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Ditad Cri PDF
Ditad Cri PDF
ISBN
1. Ditadura militar
CDU 321.86(81)
1ª edição
São Paulo, 2014
Infância Condenado
A inocência perdida
Ângela Telma Oliveira Lucena 82 resgatada
Adilson Lucena 86 Palavras presas
Denise Oliveira Lucena 89 à morte
Ariston Oliveira Lucena
90
“Sou a prova de
“Ele lutou muito...”
Carlos Alexandre Azevedo 300 que mesmo na
guerra...”
Lia Cecília da Silva Martins
304 Lembranças
Valter Pomar 308
INFÂNCIA ROUBADA 9
INFÂNCIA ROUBADA 11
... Talvez uns cinco homens me torturaram. da verdade e da justiça. No entanto, como falar os homens e, principalmente, para as crianças.
Eu nunca mais voltei a ser a mesma... [...] Não há das crianças sequestradas, abandonadas, tortura- Quando as crianças foram abruptamente arran-
palavras para explicar [...] Estou tentando agora das ou nascidas nos centros clandestinos da re- cadas de suas mães, como ocorreu com o empre-
superar [...] Quando me sequestraram, meu filho pressão sem considerar a questão das mulheres, go deliberado da truculência dos DOI-Codis que
tinha 10 meses. Fazia pouco tempo que tinha militantes mães e das mães não militantes, que usaram de violência inclusive contra as crian-
deixado de amamentar. Quando sai da prisão, por sua vez eram companheiras de militantes ças, elas perderam tudo isso de uma vez só: a
meu filho tinha 2 anos. No momento em que políticos. Isso porque não houve crianças atingi- segurança afetiva e os cuidados mínimos, o que
se pôs de pé, perdeu os pais: eu fui sequestrada das pelo aparato repressivo que não estivessem as marcou profundamente por toda a vida. Cada
e o pai foi assassinado... vivendo com suas mães militantes e, via de re- uma teve ou tem ainda que lidar com essa ferida,
gra, tinham um forte vínculo com as suas mães, que muitas vezes sangra, incomoda. Todo esse
Teresa Meschiatti, “Tina”, sofrimento das crianças foi também usado como
sejam militantes ou não. Suas mães de alguma
guerrilheira da Argentina forma de torturar as mães militantes ou mães
forma foram perseguidas, presas, sequestradas,
assassinadas/desaparecidas pela ditadura e seus não militantes. Assim, neste capítulo devemos
agentes. Ora, as crianças dependem dos adul- ressaltar que é impossível falar das crianças
tos para serem cuidadas, limpas, alimentadas sem tratar do quanto as mães, militantes ou não,
e precisam de atenção, de amor e devem ser so- foram afetadas por tudo isso que aconteceu no
A Comissão Estadual da Verdade “Rubens cialmente introduzidas junto a outras crianças Brasil, durante a ditadura.
Paiva” da Assembleia Legislativa do Estado de e outros adultos para crescerem em afetividade, A ditadura militar (1964–1985) acarretou radi-
São Paulo realizou uma série de audiências em dignidade e cidadania. Essas atividades têm sido cal mudança na política brasileira e nos países
que crianças, que sofreram nas mãos da repres- historicamente de responsabilidade das mulhe- da região que acabaram também por implan-
são política da ditadura, direta ou indiretamente, res embora estas tenham convocado os homens tar ditaduras similares. A repressão atingiu as
puderam relatar suas experiências e como con- para assumirem também essas tarefas, dividin- forças populares organizadas, sobretudo sindi-
seguiram enfrentar e superar tamanha trucu- do-as igualitariamente, tanto no âmbito domés- calistas, camponeses, estudantes, professores,
lência. Assim, o trabalho que ora apresentamos tico como em relação aos cuidados. Tais fatos, intelectuais e artistas. Um número incalculável
visa dar conta dos relatos dessas pessoas que ainda que falte muito da presença dos homens, foi preso, exilado ou passou a viver na clandes-
eram crianças à época da ditadura e da impor- vêm concorrendo para fortalecer e melhorar a tinidade. A Editora Vozes publicou2 , em 1988, o
tância desses depoimentos para a construção vida em sociedade, seja para as mulheres, para livro Perfil dos Atingidos, organizado a partir de
INFÂNCIA ROUBADA 13
1
Marta Diana. Mujeres Guerrilleras: Sus Testimonios en la militancia de los setenta, Editora Booket, Buenos Aires, 2007, p.44. Tradução livre.
2
Maria Amélia de Almeida Teles, Breve História do Feminismo no Brasil, Editora Brasiliense, São Paulo, 1993, p.64.
3
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos (1964-1985), Imprensa Oficial, São Paulo, 2009, p. 413.
4
Idem, p. 583.
5
Idem, p.411.
6
Revista Brasileiros, nº.68, março de 2013: “Subversivos: Acredite”. “Estas crianças foram presas e banidas do Brasil. Mais de quarenta anos
depois elas contam como sobreviveram. Há quem não tenha conseguido, quando meninos são fichados como terroristas”, Luiza Villaméa, p.54.
7
Idem, p.64, matéria de Luiza Villaméa.
8
Adriana Sader Tescari, Violência Sexual contra a Mulher em Situação de Conflito Armado, Editora Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2005, p.38.
INFÂNCIA ROUBADA 15
Muitas mulheres que, nas prisões brasileiras gestação e permaneceu detida como elemento de Luíz Andréa Favero, 26 anos, professor, pre-
tiveram sua sexualidade conspurcada coação moral sobre o interrogando; (...)”. so em Foz do Iguaçu, declarou na Auditoria
e os frutos do ventre arrancados, certamente Militar de Curitiba, em 1970, o que ocorrera a
Helena Moreira Serra Azul, 22 anos, estudante,
preferiram calar-se, para que a vergonha sua esposa: “(...) o interrogando ouviu os gritos
no Conselho de Justiça, em Recife (PE) , ao ser
suportada não caísse em domínio público. de sua esposa e, ao pedir aos policiais que não
interrogada, relatou: “(...) que o marido da interro-
Hoje, no anonimato de um passado marcante, a maltratassem, uma vez que a mesma se en-
ganda ficou na sala já referida e ela ouviu, do lado
elas guardam em sigilo os vexames e as contrava grávida, obteve como resposta uma
de fora, barulho de pancadas; que, posteriormente,
violações sofridas. No entanto, outras risada; (...) que ainda neste mesmo dia, teve o in-
foi reconduzida à sala onde estava o seu marido,
optaram por denunciar na Justiça Militar terrogando noticia de que sua esposa sofrera uma
que se apresentava com as mãos inchadas, a face
o que padeceram, ou tiveram seus casos hemorragia, constatando-se posteriormente, que
avermelhada, a coxa tremendo e com as costas
relatados por maridos e companheiros.9 a mesma sofrera um aborto; (...)”.
sem poder encostar na cadeira; que o Dr. Moacir
Sales, dirigindo-se à interroganda, disse que, se ela Regina Maria Toscano Farah, estudante, 23
não falasse, ia acontecer o mesmo com ela; (...) na anos, ao depor, no Rio, declarou: “(...) que molha-
Delegacia, todos já sabiam que a interroganda es- ram o seu corpo, aplicando consequentemente
O projeto Brasil Nunca Mais consistiu na pri-
tava em estado de gestação; (...)”. choques elétricos em todo o seu corpo, inclusive
meira pesquisa realizada a partir dos processos
contra presos políticos transitados no Superior Helena Mota Quintela, vendedora, 28 anos, em na vagina; que a declarante se achava operada
Tribunal Militar (STM) no período de abril de 1972, em Recife, denunciou: “(...) que foi ameaçada de fissura anal, que provocou hemorragia; que se
1964 a 1979, sob a responsabilidade da Comissão de ter o seu filho ‘arrancado à ponta de faca’; (...)”. achava grávida, semelhantes sevícias lhe provo-
de Justiça e Paz. O conteúdo do Projeto reuniu caram aborto; (...)”.
Hecilda Mary Veiga Fonteles de Lima, 25 anos,
707 processos completos e dezenas de outros in- estudante, ao depor, relatou como se deu o nasci-
completos num total de um milhão de documen- As marcas da tortura permanecem, como mos-
mento de seu filho: “(...) ao saber que a interrogan- tra o testemunho de Isabel Fávero, ex-militante
tos. O estudo desses processos e a sistematização da estava grávida, disse que o filho dessa raça não
das informações foram realizados de 1979 a 1985. da VAR-Palmares, presa em 5 maio de 1970, em
devia nascer; (...) que a 17.10 foi levada para prestar Nova Aurora, cuja denúncia foi feita, quarenta
No final dos trabalhos, foi publicado um livro com outro depoimento no CODI, mas foi suspenso e, no
o nome Brasil: Nunca Mais, que reúne denúncias anos antes, pelo seu marido, Luiz Fávero11. Ela
dia seguinte, por estar passando mal, foi transpor- relata com detalhes o abortamento sofrido e de-
contidas nos autos dos processos de militantes tada para o Hospital de Brasília; que chegou a ler
políticos, mulheres e homens, nas auditorias mi- nunciado pelo seu marido na época: “Eu ficava
o prontuário, por distração da enfermeira, cons- horas numa sala, entre perguntas e tortura física.
litares, na época da ditadura militar. tando do mesmo que foi internada em estado de Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e
Militantes ou esposas de militantes, grávidas, profunda angústia e ameaça de parto prematuro; eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de
foram vitimas do aborto forçado, praticado por que a 20/2/1972 deu à luz e 24 horas após o parto, muito choque, pau de arara, ameaça de estupro
agentes policiais dos DOI-CODIs. Muitos desses disseram-lhe que ia voltar para o PIC (Policia de e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram
abortamentos foram denunciados nas audiências Investigações Criminais); (...).” num quarto fechado, fiquei incomunicável”.
da Justiça Militar. Eis o relato de alguns desses Maria José da Conceição Doyle, estudante de
casos: Medicina, em 1971, em Brasília: “(...) que a inter- Outra mulher e militante política, Nádia Lu-
roganda estava grávida de 2 meses e perdeu a cia do Nascimento, integrante do MR-8, presa
O auxiliar administrativo José Ayres Lo- em São Paulo, em 1974, grávida de seis meses,
criança na prisão, embora não tenha sido tortura-
pes, 27 anos, preso no Rio, declarou em 197210: no DOI-CODI/SP, foi colocada na “cadeira
da, mas sofreu ameaças; (...)”.
“(...) que, por vezes, foram feitas chantagem com de dragão” pelo torturador conhecido por Ca-
o depoente em relação à gravidez de sua esposa, Maria Cristina Uslenghi Rizzi, 27 anos, secretária, pitão Ubirajara (delegado da polícia civil de
para que o depoente admitisse as declarações, denunciou à Justiça Militar de São Paulo: “(...) so- São Paulo, que integrava as equipes de tortu-
sob pena de colocar sua esposa em risco de abor- freu sevícias, tendo, inclusive, um aborto provoca- radores do DOI-CODI/SP, cujo nome oficial é
to e, consequentemente, de vida; (...)”. do que lhe causou grande hemorragia, (...)”. Aparecido Laerte Calandra). Depois de arranca-
O estudante José Luiz de Araújo Saboya, de Olga D´Arc Pimentel, 22 anos, professora, em da a roupa, ela levou choque elétrico por todo o
23 anos, no Rio, denunciou: “(...) que durante o 1970, no Rio: “(...) sevícias, as quais tiveram, como corpo, o que fez com que abortasse. Ficou duran-
período em que esteve no DOPS, em seguida no resultado, um aborto provocado que lhe causou te dias com fortes hemorragias e dores, sem se-
CODI, a sua esposa se encontrava em estado de grande hemorragia, (...)”. quer um atendimento médico12.
9
Brasil: Nunca Mais, Editora Vozes, 1986, Petrópolis, p.43.
10
Idem, pp.48-50.
11
Idem, p 50.
12
Testemunho dado à Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo
... me espanta a capacidade que se crianças pequenas das tarefas políticas e/ou mi- vidade da época. De qualquer forma, as ativida-
tem de sobreviver ao horror.13 litares, no sentido de impedir que acontecesse des domésticas recaíam mais sobre as mulheres.
... à ameaça de morte, podemos responder
o pior: a mãe ter sua criança torturada e/ou se- O comando era sempre dos homens, mesmo que
com uma nova vida.14
questrada, usada como refém pelos agentes da as mulheres tivessem desempenho igual ao dos
repressão, assim como as crianças assistirem homens. Eram eles que estavam nas direções das
suas mães ou seus pais sendo torturadas (os). A organizações, com raríssimas exceções, mas as
A maternidade foi usada, das mais diversas relutância em aceitar as mães como militantes mulheres agiram com coragem e criatividade.
formas, pela repressão política como meio de não era sem razão. A repressão política não pou-
tortura, para enlouquecer e aniquilar militantes, Dessa vez as mulheres não precisavam vestir-se
pou nem crianças nem mulheres grávidas. Mui-
o que acarretou uma sobrecarga pesada do pon- de homem para ir à guerra como fez Maria Qui-
tas mulheres abortaram nas dependências dos
to de vista emocional e físico, de forma especial, téria em outros tempos. Embora muitos coman-
DOI-CODIs de tanto apanharem e levarem cho-
às crianças e às mulheres, que, ao serem violen- dantes esperassem que as mulheres se compor-
que na barriga, vagina e demais partes do corpo.
tamente reprimidas por sua militância de con- tassem como homens. Segundo a ex-guerrilheira
testação à ditadura, ou por serem filhas de mi- Assim como existiram mulheres que tiveram Crimeia, muitas mulheres que optaram pela luta
litantes, eram submetidas às mais vis torturas, seus partos, na mais ferrenha clandestinidade, ou- política aprenderam a afirmar a diferença e bus-
sejam psicológicas ou físicas, por serem mães tras tiveram seus filhos na cadeia, como Hecilda, car novas formas de fazer política. Afinal, dessa
e terem seus filhos pequenos, ou simplesmente Crimeia Schmidt, Linda Tayah. Todas foram pre- vez as mulheres foram à luta por conta própria,
porque eram crianças, filhas de “comunistas”. sas grávidas e, mesmo sendo muito torturadas, por sua própria decisão e ali entraram para valer.
permaneceram grávidas e seus filhos nasceram Suzana Lisboa, militante da ALN na década de
As militantes na luta contra a ditadura militar, sob a ameaça de torturas sendo que algumas des- 1970, considera que “(...) era vantajosa, do ponto
de um modo geral, pertenciam a organizações sas crianças sofreram a tortura ainda na barriga de vista do desempenho da organização, a inte-
políticas clandestinas, pois era taxativamente de suas mães. Nessa seara, temos o caso do Joca, gração de mulheres na luta armada (...)”.
proibido se organizar e se expressar de maneira João Carlos Schmidt de Almeida Grabois. Sua
pública sob a vigência dos governos militares. mãe, Criméia, foi presa com sete para oito meses Ela afirma que numa sociedade machista em
Portanto, as normas dessas organizações eram de gravidez. Levou choques elétricos, foi espanca- que a mulher não era reconhecida e considerada,
bastante rígidas devido às questões de seguran- da em diversas partes do corpo e sofreu socos no uma guerrilheira teria mais facilidade de sair de
ça. A militância clandestina precisava de escon- rosto. Quando os carcereiros pegavam as chaves uma ação militar e se confundir na multidão. As
derijos para se encontrar, planejar atividades para abrir a porta da cela e levá-la à sala de tortura, mulheres tinham mais facilidades de obter do-
cotidianas. Eram casas/residências, conhecidas o seu bebê ainda na barriga começava a soluçar. cumentos falsos. Não precisavam de atestado de
como “aparelhos”. Para manter uma fachada le- Nasceu na prisão e, mesmo anos depois, quando reservista. E com isso tornava-se mais fácil con-
gal era conveniente destacar um casal de mili- ouvia o barulho de chaves, voltava a ter soluços. seguir um emprego e manter uma fachada legal.
tantes jovens para cuidar do “aparelho”. Diante Muitas chegaram a ser citadas pelos agentes da
As crianças que viviam na clandestinidade, de repressão, que eram pegos de surpresa ao se de-
de um casal com essas características as suspei-
um modo geral, moravam nos “aparelhos” que frontarem com mulheres dispostas a enfrentar o
tas junto à vizinhança eram bem menores.
poderiam ser invadidos, vasculhados e seques- inimigo com tanta ousadia e destreza. Eles se as-
As mulheres militantes, ao decidirem pela trados os que ali se encontravam, pelos agentes sustavam com o fato de que essas mulheres rom-
maternidade, eram advertidas de forma sistemá- dos órgãos de repressão. A perseguição policial, piam, sistematicamente, com os papéis sociais
tica sobre o que poderia lhes advir caso caíssem ora velada, ora aberta, era constante na vida da que lhes eram e ainda são impostos de submis-
nas garras da repressão. Havia reações negati- militância. O risco era permanente. As crianças, são, dependência, falta de decisão e coragem.
vas em relação à escolha pela maternidade. As na sua maioria, precisavam ter nomes falsos. Não
organizações, de um modo geral, não adotavam sabiam o verdadeiro nome de seus pais por ques- A vida política realizada às escondidas da
nos seus planos de ação o enfrentamento dos tão de segurança. As distintas tarefas partidárias ditadura e da repressão política aproximava os
problemas do cotidiano, considerados menores que compunham uma ação política ou armada militantes e era comum entre eles uma conversa
e que deveriam ser postergados para quando de maior envergadura se faziam de forma com- sobre assuntos mais íntimos. A clandestinida-
houvesse o triunfo da revolução. Por outro lado, partimentada e, muitas vezes, era pouco o tempo de e a perseguição constante os tornavam mais
existia o compromisso, nas mais diversas cir- para se preparar e tomar conhecimento do perigo afetivos e mais próximos. A igualdade entre os
cunstâncias, de proteger mulheres e crianças iminente. As mulheres militantes participavam sexos era, como ainda é hoje, uma proposta a ser
das garras perversas da repressão. Algumas igualmente da concretização das tarefas políticas alcançada. Cada minuto vivido era intenso, por-
organizações excluíam as grávidas ou mães de e militares, o que talvez tenha sido a grande no- que o perigo e a morte rondavam por perto.
13 Susel Oliveira da Rosa, Mulheres: Ditaduras e Memórias, Editora Intermeios, São Paulo, 2013, Carta de Danda Prado, p.180. (Coleção Entregêneros).
14 Fala de Crimeia Alice Schmidt de Almeida, ex-guerrilheira do Araguaia, publicada no livro já citado: Breve História do Feminismo no Brasil, p.72.
INFÂNCIA ROUBADA 17
... A inserção do feminismo no movimento pela Nos anos de 1970, no mundo ocidental, vivia-se tiva. As mulheres mães, por sua vez, enfrenta-
recuperação da democracia passava por uma o auge da segunda onda feminista, na qual as mu- ram a dupla ou talvez tripla opressão (enquanto
critica ao autoritarismo não apenas como lheres conduziram bandeiras que reivindicavam pertencentes ao sexo feminino, como parte do
o sistema político-militar que governava a o direito de decidir sobre o próprio corpo, que as povo em luta e como mães) sem deixarem de ser
maioria dos países latino-americanos, mas questões do plano pessoal deveriam ser tratadas “sujeitos políticos”, conscientes de suas ações e
ampliava essa crítica identificando o também no campo político. Tratavam de temas seus significados.
autoritarismo como sistema de relações de como corpo, sexualidade, prazer sexual, aborto e O corpo, a sexualidade e a maternidade ocu-
disciplinamento e de dominação que a maternidade. Queriam desfazer a ideia de que pam lugares centrais no processo histórico de
aprofundava a situação de subordinação tinham um único destino selado, o de serem mães. discriminação contra as mulheres. A subordi-
e opressão das mulheres no continente...
Tais ideias circulavam junto às militantes, ain- nação e opressão das mulheres se dá, em gran-
Lilian Letelier 15
da que com mais dificuldade, devido à falta de de medida, pelo controle do corpo feminino. A
liberdade e a perseguição constante que as im- expressão maior deste controle é a violência
pediam, muitas vezes, de discutir questões do contra as mulheres – prática tão antiga e natu-
cotidiano. Acreditava-se que somente após a ralizada que, naqueles anos de ditadura, preva-
Entretanto, surgiam fatores que aceleravam revolução socialista haveria oportunidade para lecia o ditado popular: “Em briga de marido e
mudanças de hábitos e costumes na sociedade cuidar de assuntos do campo pessoal, cultural. mulher não se mete a colher”, “embora fossem”
brasileira. O capitalismo se desenvolvia rapida- Portanto, a questão das mulheres ficaria para violentadas/espancadas e assassinadas as mu-
mente com o aumento excessivo da exploração depois. Paradoxalmente, as mulheres que deci- lheres. Assim como também se entendia que
da mão de obra, o achatamento salarial, o incen- diram pela militância de oposição à ditadura, os homens tinham uma necessidade irrefreável
tivo e os subsídios estatais para a instalação de eram, de um modo geral, pessoas que tinham e incontrolável de sexo. Daí a justificativa da
multinacionais. A partir da expulsão da popula- maior independência e autonomia. Tiveram que prática da violência sexual contra as mulheres.
ção do campo, há uma transferência abrupta de enfrentar muitas barreiras de ordem pessoal, A culpa de serem estupradas recaía sobre as
um grande contingente da população da área ru- familiar, profissional, para assumir a posição próprias mulheres vítimas. Daí a dificuldade de
ral para as áreas urbanas em busca de trabalho e política de enfrentamento ao autoritarismo. As- se denunciar os estupros. A desigualdade entre
sobrevivência. As mulheres, em geral, passaram sumiram o papel histórico de protagonistas de os sexos tem sido estruturalmente estabelecida
a ter novas atribuições, seja na chefia da família ações libertárias, tornando-se sujeitos políticos, ainda nos dias de hoje. O que dizer de quase
ou na competição para o mercado de trabalho, atuantes na construção de uma sociedade justa meio século atrás? Quando nem mesmo havia
fazendo crescer a participação da mão de obra e democrática. A maioria delas exerceu de forma sido conquistada a igualdade jurídica e formal.
feminina. Elas passaram a ter mais possibilida- destemida o direito de escolha nos mais diver- No Código Civil daquela época, o homem podia
des de controlar o número de filhos que queriam sos campos da vida inclusive em relação a ser ou pedir a anulação do casamento se a mulher não
ter. A pílula anticoncepcional, descoberta em não mães. Mas insistiram em tratar as questões fosse virgem e não tivesse avisado a ele com a
1960, começou a ser popularizada. As mulheres pessoais no plano político das organizações. Fo- devida antecedência e precaução. O pai podia
começaram a exercer o direito ao prazer sexual ram, ainda que nem todas estivessem conscien- deserdar a filha “desonesta”. A honestidade das
sem necessariamente ficarem grávidas. As mu- tes disso, as pioneiras do feminismo dos anos de mulheres significava uma sexualidade reprimi-
lheres, então, travaram um movimento de rup- 1970 no Brasil e região. da. Tanta tirania atingia as mulheres como um
tura do tabu da virgindade. Passaram a exercer todo, reforçava e justificava as ações repressivas
uma maior liberdade sexual subvertendo a or- As militantes tiveram que romper com os este-
nos espaços públicos como privados.
dem dada pelo acirramento da repressão política reótipos femininos e se empenharam em ações
e moral. Desse modo, a maternidade começa a ser que eram restritas a homens, como o manejo de Some-se a isso o fato de que havia uma campa-
exercida como um direito de escolha. A média de armas, a elaboração de estratégias de resistên- nha de controle da natalidade incentivada pelos
filhos por mulher era em torno de seis em 1960 cia para driblar o inimigo, entre outras. Não se Estados Unidos – baseada na ideologia imperia-
e caiu para cerca de dois, no final do século 20. deixaram intimidar, de ter desejos e manifestá- lista – contra o nascimento de filhos de pobres no
Assim, as mulheres lograram por se tornar mais -los, não recusaram tarefas por causa da mens- Brasil e em diversos países, denominados à época
independentes, a assumir mais atividades nos es- truação, de um abortamento, da gravidez ou como países do Terceiro Mundo17.
paços públicos, seja nas escolas ou no mercado de aleitamento. E aquelas que caíram nas garras O estado ditatorial patrocinava iniciativas de
trabalho. Aproximavam-se, mesmo sem ter cons- do inimigo, grávidas ou não, de um modo geral, controle da natalidade promovidas pela Bemfam
ciência plena, das incipientes ideias feministas. enfrentaram seus algozes de maneira firme e al- – Sociedade Civil de Bem Estar Familiar –, criada
15
In Maria Betânia Ávila (org.), Textos e Imagens do Feminismo: Mulheres Construindo a Igualdade, SOS-Corpo, Recife, 2001, p.198. Revista Brasileiros, nº.68, março de 2013.
16
Hoje creche é um direito constitucional da criança pequena à educação. Mas há mais de dez milhões de crianças brasileiras que vivem no Brasil, sem poder usufruir deste direito
por falta da construção de creches. (N. da A.)
17
Países do Terceiro Mundo eram os países pobres ou subdesenvolvidos. Segundo a teoria terceiro mundista, o mundo era dividido em países capitalistas (Primeiro Mundo),
socialistas (Segundo Mundo) e os demais eram do Terceiro Mundo. (N. da A.)
Não se nasce mulher, torna-se. par o seu lugar no mercado de trabalho e bus- desigualdades sociais, econômicas e políticas.
Simone de Beauvoir, em 1949 car formação profissional e política tiveram que As desigualdades são fruto da arbitrariedade e
arcar com o ônus de exercer, ao mesmo tempo, das injustiças sociais, o que cria condições de
as atividades do mundo privado e do público, o inferioridade para alguns segmentos e classes
que lhes têm ocasionado uma enorme sobrecar- sociais. Enquanto as diferenças são biológicas e
Hoje, com o avanço das ciências sociais e da ga de trabalho e de responsabilidade. Ocorre a devem ser respeitadas, as desigualdades devem
ciência, em geral, pode-se contar com recursos chamada dupla jornada de trabalho (o trabalho ser erradicadas.
teóricos e políticos valiosos para enfrentar a dis- na produção e na reprodução), o que traz difi- O conceito de gênero, articulado às demais
criminação histórica contra as mulheres. A cate- culdades para sua participação na sociedade. categorias, clássicas ou não, como raça, etnia,
goria gênero, entendida aqui como instrumento Assim podemos perceber que a divisão sexual geração, orientação sexual, classes sociais, apro-
de análise da construção social e das relações do trabalho impõe uma divisão dos papéis so- funda a compreensão da realidade e desconstrói
entre os sexos, ao ser usada para dimensionar ciais masculinos e femininos, que são construí- a ideia de que o homem é o paradigma da huma-
as causas estruturais e sociais das desigualda- dos culturalmente e que determinam uma maior nidade. Inscrevem-se, portanto, nos paradigmas
des entre mulheres e homens, desconstrói como valorização dos homens em detrimento das mu- da humanidade, mulheres e homens porque am-
naturais e/ou próprias da natureza humana, a lheres. As mulheres têm sido, assim, impedidas bos são humanos. Desse modo são constituídos
subjugação, discriminação e opressão das mu- de exercerem o poder de decisão. Por exemplo, novos atores e novos sujeitos políticos, revelam-
lheres. É necessário que no uso da categoria tanto a mulher quanto o homem podem dar ba- -se métodos transformadores que devem nos le-
gênero deva ser incorporado o conceito de divi- nho no bebê ou trocar sua fralda. Não se trata de var a mudanças profundas e compatíveis com a
são sexual do trabalho, pois esta se encontra no um problema físico ou hormonal. Se as mulheres diversidade e as necessidades humanas. A sub-
centro do poder que os homens exercem sobre têm sido mais eficientes nesse trabalho é porque missão das mulheres ao poder dos homens, vista
as mulheres. Observa-se que a divisão sexual do se capacitaram para isso por muito mais tempo. até então como processos naturalizados, passa a
trabalho é uma realidade em todas as socieda- Com isso queremos mostrar que as desigualda- ser questionada e ressignificada.
des humanas e é a base da desigualdade social des entre homens e mulheres não são naturais.
entre os sexos. Os homens têm ocupado por um Foram historicamente construídas. A categoria Hoje, graças às lutas feministas de mulheres,
longo período histórico os espaços públicos, vin- gênero vem justamente mostrar que as desigual- há nos diversos níveis do Estado brasileiro (fe-
culados à produção e adquirindo o poder econô- dades podem ser desnaturalizadas e descons- deral, estadual e municipal) ações e políticas pú-
mico e político enquanto as mulheres ficaram truídas. Empregar a categoria gênero na análise blicas para efetiva equidade de gênero e igual-
por muito tempo restritas aos espaços privados, da realidade aprofunda o conhecimento e leva dade de direitos. Na ditadura, a situação era o
incumbidas de realizar as tarefas domésticas e a rejeitar o determinismo biológico. Não são oposto.
de cuidados. As mulheres, ao saírem para ocu- os aspectos biológicos e sexuais que criam as
INFÂNCIA ROUBADA 19
Os danos e violações de direitos humanos co- aram nem deixaram de defender as liberdades Angel que denunciou insistentemente o desapa-
metidos contra as mulheres pela ditadura militar sejam de ordem pessoal ou de ordem política. recimento do seu filho. Outras enlouqueceram
devem ser dimensionados sob a ótica de gênero, As desigualdades históricas entre homens e com tamanha dor e perseguição policial.
para que se alcance com profundidade a verdade mulheres foram reelaboradas e aprofundadas
dos fatos, registrando-se que as militantes políti- Houve muitas e muitas que lutaram no anoni-
pela ditadura, que não admitia, em nenhuma mato e que a história terá de trazer à tona a par-
cas, ou não, se recusaram a reproduzir o papel so- hipótese, que mulheres desenvolvessem ações
cial de submissão e de dependência dos homens, ticipação para que se alcance a verdade. Junto a
não condizentes com os estereótipos femininos elas, muitas crianças também sofreram e não ti-
contribuindo de maneira fundamental para a de submissão, dependência e falta de iniciati-
construção de uma democracia de fato, e isso num veram suas histórias inscritas na história política
va. As mulheres, militantes políticas da época, do país, não tiveram o reconhecimento nem re-
período em que tudo o que faltava era democra- subverteram a ordem patriarcal tão solidamente
cia. Desse modo, nossa frágil democracia não se paração. Gostaríamos que sua dor e sua tenacida-
acomodada na ideologia ditatorial. Ao ingressa- de para resistir se espalhassem na cultura e nas
consolidará, dentre outras coisas, sem que se faça rem para as lutas da oposição política, das mais
justiça às mulheres e às crianças que lutaram e/ou ações do povo de modo a não mais autorizarem
diversas maneiras, as mulheres pegaram em que tais fatos se repitam.
foram atingidas pela ditadura. armas ou apoiaram ações políticas de protesto,
Nessa seara, constatamos que na atividade sejam armadas ou não, mantiveram a segurança Ao buscar a verdade, a Comissão deve anali-
política clandestina, houve também avanços de “aparelhos” que escondiam a militância e o sar os fatos e suas circunstâncias, numa pers-
nas relações de gênero. Existiram ocasiões em material de luta, participaram da imprensa clan- pectiva de gênero, ou seja, considerando que as
que se quebrou a lógica até então aceita como destina, escreveram, fizeram funcionar as gráfi- desigualdades entre os sexos levaram a conse-
natural, dito noutras palavras, ao homem o espa- cas e distribuíram as publicações produzidas de quências e sequelas distintas entre mulheres e
ço público e à mulher o espaço privado. Muitas forma artesanal e em condições muito precárias. homens, em decorrência das brutalidades co-
vezes, os homens foram obrigados a ficarem es- Cuidaram da saúde e da segurança de militan- metidas pela ditadura militar. As mulheres e
condidos em aparelhos, devido à intensa perse- tes e familiares. Tiveram suas crianças na clan- as crianças serão não apenas lembradas como
guição enquanto as mulheres, devido a levanta- destinidade, nas prisões. Viram suas crianças reconhecidas como pessoas com direitos inalie-
rem menos suspeição, foram às ruas no preparo expostas às sessões de tortura, ameaçadas ou náveis à dignidade, às manifestações afetivas, à
e no desencadeamento de ações políticas e mili- mesmo torturadas. Sofreram abortos dolorosos liberdade e à justiça.
tares. Por consequência disso, existiram homens devido aos espancamentos e chutes dos tortura-
que aprenderam a lavar suas roupas, a fazer sua dores. Foram impedidas de amamentar seus be-
própria comida, tomando à frente das atividades bês nos cárceres, menstruaram de forma exces-
domésticas. Mas foram exceção, infelizmente: siva ou escassa conforme as sessões de torturas.
“A participação feminina nas organizações mili- Foram estupradas e sofreram violência sexual.
tantes pode vir a ser tomada como um indicador Tiveram seus corpos nus expostos para os tortu-
das rupturas iniciais que estavam ocorrendo nos radores espancá-los, queimá-los com pontas de
papéis tradicionais de gênero18 ”. cigarro ou com choques elétricos, enfiarem fios
elétricos em suas vaginas e ânus, arrebentarem
De inicio a ditadura, ao considerar que o ini- seus mamilos e cometerem estupros.
migo se encontrava no seio do povo e ao estabe-
lecer que qualquer pessoa estava sob suspeição, Houve militantes assassinadas cujos cadáve-
teve, como alvo principal, os homens guerri- res, em muitos casos, encontram-se desapareci-
lheiros. Com o desenvolvimento da luta contra dos até os dias atuais. Muitas dessas mulheres
a ditadura, a participação das mulheres tornou- foram levadas à morte, por meio de um assassi-
-se mais incômoda para a repressão que usou de nato friamente calculado, com atos de estupro,
métodos os mais perversos, reforçando o mora- mutilação inclusive genital. Outras foram assas-
lismo e preconceito machistas para desmorali- sinadas com o uso da coroa de cristo, como era
zar a participação das mulheres. Na tortura, as chamado um método de tortura, que, por meio
militantes eram tratadas pelos policiais, de um do emprego de uma cinta de aço, apertava-se o
modo geral, como putas, amantes, amasiadas e crânio até esmagá-lo.
justificavam assim os estupros nas dependên- Outras foram mortas em acidentes estrategi-
cias dos DOI-CODIs. Mesmo assim, não recu- camente planejados, como foi o caso de Zuzu
18
Ingrid Gianordoli-Nascimento, Zeidi Araujo Trindade e Maria de Fátima de Souza Santos, Mulheres e Militância, Editora UGMG, Belo Horizonte, 2012, p.44.
INFÂNCIA ROUBADA 21
Era 1965, meus pais Aldo e Maria Auxiliadora de manhã perceberia que o castelo era legal. Eu, minha mãe e minha irmã ficamos quatro
estavam curtindo o frio do inverno Sul-Ameri- Quando despertei no outro dia, estava em meses presos. Meu pai, que foi preso dias de-
cano na praia de Punta Gorda, em Montevidéu. um quarto pequeno e cinza, cheio de grades. pois, ficou seis meses na prisão. No final desse
Não foi uma escolha voluntária, até porque a período meus pais foram levados a julgamen-
melhor época para aproveitar as praias uru- Mudamos algumas vezes de “endereço”. to, em Recife. Durante a sessão, eu e minha
guaias é no verão, entre os meses de janeiro Depois do “castelo” fomos para Escola de irmã, que nessa época tinha 2 anos, ficamos
e fevereiro. Por outro lado, o melhor mesmo Aprendizes de Marinheiro de Alagoas. Uma correndo por toda sala e fazendo uma bagun-
seria ter ido para Punta del Este que é a praia vez por dia descíamos para brincar em um ça danada. Vendo essa confusão, um militar do
mais bonita e mais procurada desse pequeno pátio, cheio de lixo e ratos, que minha mãe Conselho de Sentença procurou saber o que
país. Mas o motivo não era passar férias e sim apelidou carinhosamente de Jerry. O Jerry estávamos fazendo ali. O escrivão que já estava
uma imposição do momento político no Brasil, era o ratinho esperto de um desenho anima- sensibilizado com a nossa situação disse que
que acabava de mergulhar em um período de do da época que vivia fugindo de seu algoz, estávamos presos com nossos pais. Durante o
ditadura militar que duraria aproximadamente o gato Tom. Como era pequeno, não percebi, julgamento não se tocou em nossa presença.
duas décadas. mas o “Tom” tinha nos pegado. Estávamos Todavia, o mesmo militar questionou um co-
detidos em uma prisão da marinha. Comia no ronel da PM de Alagoas por que minha mãe
Em 13 de junho de 1965, durante esse perío- restaurante dos oficiais até o dia em que um estava presa. Ele respondeu que em Alagoas
do de férias forçadas, no Sanatório Americano, oficial pediu que a minha mãe me deixasse quando não encontravam o marido prendiam
minha mãe ficaria feliz de me ver chorar pela com ele e a esposa, já que ela não tinha futu- a mulher. Com isso nossa advogada pediu a
primeira vez. Moramos no Uruguai quase um ro pra me oferecer. O que o oficial não sabia é libertação de nossa mãe. Acatado o pedido,
ano. Depois voltamos para o Brasil e fomos que o mundo dá voltas. Mais do que depres- fomos os três libertados. Meu pai ficou preso
morar em São Paulo. Mais tarde, dentro da po- sa, minha mãe me pegou pela mão e saiu dali. mais algum tempo e depois fugiu da prisão du-
lítica de integração na produção, fomos morar No dia seguinte, já estávamos comendo no rante um jogo de futebol entre os dois princi-
no Nordeste. restaurante dos soldados e dias mais tarde fo- pais times de Alagoas.
mos transferidos para outra prisão.
Tinha 3 anos e lá estávamos em mais uma
situação estranha. Durante a noite, uns “ami- Depois dessa aventura ficamos algum tempo
gos” de meus pais vieram nos buscar em nossa em Goiás, na casa de meus avós paternos. As-
pequena casa que ficava no interior de Alago-
“Uma vez por dia sim que as coisas esfriaram fomos para São Pau-
as, mais precisamente em Pariconha, distrito descíamos para brincar lo, onde um novo capítulo começava. Durante
esses anos de ditadura, o contato com nossa
de Água Branca no alto sertão. Nos levaram
de jipe para um castelo (Policlínica da PM de em um pátio, cheio família foi muito pequeno. Era uma questão de
Alagoas), em Maceió. Lembro que achei aqui- de lixo e ratos, que segurança. Conhecia apenas alguns poucos tios
e um casal de primos que moravam em São Pau-
lo estranho. Como era noite, o castelo pareceu
meio sombrio. Acreditei que quando acordasse minha mãe apelidou lo, sendo que o contato era esporádico. Sempre
passávamos as festas – aniversários, Natal e Ré-
carinhosamente veillon – sozinhos, sem contato com outros fa-
de Jerry”
À esquerda, Andre aos 5 anos
e Priscila aos 4 anos miliares. Mesmo assim, o Natal era uma gran-
no Parque do Ibirapuera
em São Paulo, 1970 de festa cercada de expectativas.
INFÂNCIA ROUBADA 23
cido. O gosto da liberdade, do esforço físico, Porto em Portugal. De 2000 a 2005 fiz parte
do contato com a natureza. Acabei ficando no do JGSPINNING, maior programa em ciclis-
Rio de Janeiro e fui trabalhar com cinema, mo de academia no mundo, convidado pelo
que era uma das paixões que eu tinha. Fiquei próprio fundador do programa Johnny Gol-
um ano no Rio de Janeiro e acabei voltando dberg. Estive representando o programa em
para Brasília. vários países da América do Sul e em duas
INFÂNCIA ROUBADA 25
Antes de iniciar meu depoimento, gostaria e meu irmão quando tinha 3 anos de idade, o resto da vida. Escolher, dar um nome a uma
de recorrer a um mito antigo que versa sobre no sertão de Alagoas, apesar de não ter lem- criança é fazer uma espécie de doação de uma
a história de um sobrevivente. Refiro-me ao brança desse episódio – deixo aqui meu depoi- história simbólica familiar. Doação que a inse-
poeta Simônides, considerado o inventor da mento na esperança que possa contribuir não re na continuidade de uma filiação, a inscreve
arte da memória na Grécia antiga. Diz o mito somente para a construção de uma memória nas linhagens maternas e paternas: uma espé-
que o poeta teria estabelecido as bases da mne- coletiva mas que, de alguma forma, ele possa cie de fio de Ariadne que lhe indica um cami-
motécnica – a arte da memória – em função de servir de dispositivo para que essa história nho, sem traçá-lo de antemão.
um acidente vivido por ele próprio. Simônides não se repita nunca mais no nosso país.
foi o único sobrevivente do desabamento do Priscila Almeida Cunha Arantes. Foi este
o nome que os meus pais me deram em 1º de
teto do salão de um banquete onde se come-
morava a vitória do pugilista grego Skopas.
“Muitas vezes quando maio de 1966 quando nasci, mas não foi este
travam totalmente desfigurados pelas ruínas. quarto, bem baixinho, Até os meus 11 anos, sempre fui Priscila
Guimarães Silva; uma criança feliz que vivia
Recorreram, então, a Simônides, o único sobre-
vivente, que graças à sua memória conseguiu
ficava uma pergunta no como muitas outras de minha idade na perife-
se recordar dos participantes do banquete, na ar: por que ele tem de ria de São Paulo com a família.
medida em que se lembrou do local ocupado
por cada um deles durante a comemoração.
escutar o som tão baixo?” Existia, por vezes, uma sensação velada que
talvez, pela minha idade na época, não conse-
Se a história de Simônides está muito distan- guia entender. As janelas da casa na avenida
Recentemente meu pai me pediu um depoi-
te do nosso tempo, por outro lado, ilustra bem Itaquera eram forradas de papel e sempre me
mento sobre as memórias da minha infância.
o embate contra o esquecimento da história. davam a impressão que estávamos esconden-
Gostaria então de compartilhar aqui alguns
do algo que eu não tinha muito claro o que era.
trechos desta carta que recebeu o título de
Aquele que testemunha, de certa forma so- Muitas vezes quando ouvia meu pai escutar a
Identidade, Nome e o Paradoxo da Liberdade:
breviveu a uma situação limite, traumática, Internacional em seu rádio pequeno, em seu
Carta aos meus Pais.
no meu caso e de meus familiares: à época da quarto, bem baixinho, ficava sempre uma per-
ditadura militar no Brasil. Como filha de pais Talvez um dos dispositivos mais antigos gunta no ar: por que ele tem de escutar o som
que foram presos, torturados, foragidos e clan- da humanidade seja o de dar nome às coisas. tão baixo? Mas os natais eram sempre muito
destinos – e eu mesma presa com minha mãe Dar nome às coisas significa dar a elas vida, gordos ao meu olhar. Recebia sempre várias
À esquerda, Priscila com 4 anos no Parque do Ibirapuera história, identidade. É assim que uma criança roupas que, apesar de serem usadas, vinham
em São Paulo, 1970 recebe um nome ao nascer, carregando-o para sempre envoltas em um lindo papel celofane
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Nessa época fui acometida por uma série de Para muitos, o nome é um bem. A continui-
desmaios, pequenos lapsos de consciência, tal- dade do nome como referente da pessoa pode,
vez um desejo real de esquecer, por um peque- em alguns casos, não se interromper com sua
no espaço de tempo, algo que me incomodava morte necessariamente. Alguns nomes perma-
em profundidade. necem vivos na memória de outros homens,
principalmente quando se referem a nomes
que contribuíram para a construção de uma
“Trago comigo esta história coletiva.
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Eu gostava de correr, mas tinha que ficar O tempo passou e apesar de tudo que me
parada. Tínhamos quinze minutos para al- foi tirado, hoje sou uma pessoa feliz dentro
moçar em um refeitório que saía para um do possível. Tenho uma filha, Maria Tereza,
pequeno pátio. Corríamos para lá, a Priscila, e um neto de 2 anos, Joaquim, que propor-
o André e eu, crianças presas políticas, que- cionam muitas alegrias e completam minha
rendo brincar. Víamos ratos enormes subin- vida. Penso que hoje eles vivem em uma so-
ciedade melhor e que eu inconscientemente
À esquerda, Rita quando criança contribuí para isso.
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Rosemary
osemary Reis Teixeira
nasceu em 26 de março de 1944, em
Goiânia (GO). Filha de Maria Reis
Resende e Joaquim Resende Barros.
Em agosto de 1962, conhece Gilberto
Franco Teixeira, com quem começa
a se relacionar (o casal segue junto
até os dias atuais). Influenciada pela
militância do avô, Pedro Doca, que foi
do Partido Comunista, iniciou sua mi-
litância na Juventude Estudantil Cató-
lica (JEC), em 1963.
Depois, passou a militar na organização
Ação Popular. Em 1965, ingressa no curso de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goias (UFG). Em
março de 1967, com o acirramento da repressão, Rose-
mary e Gilberto casam às escondidas e entram para a
clandestinidade. Em abril do mesmo ano, o casal e a fi-
lha adotiva Rita vão viver em Pariconha, interior de Ala-
goas. Lá, Rosemary passa a usar o codinome de Rosa e
Gilberto assume o codinome de Juarez Echeverria. Em
Pariconha fazem trabalho de base com os camponeses
do sertão alagoano. Rosemary atua na alfabetização
de camponeses por meio do método Paulo Freire e na
politização das mulheres da região. Em dezembro de
1968, é presa junto com sua filha e com Dodora Arantes
e seus dois filhos. Seu marido também é preso. Após
cinco meses de prisão, voltam para Goiás e seguem na
vida na clandestinidade.
Em maio de 1971, nasce a segunda filha do casal, Ulia-
na Reis Teixeira. Nessa época, Rita estava com 11 anos.
No mesmo ano Rosemary retorna à faculdade, onde é
impedida de colar grau com a turma sob o argumento
de que o histórico escolar dos dois primeiros anos não
foi encontrado. A colação de grau ocorreu somente
em 1988 quando, depois de anos de busca, um amigo
professor encontrou os referidos documentos “esque-
cidos” em uma gaveta da universidade. Em 1982 nasce
o terceiro e único filho homem do casal, Juarez (nome
escolhido em homenagem ao pai Gilberto por sua atua- 3
ção política com esse nome na clandestinidade). Juarez
viveu 10 anos e faleceu em em 1992. Hoje, Rosemary é
servidora pública estadual aposentada.
4
O ideal de uma pessoa jovem é muito forte. Eu tuações que foram frutos da minha escolha. Eu tilhei com ela na mesma intensidade. Em tempos
era jovem e possuía essa força. Desejava mudar, escolhi lutar por uma sociedade mais justa e sa- difíceis, vivemos momentos muito marcantes.
corrigir erros, fazer justiça. Lutar por um mundo bia que isso envolvia risco, mas o ideal nos mo- Devo registrar aqui um desses momentos. Faço
melhor, eliminar as diferenças. Ver pessoas des- via para a frente e o filho é parte de nós, não tem uma homenagem à solidariedade humana.
protegidas doía na minha consciência de jovem como separar a vida de pais e filhos.
A solidariedade é um sentimento que penetra
idealista, que acreditava ser possível transformar
O instinto de proteção de uma mãe não tem fundo na alma e que vive para sempre em quem
a sociedade e viver em um mundo mais justo.
limites e eu me via impedida de exercê-lo, impo- foi beneficiário dela. Eu vivi essa experiência.
Em função da repressão advinda da ditadura tente numa prisão com a minha filha sem saber o
militar, eu e Gilberto [Gilberto Franco Teixeira] Ao sair da prisão fui orientada a seguir para
que poderia acontecer no dia seguinte. A solução
tivemos de optar por deixar a vida normal e viver São Paulo com minha filha e encontrar, nessa ci-
foi viver um dia após o outro tentando minimi-
na clandestinidade. Isso naturalmente acarretou dade, em uma determinada praça, a pessoa que
zar o sofrimento da criança com um suprimento
mudanças radicais para nós e para nossa filha. me ajudaria naquele momento. Eu estava frágil e
muito grande de carinho, paciência, dedicação.
desorientada após cinco meses de prisão e tinha
Nessa época, Rita era uma menina de 5 anos, Foi uma experiência muito difícil. Quando a Rita
pouquíssimo dinheiro. São Paulo, em 1969, vivia
saudável, alegre, vivia em Goiânia, em um porto dormia, eu podia extravasar os meu próprios sen-
seus piores momentos de repressão.
seguro. Rodeada por uma família grande, muitos timentos: medo, angústia, ressentimentos, impo-
primos da sua idade, amigos. tência, receios. Apareceria uma doença amanhã? Sentada em um banco da praça com minha
O dente doeria? E se os militares tirassem a me- filha, vi se aproximar de nós e se apresentar,
Com a ditadura, para sobreviver à repressão, nina de mim? Ou me levassem para longe dela? aquele homem alto, de olhar bondoso que me
nós, Gilberto e eu tivemos que adotar outra iden- Nossa família em Goiânia não sabia da nossa pri- inspirou confiança. Seu nome era João. Tem-
tidade: “Juarez e Rosa”, e nos mudamos para o são porque fomos presos com outra identidade. pos depois soube que se tratava do Paulo Stuart
sertão alagoano. Não havia como esperar ajuda. O que restava era Wright, ex-Deputado Federal pelo Paraná, tor-
Essa mudança de vida, o convívio com pessoas apreensão e temor, dia após dia. Se os militares neiro mecânico e líder operário que estava sen-
muito pobres (camponeses sem terra e sem o mí- descobrissem nossa verdadeira identidade tudo do caçado por toda a cidade. Andamos a pé por
nimo necessário à sobrevivência) foi o lado bom, poderia piorar ainda mais. um longo tempo e nos lugares onde o clima de
o lado benéfico de toda essa história. Aprendi O pai da Rita, Juarez (Gilberto) também pre- guerra se acalmava ele carregava a Rita no colo e
muito nessa época, principalmente em termos de so em outra unidade carcerária, conquistou a demonstrava a ela todo o seu carinho. Em outros
relacionamento humano. Por incrível que pareça, confiança de um agente e através dele conse- momentos, ele caminhava à frente e nos orienta-
aprendi com a Rita, a criança que imediatamente guiu uma advogada para nos defender. Essa foi va a segui-lo à distancia até chegarmos à casa de
se integrou com todos, com a criançada do lugar, a fagulha de luz diante daquele futuro incerto. sua irmã onde nos deixou em segurança.
com a pobreza, com a alimentação diferente e É com agradecimento e grande carinho que falo Essa lembrança me emociona muito, prin-
escassa. Aprendeu a brincar com as coisas que dessa jovem advogada, destemida, valente, que cipalmente por saber que pouco tempo depois
o lugar oferecia. Para crianças, não existem fron- sem obter qualquer vantagem financeira evitou ele foi preso e torturado até a morte. Deixo mi-
teiras ou obstáculos para se viver com as diferen- que o pior acontecesse. O nome dela é Maria nha homenagem ao grande homem Paulo Stuart
ças, seja de cor, religião, situação econômica e Ligia Januzzi Jablonca. Wright que muito lutou pelo povo brasileiro.
social. A relação social é profunda, pura, sincera.
Eu já me norteava por esses princípios, mas vi Após cinco meses de prisão, conquistamos a Hoje estamos aqui, vivas, minha filha Rita e eu,
através da Rita que a prática vai muito além da liberdade, mas não o direito à vida normal, pois para contar essa história. Quantos ficaram pelo
teoria, tudo é muito simples e verdadeiro. Se nós, tivemos que viver com várias restrições por mais caminho, quantos tiveram seus sonhos rompidos,
adultos, aprendêssemos mais com as crianças, alguns anos. Tive, como mãe, que lutar para ajudar quantas vidas perdidas.
certamente teríamos um mundo melhor. minha filha a vencer seus medos, inseguranças, li-
mitações, inclusive na aprendizagem escolar pois Dizem que o tempo cura todos os pesares.
Se eu pudesse, falaria somente do lado bom da Acredito que as feridas provocadas pelas atroci-
ela somente se alfabetizou aos 9 anos de idade.
história mas não seria a história verdadeira. O es- dades da repressão nos tempos da ditadura per-
trago foi muito grande. A repressão militar des- Muitas coisas ainda poderiam ser ditas, pois a manecerão abertas para sempre na lembrança
truiu sonhos e projetos de vida que previam uma missão de uma mãe é ver o filho se realizar como de todos aqueles que foram atingidos, seja pela
vida digna para todos. Causou muitas feridas e pessoa e o trabalho para alcançar esse objetivo perda da liberdade, pela infância roubada ou pela
deixou muitas cicatrizes. nos acompanha durante toda a vida. morte prematura de muitos cujos familiares não
Minha experiência de mãe nessa época foi Vivi as dificuldades enfrentadas pela minha fi- tiveram sequer a chance de enterrá-los com a
muito sofrida. Sofri por ver a Rita passar por si- lha como se fossem minhas. As conquistas eu par- dignidade que o ser humano merece.
INFÂNCIA ROUBADA 41
Eu nasci em janeiro de 1964, o ano do Gol- tória política dos meus pais e esta, por sua
pe. Minha mãe, à época, tinha 20 anos e es- vez, à trajetória da ALN – Ação Libertadora
tudava Ciências Sociais na USP, que nessa Nacional. Inclusive, se eu tenho algum avô
época ficava ainda na Maria Antônia. Meu paterno, é o Toledo, Joaquim Câmara Fer-
pai, também jovem, trabalhava na Pfizer, reira, que estava sempre em casa e a quem
como técnico industrial e fazia pós-gradua- reencontramos em 1969 em Havana, Cuba.
ção em Economia, na USP. Ambos eram de
esquerda e militavam juntos, porém apenas No que diz respeito à repressão política,
o meu pai partiria para a luta armada. não me lembro de nenhum evento especial-
mente traumático. Ainda assim, até hoje
Minha mãe teve uma criação liberal. Meu tenho pesadelos horríveis. Com frequência
avô era um livre pensador, foi dono de livra- acordo – anteontem mesmo aconteceu – com
ria. E a minha avó, que tivera um pai repres- a certeza de ter alguém
sor e violento, teve por no quarto. Depois fiquei
princípio jamais levan- “No que diz respeito sabendo que, numa das
tar a mão para os filhos.
Juntando os dois lados, à repressão política, vezes em que a polícia
esteve em casa, reviran-
resultou que eles cul- não me lembro de do tudo, entraram no
tivaram a irreverência quarto onde eu dormia,
como modo de ser. Tan- nenhum evento acho que devia ter uns
to, que o meu tio João, especialmente 4 anos. E me lembro, na
irmão mais velho da mi-
nha mãe, também entra- traumático. Ainda mesma época, de chegar
na vila onde a gente mo-
ria para a guerrilha. Já assim, até hoje rava, no Itaim, e as crian-
na família do meu pai
o espírito era outro. Mi-
tenho pesadelos ças virem correndo me
contar que a polícia tinha
nha avó vinha de uma horríveis” estado na minha casa.
história triste, perdera Teria sido quando meu
o marido cedo, quando pai foi preso? Não sei se
meu pai tinha apenas 3 anos de idade – ele tem a ver, mas o fato é que até hoje acordo
era o primogênito. Meu avô paterno morreu com essa sensação de ter alguém estranho
num desastre aéreo na Baía da Guanabara, no quarto.
deixando minha avó viúva e grávida do ter-
ceiro filho. Aliás, toda vez que eu pouso no No meu aniversário de 5 anos, meu pai con-
aeroporto Santos Dumont, morro de medo. seguiu sair da prisão – ele foi liberado, por al-
guma razão. Tinha uma festinha na casa da
Enfim, nasci e logo depois veio o Golpe. De minha avó e eu me lembro dela chamando
forma que minha infância foi ligada à traje- “Marta, tem uma surpresa para você”. Ela me
levou até o andar de cima e lá estava meu pai.
Marta e sua mãe Maria Lygia
Guardo a imagem dele ali, de camisa verme-
em Cuba, 1970 lha, sorrindo, pronto para me abraçar.
INFÂNCIA ROUBADA 43
INFÂNCIA ROUBADA 45
Mas é um processo. E se nem todo processo Mas porque estou falando da questão da
é lento, esse em todo caso o foi, e ainda está violência nestes termos? Porque a violência,
em curso. Após mais de trinta anos de terapia, para nossa sociedade, não é um detalhe. A
descobri que carrego em mim dor e violência cada geração somam-se os “desaparecidos”
que não consigo processar. Tendo a crer que da repressão gerada por um Estado que tem
ter vivido uma infância assombrada por uma por prática perpetrar o terror, de uma polí-
instância arbitrária a ponto de matar meu pai, cia que tortura e some com as pessoas, e o
me expôs a uma tremenda fragilidade e po- pior é que muitas vezes o policial também é
tencializou todos os medos. E talvez a pior se- negro, também é bisneto de escravo e carre-
quela dessa violência seja a própria violência ga dentro de si uma violência que ninguém,
que sinto em mim agora. A verdade é que eu no fundo, consegue engolir, quem dirá dige-
não aceitei o que foi feito à minha família. Se rir. E assim vamos, tentando ser felizes. Afi-
engoli, não digeri. nal, não é o samba filho da dor?
Essa é, acho eu, a natureza profunda da
Hoje, leio minha dor e minha tristeza no
violência que está aí a nos assombrar. E é
olhar das minhas filhas, toda vez que entro
por este motivo que eu acredito que vale a
em erupção. Tanto, que não precisou muito
pena falar disso para vocês. Porque se eu
para convencê-las a participar comigo das
não visse em mim o horror... Talvez não con-
Clínicas do Testemunho. E para mim é muito
seguisse entender as suas raízes em nossa
importante que elas ouçam os depoimentos
sociedade. E acredito que é algo que mere-
de outras pessoas do grupo de terapia como
ce ser olhado, a fundo, se pretendemos fazer
forma delas me entenderem, da mesma for-
do Brasil um país melhor para se viver.
ma como eu preciso do olhar delas para me
entender.
MARTA NEHRING nasceu em São Paulo, em janeiro de
Outro dia minha filha caçula, Sofia, me 1964, filha de Norberto Nehring e Maria Lygia Quartim
mostrou a biografia do advogado e poeta de Moraes. Estudou literatura e cinema, trabalha como
Cenas do documentário 15 Filhos, de Maria de Oliveira
roteirista de cinema e televisão.
Luiz Gama, que estava lendo para a escola. e Marta Nehring, que retrata a época da ditadura
militar no Brasil por meio da memória dos filhos de
Ali consta que a mãe do Luiz Gama mantive- miltantes presos, mortos e desaparecidos
INFÂNCIA ROUBADA 47
Álbum de família
1. Norberto Nehring, morto em
24 de abril de 1970
2 e 5. Marta e a mãe Maria Lygia,
em São Paulo, 1964
3. Marta e o pai Norberto,
em São Paulo, 1964
4. Ficha de Norberto do DOPS
6. O casal Norberto e Maria Lygia
com Marta, em São Paulo, 1964
5
4
tasse trabalhar enquanto seguiria os es- (...) Especialmente dotado para matemática, Norberto
tudos universitários à noite. se distinguiu na faculdade recebendo várias ofertas para
ser instrutor (...)
Norberto foi meu primeiro namorado, aos
16 anos. Juntos começamos a participar Uma vez formado na USP (...), começou imediatamente a
da vida intelectual nos primeiros anos da década dos trabalhar em planejamento econômico, no Grupo de Pla-
sessenta (...) nejamento Integrado – GPI, um dos primeiros do gênero,
Norberto Nehring nasceu em 20 de setem- Em 1963, começa nossa vida adulta: Norberto já traba- formado por economistas e arquitetos competentes (...)
bro de 1940, em São Paulo (SP). Era o filho mais velho lhava, entramos ambos na USP (ele, Economia, e eu, Ao mesmo tempo, sua militância na ALN intensificava-
de Walter Nehring e Nice Monteiro Carneiro Nehring. Ciências Sociais) e nos casamos. Em janeiro de 1964 -se. Integrava o grupo da “casa de armas”, dado seus co-
Morto em 24 de abril de 1970. Militante da Ação Liber- nasceu Marta (...) nhecimentos de química e a enorme confiança pessoal
tadora Nacional (ALN). Mas 1964 também trouxe tristezas: o golpe militar de que nele depositava a coordenação da organização (...)
Era economista e professor da Universidade de São 1º de abril. (... ) Tínhamos ingressado no PCB assim que Na manhã do dia 7 de janeiro de 1969 uma cena insólita
Paulo. Maria Lygia Quartim de Moraes, sua esposa, entramos na faculdade. perturbou a tranquilidade da vila em que morávamos:
escreveu uma pequena biografia a seu respeito: Filiei-me primeiro, o que era fácil, na medida em que a nossa casa foi cercada por um grupo de policiais do
Norberto ficou órfão de pai muito cedo, mal chegara esmagadora maioria dos meus colegas já pertenciam DOPS, que levaram Norberto preso. Logo que foi solto,
aos 4 anos. Foi criado, assim como seus dois irmãos ao PCB. Na Faculdade de Economia as coisas eram bem após mais de dez dias na carceragem do DOPS, Norberto
menores, pela mãe e pelos avós maternos (...) mais complicadas: a esmagadora maioria do corpo do- “passou para a clandestinidade” sabendo que voltaria a
cente era de direita. (...) Foi através do marido de uma ser preso e torturado como aconteceu com todos os acu-
Uma pessoa marcante na sua adolescência foi um vi-
colega minha, que por coincidência era colega de Nor- sados do mesmo caso.
zinho, judeu-comunista e empresário, Simão, que lhe
berto, que o contato com o PCB concretizou-se (...)
revelou as atrocidades nazistas e o despertou para a Muitos dos acusados estavam sendo brutalmente
causa do socialismo. Norberto sempre foi interessado Norberto militou no PCB até a ruptura do grupo Mari- torturados e houve uma tentativa de suicídio numa tar-
e aplicado. Estudou nas boas escolas públicas da épo- ghella – passou, então, a fazer parte do grupo que tra- de em que fui visitá-lo. Além da equipe do DOPS, Nor-
ca. Terminando o ginásio, optou por um curso técnico balhava diretamente com Joaquim Câmara Ferreira, “To- berto foi interrogado por um “polícia federal”, que já
de química industrial no Mackenzie que lhe possibili- ledo” ou “Velho”, na coordenação da ALN em São Paulo. gozava de grande consideração entre os torturadores do
7 e 8. Marta em
Itanhaém, litoral de
São Paulo, 1967
9. Marta e Maria Lygia,
Cuba, 1970
10. Marta e os pais,
Norberto e Maria Lygia,
interior de São Paulo,
1968
9 10
DOPS, e que veio a se tornar muito conhecido no país: tos, seu sogro foi até o hotel e lá soube que ali nin- dicalmente a vida do país e de seus pais. O casal inte-
Romeu Tuma. guém se suicidara. O próprio inquérito contribui para grava a Ação Libertadora Nacional (ALN) e, em janei-
desmentir a versão oficial. Na requisição de exame, ro de 1969, Norberto foi preso vindo posteriormente
Em abril de 1969, Norberto saiu do país com destino a consta que teria se afogado, e no laudo necroscópi- a fugir do país. Em julho do mesmo ano, Maria Lygia e
Cuba. Marta e eu fomos ao seu encontro alguns meses co ali citado, mas nunca localizado, consta a infor- Marta foram se encontrar com ele em Cuba onde per-
depois. Ele retornou ao Brasil em abril de 1970, depois mação de que a morte se dera por asfixia. Norberto maneceram por quase uma ano. Norberto foi preso e
de uma estada em Praga, desembarcando no aeropor- foi enterrado com nome falso no Cemitério de Vila morto ao regressar ao Brasil, em abril de 1970.
to do Galeão. As circunstâncias exatas de sua morte Formosa, em São Paulo, mas a família foi comunica-
nunca puderam ser estabelecidas (...) Marta e Maria Lygia viveram no Chile até o golpe de
da apenas três meses depois. Após a exumação do Estado que derrubou Salvador Allende e depois fo-
Ficamos sabendo da morte de Norberto na França, corpo, realizaram seu reconhecimento por meio da ram viver na França. Retornaram ao Brasil em julho
através de mensagem que recebi de Toledo, segundo a arcada dentária, comprovando sua identidade. Seus de 1975.
qual, no dia 24 de abril, um caixão teria saído da OBAN restos mortais foram transferidos, então, para o jazi-
A partir de então, Maria Lygia adotou o nome de
carregando Norberto, morto na tortura, nas mãos go da família.
Maria Moraes e ajudou a criar o jornal feminista
da equipe do delegado Fleury. Um dos documentos
Nós Mulheres. Também foi jornalista na publica-
encontrados nos arquivos do DOPS/SP é uma nota à
ção O Movimento e uma das fundadoras do jornal
imprensa, assinada por Romeu Tuma, confirmando a
versão oficial de suicídio (...) Maria Lygia Quartim de Moraes nasceu Em Tempo.
em São Paulo (SP), em 18 de maio de 1943. Aos 8 anos Doutorou-se em Ciência Política pela USP (1982) ini-
A versão oficial é de que se suicidou, enforcando-se de idade conheceu Norberto Nehring que foi seu ciando sua carreira como professora universitária na
com uma gravata no quarto que ocupava no hotel Pi- maior amigo e primeiro namorado. Em 1963 casaram- Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi professo-
rajá, então conhecido bordel de policiais no centro de -se e iniciaram suas vidas universitárias. Ela cursou ra da UNESP-Ar e ingressou na UNICAMP em 1993.
São Paulo. Não foram encontrados a perícia de local, Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) Publicou livros, capítulos de livros e artigos no país
o laudo necroscópico nem as fotos do corpo. (1963-66) e ingressou no Partido Comunista Brasilei- e no exterior. A partir de setembro de 2013, preside
A versão de suicídio consta no inquérito feito pelo ro (PCB) também em 1963. a Comissão da Verdade e Memória Octavio Ianni da
delegado Ary Casagrande, onde há um bilhete que Marta, única filha do casal, nasceu em janeiro de UNICAMP.
Norberto fizera à família. Buscando esclarecer os fa- 1964, antes do golpe de Estado que viria a mudar ra-
INFÂNCIA ROUBADA 49
Meu nome é Carlos Eduardo Martins era diretor do sindicato. Com 20 anos, ele foi do todos os dias, pau de arara, choque e etc.
Ibrahin. Sou filho de José Ibrahin e Tereza eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgi- Foi trocado pelo embaixador americano. Foi
Cristina Denucci Martins. cos de Osasco. Nossa família começou a tra- para o México, foi para Cuba. A intenção de
balhar muito cedo. Aos 10 anos, sem precisar morar em Cuba era justamente se aprimorar
Meu pai foi líder sindical e minha mãe trabalhar, eu catava jornal na vizinhança para na luta armada, para voltar para o Brasil. De
atuou na luta armada no MR-8. Ela era do vender para o peixeiro embrulhar peixe na Cuba, foi para o Chile porque a ideia dele,
movimento estudantil, foi do grupo do Vla- feira. O Gabriel, meu irmão, também sempre depois de três anos em Cuba, era aprender
dimir Palmeira. Eu nasci no Panamá. Era teve essa consciência. Meu pai começou a luta como é que o Allende estava trabalhando lá.
para eu ser chileno, porque fui concebido política muito cedo. Com 20 anos de idade ele E aí aconteceu o que aconteceu. Conheceu
no Chile, mas como houve aquela fatalidade já era presidente do maior Sindicato de Me- minha mãe, tiveram que ir para o Panamá.
do golpe contra o [Salvador] Allende, meus talúrgicos daquela região, de maior liderança. Na Bélgica ele coordenou junto com pesso-
pais tiveram que invadir a Embaixada no as como [Leonel] Brizola e Cesar Maia, entre
Panamá. E então eu nasci no Panamá. outros, um processo político para pressionar
“Meu pai foi demitido por na redemocratização do Brasil. Desde o Chi-
Quando eu tinha quarenta dias de vida, fo-
mos expulsos do Panamá e deportados para justa causa, foi preso, ficou le ele já vinha fazendo isso.
a Bélgica, que foi o país que aceitou asilo sete meses no DOPS, Ele criou na Bélgica, junto com a Organiza-
político do meu pai, da minha mãe e o meu. ção das Nações Unidas, a Casa Latino Ame-
Vivemos ali por cinco anos, até a anistia. O torturado todos os dias, ricana, que tinha como objetivo abrigar, dar
primeiro marido da minha mãe foi morto na pau de arara, choque” suporte psicológico, social e financeiro para
ditadura militar. Meu pai é o segundo mari- os exilados políticos da América Latina. A
do dela, eles se conheceram no Chile. Minha partir desse trabalho, a Casa Latino Ameri-
A estratégia dele de greve era muito sin-
mãe fugiu e meu pai foi trocado pelo embai- cana pôde salvar muitas vidas, trazer muitos
gular. Ao invés dele estruturar o Sindicato,
xador americano. Todos vocês conhecem companheiros que estavam nas ditaduras,
trabalhar o Sindicato de cima para baixo,
essa história marcante. sofrendo com perigo de morte.
ele fez ao contrário. Procurou montar Co-
Meu pai começou a trabalhar com 5 anos de missões dentro das fábricas. Por isso que a Com a anistia, voltamos ao Brasil. Eu não
idade, foi engraxate. E com 14 anos foi traba- greve dele na verdade foi uma greve geral queria sair da Bélgica. Minha mãe trabalha-
lhar na Cobrasma. Fez o SENAI, e aos 16 já de metalúrgicos, porque não foi só Osasco va no Mercado Comum Europeu, meu pai
que parou, foi Guarulhos também e outras estava presidindo a Casa Latino Americana
regiões que pararam em solidariedade. Aí pela ONU, enfim, ganhando bem, com uma
meu pai foi demitido por justa causa, foi pre- estrutura. E a Bélgica é um estado de bem
À esquerda, a chegada da família
ao Brasil, após a Anistia de 1979 so, ficou preso sete meses no DOPS, tortura- estar social dos mais exemplares que existe
INFÂNCIA ROUBADA 51
tenho 39 menos 10, que só com 10 anos eu país e a justiça tem bro de 1973, filho de José Ibrahin e Tereza Cristina
Denucci Martins, formado em História (PUC RJ),
passei a existir. que vir à tona para Mestre em Engenharia de Produção com foco em Enge-
nharia de Financiamento Social (COPPE/URFJ) e Douto-
Estamos dispostos a continuar essa luta, todos nós” rando em Economia (Universidade de Coimbra – Portu-
gal), tem uma empresa de consultoria em projetos.
não só na Comissão da Verdade, mas no Mo-
vimento Sindical e no Movimento Partidário.
Meu pai atuou em três focos: Movimento da Eu vivi intensamente o exílio, intensamen-
Organização Social Civil, redemocratização te a redemocratização do Brasil. Fui subver-
e Partido Político. Ele foi filiado ao PT, PDT sivo e tirei meu título de eleitor para votar
e o último partido no qual ele militou foi o no Roberto Freire. Queria votar nele de qual-
PV. Foi fundador, por exemplo, junto comigo quer jeito. Depois eu me engajei como vice-
do CEAT, que é o Centro de Atendimento ao presidente nacional da juventude do PSDB,
Trabalhador. Durante muito tempo meu pai me engajei na eleição do Fernando Henri-
foi Secretário Geral do Conselho Consultivo que. Viajei o Brasil inteiro com essa bandei-
do CEAT. Tinha esse trabalho na área das ra. Fui assessor do senador Artur da Távola.
organizações não governamentais, e tem Fiz história na PUC e depois fiz mestrado
todo o trabalho internacional do meu pai. em Engenharia de Produção na UFRJ.
Até hoje ele é o sindicalista mais conhecido
no exterior. Eu tive a oportunidade, por ter a sorte de
ter nascido do José Ibrahin e da Tereza Cris-
Meu pai foi vice-presidente da Comissão tina, de conhecer não só meu pai e minha
de Educação para o Trabalho na OIT. Teve mãe, mas muita gente que fez, que faz parte
uma atuação grande na disseminação do da história política do nosso Brasil. Tive a
trabalho digno. Eu também tive a oportuni- oportunidade de ter um relacionamento ínti-
dade de contribuir nisso. Quando eu traba- mo com Mário Covas, com Franco Montoro,
lhei no governo Marcelo Alencar, fiz parte com Brizola, com Jacó Bittar, que era mui-
INFÂNCIA ROUBADA 53
José Ibrahin nasceu em 3 de setembro de 1947 São Paulo, onde trabalhou na organização sindical Integrou a luta armada, militando no Movimento Re-
em São Paulo (SP) e cresceu em Presidente Altino, hoje entre Osasco e São Paulo, até que em 1969 foi preso e volucionário 8 de Outubro (MR-8). Participou da orga-
município de Osasco. Aos 14 anos começou a trabalhar levado ao DOI-Codi, onde foi torturado. nização do sequestro do embaixador norte-america-
como operário na Companhia Brasileira de Materiais Em setembro de 1969, com o desfecho do sequestro no Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969.
Ferroviários (Cobrasma), ao mesmo tempo em que es- do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Foi casada com o mineiro Paulo Costa Ribeiro Bastos,
tudava no Ginásio Estadual de Presidente Altino. Aos Elbrick, foi um dos quinze presos políticos liberta- também militante do MR-8, desaparecido em julho de
17 anos, chegou ao posto de inspetor de qualidade. dos na troca, também foram libertados José Dirceu, 1972, após ser de preso por agentes da ditadura.
Aos 18 anos, em 1965, fundou ilegalmente a primeira Flávio Tavares, Vladimir Palmeira, Ricardo Zarattini, Exilada no Chile, Tereza passou a viver com José
comissão de fábrica, na Cobrasma, experiência que entre outros. Foi para o exílio, permanecendo por dez Ibrahin. Com a queda de Salvador Allende, em setem-
serviria de base para reorganização, dois anos depois, anos fora do país, vivendo no México, Cuba e Chile. bro de 1973, o casal invade a embaixada do Panamá
do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Osas- Em 1979, com a Anistia aos perseguidos políticos da e segue para o país andino, onde nasce o filho deles,
co (até então na ilegalidade). ditadura, Ibrahin retorna do exílio e foi um dos arti- Carlos. Com 40 dias de vida do bebê, a família é ex-
culadores da fundação do Partido dos Trabalhadores, pulsa do Panamá e consegue ser recebida na Bélgica,
Entre 16 e 21 de julho de 1968 liderou a primeira greve
em 1980 e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), onde ficaram até a Anistia.
de trabalhadores durante a ditadura militar no Bra-
sil, por melhores condições de trabalho e contra a em 1983. Em 1991, Ibrahin foi um dos principais arti- Na Bélgica, fez mestrado, doutorado e pós-doutora-
política de arrocho salarial, imposta pelos militares culadores da criação da Força Sindical. Posteriormen- do em ciência política e relações internacionais pela
desde 1964. Além dos trabalhadores da Cobrasma, te desentende-se com a cúpula da Força Sindical e Universidade Livre de Bruxelas.
operários das empresas Braseixos, Barreto Keller, filia-se a União Geral dos Trabalhadores (UGT), onde
No Brasil, trabalhou no Instituto de Pesquisas Tec-
Granada, Brown Boveri e Lanoflex aderiram ao movi- torna-se Secretário de Formação Política. Ibrahin fa-
nológicas (IPT) coordenando o setor de transferência
mento grevista. Ao todo, 22 mil trabalhadores aderi- leceu na madrugada do dia 1º para o dia 2 de maio de
de tecnologia. Criou e coordenou a coordenadoria de
ram à paralisação. 2013, aos 66 anos.
Ciência e Tecnologia da prefeitura do Rio de Janeiro,
Ibrahin tinha apenas 21 anos de idade na época em hoje Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia. É
que comandou a greve. Foi demitido e com os direitos Tereza Cristina Denucci Martins fundadora da Fundação BioRIO. Foi gestora de proje-
políticos cassados, caiu na clandestinidade e passou nasceu em 23 de outubro de 1947, em Araxá (MG). Es- tos no Sebrae-RJ e participou de diversos projetos com
para a militância armada, ingressando na Vanguarda tudou história na Faculdade Nacional, hoje Universi- foco na difusão de ciência e tecnologia e transferência
Popular Revolucionária (VPR). A VPR o destacou para dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). internacional. Trabalhou na área de qualificação.
INFÂNCIA ROUBADA 55
Sou filha de Aderval Alves Coqueiro, assassi- meiras lembranças, apesar de vagas, são dos Nós moramos no Mato Grosso, na Bahia, vol-
nado pela ditadura em 1971 e o primeiro preso desaparecimentos, porque de vez em quando tamos para São Paulo. Mudávamos constan-
político banido – enviado à Argélia – a retor- ele sumia por uns dias, não havia muita expli- temente, não podíamos ficar em uma mesma
nar ao Brasil após o seu exílio. Ele foi um dos cação para isso. E, por vezes, havia algumas escola o tempo todo. Tínhamos muito medo,
quarenta presos políticos trocados pelo embai- reuniões lá em casa. E quando a situação foi muita insegurança. Depois comecei a enten-
xador alemão Von Holleben, em junho de 1970. ficando mais aguda e começaram as persegui- der que eu podia perder o meu pai. Eu acho que
ções mesmo, aí começaram a se dispersar. foi aí que comecei a sentir mais medo. Quando
Essa é a primeira vez que nós filhos somos ou- meu pai teve que ir para a clandestinidade, a
vidos. É a primeira vez que temos a oportunida- vida ficou complicada.
de de abrir o coração e falar sobre essas mazelas “Comecei a perceber o
e sobre um momento histórico que para nós, Quando tivemos que nos mudar de Diadema,
crianças naquela época, foi muito difícil. que estava acontecendo eu tinha 7 ou 8 anos. Nós fomos de Kombi para
Nós, como crianças, não tínhamos capacidade
quando tivemos que o Mato Grosso e ficamos na casa de um primo
da minha mãe ou meu pai, que tinha um sítio,
de compreender tudo. Isso é um pouco proble- fugir para valer pela onde moramos por um tempo. Meu pai ficou um
mático, e o momento histórico era aterrorizante.
primeira vez” período curto conosco, logo depois voltou para
A importância deste momento é conseguir- São Paulo. Eu acho que a maior preocupação
mos relembrar e falar pela primeira vez sobre dele naquele momento era garantir a segurança
os efeitos daqueles momentos difíceis nas nos- Foi nessa época que começamos a deixar um da minha mãe e das filhas.
sas vidas. Eu nasci em 1960, tinha 4 anos quan- pouco de viver a vida familiar, porque cada vez
No regresso a São Paulo, numa noite, foi alu-
do se deu o golpe. menos dava para vivermos juntos. E comecei a
gada uma casa, em Santo Amaro. Lá não tinha
ouvir que tínhamos que ter cuidado com o que
Na época, acho que ainda estávamos em Bra- fogão, camas, geladeira. Porque a gente sim-
falávamos na escola, não podíamos brincar com
sília, porque meu pai era baiano e migrou para plesmente mudava de um minuto para o outro.
a amiguinha da vizinha, não podíamos ficar fora
Brasília quando eu era muito pequena. Foi can- Alugamos a casa num dia, e na manhã seguinte,
do portão na rua brincando. Era uma série de
dango lá e viemos para São Paulo quando eu num posto de gasolina, os companheiros foram
coisas que não conseguíamos entender na épo-
ainda era muito pequena. Em São Paulo, come- avisar que meu pai tinha sido preso. Nós tive-
ca. Eu tinha 7 anos e não conseguia entender o
çou a trabalhar como operário, no ABC. mos que sair novamente da casa por questões
porquê daquela situação.
de segurança.
Lembro bem da nossa vida a partir do mo- Comecei a perceber o que estava acontecen- Quando meu pai ainda estava preso, me ma-
mento que moramos no ABCD, em Diadema. do quando tivemos que fugir para valer pela goou muito eu não poder vê-lo em todas as visi-
Ele já era integrado à luta, porque foi em Bra- primeira vez, porque o meu pai já estava sen- tas na cadeia porque tinha que estudar. Eu tinha
sília que entrou no movimento. Minhas pri- do procurado. E nós tínhamos que começar a que avançar no estudo porque estava atrasada.
viver nos chamados aparelhos, que eram casas
À esquerda, Suely e Isaura no Hotel
e apartamentos clandestinos, considerados Quando ele foi preso, passou-se um tempo
Havana Libre em Havana, Cuba, 1973 mais seguros. sem que ninguém soubesse dele. Minha mãe
INFÂNCIA ROUBADA 57
Quando meu pai foi banido, a sensação foi Quando chegamos ao Rio, era Carnaval. Fica-
de mistura de um sentimento de felicidade, mos num hotel pequeno e barato, numa rua mo-
porque ele não ia mais ser torturado, não ia vimentada cujo nome também não lembro. Meu
ser mais magoado, não ia ser mais ferido, com avô foi ao IML para fazer o reconhecimento.
uma sensação de perda, porque eu achei que Tudo aconteceu de forma muito rápida, não ha-
não o veria nunca mais. Ou, talvez, que fos- via tempo para fazer o luto. Acho que nenhum
se vê-lo apenas quando fosse uma adulta e de nós teve tempo de viver o luto na época.
fosse visitá-lo, porque ele não poderia voltar
Meu avô reconheceu o corpo, e na hora do
nunca mais.
enterro, abriram o caixão, a minha mãe beijou-
Para mim, o exílio do meu pai foi uma perda lhe a mão, eu olhei, fecharam o caixão, levaram,
porque não havia possibilidade de vê-lo nunca enterraram e nós voltamos para São Paulo. Foi
mais. Como efetivamente não houve. Só tornei uma coisa super rápida, sem tempo de assi-
a vê-lo já no caixão para enterrar. milar, sem tempo de trabalhar na cabeça sem
tempo de pensar.
Então, para mim, o exílio do meu pai foi re-
almente a despedida. Porque a segunda des- Depois, em São Paulo, não demorou muito
pedida foi a mais cruel, já no caixão, pois ele para nós recebermos a informação de que es-
foi assassinado depois que retornou ao Brasil tavam procurando a minha mãe, pelo menos
em 1971. O momento do enterro do meu pai foi foi o que ouvimos na época. Nós não tínhamos
muito complicado, porque deu-se a notícia nos estrutura psicológica, não tínhamos condi-
meios de comunicação, com manchetes, como: ções de continuar morando na cidade. Aí veio
“Terrorista banido volta ao Brasil e morre”. o processo de organização para nos levar ao
Chile. Este processo também foi terrível. Não
Meu pai não era terrorista, para mim ele nun- tivemos tempo de luto, de nada. Nem tempo de
ca foi terrorista. O choque foi enorme, porque despedir da nossa família.
só brasileiros. Mas a nossa experiência anterior São Paulo. Foi uma Nós nunca tivemos antes oportunidade de
aqui no Brasil tinha sido muito amarga. conversar sobre isso ou colocar para fora esta
coisa super rápida” ferida que a gente carregou e estamos carregan-
Eu, na condição de criança, não estava pre- do há tantos anos. Porque foram momentos de
parada para nada naquele momento. Você A chegada em Cuba foi na condição de crian- terror e perda na vida da gente que nós carrega-
não tem infância e o fato de não ter infância, é ça que não sabe o que lhe espera, depois de mos a vida toda.
perder referências, não ter raízes verdadeiras. tanta coisa que aconteceu. Mas foi a melhor
Quando criança, a gente precisa de uma refe- coisa que aconteceu conosco. Lá nós fomos Nós não falamos sobre isso porque é um pro-
rência de pessoas com quem se conversa, que muito bem atendidos, recebidos, acolhidos. cesso, quando se é uma criança, primeiro você
vão guiar o teu caminho de certa forma. quer esquecer. Quando você já passou por tan-
Aí eu já estava com 11 para 12 anos. Acho que to terror, medo, perda, quando você chega num
E, como mudávamos muito, a gente não ti- minha irmã tinha 5, 6 anos. Em Cuba, tinha os lugar onde encontra paz, você quer esquecer
nha isso. Porque lugares são referências. Eu companheiros milicianos que usavam calça o que aconteceu, prefere não falar, prefere não
fui entender muito tempo depois porque pas- verde, camisa azul. Eu tinha medo de polícia tocar no assunto e quer desfrutar ao máximo
sei por isso, o quanto é importante para uma aqui no Brasil, no Chile eu tinha medo de po- esta paz e segurança que te é oferecida.
criança seguir o curso, ficar bastante tempo na lícia e claro, quando eu cheguei em Cuba, eu
mesma escola, com os mesmos amigos, com as tinha medo de polícia. E foi o que todos nós encontramos em Cuba.
mesmas relações. A cada mudança rápida na Aí eu retorno para o Brasil, veio a Anistia, aí já
vida são referências que você vai perdendo e Os companheiros brasileiros falavam, “Olha, não éramos mais crianças, já éramos todos jo-
não recupera mais. desta polícia aqui você não precisa ter medo. A vens. Todo mundo tinha 18, 19, 20 anos, maiores.
polícia aqui é amiga, eles não fazem nada, ao Aí vem a proposta do retorno ao Brasil.
Depois, a situação no Chile, a sobrevivência, contrário. Mas eu lembro que a gente, eu acho
foi ficando muito crítica, porque começaram a que não fui só eu, mas na época a gente queria A partir de 1979, 1980 começamos a voltar.
faltar coisas no supermercado, porque a direita manter distância de polícia”. Com o tempo, nós Se tivessem me dado a possibilidade de esco-
INFÂNCIA ROUBADA 59
INFÂNCIA ROUBADA 61
Meu nome é Célia Silva Coqueiro, sou filha de to fuzilado em 6 de fevereiro, seis dias depois Eu tinha só 3 anos e meio, mas me lem-
Isaura Silva Coqueiro e Aderval Alves Coqueiro. de sua entrada no Brasil, em 30 de janeiro. Na bro de uma cena muito clara. Minha mãe me
Meu pai era militante. Primeiro ele foi do Parti- verdade, o aparelho onde ele estava no Rio de conta que isso realmente aconteceu. Está-
do Comunista, fez um trabalho de base com os Janeiro foi entregue por um dos companheiros vamos muito próximas do presídio, já quase
metalúrgicos do ABC, participou da Fundação com quem treinou em Cuba e que retornou an- entrando. Minha mãe me vestia com aquelas
do Sindicato dos Metalúrgicos e com o avanço tes ao Brasil. E, naquele momento, trabalhava calcinhas cheias de renda e ela enfiou os
do golpe ele acabou caindo na clandestinidade para a repressão. maços de cigarro na calcinha para poder dar
e participando das organizações armadas. En- ao meu pai.
tão foi para a Ala Vermelha do PCdoB, e depois, Quando eu nasci, em julho de 1965, meu pai
numa divergência, fundou com o Devanir de militava tanto no sindicalismo como na Ala Ver- Também me recordo que, enquanto meu
Carvalho o Movimento Revolucionário Tira- melha do PCdoB. Ele era muito ativo dentro das pai estava preso, minha mãe tinha pontos
dentes (MRT), que foi a última organização na atividades políticas e, portanto, muito visado com os companheiros de organização de meu
qual meu pai militou. Ele foi preso em maio de pelas forças de direita, pela polícia política. Lem- pai, como o Devanir. Ele pedia para a minha
1969, quando eu ainda não tinha 4 anos comple- bro-me muito pouco disso porque era muito pe- mãe passar informações para o meu pai. E,
tos. Foi preso pelo delegado Sérgio Paranhos quena. Minha irmã, que é cinco anos mais velha, numa determinada época, ele passou um bi-
Fleury, levado ao DOPS/SP e torturado. Ficou deve se lembrar de muito mais coisas do que eu. lhete todo enroladinho. Minha mãe costurou
três meses incomunicável, sendo torturado, e esse bilhete na barra da saia dela para poder
depois foi levado para o presídio Tiradentes, “As pessoas me perguntam levar essa informação, que nem ela podia ler,
para o meu pai.
onde ficou mais uns sete meses. se me lembro do meu
No total, ele ficou preso um ano e só saiu tro- pai e o que eu posso dizer Eu não me recordo da fase em que meu pai
saiu banido, em junho de 1970, trocado pelo
cado pelo Embaixador alemão. O rapto do em-
baixador alemão ocorreu em junho de 1970, um é que me recordo de Embaixador alemão. Mas minha mãe conta
que nós não fomos ao aeroporto. As notícias
ano depois da prisão de meu pai. O nome dele uma visita que fiz a ele saíam no jornal, e meu pai escrevia muito
foi um dos que foi solicitado entre quarenta
presos políticos trocados pelo embaixador. Ba- quando foi preso” para nós da Argélia. Eu tenho todas as car-
nido, foi para a Argélia e de lá para Cuba, fazer tas, que anexei junto ao processo de Anistia
treinamento de guerrilha porque a ideia dele Acho que o nosso psicológico é muito estra- dele. Tem uma das cartas, inclusive, que ele
era retornar ao Brasil para continuar a luta. nho. Às vezes apagamos coisas que não quere- manda para os companheiros do presídio
mos lembrar e lembramos de coisas que que- Tiradentes. Eu as guardo com muito cuida-
Depois do treinamento em Cuba, ele retor- remos. As pessoas me perguntam muito se me do, já estão todas amarelinhas, se desfazendo.
nou ao Brasil num esquema da VAR-Palmares, lembro do meu pai e o que eu posso dizer é que Ele sentia muitas saudades, e as cartas eram
que foi comandado pelo James Allen. Foi mor- me recordo de uma visita que fiz a ele quando muito íntimas. Ele sabia que todas as cartas
foi preso. Eu fui ao presídio Tiradentes, onde seriam interceptadas, e por isso não falava
era proibido receber cigarros e o meu pai fu- além do que tinha que falar, de saudades da
À esquerda, Célia no Hotel Havana Libre
em Havana, Cuba, 1973 mava muito. família, das filhas.
INFÂNCIA ROUBADA 63
INFÂNCIA ROUBADA 65
5. Em Diadema, onde 7
Aderval fundou a
primeira Sociedade
de Amigos de Vila
Nogueira
6 e 7. Fotos de Aderval
Coqueiro tiradas no
5 DOPS, pouco antes do
banimento
Os documentos
8. Documentos de Aderval entregues à
Isaura antes de entrar na clandestini-
dade: “Isaura, esses documentos não
me servem para mais nada, guarde que
para você talvez algum dia sirvam”
9. Fichas de Aderval do DOPS
A manchete
10. Manchete de jornal onde a família tomou
conhecimento da volta cladestina de Aderval ao
Brasil e sua morte imediata – documento encontrado
em prontuário do DOPS, no Arquivo do Estado
de São Paulo
10
INFÂNCIA ROUBADA 69
Querida Isaura
Desejo que ao receber esta, estejam todos bem de saúde, pois isto para mim é motivo
de satisfação. Penso que a situação para vocês deve ter piorado, depois dos últimos
acontecimentos, mas mantenham calmos, com calma e coragem tudo se vence.
Companheiros, a nossa viagem foi boa, um pouco cansativa devido à distância, muitas
horas de viagem, mas aqui as coisas são diferentes, já estamos todos recuperados quem
estava rebentado foi submetido a tratamento, também estão bons. Agora depois das
festas da alegria e da emoção, vem a saudade, a preocupação com a situação de vocês e
de nossas famílias, ainda não recebi cartas de casa, já enviei duas cartas e um telegrama,
tudo isto deixa a gente preocupado, mas espero que tudo seja resolvido. Podem estar
certos de que não esqueço vocês, sofremos juntos um bom tempo e isto deixa na gente
um apego aos companheiros. Envio abraços a todos vocês, um abração a Pereira, Beto,
Takao, Manoel Cirilo, Fernando, Marujo e mais todos sem exceção. A Joel, Jairo, Ancelmo
e você. Aquele abraço de um companheiro que podem estar certos não esquece vocês.
1 2 3
INFÂNCIA ROUBADA 71
Voltamos para São Paulo. Fomos morar clandes- entrado em contato comigo ainda, ele estava no o povo cubano é muito solidário, muito alegre.
tinos e as meninas não podiam nem estudar nem Rio e eu em São Paulo. Lá era tranquilo, as meninas puderam estudar, a
brincar com os vizinhos. E elas se ressentiam de gente tinha tudo, os cubanos davam tudo, casa,
não poder brincar com as meninas da vizinha. Tivemos que ir para o Rio. Levei as crianças, moradia, escola das meninas. Foi a época que fi-
que viram o pai morto no caixão. A Célia, que ti- camos mais tranquilas.
Durante a clandestinidade elas ficaram numa nha 4 anos, fala: “Eu não lembro muito do meu
espécie de prisão. Não era em todo lugar que eu pai, não lembro muito da cadeia. A lembrança Eu não fui presa, mas não podia voltar para o
podia levá-las para passear. Isso afetava a gente e maior que eu tenho é dele no caixão”. Brasil, porque tinha a morte do meu marido e po-
afetava as crianças também. Sobre o pai estar dis- dia ser presa.
tante, eu explicava para as meninas que ele estava Foi muito difícil para mim, para as meninas, para
o meu sogro. Foi um susto muito grande, a gente Aí chegou a época da Anistia e foi quando vol-
trabalhando. Eu dizia “o pai foi para São Paulo”.
não esperava que ele estivesse no Brasil e de re- tei ao Brasil. Fui a segunda pessoa a voltar, pri-
A Suely começou a estudar com 8, 9 anos; quan- pente vimos na tevê que tinha sido assassinado. meiro veio uma amiga nossa, e depois nós. Che-
do o pai foi preso eu matriculei ela na escola. Meu Foi a vizinha que viu a notícia com o nome do meu gamos no dia da Anistia. Tinha um advogado, o
marido ficou preso por um ano. Eu levava elas para marido envolvido e foi em casa me chamar. Idibal Pivetta, aqui no Brasil que esteve em Cuba.
visitar o pai na prisão. A mais velha ia a cada quin- Conversamos com ele, que ficou preparado para
ze dias por conta da escola, para não faltar na aula Como podiam ficar perseguindo a mim e às receber pessoas que estavam voltando do exte-
todas as vezes que íamos visitá-lo. A pequena eu meninas, nós fomos embora do Brasil. Fomos rior, de Cuba. Ele nos recebeu, nos esperou no
levava toda vez que ia, às quartas-feiras. para o Chile, onde moramos um ano e pouco. aeroporto.
Depois decidimos ir para Cuba, que era o único
Elas se ressentiam muito de o pai estar preso. lugar onde eu sabia que estaríamos seguros, que Quando cheguei, houve uma pequena inves-
Não podíamos falar o motivo da prisão, tinha que as meninas poderiam estudar e ter tudo que o tigação no aeroporto. Me perguntavam o mo-
inventar uma desculpa, não podia mentir nem governo cubano dava. Mandaram um convite de tivo de eu ter ido à Cuba, aquelas provocações.
falar a verdade. Quando nós chegamos do Mato Cuba e eu fui com elas. Moramos sete anos lá e Falei que tinha sido muito bem tratada em Cuba.
Grosso, já fazia três meses que ele estava preso. Eu um ano e pouco no Chile. Foram, no total, oito E quando saí, a minha família estava no aeropor-
vi fotos dele no jornal com a cara toda inchada. anos fora do Brasil. Quando voltamos, a Célia es- to nos esperando. Na chegada, a gente leva um
tava com 14 anos. impacto, principalmente as meninas que ficaram
Quando alguém caía, volta e meia ele ia para
fora do país por tantos anos. Elas sentiam muita
a tortura. Mas quando nos encontramos, senti
Já tínhamos muitos amigos que estavam em falta de Cuba e depois, com o tempo, foram se
ele muito abatido, muito magro, estava com uma
Cuba, os Carvalho, a Dina, viúva do Devanir, os adaptando.
costela quebrada, com problema no ouvido.
filhos da Dina. No começo, as meninas sentiram,
De tudo que as meninas passaram, a prisão do
Ele ficou um ano na cadeia e quando foi para mas logo aprenderam o idioma, sentiram intimi-
pai marcou muito. Mas a morte foi o que mais
a Argélia, banido, conversávamos por cartas. dade com o espanhol, eu que demorei a aprender.
marcou, para mim também. Fiquei sabendo
Quando fez oito meses que ele estava fora do Lá elas brincavam com as meninas da vizinha.
como ele entrou no Brasil agora quarenta anos
Brasil, ele entrou clandestino no país. Eu não sa- Tinha aquela saudade da família e tal. Para mim
depois. Eu nem sabia como ele tinha entrado,
bia que ele estava vindo. foi difícil. Fui mais por causa delas, mas sincera-
qual era organização que ele estava, como ele
mente, eu senti muito.
Foi quando foi morto. Fiquei sabendo que ele tinha morrido.
estava no Brasil na hora da notícia da morte dele, Em Cuba aí sim me senti segura, com as me-
no Rio. A gente nem sabia, ele ainda não tinha ninas seguras. O clima de lá é igual ao da Bahia,
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Eu sou Virgílio Gomes da Silva Filho, filho Fomos retirados às pressas da casa e levados meu pai. Eles não se dirigiam tanto a mim, mas
de Virgílio Gomes da Silva. Há minutos atrás para o carro da polícia. Quando passei por um ao meu irmão, perguntando onde estavam as
um companheiro me perguntava se notamos dos carros, vi uma outra imagem muito forte armas, onde estava o meu pai, quem eram os
que tínhamos ficado com alguma sequela por que ficou gravada na minha memória. Foi de companheiros do meu pai, quem visitava a mi-
conta do que aconteceu conosco. Eu falo que uma pessoa que eu não reconheci, que estava nha casa. E obviamente não tínhamos respos-
não. Porém, sempre que tocamos nesse tema sentada no banco de trás do carro, todo amorda- tas para essas perguntas. É totalmente absurdo
eu não consigo falar. Mas vou falar. O que sem- çado, ensanguentado. Estava sem camisa, com pessoas que se diziam profissionais da lei inter-
pre me vem à memória é a nossa relação fami- uma faixa no peito, olho todo roxo. Depois eu rogar crianças sobre uma coisa para as quais
liar. Assim como a vida de qualquer família da vim saber que esse era o meu tio Francisco Go- elas sabiam que não tínhamos resposta. Não sei
classe operária naquela época, nós tínhamos mes da Silva, o Chiquinho, irmão do meu pai. qual era o objetivo deles fazendo tais perguntas
poucas coisas, mas éramos felizes. O convívio Isso me marcou muito. Acho que me marcou em tom de interrogatório, de intimidação.
era bom e alegre. Foi assim até que comecei tanto porque eu percebi que a brutalidade que
a perceber que o meu pai não estava tão pre- eles cometeram entrando em casa iria resultar Eu tinha 6 anos, o Vlademir 7 e pouco, o Gre-
sente. Muitas vezes ele tinha que se ausentar e no que eu estava vendo dentro do carro. O que gório tinha 2 e a Isabel quatro meses. O curio-
hoje sabemos o porquê. A luta dele exigia isso fizeram lá dentro com o Manoel Cyrillo ia se tor- so é que nessa data em que fomos sequestra-
para a segurança da família. nar aquilo que eu estava vendo dentro do carro. dos pela polícia, o meu pai já tinha sido preso e
provavelmente já estava até sendo morto. Mas
Na época, eu tinha 6 anos de idade já com-
pletados. Estávamos em São Sebastião num dia
“Eles não se dirigiam eles continuavam perguntando pelo Virgílio.
Não dá para entender. Acho que era um negó-
chuvoso, ansiosos para ir à praia, mas a chuva tanto a mim, mas ao meu cio mórbido, doentio. Eu imagino que quando
não nos deixava. Na esperança de que o sol apa-
recesse, eu e meu irmão [Vlademir] estávamos
irmão, perguntando onde prenderam o Virgílio automaticamente todo
mundo ficou sabendo do troféu que eles ti-
sentados na varanda da casa quando vimos se estavam as armas, onde nham conseguido, mas ainda assim continu-
aproximar uma comitiva de três ou quatro car-
ros pretos. Eles desciam na frente de uma casa,
estava o meu pai, quem aram torturando as pessoas, perguntando por
alguém que já tinham matado. Então, da Ope-
todos entravam e saíam, entravam no carro de eram os companheiros ração Bandeirante fomos levados ao Juizado
novo, voltavam, andavam mais, desciam em ou-
tra casa e assim iam fazendo batidas em cada
do meu pai, quem visitava de Menores, uma casa com muitas crianças.
casa. Isso até chegar na frente da nossa, onde a minha casa” [Neste instante, Ilda Martins da Silva, mãe
entraram. Alguns pela janela, outro pelos fun- de Virgílio, interrompe e diz:] “Acho que antes
dos, outro pela frente. Foram empurrando tudo. Estava chovendo na estrada e a forma impru- vocês estiveram no DOPS por dois dias. O Vla-
Estavam todos armados com metralhadoras, re- dente como dirigiam ocasionou um acidente. demir diz isso”.
vólveres. O que eu mais lembro na época, o que O carro rodopiou e capotou. Minha mãe estava
mais me marcou foi o jeito que eles entraram com a Isabel nos braços e a preocupação com Na minha memória de 6 anos, tem coisas que
e pegaram o Manoel Cyrillo. Jogaram-no no ela era tão grande que minha mãe se esqueceu eu me perco. Lembro que a gente ficou num
chão, começaram a dar chutes nele. Eram cinco de se proteger. Ao final, ela acabou desmaian- lugar que dava para ver o Minhocão, mas não
ou seis em cima do Cyrillo e o resto tudo ba- do. Isso nos apavorou ainda mais, ver a minha sei se foi antes ou depois. Mas sempre acom-
gunçando a casa. Aquilo era um caos na minha mãe desacordada com a Isa nos braços e nós panhado por aquela mulher e outro cara. Mas,
cabeça. Não sabia o que estava acontecendo. Es- não sabíamos o que fazer. a partir daí, o que mais me marcou foi o Juiza-
távamos minha mãe, o Vlademir, a Isabel e eu. do de Menores, que era um lugar onde tinha
Não sei o quanto de tempo isso durou. Aí me lembro de nós já na Operação Bandei- muitas crianças. Dormíamos todos numa sala
rante. Estávamos sentados numa sala pequena, onde havia camas separadas. E em outro quar-
eu e o meu irmão Vlademir. Nesse momento, a to minha irmã ficava num berçário, onde tinha
À esquerda, Virgílio Filho, na casa
dos tios, durante a prisão de sua
Isabel já não estava mais conosco. E uma mu- outras crianças de berço também. Era numa
mãe, em São Paulo, 1969 lher insistia muito em perguntar onde estava casa, que não sei onde, não sei o endereço.
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A vida em exílios...
1. Gregório, Isabel e Virgílio na casa da Iara Xavier, no
aniversário do seu filho Arnaldo, em Cuba, 1976. Ao fundo foto
de Carlos Marighella coberta por bexigas verde e amarela
2. Ilda e Virgílio dançando, Cuba, 1985
3. Cédula de Identidade de Isabel Gomes, Chile, 1972
4. Gregório em Cuba, 1983
5. Vlademir em Cuba, 1982
6. Vlademir, Ilda, Teresa, esposa do Vlademir,
e Isabel em Cuba, 1984
7. Carteira de estudante de Virgílio, Cuba, 1978
8. Ilda e Isabel em Cuba, 1986
9. D. Isabel, mãe de Virgílio, em viagem à Cuba, com Isabel,
Gregório, Ilda, Virgílio, Niurkis e um amigo da família.
Foto tirada em frente ao prédio onde a família morava, 1985
10. Gregório, Isabel, Virgílio, Ilda e Vlademir no Brasil, 2010
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Acho que a minha história todo mundo já meses, embora eu ainda estivesse incomuni-
conhece bem, então só vou reforçar. Fui pre- cável, deixaram a Isa entrar no presídio. Ela
sa em São Sebastião, com três dos meus qua- era bebê, tinha uns oito meses, ainda não
tro filhos. O Gregório não foi preso porque andava. Eu fiquei louca com a minha filha lá.
estava com a minha sogra. Foram presos o Passeava com ela, mostrava para uma, para
Virgílio, com 6 anos, o Vlademir, com qua- outra. Até que caí na escada. Havia uma es-
se 8 e a Isabel, com quatro meses. No cami- cada da torre para outras celas e torci o pé e
nho de São Sebastião para São Paulo houve caí. Chamaram a polícia, que veio, me alge-
um acidente sobre o qual eu nunca falei. O mou, me colocou numa maca e levou para
carro capotou, eu desmaiei, os meus filhos o hospital. Na saída, entreguei a Isa para a
estavam junto comigo e viram o acidente minha irmã que estava lá esperando. Meus
também. Fui levada ao hospital para ver se filhos estavam lá também, mas acho que
tinha me machucado. Depois viemos para eles não me viram deitada na maca.
São Paulo e fomos diretamente para a Ope-
ração Bandeirante, onde começaram a me Tem também a história do álbum de fo-
interrogar, fazer perguntas sobre o Virgílio. tografias. Quando me entregaram as foto-
grafias no presídio para ver os meninos, as
Eu falei para eles que tinha as crianças carcereiras vieram na hora que terminou a
pequenas, que a Isabel precisava se ali- visita e queriam que eu entregasse as foto-
mentar e eu precisava de alimentação para grafias porque eu estava incomunicável. En-
eles. Então deram uma mamadeira para a tão as companheiras todas se revoltaram, fa-
Isa e depois fui separada dos meus filhos. laram: “Como que iam pegar a fotografias?”
Sei que eles sofreram. E eu sofri ainda mais, Disseram que fotografia não transmitia
porque não sabia nada e aquela situação nada, que eram apenas os meus filhos. Uma
era dura para mim, sozinha na Operação das carcereiras falou que não, que eu não po-
Bandeirante, sem ter notícias de ninguém e dia ficar com as fotos deles porque estava in-
perder o que era mais querido para mim, os comunicável. Mas as companheiras todas se
meus filhos. revoltaram e eu consegui ficar com as fotos.
Fiquei incomunicável por quatro meses São coisas que vão marcando, a gente vai
no presídio. Todo mundo tinha visita, mas lembrando aos poucos e aí cada coisa é uma
eu não. Diziam que eu era muito perigosa mais dura que a outra, mais triste, e cada coi-
e não podia ter visita. Meus filhos iam todo sa que a gente vai lembrando é como se desse
domingo me visitar, mas não deixavam eles uma punhalada. Eu peço desculpas. A gente
entrarem. Até que um dia, depois de quatro chora é porque é duro mesmo, quem passou
por isso sabe que é difícil a gente relembrar
Ilda, ainda solteira do passado sem chorar.
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Sempre que a gente fala desses assuntos, desapareçam. Porque se a polícia chegar a para mim”. Nós fomos formando uma fa-
as pessoas têm uma tendência a achar que gente tem que sair correndo”. Parece ma- mília. Não era uma família biológica, mas
filho de comunista é amargurado, mal-hu- luco dizer isso para crianças. Mas quem é foi mais importante e mais significativa do
morado, irritadiço. Somos seres humanos filho de nordestino entende. Nordestino fala que a nossa própria, com quem nós não
como todos os outros. Passamos por um claramente com os filhos. Nossos pais eram convivemos.
processo difícil, sem dúvida nenhuma, mas muito claros, muito objetivos quando con-
isso não nos tornou monstros e nem insen- versavam com a gente. Eu era perdidamente apaixonada pelo
síveis. Temos a nossa dor, claro. Todos nós Bacuri, porque ele tinha olhos lindos. Ele
temos. Até os filhos dos comunistas. Ao “Nós perdemos me pegava no colo e eu ficava olhando para
contrário do que dizem, que comunista a inocência muito aquele homem. Acho que meu sonho era ca-
sar com um homem de olho claro por conta
não tem sentimento.
cedo. Porém, perder a do Bacuri. Eu olhava para ele, aquele ho-
Sou Ângela Telma Oliveira Lucena. Sou mem tão bonito. E falava para minha mãe:
filha do Doutor, que era o apelido do meu
inocência não significa “Ele é tão bonito, não é?” Muitos anos de-
pai. Como ele era um cara de extrema in- que nós também não pois, casei com um homem de olhos azuis.
teligência, as pessoas o chamavam assim,
apesar de ele ser analfabeto. Minha mãe, fôssemos crianças Então, fomos tendo várias famílias, vários
Damaris Oliveira Lucena, era operária e a e tivéssemos irmãos, primos, tios. Para falar a verdade,
nossa casa sempre foi um ponto de reunião de muita gente eu vim a descobrir o nome
dos companheiros e de muito movimento. momentos felizes” recentemente. Eu não sabia como eles se
chamavam. Essa convivência com os com-
Assim, eu poderia dizer que nós perde- Então, no momento em que ficamos panheiros foi muito forte, muito marcante,
mos a inocência muito cedo. Porém, perder clandestinos, para lá e para cá, aconteceu porque eles faziam o papel dos pais que
a inocência não significa que nós também uma coisa muito curiosa. É uma lembrança não estavam ali. Ficávamos nos aparelhos,
não fôssemos crianças e tivéssemos mo- muito boa que eu tenho, porque, na verda- dormíamos aqui e acordávamos ali. Um
mentos felizes. O que tínhamos era muita de, eu tive muitos pais. E tem um pai em penteava o cabelo e o outro escovava os
clareza sobre a atividade dos nossos pais. especial que eu quero destacar aqui, que dentes. Você dormia com um companheiro
Sabíamos no que eles estavam envolvidos, me tratou com muito carinho, com muito de noite e quando acordava já era outro.
embora não imaginássemos a magnitude respeito, que era o Eduardo Leite Bacuri.
e os desdobramentos que poderiam trazer. Ele frequentava muito a nossa casa, tinha Tem algo que eu gostaria de destacar.
muita paciência, me pegava no colo, tro- As pessoas sempre colocam em dúvida
Mas a nossa mãe sempre dizia: “Olha, não cava minhas fraldas, me dava comida. Eu se eu realmente consigo lembrar da morte
se afastem muito de casa, brinquem aqui tive a possibilidade de contar isso para a do meu pai. Foi um fato para mim muito
perto, cuidado com o que vocês falam, não Duda [Eduarda, filha de Bacuri]. E ela falou marcante. Eu tinha 3 anos e meio e as pes-
que tinha uma dor muito grande. E disse: soas questionam e dizem: “Alguém com 3
À esquerda, Denise, Adilson e Ângela Telma, Cuba, 1970 “Eu queria que o meu pai tivesse feito isso anos e meio não pode lembrar disso”. Eu
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Eu acho que, de certa forma, esta infância Então, todos nós que passamos por lá nos que a gente foi parar em Atibaia. E como não
roubada que nós tivemos, por conta da dita- tornamos marxistas, porque Marx é uma ferra- conseguíamos mais frequentar a escola por
dura, nós começamos a recuperar em Cuba menta para a gente entender o que acontece conta dessa clandestinidade, a Damaris esta-
e, com a ajuda da Damaris, que foi esse muro nesta sociedade. Mas acho que, com certeza, va nos alfabetizando no dia em que a casa foi
poderoso, mesmo ela não estando muito bem nos tornamos martianos. cercada. Foi muito rápido. Muito nervosismo.
de saúde na época em que saiu da cadeia. Ela Todo mundo sabe o que acontecia com os mi-
nos ajudou muito a superar a nossa infância “Os cubanos sempre litantes quando caíam na mão da polícia. E o
roubada. E, principalmente, eu quero fazer um meu pai, de origem nordestina, dizia: “Nunca
agradecimento à Revolução Cubana, que foi a lutaram para que vou me deixar pegar vivo!”. E, de fato, foi o que
pátria de muitos brasileiros e a casa de muitos os nossos pais não aconteceu. Eles entraram e houve um tiroteio
brasileiros que lá estiveram. dentro de casa. Acho que eu fui o primeiro a
deixassem a gente sair quando cessou o tiroteio. E quando eu
A gente começa a relembrar das nossas fases
em Cuba, e me lembro também que lá, inclusi-
esquecer o nosso saí, ele estava sentado ao lado do tanque. Acho
que ele já estava praticamente morto. Estava
ve, nós chegamos a instituir, com a ajuda dos idioma pátrio” sem camisa. Tinha tomado muitos tiros. E eu
cubanos, uma escolinha onde a gente aprendia fiquei desesperado, enlouquecido.
Português, História do Brasil, Geografia. Acho Quem aqui não escutou a Guantaname-
que até conseguiram uns discos. A gente can- ra com os versos de Martí? Então, todos nós A minha mãe saiu com a Telma no colo e de-
tava o hino do Brasil e comemorávamos o 7 de saímos de lá amantes do Martí. E aprendemos pois atrás veio a Denise. Depois entramos de
Setembro no ICAP (Instituto Cubano de Amiza- esse sentido da dignidade em Cuba, de valo- novo e aí se gerou aquele impasse dentro de
de com os Povos). Os cubanos sempre lutaram rizar o ser humano em primeiro lugar. A res- casa porque eles nos encurralaram em um can-
para que os nossos pais não deixassem a gente peito da nossa vida, não guardo mágoas. Todos to da cama. Uns achavam que deviam matar
esquecer o nosso idioma pátrio. E nunca falta- nós somos pessoas muito alegres. Atualmente, a gente ali mesmo. Outros, diziam: “Não, va-
vam comemorações pátrias nossas, quando nos eu agradeço a Cuba porque sou professor de mos esperar, vamos aguardar”, e ficava aque-
reuníamos para cantar as nossas músicas. espanhol. Cuba também me deu um idioma, le impasse, aquela tortura em cima da gente
me deu a cultura. Agradecemos muito, apren- com as armas apontadas. Talvez, pelo fato
Lembro-me que o grande herói da Revolução demos muito da cultura cubana, aprendemos de quererem tirar informação do que estava
Cubana, das lutas pela independência, José muito do Brasil em Cuba. Os cubanos sempre acontecendo, naquele momento foi poupada a
Martí, dizia que ele queria colocar na Consti- tiveram essa preocupação. nossa vida.
tuição de Cuba, quando triunfasse a luta contra
o colonialismo espanhol, que a lei primeira da E a respeito da nossa vida na clandestinidade, Depois, quando nós saímos lá da casa, a
República fosse a dignidade do homem. E isso eu lembro das muitas mudanças de casa quan- região estava toda cercada de soldados do
nós encontramos em Cuba. O eixo principal da- do os meus pais entraram na clandestinidade. Exército. Eu nunca tinha visto tantos solda-
quela sociedade é a dignidade plena do homem. E sempre aquela agitação, muitas reuniões nas dos em minha vida. Inclusive, no caminho
casas por onde a gente passou. Estivemos em que nos levava até a estrada principal, eles
À esquerda, Adilson, Cuba, 1970 Santos, em Embu Guaçu e outros lugares, até postaram soldados a cada dez metros. De lá,
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Meu nome é Ariston de Oliveira Lucena, nas- me torturar com choques elétricos por todo conhecido como “Tenente Ramiro”, que possuía
cido em 6 de outubro de 1951 em São Pau- o corpo. Eu estava pendurado no pau de ara- uma âncora tatuada no braço) Dalmo Lucio Mu-
lo. Sou filho de Damaris Oliveira Lucena e ra. Fui torturado por algum tempo, mas não niz Cirillo, entre muitos outros.
Antônio Raymundo de Lucena, ambos líderes sei precisar a quantidade de horas. Quando
sindicais desde a década de 1950 e ativistas me tiraram do pau de arara, não podia andar, Certo dia, apareceu um homem me inqui-
políticos da Vanguarda Popular Revolucioná- contudo, mesmo assim saíram comigo em dili- rindo. Disse-me que se fosse à auditoria para
ria (VPR). Damaris foi têxtil e Antônio, meta- gências por São Paulo, para cobrir pontos, com a audiência e se confessasse o que eu estava
lúrgico. Comecei a minha militância muito companheiros da minha organização. A polícia passando na Operação Bandeirante, pagaria
cedo, pois a minha casa era um local de reu- não conseguiu nada, pois eu já me encontrava as consequências. Eu disse que faria isso mes-
niões da organização. Decidi sair de casa aos preso fazia vários dias. Os meus companheiros mo. Ele me ameaçou dizendo que eu iria “ver
17 anos para me juntar aos companheiros da já sabiam da minha prisão. Quero esclarecer, o que é bom”. Qual não foi a minha surpresa,
VPR. Não sabia que o meu destino seria o Vale que, no dia em que fui preso, eu estava junto quando fui prestar depoimento na auditoria.
do Ribeira sob o comando do Capitão Lamar- com um companheiro que conseguiu fugir. O referido senhor que havia me insultado era
ca. Os meus pais disseram que eu era muito o procurador da Justiça Militar, Sr. Durval
jovem para assumir aquela luta. Respondi que Ayrton Moura Araújo que funcionou como
esse era o meu desejo e que a minha ideologia “Soube da morte do meu acusador dos militantes.
tinha sido forjada com o exemplo deles dentro
de casa. Fui para o Vale no dia 7 janeiro onde pai e da prisão da minha Em meados de outubro de 1970, fui levado de
permaneci até 31 de maio de 1970. mãe pelo rádio. Fiquei helicóptero para o Vale do Ribeira, pelo Coro-
nel Antônio Erasmo Dias, para fazer a recons-
Soube da morte do meu pai e da prisão da transtornado e quis vir tituição de nossa fuga. Lá chegando, Erasmo
minha mãe pelo rádio. Fiquei transtornado e
quis vir para São Paulo, mas Lamarca me con-
para São Paulo, mas ameaçou de me jogar do helicóptero se eu não
contasse fatos que possibilitassem a prisão de
teve. Fiquei no treinamento de guerrilha por Lamarca me conteve” outros companheiros meus. Colocou-me na
quatro meses no Vale. Escapamos de um cerco cova onde havia sido executado o tenente da
policial feito pelo coronel Erasmo Dias ao Vale Na quinta-feira, fui levado para a Opera- Polícia Militar Alberto Mendes Jr., em maio de
do Ribeira. Saímos dirigindo um caminhão do ção Bandeirante pelo capitão do Exército, 1970. Dias simulou um fuzilamento disparan-
Exército que nos trouxe para São Paulo onde Maurício Lopes Lima. Fui direto para a sala do rajadas de uma metralhadora Thompson ao
nos dispersamos. Cada um tomou um rumo di- de torturas e prontamente colocado na ca- redor do meu corpo para me intimidar. Aliás,
ferente e ignorado pelo outro. deira do dragão. Comecei a ser torturado o Coronel assumiu esse episódio em declara-
novamente pelo Capitão Benoni de Arruda ções feitas ao jornal Folha da Tarde.
Fui preso no dia 20 de agosto de 1970, em Albernaz e outros policiais da OBAN. Aos
uma batida policial de rua no bairro da Vila poucos, fui sendo destroçado pelas sevícias. Fui condenado a trinta anos de prisão, conde-
Mariana. Levado para uma delegacia no mes- Passei mais ou menos dois meses na Operação nado também à pena de morte (posteriormente,
mo bairro, fui espancado pelos policiais de Bandeirante. Fui massacrado por várias equipes transformada em prisão perpétua). Acumulei
serviço. Isso ocorreu em uma quinta-feira, per- de policiais da OBAN. O comandante desse ór- trinta anos e, por último, mais vinte pelas mi-
maneci na cela até segunda-feira pela manhã, gão era o Tenente-Coronel Valdir Coelho, que nhas atividades políticas. Saí em julho de 1979,
quando fui transferido para DOPS. Lá chegan- ordenava as torturas aos presos políticos. portanto fiquei nove anos encarcerado.
do, fui encaminhado para uma sala de torturas,
onde o escrivão Samuel Pereira Borba e outro Havia outros torturadores: o Capitão Homero Quero reafirmar que não me arrependo do
policial que não sei identificar, começaram a César Machado, Pedro Mira Grancieri (também que fiz. Sinto muito orgulho por ter pegado em
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Antônio Raymundo de Lucena nas- casal participou da campanha “O Petróleo é Nosso”. militar estabelecido na área de treinamento de guer-
ceu em 11 de setembro de 1922, em Colina (MA), filho Nessa época, ele e sua esposa eram operários na Ja- rilha da VPR, no Vale do Ribeira (SP).
de José Lucena Sobrinho e Ângela Fernandes Lima fet, indústria têxtil localizada no bairro do Ipiranga. Em 20 de fevereiro de 1970, por volta das 15 horas,
Lucena. Morto em 20 de fevereiro de 1970. Militante Em 1954, ingressou no Partido Comunista. a porta do sítio onde a família morava em Atibaia
da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). (SP) foi golpeada violentamente por militares. Lu-
Lucena aposentou-se em 1964 por invalidez. Como
Aos 12 anos de idade teve uma úlcera ocular que lhe era cego de um olho, teve o direito a uma banca na cena dormia. Começaram a atirar. Lucena tombou
ocasionou a perda da visão do olho direito. Nessa feira isenta de impostos. Damaris tirou carta de gravemente ferido e, logo em seguida, recebeu mais
época, começou a ocupar-se de atividades de ins- motorista e logo adquiriu uma perua, para facilitar tiros. Foi assassinado, na presença de sua família.
talações elétricas, serviços de pedreiro e mecânica. o transporte do material de trabalho. Lucena foi sepultado como indigente no Cemitério
Aos 17 anos, assumiu a função de mestre de oficina de Vila Formosa, em São Paulo.
mecânica. Apesar de não ter terminado os estudos, Em 1968, passaram a fazer parte da VPR, tendo Lu-
Antônio era uma pessoa bastante inteligente e habi- cena participado de diversas ações armadas. Em
lidosa. Por conta disso, recebeu dos conhecidos a al- 1969, o casal já vivia na clandestinidade com os fi- Damaris Oliveira Lucena nasceu em
cunha de “Doutor”. Ao casar-se com Damaris, Lucena lhos, em Atibaia (SP), e era responsável por guardar 22 de agosto de 1925 em Codó, (MA). De família po-
começou a trabalhar como mestre de serraria e ela os fuzis FAL subtraídos por Lamarca quando fugiu bre, começou a trabalhar aos 7 anos. O trabalho no
como fiandeira. do quartel de Quitaúna (SP), em janeiro de 1969. campo estendeu-se até os 16 anos.
Em março de 1950, embarcou em um caminhão pau Seu filho mais velho, Ariston, também militante da Durante cinco anos trabalhou como fiandeira e
de arara para a cidade de São Paulo. Ainda em 1953, o VPR, foi preso em 1970, após ter escapado do cerco depois encarregada de compras na indústria ma-
nufatureira. Por conta dos baixos salários, decidiu Em 1967, pediu afastamento por tempo indeter- nacional: Chizuo Osava, Madre Maurina Borges
mudar-se para São Paulo onde acreditava que as minado do Partido Comunista. Tinha uma intensa da Silveira, Diógenes José de Carvalho de Oliveira,
condições de trabalho seriam melhores. Chegou militância mesmo sem estar vinculada a nenhum Otávio Ângelo e Damaris, que seguiu com os três
à cidade onde o marido Antônio Raymundo de partido. No final de 1967 entrou para a Vanguarda filhos menores: Adilson Oliveira Lucena, 9 anos, De-
Lucena já estava, em 1º de junho de 1950. Popular Revolucionária (VPR) e logo seu marido en- nise Oliveira Lucena, 9 anos, e Ângela Telma Oliveira
trou para a clandestinidade. Com a prisão de vários Lucena, 3 anos e meio para o México, onde ficou por
Trabalhou na empresa de tecelagem Jafet por um
militantes no início de 1969, foram obrigados a en- dezenove dias.
ano e posteriormente foi transferida para a creche
trar definitivamente para a clandestinidade. Logo depois, recebeu o convite de Fidel Castro para
como cozinheira.
No dia do assassinato de seu marido, Damaris esta- viver em Cuba. Damaris chegou à Cuba e permane-
Damaris filiou-se ao Sindicato dos Têxteis em 1950. va em casa com as crianças. Ela conta que Lucena, ceu internada por vários meses para se tratar das
Pela sua atuação junto aos trabalhadores recebeu o atingido, caíra ao lado do tanque, já fora da casa, torturas sofridas nos cárceres brasileiros. Na Ilha
cargo de delegada sindical. Participou do Congresso quando um último tiro foi disparado em sua têm- viveu e criou seus filhos. Voltou ao Brasil em maio
de Mulheres Operárias realizado no Rio de Janeiro pora, na presença dela e dos filhos. Damaris foi bar- de 1980 onde seu filho Ariston tinha permanecido
em 25 de maio de 1956. Na volta, foi demitida “por baramente torturada na OBAN e seus filhos foram preso por 9 anos.
causar distúrbios na população fabril”. Passou a mi- levados ao juizado de menores.
litar no Partido Comunista.
Saíram da prisão por ocasião do sequestro do côn-
Em 1958, no governo de Jânio Quadros, ajudou na sul japonês na capital paulista, Nobuo Okuchi, em
organização da greve dos dez dias. março de 1970. Assim foram banidos do território
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A vida em Cuba
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“Houve coisas terríveis estão pedindo esmola. E lá em Cuba não tem isso, Houve coisas terríveis na minha vida: quando eu
graças à Revolução Cubana. Nós tínhamos tudo vi meu marido morto e eles com a arma em cima
na minha vida: quando do bom e do melhor. de mim, dizendo: “Mata ela! Mata os filhos dela!”.
eu vi meu marido morto Então, foi uma coisa assim, deram um golpe bru-
Outra vez quando tiraram meus filhos e disseram
que iam nos matar. Foi muito triste, eu estava pre-
e eles com a arma em tal, mas brutal. Quando nós demos conta, a costa
brasileira estava cheia de navio americano. Olha,
sa junto com a Drª Eliana Rollemberg, chegou a
polícia com o Capitão Homero [César Machado] e
cima de mim, dizendo: o presidente se não tivesse ido embora ele tinha
não sei quem mais com os meus filhos. Eu estava
sido assassinado como assassinaram o [Salvador]
‘Mata ela. Mata os filhos Allende lá no Chile.
em uma janela, e quando os vi, me deu uma crise
tão grande que quase morro. Teve um momento
dela’. Foi, para mim, uma Quando chegamos no México, o Mário Japa, que eu pensei que eu ia perder o juízo. Eu pensei:
coisa muito terrível.” [codinome de] o Shizuo Osawa, foi ao consulado
cubano e lá tinha uma carta do Comandante Fidel
“Vieram torturar os meus filhos para eu ver, e falar
onde estavam os meus companheiros”. Para mim
Castro oferecendo asilo para mim e as crianças. foi uma das coisas mais tristes da minha vida. Eu
Uma vez eu vi meu pai conversando com uma
Que se eu quisesse, eu podia ir para Cuba. Quan- pensei: “Se torturarem os meus filhos aqui, eu
russa e ela falou para ele: “Senhor Manoel, os ver-
do ele me falou isso, foi uma das maiores satisfa- morro”. Eu falei para eles: “Olhem, me matem e
melhos tomaram o poder lá na Rússia”. Os ver-
ções da minha vida, receber um convite de um matem os meus filhos. Está tudo terminado”. Para
melhos? Eu pensei: “Será que eles tinham a pele
estadista. Eu, que era uma simples trabalhadora, mim foi muito terrível. Foi um momento duro da
vermelha?” Eu tinha 7 anos quando saiu a Revo-
semianalfabeta. Foi uma das maiores alegrias que minha vida. Eu procuro esquecer, mas, de vez em
lução Russa.
eu tive na minha vida. quando, eu lembro das barbaridades da ditadura.
Eu vim escutar a palavra comunismo aqui em
São Paulo, quando eu cheguei. Eu perguntei: “gen-
te, o que é comunismo?”. “Ah, companheira, co-
munismo é as pessoas que querem que as pessoas
tenham escola, tenham alimento, hospital”. Ah
bom, então eu pensei. “Eu sou comunista porque
eu quero que tenha tudo isso para todo mundo”.
Então, por isso eu me envolvi com a luta de bene-
ficiar todo mundo.
E para nós foi muito duro. E no governo do Pre-
sidente João Goulart, todo mundo na rua lutando
por reforma. Reforma agrária, reforma urbana, re-
forma educacional. Nem ninguém falava em co-
munismo, nem ninguém falava em religião. Se fa-
lava na reforma. Nosso entusiasmo era tão grande
pela reforma, e ninguém queria criar partido, criar
religião. Aí uma boa parte da igreja, com o senhor
Lincoln Gordon, representante máximo daquela
grande potência norte-americana aqui no Brasil,
dono do mundo, dono da maior riqueza, que hoje
À esquerda, Damaris, São Paulo, 2013.
Foto de Celso Imperatrice
À direita, família Lucena reunida em São Paulo
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O processo histórico brasileiro da ditadura Chacina da Chácara São Bento, em Pernam- dos meus pais. E a partir daí comecei a sofrer
me conectou à família Lucena de uma forma buco, naquele conhecido episódio, devido à isso com mais força. E também, ao mesmo
muito forte. Hoje eu sou uma integrante da traição do Cabo Anselmo. tempo, desejei saber quem eram eles, como
família e fico muito honrada. eles eram, onde eles estavam, se estavam vi-
Em Cuba, as notícias chegavam para nós
vos ou mortos. Mas, mesmo assim sempre
Eu sou Ñasaindy Barrett de Araújo. Já fui assim: “Morreu, não morreu, desapareceu,
estive muito acolhida com a Damaris, com os
Ñasaindy de Oliveira Lucena. Eu tive uma foi preso, não foi preso”. Ou seja, a gente não
irmãos. É a minha família.
certidão de nascimento que tinha esse nome. tinha uma verdade definitiva. Não havia cor-
E foi com essa certidão que eu vim para o pos. Então, eu fui ficando, ficando, ficando E hoje eu continuo convivendo com a mi-
Brasil como se fosse filha legítima da dona com a Damaris. Ela foi me assumindo como nha família, com a Damaris, cada vez mais
Damaris. filha, eu fui assumindo ela como mãe, e os fortalecendo os nossos laços, que não são
filhos dela como os meus irmãos. Essa afeti- fáceis, porque foram muito polêmicos em
Sou filha biológica de Soledad Barrett vidade foi se compondo e se fortalecendo. E algumas situações. Por exemplo, como você
Viedma e José Maria Ferreira de Araújo. Os meus pais nunca voltaram. querer assumir o nome dos seus pais biológi-
meus pais se conheceram em Cuba, onde cos e, ao mesmo tempo, não rejeitar o nome
também nasci. Um ano após meu nasci- da sua mãe adotiva. Recuperar a sua identi-
mento, Damaris Oliveira Lucena chegava dade não quer dizer que você vá abrir mão de
com sua família em Cuba, no exílio. E foram uma identidade que você construiu junto, ao
colocadas na convivência em conjunto, na lado dela, como família.
mesma casa.
Nossa chegada no Brasil, em 1980, foi cheia
Quando eu tinha 1 ano e dois meses, meu de dificuldades. Inclusive a Damaris preci-
pai saiu de Cuba e veio para o Brasil dar con- sou esticar por mais um ano a permanência
tinuidade à sua militância, na guerrilha. Dois dela no exílio, justamente porque não tinha
meses depois, em setembro, ele foi preso e uma solução muito definitiva para o meu
morreu sob tortura. caso. Foi uma situação complexa. Eu não era
filha legítima, mas também não tinha como
Minha mãe ficou mais um pouco em Cuba
dizer que não era filha.
e depois de uns quatro meses, mais ou me-
nos, ou seja, em dezembro do mesmo ano, Eu não me lembro exatamente dos fatos, Bom, no final das contas consegui vir para
1970, ela partiu também para dar seguimen- mas eu sabia que tinha alguma coisa diferen- o Brasil, o que para mim foi um choque, para
to à sua militância. Eu permaneci em Cuba, te na minha própria condição de criança em quem viveu em Cuba e conhecia a dignidade
em companhia da Damaris e dos seus filhos, Cuba com os outros exilados. A Damaris sem- martiniana e a ética do respeito ao ser huma-
já bem integrada, porque já morávamos jun- pre me disse quem eram os meus pais, mas eu no. Para quem compreendia alguns valores
tos há alguns meses. me lembro de um momento em que isso ficou da vida, da igualdade, da solidariedade.
Então, a minha mãe seguiu na militância. mais visível.
Quando cheguei ao Brasil, caí na real mes-
Isso era fim de 1970. E ela faleceu em 1973, na Eu tinha 10 anos quando alguém fez um mo do que era ter saído de Cuba. Aí foi bem
quadro com fotos dos meus familiares. Acho complicado. Eu tinha 11 anos. E vivi dezesseis
Ñasaindy à esquerda com 6 anos e, ao centro, com 4.
Ambas fotos em Cuba
que foi ali que eu tomei consciência da perda anos no país com uma dificuldade enorme de
Eu sou o mais velho dos irmãos, portanto o fizesse lá, conversar com ele e dizer que não carnezinho. Imagine, uma pessoa que foi ami-
que não sofreu o que eles sofreram. Eu fui mais fosse rebelde, porque eu controlava o dinheiro. go do Presidente da República, amigo do João
cobrador do meu pai, tinha 15 anos em 1964. De- [Ele] tinha uma namorada, que é a esposa dele Goulart, nessa situação.
pois do golpe, fomos distribuídos na casa de es- hoje, mas o dinheiro, quem separava para ele ir
tranhos, depois parentes ficaram com cada um ao cinema era eu, o Jaime. Era eu que fazia as Ele nunca quis nada para ele, sempre lutou
dos irmãos, até que meu avô nos reuniu numa funções ruins da família. pelo bem do povo brasileiro e hoje isso parece
casa de aluguel. E só quando ele [o pai, Raphael uma utopia. Hoje, a gente vê tudo que acon-
tece aí, uma pessoa que nem o próprio Lula,
Martinelli] apareceu voltamos a conviver. “Fui filho único por que sai de uma condição de nada e hoje é um
Ele era um líder sindical conhecido nacional- quatro anos e pouco milionário. Não que a gente quisesse isso para
mente. Eu, na época, era só o colecionador de nós, mas meu pai merecia um reconhecimento,
fotos da revista O Cruzeiro, do homem que pa- e depois ele já [estava] meu pai merecia.
rava o Brasil com um telefonema. E não tinha metido em política.
noção do tamanho da grandeza do meu pai. E o que eu acho é que é uma pessoa que gra-
Logo nós percebemos que eu tinha que arru- Meus outros irmãos ças a Deus temos tempo para consertar todos
mar meu primeiro emprego. E assim aconte- sofreram, não esses erros de não entendê-lo. Nós passávamos
Natais com todos os irmãos dele, aquela farra
ceu. Ele, por ser uma pessoa que sempre lutou
contra a ditadura foi preso na sede do Inocoop. conheceram esse de família italiana, que ele adorava e nós não
E eu já estava trabalhando. pai que eu conheci” conseguimos ter essa união pela falta dele.
Ele não foi preso e localizado, ele foi pre- Eu tive sorte que meu nome não tem a ver
so e sumido. A história é meio longa, mas foi E comecei a ser um questionador do meu pai. com a política dele ainda, pois os outros todos
através de uma tia que conhecia uma pessoa Eu ia visitá-lo, mas não tantas vezes. Comecei a tiveram. O meu irmão é Edson Lenin Martinelli
de alta patente do Exército que morava na rua ter revolta pelo fato de ele ter sido líder políti- e carregou isso na escola. Eu acho que meu pai
que ela morava que conseguimos localizar co, cassado, procurado. E passada aquela fase, deveria ter tirado esse carimbo dos filhos. A
onde ele estava. Ela pediu para a família ir até ele se envolveu com a luta armada e acho que gente não merecia isso, mas ele era um idealis-
a porta da OBAN levando roupa, para ficarem ele não pensou tanto na família. Nós não sabí- ta, e paciência. E comigo e meus irmão ele teve,
sabendo que o tínhamos localizado. E assim a amos o que ele fazia. Eu não sei se isso foi uma o que adora, que são os netos. Junto dos netos
vida foi, para mim, um pouco difícil porque eu defesa para a família. Se nós tivéssemos sido pe- a gente vê isso. Ele é um moleque junto dos
passei a ser arrimo de família e comecei a con- gos, torturados, não teríamos o que falar do meu netos, tem uma saúde de ferro para brincar, e
trolar os meus irmãos, que em seguida foram pai. Nem a mãe e nenhum dos filhos sabíamos eu passei por isso como filho.
tendo funções também na empresa que eles o que ele estava fazendo.
começaram a trabalhar. E aquela velha história Fui filho único por quatro anos e pouco e de-
de pegar os envelopes de pagamento, põe tudo Fomos descobrindo tudo com o processo, so- pois ele já [estava] metido em política. Meus ou-
aqui na mesa, passei a ser o pai deles. bre as torturas, eu questionava muito que ele tros irmãos sofreram, não conheceram esse pai
não devia ter se metido novamente naquilo. Eu que eu conheci. Eu tenho certeza que o maior
A gente tem um rompimento de amor por acho que um idealista não devia ser pai. Mas cobrador dele de tudo, fui eu. Hoje nós já tira-
causa dessas coisas de inversão de papeis. Tem como ser humano, como alguém que o conhe- mos algumas barreiras da frente, mas ele sabe
uma carta, inclusive, que a Rosa me passou, há ça, que conversa, vira fã do velho. Ele é uma que eu fui o filho mais incompreensível.
pouco tempo, que eu escrevi ao meu pai dizen- pessoa rara que passou por altos cargos e não
do isso, que ele precisava, na visita que o Edson teve um tostão na vida. A casa que ele teve foi Uma coisa que eu queria deixar claro, e eu
graças aos filhos pagarem as mensalidades do acho que a Comissão da Verdade está batendo
À esquerda, Jaime, ao centro, com a mãe Maria Augusta e o pai
Raphael Martinelli, São Paulo, 1952 Inocoop, ele iniciou, mas nós que pagamos o muito nessa tecla, é Tortura Nunca Mais. Meu
Tudo começou em Jundiaí (SP). Nós nas- da prisão por quatro anos e tortura de nosso Hoje sou um cidadão com 60 anos de idade,
cemos lá, meu pai era ferroviário, minha mãe, pai. Fomos pré-adolescentes que tivemos que perdendo a esperança em ver o que sobrou do
doméstica. Fomos crianças normais, brinca- ir ao trabalho mais cedo para sustentar a nos- meu pai, e o que ele e eu sonhamos de alguma
mos na rua, em campos de malha. Enquanto sa casa. Paramos de brincar e de viver o fogo forma para essa vida. Perdi um pouco da infân-
isso, meu pai iniciava nas causas sindicais e da idade. Tivemos que nos policiar no traba- cia, um pouco da adolescência, e um pouco da
socialistas. Fomos crianças que curtimos a mu- lho para não sermos taxados como burgueses, convivência do meu pai. Perdi um pouco de di-
dança para o Rio de Janeiro e continuamos a também tinha essa dualidade. nheiro que queria ter, um pouco da convivência
brincar na rua e passear em Copacabana, para com os meus irmãos, perdi e perdemos muito.
onde nossos pais nos levavam todos os do- Perdemos partido, perdemos vozes que nos dão
mingos. Enquanto isso, meu pai se destacava “Às vezes, no nosso a esperança em ação. Perdemos governantes no
na federação dos ferroviários e na greve da
classe ferroviária.
egoísmo a gente achava sentido eficiente da função. Perdemos opção de
votos e perdemos os eleitos.
Fomos crianças que viajamos pelas praias
que esse amor do meu
Perdemos o cumprimento das leis e suas
da Bahia, Pernambuco, ficamos hospedados pai pela luta não vinha punições. Perdemos saúde, gentileza, educação,
em casa de frente para o mar enquanto meu
pai era ovacionado nos palanques das ruas e
para nós, só ia para os decência e por aí afora. Mas ganhamos. Ganhei
meus filhos, minha esposa, minha moradia,
praças. Fomos crianças que vivenciamos o pri- outros. E a gente tinha a vida longa do meu pai. Ganhei meus irmãos
meiro terror de ter que fugir na madrugada de
março em 1964, enquanto meu pai fugia para
raiva do meu pai por e amigos, ganhei consciência, dignidade e
honestidade.
outros destinos que não o nosso. causa disso aí”
Ganho em viver e poder dizer agora que as
Fomos crianças instaladas em casas de es- perdas fazem parte da nossa vida e que futu-
tranhos em cidades desconhecidas ao fim da Fomos adolescentes e parceiros do meu pai na ras gerações de filhos e pais sindicalistas, po-
fuga. Fomos crianças separadas em casas de formação e campanha do novo partido constru- líticos ou não, de alguma forma, contribuíram
tios diferentes e deles dependentes. Fomos ído para nós, o PT. Fui namorado de uma única para a construção de uma vida melhor. Essa
crianças com dificuldades em diferentes es- mulher, me apaixonei e com ela casei. Enquanto semente sob a forma de tortura, ideal, luta, ou
colas naquele ano. Enquanto, por um ano, não meu pai levantava a bandeira do PT e por ela por simplesmente educar seus filhos de forma
conseguimos saber onde estava o nosso pai. lutou até a posse do seu líder maior. amorosa foram plantadas por mim, minha es-
E felizes por poder viver com ele novamente posa, meus irmãos, minha adorada mãe, meu
após essa ausência assustadora. Fui eleitor do José Dirceu, José Genoino e
querido pai.
Lula, enquanto meu pai não conseguiu nenhu-
Fomos filhos que voltaram a brincar nas vár- ma única função de liderança dentro do gover- Sou uma célula viva com capacidade de aju-
zeas da Lapa de Baixo, mas fomos crianças que no do PT. A vida foi acontecendo. Fui, acredito dar nas transformações para um mundo feliz.
tiveram que justificar dezenas de vezes o por- que sou um bom marido, bom pai e perdi minha
quê desses nomes e sobrenomes associados mãe. Enquanto meu pai perdeu a esposa, per- No nosso egoísmo a gente achava que esse
à esquerda. Enquanto meu pai continuava na deu a oportunidade de ajudar intensivamente o amor do meu pai pela luta não vinha para nós,
luta da esquerda brasileira. Fomos pré-adoles- nosso Brasil por não governar, não deixarem ele só para os outros. E a gente tinha raiva do meu
centes assustados e horrorizados com a notícia participar do processo do PT. pai por causa disso aí. Eu principalmente.
O sobrenome Lenin, por exemplo, hoje você aconteça isso aí. Prejuízos, a gente teve alguns
vê a estátua do Lenin caída no chão. Que ho- prejuízos. Trabalhar muito cedo, vida dura, dei-
“Eu tive que ficar por menagem foi essa? Isso confunde até hoje. xar todo o dinheiro em casa até os 23 anos de
vários anos escondendo Por que derrubaram a estátua do Lenin? Ele idade. Você não viver mesmo o fogo da adoles-
merecia isso aí? E eu tive que ficar por vários cência, a gente sofre um bocado, mas a coisa
esse Lenin no meu anos escondendo esse Lenin no meu sobreno- forte que fica é como eu coloquei. Fica a digni-
sobrenome. Eu tive me. Eu tive um professor que era sargento que dade, a honestidade, é ter esse exemplo de pai
que não tirou um tostão de ninguém. Hoje eu
me olhava de uma forma estranha nas aulas de
um professor que era educação física. sou uma pessoa feliz. E feliz de estar do lado do
sargento que me Muita coisa se perde. Eu acho que a gente
velho até hoje, com 89 anos. Sofri mas sou feliz,
como diz aquela música.
olhava de uma forma perdeu a adolescência, perdeu muita coisa.
EDSON LENIN MARTINELLI nasceu em 21 de agosto de
estranha nas aulas Mas a gente idolatra muito meu pai. Apesar
de falhas como pai, porque nós somos órfãos
1953. Filho de Raphael Martinelli e Maria Augusta Martins
de educação física”
Martinelli, formado em Administração de Empresas, tra-
com pai, porque o idealismo dele faz com que balha como consultor em empresas.
Na primeira vez que tivemos ver que aquele homem ali na minha
que fugir do Rio de Janeiro para frente era meu pai, ele era uma pes-
São Paulo, eu tinha só 2 anos. soa fisicamente diferente.
Meu pai estava sempre viajando,
e quando ele retornava, sempre Ele chegou bem próximo de mim,
tinha uma bonequinha, uma coisa colocou a mão na minha cabeça e
assim. E da primeira vez, quando foi nesse instante que eu vi que era
ele foi preso em 1970 eu vi que ele ele. Eu não entendia nada, mas lem-
demorava a voltar, e eu sentia que bro de uma coisa que me chamou a
as pessoas em volta, as pessoas atenção, quando eu fecho os olhos e
próximas queriam me poupar de lembro desse dia, era a camisa dele
saber exatamente o que estava abotoada errada. E as mãos tremiam
acontecendo com ele. Eu era mui- muito. E, novamente, eu caio naque-
to menina e apegada a ele, sentia la palavra silêncio porque na minha
que as pessoas cochichavam e es- curiosidade infantil queria pergun-
condiam de mim. tar: “E aí, pai, o que está acontecen-
do? O que é aqui?” Me lembro da mi-
Acho que se tem alguma coisa nha tia falando “xiu”, e então, foram
que aprendi quando eu era pe- duas coisas muito marcantes.
quenininha, foi silenciar. Silenciar
é a palavra que me vem imedia- A segunda situação que eu lem-
to na cabeça. Era sempre “xiiiu, bro já foi no presídio Tiradentes, eu
não pode falar”. Eu perguntava, passava em revista junto com minha
e falavam “psiu”. Era sempre um mãe. Numa das vezes, meu pai fazia
silêncio e eu chorava muito por- aniversário e minha mãe quis fazer
que sentia a falta dele. E lembro um bolo, passamos praticamente a
quando a minha tia, irmã do meu sexta-feira inteira fazendo aquele
pai ficou sabendo que ele estava bolo. Tínhamos pouco dinheiro e
no DOPS. Eu nem sabia o que era aquilo era um acontecimento. E o
DOPS, achava que ia visitá-lo em dia seguinte era um sábado, quando
algum lugar, tinham encontrado Rosa Maria e sua professora do aconteciam as visitas. Fomos até lá,
meu pai.
Grupo Escolar, em São Paulo, 1968 eu e minha mãe. E nos meus olhos infantis, era
inconcebível ver aquela mulher [do presídio]
Fui com minha tia. Ela me levou porque eu era des escuras. Cheguei muito feliz porque ia re- cortando o bolo em pedaços. Ela praticamente
uma criança que não estava mais dormindo à ver meu pai. Essa é uma cena muito marcante destruiu o presente que a gente ia dar para o
noite, e ela quis me aliviar. E eu me lembro que na minha memória, porque quando meu pai fi- meu pai. E mais uma vez eu perguntei, “Mãe,
foi uma cena muito marcante nesse dia porque nalmente apareceu, dois homens o amparavam porque ela está fazendo isso?” E minha mãe
eu cheguei num lugar muito escuro, com pare- e ele estava irreconhecível. Eu não conseguia me mandou fazer silêncio de novo.
tarse, eu queria entender como isso podia ter Meu pai tem uma fragilidade emocional
acontecido a ele. Quando eu olho aquelas cartinhas, vejo a muito grande. Ele não quer falar no assunto,
menina que eu era naquele período. Eu dizia: ele sai de cena. Hoje, com um pouco mais de
Meu pai fala pouco a respeito disso, mas a “eu te amo meu papai, papaizinho, você é meu idade ele está um pouco mais flexível, eu diria.
marca que ficou foi muito grande em todos galã, você é meu príncipe”, essas coisas que Ele se preocupa mais, quer que a gente ligue,
nós, os filhos. Porque você tem que recolher uma criança diz ao pai. Então, é como se eu ti- enfim. Então, esse movimento que a gente faz
tudo isso para criar uma certa identidade, por- vesse feito isso naquele período, e de lá para para se aproximar passa por esse traço que fi-
que você veio dali. O que eu posso dizer é que cá eu não sei como se faz esse caminho. Eu cou, que é um traço pesado. Talvez a memória
nesse tempo todo eu vim perguntando a ele não sei como se faz esse caminho com irmãos, daquele período tenha um peso tão grande que
toda a história e fui sempre me interessando com filho. Se tem algum lugar que a ditadura, nos dificulta esse acesso hoje.
por tudo isso. Não só a história dele, mas a his- a história me alterou, foi aí. Eu acho que foi no
tória da ditadura no Brasil ou em qualquer ou- amor que eu não sei expressar. Eu não consigo Para se ter uma ideia de como eu sempre tive
tro lugar, eu sempre tive um grande interesse, nem com o amor maior do mundo que é amor relacionamentos difíceis, casamentos difíceis,
eu queria saber, esmiuçar, esmagar aquilo den- de filho e ele sofre com isso também. Eu sei alguns terapeutas chegaram à conclusão de
tro de mim. Fiz terapia durante muitos anos e o quanto eu o amo, mas não consigo expres- que quando eu amo, eu amo a distância, porque
retomei porque eu tinha esse medo, medo da sar. Eu tenho essa barreira. Eu acho que aí eu quando meu pai foi preso eu vivia em pleno
noite, medo deles irem embora, de pegarem realmente tenho as sequelas desse período, Édipo. Toda menina é apaixonada pelo seu pai,
meu pai, minha mãe, meus irmãos. Eu acho não é só pelo distanciamento do meu pai e e exatamente nesse momento ele saía de cena.
que eu convivi com esse medo. E acho que só tudo mais. É como se eu não pudesse falar por- Então, eles chegaram à conclusão de que eu
conseguia colocar esse medo para fora quando que o silêncio era a coisa mais importante na- amo o distante. Quando esse distante se apro-
escrevia. E aí eu comecei a escrever, muito. Es- quele período. Eu aprendi direitinho o silêncio, xima de mim, eu não sei o que fazer. Até é en-
crevia compulsivamente. e eu queria me livrar dele. E é difícil conseguir. graçado porque nos meus relacionamentos eu
Até os 50 eu não consegui. ficava pensando: “puxa, esse cara tem o quê? Ele
Quando adoeci, em 2007, tive um câncer de deve ter alguma coisa muito problemática para
mama e ganhei de presente do meu pai todas Quando tudo começou a vir à tona na Comis- eu poder estar gostando dele”. Enfim, falar de
as nossas cartinhas. São quatro anos de cartas, são da Verdade, pensei “puxa, que bacana. Esses mim é falar um pouco disso porque essa relação
Mãos firmes a revistavam...tinha apenas se enfiava entre os vãos das pernas enor- – São presos “comuns”... é como são cha-
9 anos. Pode abaixar as calças? Afasta as mes... Posso ver? Perguntava. mados.
pernas! Muito bem! Levante os braços, Lá vinha ele... um homem baixo, loiro, ros- – O senhor também é um preso comum?
abra a boca, cabelos...(tudo numa agilida- to bonito,músculos fortes... e com aquele Pois eu não acho... acho que é um preso im-
de troglodita e sem pausa). sorriso... um sorriso conhecido e querido, portante, o mais importante de todos!
Pode vestir... a saída é por ali... olhos muito claros que a fitavam com sau- – Neste prédio que estou são só presos po-
Por ali era um portão verde de ferro que dades. líticos... somos divididos.
dava para outro portão de grade, que dava O coração ia aos pulos, quase tropeçava – Preso político? É alguma coisa ruim?
para um pátio enorme que tinha chão de entre aquelas fardas... tentando se apro-
concreto quebrado. Ia feliz, sem entender. ximar. Mas, o que era aquilo? Porque ele – Não é não... e sorriu aquele sorriso cal-
tinha aquelas argolas rodeando seus pu- mante.
Para o seu tamanho, aqueles dois pavi-
lhões que rodeavam o pátio eram verda- nhos? – Mas pai, por que tá preso?
deiros monumentos, cheios de janelinhas Já muito próxima, a menina atônita já não – Ainda é pequena pra entender.
gradeadas e com mãos acenando. era feliz, por tentar entender. – Mas não tô feliz agora... queria que voltas-
Quem seriam aqueles? Pai!!!! Abraçava, pulava no colo, puxava sua se pra casa.
Passeava num passo de dança... dois pra mão... quase o amassava. – Quando for embora, vai parar lá na Av.
cá, dois pra lá... até chegar noutro portão – Pai, o que era aquilo? Porque aqueles ho- Tiradentes, sabe qual é?
onde a escuridão do lado de dentro lembra- mens prenderam seus braços? – Sei. Essa que fica em volta do prédio...
va os medos de dormir. – São algemas e servem pra que a gente – Então, vai contar três andares, de baixo
Homens fardados barravam a entrada de não tente fugir. para cima e olhar pra janelinha da direita.
um dos prédios grandes e curiosa que era – O senhor quer fugir? Vou acenar pra você, com uma toalha bran-
– Não. Mas eles pensam que sim. ca. Vai imaginar um pássaro, que vai voar
até seus ombros... e o levará sempre junto
– Pai, aprendi um novo passo... quer ver? pra onde quiser.
Aposto que não sabe fazer... quer tentar?
Dança comigo? – Puxa! Verdade?
Imagem surreal de alegria, num retângulo (silêncio)
de vidas cortadas. – Já sei porque tá aqui, pai, e nem preciso
– Gostou? crescer tanto. Está preso porque sonha bo-
nito. Eles quiseram trancar suas palavras
Nem percebeu que das janelas com mãos assim. Mas isso não é roubo?
desconhecidas lhes jogavam colares, pul-
seiras... coisas bonitas. ...
– É pra mim? – Tenho um pai passarinho poeta preso –
mas não conta pra ninguém.
– Claro que sim! Pode dançar mais pequena
bailarina? – O quê?
Lá ia ela fazendo rodas, cantarolando, fa- – Que ele tem asas.
zendo estrela e sendo a própria.
“O portão do Tiradentes ainda existe, a meni-
– Quem são eles pai? na também... e o pássaro continua voando"
1
Rosa Maria Martinelli, “Anos Setenta”, in: Entrelinhas: Anto-
logia de Contos e Microcontos, Andross Editora, São Paulo,
2008, pp. 123-125.
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Ao lado, ficha do
Raphael no DOPS
Após o golpe de 31 de março, eu tive que ir para “quem é esse cara?”. Foi um encontro clandesti- avisou. Aí, depois de 24 horas esse que foi preso
a clandestinidade. No dia do golpe, fiz um discur- no, no bairro da Lapa. Nessa época, eles estavam abriu o meu nome, como se fosse ter uma reunião
so na rádio para a minha área ferroviária. Se eu morando em Jundiaí. comigo.
demorasse um pouco mais para ir embora, teria
sido preso, porque os militares tomaram a rádio Depois fui ficar clandestinamente onde meu pai Quem estava lá era o [Benoni de Arruda]
também. E eu cheguei a ser denunciado como es- morava, no bairro da Lapa, em São Paulo. E meu Albernaz que era um assassino e era difícil sair
pião russo pelo ministro do trabalho. filho Luiz Carlos ficava comigo. Combinamos que, vivo. Mas sobrevivi porque eu entrei como alguém
por segurança, ele nunca me chamasse de pai. que tinha participado de reunião, de questão de
Mesmo na clandestinidade eu continuei mo- Convivi muito com ele. De vez em quando eu dava cooperativa, sindicato. E eu no pau de arara, com
rando no Rio de Janeiro. Nem pude ir mais para uma escapada em Jundiaí para ver a família. o tira, fazendo esse jogo comigo. Aí chegou aquele
a minha casa, que ficou cercada o tempo todo. da Ultragás, o [Henning Albert] Boilesen, eu vi ele.
Eles estavam à minha espera, para me prender. Eu nunca parei. Eu e meu irmão compramos O cara disse: “Agora só falta pegar o Marighella”.
Lá, moravam minha mulher e meus quatro filhos, um Ford 29 e eu ia para as reuniões clandesti-
sendo que a mais nova, a Rosa Maria, tinha um namente com aquele carro. Nosso partido tinha O companheiro que me abriu não aguen-
ano e pouco. terminado com a educação revolucionária e eu tou e começou a abrir, abrir, e abriu o trem pa-
viajava explicando que o partido tinha que ter or- gador. Eu estava arrebentado. Só abri o trem
Resolvi voltar para São Paulo, apesar da pres- ganização revolucionária. pagador quando me mostraram fotos de um cara
são dos companheiros do comitê central do Par- morto. Quando vi que todos os compas que par-
tido Comunista Brasileiro (PCB), que me pressio- Nessa época, eu estava morando no fundo do ticiparam estavam mortos, eu acabei abrindo. Eu
navam, querendo que eu fosse para o Rio Grande quintal da casa do meu pai e meus filhos e mu- só não fui morto porque nunca foi aberto que eu
do Sul. Eu disse que não ia a lugar nenhum. Eu lher também vieram para cá. A repressão sabia era dirigente da ALN.
queria ir para São Paulo, porque era a minha área, onde eu estava e todo Primeiro de Maio eles iam
me prender, me buscavam em casa e eu ia para E porque eu tinha uma cunhada, ela falava para
eu comandava a ferrovia Santos Jundiaí.
a Polícia Federal. Minhas prisões eram só no burro. Ela conhecia um oficial e falou de mim:
Enquanto eu estava na clandestinidade, no Rio, Primeiro de Maio, mas eu nunca parei de atuar “Poxa vida, ele é diretor do sindicato. Será que
não conseguia encontrar a minha família. Monta- na organização. Havia vários companheiros que ele está preso, podia ver isso?”. Aí o cara deu o
mos um esquema para levar todos para São Pau- tinham as mesmas ideias, como o [Carlos] Mari- serviço para ela: “Ele está na OBAN”. Aí ela foi
lo. Com um caminhão de mudança, meu irmão ghella. Reunimos o comitê estadual e pergunta- me levar roupa na OBAN, para ficarem sabendo
levou todas as coisas da família para São Paulo. mos “qual é a saída?” “O comitê central não dá que ela sabia que eu estava preso lá.
mais, a ditadura está aí”. Então criamos a Ação
Primeiro eles ficaram em Bragança, num sítio e Libertadora Nacional, a ALN. Fiquei doze dias na OBAN. O meu companhei-
depois foram para Jundiaí, onde morava a famí- ro falou coisas graves de mim, e eu fui arrebenta-
lia da minha mulher. Depois que fiquei sabendo Na casa do meu pai, a família vivia modesta- do. Uma noite, saí da cela forte e encontrei com
as dificuldades que eles passaram. mente. Criavam coelho, no quintal tinha cabra, ele. Usei aquela posição de dirigente comunista,
galinha, tudo. E meus filhos frequentavam o gru- disse que ele estava falando demais. Aí, nessa
A minha família foi primeiro para São Paulo e po escolar. madrugada, mesmo eu estando arrebentado, eles
depois fui eu, que fiquei em outra área clandes- me torturaram de novo. Não sei se foi ele que fa-
tina. Fiz todo o esquema contrariando o partido As consequências foram mesmo quando eu fui lou ou se tinha microfone.
e fui chamado de irresponsável. Vim para São preso em 1970, aí sim a família sofreu, passou di-
Paulo por minha conta. Eu assumi essa respon- ficuldade. Fui levado diretamente para a OBAN. Depois fui para o DOPS, onde sofri ainda mais.
sabilidade. A minha opinião era que a direção do Apanhei muito mais do que na OBAN. O DOPS
Eu fui preso onde trabalhava. De acordo com a tinha minha vida todinha, viagem à URSS, cur-
partido estava errando, que de 1955 para a frente,
nossa organização, mesmo fazendo organização sos, Cuba, viagem, conferências. Se eu tinha apa-
desde a morte do [Joseph] Stalin, não havia mais
revolucionária, se possível tinhamos que ter um nhado na OBAN, me arrebentaram no DOPS.
educação revolucionária.
emprego. E eu trabalhava na Cooperativa Habi- Costumo dizer que não é o pau de arara, e sim o
Primeiro, fiz um esquema clandestino, sem con- tacional União Sindical, que era dos ferroviários. que eles fazem em cima de nós, no pau de arara,
tato com a minha família. E quando fiz contato Quando cheguei no trabalho, a OBAN já estava e isso era diariamente.
com a minha mulher, fui encontrá-los e a minha lá, com metralhadora e o diabo. Fui preso porque
menina não me reconheceu. Ela tinha um ano e um companheiro caiu e o outro conseguiu fugir. Fiquei dezoito dias lá, mais doze na OBAN. Fo-
pouco. Coitadinha, ela me olhou como quem diz Ele pediu para outro companheiro me avisar. E ele ram 30 no total. Minha última estada no DOPS
Quando recebi a mensagem por e-mail me pada de tudo. Eu não vi nada”. Felizmente como os pais da Priscila [Arantes] e do André
convidando para participar [da Audiência não perdi meu pai, porque apesar de tudo o [Arantes], da Iara [Lobo], da Raquel [Rosa-
sobre as crianças atingidas pela ditadura], que passou, ele está vivo. A minha mãe fez len], são pessoas que a gente tem de respeitar
num primeiro momento pensei que não ti- de tudo para transformar nossas vidas em e admirar. Que tinham um ideal e passaram
nha nada para contribuir, que não tinha vidas normais. o que passaram para hoje, quarenta e poucos
nada que pudesse ajudar porque eu conhe- anos depois, nós termos um país melhor.
ci crianças, especialmente quatro crianças, “Felizmente não Até hoje eu não sei tudo que o meu pai pas-
e diante dessa situação que eu sei que eles
viveram, eu achava que não tinha muito a perdi meu pai, sou. Durante esses onze anos de vida fora do
país, e depois, quando voltamos, em 1980,
acrescentar. Um deles, que tem a minha ida- porque apesar de para o Brasil, não sabíamos – meu irmão e
de, aos 2 anos de idade foi fichado no DOPS
como subversivo perigoso, o Ernestinho [Er- tudo o que passou, ele eu – exatamente o que estava acontecendo,
nesto Nascimento] e os seus primos. está vivo. A minha mas sabíamos que alguma coisa ruim esta-
va por trás daquela situação toda.
Eu nasci em 1968, em Osasco, em plena mãe fez de tudo
A Iara Lobo mencionou uma coisa muito
greve geral. Uma confusão, um caos no país, para transformar importante, que é a questão do respeito à
especialmente na região de Osasco. O meu
pai, Darcy Rodrigues, servia no quartel de nossas vidas em imagem dos nossos pais. Hoje, na internet,
tem muita coisa que eu descobri sobre o
Quitaúna. Era sargento na época e lugar te- vidas normais” meu pai que ele não contou para nos poupar.
nente do Capitão [Carlos] Lamarca.
Quando eu tinha seis meses de idade, meu Eu estava com seis meses e a minha mãe Lembro-me que, em 1999, tinha o hábi-
pai, ciente da gravidade da situação, tentou, encontrava-se grávida na época. Ela não sa- to de ler a revista IstoÉ, pela internet, toda
e conseguiu, obviamente, poupar a minha bia, nem meu pai, que meu irmãozinho es- segunda-feira. Fazia isso no meu horário de
mãe e eu de qualquer problema que ele sa- tava chegando. Nós fomos para o exterior, almoço e não lia a revista inteira porque não
bia que estava por vir e nos mandou para passeamos por alguns lugares – passeamos dava tempo. Numa segunda-feira, abri a re-
a Europa no mesmo voo com a esposa do entre aspas – até conseguir asilo político em vista numa reportagem de capa que falava
Capitão Carlos Lamarca e seus filhos. Cuba, onde fomos todos, a esposa do Lamar- sobre o assalto ao cofre do Ademar de Bar-
ca, os filhos, minha mãe, eu e meu irmãozi- ros. Comecei a ler a matéria e pensei: “Não
Então, quando recebi esse convite, pensei: nho que nasceu lá. me interessa”. E continuei lendo a revista, as
“O que é que eu tenho para falar? Eu fui pou- outras matérias. Mas fiquei com aquilo na
Vivi minha infância inteira em Cuba até cabeça porque eu não sabia o que era o as-
meus 11 anos de idade. É um país que eu amo, salto ao cofre do Ademar, mas alguma coisa
que me deu a base para o que sou hoje. Um me falava que já tinha ouvido aquela histó-
À esquerda, Darcysito e Dora de uniforme escolar, Cuba país onde aprendi que pessoas como meu pai, ria, que aquilo tinha a ver comigo.
Quando decidi conjuntamente com o Capitão No momento da ação, me encontrava junta- dura militar, acabei sendo preso em abril de 1970,
Carlos Lamarca abandonar as fileiras do Exér- mente com o camarada José Araújo Nobrega, durante treinamento de guerrilha no Vale do Ri-
cito Brasileiro e aderir à luta armada contra o tentando resgatar armas, munições que se en- beira, tendo sido libertado em 14 de junho, jun-
arbítrio e a tirania, instalado em nossa pátria contravam no aparelho utilizado pelo compa- tamente com outros 39 companheiros em troca
pelos militares, o primeiro pensamento foi ga- nheiro Pedro Lobo, preso em Itapecerica. Por da liberdade do embaixador alemão, sequestrado
rantir a integridade e a segurança de nossos ironia do destino, o embarque de nossos fami- por um grupo de combate da VPR, comandado
familiares. liares estava previsto para o dia 24, às 20 horas, pelo saudoso camarada Eduardo Leite, o Bacuri.
Em discussão com lideranças da Vanguarda no aeroporto de Congonhas, com o destino
inicial sendo a Itália. Sem nada combinar com Fomos levados para a Argélia e de lá, pouco
Popular Revolucionária (VPR), decidimos en-
o camarada Lamarca, decidi ir ao aeroporto, tempo depois segui para Havana, em Cuba,
viar Rosalina e Dora Augusta, minha esposa
despedir-me de Rosa e Dora Augusta, e acabei onde após um ano e meio de separação, reen-
e filha, juntamente com Maria Pavan, César e
encontrando com Lamarca, que decidira igual- contrei com Rosalina, Dora Augusta, e Darcy-
Claudia, esposa e filhos de Lamarca, para o ex-
mente despedir-se de seus familiares. sito. Não sabíamos, quando Rosa saiu do Brasil
terior, mais precisamente para Cuba, mantendo-
que ela se encontrava grávida de nosso segun-
-as afastadas de nosso país, enquanto durasse a Como relato pitoresco desta nossa ida ao ae- do filho, que veio a nascer em território cubano.
guerra revolucionária. roporto, à época a TV Excelsior estava exibindo
Em decorrência da prisão de companheiros uma novela, onde existiam cenas de violência e A separação dos familiares e o pior, a possibi-
que estavam pintando um caminhão com as co- tiroteios, sendo que uma das cenas estava sen- lidade de nunca mais tornar a vê-los, martiriza-
res do Exército, em uma propriedade rural em do gravada nesta noite no aeroporto de Congo- vam nossas mentes durante todo o tempo.
Itapecerica da Serra, fomos obrigados a anteci- nhas. Ao ouvirmos os tiros e policiais correndo,
Decorridos mais de quarenta anos dos fatos,
par a ação expropriatória a ser realizada no IV RI chegamos a pensar que tínhamos sido locali-
tenho que necessariamente fazer uma severa
de Quitaúna, na cidade paulista de Osasco. zados pela repressão e rapidamente colocamo-
autocrítica, pois por questões de segurança, e
-nos em posição de defesa, já que não tínhamos
Acabamos a realizando de forma parcial, no sempre buscando preservar meus familiares,
a mínima intenção de sermos capturados.
dia 24 de janeiro de 1969, quando o camarada jamais comentei com eles detalhes de minha
Lamarca, em companhia do cabo Mariane e do Para nosso alívio, eram somente cenas de uma militância política, fazendo com que eles fos-
soldado [ Carlos Roberto] Zanirato, saíram com novela. Esta foi a última vez que Lamarca viu a sem descobrindo somente na adolescência e na
munição e 63 fuzis daquela unidade militar. esposa e filhos. Engajados na luta contra a dita- juventude detalhes de minha atuação política.
Meu nome é Luis Carlos Max. Sou um dos Lá, nós conhecemos o Carlos Lamarca, coi- abaixar a cabeça. Isso porque não podíamos
quatro netos da Tia Tercina [Dias de Oliveira]. sa de que tenho muito orgulho. Ele morava lá reconhecer o lugar para onde estávamos indo.
Somos eu, minha irmã Zuleide, tem o Ernesto, no meio do mato mesmo. A morte dele foi uma
e meu irmão de criação, que é o mais velho, o perda muito dolorosa. Da mesma forma que ele Aí fomos para Peruíbe. E foi lá que fomos
Samuel. Nós fomos criados com minha avó des- era rígido por ser um comandante de uma or- presos. A tensão maior foi quando de madru-
de cedo. Depois que minha mãe adoeceu, nós ganização, era doce também. Ele nos deu uma gada a polícia chegou em casa, foi em março
fomos viver com a nossa avó. grande formação. Ele nos ensinava muita coisa ou abril de 1970. Estávamos eu, vó, Samuel e
e o tenho como um pessoa muito querida. Zuleide. O Lavechia já não estava mais lá. Ali
Na época da greve de Osasco eu tinha 5 anos. sim percebemos que a coisa era pesada mes-
Logo em seguida, minha avó teve que entrar na Quando o Vale do Ribeira caiu e a polícia fi- mo. Vimos a brutalidade daquela invasão. A
clandestinidade, junto com meu tio, que era sin- cou sabendo da existência do local, a situação já minha avó ficou muito tranquila. Ela sempre
dicalista e foi cassado. Nessa época, a vó era do não podia mais se sustentar, então tivemos que foi muito bem preparada para isso e sempre
Partido Comunista – que foi cassado. sair de lá e fomos para uma casa em Peruíbe. nos preparou. Era de madrugada quando nos
Desde criança nós tínhamos noção do perigo, acordou: “Olha, não está acontecendo nada,
Ficamos indo de um aparelho para outro, fu- éramos preparados para isso, vivíamos nessa recolham as coisas, arrumem as roupas, nós
gindo da polícia, até que fomos para o Vale do tensão. Não éramos crianças comuns que po- vamos ter que sair”. E nós tranquilamente fi-
Ribeira, no final de 1969. O Vale do Ribeira era diam brincar na rua. zemos isso. Mas sentimos a invasão, a polícia
um centro de treinamento de guerrilha, para chegando, entrando e revirando as nossas coi-
preparar o pessoal para a luta armada. Quem
chefiava era o Carlos Lamarca. Nós não mo- “Desde criança nós sas todas. Foi pesado.
rávamos na cidade nem no povoado, e sim no tínhamos noção Depois disso, os militares e a polícia invadi-
vale, dentro do mato. Ali não podia entrar nin- ram o Vale do Ribeira, teve tiroteios, bombar-
guém, era escondido. do perigo, éramos deios. Ficou uma linha de fogo mesmo. Se esti-
Lá, vivíamos minha avó e nós três – eu,
preparados para isso, véssemos ali, não sei o que iria acontecer. Mas
o Lamarca nos tirou dali. Quando os militares
Zuleide e o Samuel, irmão adotivo que minha vivíamos nessa tensão. estouraram a casa, foi muito sigiloso, não era
avó criou desde pequeno. O Ernesto ainda não
estava conosco. Estava em outro aparelho com Não éramos crianças todo mundo que sabia. A casa serviu de arma-
dilha para outros companheiros que chegas-
o pai e a mãe. Só encontramos com ele quando comuns que podiam sem ali sem saber que havia sido invadida. Aí
fomos presos e levados ao Juizado de Menores.
E tinha o Nicolas, que era o codinome do José brincar na rua” chegavam lá e já eram presos.
Lavechia. Éramos uma família de camponeses Fomos levados para São Paulo, para o DOPS.
de fachada. Ficamos lá mais ou menos três A gente ficava dentro de um aparelho. Era Até hoje, quando me lembro, é doloroso. Fo-
meses. Nessa época, eu estava com 6 anos, a complicado. Não podia fazer barulho porque o mos colocados em uma sala e sabíamos o que
Zuleide com 4 e o Samuel com 9. vizinho de baixo sabia que tinha crianças. Vol- estava acontecendo. A situação estava ten-
À esquerda, Luis Carlos fichado antes do banimento do país, 1970
ta e meia tínhamos que sair de uma casa para sa. Hoje eu vejo meus filhos com 6, 7 anos...
Foto de acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo,
outra. Nós íamos dentro do carro sem poder Eu não vejo neles o preparo psicológico que
reprodução de Luiza Villaméa, Revista Brasileiros olhar para a rua, tínhamos que fechar os olhos, tínhamos. Aí falamos: “Mas com 6 anos você
Quero agradecer a todos os que me encoraja- quando elegeram José Ibrahin presidente do Mantovani do Nascimento e outros compa-
ram a escrever minha história, ou melhor, nos- sindicato. Meu pai não compôs a chapa dessa nheiros. Nessa época vivi esse ambiente, mas
sa história. Muito do que contarei aqui talvez vez para que não fosse impugnada, já que toda era ainda uma criança muito pequena.
não fosse necessário para uma narrativa formal chapa precisava ser aprovada previamente
do que se passou. Só os documentos públicos pelo DOPS, mas fez questão de comparecer ao No dia 18 de maio de 1970 fui preso em São
seriam suficientes para mostrar as atrocidades DOPS junto com Ibrahin e outros companhei- Paulo, com minha mãe. Eu tinha apenas 2 anos
que nós passamos, provando que até as crian- ros para negar que era comunista e solicitar a de idade. Fomos levados para a Oban, onde
ças perderam sua cidadania durante a ditadu- aprovação da chapa. meu pai foi torturado na minha frente. Passei
ra militar. Mas não foi só isso que perdemos e ainda pelos cárceres do DOPS, Presídio Tira-
me estendo um pouco mais para que fiquem “Eu tinha 2 anos e dentes e DOI-CODI/SP. Depois de um tempo,
registrados os sentimentos, os desdobramen- me separaram da minha mãe e fui para um
tos, as consequências e os pontos de vista das 3 meses e fui tratado local incerto, talvez para o Juizado de Meno-
crianças que passaram por situações adversas, como ‘Elemento Menor res1. Minha mãe solicitou aos militares que me
inclusive até os dias de hoje. E assim possamos entregassem para minha madrinha, tia Bê, mas
lutar por um futuro onde possamos dizer: “Los Subversivo’, terrorista...” nunca o fizeram ou entraram em contato com
niños nacen para ser felices” – José Martí. essa tia. Fui mantido lá como qualquer outro
No 1º de maio de 1968, conduziu os trabalha- preso político e me levaram diversas vezes às
Meu pai iniciou sua militância no ano de dores metalúrgicos de Osasco junto com Ze- seções de tortura para ver meu pai preso no
1959 com apenas 16 anos, sempre incentiva- quinha Barreto, outro grande companheiro de pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam
do pela minha avó Tercina Dias de Oliveira. luta, até a Praça da Sé, onde houve o primeiro me torturar com uma corda, na sala ao lado, se-
Atuou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), confronto com as forças de repressão do Esta- parados apenas por um biombo.
foi eleito na chapa do Sindicato dos Metalúr- do, que estavam disfarçadas de civis. Tal ato
gicos de Osasco em 1962, onde militou até foi o ensaio para a grande greve dos metalúr- Eu tinha 2 anos e 3 meses e fui tratado como
ser cassado pela ditadura em 1964. Continuou gicos de Osasco, ocorrida em junho de 1968, “Elemento Menor Subversivo”, terrorista e fui
sua luta clandestina organizando os trabalha- em que os trabalhadores foram duramente re- banido do país por decreto presidencial, con-
dores através das comissões de fábrica, o que primidos pelos militares, inclusive com tiros. forme consta nos documentos no arquivo do
lhe rendeu oito passagens pelo Departamento Com sua prisão decretada, teve que ir para a Estado de São Paulo. Fiquei preso até 16 de
de Ordem Política e Social (DOPS) até 1967, clandestinidade, passando a atuar na Vanguar- junho de 1970, quando fomos libertados no
À esquerda, Ernesto fichado antes do banimento do país, 1970
da Popular Revolucionária (VPR), junto com o resgate feito pelo Capitão Carlos Lamarca na
Foto de acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo,
Capitão Carlos Lamarca, minha avó Tercina troca de 442 presos políticos pelo embaixador
reprodução de Luiza Villaméa, Revista Brasileiros Dias de Oliveira, minha mãe Jovelina Tonello Alemão Ehrenfried von Holleben.
1
Como não temos registro do Juizado e meus primos maiores não se recordam de mim no Juizado de Menores, minha mãe desconfia que eu estivesse nas mãos de um militar que solicitou a minha
adoção oficial, coagindo-a. No meu regresso do exílio, conversando com minha madrinha,Tia Bê, ela me contou que, naquele dia, foi avisada por telegrama para que fosse me buscar no Juizado de
Menores. Ela foi correndo me buscar com meu tio João Calixto. E para a surpresa deles, há vários dias eu já estava no exterior. Foi quando ficou sabendo que meus pais estavam presos. O ofício que
registra os trâmites no dia 15 de junho de 1970, solicitando exames de corpo delito e fotos desse processo, menciona que os menores estão no Juizado e nele consta apenas um número de telefone.
2
Para reparar a história é necessário corrigir o número de presos libertos nessa ação. Como comprovado por documentos e testemunhos, os menores foram tratados como presos políticos, não
permitindo que fossem levados por outros familiares, fomos expostos a torturas física e psicológica e ainda oficialmente banidos por decreto presidencial.
3
Após dias e horas de interrogatório por meio de tortura psicológica, minha avó Tercina Dias de Oliveira, “A Tia da VPR”, se alterou com seu interrogador e bateu um grande cinzeiro de vidro
na mesa. Este lhe deu três palmatórias com uma régua em uma das mãos, em seguida ela lhe estendeu a outra mão à palmatória e, após gritar “Você não tem mãe, não?”, fechou firmemente seus
lábios e o encarou de maneira corajosa. Encerrou-se o interrogatório e não foi mais torturada.
Sem minimizar a coragem, firmeza e importância que minha avó teve nesse momento histórico, quero registrar meu agradecimento a esse militar cujo ato não só garantiu que eu ficasse nas mãos
de minha família, como pode ter salvado as vidas de meus pais no momento em que eu passei a constar do registro oficial (na foto dos banidos, sendo quarenta adultos e quatro crianças, publicada
na capa dos grandes jornais conforme exigência de Carlos Lamarca para libertar o Embaixador Alemão), tornando, assim, público que meus pais se encontravam presos, não podendo ser mais
desaparecidos, como aconteceu com muitos presos mortos em tortura. E, conforme testemunhas, meu pai estava mais para lá do que para cá.
4
Meu pai e minha mãe ficaram presos quando eu fui banido com minha avó, e só saíram dez meses depois, na troca pelo embaixador Suíço e foram para o Chile recebidos pelo primeiro
presidente socialista eleito em eleições diretas, Salvador Allende. Meus pais foram para Cuba em agosto de 1971, por isso fiquei mais de um ano sem vê-los – já estava com 3 anos e meio quando
os reencontrei. No entanto, eles não ficaram comigo, o ímpeto desses jovens guerreiros os levou a seguir sua missão para libertar nosso Brasil da ditadura opressora, e após fazerem um curso de
guerrilha em Cuba, viajaram o mundo para fazer outros treinamentos, reencontrar outros exilados na Europa e na América Latina, no sentido de mobilizá-los no Chile para retornar ao Brasil e
continuar a luta contra a ditadura militar. Entre uma viagem e outra, até 1974 eles passaram por Cuba várias vezes (não ficavam em nossa casa, ficavam de quarentena com outros companheiros
em trânsito) e esses encontros e partidas eram muito sofridos para mim.
5
A Tia Damaris foi minha terceira mãe, (a segunda e de maior convivência e afeto foi minha avó). Quando chegamos a Cuba fomos morar na mesma casa onde ela foi acolhida pelo ICAP (Instituto
Cubano de Amistad con los Pueblos) um ano antes de nós chegarmos. Viúva de Antônio Raymundo Lucena, que foi metralhado em casa, ela e os três filhos foram presos. Tia Damaris foi banida
do Brasil em 1969, trocada pelo Cônsul japonês. Vivia com três de seus quatro filhos (o Ariston, mais velho, ficou preso no Brasil), os gêmeos Adilson (“Kito”) e Denise (7 anos na época), a Ângela
Telma (5 anos) e a filha adotiva Ñasaindy de Araujo Barret (Inhai, como a chamávamos quando tinha um ano de idade), caçula da casa nascida em Cuba em 4 de abril de 1969, filha de José Maria
Ferreira Araújo e Soledad Barret Viedma, assassinados em janeiro de 1973, em Pernambuco, sob tortura.
Tia Damaris, esbelta baiana, enérgica, corria sempre com a gente, tanto em uma emergência hospitalar como para nos levar para o internato (na creche ou escola). Éramos oito crianças entre 1
e 9 anos e só ela e minha avó para cuidar. Ela nos deixava na creche aos domingos no fim da tarde e nos buscava nos sábados de manhã. Fiquei quase três anos na creche e mais cinco na escola-
-internato. O primeiro ano ficamos juntos eu a Telma, Zuleide e a Inhai. A Telma e a Zuleide tinham dois anos a mais do que eu e davam para mim e para Inhai uma certa segurança, quando elas
saíram a Inhai e eu sentimos muito, dormíamos em uma beliche meninos e meninas juntos. Eu e a Inhai dormíamos um do lado do outro e quando o coração de um de nós apertava nos dávamos
a mão e falávamos: vamos chorar pra Tia Damaris vir nos buscar... uaaahhh uaaahhh uaaaahhhh... até ouvir uma voz: “niños, vallasen a dormir”.
Manoel Dias do Nascimento e da militância do marido. Depois de passar pela Ope- minha presença. Só para eu falar alguma coisa”, relatou
ração Bandeirantes (OBAN) e pelo Departamento de Manoel. Chorando muito, Jovelina testemunhou: “Ele
Jovelina Tonello M. do Nascimento Ordem Política e Social (DOPS), foi com o filho para a [o filho Ernesto] dizia: ‘Não pode bater no papai. Não
Foram militantes da Vanguarda Popular Revolucioná- ala feminina do Presídio Tiradentes. pode’. Para mim foi muito duro. Batiam muito em mim,
ria (VPR), organização comandada pelo guerrilheiro mas não me perguntavam nada porque sabiam que eu
Em fevereiro de 1971, Manoel e Jovelina foram dois
Carlos Lamarca. Ele foi um de seus fundadores, en- não tinha participação nenhuma”.
dos 70 presos políticos que tiveram a liberdade troca-
quanto ela iniciou a militância após a prisão e o exílio. da pela do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, Em 15 de agosto de 1971, o casal chegou a Cuba, onde
Antes de ajudar a criar a VPR, Manoel era líder sin- sequestrado por militantes de resistência à ditadu- reencontraram Ernesto. Jovelina, então, foi à Coreia do
dical filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). ra. Exilaram-se no Chile. Na ocasião, contaram o que Norte fazer treinamento de técnicas de guerrilha. Em
Entrou na clandestinidade em 1968, após ter a prisão tinha acontecido com eles para os cineastas estadu- 1972, ela e Manoel voltam ao Chile para se prepararem a
decretada. Incentivou a mãe, Tercina Dias de Oliveira, nidenses Haskell Wexler e Saul Landau, cujo docu- retomada das atividades guerrilheiras no Brasil.
a também contribuir para a VPR. Sua tarefa era or- mentário Brasil, um relato da tortura tornou-se uma
Em setembro de 1973, com o golpe contra Salvador Al-
ganizar a guerrilha em São Paulo (SP). Foi preso em das primeiras denúncias internacionais dos abusos
lende, os dois foram presos no Estádio Nacional. O ca-
maio de 1970, quando cobria um ponto para passar cometidos pelo regime.
sal conseguiu fugir e se abrigar num refúgio da ONU, de
informações a companheiros. No mesmo dia, mais “Antes de eu descer do pau de arara, minha compa- onde seguiram para Cuba novamente.
tarde, a companheira Jovelina e o filho Ernesto foram nheira chegou com meu filho. Este filho assistiu a
presos na casa da família no bairro de Vila Formosa. Lá, Jovelina fez curso de enfermagem. Ela e o marido
parte da tortura. Em seguida, puseram minha com-
Jovelina trabalhava na prefeitura de Osasco (SP) e foi voltaram ao Brasil em 1985. Ernesto retorna com Terci-
panheira no pau de arara, tomando choque em todas
demitida durante a licença maternidade por causa na em 1986.
as partes do corpo, inclusive nas partes íntimas. Na
Filho torturado
5. “Me levaram até o cárcere onde fui
torturado...
Antes de descer do pau de arara minha
companheira chegou com meu filho e ele
assistiu parte da tortura
Bateram no pai na frente dele...
ele dizia: “Não pode bater no papai, não
pode, diz que não pode”
A criança em seguida foi levada para a
policial feminina...
Espancavam a própria criança pra ela se
alimentar... bateram nele na minha frente”
Cenas do documentário Brazil: A Report
on Torture (1971), de Haskell Wexler e
Saul Landau, filmado no Chile, logo após a
chegada dos 70 presos políticos
3 3 4
Diário de Jessie
“(...) Fiquei muito triste em me separar de
você. Chorei muito, todo o tempo. Desde o
início deste diário tenho te falado de como
seria duro este momento. Mas tenho te
falado também da necessidade dele (...)”
Colombo Vieira de Sousa Júnior nasceu Jessie Jane Vieira de Sousa nasceu em Bangu (Presídio Talavera Bruce) e ele no Instituto
21 de abril de 1949, em Bom Jesus do Galho, então Penal Cândido Mendes (Presídio da Ilha Grande).
em 6 de março de 1950. Filho de Colombo Viera de Sou-
distrito de Caratinga (MG), numa família de militan- Ficaram cinco anos sem se ver e a única forma de
sa e Inah Meireles de Sousa. Iniciou sua militância em
tes. Filha de Leta de Souza Alves e Washington Al- comunicação eram cartas. Em 1972, conseguiram
1967. Foi militante da Dissidência do Estado do Rio de
ves da Silva, ambos militantes do Partido Comunis- autorização judicial para se casar. Em 1975, con-
Janeiro, Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-
ta Brasileiro (PCB) e do grupamento comunista que quistaram o direito à visita íntima. Assim, Jessie en-
8) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Sua irmã, Ina
deu origem à Ação Libertadora Nacional (ALN). Seus gravidou na prisão e, em setembro de 1976, nasceu
Meireles de Souza, também militante do MR-8, foi
pais foram presos e torturados na Operação Bandei- Leta, filha do casal, na Clínica São Sebastião (Rio
presa, no Paraná, em abril de 1969 e cumpriu dois anos
rantes (Oban). Seu pai, Washington, foi banido para de Janeiro) sob forte vigilância policial. A bebê per-
de prisão no Rio. Quando foi preso, sua mãe, a exem-
o Chile no sequestro do embaixador suíço Giovanni maneceu alguns meses ao lado de Jessie na prisão
plo do que aconteceu com a mãe e irmã de Jessie, foi
Enrico Burcher, em dezembro de 1970. e depois foi entregue à sua sogra. Jessie e Colombo
presa e levada para o DOI-CODI do Rio de Janeiro onde
foram soltos em 1979 e estão casados até hoje.
permaneceu por um mês, obrigada a assistir seu filho Em 1969, Jessie entrou para Ação Libertadora Nacio-
ser torturado. Colombo tem um longo percurso no mo- nal (ALN). Na organização, conheceu Colombo Viei- Jessie tem quatro irmãos: Sandra Maria Alves de
vimento sindical junto ao Sindicato dos Metalúrgicos ra de Souza. O casal viveu na clandestinidade até Sousa, presa duas vezes em São Paulo e tortura-
de Volta Redonda onde foi assessor político. Foi asses- 1º de julho de 1970, quando foram presos durante da na Operação Bandeirantes, em 1970; Vera Vani
sor parlamentar do líder metalúrgico Juarez Antunes, a ação de sequestro do avião Caravelle PP-PDX da Alves de Pinho, voltou clandestina do Chile e assim
de quem foi secretário de governo durante seu breve Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro, realizada junto viveu por nove anos no Brasil; José Alves Neto-Juca,
mandato à frente da Prefeitura de Volta Redonda. Foi com os irmãos Heraldo e Fernando Palha Freire.Es- preso junto o pai no Chile, ficaram por três meses
secretário de transporte da Prefeitura de Caríacica tava com 21 anos quando foi presa e barbaramente no Estádio Nacional; Ivan de Sousa Alves, casado
(ES) e presidente do Ceasa deste estado quando Vitor torturada no DOI-Codi, do Rio de Janeiro. Jessie e Co- com uma ex-presa no Uruguai e ainda vive na Sué-
Buaz era governador. Foi também assessor do gover- lombo foram condenados a dezoito anos de prisão cia. Com o banimento do pai, as prisões de Jessie,
nador Leonel Brizola. Hoje está aposentado. e ficaram presos por nove. Ela, na penitenciária de Sandra e de sua mãe, todos entraram na clandesti-
As memórias relacionadas ao nascimento da A gravidez transcorreu com tranquilidade, militares que se opunham ao projeto de abertura
minha filha me transportam para situações con- mesmo sem os exames próprios ao pré-natal, mas “segura, lenta e gradual” proposto pelo ditador
traditórias. De um lado, a imensa felicidade com o parto foi mais complicado. Ernesto Geisel, se somava aos inúmeros atos de
a chegada daquele pequenino ser, que nos trazia terrorismo que naquele momento ocorriam na ci-
Quando faltava um mês para o nascimento da dade do Rio de Janeiro.
esperanças, alegrias e ao mesmo tempo, angús-
Leta, fui transferida para o hospital penitenciário
tias pela consciência de que não poderíamos tê-
e ali permaneci até o dia do seu nascimento. Nes- Naquela noite, terminei dormindo e fui acorda-
-la conosco. E, de outro lado, a preocupação pelo
se período pude receber visitas da família do Co- da pela presença de soldados armados dentro do
futuro que poderíamos vislumbrar para nossa fi-
lombo, que já me dava assistência ao longo dos quarto. A partir deste momento, nossa presença
lha, já que estávamos condenados a muitos anos
anos em que estive presa. E assim pudemos estar no hospital se transformou num verdadeiro hor-
de prisão e não sabíamos quanto tempo mais vi-
juntos aos sábados e domingos. ror. Como ainda não haviam cortado o telefone,
veríamos sob a ditadura. Havia ainda a ausência
pude me comunicar com a advogada Abigail Pa-
da minha família, que se encontrava no exílio. Neste hospital-prisão permaneci isolada em
ranhos, ex-presa política, e o médico Leo Benja-
uma pequena cela, sem exercícios ou banho
A família de meu companheiro, Colombo Viei- mim, querido e corajoso combatente, que imedia-
de sol. E, evidentemente, sem qualquer assistên-
ra de Sousa Júnior, também já havia sido atin- tamente chegaram ao hospital e, após um difícil
cia médica.
gida pela repressão. Porém, quando soube que diálogo com as autoridades policiais ali presen-
estava grávida, tudo o mais se tornou secundário. Os hospitais militares se negaram a fazer o tes, conseguiram que os soldados ficassem do
parto. Diante dessa recusa, os companheiros lado de fora do quarto.
A história da minha gravidez se insere na his-
organizaram um fundo que nos permitiu pagar
tória das lutas contra a ditadura, já que ela ocorre Esses acontecimentos me fizeram ficar em
um hospital privado e, mais importante, o parto
no momento em que o regime estava acossado alerta. Ao amanhecer chegaram vários homens
sendo realizado por um médico de absoluta con-
pelo crescimento das oposições e por um cres- que, pela janela do meu quarto, passaram a me
fiança. Tratava-se do dr. Jeferson Carneiro Leão,
cente desgaste no exterior diante das denúncias ameaçar dizendo que iriam matar a minha filha,
ele mesmo militante da causa democrática e que
sobre violação dos direitos humanos. que era necessário realizar o que eles chamavam
havia trazido ao mundo vários filhos de compa-
de operação Jacarta (em referência à matança de
Minha gravidez só foi possível com a transfe- nheiras nossas. Mas eu só o encontrei a poucos
comunistas que a Indonésia havia realizado). Eu,
rência dos presos políticos da Ilha Grande para o dias do parto, quando fui levada à clinica.
encolhida na cama, tentava me comunicar com
centro da cidade do Rio de Janeiro após uma lon-
Dia 19 de setembro, um daqueles domingos o mundo exterior. O telefone já havia sido corta-
ga greve de fome realizada por aqueles compa-
de visitas no presídio político, minha sogra per- do e nenhuma enfermeira atendia aos meus cha-
nheiros. O episódio obrigou o regime a reconhe-
cebeu que eu, sem saber, estava em trabalho de mados. Nem a minha filha, que se encontrava no
cer a existência de presos políticos e resultou na
parto desde a noite anterior. Logo os companhei- berçário, vinha para mamar.
construção de um presídio específico para aque-
ros acionaram os carcereiros e fui levada para a
les presos. Tínhamos outras demandas e, dentre Em algum momento, dr. Jeferson, me pedindo
maternidade sob forte escolta, ainda na caçamba
elas, a de que fosse permitido o encontro entre que ficasse calada, entrou no quarto para avisar
de um camburão e algemada. Lá me esperavam
os casais presos. Este era o nosso caso. Eu e Co- que eu seria imediatamente enviada à penitenci-
alguns companheiros, que impediram que os
lombo já estávamos há anos sem nos encontrar ária e que a escolta policial chegaria a qualquer
soldados da Polícia Militar, que faziam a escolta,
e para o carcereiro de plantão no sistema peni- momento. Logo após, chegou uma assistente
entrassem na sala de cirurgia.
tenciário do Rio de Janeiro, tal reivindicação se- social, Gloriete, servidora do sistema penitenciá-
ria atendida se autorizada pelo juiz da Auditoria À uma hora da manhã do dia 20 de setembro rio, que ajudou a me levantar – eu estava opera-
de Aeronáutica. E qual não foi a nossa surpresa de 1976 nascia Leta, de cesariana, no Hospital São da há menos de 48 horas – e nos encaminhamos
quando conseguimos tal autorização? E, como a Sebastião. Inocentes, eu com minha alegria de para o pátio do hospital onde um camburão nos
medicina dizia que eu não poderia engravidar, ser mãe e ela que só queria saber de mamar, não aguardava. No percurso, sob os olhares hostis
nem pensamos em algum tipo de anticonceptivo. sabíamos que naquela madrugada ocorria o se- que surgiam dos outros quartos, pude ver minha
Foi assim que nossa filha foi gerada, uma luz da questro de Dom Adriano Hipólito, bispo de Nova cunhada, Iná, e Iramaya Benjamim. Elas estavam
natureza em uma fresta aberta pelas campanhas Iguaçu e conhecido por suas posições a favor dos impedidas de se aproximar. Minha angústia era
contra a ditadura. injustiçados. Esse crime, realizado por grupos de absoluta pela falta de notícias da minha filha e
Sou filha do ex-deputado Rubens Beyrodt ao governo Jango, como Partido Comunista
Paiva, que foi cassado na última lista das várias Brasileiro, ainda na ilegalidade (que, por sua
que foram publicadas a partir de primeiro de vez, usou a legenda do PSD).
abril de 1964, pelo golpe militar. Depois de au-
xiliar a fuga do Procurador Geral da República, Rubens Paiva, assim como outros deputa-
Valdir Pires – que atualmente é vereador em dos do PSB e PCB utilizaram para se elegerem
Salvador na Bahia; e, Darcy Ribeiro, Ministro em 1962, respectivamente, legendas do PTB e
da Educação. Em seguida, papai exilou-se na PSD. Como deputado eleito, ele fez parte da
Embaixada da Iugoslávia, a única Embaixada direção da Comissão Parlamentar de Inquérito
aberta em Brasília para que investigou o IBAD,
receber os perseguidos. “O testemunho que que teve um papel de
destaque na preparação
Rubens juntou-se a todos
aqueles que estavam ali trago para a semana do Golpe Militar.
refugiados e que faziam “Infância Roubada” é O testemunho que tra-
parte da Frente Parlamen-
tar Nacionalista, criada de uma adolescente de go para a semana “In-
fância Roubada” por ini-
no início dos anos 1960. quinze anos e meio” ciativa da Comissão da
Formada de uma forma Verdade “Rubens Paiva”,
quase que espontânea na Câmera Federal, a da Assembleia Legislativa de São Paulo é de
Frente Parlamentar Nacionalista foi organiza- uma adolescente de 15 anos e meio. Acredito
da por militantes de diversos partidos de es- que o meu depoimento é um pouco diferente
querda, religiosos, artistas. Enfim, grande parte do que eu ouvi aqui, hoje, apesar de ter coisas
da sociedade participante da luta que defendia bastante semelhantes. Uma delas é a capacidade
a aprovação, pelo Congresso, das Reformas de incrível que quase todos nós tivemos, em rela-
Base. Entre elas: Reforma Agrária, Reforma Ju- ção à nossa memória, que parece nos pedir: “eu
rídica, Reforma da Educação, Reforma Urbana, vou esquecer o que aconteceu, e um dia eu não
Reforma da Lei de Remessa de Lucros. lembrarei mais”.
Meu pai fez parte do pequeno Partido Socia- Isso está claro, porque apesar toda a midiatiza-
lista Brasileiro, que não tinha direito a voto, ção que existe em torno do meu pai, eu só fui
mas tinha voz de comando e direção. O PSB, dar o meu depoimento há dois anos. Eu nun-
como aliado do PTB (Partido Trabalhista Bra- ca falei, os meus irmãos talvez soubessem um
sileiro) era agregado a outras forças de apoio pouco, minha mãe sabia mais, porque fomos
presas juntas. Minha família nunca soube de
nenhuma sequência de detalhes, os meus ami-
À esquerda, foto da família Paiva reunida. gos também não. Só quem soube foi um ou ou-
De pé, Eliana, no sofá Eunice, Rubens, Aracy
e Vera, no chão Ana Lúcia, Maria Beatriz e
tro amigo, pessoas com quem eu convivo e que
Marcelo Rubens perguntaram com grande insistência.
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Aires, conseguiu pegar um voo para São Pau-Pau Ma Lucrécia Eunice Facciolla Paiva
lo, seguindo para a casa de sua família, decidi-
decidi nasceu no Brás, em São Paulo, em 7 de novembro de
do a não mais sair do Brasil. Mudou-se com a 1929. Filha de imigrantes italianos, estudou no Colé-
família para o Rio de Janeiro, voltou a exercer gio Notre Dame de Sion.
a engenharia e a cuidar de seus negócios, mas man-
man
Rubens Beyrodt Paiva nasceu em Santos tendo contato com os exilados. Conheceu Rubens aos 17 anos, através de Maria, irmã
em 26 de dezembro de 1929. Filho de Jaime Almei- caçula de Rubens. Eunice e Rubens casaram-se com
da Paiva, advogado, fazendeiro do Vale do Ribei- Em 20 de janeiro de 1971 estava na sua casa quando
a mesma idade, aos 23 anos, em São Paulo, em 30 de
ra e despachante do Porto de Santos, e de Araci foi sequestrado por agentes da repressão. Foi apre-
maio de 1952. Formada em Línguas Neolatinas, pela
Beyrodt. sentada na época uma versão oficial e falsa sobre
Faculdade de Letras da Universidade Mackenzie, no
seu desaparecimento que afirmava que seu carro
Era engenheiro formado pela Universidade Ma- início da década de 1950; pela mesma universidade,
havia sido atacado por indivíduos desconhecidos e
ckenzie, em São Paulo, em 1954. Militou no movi- completou seu bacharelado em Direito, em 1977,
que, a partir dali, nunca mais havia sido visto. Esta
mento estudantil. Foi presidente do centro acadê- quando foi paraninfa de sua turma. Teve cinco filhos:
versão só foi publicamente desmascarada no ano
mico da universidade e vice-presidente da União Vera Silvia (setembro de 1953), Maria Eliana (junho de
de 2014, com documentos e depoimentos coleta-
Estadual dos Estudantes de São Paulo. 1955), Ana Lucia (fevereiro de 1957), Marcelo Rubens
dos pela Comissão Nacional da Verdade, com con-
Em outubro de 1962 foi eleito deputado federal por (maio de 1959) e Maria Beatriz (agosto de 1960).
firmações de agentes que assumiram participação
São Paulo, na legenda do Partido Trabalhista Brasi- e esclareceram as circunstâncias da tortura, morte Foi detida no dia 20 de janeiro de 1971, com sua filha
leiro (PTB). Teve seu mandato cassado no dia 10 de e ocultação do cadáver de Rubens. Eliana, mesmo dia do desaparecimento de Rubens
abril de 1964, um dia antes da edição do AI-1. Em sua homenagem, a Comissão da Verdade do Paiva. Sua filha foi libertada no dia seguinte, mas
Exilou-se na Iugoslávia e depois na França e, duran- Estado de São Paulo, instalada em 2012, assumiu Maria Lucrécia permaneceu presa por doze dias, in-
te a escala de uma viagem que fazia para Buenos seu nome, como forma de resgate de sua memória. comunicável.
Queria parabenizar o deputado Adriano dante. Eu nasci em janeiro de 1968 e o Che Neste dia, minha mãe foi presa e o Dimas
Diogo e todas as pessoas envolvidas nessa [Guevara] tinha morrido em 1967. Isso foi, Casemiro assassinado.
luta. Acho que a nossa geração tem a obri- inclusive, tema de discussão dentro da orga-
gação política e moral de passar a história a nização política, se o meu nome poderia ser Eu e meu irmão assistimos a tudo e em
limpo, como a geração de 1968 teve a obriga- esse ou não. Porque eles tinham medo, os seguida fomos levados para a OBAN. Che-
ção de resistir à violência do Estado. cartórios estavam sendo vigiados e o meu gando lá, tem um detalhe dolorido, mas im-
pai nessa época já vivia na clandestinidade. portante de se falar, porque dá um pouco
Eu sou filho de um operário que se chama a dimensão não só da violência física, mas
Devanir José de Carvalho, morto em abril Quando eu entendi a história, já na Euro- também moral. Alguns policiais estavam
de 1971. A versão oficial é que ele resistiu à pa, comecei a usar o Guevara. Até meus tios usando os objetos pessoais do meu pai,
prisão no dia 5 de abril e acabou sendo mor- e as pessoas mais próximas me chamavam como uma jaqueta e um relógio. Enfim, de
to em conflito. Meu pai era mineiro, de onde de Guevara, de Che, de comandante e come- lá, fomos entregues aos meus avós e minha
saiu no meio da década de 1950. Foi morar cei a usar, mas nunca me preocupei em ir ao mãe ficou trinta dias presa. Quando ela saiu,
no ABC com meus tios e meus avós, come- cartório e mudar o nome nem nada. Hoje, foi montada uma operação para sairmos do
çou a trabalhar como metalúrgico, era ferra- muita gente me conhece pelo Guevara. Eu país e fomos para o Chile. E nós montamos
menteiro e se envolveu nas lutas sindicais apresento um programa de TV e uso o nome uma operação, na qual eu, meu irmão e um
do ABC, na formação do sindicato e depois no GC de Ernesto Guevara. Eu tive o nome companheiro chamado Caio Venancio, tam-
ingressou no Partidão. Dali foi para a Ala roubado por conta dessa história. bém tínhamos a tarefa de entrar na embai-
Vermelha e depois o Movimento Revolucio- xada da Argentina, que era o único lugar
nário Tiradentes, que é o MRT, organização onde poderíamos ficar. Vários companhei-
que ele liderava. “Chegando lá, alguns ros brasileiros já estavam lá. Conseguimos
policiais estavam entrar numa ação violenta, na qual o Caio
Quando cheguei aqui e vi esse seminá- acabou sendo ferido. Ficamos lá três uns ou
rio “Infância Roubada”, fiquei refletindo um usando os objetos quatro meses.
pouco sobre isso. E quando a assessoria pe- pessoais do meu pai, Chegamos na Argentina no final de 1973,
diu meu nome para preencher a plaquinha,
passei o meu nome de registro. Na hora de
como uma jaqueta eu já estava com 5 anos. Muitos brasileiros
passar o meu nome, sempre tenho esse pro- e um relógio” foram para lá, inclusive os meus tios pater-
nos, Daniel [José de Carvalho] e Joel [José
blema, penso numa parte roubada da minha
infância. Uma das coisas que foram rouba- de Carvalho], que eram militantes e são
Quando o meu pai foi morto, em abril de desaparecidos. Lá, a gente vivia aparente-
das da minha infância foi o meu nome.
1971, eu tinha 3 anos e meu irmão, Carli- mente numa certa tranquilidade, apesar de
O meu nome de registro é Ernesto José nhos, tinha 7. Nós morávamos na Zona Sul vivermos em um local específico separado
Carvalho, mas era para ser Ernesto Guevara e meu pai foi capturado no Tremembé, Zona pela ONU para os refugiados. Havia um cli-
José de Carvalho, que era uma homenagem Norte de São Paulo. Logo depois disso, fo- ma de terror porque a operação Condor já
que meu pai estava prestando ao coman- mos morar num aparelho, que foi invadido estava a todo vapor e o governo brasileiro
pela polícia dez dias depois. Então houve tinha uma estratégia de atrair os refugia-
Ernesto e Carlos Alberto, São Paulo, 1971 um tiroteio e morreram mais duas pessoas. dos, por meio de emboscada. Foi isso que
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Eu não sou a criança atingida. Fui presa, Em meados de setembro, meu pai foi ex- neiro, para a casa da tia Anita, que era irmã
mas tinha 23 anos na época dos aconteci- purgado e a família teve que fugir para Porto de minha mãe Fanny, porque estou achando
mentos. Mas falarei em nome do meu irmão Alegre, passando por várias barreiras milita- que a coisa está muito tensa aqui”. Ele tinha
Irineu Akselrud de Seixas, que tinha 10 anos res. O Irineu tinha de 3 para 4 anos quando o 9 anos e acharam melhor levá-lo. Havia uma
quando os fatos aconteceram. golpe aconteceu. sensação de perigo e de medo. Ele foi para o
Rio Janeiro, e nós ficamos aqui em São Pau-
Éramos uma família de quatro filhos. Meu lo, onde eu, minha irmã e minha mãe fomos
pai era uma pessoa extremamente afetiva, presas, em 16 de abril de 1971.
muito entusiasmada, principalmente com a
causa política, e externava o afeto dele pelo A minha tia, ao dar a notícia da morte do
toque, caso raro de nortista filho de nordes- meu pai, foi absolutamente inadequada. Ela
tino que beijava os meus amigos homens. Já deu um comprimido de calmante para ele e
minha mãe era uma pessoa que só beijava disse: “Seu pai foi assassinado e eu não sei
os filhos até os 5, 6 anos. E depois disso ela onde está sua família”. Isso para uma criança
externava o afeto por gestos, fosse fazendo de 10 anos! Logo depois de receber a notícia,
aquela comida que a gente gostava, fosse Irineu foi tomar banho. No chuveiro, come-
torcendo por qualquer vitória nossa ou nos çou a cantar: “Meu pai não morreu, é menti-
acalentando na hora do fracasso. ra, meu pai não morreu”.
O Irineu foi atingido a partir de 1964. Nós Irineu disse que aquilo foi horrível, porque
morávamos no Rio de Janeiro e meu pai tra- ele achava que era mentira, mas mostraram a
balhava na Petrobrás, pertencia ao sindicato televisão, os jornais, e ele não se conformava.
e era comunista. Com o golpe, meu pai teve
que fugir da refinaria dentro de uma ambu- A partir disso, foi tudo muito confuso para Como disse, fomos presas no dia 16 de
lância. Os funcionários chegavam para tra- ele. Ele conta que tinha a sensação de medo. abril e a nossa incomunicabilidade só foi
balhar e havia uma lista de expurgados por Até a nossa prisão e a morte de meu pai, era quebrada, só fomos visitadas, quando era
serem inimigos da pátria. Eles iam para o uma criança bem-humorada, espirituosa e quase dezembro. Essa perseguição não tem
departamento pessoal, recebiam o dinheiro, alegre. Irineu não entendia muito bem o que lógica. Qual a importância que eu tinha? Eu
assinavam os papéis e para sair da refinaria, acontecia, porque o 1º de abril no Rio de Janei- não era militante, minha irmã não era mi-
via de regra, tinha que ser nos esquemas de ro foi uma coisa muito traumática para todo litante, minha mãe também não. Ficamos
ambulância. Caso contrário, seriam presos. mundo e uma criança poderia intuir, mas não presas durante um ano e meio por crime
compreender o que estava ocorrendo. de pensamento. Já tinham matado o meu
pai, o meu irmão Ivan estava preso e tinha
Em 1969, viemos para São Paulo. Certa apenas 16 anos.
vez, havia alguns militantes que estavam
À esquerda, Irineu com aproximadamente 5 anos em casa e não sei por que o Irineu disse: “Eu Irineu não pôde se avistar conosco. Fica-
Ao centro, com 10 anos preciso, acho melhor eu ir para o Rio de Ja- mos vinte dias na OBAN e depois fomos
Meu pai e eu éramos militantes, tínhamos ati- 5, estávamos atentos, porque ele não apareceu que ela podia ter sido invadida. Estava tudo
vidades paralelas. Eu estava ligadíssimo ao gru- nos pontos que tinha conosco. Na terça-feira, tranquilo e entramos. Resgatamos tudo que
po de fogo, do qual ele fazia parte também, mas dia 6 de abril, fui com o Rei [codinome de Di- tinha de valor e colocamos dentro da Kombi.
se dedicava a outras atribuições como dirigente mas Antônio Casemiro] a um ponto que tínha- Eram armas, documentos, mimeógrafos, mate-
da Organização. Ele estava, por exemplo, mon- mos com o Henrique. rial de família, roupas e saímos.
tando uma oficina para construir armas.
Chegando de volta ao aparelho do Rei foi
De manhã, saíamos juntos e cada um ia para “O que eu sabia e fazia muito barra pesada. O Ernesto era o filho me-
um lado para cumprir suas tarefas. Ao final do era diferente do que ele nor do Henrique e da Dina e estava muito ten-
dia, por questão de segurança, nos encontráva- so. O Carlinhos, por ser maior e muito atento a
mos e íamos juntos para casa. sabia e fazia. Eu sabia tudo, estava muito ligado. “Cadê meu pai?, ele
O que eu sabia e fazia era diferente do que muita coisa, fiz muita perguntou. Respondi como pude: “Seu pai foi
para o Rio, cobrir um ponto com o MR-8, mas
ele sabia e fazia. Eu sabia muita coisa, fiz muita coisa. E ele também. volta logo”. Ele colocou as mãos na cintura e
coisa. E ele também. Mas as atividades eram
compartimentadas. Assim, minha mãe não Mas as atividades eram me disse sério: “Eu sei que meu pai caiu. Vo-
cês não precisam mentir para mim. Vocês vão
sabia nem um quinto das minhas atividades.
Minhas irmãs, então, não sabiam de nada. Elas
compartimentadas” prometer uma coisa para mim. Vocês vão pe-
gar quem matou meu pai”. Nós ainda não sa-
viam que eu andava armado com revólver, pis- bíamos se ele estava vivo ou se já o haviam as-
tola, granada e ficavam meio assustadas. Chegando lá, o Henrique não estava e sim a sassinado, mas o filho tinha a certeza que nós
Dina [Pedrina Carvalho], mulher dele, choran- não queríamos assumir. Aí foi difícil segurar.
Nos dias que antecederam nossa queda, do, com óculos escuros, duas crianças e uma
aconteceram muitas coisas. Tinham ocorrido Eu falei: “Tá bom” e me afastei num canto para
sacola. Demos uma volta no quarteirão para chorar. O Rei também.
prisões que poderiam levar à nossa Organi- ver se estava tudo bem e voltamos para pegar
zação, o MRT. Havia a história de um ponto a família do comandante. Colocamos eles den- Logo depois, saímos para organizar o se-
que a repressão estava sabendo. Tínhamos in- tro do carro e saímos correndo. Dina disse “Ele questro do Theobaldo de Nigris, presidente da
formantes dentro da OBAN que nos disseram caiu, ele caiu!!”. Levamos todos para a casa do FIESP, entidade patronal financiadora das tortu-
que o Henrique [codinome de Devanir José de Rei, deixamos as crianças, as sacolas e saímos ras. Rapidamente nos organizamos com o pes-
Carvalho] não podia ir ao ponto do dia 5 [de com ela para salvar a casa de Henrique, que soal da ALN, e no dia seguinte, 7 de abril, fomos
abril de 1971]. Por isso, dissemos ao Henrique: era o aparelho do Comando da Organização. para a casa do empresário, que ficava na rua Pe-
“Não saia no dia 5, o que você tiver que fazer na Pegamos uma Kombi e um Fusca e fomos droso. Eu dirigia o carro que ia invadir a casa.
rua, faremos por você”. Mas ele não nos ouviu para a casa que ficava em Interlagos, extremo Na hora, o companheiro da ALN disse: “Peraí
e caiu. No dia seguinte ao do tal ponto do dia da Zona Sul de São Paulo. Rodamos um pouco que eu vou ligar” e voltou chorando, dizendo:
À esquerda, Ivan fichado pelo DOPS para ver se tinha algum sinal de vida lá, por- “O Gordo morreu, o Gordo morreu. Acabaram
a foto do meu pai, que eles estavam indo para a OBAN. No final Nos levaram para o a OBAN e nessa noite
ouvimos as torturas brutais cometidas contra
do dia me puseram na cela.
e eu pensei: ‘Mataram o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino.
meu pai, o próximo Não me lembro muito bem desse momen-
to, mas foi na cela que fui saber que meu pai
Depois de muita tortura o mataram e alegaram
que ele morreu ao tentar fugir dos policiais.
sou eu’” tinha sido morto ou estava para ser morto. Fomos levados para o Sul. Ficamos um mês e
Mas não cheguei a ver o corpo dele. Na minha meio no Rio Grande do Sul e de lá voltamos
cabeça, esse momento é muito conturbado. para o DOPS, onde fiquei até novembro, quan-
Não sei exatamente onde estava nessa hora. Eu do tive minha incomunicabilidade quebrada.
praticamente desmaiei de cansaço. Estava há Aí fui para o Presídio Tiradentes e em janeiro
dois dias sem dormir e de manhã me tiraram me levaram para a penitenciária do Estado. Fui
mais uma vez para ver se eu reconhecia al- mantido lá por dois meses na tentativa de me
guém na rua. levar para a televisão. Era aquela operação de
forçar a pessoa a rejeitar a luta contra a ditadu-
No tempo que esteve presa, minha mãe di- ra e, pior ainda, elogiar a política da ditadura.
zia para eles: “Vocês são uns monstros. Tortu- Claro que não aceitei. Aí voltei para o Tira-
rar meu filho e matar meu marido do jeito que dentes e em 12 de maio entramos em greve de
vocês mataram”. Lá, todos chamavam minha fome, pois queriam separar os presos em pe-
mãe de Dona Fanny, menos o Ustra. Um dia, quenos grupos e reprimir ou até matar os que
ela estava numa cela com outras mulheres, ele achassem irrecuperáveis. Voltei para a OBAN
chegou e disse: “Olha aqui, velha filha da puta. por vinte dias, onde pararam a greve de fome
Olha o que o assassino do seu marido fez com na porrada e ameaça. Depois, voltei para o Ti-
o industrial [referindo-se à Henning Albert radentes e começou um período que eram dois
Boilensen]”. E ela respondeu: “Muito me admi- meses lá e depois DOPS.
ra um oficial das Forças Armadas tratar uma
senhora desse jeito. Você deveria ter vergo- Quando fiz 18 anos, eu estava no Presídio do
nha”. Ele, totalmente perturbado, foi embora. O Hipódromo, pois o Tiradentes foi demolido,
comandante do II Exército chamou a atenção em maio. Em minha homenagem, as compa-
dele diante da oficialidade por causa disso. nheiras da ala política cantaram a música “Pe-
sadelo”. Foi muito emocionante.
Depois de 28 dias de OBAN , ouvi: “Sua mãe
está indo embora para o DOPS”. Pensei: “Ago- Para Taubaté, eu fui levado em novembro de
ra vão me matar”. Aí percebi que era um des- 1973, onde fiquei até os 22 anos. Em 1974, após
piste, porque na última hora me chamaram e um pedido de habeas corpus feito por minha
disseram: “Arrume as suas coisas que você vai mãe, saiu uma decisão para eu ser solto e me
para o DOPS”. Quando chegamos ao DOPS, trouxeram para São Paulo. Fui trazido e um
havia um tumulto desgraçado na frente. Entra- preso de Taubaté foi pago para me matar. Ele
ram conosco e fomos direto para a cela. iria me matar no carro de presos, pois ele viria
junto comigo no camburão. Outro preso inter-
No DOPS, fiquei até julho, quando o Otavinho, feriu e conseguiu neutralizar o cara.
da OBAN, disse que eu seria levado para o Sul.
Achei que seria morto, me despedi do pessoal, Fui levado ao juizado de menores para ser
pedindo “Lembrem de mim” e os companheiros solto. Lá, havia um cerco monumental de tro-
dizendo “Aguenta firme, não abaixe a cabeça”. pas da Polícia Militar, da Polícia Civil e os ca-
ras da OBAN forçaram o juiz a voltar atrás na
Eu tinha certeza que iam me matar. Entrei no decisão de me soltar, alegando que eu tinha
carro e quando vi, estávamos no presídio Ti- quebrado a liberdade vigiada. Minha irmã Iara
radentes. Pensei: “Então não vou morrer, só se e o advogado conversam com o juiz, que ale-
forem matar muita gente”. O Otavinho disse à ga que eu tinha outro processo e a Iara mos-
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7 e 8. O cotidiano da
família Seixas (os pais,
Ieda, Iara e Ivan) em sua
casa na Vila Jardim, em
Porto Alegre (RS)
9. Ivan no cadeirão em
refeição com a família
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11
Somos filhas de Raimundo Gonçalves de vezes publicamente. Não se importaram quando de uma série de reportagens falando
Figueiredo e Maria Regina Lobo de Figuei- com o fato desse homem ter dado sua vida sobre o caso de Guararapes, que o aponta-
redo, torturados e mortos pela ditadura nos pelo ideal que acreditavam e que, segundo va também como autor, contou-nos que ele
anos de 1971 e 1972, em Recife e no Rio de Ja- relatos, tenha salvado a vida de vários de propriamente não estava envolvido, mas que
neiro, respectivamente. Sempre é muito di- seus companheiros em diversas ocasiões. nosso pai e um grupo sim.
fícil lidar com a morte de nossos pais. É um
Esse senhor pediu-nos para xerocar um
assunto muito delicado para nós, que mexe
com sentimentos muito profundos.
“Mais do que conhecer material particular que tínhamos em mãos,
os responsáveis pela alegando que era para guardar em seu arqui-
Mais do que conhecer os responsáveis pela vo particular. Depois de dois dias, esse mate-
morte de nossos pais, queremos que, nesse morte de nossos pais, rial foi publicado na imprensa, em resposta
processo desencadeado pela instalação da queremos que, no às referidas reportagens, tentando inculpar
Comissão da Verdade, as imagens de nossos somente nosso pai pela ação.
pais sejam respeitadas, principalmente a do processo desencadeado
Sabemos que não é papel da Comissão
nosso pai. pela instalação da Nacional da Verdade investigar a ação da
Nosso pai foi apontado como um dos res- Comissão da Verdade, esquerda, mas, realmente, no nosso caso, ti-
vemos que lidar muito cedo com questões
ponsáveis por um ato no aeroporto de Gua-
rarapes (PE), com o objetivo de atingir o ge-
as imagens de nossos muito além do bem e do mal, dos bons e dos
neral Costa e Silva, e que, não dando certo, pais sejam respeitadas, ruins. Foi muito difícil ver esses homens se
causou a morte de duas pessoas. Não nos principalmente a aproveitando tanto da morte do nosso pai,
como da nossa fragilidade.
cabe e não podemos julgar tal ato e muito
menos nosso pai. Sentimos muito a morte do nosso pai”
Da mesma forma que concordamos que a
dessas pessoas e de alguma forma sabemos impunidade dos militares envolvidos com os
que estamos ligadas a elas. Temos conhecimento que um dos envolvi-
crimes da ditadura tem repercussões nos dias
dos no ato, que muitos anos depois respon-
Ocorre, porém, que o referido ato foi uma de hoje em várias esferas da sociedade, acre-
sabilizou nosso pai, foi quem o entregou à
ação planejada por um grupo de pessoas, ditamos que a covardia com que nosso pai foi
polícia, o que resultou em sua morte. Outro,
que, com a exceção de um padre, aproveita- tratado por seus “companheiros” tem reflexos
bastante tempo depois, ao ser interpelado
ram que nosso pai estava morto e jogaram até hoje na cultura de nossa esquerda.
por nós por queimar a imagem de nosso
a responsabilidade toda sobre ele. Para isso, pai, desmentiu as afirmações feitas por ele Vimos com bons olhos a instauração da Co-
denegriram a imagem de nosso pai, algumas na imprensa, mas não teve o trabalho de missão da Verdade, principalmente no gover-
À esquerda, o casamento de Raimundo
desmentir também publicamente. Outro, ao no da presidenta Dilma, que sentiu na pele o
e Maria Regina, em Olinda (PE), 1966 ser procurado por nós muito tempo depois, sofrimento daquela época. Faz bem ver alguns
1
Guimarães Rosa
Segundo nossa avó, mais de uma vez, IARA LOBO DE FIGUEIREDO nasceu em 1968
e é advogada.
quando rapaz, chegou em casa sem a camisa
e os sapatos, pois os havia dado na rua.
Sou filho da Rita Maria de Miranda Sipahi dos; na verdade, eles são heróis”. Quando digo via uma angústia mesmo de saber que aquilo
Pires e do Antônio Othon Pires Rolim, tam- isso, estou me reportando ao Paulo aos 8 anos ia acabar. E aquele presídio era um lugar mui-
bém conhecido como Ari. Os dois foram pre- de idade. Essa é a reparação que espero. to ameaçador. A visita acontecia em um pátio
sos. Na época, eu a Camila, minha irmã, éra- estreito com um muro muito alto. Eu sentava
mos crianças. Eu tinha 6 ou 7 anos, e ela tinha Falando da época das visitas aos nossos num banco de alvenaria encostado no muro
um pouco menos, 5 anos. pais no Presídio Tiradentes, uma coisa que me e bem em cima, no alto do muro, tinha uma
atormentava eram os dois toques da campai- guarita. E nos momentos em que eu estava so-
Por sermos crianças, quando os fatos acon- nha. Quando soava o primeiro toque, eu sabia zinho eu olhava para cima. E na guarita tinha
teceram, é muito difícil manter algum tipo de que era o momento de nos despedirmos, então um soldado com o fuzil apontado. E eu sentia
memória mais contextualizada do que esta- era uma dificuldade para mim. sempre que alguém estava me ameaçando.
va acontecendo. Mas acho que a dificuldade
maior mesmo era não ter com quem conver- “O que eu mostrarei aqui Eu me sentia totalmente ameaçado naquele
sar, alguém que ouvisse e que validasse o que
eu estava sentindo então. O que eu mostrarei
são alguns desenhos ambiente. Mas me sentia ameaçado também
na escola em que estudava. E eu pensava que
aqui são alguns desenhos que fiz na época e que fiz na época e que se meus pais eram bandidos eu também era
que retratam os sentimentos que vivi em fun-
ção da prisão dos meus pais. No papel, através retratam os sentimentos bandido. Eu não me senti amparado para re-
petir: “Não, você não é um bandido, porque
dos desenhos, foi possível expressar coisas que vivi em função da seus pais não são bandidos”. Assim, eu carre-
que naquele momento eu não podia expressar
verbalmente. prisão dos meus pais. go esse sentimento daquela criança de 7 anos.
E nunca me foi dito o contrário. E não será dito
A minha exigência em relação ao Estado é
No papel, através dos pela TV Globo, pela Folha de São Paulo nem
pelo Estadão. Isso não será dito pelas setenta
que declare que meus pais são heróis e não desenhos, foi possível famílias detentoras da mídia no Brasil.
bandidos. Naquela época, se alguém estava
preso era bandido. Como eu era criança e meus
expressar coisas que
A reparação de dizer “seus pais são heróis”
pais estavam presos, era como se eles fossem naquele momento eu cabe ao Estado fazer de alguma maneira. Cla-
bandidos. Mas eles não eram bandidos. Eu ti-
nha essa noção. Só que não se falava dessas
não podia expressar ro que há projetos de memória nas grandes ci-
dades onde houve muita repressão da ditadu-
coisas. E se falássemos, éramos severamente verbalmente” ra. Só que eu moro numa cidade do interior do
repreendidos. Eu fui repreendido na escola. Rio de Janeiro, onde a convicção que as pes-
Então eu tive muita dificuldade com a expres- Nós fazíamos uma viagem de trem, pegáva- soas têm a respeito da ditadura é que foi muito
são dos meus sentimentos. Portanto, a minha mos a fila para a revista e esperávamos muito boa. Eu acredito que para atingir todo o país
exigência em relação ao Estado é que de algu- para ter aquele encontro com nossos pais, e fa- não basta um canal da TV Cultura, porque a
ma forma me digam: “Não, eles não são bandi- zer a visita num espaço tão curto de tempo que divulgação dessa mídia é muito pequena.
nem matava a saudade. As visitas eram um
À esquerda Paulo, brincando com amigo, aos 7 anos,
misto de dor e de alegria, porque assim que Quando eu fui à primeira sessão da Comis-
Rio de Janeiro começavam eu sabia logo que iria acabar. Ha- são da Verdade de São Paulo, na Assembleia
“Este é o trem de prata, pegávamos esse trem para visitar os nossos pais, porque
a gente morava no Rio e eles estavam presos no presídio Tiradentes, em São Pau-
lo. Então a gente pegava o trem de prata. O trem de prata tinha que andar bem
rápido para a gente chegar logo e não perder a hora da visita. Pegávamos o trem
de noite no Rio de Janeiro e chegávamos de manhã em São Paulo. Para explicar
que ele andava rápido eu desenhei um coelho do lado direito”.
Sou filha de Rita de Miranda Sipahi e Antô- depoimento, 9 de maio de 2013, junto a eles ou- zer gracinha, porque todo mundo me achava
nio Othon Pires Rolim. Para fazer esse relato tros desenhos reelaborados. Pareceu mais con- muito engraçadinha. Eles entraram, não sorri-
decidi realizar uma projeção de desenhos e veniente que o relato estivesse em primeiro ram, não fizeram nada, não quiseram nenhuma
textos, que nomeei como “O sequestro da mi- plano. Os desenhos, portanto, estão mais como interlocução com a gente, chamaram minha
nha memória”. Quero dedicá-lo a todos os pre- adornos. Espera um dia transformá-los em um mãe e deram voz de prisão para ela. Nós não
sos, desaparecidos, mortos e principalmente livro.] entendemos nada, porque foi tudo cochichado.
aos seus familiares – mães, pais irmãos, filhos... Ela foi para dentro, se desfez de alguns docu-
enfim, todos aqueles que sofreram direta ou mentos como se estivesse se arrumando e to-
indiretamente com a tortura, porque eu enten- mando banho e voltou para a sala.
do que o sofrimento que as famílias passaram
também foi uma forma de tortura. Saímos e descendo no elevador ela disse que
precisava nos levar a um lugar ali perto, em
Como filha, procurei dar a minha contribui- Copacabana, para casa da Rute – produtora de
ção contando um pouco daquilo que eu me re- teatro, muito sua amiga. Eu e o Paulo estáva-
cordo, que é pouco, já que acredito que naque- mos suspensos no ar, não entendíamos o que
le momento, assim como meus pais, a minha estava acontecendo. Eram cinco pessoas no
memória também foi sequestrada. Digo isso carro: minha mãe, os dois, eu e o Paulo. Ela pre-
porque no decorrer dos acontecimentos passei feriu dirigir porque sabia o endereço. Eles con-
por um processo de esquecimento, ou melhor cordaram. Foi aí que eu vi as armas. Tinha um
dizendo, “apagamento” de memória, gerado homem do lado dela, no banco da frente, que
pela angústia e pelo medo, que me poupou das encostou uma arma em sua cintura. O outro,
dores imediatas da separação. Em contraparti- que estava atrás comigo e com Paulo, colocou
da, levou consigo os rostos de pessoas queri- uma arma, pelo outro lado, apontada para ela.
das, como o de meu pai, minha babá chamada
Neném, meus amigos, momentos agradáveis, Um deles disse que se ela tentasse alguma
minha vida familiar e escolar. coisa eles teriam que tomar atitudes graves.
Senti um medo enorme em estar dentro do
Mas como contar tudo o que lembro quaren- A vivência da prisão de meus pais, além do carro. Tento desenhar esse momento, mas não
ta anos depois? Procurei trazer a criança Cami- esquecimento, também marcou a minha alma consigo. Até hoje fico angustiada com a ilumi-
linha, dar voz à pequenina. Então, eu escrevi e com medos atávicos e tristezas que somente nação amarelada em ruas desertas, como eram
desenhei. depois, ao amadurecer, mas principalmen- naqueles anos 1970.
[Para esta publicação decidiu expor somente te através da compreensão do que se passou,
Fomos levados para a casa da Rute. A gente
alguns dos desenhos apresentados no dia do pude entender e reconhecer suas origens.
saiu do carro, um dos homens ficou esperando
O sequestro de minha mãe foi assim: era noi- na rua, o outro subiu no elevador conosco. A
À esquerda Rita, sentada ao fundo, e Camila, de pé, aos 7 anos, de- te e estávamos em casa quando dois homens minha impressão é que era um elevador mui-
pois de sua mãe solta. Ao centro, Camilinha dança nua – ilustração
de Camila Sipahi Pires bateram à porta. Como de costume, eu quis fa- to apertado. A gente saiu e eu vi um corrredor
Naqueles dias aconteceu uma coisa que me Fomos estudar em colégio público, porque
envergonhou muito. Várias vezes chamei mi- era o que dava naquela época. E eu sentia que
nha mãe de tia e não de mãe. Porque a palavra a ditadura continuava ali. A partir da prisão
mãe tinha se tornado a palavra tia. dos meus pai peguei horror a qualquer militar,
guarda, policial. Anos antes eu ia visitar meus
Minha mãe voltou a morar com a gente e pais na cadeia, via todo mundo fardado, pes-
voltamos para São Paulo. Meu pai ficou pre- soas que nunca nos tratavam bem. Aquele co-
A visita...
Eles sequestravam,
torturavam, prendiam,
matavam, ocultavam
cadáveres, mentiam,
Eles eram os homens
da lei...
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Fragmentos da história Desde criança, o Paulo tinha uma personalidade Certa feita, foi permitido que os dois fossem ao
forte e marcante. Não desistia do que queria. In- presídio passar um dia comigo na Torre (como
de um menino que nasceu sistia, refletia e voltava à carga com novos argu- chamávamos a Ala Feminina), e com o pai, no
em 1964, quando foi mentos. Sempre reagiu com veemência, quando Pavilhão 1 da Ala Masculina. Depois da visita, os
contrariado. dois voltaram muito tristes para o Rio. A realidade
desfechado um golpe da prisão teria sido mais difícil de suportar que a
A continuidade da nossa militância colocava si-
contra o Brasil tuações limites, que estiveram presentes ao lon- fantasia que tinham sobre o local onde seus pais
go da sua infância, e ele os percebia mesmo que estavam?
Terminei o último ano do curso de Direito no Re- Durante outra visita, o Paulo chorava todo o tem-
nada fosse contado: conversas, sussurros, contra-
cife, em 1963. No dia 14 de janeiro seguinte (1964), po. Depois de muita insistência consegui que ele
ções das faces, medo disfarçado e o clima tenso.
na Maternidade Beneficência Portuguesa, nasceu me dissesse o que o angustiava. Ainda chorando,
meu primeiro filho: o Paulo. Em São Paulo, a escola que frequentou aos 2, 3
anos, chamava-se Pequeno Príncipe. Um dia, a ele me perguntou: “Você vai ficar para sempre na
A transferência para o Recife se dera pelo casa- prisão? Sua prisão é perpétua?”
diretora me perguntou por que o Batman que o
mento com Antônio Othon Pires Rolim – Ari, Enquanto estivemos presos, nossos amigos se
Paulo representava era diferente do Batman de
funcionário da SUDENE. Minha atuação política, organizaram para que Paulo e Camila tivessem
seus amigos. E concluímos que era pelo fato de
iniciada no movimento estudantil do Ceará, pros- assistência psicológica. Assim, as crianças foram
não ter televisão em casa. Comprei uma TV.
seguiu em Pernambuco. Depois de alguns anos na atendidas pela doutora Clélia, psicóloga da PUC
Juventude Universitária Católica (JUC), a partir Quando nos transferimos de São Paulo para o
– Rio. Quando fui solta (meses antes do Ari), já de
de 1962, passei a militar na nova organização polí- Rio, em mais uma tentativa de escaparmos da
volta ao Rio, na saída da última sessão do acom-
tica, criada naquele ano, a Ação Popular (AP). prisão, as crianças tiveram de enfrentar outras
panhamento, ao me devolver simbolicamente os
Eram tempos de muita efervescência, expectativas novas mudanças: escola nova, amigos deixados
dois, Clélia disse: “Até mais, Paulo”. Ele, muito sé-
e esperanças. Construiríamos um novo Brasil – era para trás, alfabetização que não se concluiu. A
rio, respondeu: “Até nunca”.
o que nos apontavam o Plano Trienal, as Reformas reação do Paulo foi a de me responsabilizar:
“Você me tirou da minha escola e eu estava A criança bonita, amorosa, cheia de delicadeza
de Base e a grande mobilização popular. foi se transformando num menino arredio, com
aprendendo a ler”.
A grande festa duraria pouco. muitos medos, que por volta dos 10 anos passou a
Nesse tempo, uma das reações físicas do Paulo
Paulo completava dois meses e dezessete dias adorar uma pequena tartaruga.
foi engordar. Tornou-se quase obeso. Só voltaria
quando, na noite de 31 de março, foi desfechado o a emagrecer aos 17, 18 anos. A morte do animal (seu pai e eu já estávamos em
golpe, e o presidente João Goulart obrigado a dei- liberdade) transformou-se numa verdadeira tragé-
xar o País. Nada mais seria como antes. Em 1971, meu então marido e eu fomos presos.
dia: ele chorava sem parar – queria um enterro num
Eu estava sozinha em casa, com as crianças. Con-
Logo depois, o pai do Paulo foi detido e levado cemitério de tartarugas, que insistia em dizer que
segui que os policiais permitissem que, antes de
para o DOPS do Recife. Liberado, teve em seguida existia. Acabamos por convencê-lo a depositá-la no
ser levada para o DOI-CODI, deixasse os filhos
sua prisão preventiva decretada. Decidimos nos rio Pinheiros, na água – de onde era originária. Con-
em casa de um casal de amigos – Rute e Roberto
refugiar em São Paulo. sultei o doutor Antônio C. Cesarino para entender
Cartaxo (gratidão imensa a ambos). Em segui-
o que acontecia. Ele me explicou que o Paulo chora-
Foi nesse ambiente que o Paulo viveu seus primei- da, meu irmão Huseyin e minha cunhada Laura
va por todas as mortes – inclusive a dele.
ros dias. Tudo isso certamente incidiu e decidiu saíram do Recife onde moravam e se transferi-
sobre seus caminhos. ram com os filhos para o Rio, para assumir o nos- Certamente muito sofrimento e dificuldades o
so lugar de pais. Gesto de amor e dedicação, ao acompanharam na adolescência, algumas percebi-
Em 1966, já com 2 anos e em São Paulo, nasceu sua
qual sou eternamente grata. das, outras, certamente não. Somente às vésperas
irmã, Camila.
dos 40 anos, depois de assistir o filme argentino
Os seus primeiros anos foram marcados pela Ari e eu fomos levados clandestinamente para Kamchatka (que trata de um casal de militantes
adaptação à nova cidade, pela instabilidade da o DOI-CODI de São Paulo, onde permanece- argentinos obrigado a viver com seus dois filhos
nossa vida diante de dificuldades colocadas pela mos incomunicáveis até a transferência para o na clandestinidade e que, por fim, entrega as duas
realidade do país. Alguns sinais revelavam isto: DOPS/SP. Somente então foi quebrada a nossa crianças aos avós), ao chegar em casa, sentou-se
quando tinha 4 anos, certo dia Paulo começou a incomunicabilidade e, nesse momento, as crian- junto a mim no sofá, me abraçou e disse: “Fique
vomitar sem parar. Eu o levei ao Dr. Rubem Blasi ças que acompanhavam tudo a distância foram tranquila, agora eu entendi tudo”.
(pediatra) que me perguntou: “O que está aconte- autorizadas a nos visitar. A nossa expectativa
era a de que constatassem que estávamos vivos Terá entendido mesmo? A gente consegue enten-
cendo com este menino? Não tem nada, a não ser
e assim ficassem mais tranquilos. As fantasias der a barbárie?
a reação do vômito”.
passariam a ser outras – quem sabe? Formado em Psicologia, Paulo é funcionário da
Calei. Não podia contar o que ocorria: meu irmão
Do DOPS fomos para o Presídio Tiradentes, Caixa Econômica Federal, tem um filho – Tahir, de
(Aytan) e minha cunhada (Helenita) que também
onde passamos a ter visitas semanais. Quinze- 25, uma neta – a Glória, de um ano, e é militante há
viviam em São Paulo, haviam sido presos. Apesar
nalmente, Laura e/ou Huseyin se deslocavam do cerca de sete anos, do Partido Socialista dos Tra-
de militarmos em organizações distintas, cor-
Rio para São Paulo, para que as crianças pudes- balhadores Unificado – PSTU.
ríamos novos riscos, o que intensificava o clima
de tensão. sem nos visitar.
Daqui a dois dias, fará quatro meses que eu Uma coisa que nós sempre discutimos mui- brinho Ernesto, filho de minha irmã, nas visitas
perdi Aritanã [falecido em 11 de janeiro de to e sobre a qual o Aritanã tinha muita clare- que faziam para a gente dentro do presídio. Ele
2013]. Aritanã Guarani Machado Dantas que za é sobre minha opção de ter um filho e ir me contava dos passeios nos finais de sema-
era como ele se colocava na internet, como para a clandestinidade. Eu sempre disse e ele na que fazia com a tia Elza Lobo, companheira
uma manifestação de solidariedade às lutas sempre aceitou que, para mim, na qualida- de longa data, recém-libertada do Tiradentes e
dos indígenas no Brasil. Meu filho foi vítima de de de militante de esquerda, seria impossível que ia buscá-lo na casa dos avós paternos para
uma doença, contra a qual lutou durante seis pensar em tentar mobilizar a classe operária, passear. Ele dizia que não tinha só duas avós,
anos. Chegou um momento em que era impos- em tentar mobilizar camponeses que tinham que ele também tinha uma avó chamada Ana,
sível continuar sofrendo do jeito que estava. filhos se, um militante de esquerda, com obri- mãe de Elza. Ele manteve esse relacionamento
Ele morreu calmamente, cercado por nós, no gações frente ao país não fosse capaz também até o falecimento da maravilhosa dona Ana.
meio da noite. Ele estava tentando retomar sua de criar um filho na clandestinidade. Essa foi
vida profissional, que tinha sido muito bonita. uma opção muito clara que fizemos e ele tinha Eu acho que o meu filho viveu bem essa pri-
isso muito claro. Nunca houve sentimento de meira fase da nossa prisão até minha soltura,
Meu filho era finalizador de filmes, foi res- culpa entre nós em função da opção que os em 1972. Eu tenho uma carta da Lúcia Coelho
ponsável pela finalização do documentário da pais fizeram naquele momento drástico da po- [ex-presa política e psicóloga]. Como eu estava
Revolução de 1932 [A Guerra Civil – 1932], foi lítica brasileira. muito preocupada com a situação do Aritanã,
responsável pela edição de som e mixagem do eu pedi a ela, como psicóloga, que o encami-
documentário do Prestes O Velho, a história de
Luiz Carlos Prestes – de Toni Venturi, foi respon-
“Ele aprendeu muito nhasse para uma análise psicológica para eu
saber como estava meu filho e a resposta da
sável pela finalização do som do documentário cedo que ele não podia avaliação foi muito boa.
sobre a vida de Ulisses Guimarães, de Eduardo
Escorel, além de participar de outras produções
falar o nome Lenira, Ele era uma criança que sabia distinguir as
e de muitas campanhas publicitárias. Tinha nem Altino... Passou a coisas. O avô dele, em função de denunciar as
nossas prisões e torturas, ficou preso no QG
uma imensa capacidade de trabalho.
nos chamar de ‘Querida’ do 2º Exército. Então, na primeira visita que
Nossa primeira prisão ocorreu em 13 de maio e ‘Meu bem’...” ele nos fez no nosso presídio, o Tiradentes, ele
disse: “Prefiro a prisão do meu avô. Lá tem mo-
de 1971, em casa. Vale lembrar que meu sogro
era um general e que eu era de uma família rango, tem geladeira e tem sorvete”.
Ele aprendeu muito cedo que ele não podia
de comunistas, fui e sou, e que os policiais do
falar o nome Lenira, nem Altino [Rodrigues Em abril de 1974, quando da minha segunda
DOPS me conheciam muito bem. A ditadura
Dantas Junior, pai de Aritanã], e que os nossos prisão, foi instaurado neste país, pela primei-
de Getúlio [Vargas] não me deixou chamar Le-
nomes mudavam de acordo com o local em que ra vez, um processo de destituição de pátrio
nina. Fez com que meu pai mudasse o nome
nós estávamos. Passou a nos chamar de “Queri- poder por questão ideológica. Eu acho que as
na hora para Lenira, dentro do cartório. Quem
da” e “Meu bem”. Quando alguém perguntava: pessoas ainda hoje não se dão conta do que
sabe a minha vida de filha de militantes na di-
“Como chama seu pai?”, ele respondia: “Meu significou a nossa luta por reaver o Aritanã.
tadura de Getúlio me ajudou a preparar meu
bem”. “Como chama sua mãe?” “Querida”. Sou- O processo, que durou dois anos doloridos e
filho, criança, para nos acompanhar na militân-
be conviver com isso e soube conviver também sofridos, se restringiu ao Aritanã. Só foi ga-
cia da ditadura militar pós 1964.
com a vida no presídio feminino, com Cami- nho graças ao escritório do advogado Iberê
la, com Paulo [filhos de Rita Sipahi e Antonio Bandeira de Melo, quando Dr. Nahum e toda
Lenira e Aritanã abraçados na casa
em que moravam, quando restituído
Othon Pires Rolim], com Daniel Pimenta, filho equipe empenharam-se em nossa defesa e pela
o pátrio poder aos pais, São Paulo de Telinha Maristela S. Pimenta, com meu so- solidariedade de companheiros como a do jor-
Meu filho entrou na classe e, aos 4 anos, fez o Voltar à antiga escola foi uma glória para ele.
relato da nossa prisão, “Meu pai e minha mãe Em um dos seus últimos aniversários, fez ques- ARITANÃ MACHADO DANTAS nasceu em 30 de setem-
foram presos. Meu pai começou a apanhar bro de 1966, filho Lenira Machado e Altino Rodrigues
tão de convidar todos colegas de Lourenço Dantas Junior. Formou-se na área de cinema começan-
dentro de casa, minha mãe conseguiu me dei- Castanho para participarem da comemoração. do a trabalhar aos 14 anos na equipe de Ruy Guerra em
xar na casa do meu avô e da minha avó, mas Fomos aconselhados por psicólogos a voltar a Moçambique. Morreu aos 47 anos, em 2013. Seu filho
o carro que fomos não tinha chapa branca de ter uma casa mais restrita, eu com meu novo Ivan, hoje com 22 anos, é violinista profissional.
polícia”. Esse foi o depoimento que ele deu na companheiro e com Aritanã. Meu filho havia
escola com 4 anos. perdido a noção de utilização do espaço.
Em 1974, quando ele foi tirado de casa, saiu do Essa volta foi muito complicada para todos.
Lourenço Castanho, e foi matriculado no grupo Eu só via uma saída naquele momento para ten-
Lenira Machado nasceu em 9 de outubro de dela foi preso também seu marido à época, Altino onde Aritanã, aos 14 anos, começou a trabalhar com
1940, em São Paulo (SP). Filha de Delamare Machado Rodrigues Dantas Júnior, com quem teve um filho, cinema, integrando a equipe técnica de Ruy Guerra.
da Silva e de Hercira Garcia Machado, ambos militan- Aritanã Machado Dantas. Após seis anos de luta por sua saúde, Aritanã Macha-
tes comunistas. Iniciou sua militância muito cedo e do Dantas faleceu em 11 de janeiro de 2013. Lenira
Após dois dias no DOPS, é transferida para o DOI-
em 1959 passa a militar na Juventude Comunista. Ao trabalha como consultora em projetos urbanos e
-CODI, onde foi, durante 45 dias, severamente tortu-
romper com o PCB, filia-se ao Partido Socialista Bra- avaliação de projetos.
rada, sendo submetida a choques elétricos, pau de
sileiro, passando a atuar nas Ligas Camponesas e no
arara e cadeira do dragão. Em decorrência das tortu-
movimento estudantil na União Estadual dos Estu-
ras, Lenira teve um deslocamento na coluna e ficou Altino Rodrigues Dantas Júnior, fi-
dantes de São Paulo (UEE). Era estudante de Ciências lho do general Altino Rodrigues Dantas, nascido em
paralítica. Fez um longo tratamento de fisioterapia
Sociais da Universidade de São Paulo (USP), sendo Campo Grande (MS), lá foi militante secundarista.
para voltar a andar. Condenada a cinco anos de pri-
jubilada em 1968, enquadrada na Lei Suplicy. Depois Em 1961 mudou-se para São Paulo. Foi diretor da
são, mesmo doente, cumpriu um ano e oito meses no
do golpe de 1964, quando se vê obrigada a ir para a União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE)
Presídio Tiradentes, em São Paulo.
clandestinidade, tem sua mãe e irmão adotivo pre- e depois, em 1965, foi presidente da UNE. Estudou
sos pelo DOPS e seu pai foragido. Ao retornar, volta Em 3 de abril de 1974 foi presa pela segunda vez em Direito na Faculdade de Santos, mas não conseguiu
a atuar no movimento estudantil, na reestruturação São Paulo. Aritanã tinha 9 anos. Quando foi solta, concluir o curso. Formou-se posteriormente em jor-
da União Nacional dos Estudantes (UNE), entrando constatou que havia perdido o pátrio poder e guar- nalismo. Foi preso em 1971 com sua companheira à
para a Ação Popular (AP) e depois participa na criação da de seu filho para o sogro. Foi o único processo de época, Lenira, e lá testemunhou o assassinato do
do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Destituição de Pátrio Poder movido devido à ideolo- preso político Aluísio Palhano. Altino foi Vereador
Foi presa pela primeira vez em 13 maio de 1971, pela gia dos pais. Conseguiu reaver a guarda apenas em do município de Santos na legislatura de 1988, elei-
equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Junto 1976. Saíram do Brasil e foram para Moçambique to pelo PT.
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Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a DOI-CODI instalado dentro do próprio Minis- Arthur, o sargento Ribeiro, o cabo Edson Torre-
oportunidade histórica de participar deste im- tério do Exército, em Brasília, seja no Rio de zan, o cabo Jamiro ou Jamito, o cabo Nazareno,
portante evento da Comissão da Verdade “Ru- Janeiro, no Centro Científico de Torturas, na o cabo Martins, o cabo Calegari, e os soldados
bens Paiva” de São Paulo que lança luz sobre terrível Barão de Mesquita, também da Polícia Ismael, Almir, Osmael e Admir”.
as brutalidades e violências perpetradas pelos do Exército. Meus pais também ficaram presos
lobos febrentos que assaltaram o poder em 1964 em Belém, na Gaspar Viana, onde meu irmão Esses famigerados, especialistas na Santa
e que, seguramente, também elegeram a infân- Ronaldo foi gerado, e no antigo Presídio São Inquisição e que diziam que os métodos da
cia como inimiga da segurança nacional e dos José. Nessa fase eu já havia nascido, portanto, Gestapo estavam ultrapassados, atuaram para
generais facínoras, responsáveis pela tortura, estava em segurança familiar. liquidar-nos, tanto em Brasília como no Rio de
assassinatos e desaparecimentos forçados. Janeiro. Numa das passagens do depoimen-
to ao Jornal Resistência, meu pai denunciava
Em segundo lugar, registro um abraço afe-
“Uma das lembranças que, “através de um vidro, mostravam-me a
tuoso, aos que, como eu, conheceram todo o mais antigas que tenho Hecilda, apanhando no rosto e nas pernas, grá-
barbarismo dos verdugos e aqui rendo minhas vida de cinco meses”.
homenagens à memória de meu pai, Paulo Fon-
sobre mim mesmo está
teles, advogado de posseiros no Sul do Pará, no fato de ter nascido na No dia de meu nascimento, em 20 de fevereiro
de 1972, minha mãe asseverou ao insurgente jor-
assassinado pelo latifúndio em 1987 e a minha
mãe, Hecilda Veiga, a pessoa mais íntegra que prisão e de ser filho de nal dos paraenses que: “levaram-me ao Hospital
conheço nesta vida e que, com o destemor de comunistas” da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nas-
cimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as
ter me feito nascer, em meio ao Pelotão de In-
vestigações Criminais (PIC), em fevereiro de coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto
Mas vamos aos torturadores, e como ensina
1972, revelou inexorável bravura a ponto de um e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência
Wadih Damous, Presidente da Comissão da
agente da repressão política, dentro da Polícia muito difícil, mas fiquei firme e não chorei”.
Verdade do Rio de Janeiro, em discurso na As-
Federal, cunhar a frase: “Filho dessa raça não sembleia Legislativa do Estado do Pará quan- Minha mãe, Hecilda, afirma ainda que o tal
deve nascer”. do da devolução simbólica dos mandatos em médico disse-lhe que ela não gostava do filho,
março de 2013, dentre eles do ex-governador simplesmente porque não sofria. Minha mãe,
Em “Segunda Anunciação”, poema escrito Aurélio do Carmo, único vivo entre os gover-
anos depois dos cárceres, meu pai denunciava que peitou o general Bandeira, ia dar o braço a
nadores cassados em 1964, que “os torturado- torcer? Nunca, jamais.
o discurso e a prática do tirano: “Teu filho, teu res têm medo da luz do sol”. Aqui haveremos
filho, teu filho não nascerá. Teu filho, filho des- de colocar holofotes sobre as bestas-feras. Uma das lembranças mais antigas que tenho
sa raça, filho dessa raça não deve nascer. Filho sobre mim mesmo está no fato de ter nascido
dessa raça não deve nascer. Teu filho, filho des- Segundo denúncia de meus pais, publicada na prisão e de ser filho de comunistas. Minha
sa raça não deve nascer, não deve nascer”. no Jornal Resistência, da Sociedade Paraense avó, Cordolina Fonteles de Lima, contava que
de Defesa dos Direitos Humanos, no final da os agentes da repressão atrasaram minha en-
Aqui, antes de mais nada, devo por convic- década de 1970, “fomos seviciados e tortura-
ção e altiva consciência denunciar locais e os trega para a família, por horas, porque sim-
dos pelo general Antônio Bandeira, coronel plesmente não haviam encontrado algemas
verdugos que atuaram severamente para por Azambuja, major Paulo Horta, major Andra-
fim em nossas vidas, seja no Pelotão de Inves- que dessem em meus pulsos de recém-nascido,
de Neto, major Othon Rego Monteiro, capitão eles deviam me achar bastante perigoso!
tigações Criminais da Polícia do Exército, e no Magalhães, capitão Menezes, ‘doutor’ Cláudio,
o delegado da Polícia Federal Deusdeth, tenen- No curso dos anos tenho refletido sobre tais
Paulo, aos 3 anos, Belém (PA) te Burger, o sargento Vasconcelos, o sargento atos de “terrorismo”, numa pérfida lei de um
Paulo César Fonteles de Lima nas- clusivamente à defesa dos posseiros da região do morava com o marido na própria Universidade, num
ceu na cidade de Belém do Pará, no dia 11 de feverei- Araguaia. Foi preso diversas vezes devido ao seu alojamento destinado a casais.
ro de 1949. Filho de Benedito Osvaldo Rodrigues de trabalho militante. Era ativa militante do movimento estudantil e da
Lima, oficial da Marinha Mercante, e de Cordolina Em julho de 1981 laçou-se candidato a deputado es- reconstrução da UNE nesta cidade quando foi pre-
Fonteles de Lima, carinhosamente conhecida como tadual pelo PMDB e foi eleito. Também se candida- sa, grávida de cinco meses, em 1971.
D. Nita. Seus pais eram militantes do Partido Comu- tou a deputado federal nas eleições de 1986, para Em seus depoimentos, Hecilda relata que foi levada
nista desde 1945. a Assembleia Nacional Constituinte, mas desta vez primeiro à delegacia da Polícia Federal, onde já so-
Em 1968, ingressou no curso de Direito da Universi- não logrou êxito. freu socos e pontapés e ouviu de seus algozes que
dade Federal do Pará. Em 1969, dedicou-se no Pará a Era constantemente ameaçado de morte e, apesar “filho dessa raça não deve nascer”. Foi levada em
reorganizar o movimento estudantil, sendo eleito di- das diversas denúncias públicas que fez sobre isso, seguida ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC),
retor da União Estadual dos Estudantes (UEE), neste em 11 de junho de 1987 foi assassinado quando via- onde sofreu ameaças e soube que seu companheiro
momento já como militante da Ação Popular (AP). java para o interior do Pará, aos 38 anos de idade, a Paulo também estava lá. Depois seguiu para o Ba-
Em 1970, mudou-se para Brasília com sua esposa mando dos latifundiários da região. talhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro e lá
Hecilda, onde participaram das lutas estudantis, da Paulo César Fonteles de Lima deixou cinco filhos: as torturas físicas se agravaram. Precisou de atendi-
reorganização da União Nacional dos Estudantes Paulo César Fonteles de Lima Filho, Ronaldo Veiga mento médico sendo então levada para o Hospital
(UNE), então na ilegalidade. Foram presos em 6 de Fonteles de Lima, João Carlos Hass Veiga Fonteles de do Exército. De volta a Brasília, relata que foi colo-
outubro de 1971, pelo DOI-CODI, onde sofreram bár- Lima, Juliana Zaire Fonteles de Lima e Pedro César cada numa cela cheia de baratas. Posteriormente,
baras torturas. Esteve preso durante um ano e oito Miranda Fonteles de Lima. foi levada ao hospital da Guarnição em Brasília per-
meses, cumprindo a pena em presídios militares de manecendo ali até o nascimento de seu filho, Pau-
Brasília, Rio de Janeiro e posteriormente transferi- lo. Muito mal tratada, teve um parto induzido, feito
do para o presídio São José no estado do Pará. Ao Hecilda Mary V. Fonteles de Lima com um corte sem anestesia.
sair da prisão, já militava no Partido Comunista do nasceu na cidade de Belém, estado do Pará, no dia Quando saiu da prisão, Hecilda, neste momento
Brasil (PCdoB). 11 de março de 1947. Filha de Luiz da Silva Veiga e já militante do PCdoB, manteve sua militância, ao
Em agosto de 1978, foi novamente indiciado, junta- Hilda Ferreira Veiga. Casou-se com Paulo César Fon- lado do marido, em defesa dos Direitos Humanos e
mente com sua mulher, por ter denunciado publica- teles de Lima. contra os latifundiários da região do Araguaia.
mente as torturas que sofrera. Logo depois passou Quando o casal mudou-se para Brasília em 1970, He- Hoje, vive em Belém (PA), onde é professora do cur-
a trabalhar na Comissão Pastoral de Terra (CPT), cilda era militante da Ação Popular (AP). Estudava so de Ciências Sociais da Universidade Federal da-
como primeiro advogado paraense a se dedicar ex- Ciências Sociais na Universidade de Brasília (UnB) e quele estado (UFPA).
Quando fui presa, minha barriga de cinco me- sensações que aquilo provocava eram indescri-
ses de gravidez já estava bem visível. tíveis: calor, frio, asfixia.
Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, De lá, fui levada para o Hospital do Exército e,
diante da minha recusa em dar informações a depois, de volta à Brasília, onde fui colocada
respeito de meu marido, Paulo Fontelles, come- numa cela cheia de baratas.
cei a ouvir, sob socos e pontapés: “Filho dessa Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem
raça não deve nascer”. em pé nem sentada. Como não tinha colchão,
Depois, fui levada ao Pelotão de Investigação deitei-me no chão. As baratas, de todos os tama-
Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura nhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o
no pau de arara e choques. Dias depois, soube sutiã e tapar a boca e os ouvidos.
que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em
dos “refletores”. Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo.
Eles nos mantinham acordados a noite inteira Nesse dia, para apressar as coisas, o médico,
com uma luz forte no rosto. Fomos levados para irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem
o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Ja- anestesia. Foi uma experiência muito difícil,
neiro, onde, além de me colocarem na cadeira do mas fiquei firme e não chorei.
dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, Depois disso, ficavam dizendo que eu era fria,
e fui submetida à “tortura científica”, numa sala sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam
profusamente iluminada. ver quem era a “fera” que estava ali.
A pessoa que interrogava ficava num lugar
Trecho do livro: Luta, Substantivo Feminino: Mulheres
mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à
em que sentávamos saíam uns fios, que subiam ditadura (Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
pelas pernas e eram amarrados nos seios. As Editora Caros Amigos, 2010)
Fui presa pela primeira vez em 1971. Eu e Geraldo fomos, então, novamente
Fui torturada, conheci o limite humano submetidos a torturas como “cadeira do
da dor, da força bruta e da derrota de um dragão”, “palmatórias” e “pau de arara”.
sonho e a impotência diante da violência Entretanto, a pior tortura nessa segunda
desmedida do Estado terrorista, implan- prisão foi o fato de ter um bebê de cinco
tado pela ditadura militar no Brasil. Sofri meses, meu filho André de Santa Cruz
quase todos os tipos de torturas físicas e Leite, que ficou por três dias em poder
psicológicas pelas quais passavam todos dos policiais, trancado no nosso aparta-
os presos políticos na década de 1970. mento. A equipe de busca do DOI-CODI
Além de ter passado pela famigerada “ge- montou na nossa casa aparelhos de es-
ladeira”, a sala escura, o emparedamento cuta e ali ficaram nesses três dias para
que nos fazia perder a noção de tempo e prender quem chegasse ao apartamento.
de espaço. Fiquei um ano presa no Rio de Sem poder mamar e acostumado a ter a
Janeiro, na Vila Militar e depois no Presí- mãe por perto, André, segundo a “meni-
dio Talavera Bruce, em Bangú. na” que cuidava dele, chorava muito e os
policiais, irritados, o ameaçavam.
Sai da cadeia em 1973, mudei-me pra
São Paulo e pensei que nada pior do que Meu irmão Marcelo Santa Cruz che-
passara poderia me voltar a acontecer. gou ao apartamento três dias após a
Foi, então, que meu irmão querido, que nossa prisão, ao tomar conhecimento
como eu era militante da esquerda, estu- do ocorrido, intercedeu para que André
dante e socialista, Fernando Santa Cruz, fosse entregue a um de nossos familia-
um dia saiu para cobrir “um ponto”, isto res. Para amedrontar e pressionar Mar-
é, um encontro político com um compa- celo, os policiais torturadores pegaram
nheiro, Eduardo Collier, da sua organi- o André e ameaçaram jogá-lo pela jane-
zação, a APML (Ação Popular Marxista- A procura que envolveu toda a nossa fa- la. Logo depois, Marcelo foi levado para
-Leninista). Era 23 de fevereiro de 1974, mília para encontrar Fernando, saber as a OBAN onde ficou por uma noite preso,
Fernando e Eduardo nunca mais voltaram. circunstâncias da sua prisão, do seu assas- levando pontapés e sofrendo ameaças. Ao
sinato e a localização dos seus restos mor- ser liberado, meu irmão levou uma autori-
À esquerda, pintura de Rosalina Santa Cruz, 2000 tais, levou a mim e ao meu companheiro, zação minha para retirar o André do apar-
Acima, André com 6 meses em São Paulo, Geraldo Leite, à nossa segunda prisão, em tamento. Ao chegar de volta ao apartamen-
no apartamento onde moravam,
logo depois da prisão
abril de 1974, agora na Operação Bandei- to, os policiais já haviam abandonado o
rante (DOI–CODI/SP). local e a “menina” estava de saída levando
Em família
1. Geraldo com André no colo, logo
após a saída da maternidade
2. Rosalina com André em São Paulo
3. André com Rosalina com
aproximadamente 6 meses
2 3
5
1. Elzita e Lincoln, avós maternos
de André
2. Elzita Santa Cruz
3 e 6. Fernando Santa Cruz, tio de
André, poucos meses antes de sua
prisão e desaparecimento
4. Fichas de Fernando e Rosalina
nos órgãos de repressão
5. Rosalina Santa Cruz, 1976
4
7. Felipe com 1 ano e sete meses,
pouco antes da prisão de Fernando
Carta de Felipe
(Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, aos 11 anos de idade)
Parte de seus filhos foi atingido pela ditadura mi- Todo mundo podia pensar que eu escreveria uma carta triste.
litar, como Marcelo, que foi expulso da faculdade Mas não. Eu escreverei uma carta dizendo tudo o que acho. Eu
e Rosalina que foi presa e torturada. E por fim Fer-
tenho uma ideia de como era meu pai, devia ser um homem que
nando, seu quinto filho, preso e desaparecido em
23 de fevereiro de 1974. lutava contra a ditadura militar do presidente Médici que foi uma
das que mais teve repressão e morreu como muitos outros que ten-
Foi a partir do desaparecimento do filho que come-
çou a via-crúcis de dona Elzita a quartéis do Rio de
taram o mesmo.
Janeiro, Recife, de São Paulo, de cartas – sem res- Eu tenho uma vida feliz, mas ele está na minha cabeça como o
posta- a autoridades civis e militares. meu outro pai. Sabe, minha mãe casou de novo com um homem
A luta incansável da mãe de Fernando pelo escla- que eu considero muito meu pai, tanto quanto o outro, pois eu te-
recimento da situação dos desaparecidos políticos nho 11 anos e meu pai morreu quando eu tinha dois anos. Hoje
no Brasil e por informações do paradeiro de seu fi- moro em Porto Alegre e sou muito feliz. Torço pelo Interna-
lho é retratada no livro Onde está meu filho?
cional e faço muitas coisas como jogar na escolinha do Bráulio.
É uma das lutadoras pela anistia e pela democratiza- E ao fim de tudo eu acho que alguém um dia vai acabar com essa
ção do país e hoje, aos 100 anos, segue, ao lado dos
filhos, em busca dos restos mortais de Fernando.
ditadura militar.
Esta carta está publicada no livro Onde está meu filho?
Eu sou José Paulo De Luca Ramos, filho de faço essa relação. Tive crises até meus 15, 16 por conta do que ocorreu com minha mãe no
Derlei Catarina De Luca e Nilo César Sobral anos. Depois, deu uma parada e ficou mais psi- período da ditadura. Lógico que tem a lacuna
Ramos. Nasci em 1972, em Londrina (PR). Na cológico, eu diria. Quando tem algum desafio, da ausência da família durante cinco anos, mas
época, meu pai e minha mãe passavam por lá quando eu fico um pouco angustiado me dá naquele momento eu não tinha a consciência
fugindo da polícia. Quando eu tinha 1 ano de uma crise. Hoje meu filho de 8 anos tem asma dessa falta.
idade, minha mãe já havia sido presa e tortura- também, mas bem mais amena porque conse-
A minha infância e juventude foram muito
da, e precisou fugir do Brasil para não ser mor- guimos tratar desde cedo.
normais. Estive envolvido com a política, com
ta. Acabou indo para Cuba. Ela foi na frente e
a luta pelas Diretas Já, também me lembro da
eu um ano depois. Cheguei à Ilha com 2 anos “Quando eu tinha criação do PDT em Santa Catarina.
de idade, em 1974, onde morei por cinco anos.
Minha mãe, por seis. Tenho lembranças da 1 ano de idade, minha Depois, mais velho, eu posso até repetir o di-
gente voltando em 1979, na época da Anistia. mãe já havia sido tado: “Mãe liberal, filho conservador”, porque
eu procurei muita segurança. Fiz engenharia,
Da infância em Cuba eu não tenho do que presa e torturada” administração e busquei o lado da racionali-
reclamar, porque foi uma fase muito boa. No
dade. Não sei se inconscientemente ou não.
período em que morei lá, dos 2 aos 7 anos, tinha
Também tem a história dos psicólogos, que Depois de me formar, fui estudar fora, fiz MBA
educação, saúde, mas, óbvio não tinha o meu
faz parte das coisas que eu não lembro, mas em finanças e voltei para o Brasil. Não sei se
pai. Ele ficara no Brasil. Antes de irmos para
que minha mãe sempre conta. “Você teve foi uma escolha inconsciente ou consciente de
Cuba, meus pais se separaram.
ajuda psicológica em Cuba”. Talvez, hoje, os eu procurar esse lado da racionalidade, de ir
Então, até os 7 anos não tive nem a presença poucos momentos de crise de asma sejam um para o lado da segurança.
do meu pai nem a falta dele, o que é diferente mecanismo de defesa da minha mente.
de se perder um pai. Então, como criança, na- Na infância, meu nome permaneceu sem-
Mas ir em busca de ajuda psicológica foi pre o mesmo, José Paulo, mas tinha algumas
quela época, eu não sofria por conta disso.
uma das razões que fez a minha mãe ir para certidões com sobrenomes diferentes porque
Em Cuba, tive muitas crises de asma. Mas Cuba. Quando voltamos para o Brasil tive al- meus pais usavam nome falso. Essa questão
como lá o sistema de saúde já era avançado, gumas conversas com psicólogo e foi por isso foi se resolvendo ao longo da minha juventu-
quando as crises começavam eu era interna- que fomos morar no interior. Para estar junto de, quando eu tinha entre 15 e 18 anos. Mas
do e devidamente tratado. Acho que foram da família. nunca foi um trauma. Simplesmente tinha
22 internações nesses cinco anos por crise de algumas coisas na vida diferente das outras
asma. Não sei se isso é diferente de outro as- Uma vez no Brasil, tive toda a estabilidade de
ter uma família grande, de conhecer meu pai, crianças, mas nada que me traumatizasse.
mático que não teve uma mãe torturada. Não Minha mãe estava ali, meu pai estava ali,
meus avós. Isso foi em 1980, eu tinha de 8 para
9 anos. Considero que tive uma infância nor- minha família. Eu cresci no interior de Santa
À esquerda, José Paulo, Içara (SC),
dezembro de 1973 mal, não me acho diferente de outras crianças Catarina, o que fez muito bem para mim. Ter
essa base sólida de família, de ter todo mun- ponto de referência. Mas isso, de novo, é a mi- 1. José Paulo com meses de idade, com
do lá. Então, mesmo que meus pais fossem nha mãe que conta, as famílias que me aco- o francês Philippe Vialle, uma das pessoas
que cuidou dele ainda bebê junto com
separados, eu tinha a figura do pai, a figura lheram naquela época me contam, porque eu a esposa Bernadete Vialle, 1972
da família. Nunca ficou um elo faltando. não lembro disso. 2. José Paulo, Itajaí (SC), 1973.
Foto tirada por Onadyr de Jesus, que
Tem algumas coisas que a gente, como fi- Mas essas histórias não era eu quem busca-
também cuidou do bebê
lho, sente, mas evita falar para os pais. Mi- va e sim minha mãe. Não é que a gente, como
nha mãe sempre falou das coisas. Da tortu- filho, negue. Mas a gente evita falar. Nossos
ra, ela foi falando mais tarde, porque como é pais buscam toda informação possível. E a
uma coisa que machuca quando a gente fala, gente não. Eu fico mais na minha. Por exem-
e evitávamos. plo, eu não participo assiduamente das coisas
Quando minha mãe foi para Cuba, eu ti- que minha mãe busca. Apoio, mas não é uma
nha entre 1 e 2 anos, fiquei um ano perambu- coisa que eu queira buscar. E talvez isso seja
lando em Santa Catarina pela casa de algu- assim para não me abalar emocionalmente.
mas famílias para a polícia não me prender. Eu estou bem sem ir buscar.
Foi um período que só conseguimos refazer
Fora isso, eu tenho muito orgulho de ser
no ano 2000 quando descobri a casa onde
filho da Derlei, ela é uma verdadeira heroína
fiquei num período de dois, três meses. Ha-
por tudo o que ela passou, por tudo o que ela
via essa lacuna na minha história. Claro que
viveu, de querer mudar o Brasil. Ela fez de
essa experiência diferenciou a minha infân-
uma forma, e eu procuro fazer, também, da
cia da de outras crianças da época.
minha maneira. 1
sempre voltar para minha avó, que era meu 2009. É executivo no setor financeiro.
6 7 8
10
11
De volta ao Brasil
1. José Paulo (de calça marrom)
com os primos em Florianópolis
(SC), quando voltou ao Brasil
5 depois da Anistia
2. Recebendo medalha em
um campeonato de futebol
3. Na Campanha das Diretas,
Criciúma (SC), 1985
4 e 5. Foto e fichas de Derlei
nos órgãos de repressão
José Paulo De Luca, José Paulo Vitalli Ramos, cerdotes e seminaristas. Como explicar um bebê casa da avó Maria Rizzieri. Nesse período, teve
Alexandre ou Xandinho nasceu e viveu na clan- num seminário católico, onde só moravam ho- como anjo Valmir Martins e Murilo Canto. Ona-
destinidade nos seus primeiros anos de vida. mens? O menino chorava e chorava. Saíram na dyr faz questão de fotografá-lo. Fotografia esta
Teve vários registros de nascimento com nomes madrugada gelada de Curitiba em busca de um que manteve escondida durante trinta anos. Em
e mães diferentes. pediatra. O pediatra pensou que o menino fosse Içara é cuidado pela Ica – Nadir dos Santos, en-
filho de algum padre. Eles negam e o pediatra quanto a avó vai trabalhar.
Oito cidades, dois estados, cinco países foi o
não fez mais perguntas. Apenas aconselha a da-
roteiro durante quase três anos. Lugares desco- Meses depois, se prepara para viajar a Cuba
rem mamadeira de quatro em quatro horas. Qua-
nhecidos, com pessoas desconhecidas, passando com permissão do Juiz de Menores, Wladimir
se mataram o menino de tanta comida!
de mão em mão. Dezenas de mãos solidárias cui- Divanemko, que ordena o registro do menino
daram dele, sabendo apenas que a mãe era pro- Militantes da Ação Popular se mobilizam em com o nome verdadeiro da mãe. Cuba e Brasil
curada pela ditadura. Santa Catarina. Quem o abriga, enrola numa não tinham relações diplomáticas. O Juiz não se
Em 18 de abril de 1972, aos três meses de idade manta quentinha é a jornalista Márcia Maykot. aperta. Escreve no despacho: Para ir ao encontro
deixei-o com Joana Lopes, num hospital em Lon- Num Volkswagen descem a Serra Geral em dire- da mãe.
drina. Sem ter ideia dos fatos, ela segura o me- ção à Ilha de Santa Catarina.
Tia Darcy Terezinha De Luca e Dozolina Rizzie-
nino. Expliquei que meu marido fora preso por Em Florianópolis, em frente à Maternidade ri viajam a Buenos Aires, onde as aguarda Yurina,
problema político, e saí rapidamente sem dar-lhe Carmela Dutra é entregue para João Soccas, que da Juventude Cubana. Passam dois dias num ho-
tempo de reagir. Não podia por em risco a vida de pediu apoio ao casal francês Pihilippe e Berna- tel. Viajam ao Peru e Darcy acompanha-os até o
meu filho. Precisava impedir que caísse nas mãos dette Vialle. O estudante de engenharia, solteiro, embarque, em Lima. Ao entrar no avião, o menino
da repressão se eu fosse presa. Joana conversa faltava às aulas para cuidar do menino. Aprendeu percebe que tia Darcy não está, escapa da mãe de
com os médicos do hospital e o menino fica inter- a trocar fralda e esquentar mamadeira que Berna- Yurina e sai correndo pela pista. Segundo o com-
nado no berçário por vários dias até conseguirem dette deixava pronta antes de sair de casa. panheiro cubano organizador da viagem, foi o mo-
uma solução. mento mais tenso da missão. O menino só tinha
Semanas depois, em frente a mesma materni- autorização para viajar com tia Darcy. No avião
Sai do berçário e vai para a casa de vários pro- dade, o casal francês entrega o menino para o
fessores universitários. Passava uma noite em cada da companhia aérea Cubana de Aviación ele não
casal Ivo e Onadyr de Jesus de Itajaí. O menino sossegou, nem comeu. Tomou 17 sucos de laranja.
casa. Por segurança e por que as pessoas tinham segue para Itajaí com o nome de Alexandre, um
de manter seus horários de vida normais, para não pacote de remédios e várias recomendações, es- Yurina me entrega um menino de 2 anos e três
suscitar desconfiança. Esse período ele teve como critas numa folha de caderno, em tinta vermelha, meses, já caminhando.
anjo da guarda Eda Arzua. num português arrevesado. Em Havana, fomos acompanhados pelos psi-
A médica Elzira Vilela busca-o em Londrina e Calada e muda, Onadyr segura as línguas das quiatras Elza Gutierrez e Alberto Lavandera.
leva para Curitiba. Ali, o menino passa dias e noi- mulheres. As vizinhas xeretavam. Diziam que ela Em 1979, com a Lei de Anistia voltamos ao Bra-
tes no Seminário Catarinense, aos cuidados do era burra e a criança devia ser filha do Ivo com sil. Levei 32 anos para refazer sua trajetória desde
Padre-diretor Evaristo Debiasi e os seminaristas outra mulher. A cunhada desconfiada perguntava o momento em que eu o deixei em Londrina, até
Vertolino e Sergio Maikot. de quem era a criança. Com cinco filhos e tendo a chegada em Havana. Faltam muitas lacunas a
O bebê chorava e os seminaristas davam ma- mais uma criança para alimentar, Onadyr nunca preencher, mas uma verdade é notável. Apesar da
madeira. Quanto mais mamadeira, mais o bebê se queixou nem explicou a origem da criança. ditadura, meu filho foi envolvido numa rede de
chorava. Não sabiam trocar fraldas e receavam Apenas o vigário, padre Taicyl, sabia. Durante solidariedade que garantiram sua segurança. O
chamar alguém. Queriam que o menino se ca- quase um ano o menino ficou em Itajaí, quando Diário Catarinense publicou a história, em 2005
lasse para não chamar a atenção dos demais sa- então é devolvido ao casal Vialle e daí segue para sob o título: “O bebê que driblou a ditadura”.
Na infância, o que eu ouvia sobre meu pai Não lembro, por exemplo, da chegada da no- Essas brigas envolviam a mim, minha mãe,
era que ele era um ladrão, que eu era filho de tícia da morte dele. As publicações da época avó e meu tio, irmão da minha mãe. Minha mãe
um ladrão e que meu sangue não prestava. divulgaram informações do sequestro do avião tinha uma personalidade forte, assim como mi-
Essa história vinha à tona em brigas familia- [que ele fez] e da morte. Até a minha foto, com nha avó, que era alemã da gema e tinha tido
res que ocorriam em casa. Depois que meu pai o título “Naldinho, filho do sequestrador”, di- uma educação muito rígida. Sempre que havia
morreu, minha mãe virou dependente do álco- vulgaram na imprensa. Fiquei muito chocado desentendimentos na minha família, isso era jo-
ol e minha avó virou a mantenedora da casa. quando descobri uma foto minha no jornal O gado na cara da minha mãe e consequentemen-
E eu, pequeno, ouvia coisas como: “Você é um Globo. Só fui descobrir isso depois, com 34, 35 te vinha para cima de mim também.
ladrão, você não presta”. anos de idade.
A maior vítima disso tudo foi a minha
A história da minha família é essa: mi- mãe. Imagine ela, uma mulher analfa-
nha avó veio da Alemanha durante a Se- beta, dona de casa, se vendo numa situ-
gunda Guerra Mundial. Minha mãe tam- ação em que o marido diz que a comida
bém nasceu na Alemanha. Logo depois não está boa e simplesmente vai embo-
do golpe de 1964, meu pai conseguiu fu- ra? Imagine para ela, o marido se des-
gir por ter sido condenado a cinco anos pedir assim e a notícia seguinte ser a
e oito meses de prisão. Ele seguiu para do sequestro?
Guarulhos, cidade satélite ainda muito
pequena, e conheceu minha mãe. Eles Hoje, fico imaginando como foi para ele
tiveram um romance, ficaram juntos e ter que abandonar a esposa e um filho de
então eu nasci em 1968. 4 anos e ter que lutar pela sobrevivência.
E como foi para a minha mãe, analfabe-
Eu tinha quatro anos quando ele mor- ta, descobrir a morte dele dessa manei-
reu. A única lembrança que eu tenho até ra, nessa situação, com todo mundo em
hoje é de uma casa onde morávamos eu, cima dela. Foi muito para a cabeça dela.
minha mãe e meu pai. E um dia, na frente Eu acho que ela não sabia da militância
da lareira dessa casa, ele me deu um brin- do meu pai.
quedo, passou a mão na minha cabeça e
foi embora. O brinquedo era um carrinho Quando tudo isso veio à tona, minha
tipo cegonheira. Mas eu não me lembro mãe mudou completamente a maneira
da fisionomia dele. Para mim, esse episó- dela de ser. Virou uma alcoólatra, depen-
dio do brinquedo foi como uma despedida, mas Durante a minha infância, sempre que se to- dente do cigarro. E eu só fui perceber isso aos
é a única lembrança que eu tenho dele. E a par- cava no nome do meu pai era através de uma 34 anos, idade em que comecei a juntar todas
tir daí não tenho mais nenhuma lembrança. briga. Foi assim na infância, adolescência e co- as peças.
meço da vida adulta. O que eu ouvia era sem-
pre: “Você é filho de ladrão, você não presta, Minha mãe nunca falou nada do meu pai.
você não tem sangue bom”. Além de ladrão, a Sempre disse que ele tinha morrido num avião,
À esquerda, Grenaldo aos 3 anos. Uma cópia desta foto
história era que depois do sequestro do avião, só isso. Ela bebia muito, ficava muito bêbada,
foi levada por seu pai à sua avó paterna no Maranhão
Ao centro, a dedicatória do pai no verso ele havia se suicidado. a ponto de brigar e quebrar as coisas dentro de
e quando abri nos jornais da época, O Globo, eu tenho na minha Esse momento foi muito bonito. Quem esta-
va lá quando nos encontramos viu a presença
Folha de São Paulo, as revistas da época, todos
diziam que ele era terrorista. Fiquei muito de- cabeça e isso faz a de Deus, todo mundo estava chorando.
cepcionado, pensando. “Puxa, o que falaram do minha vida seguir” Essa frase “Seu pai não foi um ladrão. Seu pai
meu pai era verdade. Meu pai é um ladrão”. Fi-
foi um herói” eu tenho na minha cabeça e isso
quei muito arrasado. Vi a minha foto no jornal
No dia do encontro, o homem entrou, me deu faz a minha vida seguir. A minha vida acelera.
O Globo, a entrevista da minha mãe que estava
um abraço, sentou e começou a contar a história Se alguém vier e me mandar abaixar a cabeça,
ao lado. Tem outra parte que fala do enterro do
dele: que ele era um controlador de voo, que era antes eu até podia abaixar. Mas agora, não. Ago-
meu pai.
sargento da Aeronáutica [José Barazal Alvarez]. ra eu peito, agora eu vou para cima. Quando
Eu não entendia a manipulação que todos os Disse que ele atendeu a uma ocorrência do meu meus filhos falam: “Eu não consigo...”, eu digo:
canais de mídia faziam naquela época. Aí dis- pai, e quando percebeu que era um sequestro, “Não fale que não consegue. Essa palavra não
se: “Quero conversar com essa mulher que fez começou a conversar com o meu pai e com o pode existir. Você consegue, você sabe, você
essa revista”. Pesquisei o nome Eliane Brum piloto. Ele me disse que percebeu que meu pai vai...Você é neta do Grenaldo!”. Minha vida mu-
e pedi para a minha aluna fazer a intermedia- não era a pessoa que estavam falando. O avião dou depois disso. Hoje sou um Grenaldo muito
ção do contato. Ela ligou e a Eliane disse a ela: estava indo para Curitiba e a intenção do meu diferente. Sou o Grenaldo filho do herói.
“Você conhece o Grenaldo? Eu estou procuran- pai era de ir ao Uruguai, onde, à época, não ti-
nha ditadura. José disse que percebeu que ha- Isso e a tortura da minha mãe foram as coi-
do por ele”.
via alguma coisa diferente, que meu pai estava sas que mais marcaram a minha vida. Acho
Aí marcamos o encontro numa pizzaria. Fo- sozinho, numa situação de desespero total. que não existe tortura pior do que a que ela so-
mos eu, minha mulher e a minha aluna. Até freu depois da morte do meu pai: O AVC, o al-
então eu tive mais medo. Foi a Eliane que me Ele foi o encarregado de fazer o inquérito, o coolismo, morando muito mal, apanhando do
aliviou. Meu peso era muito grande por con- Inquérito Policial Militar do caso. Ele conta que meu padastro, depois do meu tio. Ela foi a mais
ta da carga familiar e ainda mais por conta de queria dar baixa, mas que não conseguia, mui- torturada. E eu de tabela.
tudo que vi nos jornais. Eu precisava liberar tos amigos haviam desaparecido e viveu sob
ou enterrar de vez aquela história. Ela já veio Então, o Zé foi o meu libertador e a Eliane
medo por muito tempo, porque não estava de
com livros Dos Filhos deste solo, Combate nas Brum um anjo que Deus colocou na minha vida.
acordo com o que estava acontecendo.
trevas, A Ditadura Escancarada, a Revolta dos A partir daí comecei uma outra luta, de pesqui-
Marinheiros. Na hora de fazer o inquérito, o corpo do meu sa, correndo atrás, lendo.. E fomos, a Eliane e eu,
pai estava dentro de um carro. Ele mexeu no cor- atrás do Inquérito Policial Militar. Nós encon-
Comentei algo sobre meu medo, minha situ- po e viu que havia uma perfuração na cabeça. tramos um pedaço da carta, que estava rasgada.
ação, sentir esse fardo nas minhas costas, do
ladrão, de tudo que vi. Ela colocou a mão em Quando ele contava isso, olhou para mim e Eu tentei resgatar a história do meu pai atra-
mim e disse. “Seu pai é um herói, não tenha disse: “Seu pai não se suicidou, seu pai foi mor- vés das ações que eu movi. A própria indeniza-
9 10
Meu nome é Cecília. Sou neta do David ção, ninguém sabia que era filha do David Ficou nove meses entre o Cenimar, no cen-
Capistrano, sobrinha do David Capistra- Capistrano e da Maria Augusta de Olivei- tro do Rio de Janeiro, e a Ilha das Flores.
no Filho – pai e avô militavam no Parti- ra. Ela tinha um nome falso, Márcia.
do Comunista Brasileiro (PCB) –, filha Logo que o aparato repressivo começou a
da Maria Cristina Capistrano e neta da Minha mãe não falava nada. Tinha montar toda a história que envolvia minha
Maria Augusta Capistrano. Acompanhei medo de falar alguma coisa, que ela era mãe, já fazia uma semana que ela estava
bastante a busca pelo meu avô, mas como filha do David, claro, e também de acabar no DOI-CODI. Era uma estratégia dos pre-
eu nasci em 1975, já era uma fase que a abrindo o endereço de minha avó que mo- sos prolongar ao máximo o tempo que fica-
minha avó, meu tio e minha mãe não ti- rava com o meu tio David, que também vam sem falar quem eram. Agindo assim
nham mais esperanças de encontrá-lo. era do PCB. minha mãe fazia que os companheiros per-
cebessem que estava presa e, desse modo,
Nasci no ano que a minha mãe foi absol- pudessem se ajeitar, se arrumar para fugir
vida do inquérito policial militar. Ela fazia “Minha mãe foi presa de possíveis encontros marcados.
propaganda do Partido Comunista do Bra- quando estava sozinha Quando a história foi montada, meu
sil (PCdoB). Foi presa junto com o compa-
nheiro dela, o Tarso, na Vila da Penha, Rio em casa com meu irmão, irmão estava há uma semana no aparta-
de Janeiro. O Tarso também era filho de Jonas, na época com mento com policiais do Exército. Minha
mãe sempre me fala da solidariedade dos
um militante do Partido Comunista Brasi-
leiro (PCB), e os dois eram namorados, mo- 4 anos. O meu irmão vizinhos que levavam bolo, café para eles.
ravam juntos e faziam material de agitação ficou no apartamento, Ela não tinha notícia nenhuma dele, que
por sua vez também não tinha notícia
e de informação do PCdoB.
que era tipo um CDHU” dela. Minha avó também não tinha notí-
Ela foi presa quando estava sozinha cia nenhuma porque não sabia que a filha
em casa com meu irmão, Jonas, na época estava presa.
com 4 anos. O meu irmão ficou no apar- Depois disso, só quando o Tarso resol-
tamento, que era tipo um CDHU. Lá, hoje veu falar que ele era filho do Donato, a Bom, levaram meu irmão para a minha
em dia, é o Complexo do Alemão. Fica repressão foi montando a história dela. A avó. Ela levou um susto danado, no en-
dentro do Complexo do Alemão. família do Donato acabou ajudando muito tanto desconfiava que alguma coisa tinha
durante todo o processo, inclusive contra- acontecido porque minha mãe não apare-
E então ela foi levada para o DOI-CODI. tando advogado. cia. Era muito raro ela ficar tanto tempo
Chegando lá, como não tinha documenta- sem dar notícias.
Depois de um mês no DOI-CODI, ela foi
transferida para o Cenimar. Em seguida Fico imaginando o que meu irmão fi-
À esquerda, Maria Cristina e sua filha Cecília com
cerca de 1 ano de idade mamãe foi levada para a Ilha das Flores. cou fazendo lá uma semana. Brincando
Maria Cristina Capistrano nasceu em 6 participou da ANL e da revolta de 1935, quando foi O irmão de Maria Cristina, David Capistrano da Cos-
de janeiro de 1950. Filha de David Capistrano da Costa, preso e condenado a 7 anos de detenção no presídio ta Filho, iniciou sua militância política em 1962 no
desaparecido político desde 1974, e Maria Augusta de de Ilha Grande, de onde fugiu a nado exilando-se em Colégio Estadual de Pernambuco, em Recife, aos 14
Oliveira Capistrano, hoje com 94 anos, ambos militan- seguida no Uruguai. Voltou ao Brasil e foi novamen- anos de idade. Após 1964, intensifica sua atuação po-
tes comunistas desde 1945. Tem dois irmãos, Maria Ca- te preso em 1944, sendo anistiado 1 ano depois. Em lítica. No final de 1965 muda-se para o Rio de Janeiro,
rolina Capistrano e David Capistrano da Costa Filho. 1946 foi eleito o deputado estadual mais votado de onde forma-se médico sanitarista pela Faculdade de
Pernambuco, cassado um ano depois. Medicina da UFRJ e inicia militância no movimento
Era secretária de Agitação e Propaganda do PCdoB e estudantil universitário. Com a intensa perseguição
tinha 22 anos quando foi sequestrada em sua casa, Teve intensa atuação política em São Paulo e Rio de a ele, vai para São Paulo em 1974. É eleito, em 1992,
onde estava sozinha com seu filho, com 4 anos na Janeiro até ser enviado por dois anos para a Escola prefeito da cidade de Santos pelo Partido dos Traba-
época, no Rio de Janeiro. Foi levada ao DOI-CODI, mas de Quadros do Partido Comunista da União Soviética lhadores.
não foi identificada imediatamente como filha de (PCUS), em Moscou. De volta ao país teve atuação po-
lítica em vários estados, sendo preso novamente em Maria Cristina Capistrano hoje tem 64 anos e é coor-
David, pois a repressão conhecia somente seu nome
1961 ao tentar assegurar a posse de Jango, quando denadora pedagógica. Seu filho, Jonas, faleceu em
falso, Márcia, no momento. Ficou durante um mês no
da renúncia de Jânio Quadros. Teve, ainda, mais uma 1976, vítima de um atropelamento. É, ainda, mãe de
DOI sofrendo torturas. Foi levada em seguida para o
prisão posteriormente. Com o golpe de 1964 foi per- Eneida e Cecília Capistrano Bacha.
Cenimar e, na sequência, para a Ilha das Flores, per-
manecendo encarcerada ali por mais 9 meses. seguido e teve seus direitos cassados. Em 1972 viajou
para Tchecoslováquia, retornando 2 anos depois,
Seu pai David, cearense de Boa Viagem, iniciou sua mesmo ano em que é sequestrado e desaparecido pe-
militância em 1931. Como sargento da aeronáutica, los órgãos de repressão.
Meu primeiro filho, Jonas, nasceu em no- mar só recebi uma visita de familiares, entre Em 1974, meu pai voltou ao Brasil, após ter
vembro de 1968. Ele estava junto a mim quan- eles meu filho. saído clandestinamente do país. Sabemos que
do fui presa em 1972, em um apartamento foi preso nas proximidades de Uruguaiana
No dia seguinte ao interrogatório na Mari-
do conjunto habitacional do Quitungo, no Rio (RS), juntamente com José Roman, que havia
nha, uma embarcação nos levou para o presí-
de Janeiro. saído de São Paulo para encontrá-lo na frontei-
dio da Ilha das Flores, na Baía de Guanabara,
ra. Meu pai e José Roman nunca mais foram
Saí arrastada de lá e o meu filho ficou em onde permaneci por oito meses, e durante
vistos e são considerados “desaparecidos po-
companhia daqueles homens, sem que eu esse tempo só foram permitidas duas visitas
líticos”, denominação que, embora não tenha
soubesse o que fariam com ele. Felizmente, de um advogado e nenhuma de familiares.
qualquer sentido, tem um significado reconhe-
apesar do medo que a polícia política causava
Após a minha liberação, fui obrigada a voltar cido por todos que viveram o terror da repres-
na maioria da população, meus vizinhos toma-
semanalmente, durante quase cinco meses, ao são no período da ditadura militar.
ram conhecimento da situação no momento
quartel da Marinha, pois, para a polícia políti-
em que fui presa, e pude contar com a solida- Em 1975, quando nasceu minha segunda fi-
ca, estava sob liberdade condicional, embora
riedade deles, que providenciaram leite, pão, lha, Cecília, eu ainda estava sob a ameaça de
nenhum julgamento tenha acontecido. Aca-
biscoitos, almoço e ceia para o Jonas, nos dias processo jurídico na Justiça Militar, mas as
távamos essa anomalia, essa imposição, uma
em que ficou nas mãos dos agentes da repres- adversidades políticas ficaram em segundo
vez que existia o temor de sermos novamente
são. Depois o Jonas foi levado para a casa dos plano, diante da alegria de sua chegada.
encarcerados, sem qualquer culpa formalizada.
pais do meu companheiro e depois para a casa
da minha mãe.
Maria Cristina, Luiza, filha de Cecília, e Cecília em São Paulo
Todos esses acontecimentos me foram relata-
dos posteriormente, pois quando saí, apenas le-
vei a angústia de estar deixando meu filho com
desconhecidos, sem qualquer segurança sobre
a forma como ele seria tratado.
Passei mais de trinta dias no DOI-CODI, na
Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde so-
fri todo tipo de tortura que a ditadura militar
impunha regularmente aos presos políticos –
espancamento, choques elétricos, “geladeira”,
fome, sede e completa insegurança quanto à
preservação da própria vida.
Após esse período, fui transferida para o Ce-
nimar, no quartel da Marinha, na Praça Mauá,
e lá foi realizado um interrogatório formal, que
posteriormente serviu para instruir o processo
encaminhado à Justiça Militar. No Cenimar
não sofri torturas físicas, embora a pressão psi-
cológica continuasse por vários motivos, mas,
principalmente porque não dispúnhamos do
acompanhamento de um advogado. No Ceni-
Vou falar da minha adolescência, período em lego”. Para uma criança de 12 anos de idade,
que vivenciei a atuação política dos meus ir- o que significaria pelego? Ou mesmo, “abaixo
mãos, que se deu em São Paulo mais ou menos o imperialismo”, “abaixo MEC-USAID”. Eram
a partir de 1968. Nessa época, o Lúcio, que já preocupações de uma criança de 12 anos que
tinha se formado na Faculdade de Engenharia começava a querer saber o que aquilo repre-
e Eletrotécnica de Itajubá/MG, resolveu tra- sentava. Com 12 anos comecei a aprender
zer a minha mãe para morar em São Paulo. A coisas que a população não sabia. Se pichava
Maria Lúcia tinha prestado um concurso e es- aquilo, mas talvez o povão não estivesse nem
tava trabalhando na cidade. A Laura também tendo a consciência do que estava escrito ali.
estava em São Paulo há muito tempo. Enfim, Aquelas frases todas e tal.
praticamente toda a família morava na cidade.
Na escola, nós tínhamos aquelas aulas de
O ano de 1968 foi de muita agitação, porque Educação Moral e Cívica, que eram um hor-
foi o ano que mais preocupou a ditadura mili- ror. Para alguém que mesmo adolescente, mas
tar, culminando com a edição do AI-5. que já tivesse uma certa consciência política,
era insuportável assistir uma aula onde a pro-
“Lembro-me de ter feito fessora dizia que não ter direito de votar para
Presidente era certo. Que a Guerra do Vietnã,
algumas discussões com o os Estados Unidos estavam lá só para ajudar.
Jaime sobre imperialismo. Eu era muito contestador, me destacava em
Foi um momento que me relação aos outros alunos. Lembro-me de uma
vez que estava estudando lá no Liceu Noro-
abriu bem a cabeça” este, em Bauru, e foi um advogado mais um
outro cara que eu não sei o que fazia lá, mas
Nessa época, eu estudava num colégio parti-
ele foi assim, entrou de sala em sala alertando
cular chamado Alfredo Pucca. Nós morávamos
contra o terrorismo, contra a subversão e coisa
na Bela Vista, eu ia a pé para a escola. Na volta
e tal. E senti aquilo como um certo alerta para
da escola, minha mãe se preocupava porque fi-
mim porque eu batia de frente ali com alguns
cava sabendo pelos meus irmãos que haveria
professores.
passeatas, coisa e tal. Às vezes eu me atrasava
e já era motivo de preocupação para ela. Antes Lembro-me de ter feito algumas discussões
das passeatas, normalmente o Lúcio, o Jaime, com o Jaime sobre imperialismo. Foi um mo-
Maria Lúcia, todos se reuniam em casa. Outros mento que me abriu bem a cabeça. Eles tra-
militantes do PCdoB também se reuniam e saí- ziam da USP um livrinho que chamava Um
am dali já para as manifestações. dia na vida do Brasilino, que contava a histó-
ria de como era a exploração das indústrias no
Fui tomando consciência política naquela
país, como era a vida do Brasilino. E depois,
época. Passava pela cidade e via escrito, “pe-
mais à frente, voltamos para o interior. Mor-
Jaime e Clóvis, durante uma visita de Jaime, que morava
reu uma irmã da minha mãe e tinha uma avó
em Itajubá (MG), à família em São Paulo, 1968 que morava com essa irmã. Então minha mãe
todas essas pessoas. Quer dizer, até hoje nem lio ou que estavam sendo tiradas das prisões
6 7 8
Família Petit
1. Julieta, avó de Clóvis, e José Bernardino,
seu primeiro marido, 1942. José é pai dos
quatro irmãos de Clóvis
2. Laura, Lúcio e Jaime, Itapuí (SP), 1948
3. Maria Lúcia em seu primeiro
aniversário, Amparo (SP), 1951
4. Clóvis, Duartina (SP), 1957
9
5. Laura, Itapuí (SP), 1948
6. Julieta, Itapuí (SP), 1948
7. Lúcio e Jaime na primeira comunhão,
Amparo (SP), 1951
8 e 9. Maria Lúcia e Lúcio no primário,
Duartina (SP), 1957
14 15
17 18
16
1 2 3
Jaime Petit da Silva nasceu em 18 de ju- Maurício Corrêa, em 1993, diz que “[…] existe regis- Em 1965, trabalhou em São Paulo (SP) como enge-
nho de 1945, em Iacanga (SP). Desaparecido em 28 tro de sua morte em 22 de dezembro de 1973”, sem nheiro. Em meados de 1970, abandonou o trabalho
ou 29 de novembro de 1973. Militante do Partido especificar as circunstâncias e o local de sepulta- e a cidade para continuar a luta política na região
Comunista do Brasil (PCdoB). mento. De acordo com o relatório do Ministério da Sudeste do Pará, local escolhido pelo PCdoB para
Marinha, também de 1993, ele foi “[…] morto em 22 iniciar a Guerrilha do Araguaia.
Em 1965, ingressou no Instituto Eletrotécnico de dezembro de 1973”.
de Engenharia da Faculdade Federal de Itajubá e No campo, destacou-se como excelente mateiro.
trabalhou como professor de Matemática e Física Fez vários poemas e literatura de cordel que eram
recitados pelos camponeses da região e nas ses-
nos colégios de Itajubá e Brazópolis (MG). Em Ita- Lúcio Petit da Silva (Beto) nasceu em 1º sões de terecô (religião local).
jubá se casou. de dezembro de 1943, em Piratininga (SP). Desapa-
recido em 21 de abril de 1974. Militante do Partido Tornou-se vice-comandante do Destacamento A –
Participava ativamente do movimento estudan-
Comunista do Brasil (PCdoB). Helenira Rezende –, após a morte do comandante
til. Em 1968, foi eleito presidente do diretório aca-
André Grabois, em 14 de outubro de 1973. Era co-
dêmico. Nesse mesmo ano, em outubro, partici- Por conta das dificuldades financeiras da família,
nhecido como Beto. Visto pela última vez por seus
pou do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, quando começou a trabalhar muito cedo. Foi viver com
companheiros em 14 de janeiro de 1974, após forte
foi preso. um tio em Itajubá (MG), onde terminou o colegial
tiroteio com as Forças Armadas.
Condenado à revelia em 1969, foi obrigado a aban- e o curso superior no Instituto Eletrotécnico de
Engenharia. Foi homenageado pela cidade de São Paulo (SP),
donar o curso de Engenharia e ir viver clandestina-
que deu seu nome a uma rua no bairro Visconde
mente no interior. Posteriormente, mudou-se para Fez parte do diretório acadêmico da faculdade,
do Rio Branco. Outra rua com seu nome se localiza
a localidade de Caianos, no Sudeste do Pará, onde onde iniciou sua militância política, encarregan-
em Belo Horizonte (MG).
já residiam seus irmãos Lúcio e Maria Lúcia, tam- do-se do setor de cultura. Participou das ativida-
bém desaparecidos durante a guerrilha, integran- des do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE.
do-se ao Destacamento B das Forças Guerrilheiras Escrevia poemas e crônicas sobre os problemas
do Araguaia. Sobre Jaime, o relatório do Ministério sociais brasileiros para o jornal O Dínamo, do dire-
do Exército, encaminhado ao ministro da Justiça tório acadêmico.
Eu sou Edson, irmão da Janaína, primo do Eu não tenho lembranças de ter sido uma Algumas cenas são descritas pelos meus
Joca, primo do Igor, filho da Amelinha e do noite grave, mas eu acredito que para a Cri- pais ou pela Jana, mas eu me lembro clara-
César, sobrinho da Crimeia. Bom, e aí começa meia foi uma noite muito difícil. Lembro de mente de corpos torturados, marcados, roxea-
a minha história. uma cena, acho que era a Crimeia queimando dos, machucados. E a cena que mais me ficou
papéis, jogando na descarga. E eu apertando presente foi o meu primeiro contato com a mi-
Eu nasci em 1968 e me chamo Edson Luís a descarga. nha mãe. Parece que eu estava de costas para
em homenagem ao estudante secundarista a janelinha de uma cela ou de um portão que
morto no Rio de Janeiro em uma manifesta- Eu tinha 4 anos de idade e a Jana 5. Nessa tinha uma janelinha. Ela me chamou e eu, feliz
ção estudantil. Meus pais eram militantes do manhã, eu estava fazendo o que sempre fazia, da vida, reconheci a voz e me virei. Quando
PCdoB. E a Crimeia foi guerrilheira do Ara- que era assistir [ao programa de televisão] eu vi o rosto, eu não o reconheci. Ele já estava
guaia. Meus pais participaram plenamente da Vila Sésamo na sala. Eu gostava de ficar de roxeado, desfigurado.
estruturação da guerrilha do Araguaia e do ponta cabeça, tentando fazer o cérebro mudar
Partido Comunista. a imagem que eu estava vendo na televisão. E E me causou um forte estranhamento por-
foi nesse momento que chegaram os policiais. que eu pensei: “Quem é esta pessoa que tem
Em dezembro de 1972, morávamos eu, a mi- a voz da minha mãe? Mais do que a voz, tem o
nha tia Crimeia, meu pai, minha mãe. O Joca
estava na barriga da Crimeia e lembro que já
“Ela me chamou e eu, jeito de se comunicar comigo que eu reconhe-
ço claramente, mas não é a minha mãe”.
conversávamos com ele. E tinha também o ca- feliz da vida, reconheci
Nessa época, não sabíamos o nome dos nos-
chorro que o [Carlos Nicolau] Danielli tinha
dado para a gente. Vivíamos numa casa na Zona
a voz e me virei. sos pais. Era, provavelmente, uma medida de
Sul de São Paulo, no bairro de Cidade Ademar. Quando eu vi o rosto, segurança para eles e para nós. Tenho outras
lembranças, mas que eu acredito que são coi-
No dia 28, meus pais levaram o Danielli para eu não o reconheci. sas que eu vi. Por exemplo, eu perguntei para
um ponto com outro dirigente do partido e no
fim do dia eles foram sequestrados pelos milita-
Ele já estava roxeado, o meu pai: “Por que você está roxo, verde? Por
que você está tão marcado assim?”O fato é que
res do DOI-CODI aqui de São Paulo, que ficava desfigurado” nós fomos levados para a presença dos pais tor-
na Rua Tutóia. Lá, começaram as sessões de turados. E isso foi usado para que eles falassem
tortura e de busca de informações. Uma ques- Primeiro, um casal. Um civil tocou a campai- e os militares obtivessem informações. Havia
tão central da busca deles era saber quem era nha e logo depois, eu não sei como foi exatamen- todo tipo de ameaças: “Vamos matar os seus fi-
a tal pessoa que tinha vindo do Araguaia fazer te, mas os policiais já entraram. O cachorro ficou lhos, vamos sequestrá-los”. E isso evidentemen-
contato com a direção do partido, que era jus- num “morde não morde”. Os policiais entraram te era uma possibilidade grande ali.
tamente a Crimeia, eu suponho. E a Crimeia armados e nós fomos levados para o camburão.
estava em casa conosco. O fato de os meus Eu não sei quantas vezes nós fomos levados
pais não terem voltado desse ponto já denota- Aí eu já não sei se sou eu que lembro, se al- ao DOI-CODI, mas éramos acompanhados por
va que alguma coisa tinha ocorrido, provavel- guém contou, se é a Jana que lembra, mas nos uma policial, que nos levava a uma casa onde
mente a prisão deles. colocaram no camburão cheio de armas. “Es- dormíamos na cozinha, num colchão no chão.
ses filhos de comunistas vão pegar essas ar- E no dia seguinte éramos levados de volta ao
mas, cuidado”, disseram. E nós fomos levados DOI-CODI. O próprio Coronel [Carlos Alberto
Edson, aos 3 anos, e Janaína, aos 4, São Paulo, 1971 para o DOI-CODI. Brilhante] Ustra, que comandava a instituição,
Vou tentar complementar algumas coisas de sim. O estranho é que os carros eram pintados Tentávamos inventar brincadeiras, disfarçar
que me lembro, das quais o Edson não se lem- de cor azul claro. para nós mesmos, fazer o tempo passar porque
bra. É interessante perceber que nossas lem- não entendíamos o que acontecia ali.
branças e memórias são complementares. Fomos levados para o DOI-CODI (localizado
na 36ª. delegacia de polícia). Eu tinha 5 para De noite, nos levavam para uma casa muito
Lembro-me do dia da prisão, o dia 29 [de de- 6 anos, então, imagino que por isso eu tenha grande. Na minha lembrança, ela ficava perto
zembro de 1972], mas não me lembrava de que mais lembranças do que o Edson. Fui levada do DOI-CODI. Dormíamos ao lado da cozinha
tínhamos ajudado a minha tia, Crimeia Alice para uma cela onde meus pais estavam senta- em uma cama de campanha militar, dessas que
Schmidt de Almeida, a queimar os documen- dos numa mesa, onde parecia haver dois pra- dobram. Eu não conseguia dormir direito, pois a
tos guardados na nossa casa. Depois, soube tos de sopa ou de outra comida. Eles não con- luz da cozinha ficava acesa e eu estava bastante
que a casa funcionava como um “aparelho seguiam se mexer e nem falar direito porque preocupada com aquela situação... Não estava
clandestino” voltado às atividades de impren- estavam muito machucados. acostumada a dormir longe dos meus pais.
sa do Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Lembro-me muito bem, contudo, que durante O comandante do DOI-CODI/SP entre 1970
a noite anterior à nossa prisão, ficamos contan- “Perguntei alguma e 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra, deu
do moedas dos nossos cofres. Tempos depois, coisa para o soldado uma versão cínica para o nosso sequestro em
soube que a Crimeia pensou em fugir conosco, seu primeiro livro. Segundo ele: “[...] Para não
mas ela não tinha nenhum dinheiro e nossas e ele me disse “Cala mandar as crianças para o Juizado de Meno-
moedas não eram suficientes para possibili- a boca, comunista!”, res, uma moça, Sargento da Polícia Feminina
tar uma fuga. Lembro-me também da hora da do Estado de São Paulo, ofereceu-se para to-
prisão, de quando um casal de policiais bateu ou algo assim” mar contar dos menores em sua casa, enquan-
à nossa porta. Fui atender e eles foram estra- to aguardávamos a chegada dos familiares do
nhos, meio grosseiros. Ela foi atendê-los no Antes, eu fora levada para a cela onde minha casal, que se encarregariam da guarda deles.
portão, em seguida, voltou e, nesse momento, mãe estava sendo torturada, eu a vi na cadei- Diariamente, a meu pedido, as crianças eram
minha tia pediu para irmos para um quarto nos ra do dragão. Mas não me lembro disso. Só levadas ao DOI para visitarem seus pais. [...]”1.
fundos da casa. A porta não foi fechada total- me recordo de ter ficado muito chocada e de Vale ressaltar que a casa onde me recordo ter
mente e por uma fresta fiquei tentando ouvir o abraçá-los, beijá-los e, mesmo assim, eles não pernoitado era bem grande e não poderia ser a
que estava sendo dito, porque senti que a situ- conseguiam se mexer. Depois de muitos anos, moradia de uma sargento da Polícia Feminina.
ação estava muito ruim. senti-me culpada por não conseguir lembrar-
Durante o dia eles nos levavam de volta para
-me dessas coisas direito. Isso me atormentava
De repente, vieram os policiais e nos tiraram o DOI-CODI. Ficávamos lá, entrando naqueles
um pouco. Depois, fui entendendo que isso era
daquele quarto. Começou uma movimentação corredores escuros. Ouvíamos gritos, depois
uma autoproteção e que não havia como lem-
grande, uma gritaria e fomos levados para uma alguém nos punha para fora e a gente ficava no
brar de fatos tão dolorosos.
C14, onde havia muitas armas no chão. Então, estacionamento. E, de vez em quando, aparecia
perguntei alguma coisa para o soldado e ele Não sei quantos dias ficamos lá, mas, na alguém para falar conosco. Lá pelas tantas, al-
me disse “Cala a boca, comunista!”, ou algo as- minha memória, a gente ficou mais ou me- guém falou que aquilo era um hospital. Pensei:
nos uma semana. E ficávamos o dia inteiro no “Bom, meus pais parecem doentes mesmo, mas
DOI-CODI, entrando e saindo das celas, mas, aqui não tem ninguém vestido de branco. Como
Janaína com 11 anos e Edson com 10,
João Pessoa (PB), 1978 especialmente, ficando no estacionamento... isso aqui é um hospital?”. “Não tem ninguém
1
USTRA, Carlos Alberto B, Rompendo o silêncio, Editerra Editorial, 1987, p.160.
2
Vários autores. Guerrilha do Araguaia (1972 - 1982). São Paulo: Anita Garibaldi, 1982
3
MASINA, Ettore. Le parole sepolte fioriranno: i canti della resistenza brasiliana. Roma: Borla, 1976
4
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais (Prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns). 23 a ed,
Petrópolis, Vozes, 1989, p. 45, 230, 252 e 253.
Família Teles
1, 2 e 3. Amelinha com Janaína aos seis meses,
no Rio de Janeiro, 1967
4. Janaína, aos 3 anos, com uma boneca feita por
sua tia Crimeia, 1970
5. Amelinha e Edson, aos 2 anos, São Paulo, 1970
6. Edson, aos 2 anos, Janaína, aos 3, São Paulo, 1970
7. Amelinha e César em dia de visita no Presídio do
Barro Branco, São Paulo, 1976
4 5
6 7
César Augusto Teles nasceu em 7 de julho No ano de 1975, César, já transferido para o Presídio ditadura. É membro da Comissão de Familiares de
de 1944, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Filho de do Barro Branco (SP), junto de outros 34 presos polí- Mortos e Desaparecidos Políticos e reconhecida mi-
Eustásio Telles e Geni Moreira Telles. Era ferroviário ticos escreveu o “Bagulhão”, uma carta de denúncia litante dos Direitos Humanos. É também uma das
quando ingressou no Partido Comunista em 1962. das torturas sofridas pelos militantes. Além da im- precursoras do Movimento Feminista no Brasil e fun-
portante riqueza de detalhes das mazelas sofridas, dadora da União de Mulheres de São Paulo.
César e sua esposa Amelinha eram responsáveis pela
a carta traz uma lista de 233 torturadores, o que foi Formada em Direito, nunca quis exercer a profissão
imprensa clandestina do PCdoB quando foram pre-
uma grande contribuição na luta pelo fim da ditadu- e utiliza seus conhecimentos para fortalecer os mo-
sos em São Paulo juntos do dirigente Carlos Nicolau
ra. Ficou preso até 1977. vimentos populares. É idealizadora do projeto de
Danielli, no dia 28 de dezembro de 1972. Levados para
a OBAN, César, que já era diabético e tuberculoso, de- Promotoras Legais Populares que, há 20 anos, forma
mulheres, especialmente as mais pobres, sobre seus
vido às bárbaras torturas que sofreu durante dias, Maria Amélia de Almeida Teles conhe- direitos e como conquistá-los com organização e luta.
entrou em estado de coma e levou muitos dias para cida como Amelinha, é militante comunista desde os
se recuperar o que, apesar de seu peculiar bom hu- anos de 1960. Nasceu em 6 de outubro de 1944, na ci- A família Teles ingressou com ação declaratória con-
mor, lhe deixou sequelas que carrega até hoje. dade de Contagem, Minas Gerais. Filha de Joffre de Al- tra Carlos Alberto Brilhante Ustra, com a finalidade
Seus filhos Janaína e Edson e sua cunhada Crimeia, meida e Lúcia Schmidt de Almeida, militou ao lado dos de que a justiça o declare como torturador. O proces-
grávida de 8 meses, foram presos em seguida. pais no PCB e depois no PCdoB até meados de 1987. so foi favorável nas duas primeiras instâncias, mas
Ustra recorreu e o processo segue para julgamento
Foram torturados e presenciaram o assassinato de Morou no Rio de Janeiro no período de 1966 até 1969
no Superior Tribunal de Justiça.
Danielli pela equipe do então major Carlos Alberto e em São Paulo a partir de então. Desde que saiu da
Brilhante Ustra. cadeia em 1973, luta por justiça para as vítimas da
Toda a minha família foi vítima de perseguições No dia 28 de dezembro de 1972, por volta das corredores da OBAN durante alguns dias, vendo
e dolorosas torturas por parte da repressão política 18h30, as forças de repressão, comandadas pelo os presos, inclusive os pais, entrarem e saírem das
instaurada no Brasil no período do golpe militar. então Major Carlos Alberto Brilhante Ustra, acaba- salas de torturas e ouvindo seus gritos de dor.
Fomos duramente atingidos, eu e meu companhei- ram prendendo a mim e a meu companheiro César
Era muito doloroso para mim e para o César
ro, César Augusto Teles, e nossos filhos Janaína e quando estávamos juntos a Carlos Nicolau Danielli,
saber que nossas crianças eram obrigadas não só
Edson Luis de Almeida Teles. dirigente comunista, que acabou por ser assassina-
a assistir os horrores das torturas cometidos nos
do sob torturas, três dias após essa prisão.
À época, meus filhos Janaína e Edson eram crian- porões da ditadura contra os pais e contra todos
ças com 5 e 4 anos de idade, respectivamente, e No dia 29 de dezembro de 1972, um dia após os presos políticos, mas também eram obrigadas a
mesmo assim foram vítimas de tortura psicológica. sermos presos, os policiais/agentes do Exército ficar confinadas/presas numa delegacia de polícia
sequestraram também nossos dois filhos e minha atípica, que serviu de aparelho político repressor.
O responsável direto pelas perseguições e tortu- irmã Crimeia, que cuidava deles naquele momen-
ras contra a minha família foi Carlos Alberto Bri- O fato de meus filhos, ainda muito pequenos, te-
to. De casa, foram levados aos berros, gritos e ame-
lhante Ustra, coronel reformado do Exército bra- rem sido presos e terem sido obrigados a assistir
aças, sob a mira de metralhadoras até serem deixa-
sileiro, comandante do DOI-CODI/SP no período as sessões de tortura é assumido pelo próprio Us-
dos na OBAN (DOI-CODI/SP).
de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Responsável tra ao descrevê-lo no livro denominado Rompendo
não apenas por ter chefiado a famigerada opera- Meus filhos Janaína e Edson foram usados pelos o Silêncio, em resposta às acusações públicas rea-
ção OBAN, e por ter comandado o DOI-CODI do bárbaros e boçais opressores, como instrumentos lizadas pela atriz e então deputada Bete Mendes,
II exército, mas também, e, sobretudo, por ter prati- de tortura psicológica, pois a todo tempo os “mili- que o reconheceu em Brasília.
cado pessoalmente os atos de tortura. tares” diziam a mim e ao César que nossas crian-
ças também seriam torturadas e mortas. À página 166 do referido livro, escrevendo sobre
O meu sequestro e o dos meus foi justamente o período da ditadura, Carlos Alberto Brilhante
no contexto histórico, que se insurgiu contra o sis- Edson e Janaína foram testemunhas dos gritos Ustra, asseverou:
tema então vigente a denominada “Guerrilha do de dor dos presos políticos sendo torturados e,
“A propósito, convém citar o caso de um casal
Araguaia” (1972 a 1974) localizada no sudeste do principalmente, do meu rosto transfigurado, de tal
de uma Organização que foi preso porque ambos
Pará e o norte de Goiás, hoje Tocantins. modo que só fui reconhecida pelo Edson quando
eram militantes. Neutralizado o ‘aparelho’ onde eles
ele me ouviu chamá-lo, identificando-me pela voz,
Nesse período, eu, meu companheiro e minha residiam, que aliás era um ‘aparelho de imprensa’,
uma vez que eu estava deformada em função das
irmã Crimeia, éramos do Partido Comunista do seus filhos, bem pequenos, não tinham para onde
equimoses provocadas pelas torturas. Meu filho, à
Brasil, que passou a ser o principal alvo da repres- ir. Para não mandar as crianças para o Juizado de
época, tinha apenas 4 anos de idade e se lembra
são militar, pois era o centro logístico/financeiro Menores, uma moça, Sargento da Polícia Femini-
da: “Horrível sensação de estar diante de alguém
da “Guerrilha do Araguaia”, que tinha suas bases na do Estado de São Paulo, ofereceu-se para tomar
que conhecemos a voz, mas não há identificação
no PC do B de São Paulo e Rio de Janeiro, e a partir conta dos menores em sua casa, enquanto aguar-
com o corpo, que a esta altura estava roxo, com he-
do momento em que o Exército brasileiro tomou dávamos a chegada dos familiares do casal, que se
matomas (...)”.
conhecimento desse plano de guerrilha, intensi- encarregariam da guarda deles. Diariamente, a meu
Já minha filha, Janaína, que à época tinha 5 anos pedido, as crianças eram levadas ao DOI para visi-
ficaram-se as perseguições e brutais técnicas de
de idade relato sobre o mesmo episódio: “Lembro- tarem seus pais. Hoje, revoltado, vejo que este casal,
torturas, utilizadas para a obtenção de confissões
-me claramente de me indicarem, entre corredores no livro Brasil: Nunca Mais nos acusar de levar os
dos presos políticos.
escuros, o lugar onde encontraria meus pais. Eles filhos até eles para que ‘vissem seus pais marcados
Eu e César trabalhávamos, principalmente, na estavam numa sala escura sentados em uma mesa pelas sevícias sofridas e pressioná-los, dizendo que
imprensa do Partido, fazendo, portanto, oposição onde havia dois pratos de sopa, mal se mexeram as crianças seriam torturadas, se não confessassem
política, de maneira clandestina, ao regime militar quando viram a mim e a meu irmão. Estavam o que queríamos saber’”.
instalado no Brasil. esverdeados ou amarelados e sem forças. Achei
muito estranho, mas fiquei feliz em pular em seus Ora, naquele período e hoje mais ainda é sobeja-
Minha irmã, Crimeia Alice Schmidt de Almei- mente sabido que na sede do DOI-CODI, era um
colos, mesmo que eles mal conseguissem sorrir.
da, participou diretamente dessa guerrilha e era local utilizado pela polícia política da época para a
Não me lembro sobre o que falamos, mas esta lem-
companheira de André Grabois, filho do dirigente prática de torturas, das quais não apenas eu e meu
brança é muito marcante, nunca a esqueci. A falta
comunista, Maurício Grabois. (André Grabois foi companheiro fomos vítimas, o que por si só é uma
de reação dos meus pais foi impressionante, eles
assassinado em 14 out. 1974, pelo Coronel do Exér- crueldade inominável, que se amplifica ao absurdo
sempre eram muito carinhosos. Naquele momen-
cito Lício Augusto Ribeiro Maciel, conforme suas
to eles estavam inertes”. quando se trata também de crianças, como foi o
próprias declarações feitas a jornalistas). Crimeia
caso de meus filhos Janaína e Edson.
estava grávida de 7 meses quando também foi se- O absurdo com meus filhos não se restrigiram a
questrada pelos agentes do DOI-CODI/SP. isso. Janaína e Edson ficaram perambulando pelos
O meu nome é João. Minha mãe es- vontade de ouvir. Não era uma história aconteceu alguma coisa com você, por-
tava presa quando eu nasci. Ela estava que, para mim, tinha sido boa. que eles ameaçavam me sequestrar.
sequestrada e eu nasci em Brasília, no Então tem que avisar, tem que ser mais
Aí depois eu fui conhecer o Igor [Igor
Hospital da Guarnição do Exército. Mas responsável, não pode sair da escola e ir
Grabois, outro primo de João Carlos],
isso eu não lembro. Comecei a ter lem- brincar, e tal. Tem que voltar para casa”.
mais tarde, já quase nos anos 1980, eu já
branças quando a gente já estava mo-
estava na escola. Nessa época conheci Tinha essa tensão, até depois de mais
rando no Rio de Janeiro, com o Edson
mais gente da família. Antes, a família velho ela ainda carregava essa preocu-
e a Jana [Edson Teles e Janaína de Al-
era reduzida à Jana, o Edson, o Cesar, a pação. Eu ia para as baladas e ela ficava
meida Teles, primos de João Carlos], eu
Amelinha e a minha mãe. Eram poucas em casa esperando: “Aconteceu algu-
já devia ter meus 4 anos, em 1977, 1978.
pessoas e aí, de repente, mais que dobra ma coisa?”, ela perguntava. E isso já era
Quando eu era pequeno, minha mãe o número de familiares. Os Grabois têm nos anos 1990, mas mesmo assim ficou
contou que meu pai tinha morrido na um monte de primos. essa preocupação.
Guerrilha do Araguaia. Ela dizia: “Olha,
se perguntarem, você vai dar outro nome. “Minha mãe Aí, quando eu estava com 17 anos,
Não vai falar o nome verdadeiro do seu contava a história mais ou menos, a gente abriu um
processo contra a minha avó... olha que
pai, nem contar essa história de que ele
era guerrilheiro. Você fala que ele teve um do Araguaia na hora engraçado. Na verdade, era contra o
acidente e morreu. Que você era muito de dormir e eu não meu pai e contra a minha avó para reco-
bebê e teve um acidente de carro, morreu nhecimento de paternidade.
e pronto”. gostava porque
Tinha o curador de ausente que es-
Mas eu já tinha consciência. Minha
achava que ela ia tava defendendo o meu pai. Ele ficava
mãe contava a história do Araguaia na morrer no final” questionando se minha mãe não tinha
hora de dormir e eu não gostava porque tido outros casos, se eu era realmente
achava que ela ia morrer no final da his- Eu lembro que minha mãe tinha a filho do meu pai, sei lá o que. Uma coisa
tória. Então, eu pedia: “Não conta, não”. preocupação de sermos sequestrados. assim meio surreal. A minha avó era ré,
Os meus primos, Janaína e Edson, já A gente não podia chegar atrasado. Por tinha este cara que estava lá para defen-
eram mais velhos e gostavam dessa his- exemplo, se eu saísse da escola e fosse der os interesses do meu pai, mas ques-
tória. E eu, não. Mesmo sendo histórias para a casa de um colega e não tivesse tionando a paternidade. Aí, uma hora o
de bichinhos, da cachorra, eu não tinha sido planejado, se não tivesse avisado juiz perguntou se eu tinha uma pergun-
a minha mãe, ela ficava desesperada. E ta para fazer. Eu disse: “Tenho, sim. Por
À esquerda, Joca em Bertioga, litoral paulista, 1978 explicava “Olha, eu fico pensando que que essa pessoa que está representando
1 2
André Grabois nasceu em 3 de julho de 1946, no No segundo semestre de 1967, retornou clandestinamen- e trabalhou como estivador em Santos e como ferroviário.
Rio de Janeiro (RJ), filho de Maurício Grabois, também de- te ao território brasileiro pela Bolívia. Foi um dos primei- Foi preso político em 1964. Sua mãe era dona de casa. Cri-
saparecido no Araguaia, e Alzira da Costa Reys. Desapare- ros a chegar à região onde se deu a Guerrilha do Araguaia, meia passou a adolescência em Minas Gerais, onde iniciou
cido em 14 de outubro de 1973 na localidade denominada indo morar na localidade de Faveira no início de 1968. Ali sua militância no movimento secundarista.
“Fazenda Caçador”. Militante do Partido Comunista do trabalhava na roça e possuía um pequeno comércio próxi-
Quando do golpe de 1964, mesmo sendo menor de idade,
Brasil (PCdoB). mo ao povoado de Ponta de Pedra.
seu nome foi incluído no Inquérito Policial Militar, junto
Filho do dirigente comunista líder da bancada do Partido Era conhecido como Zé Carlos. Em 1969, casou-se com a com o de seu pai e de sua irmã, Maria Amélia de Almeida
Comunista na Constituinte em 1946, desde muito cedo, guerrilheira Crimeia Alice Schmidt de Almeida, a quem co- Teles. Por conta do IPM, a família seguiu para o Rio de Ja-
graças ao convívio com destacados militantes do movi- nheceu no Pará. Tiveram um filho, João Carlos, que nasceu neiro. Lá, Crimeia foi estudar Enfermagem na Escola Ana
mento comunista no Brasil, André interessou-se pelas na prisão, em fevereiro de 1973, que André não chegou a Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi
questões políticas. conhecer. presidente do diretório acadêmico da escola. Participou
Foi o comandante do Destacamento A – Helenira Resen- do Congresso de Ibiúna, em outubro de 1968, quando
Em 1964, em razão das perseguições movidas contra seus
de –, das forças guerrilheiras do Araguaia até sua morte. ocorreu sua prisão.
pais, foi obrigado a abandonar os estudos e, com apenas
17 anos, foi viver na clandestinidade. Seu pai e seu cunhado, Gilberto Olímpio Maria, integra-
Após o AI-5, em dezembro de 1968, entrou para a clandes-
vam também a guerrilha e morreram durante o ataque do
Em meados de 1966, André Grabois, Divino Ferreira de tinidade. Em janeiro de 1969, como militante do Partido
Exército, em 25 de dezembro de 1973.
Souza, João Carlos Haas Sobrinho e Líbero Giancarlo Cas- Comunista do Brasil (PCdoB) seguiu para a região do Ara-
tiglia viajaram para a China e, na escala no aeroporto de guaia, onde se desenvolveria a guerrilha contra a ditadu-
Karachi, no Paquistão, tiveram os seus passaportes reti- Crimeia Alice Schmidt de Almeida ra militar. Morou na região até agosto de 1972, quando
dos por várias horas, sem nenhum esclarecimento. André nasceu em 17 de abril de 1946, em Santos (SP). Filha de foi enviada pelo Partido para São Paulo, na tentativa de
realizou cursos de formação política e militar na China e Joffre de Almeida e Lúcia Schmidt de Almeida. Nascida romper o cerco que as Forças Armadas haviam imposto à
na Albânia. numa família de esquerda, seu pai era militante operário guerrilha.
Fiquei grávida enquanto ainda estava na quido amniótico escorria pelas minhas pernas Como castigo, ele era tirado do quarto, pas-
mata, na guerrilha do Araguaia, perseguida elas me atacavam em bandos. Já que os milita- sava dois ou três dias sem ser trazido para as
pelas Forças Armadas. Nesse período, estava res não tomavam nenhuma medida, depois do mamadas e voltava com diarreia e vômitos. Isto
sob constante estresse das ameaças: persegui- almoço comecei a gritar desesperadamente. Os o fez perder muito peso e com um mês pesava
ção de militares armados, sobrevoos de aviões outros presos fizeram coro e no fim da tarde me 2,700 quilos. E sempre que me era devolvido
e helicópteros além de fome e várias crises de levaram para o hospital da Guarnição. nesse estado precário, diziam que era eu a
malária. Assim foram os seis primeiros meses responsável porque não queria cooperar. Fi-
da gravidez do meu filho João Carlos. À noite o obstetra, Doutor Trindade, disse
nalmente, no dia 2 de abril o entregaram aos
que eu estava em trabalho de parto, mas como
Em 29 de dezembro de 1972, com seis meses meus familiares que foram a Brasília buscá-lo.
ele não estava de plantão, então só faria a cesa-
e meio de gravidez, fui sequestrada pelo DOI- Ele foi abruptamente desmamado. Pelas cons-
riana no dia seguinte. Reclamei que meu filho
-CODI/SP. O fato de estar em estado já bastan- tantes ameaças dos militares de que iriam
poderia morrer e ele respondeu: “É melhor! Um
te adiantado de gravidez não foi empecilho para adotá-lo, exigi que fosse previamente registra-
comunista a menos!” Prescreveu soro venoso e
as torturas físicas e psicológicas. Levei choques do como meu filho, o que consegui.
foi-se embora. Eu não queria tomar o soro por-
nos pés e mãos, muitos espancamentos, amea- que imaginei que era para retardar o parto, mas Ao retirarem o bebê, aplicaram-me uma me-
ças de fuzilamento e outras violências. E o pior, me amarraram ao leito e o aplicaram. A porta dicação para secar o leite e em seguida voltei
a ameaça de sequestrarem o bebê, se ele nas- do quarto ficava aberta, vigiada por um soldado para a cela onde recomeçaram os interrogató-
cesse branco, saudável e do sexo masculino. armado com metralhadora. Eu cortei o equipo rios que eram quase ininterruptos. Permaneci
O primeiro a me torturar foi o major Carlos do soro com os dentes e não recebi a medica- presa por mais uns vinte dias até ser liberada,
Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI- ção. Por volta das 2h30 da madrugada do dia e fui levada para a casa da tia que havia busca-
-CODI/SP à época. Mas não foi o único. Até o 13 meu filho nasceu de parto normal e pesava do meu filho.
carcereiro me torturava quando me tirava da 3,150 quilos. Não me foi mostrado, mas soube
Enquanto estava presa, meus familiares em
cela para levar às salas de interrogatório. Du- que era um menino e saudável.
Minas Gerais levaram João Carlos ao médico
rante essa época, o feto apresentava soluços, Nos primeiros dias o bebê ficou isolado no que constatou desnutrição e prescreveu uma
os quais eu tentava amainar alisando a barriga berçário e só me era entregue para as mamadas. dieta especial. Quinze dias após, ao retornar à
e cantando baixinho para ele. Até hoje, em mo- Com o passar dos dias notei que ele foi ficando consulta, João havia recuperado o peso que o
mentos tensos meu filho apresenta soluços. muito molinho, sonolento, sem forças para cho- médico previra que seria em cerca de três me-
Depois de um mês no DOI-CODI/SP fui rar e para mamar. Perguntei ao pediatra o que ses. Obviamente meus familiares não disse-
transferida para o Pelotão de Investigações estava acontecendo, respondeu-me que estava ram que ele era recém-saído da prisão.
Criminais da Polícia do Exército. Fui interroga- tudo bem. Então, perguntei à auxiliar de enfer- Em Belo Horizonte, alojaram-me em casa
da algumas vezes, sempre com as ameaças de magem, que o trazia para as mamadas, e ela me separada do meu filho por motivos que desco-
morte e de sequestrarem o meu filho. Uma das disse que a criança chorava muito e, por isso, o nheço. Nessa época, eu não tinha documentos
vezes fui levada para interrogatório no Ministé- pediatra lhe prescreveu “Luminaleta”, um tran- e não sabia do paradeiro de minha irmã, meu
rio do Exército na Esplanada dos Ministérios. quilizante de uso infantil. Falei para o pediatra cunhado e meus sobrinhos. Providenciei minha
que ele não era o médico do meu filho, não tí- documentação, localizei meus sobrinhos e de-
No dia 11 de fevereiro, à noite, entrei em nhamos médicos, estávamos presos, não admi-
trabalho de parto. Solicitei um médico que só cidi me mudar com eles e meu filho para a casa
tia que ministrassem tranquilizantes ao meu dos meus pais, no Rio de Janeiro. Meu filho es-
chegou pela madrugada e me encaminhou ao filho e queria que ele ficasse comigo no quarto.
Hospital de Base. Lá, o médico disse que não tava com cinco meses quando nos mudamos.
Consegui. Com o passar dos dias ele ficou mais As crianças tinham muitos problemas, João
estava na hora do parto, recomendou que me ativo, chorava mais forte e mamava. Os milita-
colocassem na enfermaria do presídio e apli- quase não dormia e comia compulsivamente.
res queriam me interrogar no hospital; eu me
cou um antibiótico. Os militares me levaram recusava a isso e avisei que só responderia aos No final do ano, minha irmã e meu cunhado
de volta, não para a enfermaria, mas para a interrogatórios quando o meu filho estivesse foram libertados por relaxamento da prisão
cela, onde havia muitas baratas, e como o lí- em segurança. preventiva e nos mudamos todos para São
Meu nome é Carmen Sumi Nakasu de Nesses três meses, passei cinco dias com “Carreguei para a minha
Souza. Eu nasci em Valinhos (SP), em cir- os agentes do DOPS. Depois, com uma ami-
cunstâncias um pouco obscuras. Fugindo ga da família, a dona Maria Cecília Figueira vida esse sofrimento do
daqui para ali, minha mãe conseguiu acer- de Melo e em seguida fiquei sob o cuidado tempo em que fiquei afastada
tar a realização do parto com um colega da de familiares. Recentemente eu reencon-
Faculdade de Medicina. trei dona Maria Cecília e sua família. Eles
dos meus pais. Eu era uma
me contaram como foi a minha chegada e criança muito tímida, muito
Quando eu tinha um ano e uma semana,
em setembro de 1973, fui presa com a minha
a minha estadia. Disseram que cheguei
como uma criança extremamente amedron-
insegura, que não conseguia
mãe e meu pai na Estação da Luz em São Pau- tada. Depois, fui levada para a minha avó, ficar longe da mãe”
lo. Era meia-noite e nós íamos tomar o trem com quem fiquei até reencontrar meus pais.
para o Rio de Janeiro, porque a intenção era Quando os reencontrei, não os reconheci.
sair do Brasil. Eles viviam uma situação mui- Já havia passado três meses, que para uma
to complicada por conta da militância políti- criança de um ano é muito tempo.
ca. Naquele momento, nós fomos presos.
Carreguei para a minha vida esse sofri-
Meus pais ficaram no DOI-CODI por no- mento do tempo em que fiquei afastada dos
venta dias sendo torturados. E por um perío- meus pais. Eu era uma criança muito tímida,
do eu fui usada para obter mais informações. muito insegura, que não conseguia ficar lon-
Fui mais um instrumento de tortura nas ge da mãe. Tive uma infância psicologica-
mãos dos militares. Eles me sequestraram e mente bastante conturbada, eu tinha muitas
fiquei por quatro, cinco dias nas mãos de al- convulsões e terrores noturnos.
guém, ninguém sabe de quem. Provavelmen-
te foi de uma investigadora que me pegou no Também fui uma adolescente igualmen-
momento em que minha mãe se separou de te tímida, muito tímida, nunca tive muitos
mim. Só fui encontrá-los depois de três me- amigos. Não conseguia me relacionar muito
ses. Antes desse período, eu era uma criança bem e frequentemente era abatida por uma
muito alegre e extrovertida que gostava mui- sensação horrível, uma angústia tremenda.
to de tomar banho. E quando eu voltei para a Do nada, essa sensação me tomava. Era uma
casa dos meus familiares, retornei com muito coisa estranha, que vinha com falta de ar,
medo e, estranhamente, passei a ter pânico tudo junto.
de banho e do barulho da descarga.
Desde os 10 anos de idade minha mãe me
colocou para fazer terapia, ou melhor, tera-
À esquerda, Carmen com um ano e meio, em 1974, pias. Fui de terapia em terapia para conse-
em Atibaia (SP), na casa de seu avô paterno. guir amenizar um pouco essa dor e na ten-
À direita, logo após seu sequestro, Carmen é
entregue à sua avó materna, Elza, com quem ficou
tativa de me transformar numa pessoa mais
durante o período que seus pais estiveram presos. extrovertida, mais alegre.
De alguma maneira eu tinha que vivenciar No meu dia a dia procuro ter atitudes que
uma memória que estava lá no fundo escondi- sejam solidárias, de respeito ao próximo. De
da, mas que se manifestava de uma forma es- saber que todos, ainda que de distintas clas-
tranhíssima, que me deixava meio paralisada. ses sociais, ascendências, formações, devem
ser tratados com a mesma dignidade.
A ditadura militar promoveu erros terrí-
veis, que deixaram marcas indeléveis num Então, eu canto. Sou cantora lírica. E eu
número incalculável de pessoas. No meu acho que através da música consigo expres-
caso, acho que o grande erro do regime mi- sar muitos sentimentos que ficaram pre-
litar foi ter ficado comigo nesse período. Eles sos dentro de mim. Tanto que gosto muito
não poderiam ter feito isso. Não tinha senti- de cantar músicas muito tristes. Quanto
do nenhum. Eles deveriam ter me devolvido mais triste a música é, mais eu gosto. Atra-
imediatamente para minha família, para as vés da música, consigo transformar senti-
pessoas que conheciam minha família. Foi mentos muito profundos em arte, e com isso,
injusto para uma criança ter vivido uma situ- permitir também que as pessoas que me
ação dessas. ouvem vivenciem muitas dessas emoções,
transformando-as.
Eu acho que realmente houve muita in-
justiça, uma violação tremenda dos direitos
humanos. Os militares foram atrozes no que
fizeram. E eu penso que consegui, graças a CARMEN SUMI NAKASU DE SOUZA nasceu em 21 de
muitas terapias e ao auxílio constante da mi- agosto de 1972. Casada, é mãe de três filhos. É bacharel
nha mãe, superar muito dessa dor interior. em Linguística e Literatura Portuguesa pela Universi-
dade de São Paulo (USP). Atua como empresária, pro-
fessora de inglês e cantora lírica.
Porém, minha história foi muito mais leve
do que a de muitas pessoas que perderam
os pais e que, infelizmente, não puderam Carmen cantando.
nem enterrá-los, ou que sofreram agressões. Foto de Inaê Coutinho
A gravidez e o nascimento de Carmen foram Fiquei muito feliz com a notícia. Senti que nada além de implicar riscos reais, dado que vivíamos
muito difíceis. O cerco da repressão era impla- do que pudesse acontecer comigo daqui para ainda em uma ditadura.
cável e obrigava a mim e meu esposo Licurgo frente seria tão terrível quanto esse pesadelo que O segredo começou então a ser revelado, no
Nakasu mudarmos continuamente de residência. acabara de viver. entanto, parece não ter transformado o estado
Meu estado de saúde era precário, tive um qua-
Após cinquenta dias, quebrou-se a incomuni- emocional de minha filha, uma vez que conti-
dro de insuficiência pan hipofisária que exigia
cabilidade e Carmen veio me visitar juntamente nuava a ser uma criança com muitos medos e
repouso, medicamento e indicação de parto
com minha mãe. Ela não reconheceu a mim nem angústias, apesar de todo afeto e segurança do
cesariana.
ao seu pai. Ficamos muito tristes. ambiente familiar.
O local do nascimento de Carmen não pode-
Quando fui libertada, Carmen estava com mi- Carmen era uma criança criativa, mas de pou-
ria ser em São Paulo, onde eu residia. Os agentes
nha família e apenas depois de algum tempo tive cos amigos e insegura. Apenas aos 16 anos teve
do DOI-CODI prenderam minhas irmãs para dar
condições de reassumir os cuidados maternos, coragem de revelar o local onde tinha nascido,
conta do meu paradeiro. Como elas nada revela-
pois eu temia comprometer o médi-
ram, eles disseram que sabiam que
co que havia realizado o parto.
eu estava grávida e quando chegasse
a um hospital eu seria presa. Conse- A retomada da vida após a prisão
gui que um colega que trabalhava em e a extinção da APML (Ação Popular
uma cidade do interior de São Paulo, Marxista Leninista) foi muito peno-
Valinhos (SP), fizesse o parto. sa. A vida só retornou em sua pleni-
tude com o fim do regime militar, em
O primeiro ano de vida de Carmen
1985, ano em que Carmen começou a
foi tranquilo. Era uma criança saudá-
estudar canto lírico.
vel físico e emocionalmente. Em se-
tembro de 1973, com um ano de idade A arte do canto ajudou-a muito na
ela foi presa e levada ao DOI-CODI superação dos seus traumas de in-
juntamente comigo e meu esposo. fância. Porém, em diversos momen-
No DOI-CODI, retiraram Carmen do tos da vida, ela precisou recorrer a
meu colo e a levaram para longe de tratamentos psicoterápicos.
mim. Iniciou-se um verdadeiro infer-
no. A violência física, a pancadaria, os Quando engravidei de Maria, em
pontapés, as palmatórias, os choques 1975, foi uma grande alegria, pois vi-
eram terríveis, mas nada se compara- víamos um luto pela perda dos com-
A mãe, Elzira (ao centro) e suas filhas, Carmen (à esquerda) e Maria (à direita)
va ao desespero diante da ausência panheiros queridos. Ela foi a vida
de minha filha. Eu não sabia onde ela nova que surgia. Ela nasceu, em mar-
se encontrava, o que estavam fazendo com ela e ço de 1976. Logo depois, desenvolvi
se ainda estava viva. devido ao precário estado de saúde no qual me um quadro de intensa melancolia. Chorava muito
encontrava. Ao vê-la senti que estava muito dife- e logo recomecei a trabalhar profissionalmente,
Os torturadores diziam que não mais desapa- rente: nervosa, inquieta e insegura. pois a sobrevivência exigia.
reciam com crianças. Pediam que me acalmasse!
Alucinada, pensava que poderiam torturar minha Nos anos subsequentes, Carmen teve inúme- A cidade de São Paulo, da qual havia me au-
filha para que eu revelasse nomes de companhei- ras convulsões resistentes a medicamentos; qua- sentado desde a saída da prisão, me fazia lem-
ros. “Não, não falo nada”, eu pensava “... Mas eu dro que perdurou até os 7 anos de idade. Aos 5 brar muito dos companheiros, dos encontros, dos
escolhi essa luta, e ela tem apenas um ano de anos, ela foi encaminhada pelo neurologista para pontos. Além de termos o telefone censurado, a
vida... Eu a amo mais do que tudo... ”. uma psicóloga que, após algumas sessões, me imprensa censurada, hospedamos um compa-
chamou para revelar que minha filha tinha um nheiro que saiu da prisão. O ambiente era muito
Foram os mais terríveis dias de minha vida. sonho que se repetia: contava que estava em meu tenso. A Carminha continuava a ter crises con-
Eu quase enlouqueci. Não sei quanto tempo colo, chegavam policias, tiravam-na de mim e a vulsivas. Era uma vida muito difícil. Maria era
se passou até que o comandante Brilhante Us- levavam embora. A psicóloga pediu que eu con- uma criança que chorava muito. Se não fosse o
tra veio até a cela e contou que havia entregue tasse todo o ocorrido para Carmen. Eu e meu es- carinho do pai... Felizmente hoje é psicóloga e
Carmen para minha irmã mais nova, Rosane, poso Licurgo achávamos que falar para Carmen professora universitária. E se entende também
que também estava presa e seria liberada. tudo que ocorrera poderia ser muito traumático; como vítima da ditadura.
Meu nome é Tessa Moura Lacerda. Eu sou aos dirigentes da Ação Popular e, portanto, ao nem ela sabia. Na verdade, isso foi uma fanta-
filha da Mariluce Moura e do Gildo Macedo meu pai, e como ele foi morto. Eu disse à mi- sia que eu fiz quando tinha uns 9, 10 anos.
Lacerda. Ambos foram presos em outubro de nha mãe: “Bom, pelo menos a gente tem certe-
1973. E três dias depois meu pai já estava as- za de que ele está morto”. E ela ficou chocada: Creio que isso se deve também à ausência
sassinado. Minha mãe permaneceu presa grá- “Como você não tinha certeza? Eu recebi os do corpo, o fato de não haver um túmulo, qual-
vida de mim por 42 dias. objetos dele”. quer coisa para fazer o rito, aceitar minima-
mente que aquela pessoa está de fato morta.
Durante a minha infância, eu me lembro Uma coisa que falei no filme 15 Filhos e que é
de ter perguntado, aos 6 anos: “Mãe, conta de absolutamente pirante é, por um lado, eu ten-
novo a história de Gildo?” Isso significa que eu tar imaginar como meu pai era e, por outro,
já sabia da história. Depois, ela me contou que aceitar que isso que eu imaginei morreu.
falava sobre isso em casa desde meus 2 anos
de idade para que eu ficasse conhecendo a his- Tanto a vida dele, que vou reconstruindo por
tória do meu pai biológico, já que ela tinha se meio de conversas, poucas fotos, mas sobretu-
casado de novo. E depois de alguns anos pas- do a morte de maneira brutal, cruel, e o fato
sei a chamar esse segundo marido dela de pai. de não ter um corpo para que eu faça o rito
mesmo, aceite, faça o luto por essa morte, são
Esse momento foi de muita emoção, nós cho- muito inefáveis.
ramos muito, e eu tentei, com os instrumentos
que uma criança de 6 ou 7 anos tem, recons-
truir a minha história. Eu desenhei como de
fato é a minha história, como gostaria que ti- Na época em que o Fernando Henrique acei-
vesse sido e como poderia ter sido – desenhei tou fazer a Lei 9.140 em 1995, por meio da qual
minha mãe grávida no enterro do meu pai e o Estado reconhecia a responsabilidade pelas
isso nunca aconteceu. mortes de mortos e desaparecidos políticos,
nós participamos de várias reuniões da Co-
É muito duro falar desse assunto. Foram missão de Familiares de São Paulo, e também
poucos os momentos da minha vida em que Eu, aos 9, 10 anos, tinha esperança de que de Minas, porque meu pai é mineiro. Tivemos
falei disso. O filme 15 Filhos foi um desses mo- Gildo tivesse conseguido fugir. Acho que aos acesso a cópias de cartas e cadernos. Eu tinha
mentos, e hoje também. Quando eu tinha 15 15 anos eu ainda não tinha desfeito essa fanta- 20 anos e li avidamente tudo que chegava.
para 16 anos, tive uma conversa com a minha sia, queria acreditar que ele tinha conseguido
mãe. Tinha saído uma notícia no Jornal do fugir. Como a ditadura foi até 1985 (ano em A Comissão de Familiares de Pernambuco
Brasil que explicava como a ditadura chegou que completei 11 anos), eu achava que essa era também mandou um dossiê com a descrição
a justificativa para que ele não tivesse apareci- da morte. Minha mãe disse: “Você não vai ler
do. Minha mãe jamais me sonegou essa infor- isso”, porque queria me preservar. Mas eu li
À esquerda, Tessa aos dois anos, com Mariluce, grávida
da segunda filha, Elisa, Rio de Janeiro, 1976 mação. Jamais. Mas eu não queria acreditar. avidamente, para tentar reconstruir Gildo. E
Acima, Gildo, aos 23 anos, 1972 Eu queria acreditar que ele estava vivo e que a minha história. E mais recentemente acha-
tra de sangue para o banco de DNA do go- fim... E eu fui fazer exames e tal, eletroencefalo- da e mãe de três filhos.
verno federal. O que sabemos é que, por ser grama. Fiz de novo, já adulta, já casada, porque
uma vala a céu aberto, a identificação da os- eu estava vendo uns flashes. Só contei para a
sada é inviável. Sabemos disso. (Pelo menos minha mãe depois, para ela não ficar preocupa-
é a informação que tínhamos na década de da. Não tinha nada.
1990). Mas esse saber racional não tira a dor Para mim, a maior dor é não poder enterrar
daquela criança que queria falar: “Eu sei que o meu pai. Mais do que qualquer dor física que
não dá, mas eu quero enterrar meu pai”. Eu eu tenha sofrido sem saber e que, de alguma
quero levar os meus filhos [ao cemitério] e di- maneira, esteja lá no meu subconsciente, se é
zer: “Olha, o seu avô está aqui”. É claro que eu que eu tinha o subconsciente naquela época,
enchi a parede de minha casa com fotos de to- no embrião.
dos os nossos familiares, dos pais, dos avós e
bisavós dos meus filhos para que eles vejam e
entendam e reconstruam, e saibam que, além
dessas pessoas com quem eles convivem, têm Eu nunca quis ir atrás dos torturadores. No
um avô que eles nunca vão conhecer. Então, começo não sabia muito bem o porquê, mas
saber racionalmente que isso é impossível, depois eu fiquei pensando, e entendi que é
não adianta. É muito duro. porque eu não queria saber o rosto dessas
Eu fico pensando também nos meus avós, pessoas. Acho que todas devem ser punidas,
pais de Gildo, o quanto deve ter sido duro para mas elas não estavam isoladas; era uma ação
eles, que morreram sem ter enterrado o filho. do Estado, então o Estado como um todo e to-
dos os membros daquele Estado precisariam
O máximo que eu posso fazer é dizer para ser responsabilizados. Eu queria que as Forças
mim mesma: “Está bem, o meu pai está mor- Armadas brasileiras não tivessem o poder que
to”. Mas não dá para dizer “Você nunca vai ter elas ainda têm e acho que deveria existir uma
1. O menino Gildo
2 e 3. Aos 18 e 19 anos, respectivamente
4. Mariluce, aos 19 anos, na Chapada da
Diamantina (BA), durante uma reportagem
5. Fichas de Gildo nos órgãos de repressão
6. Gildo carregando o sobrinho Marcelo Moura
Perdigão, filho da irmã de Mariluce, em 1973
7. Mariluce com Tessa bebê, agosto de 1974,
Salvador (BA)
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foi orador oficial da União Estudantil uma próxima ida a Uberaba, no fim do mês (o que, de
Uberabense (UEU) e do Partido Unifica- fato, ocorreu); despedindo-se com um até breve.
dor Estudantil (PUE). Gildo e Mariluce foram presos em 22 de outubro de
Em 1967, já como ativista da Ação Po- 1973, em Salvador. Apanhado na Avenida Luiz Tarquí-
pular no movimento estudantil, Gildo nio, perto da Igreja do Bonfim, Gildo foi conduzido à
transferiu-se do Colégio Dr. José Ferreira Superintendência da Polícia Federal, onde passou a
para Belo Horizonte (MG), onde concluiu tarde e parte da noite juntamente com Mariluce (que
o segundo grau. Em 1968, ingressou na ali o viu pela última vez) e outros presos. No dia seguin-
Faculdade de Ciências Econômicas te Gildo foi levado ao Quartel do Barbalho, do Exército,
(Face) da UFMG. Foi preso no Congres- e imediatamente conduzido às câmaras de tortura. Gil-
so da União Nacional dos Estudantes do foi transferido em 25 de outubro para o DOI-CODI do
(UNE) em Ibiúna, em outubro de 1968. IV Exército, no Recife, onde foi torturado até a morte,
Foi vice-presidente da UNE na gestão de em 28 de outubro de 1973.
Honestino Guimarães (1971-1972).
Gildo Macedo Lacerda nasceu em 8 de Deslocou-se, no primeiro semestre de 1972, para
julho de 1949, em Ituiutaba, município de Veríssi- Salvador, Bahia, como um dos dirigentes regio- Mariluce de Souza Moura nasceu em 3 de
mo (MG), filho de Agostinho Nunes Lacerda e Justa nais da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). novembro de 1950, em Salvador (BA), na quarta posição
Garcia Macedo Lacerda. Morto em 28 de outubro de Nesse mesmo ano, em outubro, casou-se com entre os 11 filhos de Laerte de Souza Moura e Regina
1973. Militante da Ação Popular Marxista-Leninista Mariluce Moura. Nilza Moura. Iniciou sua militância em 1968 e foi mili-
(APML). A sua última carta para os familiares foi datada de 17 tante da organização Ação Popular (AP) entre 1968 a
Mudou-se muito cedo com sua família para Uberaba de setembro de 1973, na qual manifestou sua preocu- 1973. Estudou o ginásio e o colegial no Colégio de Apli-
(MG). Estudou no Colégio Triângulo, Escola Normal e pação por não receber cartas da família, acreditando cação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), jorna-
Colégio Dr. José Ferreira, onde foi presidente do Grê- em extravio de correspondência. Falou, ainda, de seu lismo na UFBA, fez mestrado e doutorado em comuni-
mio Central Machado de Assis. Ainda secundarista, trabalho, do salário melhor, da saudade de todos e de cação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Conheceu Gildo em 11 de junho de 1972 e casaram-se ras, onde tenta, pela ficção, recuperar o
pouco mais de quatro meses depois, em 28 de outu- sofrimento da morte de Gildo e o amor
bro de 1972. Trabalhava no Jornal da Bahia e na sucur- que os uniu.
sal de O Globo quando percebeu que estava sendo A certidão de nascimento de Tessa le-
vigiada. Quando de sua prisão em 22 de outubro de vou quinze anos de luta judicial para
1973, mesmo dia em que ocorreu a prisão de Gildo, incorporar o nome do pai. Nunca Mari-
foi levada para a sede da Superintendência da Polícia luce, Tessa e os pais de Gildo puderam
Federal, na Praça Cairú, centro de Salvador, e no dia enterrar seu corpo.
seguinte para o Quartel do Forte de São Pedro.
Em 1975 Mariluce casou-se novamente, com Rico
Durante uma das sessões de torturas no Quartel Marconi, com quem teve outros dois filhos, Elisa
do Barbalho na noite de 25 de outubro, data presumi- e Tiago.
da da transferência de seu marido desse mesmo quar-
Desde 1969 Mariluce trabalhou nas redações de
tel em Salvador, para Recife, ouviu de um dos tortu-
alguns dos mais importantes veículos impressos
radores, sem poder ver quem falava porque tinha os
do país, incluindo O Globo, Jornal do Brasil, Gazeta
olhos vendados, que “Gildo foi levado para uma lon-
Mercantil, Exame e IstoÉSenhor. Foi editora-chefe
ga viagem”. Em 1º de novembro o capelão do Exército
da Revista Brasileira de Tecnologia, do Conselho Na-
em Salvador (VI Região Militar) levaria à sua cela um
cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
jornal com a notícia fantasiosa sobre a morte de Gil-
(CNPq). Iniciou a implantação do setor de comuni-
do num tiroteio no Recife, em 28 de outubro – data
cação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
presumida de sua morte sob tortura em dependên-
de São Paulo (FAPESP), concebeu e desenvolveu o
cias do Exército.
projeto da revista Pesquisa FAPESP e é sua diretora
Mariluce foi libertada em 3 de dezembro de 1973 e a de redação. Lançou em maio de 2014 a revista Bahia
filha do casal, Tessa, nasceu em 18 de junho de 1974. Ciência e iniciou em agosto a implantação de seu pro-
Em 1982, Mariluce lançou o livro A Revolta das Vísce- jeto Ciência na rua. Tem três filhos e cinco netos.
I ritos de nossa cultura. Mas Tessa nasceu, linda, que isso ocorreu por determinação do Ministé-
forte e saudável, em 18 de junho de 1974, e com rio da Educação, em razão de eu ter sido presa e
A tortura é sempre vil, destruidora, acachapan-
ela nasceram para mim, ainda bem, experiências ter respondido a processo na justiça militar. Em
te, aniquiladora – espécie de terror inalcançável
profundas de natureza inteiramente diversa. 2008, a Universidade me entregou o documento
pela inteligência de quem a sofre. A tortura sobre
que comprova a arbitrariedade). Não havia tem-
o corpo de uma mulher grávida é tudo isso, não
po hábil para recuar dos planos e segui em frente.
em dose dupla, mas elevada a uma potência im- III Como sempre fazia nas curtas viagens de traba-
possível de determinar em termos matemáticos.
Qual é o momento certo para revelar a uma lho, deixei Tessa com minha mãe, que a adorava e
Sim, ela atinge imediatamente dois âmbitos bio-
criança a morte trágica do pai, ocorrida bem an- a quem ela era profundamente ligada. Nessa épo-
lógicos vinculados, um ser e um vir-a-ser. Mas,
tes de seu nascimento, e de cujas reais repercus- ca, meu pai lutava contra um câncer de pulmão e
porque esse ainda inconsciente vir-a-ser sequer
sões sobre sua constituição psíquica, emocional, o clima da casa da família, tristonho, difícil, certa-
pode saber de onde surgem esses tremores ter-
afetiva, a rigor ninguém sabe? Como igualmente mente tornou mais dura ainda para Tessa, então
ríveis, esses espasmos assombrosos do corpo-
não se sabe da influência de um luto prolongado, com um ano e oito meses, essa separação de mim
-lugar em que está aninhado – a alterar para sem-
ainda que aparentemente domado, da mãe sobre por três semanas. Hospedada com um casal ami-
pre a tonalidade dos eventos no ambiente que o
as estruturas em formação da pessoa-filho (neste go, enquanto tentava resolver os trâmites para
abriga e onde surgirão suas primeiras e mais pri-
caso, filha). Tessa soube que o seu pai tinha mor- o aluguel de um apartamento, voltei a Salvador
mitivas percepções –, o impacto, a dimensão da
rido antes mesmo de completar 3 anos. para pegar Tessa antes mesmo da resolução das
violência da tortura sobre ele permanecerá nas
pendências quando soube que a equipe médica
alturas de uma potência imensurável.
Estávamos, no final de 1976, de volta a Salva- que operaria meu pai, no Hospital das Clínicas
II dor, depois de uma estada de nove meses no Rio da UFBA, fechara seu tórax sem fazer a cirurgia.
de Janeiro – aqueles eram tempos de buscas um O câncer no mediastino era inoperável àquela al-
Compartilhar os dados do desenvolvimento in- tanto erráticas. Eu fora para retomar em parte o tura. Compreendi que ele estava no fim de sua
trauterino de um bebê costuma ser gratificante plano que fizéramos juntos, Gildo e eu, antes de vida. Morreria no começo de maio, a dois meses
experiência amorosa para um casal que se enga- todo o horror de outubro de 1973: mudar para o e meio de completar 59 anos.
jou conjuntamente na geração desse ser novo. Rio de Janeiro, onde ele seguiria trabalhando
Mas a vivência tão simples e feminina de contar sob falsa identidade até que algum evento lhe Voltei ao Rio com Tessa e com Rino Marconi,
ao parceiro o que disse o médico sobre o tama- permitisse deixar a clandestinidade e retomar colega de faculdade e de trabalho, com quem ini-
nho e o peso do bebê ou sobre a força de seus uma plena existência legal, enquanto eu faria o ciara uma nova relação no final de 1975. Ele se
batimentos cardíacos, poeticamente atestada por mestrado na Universidade Federal do Rio de Ja- tornaria de fato meu segundo marido. Hospeda-
um frio estetoscópio de Pinard em tempos sem o neiro (UFRJ) e cuidaria de desenvolver a carreira dos ainda com o casal de amigos, Bernard Van
realismo das ultrassonografias, foi mais uma en- jornalística num mercado de trabalho mais pro- der Weid e Célia Pope, ficamos naqueles primei-
tre tantas possibilidades cortadas de meu percur- missor que o de Salvador. Nossa prisão em 22 de ros dias cariocas assustados e preocupados com
so de vida pela ditadura. Entre dezembro de 1973 outubro e seu assassinato, provavelmente em 28 os pesadelos que invadiam o sono de Tessa e a
e junho de 1974, saí a cada mês do consultório do de outubro, cortaram esse e todos os planos de levavam a acordar aos gritos no meio da noite.
gentil e protetor doutor Elias Darzé, respeitado vida, todos os sonhos, que tínhamos. Entretanto, Cerca de uma semana mais tarde, conseguimos
professor de obstetrícia da Faculdade de Medi- em julho de 1975 tornei-me por concurso profes- mudar para nosso apartamento e seu reencontro
cina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sora da UFBA e, poucos meses depois, decidi, in- com objetos familiares – sua cama, seus brinque-
vivendo, em paralelo à alegria de saber que o centivada pela própria Universidade, candidatar- dos, os móveis levados de Salvador – e mais a ro-
bebê seguia forte e saudável, a aridez extrema, a -me ao mestrado na UFRJ. Passei na seleção e tina restabelecida com a ajuda da babá que che-
solidão infinita de um silêncio imposto e intrans- comecei a preparar a mudança para fevereiro de gara da Bahia tiveram sobre ela um rápido efeito
ponível à partilha dessa alegria a quem ela mais 1976. Solicitei transferência de trabalho da sucur- tranquilizador.
de perto falaria e contagiaria, ou seja, o pai. Eu sal baiana para a sede de O Globo (meu contra-
seguia do consultório para a sucursal do jornal Eu soube que estava grávida novamente pouco
to com a Universidade era de tempo parcial, eu
onde trabalhava transitando pelo indecifrável de antes da rápida ida a Salvador. Vivi num ritmo pe-
seguia trabalhando em jornal no outro turno) e
uma súbita inexistência, pelo abismo de um de- sado aqueles meses, indo pela manhã às aulas do
tratei de tomar outras providências.
saparecimento, pelo incompreensível assassina- mestrado na UFRJ, voltando para almoçar em casa
to de Gildo, meu marido, aos 24 anos, sobre mim A poucos dias da mudança para o Rio, a UFBA e seguindo depois para o jornal, onde a jornada ia
atirado sem informações verdadeiras, sem dados, me informou que meu contrato não interessava à das duas da tarde até quase meia-noite. Rino de-
sem corpo para enterrar e prantear segundo os instituição, portanto, eu estava demitida (soube dicava, então, mais tempo do que eu a Tessa. Mas
Eu tenho 47 anos e passei toda a infância e nha de quatro em quatro meses cumprir tare- Quando se deflagra o Araguaia, logo em se-
adolescência no período da ditadura. De uma fas em São Paulo, então o meu convívio com guida essa casa do Jabaquara é abandonada e
certa maneira, me sinto próximo do que se ele foi nesse período. A última vez que eu o se consegue uma no Brooklin. É aí que as coi-
convencionou a chamar de geração de 1968, vi, foi em abril de 1971. Eu tinha de 4 para 5 sas começam a perder essa cara de normalida-
apesar de ter nascido em 1966, sem ter vivido anos e tenho lembrança nítida dessa última de. Em 1971, quando eu tinha 5 anos, a Victória
esse tempo histórico conscientemente, apenas vinda. Inclusive essa foi uma última recepção conseguiu uma certidão de nascimento para
meio que por tabela. familiar, quando houve uma grande reunião mim, como mãe solteira. Ela foi ao bairro de
na Praia Grande. Cascadura, no Rio de Janeiro, olhou uma casa,
Depois do golpe de 1964, o Maurício Grabois
anotou o endereço, número. Foi a um cartório
[avô de Igor, comandante da Guerrilha do Ara-
próximo e disse: “Eu vim registrar meu filho,
guaia], como é sabido, era dirigente comunista “A partir de abril de 1972, ele tem 5 anos, nasceu nesse endereço, em
dos mais importantes do Brasil e a persegui-
ção a ele se estendia a toda família. O Maurí-
eu passei a me chamar casa”, e mostrou o tal endereço.
cio era dirigente do PCdoB. Sua companheira, Jorge. Esse segundo nome, A partir daí eu passei a me chamar Jorge
minha avó Alzira também era militante do
PCdoB. Minha mãe, Victória; meu pai, Gilberto
essa segunda pele, durou de Freitas. Todos tinham nomes trocados. A
Victória chamava Tereza de Rosa Freitas, a
Olímpio e André Grabois [tio de Igor, irmão de oficialmente até 1982. minha avó Alzira nunca tirou documentos ile-
Victória] também eram militantes do PCdoB.
Então a família toda era quase que um comitê, De vez em quando, até gais, mas também não usava o nome Alzira,
era Dona Maria.
quase uma célula. hoje, quando alguém A partir de abril de 1972, eu passei a me cha-
Quando as crianças nasciam, era na clandes- chama por Jorge eu olho mar Jorge. Esse segundo nome, essa segunda
tinidade, ou seja, corriam esse risco. Em 1964,
1965, após o golpe, o PCdoB foi buscar áreas para trás” pele, durou oficialmente até 1982. De vez em
quando, até hoje, quando alguém chama por
para deflagrar a guerra popular contra o regi- Jorge eu olho para trás.
me, a guerrilha rural. Meu pai, e a minha mãe E o Maurício, meu avô, passava um período no
Victória eram responsáveis por prospectar al- Araguaia e outro período em São Paulo, exercen- Essa casa do Brooklin tinha uma função po-
gumas áreas. Então, eles foram para o interior do a direção do PCdoB num revezamento com o lítica. Ela não era só uma casa e vim saber isso
do Mato Grosso na cidade de Glória de Doura- João Amazonas. bem depois. O segundo andar era completa-
dos. E foi nessa busca que fui gerado. mente vedado a qualquer criança que porven-
A última vez que eu o vi, foi no reveillon de tura ficasse minha amiga, que fosse frequentar
Minha mãe não foi para a guerrilha porque 1971 para 1972. Também tenho lembranças níti- essa casa. Ninguém podia ter acesso ao meu
engravidou de mim. Foi por isso que ela se das dele que são anteriores às do meu pai. Me quarto. Mas quando eu ia na casa de outras
tornou uma não combatente do ponto de vista lembro do meu avô num apartamento que mo- crianças eu tinha acesso ao quarto delas.
armado. E entre 1966 e 1971, a vida tinha uma ramos do Ipiranga. Nesse período de 1966 a
certa aparência de normalidade. Meu pai vi- 1972, moramos em algumas casas. Primeiro, no E aí, com 6, 7 anos eu pergunto: “Cadê meu
Ipiranga. Depois, num apartamento no Paraíso, pai, cadê meu avô?” E como resposta, ouvia:
Igor com sua mãe Victória
Arquivo pessoal – Reprodução de onde tenho lembranças. Depois fomos morar “Ah, eles estão trabalhando, e o trabalho é fora
da Revista Brasileiros numa casa de cômodo no Jabaquara. de São Paulo, estão trabalhando”. Só que esse
Rio e depois para Congonhas, em São Paulo. fazer a respeito Soubemos da Chacina da Lapa pela impren-
sa, no Jornal Nacional. Foi uma crise, um cho-
Quando ele veio, ele não tinha casa para ficar
no Rio de Janeiro. O PCdoB procurou a minha
da clandestinidade] que. Eu não sabia, mas a Victória e a Alzira,
tia Maria Grabois pedindo para abrigar o Ama- é injustificável” minha mãe e minha avó, ficaram apavorados
zonas por uma noite na volta dele. Então ele e a quando viram aquilo. O Comitê Central do
Elza Monnerat ficaram na casa do meu tio avô PCdoB tinha sido atacado, Pedro Pomar e o
Tanto que, quando o Amazonas morreu, em
Jaime Grabois, que é irmão também do Mau- Ângelo Arroyo, tinham sido assassinados e
2002, eu já não tinha nenhuma relação política,
rício. Minha tia Maria perguntou a ele sobre a a Elza Monnerat e o Wladimir Pomar, tinham
pessoal ou afetiva com ele. É uma figura que
situação de minha mãe e minha avó Alzira, e marcou a minha formação, o que é inegável. sido presos. Essas pessoas eram as referências
ele não respondeu nada. orgânicas delas.
Com a Elza a gente teve mais contato porque
Em 25 de novembro de 1979, eu e a Victória ela morava no Rio, frequentava muito a nossa O Jornal Nacional falava em aparelho ter-
fomos para o aeroporto de Congonhas receber casa. Ela perdeu o peso político. Era do Comitê rorista desmantelado, dois terroristas mortos
o João Amazonas. Ficamos em um canto com Central porque era uma pessoa histórica, mas em confronto com policiais. Foi aquela maté-
pessoas que estavam esperando passageiros não tinha uma tarefa política propriamente ria do Jornal Nacional e saiu no dia seguinte
comuns. Enquanto isso, estava lá a turma com dita. Ela fazia algumas atividades de apoio, no Estadão, no Jornal da Tarde, na Folha da
faixas, “Vale do Ribeira recebe Amazonas”, e o dava depoimentos, falava das questões his- Tarde. Aquela foto do Jornal da Tarde ficou
pessoal gritava “Um, dois, três, quatro, cinco tóricas. A última tarefa dela era assistente da guardada lá na biblioteca do PCdoB. A porta
mil, queremos um Araguaia em cada canto do fração dos familiares de mortos e desapareci- da casa da Lapa metralhada.
Brasil”. Essa era a palavra de ordem do pesso- dos políticos do PCdoB.
al do PCdoB e aquela explosão do pós-anistia. Qual era situação? Podia cair a casa, nós po-
Nós ficamos ali, eu fiquei em um fascínio ina- Sobreviver na clandestinidade, eu era a úni- díamos cair, então a Victória correu lá na casa
creditável. ca criança que não tinha primo, que não tinha da Liana Casaroli e disse: “Olha, fica com o
tio, não tinha primo, que não tinha família. Jorge que eu preciso fazer uma viagem com
Sai o Amazonas, aquela corrente humana. O Joca [João Carlos Grabois, filho de André urgência e daqui a três dias eu venho buscá-lo.
Ele ia ser levado diretamente para o Sindicato Grabois], por exemplo, eu não sabia da exis- Se eu cair preserve o Jorge”. A Victória tinha
dos Metalúrgicos, se não me engano. Era o Zé tência dele, só fui conhecê-lo em 1980. a confiança que se acontecesse alguma coisa a
Duarte segurando ele num braço e o Dióge- ela, a Liana seguraria a minha onda lá de cria-
nes Arruda no outro. Essa cena eu me lembro A outra coisa, é que também não tinha pas- ção. Eu tinha 10 anos.
como foto e me lembro como cena de filme. A sado. Quem era o meu avô, meu bisavô? Eu
Elza Monnerat vinha atrás. A Victória disse não tinha passado. Qual era a identidade fami- Em novembro de 1979 o Amazonas volta,
que ela pensou em segurar a Elza, tinha que liar, qual era a identidade étnica? Também não não faz contato e não sei se foi por votação ou
ter segurado, mas ela não teve coragem. Vol- tinha lugar. Era São Paulo, Rio, eu não tinha por imposição, eu e a Victória dobramos a Al-
tamos para casa para o velho debate. Aquela lugar, um local. Nasci no Rio, morava em São zira e a Victória saiu a campo para buscar um
agonia de Pilatos: “Sai da clandestinidade ou Paulo, mas o ar de provisoriedade dos lugares advogado para poder promover nossa saída
não sai da clandestinidade?” Nessa época eu era muito grande. da clandestinidade.
O meu caso era o mais grave. Eu estava na As datas anteriores eu não tinha conheci- A figura do Maurício Grabois é sempre um
sétima série, e ainda fiz a oitava série e o pri- mento. A única coisa que eu me lembro é o modelo. Apesar de eu conhecer o Maurício
meiro ano do Ensino Médio como Jorge. Fui terror da minha avó e da minha mãe na hora como avô, o Maurício lenda sempre foi forte,
até para uma escola da Comunidade Judaica em que veio a notícia na Globo: “Estourou a referência de gerações de militantes, eu passei
que aceitava me tratar formalmente como Igor Lapa, terrorista, não sei o quê, morreram em a vida encontrando antigos militantes que me
mesmo meus documentos sendo Jorge. Foi combate, em enfrentamento”, mas eu não sa- falavam assim: “Conheci o teu avô, reuni com
uma saída enquanto o processo não rolava. bia o que aquilo significava. Eu não consegui teu avô, estive com teu avô em local tal”. Ou
relacionar o terror com a notícia e com os seja, grande parte dos militantes comunistas
Essa situação toda virou inquérito policial. três dias que fiquei na casa da Liana Casaro- do Brasil, até de uma certa idade, eu sei que
O Delegado da Polícia Federal, Veronezzi, que li. Nunca me foi falado assim: “Caiu o comitê hoje seriam mais de 75 anos, vamos dizer as-
presidiu o inquérito policial, apreendeu os do- central do PCdoB, nós estamos isolados do sim, eu acho que até contemporâneos dele, co-
cumentos. E houve uma espécie de lobby para PCdoB, perdemos o contato”. Isso nunca foi nheceram o Maurício. Ele sempre foi uma re-
o Conselho Estadual de Educação aprovar discutido comigo, só foi discutido lá em se- ferência. Além de ser uma figura familiar, ele
que o nome Igor Grabois poderia constar nos tembro de 1979, ou seja, todo esse período foi meio que se converte em uma figura mítica.
meus documentos, histórico escolar. A partir no escuro.
dessa resolução do Conselho Estadual de Edu- Já o meu pai, eu fui redescobri-lo na idade
cação eu fiz universidade, concurso público e Então, não tem luto. São vazios. Meu pai não adulta. Meu pai não tinha essa referência toda,
nunca ninguém questionou nada. vem mais, meu avô não vem mais, o cachorro há poucos militantes que conheceram ele. Meu
1. Victória e Alzira em
manifestação no Rio de Janeiro
segurando cartaz e fazendo
denúncia sobre os desaparecidos 3
do Araguaia
2. Foto de carteira de identidade
de Maurício Grabois
3. Maurício discursando na
1 abertura da Assembleia Nacional
Constituinte, 1946. Ele foi um dos
três deputados da bancada do
PCB eleitos pelo Distrito Federal
para a Constituinte
6 7
Gilberto Olímpio Maria nasceu em 11 de Nesse mesmo ano, viajou para a China, onde realizou
treinamento de guerrilha.
-se para São Paulo e entrou para a clandestinidade.
março de 1942, em Mirassol (SP), filho de Antônio Conheceu Gilberto Olímpio Maria, no Rio de Janeiro,
Olímpio Maria e Rosa Cabello Maria. Desaparecido Retornando ao Brasil, morou em diversos locais do quando ele voltou Checoslováquia e com ele se casou.
em 25 de dezembro de 1973. Militante do Partido Co- interior do país, inclusive em Porto Franco (MA) com A partir de 1966, militantes do PCdoB foram desloca-
munista do Brasil (PCdoB). João Carlos Haas Sobrinho (desaparecido em 1972), dos para a região do Araguaia, onde se desenvolveria
com quem se mudou mais tarde para a região de Caia- a guerrilha contra a ditadura militar. Entre 1966 e
Mudou-se para São Paulo (SP) onde estudou no Colé-
nos, próxima ao rio Araguaia, no sudeste de Pará. 1969, seu pai, Maurício; seu irmão André e seu mari-
gio Sarmiento. Pertenceu ao Partido Comunista Bra-
sileiro (PCB) e, depois, ao PCdoB. Era conhecido como Pedro. Na guerrilha atuava na do, Gilberto também se transferiram para a região.
comissão militar e, posteriormente, foi comandante Victória só não foi para o Araguaia porque estava
Em 1961, viajou para a Checoslováquia para estudar
do Destacamento C com Dinalva Monteiro Teixeira, a grávida. Maurício Grabois, André Grabois e Gilberto
Engenharia. Dois anos depois, retornou ao Brasil,
Dina (desaparecida em julho de 1974). Olímpio foram assassinados pela ditadura militar e
com Osvaldo Orlando da Costa (“Osvaldão”, desapa-
Com Paulo M. Rodrigues e outros companheiros fun- são até hoje desaparecidos políticos.
recido em 1974), de quem se tornara amigo. Traba-
lhou no jornal A Classe Operária, periódico clandesti- dou o povoado de São João dos Perdidos, Distrito de Enquanto sua família estava no Araguaia, Victória,
no editado pelo PCdoB, até o golpe militar de abril de Conceição do Araguaia (PA). que já vivia na clandestinidade, seguiu morando em
1964, quando passou a viver na clandestinidade. São Paulo, adotou uma nova identidade, teve de re-
gistrar seu filho Igor com nome falso e mudava cons-
Em 30 de dezembro de 1964, casou-se com Victória Victória Lavínia Grabois Olímpio tantemente de casa. Ao todo, viveu dos 20 aos 36
Grabois, em Araraquara (SP). Em 1964, Victória e nasceu em 01 de novembro de 1943, filha de Alzira da
Gilberto, junto com os companheiros Osvaldo Orlan- anos na clandestinidade.
Costa Reis e de Maurício Grabois, histórico dirigente
do da Costa (Osvaldão) e Paulo Mendes Rodrigues comunista. Victória e sua família eram militantes do Após o decreto da lei da anistia em 1979, Victória vol-
foram destacados pelo Partido a atuarem no oeste Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Iniciou sua mi- tou para o Rio de Janeiro, procurou um advogado que
de Mato Grosso. Realizaram trabalho de massa junto litância em 1963, durante o movimento estudantil. defendia presos políticos, tirou novos documentos e
aos camponeses e, também, no reconhecimento do Após o golpe de 1964, foi expulsa do curso de Ciências finalmente saíram da clandestinidade. Professora
território, visando à instalação da guerrilha. Em 1965, Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia (perten- aposentada do ensino médio, é presidente do Grupo
foram obrigados a abandonar o trabalho por proble- cente à atual Universidade Federal do Rio de Janeiro Tortura Nunca Mais (RJ) e integrante do Fórum Femi-
mas de segurança. Em 1966, nasceu seu filho Igor. (UFRJ)). Com a perseguição política, a família mudou- nista do Rio de Janeiro.
Igor, meu filho, nasceu na clandestinidade e só mimado. Permita que ele vá desenvolvendo os meu filho, foi um sofrimento indescritível. Sen-
voltou ao convívio social aos 13 anos de idade. seus problemas. Não deixe que o tratem como se tia-me solitária, não suportava os finais de sema-
Eu conheci seu pai Gilberto Olímpio Maria, no ele fosse de vidro. Diga a ele que se eu pudesse na, feriados ou férias. Gastava toda minha ener-
final de 1963 e imediatamente nos apaixonamos. estaria brincando a vida toda com ele, de escon- gia cuidando da educação do Igor e trabalhando
Nossa relação era de muito amor e carinho. Mar- der e de outras brincadeiras e passearia muito como professora em escolas da periferia de São
camos nosso casamento para abril de 1964, mas também. Dê um abraço nele por mim. Sem cho- Paulo das sete da manhã até as onze da noite.
o golpe militar frustrou nosso desejo e só nos ro, ele não se justifica”. Senti-me impotente, sobretudo porque ainda
casamos em 30 de dezembro desse mesmo ano. estava na clandestinidade, apesar da vigência
A última vez que encontrei Gilberto foi em 2
Após o nosso casamento, fomos morar em de maio de 1971. Igor e eu o levamos até a ro- da Lei da Anistia. Minha primeira reação foi
Guiratinga, cidade situada no oeste de Mato doviária de São Paulo (SP), de onde ele partiria achar meios para sair da clandestinidade. Eu
Grosso. Lá, ao lado de Osvaldão [Osvaldo Or- para o interior do país. Tivemos uma despedida tive a notícia de que André teria sido morto em
lando da Costa] e Paulo Rodrigues, também de- muito triste, chorávamos os três. Igor, com ape- 1973, meu pai considerado desaparecido, e de
saparecidos, formamos um grupo de reconheci- nas 4 anos, percebia muito bem a triste situação. Gilberto... nenhuma notícia.
mento, tendo como meta estudar e pesquisar o Naquele dia, tive a percepção que nunca mais João Amazonas e Diógenes Arruda, dirigen-
local mais adequado para iniciar o movimento veria meu marido. tes do PCdoB, já haviam chegado do exílio, mas
de resistência à ditadura militar. Quando soubemos que o Exército havia ini- nem eles ou qualquer outro membro do Partido
No final do ano de 1965, por problemas de se- ciado sua operação na região, minha mãe, Igor e nos procurou. Minha mãe, Igor e eu continuáva-
gurança, fomos obrigados a abandonar o traba- eu tivemos que sair da casa onde vivíamos para mos isolados do PCdoB e da família. Não havia
lho que desenvolvíamos e voltamos para a cida- outra casa. Gilberto e meu pai conheciam nosso mais sentido continuar morando em São Paulo.
de de São Paulo. Nessa época, mudei meu nome endereço e tivemos medo que eles fossem pre- A saída foi procurar um advogado. Indicaram-
para Teresa, por medida de segurança. sos e obrigados a informar nosso paradeiro. -nos o Dr. Luiz Eduardo Greenhalgh, marquei
Em setembro de 1965, soube que estava grá- Para preservar a integridade da minha famí- uma audiência para aquele mesmo dia. Fui ao
vida. A reação de Gilberto foi de muita alegria, lia, precisei trocar o nome de meu filho. Como encontro do Luiz Eduardo e quando entrei no
assim como a de meus pais. A minha gravidez ele era muito pequeno, iria completar 6 anos, dei escritório e me identifiquei, ele demonstrou ale-
foi muito festejada, afinal o bebê que iria nascer a seguinte explicação: Igor é nome russo, ele iria gria e espanto por eu ter ido procurá-lo. A partir
seria o primeiro neto do lado materno e paterno, se matricular em uma escola de maior porte e, daquele dia, iniciei o processo de justificação,
o primeiro sobrinho. Da mesma forma, minhas no Brasil, não se aceitava nomes estrangeiros. A meu e do meu filho, para voltar a ter a nossa do-
amigas da Faculdade ficaram exultantes com a partir daquela data ele se chamaria Jorge, tra- cumentação original. Eu voltaria a ser Victória
chegada do primeiro filho da “turma”. dução de Igor. Prontamente, meu filho aceitou a e meu filho, Igor. A ação foi fundamentada nos
minha explicação. Igor é muito inteligente e per- crimes conexos da Lei da Anistia, pois ao usar
Em 9 de junho 1966, nasce nosso filho Igor. cebeu que teríamos que viver de forma discreta. um nome falso e ter registrado meu filho com
Após alguns meses, Gilberto retorna ao interior, outro nome, havia cometido o crime de falsida-
indo morar no Maranhão com meu irmão, André Desde a ida de Gilberto para o Araguaia as- de ideológica.
Grabois e com o médico João Carlos Haas. sumi a função de pai e mãe do meu filho. Fiquei
com a enorme responsabilidade de educá-lo so- O sonho do pai, do avô e do tio despertou em
Durante o período em que meu marido esteve zinha. As circunstâncias eram desfavoráveis, Igor o dever de continuar a luta interrompida
no Araguaia recebi duas cartas no ano de 1970 e a vida clandestina é uma situação de risco, a com os desaparecimentos dos três. O ideário po-
uma em 1971. Nas cartas, Gilberto dizia que es- qualquer momento poderíamos ser descobertos lítico dos seus entes queridos ficou como semen-
tava bem e que se preocupava com a educação pelo Exército. te no solo do Araguaia. Ele está prosseguindo
do nosso filho: a luta contra a miséria e a opressão e exigindo
Esse momento foi um dos mais difíceis da mi- do Estado brasileiro respostas: Como? Onde?
“(...) quanto ao Marcelo , cresceu muito? Dê um nha vida. Perder todos os homens da família e Quando? Quem assassinou e desapareceu com
abraço nele e agradeça pelo desenho. Estava ba- viver na clandestinidade, longe dos amigos e os corpos de Gilberto, Maurício, André e seus
cana. Espero que ele tenha um aniversário feliz. dos outros familiares, sem ter uma identidade companheiros?
Outra coisa, não deixe que ele se crie demasiado própria, trabalhar para sustentar minha mãe e
Eu sinto que meu filho poderia estar hoje momentos, eu ficava sozinha no carro por mui- com o tal menino que estava preso no DOPS
aqui falando da mesma maneira que falou em to tempo, porque eles iam revistar uma casa, desde aquela tarde.
Brasília quando fomos receber o pedido de prender outras pessoas.
Por conta disso, não sofri tortura física na-
perdão [do Estado brasileiro]. Sou mãe, convi-
Só fui encontrar meu filho de madrugada, quela noite. Permitiram-me levar o menino
via com ele no dia a dia e, mesmo assim, me
por volta de uma, duas horas, no DOPS, com a para a casa dos meus pais em São Bernardo.
surpreendi com a consciência e visão de mun-
babá, Joana, que cuidava dele. Na manhã ante- Fomos durante a madrugada. Fui alertada pelo
do que ele tinha.
rior, os policiais estiveram em minha casa para Fleury de que, se eu abrisse a boca para gri-
A luta contra a ditadura me deu forças para me buscar. tar ou falar qualquer coisa quando chegasse lá,
enfrentar o que vivi nesses anos todos, para meu filho voltaria comigo e não iriam levá-lo
me manter coerente. Contarei um pouco da “levaram a criança e outra vez a lugar nenhum.
história que nós vivemos.
a babá para o DOPS. Quando chegamos a São Bernardo, Joana
Numa manhã de fevereiro de 1974, meu filho desceu com Cacá no colo, dormindo. Eu então
Cacá, de um ano e sete meses, foi preso em Ambos ficaram sem perguntei para o motorista se era possível es-
nossa casa, que ficava no bairro do Brooklin, se alimentar, sem perar até que alguém da minha família acor-
dasse. Vi quando minha mãe abriu a janela e
em São Paulo. Eu tinha saído para ir à procura
de Dom Paulo Evaristo Arns, com quem tínha- água, sem nada, por Joana entrou com meu filho. O carro deu uma
mos um relacionamento direto, para avisar que um bom tempo” arrancada imensa e nós voltamos para o DOPS.
o pai de Cacá [Dermi Azevedo] certamente ti- No DOPS, fui levada para uma cela onde
nha sido preso na noite ou no dia anterior. Já Como eu não chegava, levaram a criança e estava uma companheira nossa de trabalho
tínhamos recebido a notícia de que ele teria a babá para o DOPS. Ambos ficaram sem se e outra companheira de Belo Horizonte, que
morrido. Então, para tentar evitar que de fato alimentar, sem água, sem nada, por um bom tinha sido presa há algum tempo. Fiquei pre-
isso acontecesse, porque sabíamos que não se tempo. Para minha surpresa, vi que na boca sa durante quarenta dias. Nos primeiros dias,
matava imediatamente e ele só tinha sumido do meu filho havia um corte lateral. A meni- minha roupa rasgou e pedi uma agulha para
no dia anterior, eu fui atrás de Dom Paulo. na me contou que [os policiais que] estavam consertá-la. Um dia, foram revistar as celas e
em casa falaram: “Cadê a sua mãe? Sua mãe encontraram a agulha de costura. Por causa
Nem voltei para casa, porque, quando fui ao
não está aqui nem pra te alimentar”. O menino disso, passei não lembro quantos dias dentro
escritório de Maria Nilde [Mascellani], por vol-
começou a chorar de fome. Então os policiais do que se chamava de solitária. Tive a oportu-
ta das seis e meia da tarde, fui presa.
deram um tapa muito forte que cortou a boca nidade de conhecer o que era uma cela peque-
Andamos por São Paulo e a equipe seguia da criança. na, acho que de um metro, bem estreita e um
prendendo outras pessoas, inclusive uma te- pouco comprida.
Meu filho acabou me salvando da tortura. Fui
rapeuta que trabalhava com Nilde. No trajeto,
levada para a sala de tortura, onde havia uma Na cela tinha um banco de cimento e um vaso
eles foram me colocando medo. Em alguns
máquina de choque elétrico e comecei a ser in- sanitário. Era preciso ficar atenta escutando o
terrogada pelo delegado Sérgio Fleury. Aí che- barulho da água no vaso, porque era dali que se
Cacá em um açude com cerca
de 5 anos, Rio Grande do Norte gou um policial perguntando o que iriam fazer pegava água para beber, com um copo, quando
Darcy Andozia nasceu em 30 de junho de para São Paulo dez anos depois. Darcy sempre ten- onde nasceu e depois mudaram-se para a capital do
1948. Ela e seu marido na época, Dermi, eram liga- tava recomeçar a vida, mas sofria ao ver que Carlos estado, Natal.
dos aos padres dominicanos e ao então cardeal de nunca se recuperou. Ele desenvolveu fobia social
Ingressou no curso de Jornalismo na Universidade
São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Trabalhavam e, apesar de todo o apoio médico e psicológico que
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde se for-
na retaguarda auxiliando, por exemplo, a saída recebeu, não conseguiu mais lidar com suas angús-
mou em 1979. Retornaram para São Paulo em 1984
de militantes para o exílio a fim de garantir sua so- tias e suicidou-se em fevereiro de 2013. Segundo
e ele começou a trabalhar no jornal Folha de São
brevivência. Darcy, ele “não conseguiu se adaptar ao mundo”.
Paulo. Em 2001 conclui seu mestrado em Ciências
Foi presa no dia 15 de janeiro de 1974 enquanto bus- Darcy é pedagoga aposentada. Políticas pela USP com a dissertação Igreja e Dita-
cava ajuda para seu marido que havia sido preso no dura Militar: colaboração religiosa com a repressão
dia anterior e ela temia por sua vida. Seu filho Car- de 1964. Se formou doutor pela mesma universida-
los Alexandre Azevedo, foi levado de sua casa, em de quatro anos.
São Bernardo do Campo, com 1 ano e sete meses de Dermi Azevedo nasceu em Currais Novos Dermi é um dos fundadores do Movimento Nacio-
idade, com sua babá, Joana. Lá ele também sofreu (RN) em 4 de março de 1949. Filho de José Alexandre
nal de Direitos Humanos (MNDH). É portador da
agressões da equipe do delegado Sérgio Paranhos de Azevedo e Amélia Maria de Azevedo.
Síndrome de Parkinson, doença que acredita ter ad-
Fleury. Darcy conseguiu que seu filho e a babá fos- Foi preso durante o XXX Congresso da UNE em Ibi- quirido como sequela das fortes pancadas recebi-
sem para a casa de seus pais, mas ela permaneceu úna, interior de São Paulo, em 1968. Foi preso nova- das na cabeça durante as torturas. É autor do livro
presa por mais de quarenta dias até ser solta. mente em 14 de janeiro de 1974, um dia antes de sua Travessias torturadas – Direitos Humanos e ditadura
Mudou-se para o Rio Grande do Norte com a famí- esposa e seu filho. Quando saiu da prisão, em maio no Brasil lançado em 2013.
lia depois da libertação de seu marido. Retornaram do mesmo ano, voltou com a família para a cidade
Álbum de família
1. Cacá e seu irmão Daniel, visitando
a avó, 1976
2. Dermi e Darcy com Cacá no colo,
no aniversário de 3 anos dele, no
Rio Grande do Norte
3. Dermi com Estevão no colo, Darcy com
Daniel, e Cacá na casa onde moravam no
Rio Grande do Norte
4.Cacá com aproximadamente 10 anos
durante visita à família em São Paulo
5. Daniel, Estevão e Joana, irmãos de Cacá,
Darcy e Cacá. Foto do aniversário de
60 anos da Darcy, 2008 1
Aos 9 anos de idade soube que era ado- tou. Falando com um amigo, soube que o “um dia, no mês de
tada. A história que minha mãe adotiva mesmo conhecia um cartório na cidade de
e minha irmã me contaram foi a seguin- Bragança. Sendo assim, resolveu me re- junho de 2009, vi
te: num dia do ano de 1974, um delegado gistrar lá. De acordo com o dentista, que em um jornal local
acompanhado de um soldado foi até a Ins- informou ao examinar minha arcada den-
tituição Lar de Maria em Belém, no Pará, tária, eu teria nascido entre junho e julho
uma matéria cuja
dizendo que haviam recebido uma denún- de 1974. Então ela escolheu uma data para manchete dizia
cia de sequestro. Que a sequestradora ha-
via sido presa e que a instituição deveria
registrar meu nascimento: dia 1° de julho
de 1974, dia do aniversário de minha tia
‘Crianças sequestradas
ficar com a criança, que tinha uns seis me- (irmã de meu pai Sandoval). Meu nome, na guerrilha do
ses, pois estavam esperando um retorno
da polícia de Goiás, estado onde o seques-
Lia Cecília, foi escolhido pela minha irmã
Rosália Luz.
Araguaia’... falava
tro teria ocorrido. Assim, fiquei na institui- da existência de um
ção e o tempo foi passando, sem que tives- A partir daí, fui vivendo rodeada de
amor por todos. De meus pais Eumélia
‘bebê branco’ que
sem resposta. Muitas vezes o responsável
pela instituição e Eumélia Martins iam até e Sandoval Martins, meus irmãos Paulo, poderia ser filho de
a delegacia para obter respostas, mas nun- João Carlos, Antonio Sandoval Martins e um guerrilheiro”
ca conseguiam. minha irmã Rosália Luz. Assim, fui viven-
do, mas sempre com a curiosidade de sa-
O tempo foi passando e fui crescendo, ber um pouco de minha origem. Até que
muito doente. A cada fim de semana eu um dia, no mês de junho de 2009, vi em
ia para o lar de alguém, até que Eumélia um jornal local uma matéria cuja manche-
Martins resolveu ficar comigo, pois eu te dizia “Crianças sequestradas na guerri-
precisava fazer uma cirurgia para a retira- lha do Araguaia”. No texto, um dos guias
da das amídalas e adenoide. Nessa época, dos militares falava da existência de um
eu tinha 2 ou 3 anos. Ela foi até o juiza- “bebê branco” que poderia ser filho de um
do para saber o que precisava fazer para guerrilheiro.
me adotar, mas o juiz disse que só pode-
ria dar a guarda provisória. Ela não acei- Foi então que resolvi falar com minha
irmã. Disse que achei a matéria interes-
Lia e seus pais adotivos sante. Ela concordou comigo e resolvemos
5 8
Nasci em agosto de 1966. Nessa época, ro de Pinheiros, São Paulo, capital; noutra
meu pai Wladimir Ventura Torres Pomar casa, esta no bairro de Indianópolis, tam-
e minha mãe Rachel da Rocha Pomar, as- bém em São Paulo, capital, acompanhando
sim como meus irmãos Pedro Estevam e minha avó ao açougue e depois vendo meu
Wladimir, já viviam na clandestinidade. avô, sentado em frente de uma máquina de
escrever (que hoje está comigo) e a orien-
Só no final dos anos 1970, quando meu pai tando a sempre dar gorjeta ao açougueiro,
ainda estava preso, é que fui registrado com segundo lembro para manter boas relações;
os sobrenomes verdadeiros da minha famí- acompanhando Pedro e Catarina, minha avó
lia. Por isto é que aparece, como uma das tes- paterna, numa festa realizada num sítio em
temunhas da minha atual (e espero que úl- Minas Gerais, onde encontraram meu tio
tima) certidão de nascimento, Luíz Eduardo Eduardo, diretor da Mesbla e que não era
Greenhalgh, que foi advogado de meu pai e clandestino; dentro de uma Kombi branca,
conduziu o processo de mudança de nomes. no que hoje acredito ter sido um “ponto” com
amigos, numa praça próxima ao aeroporto
Até 1976, data da prisão de meu pai e assas- de Congonhas.
sinato de meu avô, sempre morei com meus
pais, e com meus irmãos, até que saíram de
casa para estudar e trabalhar. “Só no final dos anos
Nesse mesmo período, tive contato esporá- 1970, quando meu pai
dico com meus avôs paternos; e também com
minha avó materna e seu segundo marido
ainda estava preso, é que
(meu avô materno faleceu pouco antes de eu fui registrado com os
nascer); assim como com os irmãos de meu
pai. Minha mãe é filha única. sobrenomes verdadeiros
da minha família”
De meu avô paterno, Pedro Pomar, assas-
sinado em dezembro de 1976, tenho poucas
lembranças: encerando e lustrando, juntos, Essas são algumas das parcas lembranças
um chão de tacos de madeira, numa casa que que tenho de meu avô. E uma cartinha, onde
vinte anos; depois descobri estar no bair- dizia “Nada temas, procura conhecer a ver- Pedro Pomar, quando
deputado, em 1949
dade, por mais dura e desagradável que ela
Valter (ao centro), com seus irmãos, seja. É a verdade a coisa mais importante e
Pedro Estevam, à esquerda, e Vladimir,
à direita, em Fortaleza (CE), em 1970
bela da vida”.
1 2 3
Wladimir Ventura Torres Pomar, 1962, fez parte da fundação do Partido Comunista
nascido em Belém (PA), em 14 de julho de 1936, é ana- do Brasil (PCdoB). Dois anos depois, foi preso na
lista político e escritor. Filho do histórico militante Bahia por resistir ao golpe militar. Solto no final do
comunista Pedro Pomar, viveu na clandestinidade ano, foi julgado e condenado à revelia. Viveu na clan-
já aos 5 anos de idade, pois o pai era dirigente do destinidade desde então. Em 1976, foi preso na ope-
Partido Comunista Brasileiro (PCB), perseguido pelo ração repressiva que resultou na chamada Chacina
Estado Novo de Getúlio Vargas. da Lapa, que matou três dirigentes do PCdoB, entre
eles seu pai.
Trabalhou como jornalista e colaborou com diver-
sos meios de comunicação, como Tribuna Popular, Libertado em 1979, desligou-se da direção do partido
Classe Operária, Movimento, Correio Agropecuário e e entrou para o recém-fundado PT. Foi coordenador
Brasil Extra, do qual foi diretor editorial. Além disso, geral da campanha de Lula à Presidência em 1989.
foi funcionário de empresas como Companhia Side-
rúrgica Nacional (CSN), General Eletric e Cerâmica Rachel da Rocha Pomar é nascida no Rio
do Cariri. de Janeiro em 28 de janeiro de 1936.
Ingressou no PCB em 1949, quando atuava no movi- Formada em Biblioteconomia pela UFRJ, com mes-
mento estudantil secundarista. Em 1951, trabalhou trado em sociologia na PUC/SP, foi militante do Co-
na Arno e participou do movimento sindical. Em mitê Brasileiro pela Anistia, entre 1977 e 1980.
Meu marido, Wladimir, foi preso nos primei- geleia sumiram da mesa. No almoço, a carne moí- Goiás e foi decidido que eu e as crianças ficaría-
ros dias do golpe militar de 1964, no interior da da substituíra os bifes. Às vezes, queriam um bife, mos morando em Goiânia. Meu filho mais velho,
Bahia, onde trabalhava como engenheiro da Ge- ou até um pãozinho a mais, e não podíamos dar. então com 9 anos, caiu de um cajueiro sobre uma
neral Electric. Foi a primeira vez que senti uma grade de ferro, sofrendo em enorme corte em “V”.
Para as crianças, a coisa toda não ficou clara.
solidariedade real de pessoas que superaram o A hemorragia foi assustadora. Parecia um esgui-
Trocar de nome foi o primeiro passo. Até acharam
medo para me ajudar. cho, jorrando sem cessar.
engraçado, mas para nós era um problema verda-
Embora Wladimir houvesse recebido habeas deiro. Demoramos a conseguir certidões de nasci- Alucinada, corri para um vizinho que chegava
corpus, foi vítima de sequestro em 28 de agosto mento e novas identidades. Depois, tirei carteira de carro para o almoço e pedi aos gritos que nos
do mesmo ano, denunciado por Márcio Moreira profissional e título de eleitor. Mas paramos por pusesse no carro e nos levasse para um pronto-
Alves. Criou-se uma crise entre o Tribunal e o co- aí. Como trabalhar sem currículo escolar ou refe- -socorro. Ao ver a gravidade do caso, ele disse
mando militar para efetivar a soltura. rências de trabalho anterior? Tínhamos 28 anos e que havia necessidade de um hospital com mais
seria normal que tivéssemos esses documentos. recursos. Argumentei que não tinha como pagar.
Nós morávamos, então, com dois filhos, um de
Respondeu que estava acostumado a sustos como
7 e outro de 5 anos, em um apartamento no Rio Mas estávamos todos juntos. Tivemos que
aquele: “Pagarei o que for necessário e depois vo-
de Janeiro. Na volta da prisão, Wladimir já fora contar com a ajuda de custo do PCdoB, no qual
cês me pagam”. Foi necessária cirurgia de quase
demitido. Sobrevivemos por alguns meses com meu marido militava. Então, fomos para um lugar
três horas, que deixou uma cicatriz permanente.
sua indenização trabalhista, após pagarmos o ad- perdido no mapa, no interior de Goiás, chamado
Conseguimos resgatar a dívida financeira, mas a
vogado. Certos de que seria condenado pela Jus- Santa Terezinha do Crixás, tomar conta de um
da solidariedade permanece até hoje. Nunca mais
tiça Militar, foi imposta a nós uma questão sim- sítio. Mudança radical da cidade para o campo.
o vimos.
ples: Wladimir ser preso, ou optar pela fuga, no Viramos criadores de porcos, às margens do rio
exílio ou na clandestinidade. Um tio meu, coronel do Peixe. Para os meninos foi uma época boa, de Em 1968, tivemos que sair de Goiás e fomos para
do Exército, nos alertou de que, se ficássemos no descobertas. Aprenderam a andar a cavalo. Tive- São Paulo. As crianças mais velhas enfrentaram as
Brasil, nossa vida correria risco. “Não haverá com- ram contato com aves e outros animais. Iam bus- constantes trocas de escola. Em meados de 1969
placência”, advertiu. car leite em fazenda próxima. Mas vivíamos sob a mudamos de novo, desta vez para o Ceará. Wla-
pressão de sermos descobertos. dimir passava a maior parte do tempo no interior,
Optamos pela clandestinidade. Meu marido já
vindo em casa uma a duas vezes por mês, enquan-
vivera essa experiência. Mas eu e as crianças não Em 1966 foi preciso voltar a São Paulo. Eu estava
to as crianças e eu morávamos em Fortaleza.
fazíamos ideia do que seria uma vida desse tipo. com quase sete meses de gravidez e sem qualquer
Saímos do apartamento em que morávamos como acompanhamento médico. Foi um grande amigo, Aí, consegui trabalhar no IBGE (Instituto Bra-
fugitivos. Wladimir, primeiro, levando um dos me- Ângelo Arroyo, que levou a mim e a meus filhos, sileiro de Geografia e Estatística). Fiz concurso
ninos. Eu, depois, levando o outro, para nos encon- numa viagem difícil e demorada. Eu estava com para recenseadora e fui aprovada para chefe de
trarmos em São Paulo. Fomos apenas com as rou- uma infecção renal, com cálculos, e a posição da posto. Foi um bom período. Pagamento todo fim
pas do corpo em duas pequenas malas. Tínhamos criança não era boa. Fiquei quase dois meses em de mês. Poder comprar sapatos, por exemplo, tê-
que aparentar estar saindo para uma pequena tratamento e, felizmente, meu terceiro filho nasceu nis para os meninos. Eles voltaram a estudar e o
viagem. Abandonamos tudo. Só me despedi dos numa maternidade, pois o parto precisou ser ce- mais novo frequentava o jardim de infância. No
meus pais, e sem dizer para onde iríamos. sáreo. Uma vitória: a primeira na clandestinidade. entanto, a ditadura tornava cada vez mais inten-
so seus métodos repressivos. Quedas e mortes
Ficamos algum tempo na casa de amigos. Casa No entanto, eu ignorava que meu pai morrera
de amigos queridos. Nossa situação ficava mais
e gente modesta. Dois dias após a chegada, as doze dias antes de eu dar à luz. Só fui saber de sua
perigosa.
crianças tiveram caxumba. Febre alta e muitas morte quase dois meses depois, quando levei a
dores. Sem condição de procurarmos um médico. criança para ele e a avó conhecerem. Uma grande Em 1973, saímos de Fortaleza e fomos para Jua-
Era uma prisão domiciliar de toda a família. Nem dor para mim. Ele sempre foi um grande amigo, zeiro do Norte. Interior difícil. Bem menos recur-
nós, nem as crianças, saíamos à rua. Não telefo- amparando-me até nos momentos mais difíceis. sos. Troca de colégios. Achávamos importante
návamos. Não escrevíamos cartas. Não fazíamos Além disso, havia dor e aflição à nossa volta. Ami- manter o estudo das crianças, apesar das dificul-
nem recebíamos visitas. As crianças ficaram sem gos “caíam” a toda hora, torturados ou mortos. E dades. Em 1974, novas prisões de pessoas que tra-
poder estudar, sem amiguinhos, sem brinquedos, tínhamos que continuar a vida de corre-corre, de balhavam com o Wladimir. Fomos para Santos,
sem parentes, sem seu quarto, sem suas camas. mudança em mudança, de cidade em cidade... fu- São Paulo. Nova adaptação.
Uma infinidade de “sem”... gindo sempre.
Ainda em 1974, outra mudança, para Belém,
A vida cotidiana era dura: privações até na ali- Ainda em São Paulo, consegui trabalhar em uma Pará. A família precisou se dividir para dar aos
mentação. Não bastava “botar mais água no fei- agência de turismo. Foi um alívio. Mas chegou um filhos maiores, agora com 17 e 16 anos, a oportu-
jão” para quatro pessoas a mais. Tudo era conta- momento em que não deu para continuar lá. Wla- nidade de viverem suas próprias vidas. O mais
do: oito pessoas, oito pãezinhos no café. Queijo e dimir realizava atividades políticas no norte de velho conseguiu emprego num jornal e pas-
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Márcio Moreira Alves, Torturas e Torturados, Editora Idade
Nova, Rio de Janeiro, 1966