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RESENHA

FERNANDES, Antonio Donizeti. A casa e o talhão de cana


– sofrimento social e dominação personalizada. Curitiba:
Appris Editora, 2017.

Depois do talhão de cana


DANIEL AFONSO DA SILVA*

Merece interesse, atenção e aplauso A escravizada por luso-brasileiros


casa e o talhão de cana de Antonio compartia nos séculos todos até 1888.
Donizeti Fernandes. Tangido em fina São homens e mulheres – velhos e
intuição de tradições e engajamentos crianças também – livres. Mas existem
sociológicos, antropológicos e como não fossem. Que vivem num
historiográficos, o livro investiga a regime não escravagista. Mas nem por
patologia social mais abundante de isso antiescravista. Que compõem ou
todos os tempos expressa em sofrimento estão prestes a compor as estatísticas da
induzido, desprezo calculado e escárnio global slavery index – para a qual, em
estrutural. Para alguns, humilhação pura 2016-2017, 48 milhões indivíduos estão
e simples. Para outros, experiência submetidos funções análogas à
social negativa. Para todos, império escravidão em 167 países, sendo 161
mesquinho da dor. Dor produzida na mil escravos contemporâneos no Brasil
exploração desmedida e desmesurada na (https://www.globalslaveryindex.org/).
relação capital versus trabalho que São bóias-frias, volantes, safristas,
acaba por promover desfiguração física cortadores de cana. Sobreviventes do
e moral, precarização de destinos, talhão.
ubiquidade do risco, proliferação do
medo, da miséria, do subemprego e do No transcurso do livro, esses
desemprego como regras sociais. sobreviventes vão se revelando um tipo
social. Uma camada quase invisível da
O objeto do livro são pessoas que lutam sociedade brasileira que consegue não
para sobreviver. Para alguns, meros sucumbir à sua sina de tristes emoções e
trabalhadores do Brasil. Para outros, a frágeis afetos, fugazes alegrias e
genuína ralé brasileira. Para todos, sem perenes frustrações. E, a despeito de
rodeios, os pobres, miseráveis e tudo isso, além de praticar o seu “direito
oprimidos de sempre. O sal da terra. à cidade”, é capaz de esboçar
Esses que vivem na necessidade e na felicidades sinceras no interior de
precisão. Que não são somente tamanho sofrimento e dor.
precários. Nem simplesmente lúmpens.
Esses que são brasileiros que Outrora se dizia que na senzala havia
insistentemente infelizmente e uma flor. Pois Antonio Donizeti
involuntariamente repetem no século Fernandes, com aparatos de sociólogo,
presente o que a arraia-miúda antropólogo e historiador, persegue essa

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flor. E, com ares de literato e paciência mundo rural e urbano brasileiros”.
de psicólogo, demonstra que ela Negro no Brasil... Intelectual negro no
permanece viva, promovendo certa paz Brasil... Professor universitário negro
e alimentando certa esperança das no Brasil...
senzalas aos mucambos às favelas às
Não restam dúvidas, portanto, que o
comunidades contemporâneas.
intento do livro, da pesquisa, do
E, como sempre, é nessa paz e nessa engajamento consiste em entender as
esperança que residem a força sobre- razões que levaram seu autor, Antonio
humana dos marginais sociais em Donizeti Fernandes – e tantos outros
quebrar adversidades, sofrear negros no e/ou pobres Brasil –, a deixar
sofrimentos, contornar o negativo das de ser objeto A casa e o talhão de cana.
experiências minorando o ímpeto das Ou seja, a evadir a experiência social
dominações. negativa permanente que é regra
inconveniente na sociedade brasileira de
A mera abordagem desses temas e ontem e hoje.
problemas torna A casa e o talhão de
cana uma leitura incontornável. A resposta, no caso de Antonio Donizeti
Notadamente nos dias brasileiros Fernandes, talvez resida na primeira
temerários correntes. Mas esses temas e frase do livro onde se lê “dedico esta
problemas são apenas o que vai escrita à memória de Calisto, meu pai”.
evidente na arquitetura profundamente O Sr. Calisto, por certo, também pulsa,
consistente, bem pensada e respira e transpira em todas as páginas
agradavelmente apresentada de mais de do livro. Nesse sentido, contrário às
vinte anos de pesquisa objetiva e uma aparências, o livro despe mais o seu
vida inteira de observação reflexiva de autor que a realidade abordada. A
Antonio Donizeti Fernandes sobre o precariedade do cotidiano do precariado
assunto. é saber sabido. Lugar-comum. O que
deixa de ser é a sensibilidade do
Quem lê o livro inteiro e volta ao início observador Antonio Donizeti Fernandes
com fins de reler, vai notando que o “de que consegue encontrar no precário um
perto”, “de dentro” e “de longe” do mundo em flor.
esforço etnográfico empregado na
análise é muito mais que pesquisa Mas vale notar que Antonio Donizeti
participativa. Que cada “gato, cachorro Fernandes não é um simples autor. E
e criança” encontrados por Antonio esse livro, fruto de uma tese de
Donizeti Fernandes ao longo de suas doutoramento apresentada ao
incursões por campos e aramados de departamento de Sociologia e
bairros e favelas da cidade de Antropologia da Unesp em Marília, não
Jacarezinho, norte pioneiro do Paraná, é uma simples obra intelectual.
objeto geográfico do estudo, pulsam, Ambos, Antonio Donizeti Fernandes e
respiram e transpiram em todas as A casa e o talhão de cana, denunciam
páginas do livro. perplexos a perenidade da
promiscuidade das relações de poder no
No prefácio assinado pela doutora
Brasil. Querem revertê-la. Ou, ao
Christina de Rezende Rubim é possível
menos, levar-nos a meditar. Mais uma
ler que Antonio Donizeti Fernandes “é
vez. E sempre. Do contrário, vejamos.
negro, intelectual, professor, marido,
pai, capoeirista e comprometido com É rico, diverso, dinâmico e lucrativo o
homens e mulheres sofredores do mercado da cana-de-açúcar. O Brasil é

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de longe o maior representante. Produz fisionomia da cidade, especialmente em
mais de 600 milhões de toneladas por suas periferias. Como resultado, A casa
safra e compõe 50% do mercado e o talhão de cana atende a dispersas
mundial. Movimenta mais de US$ 10 demandas.
bilhões em exportações. É o maior Antropólogos logo nele entenderão o
produtor de açúcar do planeta e um dos intento em forjar gramáticas, sistemas
maiores produtores de etanol – perde padrões sociais. Sociólogos vão se
apenas para os Estados Unidos. Isso vai deparar com uma sofisticada apreensão
subentendido no livro. Como também e adaptação de Pierre Bourdieu e Henri
vai sugerida a importância do Centro- Lefebvre. Historiadores de plantão terão
Oeste e do Sudeste brasileiros na a oportunidade de vislumbrar a
produção canavieira nacional. Mas o sobreposição de diversas
foco da análise recai sobre o Médio temporalidades e durações da história
Paranapanema. Na fronteira entre São do Brasil e do Paraná. Geógrafos e
Paulo e Paraná. Mais especialmente nas economistas também encontrarão temas
cidades de Ourinhos e Jacarezinho. de discussão. O leitor interessado em
Onde se produz e onde se corta a cana. geral – a quem o livro vai endereçado –
Onde é o talhão de cana que adensa as vai descobrir o que fazem e como
pessoas que interessam ao estudo. vivem bóias-frias, volantes, safristas,
Muitos desses trabalhadores da cana cortadores de cana depois do talhão de
vinham de longe. Minas Gerais, cana: lutam para sobreviver.
Alagoas, Paraíba. Com o tempo foram
ficando. Antonio Donizeti Fernandes
acompanhou, de 2009 a 2012, esses Recebido em 2017-08-22
Publicado em 2017-10-05
novos locais que ficaram em
Jacarezinho. Aqueles que mudaram a

*
DANIEL AFONSO DA SILVA é
Doutor em História Social pela Universidade de
São Paulo e pós-doutor em Relações
Internacionais pelo Centre de recherches
internationales da Sciences Po de Paris.

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