Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Luc Boltanski é professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales e diretor do
Groupe de Sociologie Politique et Morale. Suas obras mais recentes incluem Le nouvel
esprit du capitalisme, com Ève Chiapello, e La condition foetale: une sociologie de
l’engendrement et de l’avortement. [e-mail: boltanski@ehess.fr]
Laurent Thévenot é professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales, diretor
do Groupe de Sociologie Politique et Morale e pesquisador sênior no Centre d’Études
de l’Emploi, Paris. Dentre suas publicações mais recentes destacam-se De la
justification: les économies de la grandeur, com Luc Bolltanski, e L’action au pluriel:
sociologie des régimes d’engagement. [e-mail: thevenot@ehess.fr]
Resumo
Este artigo defende que várias situações na vida social podem ser analisadas em seu
requisito de justificação da ação. É particularmente em situações de disputa que surge
uma necessidade de esclarecer as bases nas quais é distribuída a responsabilidade pelos
desvios e novos acordos podem ser alcançados. A partir do fato de que existe uma
pluralidade de modos de justificação mutuamente incompatíveis, as disputas podem ser
entendidas como desacordos acerca da violação ou cumprimento da regra de
justificação aceita, ou ainda como desacordos sobre qual modo de justificação deve ser
2
Abstract
This article argues that many situations in social life can be analyzed by their
requirement for the justification of action. It is in particular in situations of dispute that a
need arises to explicate the grounds on which responsibility for errors is distributed and
on which new agreement can be reached. Since a plurality of mutually incompatible
modes of justification exists, disputes can be understood as disagreements either about
whether the accepted rule of justification has not been violated or about which mode of
justification to apply at all. The article develops a grammar of such modes of
justification, called orders of worth (grandeur), and argues that the human capacity for
criticism becomes visible in the daily occurrence of disputes over criteria for
justification. At the same time, it is underlined that not all social situations can be
interpreted with the help of such a sense of justice, which resides on a notion of
equivalence. Regimes of love, of violence or of familiarity are systematically distinct
from regimes of justification.
Keywords: action, coordination, criticism, dispute, justification.
Nota do tradutor
Procuramos oferecer ao leitor uma amostra daquilo que vem sendo produzido
em matéria de teoria social no âmbito do Groupe de Sociologie Politique et Morale, da
École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, formado por pesquisadores em
Sociologia, Antropologia, Ciência Política e Filosofia. Para tanto, este artigo se nos
afigura assaz exemplar a respeito do posicionamento comum que une as diferentes
pesquisas ali realizadas. Publicado originalmente em 1999, sua finalidade era a de
apresentar de maneira concisa a linha de argumentação desenvolvida em De la
justification, de 1991, a volumosa obra que aglutina e pormenoriza o conjunto de idéias
3
O momento crítico
O estabelecimento de equivalência
ocultas de seus adversários, devemos concebê-los como dotados de uma habilidade para
diferenciar maneiras legítimas e ilegítimas de apresentar críticas e justificações. É, mais
precisamente, esta competência caracterizadora do sentido ordinário de justiça que as
pessoas cumprem em suas disputas. Tentaremos delinear agora a análise desta
competência. Nosso objetivo é descrever o senso de justiça dos atores – ou, mais
precisamente, seu senso de injustiça – e construir modelos de competência com os quais
os atores devem estar equipados para enfrentar situações críticas comuns. Esta
abordagem afasta-se, assim, da tarefa da filosofia moral, que é descobrir alguns
procedimentos e eixos normativos que conduzem à justiça, embora seja possível
construir um modelo normativo de justiça a respeito do senso de justiça do ator, fato que
explicitaremos.[3]
Pode-se dar a conhecer o requisito de legitimidade através de uma afirmação
bem prática: uma crítica ou uma justificação pode ser tida como legítima em uma
situação concreta quando o seu formulador puder mantê-la quaisquer que sejam as
características sociais que os seus interlocutores recém-chegados puderem apresentar. O
efeito do requisito de legitimidade é, portanto, pôr em movimento um processo de
generalização.
máquina, em seguida participar de um almoço para o qual foi convidado um senador (i.
e. como um dispositivo de relações públicas), e, no fim do dia, despir o paletó e
comparecer ao encontro do sindicato dos executivos do CFDT local. O mesmo
indivíduo pode mais tarde voltar à casa, ser repreendido por sua mulher por ter chegado
tarde e, depois de tudo, assistir a um concerto de um jovem pianista inspirado e recém-
descoberto.
Escolhemos guias de práticas cotidianas contemporâneos que poderiam ser
equiparados aos textos políticos clássicos dos quais extraímos os princípios de ordem
desempenhados em diferentes situações diárias. Executamos então esta operação
bastante desrespeitosa de processar estes guias mundanos de ação prática juntamente às
obras imortais dos filósofos políticos.
Os mundos comuns
Tabela 1
Ordens de grandeza
O mundo da inspiração
O mundo doméstico
O mundo do renome
O mundo cívico
O mundo mercantil
O mundo industrial
20
Críticas e Compromissos
A crítica pode ser interna a um mundo quando são percebidas falhas ou defeitos,
e seres são re-qualificados ou descobertos como pertinentes. Ou ela pode ser mais
radical e baseada em uma exterioridade. Nesse caso, a avaliação crítica vem de fora e se
fia em um mundo alternativo. É precisamente porque as pessoas, ao contrário das
coisas, podem existir em uma pluralidade de mundos que elas sempre têm a
possibilidade de denunciar uma situação como injusta (mesmo que a crítica seja frouxa
em relação aos requisitos que devem ser preenchidos). No modelo que delineamos, uma
capacidade crítica pode, portanto, ser considerada uma disposição caracteristicamente
antropológica.
Pode-se demonstrar empiricamente que a maior parte das críticas hoje
costumeiras viabiliza-se por relacionar dois (ou mais) dos diferentes mundos que
esquematicamente descrevemos. Porém o objetivo da crítica pode ser mais ou menos
radical. Podemos, portanto, fazer uma distinção entre duas formas de crítica baseadas
em exterioridade.
Uma primeira forma de crítica consiste em denunciar uma prova de realidade
concernente a determinado mundo, revelando a presença, dentro do próprio dispositivo
de prova, de seres exógenos (ou intrusos), pertinentes a outro mundo. Consideremos,
por exemplo, um exame escolar estabelecido para medir as capacidades de um aluno, e
21
que, portanto, pode ser tido como industrial, principalmente. Pode-se denunciar o aluno
por ele ter demonstrado, durante o teste, o seu prestígio e riqueza de família através de
suas roupas, seus modos, sua pronúncia distinta, seu paletó elegante e assim por diante.
E pode-se, ao mesmo tempo, denunciar o professor acusando-o de ter, consciente ou
inconscientemente, considerado em seu julgamento esses sinais de opulência que não
deveriam pertencer à avaliação escolar. A situação é então criticada como injusta
porque uma grandeza concernente a um mundo foi deslocada a outro. A esta forma,
denominaremos transporte de grandeza. O princípio básico no qual a prova é baseada
não é contestado. Neste caso, a denúncia é exclusivamente focada no desvelamento da
grandeza, própria a outro mundo, que as pessoas são acusadas de ter introduzido na
situação de prova. O processo de reparação consistiria então em realizar uma nova e
purificada prova.
Mas a crítica pode ser muito mais radical. Delinearemos agora uma segunda
forma, na qual o alvo da crítica é o próprio princípio de equivalência no qual a prova de
realidade é baseada. Neste caso, o objetivo da crítica é substituir a prova corrente por
outra, pertinente a outro mundo. A disputa então não está mais direcionada aos rumos
que a prova deve seguir a fim de ser justa, e sim à questão de saber que espécie de
prova, concernente a que mundo, seria realmente cabível na situação. Imaginemos
novamente a situação de um exame escolar. Mas desta vez a prova acontece num dia em
que os estudantes estão lá fora em protesto por direitos civis. A polícia foi trazida. O
alvoroço toma conta da rua diante das janelas. Um professor poderia denunciar a
maneira pela qual seus colegas continuam a administrar o teste enquanto os estudantes
estão do lado de fora sendo espancados pela polícia. Ele pode dizer algo como: “O que
realmente importa agora não é que aconteça o exame, mas que demonstremos nossa
solidariedade com os estudantes”.
Como sugere este último exemplo, quanto mais impura uma situação (no sentido
de conter objetos concernentes a diferentes mundos), mais fácil denunciá-la. Isto
significa, na nossa estória, falar, por um lado, em professores, quadros-negros, horários,
etc., e, por outro, em protesto, direitos, pôsteres com lemas políticos, reivindicações de
solidariedade, etc. Tais situações serão denominadas situações ambíguas (situations
troubles). Estas espécies de situações, que contém objetos de vários mundos, são
particularmente suscetíveis à crítica. Provavelmente esta é a razão pela qual as situações
nas quais importantes provas de realidade são realizadas geralmente são aparelhadas de
modo a serem tão puras quanto possível. Os objetos de outros mundos são removidos a
fim de desencorajar a crítica e tornar difícil a contestação da prova. Do intercruzamento
22
dos seis mundo mencionados acima, retiramos uma matriz a partir da qual pudemos
traçar as críticas legítimas mais freqüentes em nossa sociedade. Assim, por exemplo,
pode-se contar com um princípio de equivalência cívico para denunciar as associações
pessoais do mundo doméstico. Tal é o caso quando, por exemplo, os sindicalistas
denunciam o paternalismo no local de trabalho. Mas pode-se também, inversamente,
criticar do ponto de vista do mundo doméstico o modo cívico de relacionar pessoas e,
como se diz, denunciar o efeito totalitário das relações jurídicas, que destroem as
relações genuínas, humanas e calorosas entre os indivíduos.
A exploração empírica desta matriz pode também revelar quais de seus
elementos são os mais sobrecarregados. Na França, por exemplo, o desvelamento, a
partir de um ponto de vista cívico, de ligações domésticas encobertas é extremamente
freqüente. É esta estimativa feita pelas pessoas que lhes serve, por exemplo, para
sustentar as numerosas denúncias de escândalos. É este o caso quando, por exemplo,
alguém descobre a relação de parentesco ou amizade que une secretamente o prefeito,
com a insígnia de seu ofício, ao investidor a quem a assembléia legislativa da cidade
reservou o direito de construir a nova área de lazer.
Quando uma crítica radical desafia o próprio princípio no qual a situação é
baseada, a disputa se transforma numa competição entre duas diferentes provas de
realidade. As pessoas envolvidas, caso queiram encerrar tal disputa, devem buscar
retornar a uma prova unitária.
Mas pode-se considerar outro modo de encerrar uma disputa e obter um acordo:
assinalando um compromisso entre os dois mundos. Em um compromisso, as pessoas
conservam, intencionalmente, uma inclinação ao bem-comum pela cooperação em
manter presentes seres concernentes a diferentes mundos, sem buscar esclarecer o
princípio no qual seu acordo é baseado.[5]
No entanto, compromissos são fáceis de denunciar. Quando as pessoas firmam
um compromisso, elas agem como se pudessem contar com um princípio superior no
qual basear uma equivalência entre objetos de diferentes mundos. A referência, por
exemplo, aos direitos dos trabalhadores é um compromisso entre o mundo cívico (onde
cidadãos possuem direitos) e o industrial (onde os trabalhadores são respeitáveis e
grandes, na medida em que se opõem aos ociosos). Neste caso, os direitos das pessoas
como cidadãos em um mundo cívico são especificados em relação à sua participação no
mundo industrial. Estas vulneráveis construções argumentativas (visto que tal
aproximação não sobreviverá quando sua consistência for questionada) podem ser
fortalecidas através de sua concretização em objetos ou instituições, feitas das coisas
23
concernentes aos mundos associados pelo compromisso (como na França, por exemplo,
o Conseil économique et social, que reúne em uma instituição objetivada elementos dos
mundos cívico, industrial e, até mesmo, doméstico).
O término da disputa
Notas
[1] Uma primeira versão deste texto foi uma conferência dada por Luc Boltanski no
Institute for Advanced Study, Princeton, e beneficiou-se da leitura atenta, comentários e
assistência de Terry Nardin. O argumento apresentado aqui de forma resumida foi
desenvolvido em Boltanski e Thévenot (1987; 1991) e Boltanski (1990).
[3] Para uma comparação deste senso de justiça com as teorias da justiça de John Rawls
e Michael Walzer, ver Thévenot (1992) e o artigo “Justification et Compromis” no
Dictionaire d’éthique et de philosophie morale (CANTO-SPERBER, 1996, pp. 789-94).
Paul Ricoeur comparou os modelos de justiça de Walzer e o nosso em relação ao lugar
destinado à política (RICOEUR, 1995).
[4] Ver, nesta perspectiva, a tentativa de Alexis Carrel de construir uma “cité
eugénique” e suas conseqüências na história da demografia e da estatística
(THÉVENOT, 1990a).
Referências
BOLTANSKI, Luc e THÉVENOT, Laurent (1983) ‘Finding one’s way in social space:
a study based on games’, Social Science Information 22 (4/5): 631–79.
____ (1987) Les économies de la grandeur. Paris, PUF (Cahiers du Centre d’Études de
l’Emploi).
HIRSCHMAN, Albert (1981) The Passions and the Interests. Political Arguments for
Capitalism before its Triumph. Princeton, NJ, Princeton University Press.
RICOEUR, Paul (1995) ‘La place du politique dans une conception pluraliste des
principes de justice,’ In: AFFICHARD, Joëlle e FOUCAULD, Jean-Baptiste de (eds)
Pluralisme et équité: penser la justice dans la démocratie. Paris, Éd. Esprit.
____ (1990a) ‘La politique des statistiques: les origines sociales des enquêtes de
mobilité sociale’, Annales Économie Société Culture No. 6: 1275–300.
____ (1990b) ‘L’action qui convient’, In: PHARO, Patrick e QUÉRÉ, Louis (eds) Les
formes de l’action, pp. 39–69. Paris, Éditions de l’EHESS (Raisons pratiques 1).
____ (1994) ‘Le regime de familiarité: des choses en personnes’, Genèses No. 17: 72–
101.