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Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 1

Escola Tomista
Professor Carlos Nougué
Aula 7
Bem-Vindos à sétima aula da Escola Tomista. Não nos percamos, como
sempre digo. É a sexta aula da introdução. Pois bem, hoje lhes deixo três
documentos. O primeiro deles trata o tema com que começarei esta aula. O
secundo documento são os termos utilizados nesta aula. E o terceiro é um
documento que está no ambiente virtual da Escola, mas que lhes reenvio
porque há perguntas quanto a que livros se devem ler a esta altura; neste
documento está tudo esclarecido quanto a isto, claro que no decorrer do tempo
haverá certo acréscimo, mas o essencial está dito aí. Estamos valendo-nos em
nossa introdução dos primeiros capítulos do livro do padre Álvaro Calderón
‘Los Umbrales de la Filosofía’; esta aula corresponde ao capítulo três deste
livro. Conquanto os que quiserem ler o livro do padre Calderón, verão que eu
tratro muito livremente, ou seja, com acréscimos, supressões, que me pareçam
mais condizentes com o assunto tratado.

Pois bem, na aula passada falei da primeira operação do intelecto ou simples


apreensão ou inteligência dos indivisíveis. Faltou-me dizer algo. Afinal, o
homem, em sua primeira operação intelectual ou racional, conhece sempre
aquilo que é? A pergunta a respeito de dada coisa o responde sempre
corretamente? Na primeira operação do intelecto não entra ainda a verdade e a
falsidade; isto só entrará na segunda operação do intelecto. Se digo ‘Paulo,
papa’, não disse nem uma verdade nem uma falsidade; é preciso dizer ‘Paulo
foi papa.’ para incorrer em falsidade, ou ‘Paulo não foi papa.’ para incorrer em
verdade. Quando digo Paulo refiro-me a São Paulo.

Em sua primeira operação do intelecto, o homem age analogamente a como


agem seus sentidos externos. A visão, com efeito, ou conhece o verde ou não
o conhece. Se alguém é daltônico, simplesmente não conhece o verde. Em seu
objeto próprio, e as cores são o objeto próprio da visão, os sentidos sempre
conhecem essencialmente, conquanto acidentalmente possam não conhecer.
No caso do daltonismo, que é uma doença, trata-se de um acidente;
essencialmente nossa visão está preparada para conhecer o verde como
verde, e o vermelho como vermelho. Assim também a primeira operação do
intelecto. Ou, após fazer a devida divisão e dar a devida definição de homem,
chegamos a esse conjunto de aspectos quiditativos que constituem a quididade
do homem (substância vivente sensível raciona), ou simplesmente não se
conhece a essência do homem. Se se diz, em vez de substância vivente
sensível racional, que a definição do homem: bípede implume; simplesmente
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não conhecemos o homem. Logo, quanto a seu objeto próprio (o objeto próprio
do intelecto é aquilo que é), a primeira operação do intelecto não erra
essencialmente; se erra é acidentalmente. Não se preocupem, isso se
esclarecerá suficientemente dentro de muito pouco tempo. A primeira operação
do intelecto, ou conhece a essência do homem, ou simplesmente não conhece
o homem. Se o intelecto diz homem: bípede implume; o intelecto simplesmente
não conhece o homem.

É bem verdade que, provavelmente, a maioria das pessoas não consegue


definir o que são as coisas, ou seja, se de algum modo todos os homens
conhecem ou reconhecem as coisas, no entanto, só os sábios conhecem de
modo excelente, perfeito; isto é assim no atual estado do homem. Só os sábios
conhecem propriamente as coisas. Naturalmente, se se perguntar a alguém ‘O
que é o homem’, e esse alguém responder ‘Um animal de pensa’, ele terá
acertado ainda que não tenha usado os termos mais apropriados. Mas, se se
responde ‘Bípede implume’, simplesmente o intelecto não conhece o homem;
ele reconhece de alguma maneira, mas não conhece perfeitamente. Então,
fique-se com essa analogia muitas vezes repetida por Santo Tomás em sua
vastíssima obra: assim como a visão conhece o verde, ou simplesmente não o
conhece, assim também, o intelecto em sua primeira operação, ou conhece o
homem, definindo-lhe a essência, ou simplesmente não o conhece, conquanto
possa reconhecer.

Para a aula seguinte, darei a vocês um opúsculo meu para, quem o quiser, ler-
se depois. É uma crítica ao filósofo tomista Jacques Maritain e a outros
tomistas, quanto exatamente à primeira operação do intelecto e à segundo
operação do intelecto. Mas esta aula é uma aula de transição. Não tratarei hoje
a segunda operação do intelecto, mas farei uma ponte entre a aula passada e
a aula seguinte.

Vimos até aqui que a primeira pergunta filosófica é ‘Quid sit esta coisa’ e vimos
que ao responder a ela filosoficamente, encontramos a essência ou quididade
da coisa. Se olho para três homens, João, Maria e José, e pergunto o que cada
um deles é, chegaremos à conclusão filosófica que os três são a mesma coisa;
são homens, ou seja, substâncias viventes sensíveis racionais. São homens
porque são racionais, entre si partilham esta igualdade, mas compartilham com
os animais o ser sensitivos; e compartilham com os animais e os vegetais o ser
viventes; e compartilham com todas as coisas que vemos o ser substância.
Mas, descoberto o que é o homem, descoberta sua essência, encontrada por
divisão, que conclui numa definição, não descansa no entanto a mente do
filósofo. Quid sit é apenas a primeira das perguntas de um longo trajeto. O
espírito, a mente, o intelecto do filósofo não repousa enquanto tiver perguntas
que fazer.
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Pois bem, visto que o homem é uma substância vivente sensível racional,
perguntar-se-á o filósofo, em sua curiosidade permanente, já sei ‘Quid sit o
homem’, mas ainda não sei ‘Quomodo sit’ (como é, de que modo é). Esta
pergunta se responde com as propriedades. Porque, com efeito, vimos que há
duas classes de acidentes. A primeira é composta daqueles acidentes que são
acidentes propriamente ditos, simples acidentes, nessa classe basta olhar para
perceber que são simples acidentes; estes tipos de substâncias não implicam
perguntas científicas. A pergunta científica propriamente dita não é aquela que
se faz com respeito ao óbvio, ao evidente; a pergunta científica é aquela que se
faz com respeito ao não evidente. Em geral, é não evidente a segunda classe
de acidentes, ou seja, os chamados acidentes próprios ou propriedades. O que
quer dizer isto? O que são os acidentes que são próprios ou propriedades?
São aqueles que sempre se dão em dada espécie de substância, ou ao menos
se dão na maior parte das vezes, de modo que se não se dão causa-nos
estranheza. E consideramos que essa substância concreta, em que não se dão
estes acidentes próprios ou propriedades, é uma substância imperfeita.

Aprofundemos o que se acaba de dizer. Falei de João, e falei de sua cor, de


sua altura, da cor de seus cabelos, de sua pele; isto, poderia dar-se ou não
dar-se nas substâncias humanas, tanto é assim que uma substância humana é
loura, outra é morena, outra é negra, uma delas tem determinada altura, outra
tem outra altura. Então, tais acidentes, que são os acidentes simples,
propriamente ditos, podem dar-se ou não dar-se em determinada espécie de
substâncias, no nosso caso, a espécie humana. Mas atenção, há limites. Se eu
visse um homem de quatro metros de altura, cuja cor da pele fosse verde, e
que voasse, eu teria todo direito de desconfiar que não se trata de um homem.
Se eu visse um gato do tamanho de uma girafa, conquanto parecesse gato, eu
teria toda a razão de perguntar-me se não se trataria de outra espécie. Se eu
vejo uma girafa do tamanho de um chihuahua, conquanto pareça girafa, eu
tenho todo o direito de perguntar-me se não se trata de outra espécie. Porque,
lembrem-se, não está no campo da nossa experiência. Uma girafa do tamanho
de um chihuahua, ou um gato do tamanho de uma girafa, não estão dentro
daquilo que chamamos espécie sensível que, como veremos em seu devido
momento, é elaborada sobretudo pela cogitativa, com o auxílio da imaginação
e da memória.

Aos que já se aventuram a ler essas coisas. Atenção. Ora se chama


imaginação o conjunto de cogitativa, imaginação e memória, ora se chama
imaginação um destes três sentidos internos. Então, ora os três (cogitativa,
imaginação, memória) se chamam imaginação, ora imaginação (ou fantasia)
indica um desses sentidos internos. Pois bem, trata-se de acidentes simples
que podem dar-se ou não dar-se em dada espécie de substância, dentro de
certos limites. Bom, quanto aos outros acidentes, são os próprios ou
propriedades; são aqueles que sempre se dão em dada espécie de substância.
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Como veremos adiante, esses acidentes decorrem da essência da espécie; da


essência da espécie decorre um conjunto de acidentes próprios ou
propriedades que, ou não podem faltar nesta mesma espécie de substância,
ou, se falta em algum indivíduo dessa espécie, consideraremos que se trata de
algo imperfeito. Por exemplo: que a vaca seja ruminante é uma propriedade,
ela tem de ter o aparelho digestório ruminante, se lhe falta, falta-lhe algo
essencial, falta-lhe algo próprio. Um cão tem entre suas propriedades o ser
doméstico, se, no entanto, ele é rebelde até ao adestrador mais experiente,
diremos que lhe falta algo a este cão para perfazer a perfeição da caninidade,
que é ser domesticável. Então, repita-se, acidentes próprios ou as
propriedades são aquelas que se dão sempre em dada espécie de substância
ou, quando não se dão, temos toda a razão de pensar que falta algo para a
perfeição de dada substância individual desta espécie.

Quanto aos acidentes propriamente ditos ainda falarei algo nesta aula. Mas, o
que importa nesta aula, e que seve de ponte para a seguinte é que as
propriedades implicam três perguntas. Os escolásticos tinham o belíssimo
hábito mnemônico de a cada questão eles davam uma fórmula mnemônica. No
caso dessas três perguntas relativas às propriedades, trata-se de três
perguntas segundo essa forma mnemônica dos escolásticos. A primeira é a
questão Quid. A segunda é a questão Quia. E a terceira é a questão propter
quid.

Pois bem, a pergunta Quid deriva do mesmo Quid sit que já vimos. Lembremos
que os acidentes não têm essência em concreto, só em abstrato, e que em
concreto o que eles são não pode não ser senão na substância. Com respeito
aos acidentes de maneira concreta, temos de dizer não só o que são, em que
são. Mas, em abstrato, vimos que podemos definir suas quididades. A questão
‘Quid sit este acidente?’ visa dar esta resposta. A sociabilidade, por exemplo, é
uma propriedade do homem, enquanto a domesticabilidade é uma propriedade
do cão; parece que se trata da mesma coisa, porque tanto uma quanto outra
implicam certa amizade. Mas, a pegunta ‘Quid est a sociabilidade do homem?’
e ‘Quid est a domesticabilidade canina?’ visa exatamente a mostrar a essência
em abstrato do que é tal sociabilidade, tal domesticabilidade, e a diferença
entre elas; sempre ressalvando que não basta em concreto dizer o que é a
sociabilidade, senão que é preciso acrescentar que a sociabilidade se dá no
homem.

A segunda pergunta (quia) visa a saber se realmente esta propriedade, no caso


se a sociabilidade pertence ao homem, e se a domesticabilidade realmente
pertence ao cão. É a isto que visa a segunda questão ou questão quia.
Enquanto Quid deriva da pergunta Quid est, agora Quia é uma parte da
resposta Quia ita est (porque é assim). Então, esta partícula ‘quia’ deriva da
resposta Quia ista est, que é a resposta a se tal ou qual propriedade pertence
realmente a tal ou qual espécie de substância. Se eu concluo, ao responder à
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questão ‘Quia’, que a sociabilidade pertence ao homem, e, a domesticabilidade


pertence ao anima, então respondo que ‘Ista est’ (é assim).

Mas, uma vez mais, não se detém a curiosidade do filósofo, porque dizer o que
é a sociabilidade (sempre em abstrato) e depois confirmar que a sociabilidade
pertence, de fato, ao homem, ainda não responde a todas as questões relativas
às propriedades; porque, com efeito, falta saber por que a sociabilidade
pertence ao homem. É a terceira questão, ‘Propter quid’ (partícula da pergunta
Propter qudi ita est, Por que é assim). Por que a sociabilidade pertence ao
homem? Por que a domesticabilidade pertence ao animal? Esta é a terceira
pergunta relativa às propriedades. Estas são questões científicas, filosóficas.
Insista-se que não é científico perguntar, por exemplo, se hoje chove, basta
sair à rua para sensivelmente saber se hoje chove ou se hoje não chove. Logo,
a pergunta ‘Hoje chove?’ não é uma pergunta científica. Mas se eu pergunto se
em todos os dias iguais a este em que chove, chove é porque encontrei uma
propriedade; este conjunto de dias em que sempre chove, de modo que se não
chova acharei que algo está errado; esta propriedade chover é de uma espécie
de dias. Esta já é uma pergunta científica. Não é uma pergunta científica
questionar se hoje chove, mas é uma pergunta científica, respeitante às
propriedades, se em determinados dias iguais chove ou não chove sempre.

Tudo isso nos remete a um dos pontos mais árduos da filosofia, ou melhor,
antes que tudo isso, a pergunta ‘Quid sit este ou aquele acidente’ nos remete a
algo muito árduo na filosofia. Trataremos disso muito detidamente nas
Categorias, quando tratarmos o livro As Categorias de Aristóteles. Mas,
vejamos se definimos o que é acidente. Não definimos. Tratamos do acidente
por exclusão. Tudo que não era aspecto essencial seria aspecto acidental.
Tudo quanto não seja substância, a partir da qual pode dividir-se até chegar-se
à definição de todas as substâncias, seria um acidente. Tudo quanto não fosse
aspectos essenciais ou quiditativos seriam aspectos acidentais. Mas isto não é
um aspecto definível; isso é por exclusão. Pois bem, mas podem achar-se,
segundo a pergunta ‘Quid sit’, o que são os acidentes. Marchemos lentamente.

Se virmos o amarelo, o verde e o azul, certamente encontramos algo, em


abstrato, que lhes é essencial. São cores, não é verdade? Não é preciso ser
filósofo para responder que o azul, o amarelo e o verde são cores. Se ouvimos
o trovão que decorre do relâmpago, ou se ouvirmos o som tremendo de um
terremoto, ou o som de uma explosão vulcânica, não teremos a menor
dificuldade em que em abstrato eles são sons; e isso, em abstrato, lhes é
essencial. Se, conhecemos o salgado, o doce ou o ácido e o amargo, não
teremos dificuldade em dizer que essencialmente, em abstrato, são sabores.
Se reconhecemos algo malcheiroso ou algo perfumado, não teremos
dificuldade em dizer que essencialmente, em abstrato, são cheiros. E,
realmente trata-se, então, de quididades em abstrato. Eles são acidentes,
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porque o malcheiroso ou o perfumado tem de dar-se em dada substância, não


pode dar-se por si.

Mas é possível escalar mais? Lembrem-se que se racional escalamos para


sensível, de sensível para vivente, de vivente para substância. Então, verde,
azul, vermelho são cores; há um degrau acima? Áspero e liso, quanto ao tato;
há um degrau acima? Doce ou salgado, há um degrau acima? Sim. Tanto as
cores como os sons, como os sabores, como os odores são qualidades. Vejam,
agora estou indo de baixo para cima numa escala de quididades, em abstrato.
Tudo isso de que falei se nos dá aos sentidos, mas não é difícil perceber em
nós mesmos e nos outros as chamadas qualidades morais. Vemos que uns
homens são virtuosos, outros são viciosos; uns se tornam ladrões, outros têm
virtudes. São disposições ou hábitos, que também são certas qualidades
morais.

Remontamos, mesmo em coisas que não se nos dão sensivelmente, ao


acidente qualidade. Pois bem, deixemo-lo num compartimento. Mas vemos
também que as coisas que se nos dão aos sentidos têm volume e superfície. É
o que se chamam magnitudes ou dimensões. Mas vemos também que entre os
que me assistem há uma multidão, ou que em uma laranjeira há uma multidão
de laranjas, ou que em minha biblioteca há uma multidão de livros. Pois bem,
tanto a multidão quantos as magnitudes ou dimensões podem ascender a uma
nova categoria geral de acidentes, que são as quantidades. Temos as
qualidades e temos as quantidades, até agora.

Mas, insista-se, é possível a partir daí ascender ainda mais? Não. Se virmos
bem o que é a quantidade ou a qualidade das substâncias, veremos que são
aspectos, modos, acidentes da substância. Aspectos, porque são diferentes
ângulos pelos quais podemos ver aquela substância. Vemos que tal substância
tem certas qualidades, e isso é certo aspecto; vemos que tem certa
quantidade, e isto é outro aspecto. Não se trata de uma essência, mas de
aspectos, ângulos. São modos da substância? São, mas refere àquilo que é
modificado, ou seja, a própria substância. O modo remete àquilo que é
modificado. E acidente, que como vimos na devida aula, quer dizer aquilo que
cai na substância. Então, a única igualdade que tem a quantidade e a
qualidade é ser, dar-se, existir na substância. A quantidade e a qualidade não
têm entre si nenhuma semelhança essencial quanto ao que são; sua única
semelhança efetiva é quanto àquilo em que se dão, ou seja, a substância. Pois
bem, a quantidade e a qualidade são aspectos acidentais maximamente gerais;
não tem algo que esteja acima deles, assim como a substância está acima de
vivente e não vivente.

A quantidade e a qualidade, insista-se, não têm sobre si um gênero supremo


que as englobe, que as contenha; assim como a substância contém sob si os
aspectos essenciais vivente e não vivente. A quantidade e qualidade, elas
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mesmas são modos maximamente gerais ao modo mesmo da substância.


Encontramos que a par da substância há esses dois modos gerais das coisas;
são, eles mesmos, gêneros supremos, em abstrato, não em concreto, porque
se trata de acidentes. Mas, não é difícil ver, ao olhar filosófico, que nem tudo
entre os acidentes são quantidades ou qualidades. Com efeito, as qualidades
dispõe a substância. Ser negro ou branco é uma disposição da própria
substância. Da mesma forma, o ser vicioso ou virtuoso dispõe a própria
substância.

A qualidade, como veremos em seu momento devido, é um gênero de quatro


espécies. Entre essas espécies estão, por exemplo, a cor, o som, o sabor, e a
virtude ou o vício. Mas tanto a virtude como o vício, ou ser desta ou daquela
cor, ter esse ou aquele sabor, tudo isto dispõe as substâncias em si mesmas.
Mas, já antecipei que a sociabilidade é uma propriedade do homem, e
pensando nela, não nos é difícil ver que ela não propriamente dispõe cada
substância humana em si mesma; senão que a dispõe com respeito a outrem.
Que outrem? Outros homens. Sim, porque ser sociável é ser sociável com
respeito a outro. Eu não posso ser sociável comigo mesmo. Não é sociável
com respeito a si mesmo, tem-se de ser sociável com respeito aos outros
homens. Ora, portanto ser sociável não se encerra sob esse gênero máximo de
acidentes, que é a qualidade, muito menos sob o gênero da quantidade. É
outro gênero máximo de acidentes, é o da relação. Sou sociável com relação a
outro.

Estamos diante da questão árdua das categorias; são as Categorias ou


Predicamentos de Aristóteles. Repita-se, quando se diz ‘Categorias de
Aristóteles’ não queremos dizer que Aristóteles as inventou, queremos dizer
que ele as descobriu. É uma descoberta científica ou filosófica de Aristóteles
nesta pequena obra, neste opúsculo que não suas Categorias, e que são uma
verdadeira preciosidade. É um assunto que me é muitíssimo caro sobre o qual
me detenho longamente no livro O Tratado dos Universais, e sobre o qual me
deterei longamente na Escola Tomista, porque se trata de um dos pontos
menos compreendidos do aristotelismo. Terei como ajuda, claro, o comentário
do Cardeal Caetano às Categorias de Aristóteles. Santo Tomás infelizmente
não as comentou. E este assunto não é que Aristóteles o tenha tirado da
cartola de repente. Os filósofos anteriores já vinham tratando o assunto. Como
Aristóteles mesmo refere em sua Metafísica, alguns pitagóricos dividiam as
coisas segundo pares de opostos, porque eles notaram que uma coisa ou é
algo ou é seu contrário; aí eles fazem seus dez pares de opostos. Luz e
escuridão, direita e esquerda, macho e fêmea, bom e mau, quadrado e
oblongo, e assim vamos. Aristóteles, esse gênio da lógica e da metafísica.
Como costumo dizer, Platão era um gênio metafísico, mas não era um bom
lógico. Como Aristóteles uniu as duas coisas, ser um gênio lógico e um gênio
metafísico, sobrelevou-se a Platão. Quando chegarmos à metafísica veremos
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que muitas vezes o arcabouço aristotélico do tomismo se preenche com o


platonismo. Santo Tomás é aquela síntese entre Platão e Aristóteles.

É então Aristóteles que alcança as dez categorias, que são modos, aspectos
da substância. Quais são as categorias? Dou-as na ordem de Aristóteles, que é
a ordem correta. A primeira das categorias é a própria substância. Em seguida
vem a quantidade. Depois vem a qualidade. Vejam, primeiro vem a substância,
que é o gênero supremo na ordem dos aspectos quiditativos; depois vem os
gêneros máximos dos acidentes. A quarta é a relação, por exemplo, a
sociabilidade. Depois vem a ubiquação. Muitos dizem que se trata do acidente
lugar; não é propriamente isso. Depois vem o acidente ‘quando’, que muitos
chamam tempo; na verdade, o melhor é chamá-lo ‘quando’. Em seguida vem o
situs, ou seja, a posição ou situação. Depois vem a posse ou habitus. Depois
vem, em penúltimo, a ação. E, por último, vem a paixão, que não deve
entender-se em sentido mau, muito menos em sentido de enamoramento,
coisa que só surge no final do classicismo e no início do romantismo. A paixão
é o sofrer, o padecer a ação de outrem.

Pois bem, dentre os gêneros máximos dos acidentes estão as propriedades,


que é o que nos interessa aqui nesta aula ponte entre a primeira operação do
intelecto, e a segunda operação do intelecto. E, a segunda das questões,
porque até agora vimos a questão Quid, agora é a questão Quia que tem que
ver justamente com a segunda operação do intelecto. É a questão relativa à
verdade científica. Agora sim vai entrar o verdadeiro e o falso. Mas é, antes de
tudo, a resposta à questão Quia que nos vai dizer se tal ou qual propriedade se
dá efetivamente em tal ou qual substância. É em resposta à questão Quia é
que saberemos se a sociabilidade pertence efetivamente ao homem, se ela se
dá efetivamente no homem como propriedade. Ou será um mero acidente? Ou
dar-se-á no cão? A sociabilidade se dá no cão ou só se dá no homem? Se se
dá no homem, é uma propriedade? É a pergunta quanto ao pertencimento de
dada propriedade em dada espécie de substância. Relembremos, a
propriedade é aquela espécie de acidente que se dá sempre em determinada
ou dada espécie de substância, e que quando não se dá em dado indivíduo
dessa espécie, nos parece que lhe falta algo para a perfeição de sua natureza
específica. Então, é no âmbito da questão Quia que nos perguntaremos se a
domesticabilidade pertence realmente ao cão.

Atenção. A questão Quia deve ser uma questão verdadeiramente científica.


Não nos interessa como questão científica saber se hoje chove ou não chove;
basta que saiamos de casa ou ponhamos os olhos para fora da janela para
saber se chove ou não chove. É uma verdade, chove ou não chove. É
verdadeiro que chove ou verdadeiro que não chove. Esta não é uma questão
filosófica porque bastam-nos os sentidos para constatá-la. Isso quer dizer que
há dois tipos de verdades. Uma são as verdades contingentes, e outras são as
verdades necessárias. Atenção, estamos mergulhando na grande filosofia.
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Verdades contingentes e verdades necessárias. Vocês verão até o âmbito final


de nossa Escola Tomista, que é a Sagrada Teologia, esse par de opostos,
contingente e necessário. Para o étimo basta olhar o documento. Mas algo
contingente é pouco mais ou menos o mesmo que algo acidental, no sentido de
acidente puro e simples. É uma verdade contingente que agora chove. É uma
verdade contingente que agora o cão abana a cauda para seu dono. É uma
verdade contingente que João seja negro, porque poderia ser assim ou não ser
assim sem que ele deixasse de ser substância humana. Mas, que em
determinado grupo de dias, que se assemelham por uma série de coisas,
sempre chova, já é uma verdade necessária. Assim como é uma verdade
necessária que o homem seja um animal racional.

Vejam, a diferença entre contingente e necessário é de suma importância no


âmbito da filosofia. Se há dois tipos de verdades, as contingentes e as
necessárias; essas necessárias também se dividem em diferentes classes.
Que o homem seja racional é necessário e essencial, e, no entanto, é
necessária e acidentalmente sociável. Não vimos que animal racional é a
essência do homem? E não vimos que ser sociável é um acidente próprio do
homem? Se assim é, o homem é necessária e essencialmente racional, e é
necessária mas acidentalmente sociável. Vejam, em nenhum momento na
nossa divisão incluímos esse aspecto. Então, repita-se, há duas classes de
verdades: contingentes e necessárias. A verdade contingente é que chove
agora. As verdades necessárias também são distintas, há distinção entre elas.
Acabamos de conhecê-las. O homem é necessária e essencialmente racional,
e é necessária, mas só acidentalmente sociável.

Quem nos tem conduzido até aqui, ao modo de introdução, já é a lógica. Mas
será a lógica a que nos vai conduzir firmemente com facilidade, com ordem e
sem erro, entendamos os predicáveis, entendamos as categorias, entendamos
os juízos, entendamos os raciocínios. A questão Propter quid, que pegunta por
que esta propriedade social pertence de fato ao homem, é a terceira operação
do intelecto, ou raciocínio. Vejam, que desde o início falo de um estudo circular;
voltaremos às primeiras aulas para compreendê-las mais perfeitamente.

Recapitulemos minimamente a aula de hoje. Comecei por dizer algo relativo à


aula passada, que é que quanto a seu objeto próprio, ou seja, aquilo que é, o
intelecto em sua primeira operação, ou bem conhece a coisa ou bem não a
conhece. Não está em jogo a verdade ou a falsidade. Assim como a visão ou
conhece o verde ou não o conhece, -- e isto lhe é acidental, porque o
daltonismo é acidental à visão – assim também o intelecto em sua primeira
operação ou conhece o homem definindo-o animal racional ou não o conhece.
No estado atual do homem, a maioria dos homens não consegue definir ao
menos a maioria das coisas. Não deixa de ser acidental o fato de que seja
acidente na maioria dos homens, mas o fato é que conhecer perfeitamente na
primeira operação do intelecto, ou seja, conhecer a coisa conhecendo-lhe a
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essência é próprio apenas de alguns, os sábios. Os sábios são aqueles que


não só reconhecem ou conhecem de algum modo como todos os homens, mas
também conhecem de modo excelente, cabal e perfeito.

Hoje tratou-se de fazer uma ponte entre a aula passada, ou seja, entre a
primeira operação do intelecto e a aula seguinte em que se tratará a segunda
operação do intelecto. E tratou-se do relativo às propriedades. E por que isso?
Porque, como dito, o filósofo não descansa enquanto tiver perguntas a que se
deve responder para satisfazer a sua curiosidade com respeito à realidade.

Nós já descobrimos aqui que João, Maria e José são substância viventes
animais racionais, e que são racionais igualmente entre si, mas são sensíveis
junto com o conjunto dos animais; são viventes junto com o conjunto dos
animais e dos vegetais; e são substâncias com o conjunto das coisas que se
nos dão aos sentidos. Mas isto não é suficiente ao filósofo, porque o filósofo vê
que há coisas que sempre se dão nos homens, e que não são aspectos
essenciais do homem, são os acidentes próprios ou propriedades.

Recapitulamos que os acidentes são de duas classes; uns são os acidentes


simples, que são aqueles que dentro de certos limites podem dar-se ou não
dar-se em determinada espécie de substância. E há os acidentes próprios ou
propriedades, que sempre se dão em dada espécie de substância, ou se não
se dão em alguma substância individual desta espécie, consideramos que lhe
falta a esta substância individual a perfeição da espécie. Aliás, é porque é
propriedade do homem o ser social (ou político), que Aristóteles dizia que não
ser social ou é dos deuses ou das bestas, dos animais; Santo Tomás
responderá a isso fabulosamente pensando no eremita, no padre do deserto.

Mas, as propriedades suscitam três questões: a questão Quid, a questão Quia


e a questão Propter quid. Quid vem do mesmo e já famoso entre nós Quid sit;
agora perguntado não com respeito à espécie, mas aos acidentes da espécie.
E já vimos que podemos considerar que os acidentes têm essência, mas
apenas em abstrato. A questão Quia é uma partícula da resposta Quia ita est
(porque assim é). O que quer dizer isto? É a questão que vai dizer se dada
propriedade, por exemplo, se a sociabilidade se dá no homem, ou a
domesticabilidade se animal; é no âmbito da questão Quia que se vai
responder a isto. E a terceira questão é’por que tal propriedade, ou seja, a
sociabilidade se dá no homem?’. Estas três questões, em suas palavrinhas
latinas, são maneiras bem escolásticas de memorizar. Veremos este modo
escolástico quando se tratar da figura dos silogismos.

A questão Quid implica por sua vez a questão das categorias, porque, com
efeito, as propriedades estão dentro das categorias. O que são as categorias?
Aquilo que descobriu Aristóteles. São dez. A primeira delas é a substância;
dessa já estamos suficientemente familiarizados. As outras categorias são
também gêneros máximos. Assim como a substância é o gênero máximo entre
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os aspectos quiditativos, a qualidade, a quantidade, a relação, etc. são gêneros


máximos de acidentes. Por quê? Os gêneros dos acidentes (quantidade,
qualidade, relação, ubiquação, quando, situação, posse, ação e paixão) são
modos, são aspectos da substância. Acidente é tudo aquilo que não é
essência, por isso que não pode haver um gênero supremo de acidentes. Cada
do gênero dos acidentes são eles mesmos gêneros máximos. Então, temos os
dez gêneros máximos das coisas, a substância e o nove gêneros de acidentes.
Repita-se e repita-se (perdoem-me o monótono da coisa, mas é meu papel) os
acidentes só em abstrato têm quididade ou essência; em concreto devemos
dizer não só o que são, mas em que são, ou seja, na substância. Por isso cada
aspecto da substância não pode constituir um gênero acima deles mesmos.

Como as propriedades estão no meio das categorias, suscita-se a questão


seguinte, ou seja, a que diz respeito à verdade científica e tem íntima relação
com a segunda operação do intelecto. E pensando nisso é que chegamos a ver
que nem toda verdade é científica. Que hoje chova, que o gato durma não é
uma verdade propriamente científica nem requer perguntas científica ou
filosóficas. São verdades, mas são verdades contingentes. A outra classe de
verdades são as verdades necessárias que, por sua vez, também são de
diferentes classes. Uma é a verdade necessária e essencial, outra é a verdade
necessária mas acidental. O homem é necessária e essencialmente racional,
mas também é necessária e acidentalmente social.

Estamos tomados pela mão da lógica. A lógica nos conduz como a grande
pedagoga. Já desde os umbrais da filosofia somos levados pela mão pela
pedagoga lógica, porque sem ela não transpassaremos o umbral da filosofia.
Peço-lhes que tenham a paciência de deixar-se conduzir lentamente, às vezes
monotonamente, quase sempre repetitivamente pela lógica nesta altura. Se se
deixam conduzir pela mão pela lógica, pisarão muito seguramente já no campo
da ciência. A lógica nos está conduzindo nestes umbrais; nos conduzirá ao
cuidar-se de si mesma, e será propedêutica a todas disciplinas, sejam elas
ciências ou artes. É próprio do sábio ordenar, mas também é próprio dele ter a
devida paciência.

Muito obrigado pela atenção.

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