida explicitamente é percebida
afetivamente pela exposição do belo e pela mobilização coletiva.19

A relação que a cidade tem com a presença do passado no monumento vai além da sua
materialidade na entrada da cidade, pois uma das figuras do Monumento aos Bandeirantes
é utilizada pela prefeitura em logotipos e também está estampada nos materiais didáticos
fornecidos nas escolas municipais.

Para entender qual leitura da história este conjunto monumental pretende promover, faz-
se necessário analisar suas esculturas e alegorias.

18
MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da
memória no campo das ciências sociais. Rev. Inst. Est. Brasileiro, SP, nº 34, p. 9-24, 1992.
19
MENDONÇA, Paulo Knauss de. A interpretação do Brasil na escultura pública: arte, memória e história.
Conferencia de empossamento. RIHGB. Rio de Janeiro: n. 449, Ano 171, p. 219- 232, out./dez. 2010. p. 227.

* 129 *
Monumento aos Bandeirantes: leituras do passado

Figura 2 - Visão Aérea do Monumento - Fonte: site Wikipedia – Acessado em 20/01/2019

O conjunto do Monumento aos Bandeirantes é composto por 23 esculturas e uma


diversidade de plantas e espelhos d´água dispostos numa superfície plana de 60 metros de
comprimento e 20 metros de largura, formando cenas que abordam parte da história da cidade
e do movimento bandeirantista.

Localizado no km 40,5 da Estrada dos Romeiros, uma das vias de acesso à cidade e
ao centro histórico, o conjunto escultório está numa rotatória criada para abrigá-lo, e onde as
esculturas foram organizadas de forma que os cidadãos consigam circular entre elas.

O projeto não passou por nenhum concurso, foi uma encomenda direta do prefeito Silvio
Peccioli durante sua segunda gestão, de 2000 a 2004, ao artista plástico e escultor Murilo Sá
Toledo. Segundo o escultor, foi o próprio prefeito que determinou o local e o tema. Em princípio,
cogitava-se a ideia de esculpir uma única grande estátua, o que em seguida foi descartado, pois
poderia ficar parecida com a já existente em São Paulo, no bairro de Santo Amaro, que faz
homenagem ao bandeirante Borba Gato.

A construção durou três anos e meio, e o conjunto foi inaugurado nas festividades de
comemoração dos 426 anos da fundação de Santana de Parnaíba, em 14 de novembro de 2006.
Além do prefeito da época, José Benedito P. Fernandes (Partido da Frente Liberal – PFL),

* 130 *
estiveram presentes o governador de São Paulo em exercício Cláudio Lembo (DEM)20 e outros
prefeitos e autoridades das cidades vizinhas.

Segundo Cleber Mata21, responsável por escrever sobre o evento no portal do Governo
de São Paulo, durante a inauguração o governador elogiou em seu discurso de inauguração
a iniciativa da prefeitura de investir na construção do monumento. Mencionou que o gesto
revelava a sensibilidade da atual administração em preservar a história do Brasil dizendo que
“Um país que esquece o seu passado comete uma tragédia, e este monumento servirá para os
nossos netos perceberem quem foram os Bandeirantes”. A estes se referiu como “gente de uma
coragem extrema”.

A imprensa local noticiou e destacou a inauguração do monumento. O Jornal Notícias22


publicou detalhes sobre a programação dos eventos que faziam parte do aniversário da cidade
e, em destaque, abordou a inauguração do monumento dizendo: “O monumento com que a
prefeitura presenteia os moradores faz jus à própria história da cidade, já que o povoado que a
originou era o principal ponto de partida das entradas e bandeiras que contribuíram para tornar
o Brasil um país com tamanhas dimensões”.

As esculturas do monumento não possuem placas de identificação dos personagens


representados; dessa forma, para fazermos as descrições das estátuas e alegorias foram utilizadas
informações extraídas das considerações do escultor23 a partir dos escritos encontrados no
material promocional feito pela Secretaria de Cultura e Turismo da cidade de Santana de
Parnaíba, e das observações realizadas em visita ao monumento. As análises que faremos, a
partir de agora, referentes às dimensões materiais e memoriais do monumento, fornecer-nos-
ão elementos sobre as intenções de memórias a serem preservadas e as diferentes leituras do
passado indicadas neste conjunto escultório.

Duas muralhas, uma à direita e outra à esquerda, são percorridas na parte de cima por uma
corrente de água que cai formando um espelho d’água que as rodeia. Essas estruturas, além de
fazerem parte do monumento ajudando a montar um ambiente para as esculturas, emoldurando-
as, também têm a intenção de criar uma narrativa, pois fazem analogia às dificuldades dos
bandeirantes em suas jornadas nas águas do rio Tietê.

20
Governador de São Paulo de 31/03/2006 a 01/01/2007. Afiliado ao partido Democratas assumiu o governo
do estado de São Paulo devido à renúncia do governador Geraldo Alckmin para concorrer à presidência da
República. Entregou o cargo ao governador eleito José Serra (PSDB).
21
MATA, C. Governador participa das comemorações de aniversário da fundação de Santana de Parnaíba. Portal
do Governo, São Paulo, 15 nov. 2006. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/ultimas-noticias/
governador-participa-das-comemoracoes-de-aniversario-da-fundacao-de-santana-de-parnaib.
22
SANTANA de Parnaíba inaugura monumento aos bandeirantes. Jornal Notícias, Barueri, 10.11.2006. Região, p.09.
Acervo do Arquivo do CEMIC (Centro de Memória e Integração Cultural “Capitã Bertha de Moraes Nérici”).
23
Ver acima, nota 8.

* 131 *
Figura 3 – Monumento - Detalhe: Muralha, Dezembro 2018 - Fonte: Acervo pessoal | Foto: Janaina Franzoni

No muro à direita, está afixada uma alegoria em bronze, um mapa da América do Sul que
destaca o contorno do Brasil ladeado pela bandeira da cidade de Santana de Parnaíba. Dentro do
mapa, o traçado do Tratado de Tordesilhas é representado por uma cobra da espécie brasileira mais
venenosa, a urutu-cruzeiro, que vive nas regiões do sul e sudeste do país. Nesta imagem, a silhueta
de um homem empurra a cobra da direita para a esquerda, insinuando a expansão territorial que
os bandeirantes promoveram, durante o século XVII, em direção ao sertão e seus perigos naturais.

Dentro do espelho d’água, formado pela muralha à direita, se encontra um barco com três
esculturas que representam: Suzana Dias (na ponta, à frente), Padre Guilherme Pompeu (meio)
e André Fernandes (sentado na parte atrás).

Segundo o memorialista Monsenhor Paulo Florêncio da Silveira Camargo (1971)24,


Suzana Dias era neta do índio Tibiriçá e viveu na vila de São Paulo de Piratininga. Depois da
morte de Manoel Fernandes, cuidou dos negócios da família junto ao seu filho André Fernandes.
A estátua representa uma mulher jovem, cabelos compridos e encaracolados, segurando uma
imagem de Sant´Ana, da qual era devota.

Posicionada dentro do barco, ajoelhada e segurando uma cruz, está a escultura que
representa o Padre Guilherme Pompeu de Almeida. Nascido em 1656 em Santana do Parnaíba,
estudou com os jesuítas em Salvador. Citado na obra de Jorge Caldeira (2006)25 como o banqueiro
das expedições bandeirantes, Pe. Pompeu era envolvido em negócios com a exploração da prata
que se instaurou na região. Sua fazenda em Araçariguama hospedava pessoas importantes da
Igreja e comerciantes. Faleceu em 7 de Janeiro de 1713, em Santana de Parnaíba.

Filho de Suzana Dias, André Fernandes é considerado cofundador da cidade, por ter
administrado com sua mãe a recém-fundada vila de Parnayba. O artista o representou sentado
na parte detrás do barco; olhando para trás, segurando em suas mãos uma arma de fogo, parece
proteger a viagem. Trajado com capa, colete, calça e botas, lembra-nos a representação da figura
bandeirante criada por Taunay e Benedito Calixto na primeira pintura feita do bandeirante
24
CAMARGO, Mons. Paulo Florêncio da Silveira. op. cit. p. 31.
25
CALDEIRA, Jorge. O banqueiro do sertão. São Paulo: Mameluco, 2006.

* 132 *
Domingos Jorge Velho. Observamos nessa estátua a ideologia do “homem de bem”, e, como
reflete Paulo Garcez26 em um artigo intitulado “Nas matas com poses de reis”, esta é a imagem que
corrobora o “caráter heroico que começava a ser atribuído aos bandeirantes pelos historiadores
paulistas”, principalmente entre as décadas de 1920 a 1970, classificando-os como os únicos
corajosos responsáveis por alargar as fronteiras brasileiras.

Duas esculturas nos chamam a atenção. Posicionadas em lados opostos, dotadas de


um porte físico sobre-humano, não receberam uma identidade, sendo somente chamadas de
“o escravo” e “o índio”. Ao negro deu-se o papel de trabalhador braçal, que puxa o barco dos
fundadores; ao índio, a posição de prontidão, guardião da floresta. Ambas as imagens reforçam
uma historiografia que privilegia a participação dos setores dominantes da sociedade na história,
e exclui ou minimiza o papel dos negros e dos indígenas como agentes históricos.

Representando, segundo o escultor, o nascimento do povo brasileiro, fruto da miscigenação,


há três esculturas formando outra cena: um homem branco, sem camisa, de calças e botas,
ajoelhado, ergue em seus braços e olha para um bebê; uma índia, nua, sentada e recostada à
frente do corpo do homem, também tem o olhar direcionado ao bebê. A narrativa desta cena nos
faz um questionamento: qual “povo brasileiro” ela representa? Podemos pensar que aqui o “povo
brasileiro” foi reduzido a duas contribuições culturais: Indígena e Portuguesa (branca). Pode-
se fazer duas críticas a esta cena: a simplificação da miscigenação representada e a passividade
transmitida pelas figuras. Sabemos que diversos povos e suas culturas compuseram e continuam a
compor o quadro da cultura brasileira. As esculturas sugerem uma ação de miscigenação natural
e pacífica, terminada, escondendo a violência presente nestes atos.27

Três bandeirantes foram esculpidos no conjunto monumental: Domingos Jorge Velho,


Bartolomeu Bueno da Silva (Anhanguera) e Antônio Raposo Tavares. Cada uma dessas esculturas
está em um ponto distinto, representando homens imponentes e corajosos, cujas características
do vestuário “modelar dos bandeirantes paulistas”28 permaneceram. Suas feições nos chamam
a atenção, pois cada escultura personalizou as características que a historiografia atribui a cada
herói, personificando os personagens através dos seus feitos.29

Outras duas esculturas homenageiam os bandeirantes, mas não um personagem


específico, e sim, como o escultor definiu, as suas virtudes. Numa delas, intitulada “a coragem”,
há a representação de um homem enfrentando uma onça enquanto uma cobra pica o seu
26
MARINS, P. C. G. Nas matas com poses de reis: a representação de bandeirantes e a tradição da retratística
monárquica europeia. IN: Revista do IEB, n. 44, fev. 2007. p.90.
27
Esta construção do povo brasileiro, com as três figuras: bandeirante, índia e bebê, também está presente em outro
monumento, do escultor Victor Brecheret, o Monumento aos Bandeirantes localizado no Parque do Ibirapuera,
em São Paulo.
28
WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. 2018. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2018. p. 41.
29
Como exemplo, podemos citar a escultura do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, O Anhanguera, localizada
dentro de outro espelho d´água, à direita do monumento, sobre um patamar. O escultor explica que a água ao seu
redor e o bastão em suas mãos, que está pegando fogo, remetem ao que é atribuído a este personagem em uma
de suas expedições, na região de Goiás em 1682, quando utiliza do estratagema de atear fogo em uma cabaça de
aguardente, fingindo incendiar a água do rio, aterrorizando os índios para que estes lhe entregassem ouro.

* 133 *
calcanhar. Esta cena reforça a narrativa proposta pelo artista de demonstrar que os bandeirantes
foram heróis, pois não mediram esforços e enfrentaram todos os tipos de perigo para desbravar
e expandir o território colonizado. A outra escultura nos chama atenção de duas formas: ela
ocupa o lugar mais alto do monumento e sua reprodução é utilizada no logo da prefeitura e
estampada nos materiais escolares do município. Trata-se de um bandeirante que em uma mão
segura um facão enquanto seu outro braço estendido aponta o interior do estado de São Paulo.
Batizada pelo escultor de “o idealismo”, sua postura indica muito mais que uma direção, indica
uma perspectiva de futuro, em que aponta qual passado deve ser lembrado no futuro, isto é, “o
passado que consagra a ação unificadora, interpretada como heroica da “missão civilizadora”
sobre um território selvagem e nada harmonioso do mundo agrário e atrasado colonial. Esta
leitura do passado é oficializada na história da cidade.”30.

Após o estudo minucioso dos elementos do conjunto monumental, na tentativa de


entender as narrativas do passado propostas neste lugar, pensemos como esse objeto pode ser
utilizado pelo Ensino de História como fonte documental.

O monumento e o Ensino de História: uma fonte documental

O significado da palavra monumento é “aquilo que traz algo à lembrança”31, o que se relaciona
com a conservação da memória de um povo, sociedade ou grupo. Como nos explica Le Goff:

A palavra latina monumentum remete para a raiz indo europeia men, que
exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O
verbo monere significa “fazer recordar”, de onde “avisar”, “iluminar”, “instruir”.
O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o
monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação,
por exemplo, os actos escritos. 32

Podemos assim entender que os monumentos são registros produzidos para preservar as
recordações do passado e, desta forma, ao erguer um monumento, estamos erguendo uma memória,
e esta ação está ligada muito mais ao presente em que se constrói o monumento do que ao passado.

O historiador da arte Alois Riegl afirmou que essas estruturas nunca se convertem em
passado, pois se destinam a “se manterem sempre presentes e vivas na consciência da posteridade”33,
por serem “uma criação deliberada cuja destinação foi pensada a priori”34. É, enfim, um objeto
da memória que pretende evocar e perpetuar um passado selecionado, e até mesmo construído.

30
CAETANO, Janaina Franzoni. Diferentes leituras do passado no Monumento aos Bandeirantes em Santana de
Parnaíba/SP: Ensino de História e Memória social. – 2020. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de
História - ProfHistória). UNIFESP. p. 64.
31
SALGUEIRO, Valéria. De pedra e bronze: um estudo sobre monumentos. O monumento a Benajmin Constant.
Niterói: EdUFF, 2008. p. 11.
32
LE GOFF, Jacques. op. cit. p. 486.
33
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem; tradução Werner R. Davidsohn.
I Ed. Apud. CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. Tradução Luciano Vieira Machado. 6ª Ed. São Paulo:
Estação Leberdade: Ed. UNESP, 2017. p. 31
34
Ibidem. p. 25.

* 134 *
Isso ocorre, no monumento, por meio de sua natureza afetiva, que tem o objetivo de tocar,
pela emoção, uma memória viva, “fazendo-a vibrar como se fosse o presente”35. Produzindo no
observador a presença do passado no presente.

Para Choay (2017), a intencionalidade memorial não é a busca por um passado, e sim uma
seleção deste passado, conforme o que se pretende preservar da identidade de uma comunidade
ou um grupo social. Para a autora, nunca será um passado qualquer, é um “passado invocado,
convocado, de certa forma encantado, é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em
que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade
étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar”36. Isto faz desse objeto um instrumento composto
de ideologias, intencionalidades e conflitos de poder, onde certos grupos da sociedade detêm a
decisão de quem ou o que será homenageado. Pode-se observar, conforme Salgueiro (2008):

em sociedades estratificadas (...) a tendência dominante, inevitavelmente,


é a de afirmação de uma memória da elite ou de grupos dominantes, que,
manifestada publicamente nas estruturas físicas dos monumentos, traz
consigo, necessariamente, o esquecimento de outros mundos, de outros
grupos, outros interesses.37

Sobre o valor educativo, Choay (2017) explica que há um caráter propedêutico ou pedagógico
nos monumentos, pois, além de testemunhos históricos, são capazes de transmitir saberes e auxiliar
na formação intelectual. Esta função é explorada por países onde o espírito nacionalista é efusivo,
como estratégia do Estado em suas políticas direcionadas a unificar a nação.

Para entendermos como é possível utilizar este tipo de manifestação artístico-cultural, o


monumento, como registro histórico de extremo valor no Ensino de História, temos que olhar
para este objeto de estudo, suas múltiplas funções e elementos materiais, memoriais, pedagógicos,
e temporais, que despertam muitas discussões. Segundo a historiadora Valéria Salgueiro (2008),
sua função memorial se relaciona de duas formas, tanto pelo tempo que é invocado quanto
pelo tempo da construção do monumento. Assim, temos dois tipos de historicidade que nos
interessam analisar: “o da historicidade da prática humana de rememorar e o da historicidade da
forma de materialmente expressar a memória.” 38.

Sobre o papel do Ensino de História, Circe Bittencourt nos lembra que este:

deve contribuir para a formação do indivíduo comum, que enfrenta um


cotidiano contraditório, de violência, desemprego, greves, congestionamentos,
que recebe informações simultâneas de acontecimentos internacionais, que
deve escolher seus representantes para ocupar os vários cargos da política
institucionalizada. Este indivíduo que vive o presente deve, pelo ensino de
História, ter condições de refletir sobre tais acontecimentos, localizá-los em
35
CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. Tradução Luciano Vieira Machado. 6ª Ed. São Paulo: Estação
Leberdade: Ed. UNESP, 2017 p. 18.
36
Idem. p. 18.
37
SALGUEIRO, Valéria. op. cit. p. 20.
38
Idem, p. 17.

* 135 *
um tempo conjuntural e estrutural, estabelecer relações entre os diversos fatos
de ordem política, econômica e cultural. (...) [Deve] contribuir para libertar o
indivíduo do tempo presente e da imobilização diante dos acontecimentos39.

Por ser gêmeo da ciência que pesquisa as diversas temporalidades e os processos históricos
das produções culturais de uma sociedade, Siqueira (2019) afirma que o Ensino de História
permite “capacitar os cidadãos – nesta altura, estudantes – para discernir sobre quais grupos
tiveram sua memória protegida, para entender como isso foi possível, e para debater e decidir
acerca da preservação dos bens oriundos do passado”40, e ainda para compreender a existência de
“diferentes memórias sobre um mesmo passado”41.

A partir dessas duas autoras, propomos que, através do Ensino de História, o aluno se
relacione com o conjunto monumental não somente pelos personagens retratados nas esculturas,
mas que, com a mediação do professor, outras questões possam ser levantadas a fim de entender
e refletir qual “demanda do passado” este objeto quer explicitar no presente? A qual grupo
pertence essa memória? Por que esta foi a memória escolhida para virar monumento? Quais
conflitos sociais ela encobre, representa e reproduz?

Para apreender a memória inscrita no Monumento aos Bandeirantes na cidade de


Santana de Parnaíba, precisamos ter ciência de que ela é fruto de um processo histórico, de uma
construção social que projeta parte da história da cidade numa história maior e que deseja ser
rememorada neste objeto feito de pedra, bronze e água.

Muito além da sala de aula: uma proposta didática

Na intenção de produzir um material que contribua com os docentes para uma relação
cada vez mais consistente entre monumento, memória e Ensino de História, atividades foram
elaboradas em forma de uma sequência didática42 para incentivar o educador a ir além da sala de
aula, com propostas que incluem a visita de campo. Alves (2015), em seus estudos, impulsiona-
nos para esse modelo:

O aprendizado das vivências históricas da humanidade pode ir bem além da sala de aula,
havendo amplas possibilidades de empreender pesquisas que levem ao aprimoramento
do conhecimento histórico através de experiências renovadas, diferenciadas, múltiplas
e multifacetadas. Levar o aluno a conhecer sua própria cidade, com especial atenção
para os fundamentos de cunho histórico, pode propiciar um novo olhar sobre a
História, vislumbrando-a como algo mais vivo e próximo do estudante. Desenvolve-
se a partir daí uma ampla gama de possibilidades, com visitações a prédios públicos e

39
BITTENCOURT, Circe. (org). O saber histórico na sala de aula. SP: Contexto, 1997, p. 20
40
SIQUEIRA, Lucília S. Educação Patrimonial e Ensino de História nas áreas metropolitanas. (...) São Paulo,
Revista História Hoje, vº 8, nº 15, 2019. p. 305
41
Idem, p. 317.
42
Antoni Zabala em seu livro A prática educativa: como ensinar, as sequências didáticas são atividades ordenadas e
articuladas para a “realização de certos objetivos educacionais, que têm um princípio e um fim conhecidos tanto
pelos professores como pelos alunos” (ZABALA,1998. p. 18). Portanto, essa sequência procura compreender
como, por meio do monumento, pode-se pensar a construção da memória de uma cidade.

* 136 *
privados, praças e ruas, devendo o professor/pesquisador promover junto aos discentes
a ideia básica de que aqueles locais visitados se tratam de lugares sociais, nos quais se
desencadeou o próprio devir histórico.43

Sem a pretensão de ser prescritivo, o material didático proposto preserva a autonomia


do professor e sugere que este o utilize da forma que lhe parecer melhor, modificando ou
acrescentando o que achar necessário para as suas aulas. O docente poderá partir deste
monumento e sua temática bandeirantista ou outro monumento público, pois o que não falta em
nossas cidades são monumentos cuja análise permite uma boa reflexão sobre quais personagens e
visões do passado nossa sociedade escolheu homenagear, muitas vezes vinculados ao escravismo,
ao racismo e a práticas excludentes.

Composto por uma sequência de sete etapas distribuídas em pré-campo, campo e pós-
campo, contendo cada uma atividades, orientações, mediações para o professor(a) e bibliografia,
o material destina-se aos alunos do Fundamental II ou do Ensino Médio.

O conteúdo trabalhado nessas atividades pode ser dividido nos seguintes eixos:
Bandeirantismo, História Local, Memória Social, Monumentos. Vários objetivos foram pensados
para esclarecer o que se pretendia em cada etapa, e melhor ajudar os alunos na observação e na
reflexão sobre o monumento. Podemos destacar alguns deles:

- Estudar a história da cidade de Santana de Parnaíba e a sua ligação com os bandeirantes;

- Contextualizar e conceituar o bandeirante como sujeito histórico e esclarecer a


construção mítica que o envolve;

- Analisar o monumento aos bandeirantes da cidade de Santana de Parnaíba: seus


elementos, personagens, alegorias, configuração monumental e pretensão memorial;

- Conhecer a história da encomenda e da construção desse monumento público urbano;

- Contrapor a memória representada no monumento e o passado contado pelos


historiadores;

- Refletir sobre quais memórias acerca da cidade ainda precisariam ser monumentalizadas;

- Propor a elaboração, pelos alunos, de um projeto para um novo monumento que


contemplasse essas memórias ainda não protegidas.

Na primeira parte, possivelmente realizada antes da visita de campo, encontram-se


cinco etapas, com atividades de análises, pesquisas, rodas de conversa e debates acerca de uma
diversidade de documentos: textuais (historiográficos, jornalísticos), imagéticos, audiovisuais e
mapas, que buscam tratar os temas de forma que o conhecimento seja construído pelo aluno
através da mediação do professor. As atividades buscam entender o bandeirante como sujeito
histórico e como sua imagem foi heroicizada por uma historiografia paulista que inseriu o
Estado de São Paulo em uma história nacional através da mitificação deste sertanista. Para
43
ALVES, Francisco das Neves. op. cit. p. 167-168.

* 137 *
isso as propostas utilizadas foram baseadas em rodas de conversa, leituras e análises de textos
historiográficos sobre o tema dos bandeirantes.

Outro ponto é analisar como essa temática e a imagem do bandeirante foram difundidas
através da estratégia de construção de memória, que silencia a violência e a exploração, e perpetuadas
nas obras de arte “a formação de uma cultura visual capaz de consagrar os bandeirantes como
heróis da história e da formação territorial brasileira” (MARINS, 2007, p.80). Pinturas dos
artistas Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva e Henrique Bernardelli foram comparadas a
outras imagens ou textos historiográficos a fim de entender a construção e divulgação imagéticas
destes sertanistas.

Segue um exemplo de atividade com esse caráter inserida no material:44

• Nome da atividade – As imagens fundam uma proposta

• Objetivo: Identificar, analisar e questionar a representação heroica do bandeirante


através de imagens.

• Desenvolvimento:

Mostrar aos alunos a imagem de um bandeirante e de dois reis europeus, conforme


sugestão abaixo. Propor aos estudantes que observem e descrevam as figuras com o auxílio de
algumas indagações específicas: 1. Como cada personagem está sendo retratado (detalhes das
características)? 2. O que mais chama a atenção em cada uma das pinturas: cenário, objetos,
postura dos personagens etc.? 3. Quais os elementos que se assemelham nos três retratos abaixo?
Domingos Jorge Velho (imagem 1) foi o líder da expedição que destruiu o Quilombo de Palmares
em 1695. Esta pintura revela ou esconde a violência desse episódio?

44
Apresentam-se neste texto algumas das atividades do material elaborado para a parte propositiva da dissertação.
Na forma completa são 21 atividades. Ver: CAETANO, Janaina Franzoni. Diferentes leituras do passado no
Monumento aos Bandeirantes em Santana de Parnaíba/SP: Ensino de História e Memória social. Dissertação
(Mestrado Profissional em Ensino de História - ProfHistória). UNIFESP. 2020.

* 138 *
IMAGEM 1

Domingos Jorge Velho e o loco-tenente Antônio Fernandes de Abreu


Benedito Calixto, 1903, óleo s/ tela, 140 x 99 cm. Acervo do Museu Paulista da USP, São Paulo. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra12820/retrato-de-domingos-jorge-velho>.

IMAGEM 2 IMAGEM 3

Retrato de D. João VI Retrato de Luís XIV


Jean-Baptiste Debret, 1817, óleo s/ tela, 0,60m x Hyacinthe Rigaud, 1701, óleo s/ tela, 2,77m x 1,94m.
0,42m. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes, Musée du Louvre, Paris. Disponível: https://www.
IPHAN/MINC, Rio de Janeiro.Disponível em: louvre.fr/oeuvre-notices/louis-xiv-1638-1715
https://mnba.gov.br/portal/component/k2/item/
60-retrato-de-dom-joao-vi.html

* 139 *
Alguns fragmentos de textos podem ser utilizados no estudo e na análise da construção da figura
heróica do bandeirante, conforme sugestões abaixo:

A bandeira de 1628 iniciou suas atividades com certa cautela, com Raposo Tavares
estabelecendo um arraial às margens do Tibagi, na entrada do território do Guairá. A partir
desta base, os paulistas começaram, com o fim de fazer cativos, a assaltar aldeias guarani, logo
apelando para as reduções. Tal objetivo foi atingido através da violência nua e crua. Segundo
o relato de um jesuíta, o método usual dos paulistas consistia em cercar a aldeia e persuadir
seus habitantes, usando de força ou de ameaças, a acompanhar os colonos de volta para
São Paulo. Um destino terrível reservava-se às aldeias que ousassem resistir. Nestes casos,
os portugueses “entram, matam, queimam e assolam [...] e casos houve em que queimaram
povoações inteiras só para terror e espanto dos que ficavam vizinhos”. A longa caminhada
até São Paulo prometia horrores adicionais, “como matar os enfermos, os velhos, aleijados
e ainda crianças que impedem os mais ou parentes a seguirem a viagem com a pressa e
expediência que eles pretendem e procuram as vezes com tanto excesso que chegaram a
cortar braços a uns para eles açoitarem os outros”. Outro padre denunciou que os paulistas
se comportavam “com tanta crueldade que não me parecem ser cristãos matando as crianças
e os velhos que não conseguem caminhar, dando-os de comer a seus cachorros...”.

Até 1632, as sucessivas invasões haviam destruído boa parte das aldeias guarani e
virtualmente todas as reduções do Guairá. Desta forma, milhares de cativos guarani foram
introduzidos em São Paulo, sendo ainda um número menor negociado em outras capitanias.
Crespo, Francisco. Apud. MONTEIRO, John. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, 3ª
Ed; São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 73

Tempo houve em que no interior do Brasil não se avistava uma única choupana, o
menor vestígio de cultura, em que as feras disputavam entre si a posse da terra. Foi então
que os paulistas o percorreram em todos os sentidos. Várias vezes penetraram no Paraguai,
descobriram o Piauí, as minas de Sabará e Paracatú, internaram-se nas vastas solidões de
Cuiabá e de Goiás, percorreram o Rio Grande do Sul; no norte do Brasil, chegaram ao
Maranhão e ao Amazonas, e tendo galgado a cordilheira peruana, atacaram os espanhóis no
âmago de seus domínios. Quando, por experiência própria, se sabe quanta fadiga e privações
e perigos, ainda hoje, esperam o viajor que se aventura nestas regiões longínquas e depois
se conhecem os pormenores das jornadas intermináveis de antigos paulistas, fica-se como
estupefato e levado a crer que estes homens pertenciam a uma RAÇA DE GIGANTES.
TAUNAY, A. d’E. História Geral das Bandeiras Paulistas. 3 ed. São Paulo : Typ. Ideal; H. L. Canton,
1924. t. 1, p. 3

Esta atividade teve como inspiração o artigo do professor Garcez Marins (2007) que
analisou e comparou as imagens criadas dos bandeirantes com as pinturas de retratos de reis
europeus, explicando que:

* 140 *
Benedito Calixto, autor da pintura, utilizou para a composição formal do
protagonista uma pose característica dos reis franceses da dinastia Bourbon,
inaugurada por Hyacinthe Rigaud nos célebres retratos em que representara a
majestade monárquica de Luís XIV. Esta solução pictórica adotada por Calixto
ligava-se à necessidade de conferir ao retratado a maior dignidade possível,
de maneira a evidenciar seu caráter altivo, atributo daquele que passava ser
compreendido como um dos heróis da saga histórica simultaneamente paulista
e brasileira.45

O exercício de analisar as imagens e comparar com textos de diferentes linhas


historiográficas ajudará os alunos a entender que a figura do bandeirante heroicizada foi criada
a partir de interesses de uma determinada parte da sociedade paulista ligada à elite cafeeira,
que encontrou neste personagem a identidade que precisava para se incluir na história nacional,
nos moldes da história européia e de seus heróis. Logo, a intencionalidade das imagens faz-se
perceber ao observarmos os elementos e a forma escolhida para representá-los.

Subsequentemente, as atividades discutem a monumentalidade dos bandeirantes em


diversas cidades e as intervenções que os monumentos sofreram e sofrem durante manifestações,
na intenção de que os alunos criem seus próprios pareceres sobre a permanência ou não da
monumentalização de memórias ligadas a escravistas e colonizadores. Tudo foi pensado para
preparar o olhar do estudante para analisar o objeto de estudo escolhido, para que faça a leitura
das narrativas ali presentes, desconstruindo-as através do ensino de história e construindo uma
nova leitura do passado indicado.

Sobre as intervenções populares, a atividade proposta pretende proporcionar aos alunos


acesso a reportagens, imagens (exemplo abaixo) ou vídeos de intervenções feitas por pessoas,
ou grupos sociais, que utilizaram monumentos que fazem homenagens aos bandeirantes, como
parte dos seus protestos.

O professor pode mediar uma análise do material com as seguintes perguntas: 1. Qual
ato está sendo feito com o monumento? 2. Quem o faz? 3. Quando faz? 4. O que utiliza como
material de intervenção? 5. Qual a repercussão nos veículos de comunicação (quais palavras são
utilizadas nas notícias)? O que querem essas pessoas com estes atos de protestos? É legítima a
ação destes protestos? O que vocês pensam sobre a permanência dos monumentos, nomes de
ruas, nomes de prédios públicos que homenageiam os bandeirantes? E, por fim, o que vocês
entenderam por “preservação da memória através do monumento”?

45
MARINS, P. C. G. op. cit. p. 79.

* 141 *
Imagem presente na reportagem de Maurício Angelo. Borba Gato é julgado, condenado e encontra-se preso!
Publicado em: 28 DE MAIO DE 2008. Disponível em: http://crimideia.com.br/blog/?p=172

Para ajudar os alunos no debate após a análise das matérias, oferta-se mais um material.
Abaixo estão algumas opiniões de especialistas que divergem sobre as manifestações e permanência
destes monumentos nos espaços públicos atualmente. O objetivo é levar o aluno a perceber que
toda opinião precisa ser embasada por estudos e análises para não cair no “achismo”, e tomar
cuidado para não fazer um debate maniqueísta, pois sempre há várias visões sobre os assuntos.

“o movimento é legítimo e “correto”, mas é necessário evitar o risco de uma possível consequência: a de “reescrever
ou apagar a história”. Para a docente, “quanto mais nós sabermos sobre o passado, mais forte será o tipo de ação que nós
vamos construir para que não se repita. É mais importante construirmos uma ação política que detenha o conhecimento do
que simplesmente destruir”. (Heloísa Starling, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas
Gerais, site: Brasil de Fato)

“É importante que a gente derrube, reescreva, renomeie. Mas que fique registrada a historicidade disso”. (Marcelo
Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão (UEM) e membro do instituto Proprietas, que fomenta
discussões sobre o bem comum, site BBC News Brasil)

“A transferência de local é possível para monumentos de porte menor ou de bronze, como as estátuas de Lenin
retiradas de cidades que pertenceram à União Soviética. Mas vamos remover o Monumento às Bandeiras para colocá-lo
onde? Fora o custo de desmontar uma escultura em granito. É preferível, do ponto de vista financeiro, construir um museu
ao redor dela. O mesmo vale para o Borba Gato, uma estrutura de concreto e alvenaria, como retirar aquilo?” “O intolerável
não é a estátua estar lá. É estar lá sem nenhum tipo de mediação”. ( Paulo Garcez Marins, site Terra)

Sobre a obra de Brecheret, Schwarcz explica: “Esse monumento, que foi chamado ironicamente pela população de
‘puxa-puxa’ ou ‘empurra-empurra’, traz uma narrativa histórica: à frente está o branco, o bandeirante, o único que está num
cavalo; ele é seguido por indígenas, todos com uma cruz, o que mostra como eles seriam incorporados à civilização, portanto
desapareceriam; e na seguida vêm os africanos. Ora, são indígenas e africanos que carregam os pesos, levam os barcos que

* 142 *
saíam dos rios e vão ter que atravessar a floresta”. Para a historiadora, é necessária uma intervenção no monumento. “Eu
faria pelo menos uma legenda explicativa que contextualize a obra. O momento em que foi feita, o que ela significava e como
pode ser lida hoje. Isso não é vandalização, não é apagamento, ao contrário, é uma maneira de deixar ver.” (Lilia Moritz
Schwarcz site Terra)

Para pensar os monumentos não somente na forma de homenagem, mas também na sua
expressão de antimonumento, temos um exemplo de atividade que foi elaborada para a parte
propositiva da dissertação:

• Objetivo: Por meio de uma obra antimonumentalista, entender que há diferentes versões
do passado que podem ser monumentalizadas.

• Desenvolvimento:

Apresentar as imagens sugeridas abaixo, do monumento presente no sítio arqueológico


de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul projetando-as ou imprimindo-as. A obra
do artista João Loureiro, intitulada “Jaz”, é considerada uma anti-homenagem aos bandeirantes,
pois para o povo da região estes sertanistas não são considerados heróis.

O professor pode orientar os alunos a pesquisar sobre esta obra ou pode fornecer as
informações. Após a análise dos detalhes que compõem esta obra, incentivar uma discussão com
os alunos para refletir sobre as diferentes versões do passado que estão presentes nos monumentos
estudados em outras atividades propostas no material. Para motivar a discussão seguem alguns
questionamentos: 1. Qual a diferença entre os monumentos estudados? 2. O que a diferença
plástica das esculturas revela sobre a intencionalidade das memórias que elas remetem? 3. Por
que esta obra “Jaz” pode ser considerada um antimonumento aos bandeirantes (considerar os
estudos sobre o que é monumento para refletir esta contraposição)?

Ficha Técnica

Nome: Jaz
Local: Próximo ao sítio arqueológico de São
Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul,
Artista: José Loureiro
Inauguração: 2008
Dimensão: 3,16 x 3,90 x 12,40 metros
Técnica: Isopor, fibra de vidro, massa plástica,
tinta latéx, blocos de concreto, vidro, cimento,
ferro, sistema de iluminação, sistema hidráulico,
instalação elétrica.
Fonte das imagens:
https://www.joaoloureiro.info/JAZ-2008

* 143 *
Na parte da visita de campo, tentou-se propor não somente um passeio, mas um labo-
ratório, para que o que foi estudado pudesse ser “colocado em prática”. Composta de registros
fotográficos, observações, anotações e roda de conversa ainda diante do monumento, essa parte
pode ser escolhida para ser feita antes ou depois das atividades e estudos sobre o bandeirantismo
e a história da cidade. Assim, se primeiro se fizer a visita ao local do monumento, as questões a
serem estudadas serão selecionadas a partir dos questionamentos feitos durante as observações
in loco. A proposta é explorar essa experiência sensível de contato com os vestígios do passado,
quando este tenta ser tangível monumentalizando-se numa memória.

Entre as atividades desta parte da sequência, podemos destacar a proposta de observação


e análise das esculturas, que vemos abaixo:

• Desenvolvimento:

Cada dupla escolhe uma escultura, indicada abaixo, para se aproximar, analisar e registrar
as informações colhidas pela observação direta, conforme as orientações abaixo, nas fichas
de visita.

 No barco encontram-se três esculturas representando - Suzana Dias, Padre Guilherme


Pompeu e André Fernandes. Responda: 1. Que objeto cada escultura segura em suas
mãos? 2. Qual característica do personagem representado este objeto aponta? 3. Fotografe
o detalhe que mais lhe chamou atenção nestas esculturas.

 A escultura que puxa o barco – observe e responda: 1. Pode-se dizer que esta pessoa é
negra? Se sim, explique o porquê. 2. Qual a mensagem que esta escultura transmite no
conjunto do monumento? 3. Qual detalhe mais lhe chamou a atenção nesta escultura?
Fotografe o detalhe que mais lhe chama a atenção nesta escultura.

 O ponto mais alto do monumento – observe e responda: 1. Descreva o material e a forma


como foi construída essa parte mais alta do monumento. 2. Quem está representado
nesta escultura? 3. Descreva os detalhes desta escultura. Fotografe o detalhe que mais lhe
chama a atenção nesta composição do monumento.

 O índio – analise e responda: 1. Descreva esta escultura considerando os detalhes do


personagem: postura, semblante, a localização dentro do monumento. 2. Fotografe o que
mais lhe chamou a atenção.

 Casal que ergue o seu filho - analise e responda: 1. Quem está sendo representado nas três
esculturas? Qual o posicionamento de cada escultura nesta cena? Descreva os detalhes de
cada personagem. Fotografe o que mais lhe chama a atenção nesta cena.

 A seu critério – escolha uma escultura ou outro elemento que faça parte do monumento
e não foi observado neste roteiro. Sobre ele responda: 1. Qual objeto de análise foi
escolhido e por que? 2. Descreva seus detalhes: nome, material, forma, posição dentro do
monumento. Fotografe o detalhe deste elemento que mais lhe chamou a atenção.

* 144 *
A última parte são propostas para o pós-campo. Partindo da análise do material obtido
durante a visita, registros escritos e fotográficos, é importante que o professor observe se os
alunos compreenderam qual foi o passado selecionado e preservado naquele monumento, se
compreenderam que a escolha do bandeirante como protagonista da história da cidade criou uma
determinada narrativa do passado e que este pode ser contado através de diferentes narrativas,
incorporando outras memórias. Enfim, perceber se, após as atividades, os alunos mostram-se
capazes de entender que o monumento é um instrumento de perpetuação de uma determinada
memória e de pensar criticamente sobre o que pode ser feito em relação a ele no presente.

Considerações Finais

O espírito deste artigo é a promoção do diálogo entre o saber do professor do ensino regular
com o saber sistemático da academia, de acordo com o programa de mestrado ProfHistória, para
que, como esta pesquisa, outras sejam desenvolvidas e aplicadas.

Baseada no caso do Monumento aos Bandeirantes de Santana de Parnaíba/SP e nos três eixos
monumento, memória social e Ensino de História, propõe-se aqui uma sequência de atividades que
podem ser aplicadas dentro e fora da sala de aula, onde professores e alunos são motivados a realizar
uma análise crítica dos monumentos existentes em sua cidade e as memórias neles representadas, que
privilegiam grupos dominantes e promovem leituras excludentes do passado.

Note-se a atualidade da discussão sobre a relação entre monumentos e memória, o que


certifica o objetivo geral deste projeto, mostrando o valor e a potência do uso dos monumentos
públicos urbanos como fonte documental no Ensino de História para estudar a construção de
diferentes memórias sociais por parte dos poderes instituídos e compreender a intencionalidade
veiculada pelos monumentos, do que se quer lembrar ou esquecer.

Sobre a aplicabilidade das atividades propostas, é muito provável que sofram adequações
conforme as distintas realidades e intenções de cada docente.

Fica conosco a expectativa de que esta pesquisa e a sequência didática que dela originou-
se contribuam para que os estudantes consigam compreender como as diversas leituras
do passado incluem ou excluem certos grupos sociais e suas culturas, e com isso percebam
a construção de memórias manipuladas que perpetuam somente uma parte da história que,
em geral, monumentalizada, exalta ações opressoras e racistas. Assim, esperamos que se sintam
capazes de desconstruí-las e de formular novas maneiras de lembrar o passado no futuro.

* 145 *
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ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

* 147 *
SOBRE OS AUTORES/ORGANIZADORES

Alexandre Pianelli Godoy


Bacharel e Licenciado em História pela PUC/SP. Mestre e Doutor em História Social pela PUC-
SP. Professor Associado III do Departamento de História da UNIFESP, EFLCH, Campus
Guarulhos e do Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo Unifesp.

Ana Nemi
Bacharel e licenciada em História pela USP. Mestre em História Social pela USP. Doutora em
Ciências Sociais pela Unicamp. Professora Associada do departamento de História da EFLCH/
Unifesp, do PPG História Acadêmico e do PPG ProfHistória.

Antônio Simplício de Almeida Neto - Professor do Departamento de História da Universidade


Federal de São Paulo (UNIFESP, EFLCH) nos cursos de Licenciatura, PPG História e
PPG ProfHistória. Possui Bacharelado e Licenciatura em História pela PUC-SP, Mestrado e
Doutorado em Educação pela FEUSP.

Claudio Eduardo da Silva


Licenciatura plena - Faculdade Anhanguera. Pós Lato Sensu em História Sociedade e
Cultura – PUC/SP, Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo
Unifesp. Professor de História da Rede Particular.

Cristal Guerra Donatti


Licenciatura em História pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal). Mestrado Profissional
em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo Unifesp. Professora de História na rede privada
em São Paulo.

Cristiano Aparecido Mendes


Bacharelado e Licenciatura em História - Universidade de São Paulo (USP). Mestrado
Profissional em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo Unifesp. Professor de História da
rede Municipal de São Paulo (SME/SP).

Elizabeth Fernanda Machado Serra


Licenciatura Plena em História - Universidade Camilo Castelo Branco. Mestrado
Profissional em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo Unifesp. Professora da Rede
Estadual de São Paulo (SEE- SP).

* 148 *
Igor Martins Fontes Leichsenring
Licenciatura e Bacharelado em História - Universidade de São Paulo (USP) e Licenciatura em
Pedagogia pela Uninove. Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo
Unifesp. Professor da Rede Pública Municipal de Itapevi.

Janaina Franzoni Caetano


Bacharelado e Licenciatura em História - Centro Universitário – FIEO. Mestrado Profissional
em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo Unifesp. Professora da Rede Municipal de
Santana de Parnaíba.

Jonas Tadeu Amaral Pinto


Bacharelado e Licenciatura em História - Centro Universitário - Fundação Santo André.
Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória - Núcleo Unifesp. Professor na
Rede municipal de ensino de São Paulo e Rede Estadual de Ensino de São Paulo.

Lucília S. Siqueira
Bacharel e licenciada em História pela Universidade de São Paulo – USP. Doutora em História
Social pela Universidade de São Paulo – USP. Professora de História, Memória e Patrimônio
do Departamento de História da Unifesp/EFLCH e do Mestrado Profissional em Ensino de
História – ProfHistória - Núcleo Unifesp.

* 149 *

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