Você está na página 1de 10

Fotojornalismo e volunturismo – Vá para fora cá dentro

Há longos anos que o fotojornalismo se instituiu como corrente dominante da fotografia. Para
alguns espíritos desatentos ele chega a ocupar todo o espectro das possibilidades autorais de
um fotografo que pretenda afirmar-se enquanto autor separado das exigências de clientes ou
do mercado, marcando uma distância para com práticas comummente assumidas como
mercantis, o exemplo da fotografia publicitária, e procurando consolidar uma visão própria
sobre o mundo e a fotografia. Esta noção não estará separada da ideia do fotojornalista
aventureiro, figura épica que, como justiceiro solitário, procura as imagens que dão a ver as
desigualdades e perversidades que assolam a humanidade em locais distantes.

Enquanto métier, poderíamos olhar o fotojornalismo de duas formas:


Se por um lado pode ser referido como um trabalho diário de acompanhamento de uma
agenda, organizada nas direções dos jornais e revistas (online ou mais tradicionais) pelos seus
editores e demais decisores, em correspondência com aquilo que convencionamos designar
por atualidades; por outro lado existe um certo fotojornalismo de “elite” em que os fotógrafos
aparentemente ocupam o lugar do “grande repórter” e decidem em total independência o lugar
para onde apontam a sua câmara fotográfica, que assuntos importam registar e de que modo
estes são registados. Esperar-se-ia que, agora libertos dos condicionalismos de uma agenda de
atualidades diária ou semanal, os fotógrafos jornalistas conseguissem guiar o nosso olhar para
outros assuntos pertinentes da nossa vida em comum.

Este segundo aspecto do fotojornalismo será o que nos interessa olhar, pois é através dele que
os fotojornalistas se tornam representantes maiores da sua classe, que se instituem como
detentores de um olhar único, que as reportagens por eles realizadas se constituem enquanto
património histórico e se transformam em cultura partilhada por todos, ganhando prémios e
incrementando o seu valor de mercado como fotojornalistas. Este é o fotojornalismo que nos é
dado a ver em eventos de projeção transnacional como o World Press Photo e, aquele sobre o
qual nos debruçamos aqui, o VISA pour l’image.
Estes dois festivais mundiais com periodicidade anual congregam uma considerável
percentagem dos trabalhos de fundo realizados pelos fotojornalistas de todo o mundo ao longo
de um ano. Como tal tornam-se postos de observação privilegiados da atividade foto
jornalística e da construção de um certo mundo em que o fotojornalismo se alicerça. São
também autênticas locomotivas angariadoras de patrocínios e canais de comunicação de
grandes marcas como a maior fabricante de máquinas fotográficas do mundo, a Canon, a maior
produtora de softwares de imagem do mundo, a Adobe ou alguns dos periódicos que mais têm
a ganhar com a difusão das imagens que encontram um palco nestes festivais como a Paris-
Match ou a National Geographic. Enfim, são uma indústria de sucesso.

1 – Parte deste sucesso deve-se provavelmente a uma qualidade de atração que as imagens
destes fotojornalistas exercem sobre os espetadores; esta atração poderá ser rastreada até a
sua origem nos escritos de Santo Agostinho do século V, essencialmente na sua descrição da
curiositas enquanto fenómeno visual. Curiositas seria a tendência para evitar o belo e perseguir
o seu oposto, a atração pelo feio, o horror, levando a um fascínio pelo próprio ato de ver. Tom
Gunning descreve este estímulo ao referir o cinema que qualifica como “de atrações”, mas a sua
aplicação ao fotojornalismo é plenamente justificada. Em Gunning esta caraterização de
“atração” está ligada ao caráter exibicionista, direto, na relação estabelecida com o espetador,
assente nas características do que é mostrado e de como é mostrado. Quando pensamos nas
escolhas que são realizadas pelos editores, agentes e demais gatekeepers, e no dispositivo
exibicionista de festival em que estas imagens são mostradas, nada parece fazer mais sentido.
Esse ímpeto seminal, essa curiositas, está na fundação do seu sucesso, embora vestida com
roupagens que lhe confiram a aceitação social necessária para a transformar em commodity.

Esta curiositas estará presente desde esse embrionário do fotojornalismo no século XIX, as
expedições antropológicas, que transportando um fotógrafo traziam de volta as imagens do
exótico que impressionavam os seus espetadores oitocentistas - serão representantes deste
momento os fotógrafos Edward Sheriff Curtis, Adam Clarke Vroam ou John Thomson. E de
forma mais óbvia nas primeiras reportagens de Guerra; de um modo ainda tímido em Roger
Fenton mas depois, abraçando de corpo e alma a representação de cadáveres e horrores de
guerra na Guerra civil Americana, escancarando a porta dessa exposição de atrocidades em que
as imagens de guerra se podem transformar, com Mathew Brady e os fotógrafos que com ele a
registaram.

Será com o fenómeno das expedições antropológicas e geográficas que podemos marcar o
início da fundação visual de um etnocentrismo ou eurocentrismo que desembocou na criação
das ideias de raça (precedidas da fundação dos estados nação) que conduziram aos fascismos,
desembocando nas 1ª e 2ª Guerras mundiais. Nasce porventura aqui um modo de encarar a
fotografia como garante de uma propalada objetividade, prova resistente à interpretação
nascida de um aparato técnico que a afasta da subjetividade humana. A ligação que estas
expedições estabelecem desde o seu início com a ciência não será alheia à ideia de evidência
que a fotografia carrega consigo desde este momento. Mas que mais tarde se revela, para nós
que a olhamos a partir do século XXI, enquanto manifestação de uma cultura dominante que
também através da imagem e da sua difusão se afirma junto de todos os seus indivíduos como
baluarte do progresso e da civilização. A fotografia é um jogador poderoso na construção de
uma visão do mundo que marca e reforça um ponto de vista. Esta subjetividade encapotada de
objetividade técnica dará origem à construção conceptual que permite o sucesso do
fotojornalismo até aos dias de hoje.

DOIS CASOS – Final do século XX e século XXI

A 2ª Guerra Mundial pode ser olhada como palco de algumas das mais bem sucedidas foto-
reportagens, não por acaso podemos datar o seu início e o seu fim com dois grandes momentos
do fotojornalismo, em 1936 é dado à estampa o primeiro número da Life magazine, que viria a
tronar-se sinónimo de foto reportagem, e em 1947 é fundada a agência Magnum, agregadora
de grandes nomes do fotojornalismo, defensora acérrima dos mesmos em deterimento de
editores e redatores-chefe de jornais.
Ocupando um lugar de destaque de entre as reportagens fotográficas da 2ª Guerra Mundial
podemos citar o desembarque da Normandia, fotografado por Robert Capa.
Esta mítica foto-reportagem (que já terá como herdeiros prováveis as imagens da Guerra Civil
Americana) fundou um arquétipo poderoso e marcante para as gerações posteriores de
fotojornalistas e a são difusão foi global.
Em 1993 na operação “Restore Hope” liderada pelas tropas Norte Americanas e sob a proteção
das nações unidas, foi reencenado o desembarque em Mogadiscio, Somália, de modo a
proporcionar as melhores imagens aos fotojornalistas e demais repórteres que acompanhavam
o exército, e muitos deles puderam fazer a sua versão do final do século XX do desembarque
em Omaha fotografado por Capa , desta vez em segurança e com direito a takes para
conseguirem a melhor imagem.
Esta situação de colaboração entre fotojornalistas e um dos mais caros exércitos do mundo
com o objetivo de produção das imagens que possam glorificar e heroicizar esse mesmo
exército só pode ser designada como propaganda. Não será informação aquilo que é
pretendido transmitir; o objetivo é óbvio: Há uma ideologia política que interessa propagar
sobre a forma de imagem. Não poderíamos deixar os valores ocidentais e neo-liberais reféns da
aleatoriedade dos acontecimentos reais em conjunto com a casualidade do olhar dos
fotógrafos.

Um 2º Caso

Ainda nas décadas de 30 e 40 podemos encontrar a trabalhar um dos fotojornalistas mais


famosos da história do sensacionalismo, Weegee AKA Arthur Feelig. De entre as suas imagens
mais conhecidas podemos encontrar a do cadáver de um homem assassinado com uma pistola
em primeiro plano.

Weegee

Esta imagem, tal como as do desembarque da Normandia de Capa, também ela pode ser vista
como seminal, um arquétipo visual que mais tarde, neste caso em 2010, um grupo de
fotojornalistas teve a oportunidade de repetir no Haiti, após um terramoto devastador, ao
fotografarem a morte de Fabienne Cherisma de 15 anos e que no caso de vários deles mereceu
o reconhecimento e prestígio internacional. Paul Hansen (DN) ganhou o prémio Internacional
News Image dos Swedish Picture of the Year Awards; James Oatway (RSA – vencedor do VISA
d’Or de 2018), o Award of Execelence da Impact Multimedia pela sua reportagem na Times
Everithing is Broken que incluía esta imagem, Olivier Laban-Mattel o Grand Prix da Paris-
Match (patrocinadora do VISA pour L’image) pela sua reportagem sobre o Haiti que incluía
também a fotografia da morte de Fabienne e Frederic Sautereau foi nomeado para o VISA d’Or
News com uma reportagem onde se incluiam 7 imagens da morte de Fabienne.

Todas estas imagens foram publicadas em alguns dos maiores periódicos da atualidade.

Paul Hansen
James Oatway

Mas a verdadeira fotografia informativa foi a realizada por Nathan Weber.


Nathan Weber

Nela podemos entender o caráter de excursão em que se processa algum do foto jornalismo
contemporâneo. Organizados em pools diárias, os fotojornalistas partilham cadáveres e
cenários de treino militar que proporcionam as melhores imagens para vender jornais e
revistas, eles caminham nos destroços das catástrofes do terceiro mundo à procura das
imagens que podem gerar o lucro no primeiro mundo. Ao entendermos a forma como se
organiza o fotojornalismo contemporâneo é nos dado a compreender que, disfarçado de boas
intenções manifestadas em palavras de carga positiva como “testemunhar” e mantras como “o
público tem o direito de saber”, o que se pretende é gerar a venda de revistas e proporcionar as
imagens que possam engordar as contas de sponsosship dos festivais. O que este
fotojornalismo procura é a manutenção das desigualdades entre vítimas e espetadores. Esta é a
matéria-prima visual que proporciona vendas lucrativas de periódicos, exposições e festivais
de grande dimensão que atraem grandes contratos de patrocínio.

2 - VISA pour l’image é um festival de fotojornalismo que tem lugar anualmente em Perpignan
no Sul de França durante um período de 15 dias, geralmente entre o final de agosto e a 2ª
semana de Setembro.
Qualquer fotojornalista profissional pode participar, como condição (para além da necessidade
de carteira profissional ) exige-se que a reportagem a concurso tenha um mínimo de 50
imagens e um máximo de 150 imagens. Na exposição de 2018 eram raras as reportagens que
tinham em exposição 50 ou mais imagens, sendo que a grande maioria ficava por números a
rondar as 30 fotografias. Este facto deve-se ao processo de montagem e seleção das imagens
não ser protagonizado pelos fotógrafos, mas sim liderado por Jean-Paul Griolet o Presidente da
Associação VISA, que não só seleciona as imagens a expor mas também a sua ordem e
organização, tal como foi referido por vários fotógrafos em conversas informais ao longo do
festival, nomeadamente por James Oatway que viria a vencer o VISA d’Or pelo seu trabalho
“Red Ants”. Esta ausência dos autores na seleção e disposição final das suas obras em exposição
fala da natureza mercantil deste evento que olha para as fotografias como produtos a dispor
em prateleiras e simultaneamente do papel dos autores das fotografias que são trazidos para o
evento para proporcionar um contacto fetichista com a audiência, que em breves visitas
guiadas pode entreter-se a conhecer os pormenores mais heroicos do trabalho realizado, quais
os coletes anti-balas adequados a cada situação ou as vantagens de ser mulher e usar uma
burka para esconder o equipamento fotográfico.

O festival, para além das exposições oficiais, organiza diversas atividades, nomeadamente
encontros entre fotojornalistas e entre fotojornalistas e o público, screenings de foto-
reportagens e leituras de portfólios para jovens aspirantes fotojornalistas. Estas leituras de
portfólio têm lugar no Palácio dos congressos de Perpignan na sala da Associação Nacional de
Iconógrafos Francesa (ANI – Association Nationale des Iconographes), onde estão também
representadas em diversos stands as principais agências noticiosas europeias e mundiais. Aqui
os fotógrafos free-lance em início de carreira submetem o seu trabalho à avaliação de um
conjunto de editores e fotógrafos consagrados que aconselham sobre quais os melhores
caminhos a seguir. Estas avaliações podem ser olhadas como um primeiro momento de
institucionalização da visão dos pretendentes, que são criticados em relação aos temas de
maior impacto e composições que melhor podem ser vendidas com, o que é que o mercado
quer, impondo uma visão quer sobre os assuntos a fotografar quer sobre a composição das
imagens. Estes valores de mercado são personificados nas figuras dos avaliadores que
estruturam um processo de validação assente em perspetivas de “o que o público quer ver” e “o
que vende”.
Podemos olhar estas figuras como gatekeepers visuais que, mais do que selecionadores de
conteúdos, se transformam em guardiões do castelo bem protegido do lucrativo negócio do
fotojornalismo e inferem sobre a forma como esses conteúdos devem ser produzidos e que
matérias devem ser fotografadas. Estamos aqui algo distantes de um gatekeeping tal como ele é
definido por Shoemaker e habitualmente referido, a saber: “um processo através do qual
biliões de mensagens disponíveis em todo o mundo são selecionadas, transformando-se nas
centenas de mensagens que chegam a uma pessoa durante o período de um dia”. Neste caso
poderemos falar com mais propriedade de uma tarefa de educadores para o lucro a partir do
fotojornalismo, indicando assuntos e composições vantajosas para poderem ser colocadas em
revistas vendáveis. Poderíamos pensar em um gatekeeping que analisa as qualidades dos
pretendentes e educa sobre as evoluções necessárias para poder ser franqueada a entrada no
castelo. Defensores de um status quo importa manter ou não fosse ele um produto de sucesso
económico, se não para os fotógrafos pelo menos para os patrocinadores do festival e para os
organizadores que durante as duas semanas em que decorre o VISA pour l’image, acolhem
cerca de 200 000 visitantes.

Ao passearmos pelas exposições do VISA pour l’image de 2018 podemos voltar a entender a
propensão para o nascimento de uma cultura de etnocentrismo que a fotografia proporciona.
Ao longo das paredes do Convent des Minimes sucedem-se imagens de manifestantes
quenianos em luta política, mulheres indianas em sanitários públicos tapando o nariz devido
ao mau cheiro, mineiros bolivianos a trabalhar, naturais da Papua Nova Guiné em detenção na
prisão de Bonana, mulheres colombianas ligadas as FARC a viverem a maternidade na selva,
ou uma enorme fila de refugiados Rohyngia a caminharem em direção ao Bangladesh. Não têm
lugar aqui a ascensão do nacionalismo nos países Europeus, o acesso à saúde dos cidadãos
americanos, ou a desertificação do interior português e os problemas que daí advêm.

Num exercício estatístico simples e rápido podemos observar que das 21 exposições que fazem
parte do programa oficial, e olhando para a distribuição geográfica por continente dos locais da
sua realização, temos:

ÁSIA - 8 (38%)
ÁFRICA - 5 (24%)
AMÉRICA DO SUL - 4 (19%)
AMÉRICA CENTRAL - 2(9,5%)
EUROPA - 2 (9,5 %) (embora uma seja sobre a morte de Bobby Sands e realizada em 1981 e
outra se dedique a retratar as figuras famosas que compõem o star system contemporâneo).

Temos então que 90 % delas debruçam-se sobre realidades não ocidentais e na grande maioria
dos casos fazem-no retratando pessoas de etnias marcadamente não europeias (no sentido
mais tradicionalista de uma visão da europa). Este facto contrasta com a etnia e naturalidade
dos visitante: ao longo do período do festival facilmente compreendemos que a larga maioria
são de nacionalidade francesa e espanhola.
Estes dados deveriam ser suficientes para alertar uma comunidade participativa e solidária
sobre os perigos de um novo eurocentrismo ou ocidentalcentrismo. Caso fossemos adeptos de
teorias da conspiração num estado semi-comatoso poderíamos imaginar todo o processo
colonial como uma empreitada maquiavélica destinada a degradar as condições de vida das
populações residentes de modo a gerar as melhores situações para serem fotografadas com o
objetivo de constituir um império da imagem nos países colonizadores. Se não podemos ter as
vossas matérias-primas de graça, se não vos podemos utilizar como escravos para a produção
de bens a partir dos quais possamos lucrar, então vamos vender as imagens da vossa desgraça,
transformá-las em baluartes da expiação da culpa ocidental. E como todos sabemos, o valor da
expiação da culpa está sempre em alta no mercado. Trata-se portanto da perpetuação de uma
cultura dominante que encontra no olhar para o sofrimento do outro de si diverso algum
conforto. Este fenómeno parece equivaler-se ao olhar exótico que os fotógrafos oitocentistas
inauguraram, ele manifesta-se enquanto ideologia e transforma em imagem uma mensagem
política. A palavra certa é propaganda. Uma ideologia civilizacional que não permite
alternativas e que se deslumbra na contemplação do falhanço de outras civilizações.

Em relação aos vencedores do prémio VISA d’Or dos últimos 30 anos procedemos à realização
de uma estatística idêntica; os dados são:

ASIA – 14 (46,7 %)
AMERICA DO NORTE – 6 (20 %)
AFRICA – 4 (13,3 %)
EUROPA – 4 (13,3 %)
AMERICA DO SUL – 2 (6,7 %)

Caracterizado por uma escolha de localizações geográficas fora do ocidente no que diz respeito
aos locais e assuntos escolhidos para a realização das foto reportagens, o fotojornalismo de
hoje funda um novo tipo de etnocentrismo apoiado no primado do olhar. O estabelecimento
das diferenças para com o outro já não está assente em estatísticas antropométricas mas na
constatação visual da incapacidade do outro aceder ao conjunto de commodities que constroem
o humano ocidental (conta do banco, carro, casa trabalho, etc.). Num mundo global onde nada
resta para conhecer o exótico oitocentista que deslumbrava a sociedade vitoriana transmutou-
se num diferente género - o olhar para o sofrimento dos outros enquanto modelo económico de
sucesso.
A institucionalização do olhar solidário, um olhar que se justifica a si próprio pela necessidade
de conhecer para poder ajudar e partilhar, mas que se restringe e reserva ao espaço da
exposição das fotografias despreocupado com o processo de fazer chegar as imagens até à sua
porta. Esta tarefa do olhar coloca-o no patamar da ação, conhecer é já agir eticamente para um
mundo melhor, ver é ajudar. E este torna-se o paradoxo que alimenta a indústria do
fotojornalismo.

Em primeiro lugar convencemos as pessoas que elas têm o direito a conhecer, de seguida que o
facto de conhecerem é um primeiro passo para que as situações se possam resolver,
posteriormente fornecemos as imagens que permitam aliviar a consciência ética dos
indivíduos,

Ao olharmos para os fotógrafos podemos constatar a distância entre fotógrafos e fotografados


através de uma estatística idêntica às efetuadas anteriormente.
Dos 20 fotógrafos que protagonizam as exposições oficiais temos que:

EUROPA – 10 (50%)
(França – 6; Espanha – 2; Bélgica – 2)
AMÉRICA DO NORTE – 4 (20%)
(EUA – 3; Canadá -1)
AMÉRICA DO SUL – 2 (10%)
(Brasil e Chile)
ÁSIA – 2 (10%)
(Israel e Kuwait)
ÁFRICA – 2 (10%)
(África do Sul)

Para além desta estatística podemos observar as fotografias dos fotógrafos e dos fotografados e
constatamos as diferenças que a estatística reproduz:

O fotojornalismo é uma organização capitalista transnacional, dispersa e sem marca própria,


que se estrutura com o objetivo de gerar lucro, preferencialmente em crescendo, ao longo dos
anos. Enquanto estrutura industrial ou fabril podemos identificar as matérias-primas
(humanos vítimas de desastres naturais, de conflitos humanos, e problemas de sobrevivência
de populações devido a estes dois factores que proporcionem boas fotografias ), os operários
(os fotógrafos), os quadros médios ( editores de imagem, agentes) os CEO (presidentes de
festivais e diretores de grupos noticiosos ou agências). Enquanto organização capitalista, ela
existe também para contribuir para o mercado de vendas de máquinas fotográficas ( a Canon é
patrocinadora do VISA pour l’image e do World Press Photo, ) e de periódicos ( a Paris-Match e
a National Geographic patrocinadores oficiais do VISA pour L’image, ) construindo um sistema
lucrativo e disperso pelo mundo ocidental.

Parece-me poder auxiliar a compreensão deste fenómeno através da comparação com um


outro: o volunturismo, também designado como turismo ético (paradoxo do século XXI). Aqui
as férias são olhadas como momento para proceder a ajuda humanitária previamente
calendarizada por agências de viagens que proporcionam as experiências pretendidas junto de
populações etnicamente diferentes, junto de o “outro”, e que prolonga a performance ética
diária. Permite ao turista viajar “responsavelmente” e deixar a sua “marca positiva” podendo
optar de entre os vários programas da agência sobre onde, com quem e como é que quer
marcar positivamente o mundo, qual o produto solidário que melhor se adequa à sua
personalidade. Estes volunturistas regressam com histórias sobre a vida em outros mundos.
Claro que para o volunturismo é necessária uma certa disponibilidade económica que não
estará ao alcance de todos. Assim o fotojornalismo institui-se como uma versão mais
económica deste fenómeno, um “vá para fora cá dentro” que satisfaz as bolsas mais modestas
com a consciência do mundo e a indignação sobre as condições de vida do “outro” partilhadas
em jantares de aquecimento central e água corrente para a descarga do autoclismo. O olhar
tranforma-se numa ferramenta ética que permite a indignação necessária a derramar por
sobre as condições do mundo.
Algumas das imagens dos fotógrafos poderiam figurar em qualquer instagram de um qualquer
volunturista, seguramente iriam originar uma avalanche de likes.

A potência do fotojornalismo enquanto indústria encontra-se intimamente ligada a um


conjunto de questões de ordem essencialmente política, como o acesso a bens e serviços ou a
distribuição da riqueza e dos recursos necessárias para afastar da pobreza as populações sobre
as quais são apontadas as lentes. Para esta indústria poder continuar a existir torna-se
essencial a conservação das situações de vida precária, as desigualdades, a pobreza das
populações fotografadas. E claro que extraí a sua vitalidade da constância de espetadores
sempre prontos anualmente assistirem a um novo VISA pour l’image ou World Press Photo.

Você também pode gostar