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Duas épocas

Um dos sinais mais óbvios da autenticidade humana de um movimento político é a sua


capacidade de inspirar grandes obras de literatura. Todo movimento revolucionário, no
início, tem esse dom, pela simples razão de que há sempre injustiças no mundo e a
revolta contra elas é uma tendência natural do coração humano. Os revolucionários
apenas se apropriam dela e a utilizam como canal para a conquista do poder.
Invariavelmente, tão logo instalados no poder eles multiplicam e reforçam as injustiças
em vez de eliminá-las.
Isso não acontece por uma coincidência ou por algum desvio dos ideais revolucionários,
mas por efeito incontornável da própria mecânica revolucionária. Quem sobe ao poder
em nome de uma sociedade futura, amaldiçoando a sociedade presente na sua
totalidade, só se submete ao veredito do futuro e da História, colocando-se portanto
acima do julgamento dos vivos. A cristalização do impulso revolucionário numa ditadura
totalitária é assim o caminho normal e normativo das revoluções sociais e não uma
distorção dos seus propósitos iniciais.
Daí que a literatura de inspiração revolucionária acabe logo cedendo lugar à literatura
dos dissidentes, dos prisioneiros de consciência, dos exilados e desiludidos. E
invariavelmente a segunda é mais forte e mais inspirada que a primeira, porque não
reflete os ideais e slogans de um movimento político, mas a experiência direta dos
horrores da revolução consolidada.
Por isso é que, se nos países capitalistas se produz alguma boa literatura comunista,
nos países comunistas a única grande literatura que aparece é anticomunista.
Nada do que o comunismo em ascensão produziu na Rússia, nem mesmo A Mãe, de
Máximo Gorki, ou O Don Silencioso, de Vladimir Sholokov, pontos altos da literatura
soviética, se compara às obras-primas de Joseph Brodsky, Alexander Zinoviev,
Alexander Soljenítsin, Ossip e Nadja Mandelstam.
No caso cubano, a diferença é mais pronunciada ainda. Quem ainda se lembrará de
qualquer romance ou poema pró-castrista, se pode ler os livros de Guillermo Cabrera
Infante, Severo Sarduy, Reinaldo Arenas e Leonardo Padura? Entre aqueles que não
se opuseram frontalmente ao regime, ainda vale a pena ler Alejo Carpentier, que no seu
período de burocrata paparicado pela ditadura nunca mais voltou a escrever algo do
porte de El Reyno de Este Mundo, de 1949, e José Lezama Lima, Paradiso, de 1966,
espancado pela crítica oficial cubana por sua estética “burguesa”.
Na esfera da filosofia e das ciências sociais, a penúria intelectual daquilo que proveio
dos países da Cortina de Ferro contrasta de maneira patética com a riqueza e
criatividade da produção marxista… nas democracias capitalistas.
Se os movimentos revolucionários inspiram ideias e obras de arte enquanto lutam contra
um governo estabelecido, tão logo chegam ao poder dedicam-se com empenho e
diligência em secar todas as fontes, em reduzir tudo a um deserto mental mil vezes mais
seco e estéril do que qualquer ditadura reacionária jamais logrou instaurar.
No tempo dos militares, a esquerda queixava-se do empobrecimento intelectual do
ambiente, ao qual no entanto ela própria, tanto quanto a direita, dava um brilho e um
vigor que hoje seriam impensáveis.
Vejam só algumas amostras casuais de livros publicados naquela fase que os
esquerdistas, por demagogia ou loucura, descreviam como o fundo do poço cultural.
À esquerda:
Antônio Callado: Quarup.
Carlos Heitor Cony: Pessach: A travessia.
Caio Prado Júnior: A Revolução Brasileira
Jorge Amado: Os Pastores da Noite; Dona Flor e Seus Dois Maridos; Tenda dos
Milagres; Teresa Batista Cansada de Guerra; Tieta do Agreste; Tocaia Grande.
Jacob Gorender: O Escravismo Colonial.
Alfredo Bosi: O Ser e o Tempo da Poesia.
Jorge Andrade: Os Ossos do Barão; Labirinto.
Marques Rebelo: A Guerra Está em Nós.
Otto Maria Carpeaux: A Literatura Alemã; Vinte e Cinco Anos de Literatura.
Ferreira Gullar: Poema Sujo.
Antônio Cândido: Literatura e Sociedade; Formação da Literatura Brasileira.
José Honório Rodrigues: Conciliação e Reforma no Brasil; História e Historiadores do
Brasil; Vida e História; História e Historiografia, e por fim o
monumental Independência: Revolução e Contra-Revolução, em cinco volumes.
Ledo Ivo: A Noite Misteriosa; Calabar; Mar Oceano.
João Antônio: Leão-de-Chácara; Malhação do Judas Carioca; Abraçado ao Meu
Rancor.
À direita:
Gilberto Freyre: Brasil, Brasis e Brasília; O Brasileiro entre os Outros Hispanos;
Homens, Engenharias e Rumos Sociais.
Antônio Olinto: A Casa da Água.
Josué Montello: Os Degraus do Paraíso; Os Tambores de São Luís; A Coroa de Areia;
O Silêncio da Confissão.
José Guilherme Merquior: As Idéias e as Formas; A Natureza do Processo; De Anchieta
a Euclides; O Argumento Liberal; O Elixir do Apocalipse; Michel Foucault; O Marxismo
Ocidental.
Gerardo Mello Mourão: Peripécia de Gerardo; Os Peãs; O Valete de Espadas.
Herberto Sales: Dados Biográficos do Finado Marcelino; O Fruto do Vosso Ventre; Os
Pareceres do Tempo; A Porta de Chifre; Na Relva da Tua Lembrança.
Gustavo Corção: Dois Amores, Duas Cidades; O Desconcerto do Mundo; O Século do
Nada.
Miguel Reale: Experiência e Cultura; O Homem e Seus Horizontes; Verdade e
Conjetura.
Manuel Bandeira: ESTRELA DA VIDA INTEIRA.
Nelson Rodrigues: Toda Nudez Será Castigada; Memórias; A Cabra Vadia; O Óbvio
Ululante; À Sombra das Chuteiras Imortais; O Reacionário.
Por essa simples amostragem colhida a esmo – da qual excluo, de propósito, os autores
politicamente inclassificáveis como Carlos Drummond de Andrade ou Pedro Nava –, é
impossível não concluir que o período militar foi um dos mais criativos e pujantes da
nossa história mental, só comparável ao Segundo Império e à “redescoberta do Brasil”
nos anos 30 do século XX, da qual ele foi o herdeiro e continuador.
A década que se seguiu à “redemocratização” de 1984-85 já mostra, em contrapartida,
os sintomas inequívocos de impotência e decrepitude que documentei em O Imbecil
Coletivo (1997), e o tempo decorrido desde então evidencia, pelo vácuo generalizado,
a morte da cultura superior no Brasil. Ainda mais impressionante do que esses dois fatos
é a ausência de qualquer sinal de alarma ante fenômeno tão degradante, jamais
observado antes em qualquer outro país do mundo ocidental. Como escrevi em 2012:
“Digo que essa entidade (a literatura brasileira) sumiu porque – creiam – não cesso de
procurá-la. Vasculho catálogos de editoras, reviro a internet em busca de sites literários,
leio dezenas de obras de ficção e poesias que seus autores têm o sadismo de me enviar,
e no fim das contas encontrei o quê? Nada. Tudo é monstruosamente bobo, vazio,
presunçoso e escrito em língua de orangotangos. No máximo aponta aqui e ali algum
talento anêmico, que para vingar precisaria ainda de muita leitura, experiência da vida
e uns bons tabefes.
“Mas, assim como não vejo nenhuma obra de literatura imaginativa que mereça atenção,
muito menos deparo, nas resenhas de jornais e nas revistas “de cultura” que não
cessam de aparecer, com alguém que se dê conta do descalabro, do supremo
escândalo intelectual que é um país de quase duzentos milhões de habitantes, com uma
universidade em cada esquina, sem nenhuma literatura superior. Ninguém se mostra
assustado, ninguém reclama, ninguém diz um “ai”. Todos parecem sentir que a casa
está na mais perfeita ordem, e alguns até são loucos o bastante para acreditar que o
grande sinal de saúde cultural do país são eles próprios. Pois não houve até um ministro
da Cultura que assegurou estar a nossa produção cultural atravessando um dos seus
momentos mais brilhantes, mais criativos? Media, decerto, pelo número de shows de
funk.”
Qual a diferença entre os dois períodos? É simples e brutal. Os militares não fizeram
nenhum esforço de apropriar-se da cultura superior para usá-la como instrumento de
propaganda. Deixaram que as coisas seguissem o seu próprio rumo. Podem até ser
acusados de absenteísmo suicida, quando se vê que, ao longo de vinte anos de um
regime que teve entre suas metas declaradas o combate à subversão orquestrada pela
ditadura cubana, o governo não produziu um só filminho de propaganda anticomunista.
A “redemocratização” inaugurou o período da “organização da cultura” segundo os
cânones preconizados por Antonio Gramsci: a era da “ocupação de espaços”,
do dirigismo cultural, da “hegemonia” na mídia, do terrorismo intelectual comunista nas
universidades, da burocratização ditatorial de toda atividade mental superior e do
boicote sistemático a toda opinião divergente do oficialismo esquerdista.
Os efeitos não poderiam ser mais visíveis nem mais catastróficos. Toda a esfera das
atividades “culturais” tornou-se uma farsa subsidiada, um rateio de cargos, benesses,
paparicações e verbas estatais entre os “companheiros”.
A corrupção da cultura superior antecedeu e preparou o advento dos Mensalões, dos
Petrolões e da Smartmatic. E a própria reação popular evidencia a queda vertiginosa
dos padrões de julgamento: a nação inteira, permanecendo sonsa, anestesiada e
indiferente ante a destruição da cultura, só estrilou quando doeu no bolso.

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