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Boletim do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa . Ano 1 .

No 1
Caixa Postal 14576 . Cep.: 22412-970 . Rio de Janeiro . RJ . e-mail: emece1924@yahoo.com.br

MEMÓRIA É LUTA
Em seu famoso romance 1984 o escritor inglês George Por outro lado a partir do desvirtuamento da revolução
Orwell (Eric Blair 1903-1950) descreve um futuro imaginário libertária ocorrida na Rússia em 1917, com a tomada do apare-
em que o planeta estaria dividido entre três superditaduras em lho estatal pelo marxismo-leninismo, é realizado o expurgo san-
guerra constante entre si, fazendo e desfazendo alianças. Em grento contra os anarquistas daquele país e do mundo inteiro.
uma delas vive o protagonista do livro, Winston Smith, funcioná- Paralelamente, é criada uma barragem de cultura e propaganda
rio de um dos quatro superministérios que são os pilares do em todo o mundo para que sua presença seja minimizada ou
regime, o ministério da verdade, encarregado de criar e propa- mesmo esquecida. No Brasil não foi diferente. Aqui, como em
gar toda e qualquer mentira que se faça necessária para a justifi- muitos outros países, os anarquistas foram objeto das mesmas
cação do sistema do “Grande Irmão”, como é chamado o dita- práticas, que a nível de militância culminaram no Rio de Janeiro
dor. A tarefa básica de Smith no ministério com o assassinato do operário Antonino
consiste em reescrever os jornais, que são Dominguez quando membros da chamada
novamente impressos e colocados nos arqui- “Tcheka” atiraram sobre militantes
vos para que nenhuma pesquisa posterior dos libertários no Sindicato dos Gráficos em
fatos históricos vá de encontro às “verdades” 1928. No transcurso das décadas seguintes
ditadas pelo “Grande Irmão” e seu partido uma historiografia oficial simplesmente os
totalitário. “esqueceu” e outra, de cunho marxista, con-
A história de Orwell constitui uma in- siderou que o anarquismo apenas refletia uma
teressante transposição para a ficção do que época de organização primária e ineficaz do
realmente ocorreu ao longo da História, em proletariado que só a partir de 1922, com a
que esta é sempre escrita pelo Estado e/ou fundação do partido comunista, teria encontrado
pelas classes dominantes, que procuram afas- seus verdadeiros guias e condutores.
tar de foco movimentos ou individualidades Mas felizmente, ao contrário da fic-
que por suas ações e pensamentos chegaram ção imaginada por Orwell, no caso do Brasil
a colocar em xeque o status quo e mostrar ca- e do mundo muitos das fontes que demons-
minhos que verdadeiramente conduzem à liber- tram o papel que os anarquistas sempre de-
tação humana. sempenharam em meio às lutas sociais com
Deste processo foram e são vítimas o sua metodologia de ação direta e sua ética a
anarquismo e os anarquistas. Movimento que demonstrar que “os meios são os fins” fo-
há mais de século prega e pratica a ação dire- ram preservados. Documentos como a Se-
ta e que combate não só a exploração do Marques da Costa - agosto de 1924 ção Trabalhista do jornal A Pátria no período
homem pelo homem mas vai muito além 1923-1924, redigida pelo operário carpin-
mostrando a raiz das doenças sociais na dominação do homem teiro português e anarquista Marques da Costa, que se constitui
pelo homem, sua forte presença até determinado momento his- em um marco na defesa dos sindicatos revolucionários contra os
tórico causou apreensão em autoridades, patrões e em todos ataques do governo ditatorial de Artur Bernardes, dos
aqueles poucos que se pretendiam donos do mundo em detri- bolchevistas do PCB e seus aliados cooperativistas (“amarelos”).
mento de muitos a quem só cabia trabalhar duro para maior A consulta àquela coluna constitui-se hoje em importante fonte
glória dos parasitas. A repressão, por maior que fosse, parecia de estudo histórico do movimento social da época. Além de
nunca dar fim a este espírito de revolta produto do desejo de que redator da coluna de A Pátria no Rio, Marques da Costa foi mili-
todos fossem agentes da história (essência maior do anarquismo). tante do Sindicato da Construção Civil em Belém e em Manaus.
A solução para os dominadores foi colocar, ao lado do aprimo- Em Belém dirigiu o jornal A Revolta em 1919, além de O Trabalha-
ramento da velha repressão, o discurso falso, feito por seus agen- dor, órgão da Federação Operária do Pará, e O Semeador , publi-
tes disfarçados, de ganhos fáceis, de direitos a serem adquiridos cação sindicalista revolucionária. No Rio de Janeiro Marques da
por legisladores messiânicos para o povo desde que ele se “com- Costa foi secretário-geral da Federação Operária do Rio de
portasse bem” para com chefes e patrões e soubesse prestigiar e Janeiro e coordenador de seu órgão A Voz do Povo. Ainda no
recompensar tais “benfeitores”. Rio fundou a revista Renovação e o jornal O Trabalhador. Preso
por haver discursado durante comício de 1º de Maio na Praça deração Anarquista do Rio de Janeiro, também contempla as
Mauá no Rio as autoridades não encontraram pretexto para iniciais de seu nome.
deportá-lo, o que só veio a ocorrer quando de sua nova prisão Mas nossos objetivos não são apenas os de conservar,
após o levante de São Paulo a 5 de julho de 1924. preservar ou defender a memória anarquista. Mais do que isto,
Ao ser formado na Biblioteca Social Fábio Luz um núcleo pretendemos que tais materiais se tornem em um elemento vivo
de pesquisa voltado para o resgate da história do anarquismo no a apoiar as lutas do presente, estabelecendo uma continuidade
Rio de Janeiro não pôde ser ignorada a grande contribuição de entre atos, fatos e idéias do passado e do presente. Assim, além
Marques da Costa à sua época. Sua importância ocorre em da pesquisa e do resgate, diríamos melhor, da defesa da memó-
termos de militância e ainda em relação aos pesquisadores con- ria anarquista nossa proposta também é a de apoiar outras orga-
temporâneos por haver registrado intensamente o que ocorria nizações libertárias e/ou populares no que se refere a esta me-
no movimento social (e anarquista, claro) no ano e meio em que mória e implementar palestras e cursos a serem oferecidos a
sua coluna foi publicada. Assim, este Núcleo recebeu seu nome sindicatos, movimentos populares, universidades, etc. O Núcleo
como forma de homenagear uma personagem histórica de luta- de Pesquisa Marques da Costa pode ser contatado pelo e-mail
dor social no Rio de Janeiro. Nosso informativo, que passará a emece1924@yahoo.com.br .
ser recebido eventualmente no interior do Libera, órgão da Fe- Memória também é luta.

OS GRUPOS ESPECÍFICOS ANARQUISTAS NOS ANOS


DO SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO
Um dos aspectos menos conhecidos do período quando Os sapateiros anarquistas, reunidos na Aliança dos Ope-
o sindicalismo revolucionário orientava o que de mais combativo rários em Calçados e Classes Anexas, haviam formado a Agrupação
havia nas lutas sociais do Rio de Janeiro é a existência de diversos Libertária de Trabalhadores em Calçados do Rio de Janeiro, cujo jornal
grupos especificamente anarquistas no seio das associações de levava o belo nome de O Sol dos Livres, publicado pela primeira vez em
classe. Estes, agluti- abril de 1923.
navam os militantes No mais forte sindi-
operários mais cons- cato de orientação revo-
cientizados, tanto lucionária da Capital, a
nos sindicatos de ori- União dos Operários em
entação claramente Construção Civil, o gru-
anarquista, como nos po de propaganda foi a
sindicatos onde os Legião Amigos d’O Traba-
libertá-rios passaram a lho, que até julho de 1922
ser oposição às novas publicava o jornal O Tra-
diretorias pelegas ou balho, fechado após o le-
bolchevistas. vante do Forte Copaca-
Em nossas bana. A agrupação foi dis-
pesquisas na Secção solvida em 1923.
Trabalhista do jornal Do outro lado da
A Pátria, cujo redator Baía de Guanabara, os
era o carpinteiro José libertários da Liga Ope-
Marques da Costa, rária da Construcção Ci-
descobrimos no ano vil reuniam-se no Grupo de
de 1923 uma intensa Propaganda Social de
atividade militante e Nichteroy, que em janeiro
cultural dessas organizações, chamadas naquela época de “gru- de 1923 reuniu-se com o grupo “Os Emancipados” para intensifi-
pos de propaganda”. car e organizar a propaganda libertária nas duas capitais.
O mais conhecido desses era o grupo “Os Emancipados”, Na “Resistência dos Cocheiros”, sindicato onde os anar-
o único que não era ligado a nenhum sindicato. Este reunia tanto quistas não estavam mais a frente, havia um ativo grupo específico
“intelectuais”, como José Oiticica, Florentino de Carvalho, Fá- denominado “Os Rebellados”.
bio Luz, João Gonçalves e Carlos Dias, e operários como o bar- Diversas outras agrupações especificamente anarquistas
beiro Amílcar dos Santos, o estucador Diamantino Augusto, e são citadas na Secção Trabalhista de Marques da Costa, como o
muitos outros. “Os Emancipados” tinham como principal objeti- grupo O Despertar, dos empregados do comércio; a Juventude
vo a propaganda do anarquismo junto aos trabalhadores (o gru- Syndi-calista; o Núcleo Nova Era e o Triângulo Escarlate. De todas
po publicava a revista A Revolução Social) e apoiar os sindicatos essas, não sabemos mais do que os seus nomes.
através de conferências. Os grupos de propaganda constituíram uma importante
Em maio de 1923, quando os conflitos entre anarquistas e trincheira dos libertários nos anos difíceis de crescimento do
bolchevistas se intensificavam, era fundado o Grupo Amigos da sindicalismo amarelo e dos conflitos com os bolchevistas.
Liberdade, que reunia os anarquistas da “União Geral”, a associ- O NPMC continuará resgatando a memória desta impor-
ação da classe gastronômica (garçons, copeiros, cozinheiros, tante forma de organização dos anarquistas cariocas e fluminenses.
etc.). O órgão da agrupação era o jornal A Verdade. Até breve.
Renato Ramos

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