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09/09/13 Academia Brasileira de Letras - Interna - A norma culta face à democratização do ensino (04/07/2000)

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

A norma culta face à democratização do ensino (04/07/2000)


Conferencista: Evanildo Bechara

Acadêmico CARLOS NEJAR


Quero, nesta tarde, anunciar mais uma conferência dentro do Ciclo organizado pela Academia
Brasileira de Letras. Na ausência de nosso presidente, professor Tarcísio Padilha - que está em
São Luís do Maranhão, homenageando hoje o nosso confrade, escritor, senador José Sarney -,
estamos aqui e queremos, em primeiro lugar, saudar os acadêmicos presentes: Geraldo França de
Lima, Alberto Venancio Filho, Murilo Melo Filho, Ivan Junqueira, Afonso Arinos de Melo Franco, que
está chegando, e o nosso tesoureiro Antonio Olinto.

Também quero saudar o público presente e passar a palavra para o acadêmico Antonio Olinto, que
fará a saudação ao conferencista desta tarde, professor Evanildo Bechara.

Acadêmico ANTONIO OLINTO


Muito obrigado. Meus amigos, estamos hoje diante de um homem que, de fato, entende a língua
portuguesa. Tenho falado tanto em Laudelino Freire, ultimamente, e ele dizia que cada língua tem
a sua índole, e nós, só de fato, denominamo-la, e de fato, passamos a gostar dela, quando
entendemos essa índole, quando entendemos o ritmo. Não sei se já repararam que, quando
aprendemos francês ou inglês, eles não gostam, porque não temos ainda, no começo, o ritmo da
língua deles. E vemos também que os estrangeiros que aqui chegam levam muito tempo para pegar
o ritmo da nossa língua.

Se há um homem que, no Brasil, compreende este ritmo, é Evanildo Bechara. Mas não só isto,
porque ele é lexicólogo, gramático, professor emérito, no sentido autêntico da palavra, não só no
sentido oficial, e escreveu uma moderna gramática portuguesa, que é a melhor que tivemos, não
digo nos últimos quinhentos anos, mas nos últimos cinqüenta. Do meu tempo de estudar a língua,
de que eu viria mais tarde a ser escravo, que é a língua portuguesa, me lembro de todas aquelas
gramáticas das décadas de 20 e 30, e o entusiasmo com que mergulhava nelas.

Apesar de ter chegado a esta vetusta idade, mergulho na gramática de Evanildo Bechara, sabendo
que ali vou encontrar o fluxo normal, o ritmo, a beleza e as explicações precisas e claras sobre
aquela língua que é a minha, que fez o meu país, e que faz o nosso país, neste tempo.

Está ele aqui hoje para nos transmitir um pouco da sua sabedoria neste setor fundamental para a
nossa vida pessoal e nacional, que é o conhecimento perfeito e alegre da língua portuguesa.

Com a palavra, o professor Evanildo Bechara.

Professor EVANILDO BECHARA


Boa-tarde. Não poderia começar este encontro, o segundo encontro nesta Casa de Machado de
Assis, sem um agradecimento muito especial aos colegas, aos acadêmicos que honraram a
ratificação do meu nome para integrar a plêiade de colegas que são responsáveis por este Ciclo de
palestras, que, infelizmente, já vai chegando ao seu fim com a próxima conferência da semana que
vem. De modo que quero agradecer profundamente à Academia Brasileira de Letras, na figura dos
seus membros, esta confirmação do meu nome e este convite.

E a respeito das palavras do nosso querido mestre Antonio Olinto, é preciso que o público faça um
desbaste nas informações que ele apresenta, em virtude da grande admiração mútua que sentimos
um pelo outro, e que agora vem confirmada pela publicação e pelo desejo dele de trazer à luz do
dia este grande batalhador em prol da língua portuguesa que foi Laudelino Freire, acadêmico desta

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Casa, e também autor de trabalhos que ainda hoje são trabalhos de grande mérito. E ao nosso
presidente da sessão, companheiro levantino de tanta memória, quero também agradecer as suas
palavras muito gentis.

Falar do tema que me foi proposto, A norma culta em face da democratização do ensino, é
aparentemente um tema fácil, mas um tema extremamente complicado tanto do ponto de vista de
teoria da linguagem, como do ponto de vista de pedagogia. O que vem a ser uma norma e o que
vem a ser uma norma culta no idioma? Podemos dizer que este assunto, que se vem prolongando e
debatendo desde a Antigüidade clássica, desde os retóricos e os gramáticos gregos, e os
dialéticos gregos e romanos, este assunto ganha, ultimamente, uma dimensão muito especial.

De modo que é muito complexo falar de correção da linguagem, da correção idiomática, sem fazer
referência a esse esforço dos grandes teóricos da lingüística, principalmente os teóricos do final
do século XIX e do início do século XX. São teorias que vêm reformular este conceito de norma,
este conceito de norma culta, tanto no plano teórico da linguagem, como no plano da pedagogia,
das línguas, e em especial, da língua portuguesa.

Deixo de lado aqui aquele grupo de lingüistas que acreditam que as preocupações prescritivas da
gramática tradicional são inconseqüentes do ponto de vista científico, e portanto, sem nenhum
interesse para a lingüística e inoperantes para a vida livre da linguagem, razão por que
recomendam que os gramáticos e professores de língua deixem seu idioma em paz. Desta
confusão, fala o nosso saudoso Mattoso Câmara, com o peso da sua competência. Cito-o não só
para reviver a memória do nosso primeiro lingüista, mas e por isso mesmo, para mostrar que a
crítica parte de um lingüista e não de um gramático ou de um professor de língua.

Diz o Mattoso: "Assim, a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante da gramática
descritiva, científica, mas é um lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da
sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas, e pior ainda, fazer
lingüística sincrônica com preocupações normativas".

São muitos os aspectos que merecem comentários sobre este tema, mas vou escolher um aspecto
que considero importante, tanto no plano teórico, quanto no pedagógico, o que se há de entender
como correção de linguagem. Infelizmente, como disse, o assunto tem sido descurado na teoria
lingüística, sob a enganosa impressão de que se trata de questão de pouca monta. Infelizmente, o
problema demandaria maior atenção de lingüistas e de teóricos da linguagem, pois, da certeira
conceituação do que vem a ser correção de linguagem, adviria orientação segura à elaboração de
uma gramática normativa, por ter como função precípua esse tipo de questão.

Na literatura científica, um dos primeiros lingüistas em se preocupar como tema foi o sueco Adolf
Noreen, cujas idéias foram discutidas por outros especialistas, entre os quais cabe menção
especial ao conhecido lingüista e teórico dinamarquês Otto Jespersen, num livro de divulgação
escrito por solicitação do Instituto Norueguês de Pesquisa Comparada em Cultura Humana, saído
em Oslo em 1925, e traduzido para o inglês e daí vertido para outras línguas.

Depois de apontar adesões e oposições de compatriotas de Noreen e Jespersen, informa-nos que


,para o lingüista sueco, o problema dos critérios de correção de linguagem está ligado a três
fatores, dois já conhecidos dos investigadores, fatores que para Noreen estavam sob suspeição, e
um, o último de sua responsabilidade, o chamado histórico-literário, o histórico-natural, e o último
que ele defende, que é o racional.

Por histórico-literário, compreende o fator que se fundamenta no prestígio de autores literários de


uma época considerada áurea, em que escreveram aqueles que se consideram clássicos, e assim
modelares no que toca à correção de linguagem.

Tanto nosso autor como seus críticos mostraram a relativa inoperância desse fator, já que nem
tudo que os clássicos do passado usaram tem ou pode ter vigência hoje, e depois são, do ponto
de vista lingüístico, muito frágeis as razões que justificam a escolha de um período histórico, em
detrimento de outro também do passado. Todavia, este critério tão discutível foi, durante muito
tempo, a orientação que se imprimiu nos estudos com vistas à correção de linguagem, apesar de
vozes autorizadas alertarem para o perigo do processo, como a de Silva Ramos, um dos
acadêmicos fundadores desta Casa, distinto professor de Português do Colégio Pedro II, que
afirmava mais ou menos isso: "No altar dos clássicos, encontra-se quase sempre perdão para
todos os erros de linguagem".

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O segundo fator, o histórico-natural, se baseia na idéia muito divulgada no século XIX, e vigente
em alguns lingüistas de hoje, segundo a qual, sendo a língua um organismo vivo em perpétua
mudança, ninguém deve perturbar essa mudança, mas, ao contrário, deve deixá-la livre em plena
liberdade. É o que ensinua, por exemplo, o livro do lingüista norte-americano Robert Hall, em 1950,
Leave your language alone (Deixe sua língua em paz). O mesmo Noreen tem por absurda e
anárquica essa maneira de encarar a questão do correto e do erro em língua.

Para o sueco, só resta nesta matéria levar em conta um fator a que chamou racional, e que
consiste em apelar para o bom senso. Aceitando as críticas que lhe foram endereçadas, resume
assim seu parecer: "A melhor expressão é aquela que alia, à inteligibilidade necessária a maior
simplicidade".

Depois de analisar alguns pontos débeis da proposta de Noreen, Jespersen parte para fixar os seus
critérios de correção de linguagem, elencando para tal esses sete critérios: o critério da
autoridade; o critério geográfico; o critério literário; o critério aristocrático; o critério
democrático; o critério lógico; e o critério estético.

Consiste o critério de autoridade na existência de um poder central donde emanam


recomendações, ou mesmo determinações, que levam ou obrigam a que a comunidade se regule
pelas normas fixadas. É o caso, por exemplo, de Academias atuantes como a Academia Francesa,
a Academia Espanhola, a Academia Italiana, e agora, a Academia Brasileira de Letras, com estes
cursos, sendo que as primeiras editam gramáticas, boletins e dicionários, onde se recomendam
uma ortografia oficial, se registram a significação normal mais usual das palavras e certas
construções gramaticais havidas por mais consentâneas com a tradição escrita culta.

Aqui mesmo está um livro recente, La Crusca risponde, que é um livro dos acadêmicos da
Academia de La Crusca (crusca em italiano quer dizer farelo), então, o objetivo da Academia de La
Crusca era exatamente separar a farinha do farelo, isto é, o joio do trigo, a fim de que os italianos
tivessem, pelo respaldo da Academia, as melhores palavras, as melhores construções e as
melhores formas verbais. Aqui também, por exemplo, um livro publicado, relativamente recente,
Novedades en el dicionário acadêmico, que é um trabalho com o título La Academia Española
trabaja; é uma obra em que também a Academia Espanhola dá o seu parecer, pelo testemunho e
pelo estudo dos acadêmicos, daquelas palavras sobre as quais o público, em geral, tem dúvida e
naturalmente as emprega mal.

A nossa Academia atual, a Academia Brasileira de Letras, já tem um Vocabulário Ortográfico


pronto, um Dicionário Onomástico, trabalha num Dicionário de Língua Portuguesa, e oxalá, em
breve, esteja trabalhando na Gramática da Academia, que é um dos preceitos do seu
Regulamento.

Algumas vezes, o escritor, pelo prestígio de sua cultura e difusão de sua obra, passa a ser uma
referência de modelo, quase sempre sem que disso tenha alguma interferência ou consciência.
Camões, por exemplo, não pretendeu com Os Lusíadas servir de diapasão para os escritores de
seu tempo e do seu século, e dos séculos seguintes mais próximos a ele. Mas a verdade é que a
linguagem camoniana contribuiu para uniformizar muitas formas duplas, correntes ao seu tempo,
dentre as quais o épico fez as suas escolhas, em lugar das formas que corriam e que ainda correm
em Os Lusíadas, como antre, o sufixo airo de contrairo, a palavra piadade. Camões fixou
definitivamente, para a Literatura Portuguesa, a preposição entre, nessa forma moderna, o sufixo
airo de contrário e a palavra piedade.

Na França, Vaugelas e seus companheiros só objetivavam o registro das formas cultas; todavia,
passaram a ser autoridades aos seus contemporâneos e aos pósteros. Tal peso de autoridade
recai muito freqüentemente nas obras lexicográficas. A Academia Espanhola editou um prestimoso
guia com o título de Dicionário de autoridades, isso no século XVIII. Entre os escritores e a classe
culta portuguesa, exerceram extraordinário poder de sistematização da língua do século XIX e XX,
o Dicionário do fluminense Moraes Silva, a partir da 2ª edição de 1803, e o Dicionário
contemporâneo, de Aulete e Santos Valente, a partir de 1881.

Os consultórios gramaticais veiculados pelos jornais se constituíram em paladinos da boa


linguagem, às vezes, com certos exageros e enganos. Neste particular, ressalta-se o trabalho
desenvolvido por Cândido Figueiredo, fraco em Filologia, mas que contribuiu enormemente para o
cuidado que se deve prestar à correção de linguagem. Suas fraquezas ensejaram a que seus
contraditores escrevessem excelentes repositórios de boa doutrina, como os Fatos de linguagem
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de Heráclito Graça, antigo membro desta Academia e hoje injustamente esquecido, e tantos
outros.

O segundo critério estabelecido por Jespersen diz respeito a uma pergunta muito freqüente entre
o comum das pessoas: onde se fala melhor o português? Onde se fala melhor o francês ou o
inglês? Neste particular, há idéias arraigadas que estão longe de corresponder à realidade, como
lembra Jespersen. Aponta-se, em geral, a capital do país, por ser invariavelmente o centro
cultural, ponto de confluência de políticos, escritores, intelectualidade em geral e da chamada boa
sociedade.

Por exemplo, no Brasil, dois Congressos realizados, um em São Paulo, em 1937, sob o entusiasmo
de Mário de Andrade, e outro em Salvador, em 1956, recomendaram o português padrão do Rio de
Janeiro como a variedade modelar para o canto, em 1937, e o teatro, em 1956. Hoje, com a
mudança da capital para Brasília, a transferência de escritores, artistas e intelectuais para fora do
Rio, e o invisível esvaziamento cultural da antiga metrópole, não podemos afiançar se um
Congresso agora repetiria a antiga recomendação, embora as poucas marcas regionalistas do falar
carioca pareçam ainda gozar do prestígio social de outrora e da preferência do brasileiro em geral.

A crescente presença do sotaque paulista na televisão, quer de artistas, quer de anunciantes,


pode provocar a médio e a longo prazo mudança nesse estado de coisas, que não será acelerado,
se a nossa Academia prosseguir no valente percurso pelo qual se envereda a Academia Brasileira
de Letras. Mas, às vezes, a resposta àquelas perguntas recai numa região longe da capital. Por
exemplo, o Maranhão ou o Pará, pela profunda presença portuguesa.

Do ponto de vista científico, diz Jespersen, onde se fala melhor o inglês londrino é em Londres. O
melhor inglês-americano é nos Estados Unidos, como o melhor português piauiense é no Piauí, o
melhor algarvio é no Algarve, e assim por diante, simplesmente porque a melhor e genuína
variedade lingüística está na região em que ela é falada, seja na capital, seja num modesto
lugarejo, o que significa que os diversos dialetos de uma língua histórica são igualmente válidos e
igualmente corretos em relação à tradição que aí viceja triunfante e avassaladora, e os usos que
dela, porventura, destoem são considerados errados ou estranhos pela respectiva comunidade
lingüística.

O terceiro critério arrolado por Jespersen é o literário, de cuja fragilidade já falamos, ao comentar
o fator histórico-literário de Noreen. É bem verdade que o mérito literário de um escritor que prima
em manifestar-se numa língua cuidada tem servido de modelo à correção de linguagem. Foi até a
metade deste século, o caso de Castilho, de Herculano, de Camilo, em Portugal; e de Machado de
Assis, Aloísio Castro, Rui Barbosa, e mais recentemente, a prosa de Graciliano Ramos, de Manuel
Bandeira e de Érico Veríssimo, para não citar os acadêmicos desta Casa de Machado de Assis.

O critério se fragiliza quando se dá o caso de um escritor que, pela elevação de seu talento,
merece um posto na literatura do seu país, mas que não se mostrou cuidadoso na observância da
tradição culta da língua. Se o critério literário não é razão suficiente para transformar um escritor
cuidadoso do vernáculo numa autoridade suprema de correção de linguagem, é certo que, entre
alunos e iniciantes, muito contribuiu na homogeneização e estabilidade da língua do seu tempo,
como bem arremata Jespersen.

O quarto critério, o aristocrático, consiste em atribuir importância à chamada "boa sociedade", na


tarefa de se atingir a correção de linguagem. O grande obstáculo do critério é determinar que
fração da sociedade integra essa classe de falantes. No tempo em que o prestígio residia na Corte
e nos seus freqüentadores mais próximos, essa parte da sociedade, pelas alianças matrimoniais e
questões de política e de cultura, ficava muito exposta à influência de Cortes estrangeiras.
Jespersen lembra, por exemplo, o tempo em que a Corte e a nobreza dinamarquesa recebiam forte
influência do alemão, de modo que a pronúncia e o sotaque de Holstein eram considerados o
máximo de refinamento nos ambientes aristocráticos, embora fossem estranhos a esse idioma, e a
imitação ficasse restrita a esse pequeno círculo de pessoas.

É bem verdade que as classes ditas inferiores tendem a imitar a fala das classes mais elevadas,
social e culturalmente consideradas; e neste convívio de influências, nota-se certo resultado na
homogeneização e estabilidade do idioma. Em sentido contrário ao critério aristocrático, Jespersen
arrola o critério democrático que, partindo do princípio de que todos os homens são iguais,
considera "correção de linguagem" o conjunto de usos majoritariamente empregado na
comunidade. Tudo na língua depende de um consenso.
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A história dos fatos lingüísticos de uma língua, através dos tempos, tem-nos mostrado que não só
existe a influência de hábitos de falar da camada aristocrática na feição da língua comum, mas
ainda, que hábitos do falar da camada da camada popular têm exercido a mesma função de
modelo. Num livro clássico de lingüística diacrônica, Cultura e língua francesa - História da língua
literária da França desde os começos até o presente (1ª edição alemã em 1913, 2ª edição
também alemã, revista em 1929), o lingüista e filólogo alemão Karl Vossler registra que a vacilação
dos fonemas e e a (lermes/larmes, achate/achete), do o fechado, o aberto e ou (boche/bouche,
hoste/houste), entre outros fatos, foram hábitos da fala popular que ascenderam entre os séculos
XVI e XVII, sob a força da moda, de tal maneira, que Vossler chega a afirmar que, desde o século
XVI, é muito difícil haver uma novidade vitoriosa de pronúncia que não tenha, antes, sido proferida
pela boca popular parisiense.

Não basta muita atenção para verificarmos que esse critério democrático tem limites próximos do
falar histórico-natural apontado por Noreen e que antes comentamos, segundo o qual, tudo na
língua é igualmente correto e incorreto, na dependência exclusiva do gosto da maioria, fazendo
eco de semelhante parecer corrente entre os estudiosos da Antigüidade, como o de Sulpício
Apolinário, gramático romano morto por volta do ano 160 d.C., professor de Aulo Gélio, ao referir-
se ao omnium pluriumve consensu, citado no excelente artigo do lingüista alemão Harald Weinrich
sobre Vaugelas e a questão do bom uso de linguagem no classicismo francês, recolhido no livro
Wege der Sprachkultur, publicado em Stuttgart, em 1985.

Apesar da fragilidade do critério democrático, Jespersen reconhece que ele vige ainda hoje,
mascarado sob o peso do valor do uso, em questão de linguagem, considerado a autoridade
máxima para dirimir dúvidas neste particular. Já o velho Horácio assim se pronunciava na Ars
Poetica: "Se o uso assim quiser, pois só a ele pertence a soberania, o direito e a norma da língua".

Essa idéia, exposta por lingüistas e gramáticos do século XIX, chega-nos por esta via, cremos,
pela primeira vez, numa citação do grande sintaticista Said Ali ao inglês Sayce, onde ele diz que:
"O uso do certo e do errado vale mais pelo dito, do que pelo veredito do gramático, ainda que seja
ilustre".

O sexto e penúltimo critério arrolado por Jespersen é o lógico, segundo o qual a "correção de
linguagem" está intimamente relacionada, e delas depende, com as leis gerais do pensar. Assim, a
"correção" tem valor universal e deverá estar presente em todos os homens, independentemente
de nação e de língua.

O apelo à lógica é geralmente desaprovado pelos lingüistas, muitos dos quais, como Morf, afirmam
que "a língua não é lógica nem ilógica, mas alógica". Apesar desse voto em contrário, não se
poderá pensar que a língua, veículo de conteúdos da consciência, funciona em contradição com
os princípios do pensamento, com a "lógica" entendida em sentido muito extenso.

Lembra ainda Jespersen que, muitas vezes, em nome da lógica ou como seu representante
legítimo, alguns velhos lingüistas tinham em mira o modelo do latim, já que, como sabemos, o
idioma de Cícero foi considerado, por muito tempo, a língua suprema por se levar, em grande
parte, o que se considerava a sua "logicidade", tal qual, nos dias de hoje, muitos lingüistas
consideram, aliás erradamente, que as propriedades do inglês sejam válidas e onipresentes para
todas as línguas, antigas e modernas. Todos os manuais de lingüística atual se baseiam no inglês,
como se o inglês fosse um modelo para todas as línguas, como até o século XIX era o latim para
todas as línguas, até para as línguas indígenas.

A seguir, passa Jespersen ao comentário de frases e construções gramaticais tidas por "ilógicas",
como "a mesa redonda é quadrada", "dois e dois são cinco" etc.

Por fim, vem o critério artístico, segundo o qual a "correção de linguagem" está sujeita ao nosso
sentimento estético ou à nossa sensibilidade artística, pelos quais linguagem correta vale o mesmo
que linguagem bela. Tal opinião se baseia no fato de que, se perguntarmos a alguém o que pensa
de dois modos de dizer apresentados à sua consideração, a pessoa declara que um é melhor que o
outro, ou que lhe soa mais agradável e, por isso mesmo, mais correto.

Chegado ao final da análise dos critérios estabelecidos, confessa Jespersen que se sente como se
estivesse no início da discussão, sem ter nas mãos critério ou critérios cientificamente sólidos e
capazes de permitir um juízo definitivo. Esta deficiência dos critérios de Jespersen foi notada por
José Oiticica, uma das glórias do magistério do Colégio Pedro II, cuja força de inteligência e de

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cultura está mais nos dispersos em revistas e jornais, do que nos livros publicados para o ensino
da língua portuguesa, especialmente no Manual de análise léxica e sintática e no seu Manual de
estilo. No Curso de Literatura, escrito por volta de 1945, e publicado em livro, postumamente, em
1960, Oiticica discute os critérios do mestre dinamarquês, insistindo, de início, na distinção entre
"língua usual" e "língua padrão", uma vez que "não podemos aplicar a ambas o mesmo critério de
correção".

Depois de concordar com algumas opiniões de Jespersen e discordar de muitas outras, adianta que
o critério de correção está na tradição dos mestres da língua, considerando como mestres os
escritores e os gramáticos, definindo a "correção de linguagem" como "a equilibrada observação da
tradição gramatical dos mestres da língua".

Apesar de dar alguns passos na boa direção, a verdade é que faltou a Oiticica a visão globalizante
do problema, visão globalizante que vai encontrar no teórico da linguagem Eugenio Coseriu, a
nosso ver, o justo tratamento das diversas facetas que a questão envolve. Infelizmente, Coseriu
ainda não deu à estampa um livro que prepara há vários anos, intitulado O problema da correção
idiomática, mas muitos dos seus fundamentos teóricos estão na ampla bibliografia do mestre, e
muitas antecipações da questão se encontram no livro mais recente, Competência lingüística:
elementos da teoria do falar, saído em 1988 em alemão, e em 1992, em espanhol.

Para tomar a trilha do bom caminho, torna-se necessário recordar alguns pontos fundamentais da
teoria do lingüista de Tübingen, o que procuraremos explicar a seguir.
Compreendida a linguagem como atividade humana universal do falar, ela realiza-se
individualmente, mas sempre dentro de acordo com as tradições das comunidades históricas, e
pode diferenciar-se em três planos relativamente autônomos: o plano universal, o plano histórico e
o plano individual.

O plano universal, ou do falar em geral, se apresenta como prática universalizada, não


historicamente determinada, isto é, alude a todos os homens adultos e normais que falam,
independentemente de que língua falem. É o plano do falar em geral, e a ele nos referimos quando
dizemos que tal criança ainda não fala, ou que os animais não falam. Não queremos, com estas
declarações, aludir a uma língua concreta (português, espanhol, inglês etc.), mas à capacidade de
falar.

O plano histórico faz referência a uma língua determinada, inserida numa tradição histórica, razão
por que não existe simplesmente língua, mas língua portuguesa, língua inglesa, língua latina, língua
francesa etc., isto é, a língua acompanhada de um adjetivo que a liga a uma tradição histórica.
Até as línguas inventadas (como o esperanto ou o volapuque), ao serem construídas, passam a
representar uma nova tradição histórica do falar. Esta consciência histórica é conhecida do
falante ou da comunidade falante, que distingue a sua língua da língua dos outros, como se referiu
no início o nosso querido acadêmico Antonio Olinto.

O plano individual faz alusão ao fato de ser sempre um indivíduo que fala uma língua determinada,
e o faz, cada vez, segundo uma circunstância determinada. A atividade de um indivíduo falar,
conforme a conveniência de uma dada circunstância, chama-se "discurso" e diz-se que, nessa
aplicação, não se deve confundir discurso com texto, já que o texto é entendido como produto
desta atividade, produto do discurso. O discurso, tal como o texto, está determinado por quatro
fatores: o "falante", o "destinatário", o "objeto" ou tema de que se vai falar, e a "situação".

Como toda atividade, o falar é uma atividade que revela um saber fazer, uma competência, ainda
que intuitivamente sabido, sem possibilidade, portanto, de poder ser fundamentado, isto é, um
saber não reflexivo. Os gregos tinham para "saber" três palavras diferentes: doxa, que era o saber
de informação aleatória; o saber por uma técnica aprendida, que é o téchne; e tinham o saber
reflexivo, que era o episteme.

Consoante os planos aqui distinguidos na linguagem, poderemos ter um saber falar em geral
(chamado saber elocutivo ou competência lingüística geral); um saber falar uma língua
determinada, como representante de uma comunidade lingüística com tradições comunitárias do
saber falar (chamado saber idiomático ou competência lingüística particular); e um saber falar
individual, com vista à maneira de construir textos em situações determinadas (é o chamado saber
expressivo ou competência textual).

Isso que fazemos com grande fundamentação teórica, os gregos já faziam e os romanos também,

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nos primeiros momentos da escola, onde o aluno ia aprender o trívio, isto é: a primeira gramática,
que nunca deixou de ocupar o primeiro lugar; depois, a retórica e a dialética, sendo que a retórica
e a dialética mudavam de posições no trívio. Então, a gramática é justamente esse saber
idiomático, é saber uma língua determinada. A dialética é o saber pensar, é o saber construir o
texto por meio da linguagem, e a retórica é a organização do texto, é filtrar o texto, elaborar o
texto de acordo com a situação com que a pessoa se defrontava. Então, estes três saberes já
estavam contemplados pela antiga escola greco-romana.

O saber elocutivo ou competência lingüística geral não corresponde a saber falar uma língua
determinada (português, inglês etc.), mas falar segundo os princípios da congruência em relação
aos padrões universais do pensamento e do conhecimento geral que o homem tem das coisas
existentes no mundo em que vive. Lembra Coseriu que a norma de congruência não deve ser aqui
confundida com os princípios do pensamento lógico; portanto, é uma falsa questão para o lingüista
discutir se a língua é lógica, ou ilógica, ou alógica, simplesmente porque, embora extensamente
entendidos, tais juízos não se aplicam a uma língua mas ao pensamento. Essa confusão é
comumente feita e se patenteia, por exemplo, na célebre declaração de Rivarol, no Discours sur
l'universalité de la langue française: "Ce qui n'est pas clair n'est pas français". Na realidade, a
clareza não é da língua francesa. Nenhuma língua é per si clara ou obscura, é o pensamento que
através dela se comunica é que é claro, obscuro, contundente ou não.

Ao saber falar (em) uma língua particular corresponde um saber histórico denominado saber
idiomático ou competência lingüística particular, que é falar uma língua de acordo com a tradição
lingüística historicamente determinada de uma comunidade. A dimensão desse saber idiomático
não se restringe aos atos lingüísticos de um momento determinado (a dimensão sincrônica), mas
alcança os atos não mais usados nesse momento (que é a dimensão diacrônica), o que permite
que o falante possa afirmar coisas do tipo: "Isso não se diz mais", ou "Hoje preferimos dizer de
outra maneira", ou "Isso pertence à linguagem antiga", ou ainda, "Só os idosos dizem assim", o que
patenteia que o falante conhece na sua língua mais de uma sincronia.

Afora essa dimensão no tempo, esse saber idiomático identifica variedades que ocorrem numa
língua histórica, isto é: variedades regionais, que são os dialetos; variedades sociais, que são os
estratos sociais falados pelos diversos integrantes de uma sociedade; e o falar regional, vale
dizer, se um ato lingüístico (palavra, expressão ou frase) é típico de uma região (por exemplo, o
que no Brasil é trem, em Portugal é comboio; o que em Portugal se opta por "estar a almoçar", no
Brasil preferimos "estar almoçando"; o que no Rio de Janeiro se chama "sinal luminoso de trânsito",
em São Paulo é "farol", mais para o Sul, "semáforo", e em Porto Alegre, "sinaleira").

Ao saber expressivo ou competência textual corresponde o saber estruturar textos, em


consonância ou com atenção aos fatores gerais do falar, isto é, o falante, o destinatário, o objeto
e a situação, já que há formas que dizem respeito a esses fatores. Assim, por exemplo, há de se
levar em conta como falar com os superiores hierárquicos, com os mais velhos, com as senhoras,
com as pessoas de pouca instrução, com as crianças. Às vezes, há normas rígidas, ou quase
rígidas, na estruturação formal de um texto, como, por exemplo, se se trata de um soneto ou
poema, há de ter uma forma fixa de quatorze versos; de um ofício, de um requerimento, de um
telegrama, ou de uma dissertação acadêmica.

Há também formas lingüísticas tradicionalmente fixas. Para a saudação matutina, dizemos, em


português, "Bom dia!" ou "Bons dias!", ainda que a saudação aconteça num dia de chuva ou de
cara feia, como o de hoje. Às vezes, as línguas utilizam modos tradicionais muito diferentes entre
si. A apresentação inicial de pessoas, que se conhecem pela primeira vez, por exemplo, se faz
entre nós com "Satisfação!", enquanto o francês prefere Enchanté!, o italiano Piacere!, e o
espanhol Mucho gusto!

Esses saberes, pelos seus desempenhos por parte dos falantes, estão sujeitos a juízos de valores,
em relação aos três planos aqui destinguidos. Quando o saber se manifesta na atividade do fazer,
no saber fazer, recebia entre os gregos o nome de téchnè, assim um título como téchnè
grammatiké denunciava um saber de como se faz algo. Os latinos traduziram o termo grego por
ars, que, como judiciosamente ensina Coseriu, não significava o que hoje chamamos "arte"
(alemão Kunst), mas tinha o significado, que também existia no antigo alemão, de uma capacidade
que se evidenciava, que se manifestava, que se mostrava no fazer; assim sendo, não têm
fundamento as discussões entre lingüistas tradicionais e modernos sobre se a gramática é uma
arte ou uma ciência, com base nos conceitos que, de fato, designavam tais termos.

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09/09/13 Academia Brasileira de Letras - Interna - A norma culta face à democratização do ensino (04/07/2000)

O juízo de valor que faz referência ao nível do saber elocutivo ou competência lingüística geral
recebe o nome técnico de "congruência", que faz alusão ao fato de alguém falar, em cada caso,
de acordo com as habituais expectativas normais. A um falar que, neste plano, não corresponde
às normas de clareza, coerência e congruência, se diz "incongruente".

Desta maneira, as propriedades de clareza, coerência, inteligibilidade e congruência atribuídas a


uma língua, na determinação do que vem a ser correção de linguagem, não estão adequadas ao
plano da língua, porque erram no seu objeto: não é, como vimos, a língua que deve ser "clara",
"coerente" e "congruente", mas sim, a atividade no nível do falar em geral, a regra e o compasso
do falar "com sentido".

O juízo de congruência é autônomo ou independente dos juízos que se referem à língua particular
e ao texto, porque o falante conhece o descompromisso da metáfora, o desfazimento da
metáfora. De modo que quando alguém diz, como na nossa letra de música "Tudo vai bem entre
nós, como dois e dois são cinco", a pessoa quis, absurdamente, dizer isso, e o falante conhece a
maneira de descodificar esta metáfora e entende claramente o que o compositor quis dizer quando
disse: "Tudo está certo entre nós, como dois e dois são cinco".

Consoante cada fator envolvido no discurso ou no texto, temos distinções para fazer: primeiro, em
atenção ao objeto ou tema, pode o saber expressivo ser adequado ou inadequado; em atenção ao
destinatário, pode ser apropriado ou inapropriado; em atenção à situação ou circunstâncias, pode
ser oportuno ou inoportuno.

Nenhum modo de falar é correto em si mesmo. É correto porque existe, historicamente. Da mesma
maneira, nenhum modo de falar é por si mesmo exemplar. É exemplar porque foi eleito, ou por
tácita adoção dos falantes, ou pela ação de gramáticos ou academias empenhados na política do
idioma e na e na homogeneidade idiomática. Elege-se a exemplaridade ou o modo exemplar, em
nossas comunidades, como o modo de falar das pessoas cultas, por representar o nível mais alto
da língua comum. Como a língua comum apresenta ou pode apresentar variedades, a língua
exemplar pode desenvolver normas regionais, especialmente nas línguas faladas em vários países.
Assim, temos uma norma exemplar para Portugal e outra para o Brasil; entre brasileiros, podemos
contar, por exemplo, com uma norma do Rio de Janeiro e outra de São Paulo.

A língua literária é o registro (conjunto de estilos) mais elevado da língua exemplar.

Pelo exposto, pode-se concluir que os chamados tradicionalmente "critérios de correção", na


realidade, são tipos de exemplaridade. E disto advêm, duas conclusões importantes: tais critérios
não são nem critérios, nem de correção. Não são critérios, porque, em se tratando de
exemplaridade, não são o fundamento da eleição de um modo entre as várias possibilidades. Nem
tampouco são de correção, porque, ainda se tratando de exemplaridade, não têm por objeto
estabelecer se um modo está correto em qualquer falar de uma comunidade.

Outro engano de conseqüências graves é reconhecer a língua exemplar como a única correta e,
portanto, em qualquer circunstância, só segundo seu modelo se deve falar uma língua. Cada
comunidade lingüística, como vimos, tem uma unidade mais ou menos idealmente homogênea, de
modo que encerra mais de uma tradição. A pauta do correto, a tradição lingüística, se concretiza
no uso, razão por que tem sido o uso um critério muito evocado, da Antigüidade aos nossos dias.
Só que o uso, entendido como o comprovado no falar, se estende além do idiomático, e se
manifesta ainda no saber elocucional e no saber expressivo; por outro lado, o uso, entendido
como comprovação de certo modo de falar, não é o fundamento da correção, mas sua justificação
ulterior.

Outro aspecto digno de atenção é que o uso, referindo-se apenas ao uso idiomático, não só
abrange o "já dito", mas a realização de novos usos, em conformidade com a pauta do "saber
fazer". Por isso, este termo "uso" deve ser substituído por "saber idiomático".

E agora, para terminar, retomemos o nosso tema inicial que é o saber, a normal culta na
democratização do ensino. O que vem a ser isso? Vem a ser o seguinte. O professor deve
convencer-se de que uma língua histórica (português, francês, espanhol), não é uma realidade
homogênea e unitária; ela está dividida em várias línguas, de acordo com as variedades regionais,
as variedades sociais e as variedades estilísticas.

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09/09/13 Academia Brasileira de Letras - Interna - A norma culta face à democratização do ensino (04/07/2000)

Cada variedade dessas tem uma tradição lingüística e essa tradição é um modo correto, é uma
maneira de correção da linguagem. Agora, todas essas variedades lingüísticas confluem na língua
exemplar, que é a língua de cultura. Então, a língua exemplar não é nem correta, nem incorreta,
porque correto na língua é o que está de acordo com uma tradição. Se existe, por exemplo, uma
tradição coloquial que diz "chegar em casa", esse é o padrão de correção na língua exemplar.
Agora, o "chegar à casa" já é uma eleição cultural, que é exclusiva da língua exemplar.

De modo que quando os consultórios gramaticais dos nossos jornais falam: isto está certo, isto
está errado - na realidade, não é isso. Cada modo de dizer tem o seu padrão de correção;
entretanto, todos esses padrões convergem, por eleição, a uma forma exemplar. Essa forma
exemplar é a forma que está na língua literária, quando o escritor sabe trabalhá-la artística,
cultural e idiomaticamente.

Então, o que acontece? A democratização do ensino consiste em que o professor não acastele o
seu aluno na língua culta, pensando que só a língua culta é a maneira que ele tem para se
expressar; nem tampouco aquele professor populista que acha que a língua deve ser livre, e
portanto, o aluno deve falar a língua gostosa e saborosa do povo, como dizia Manuel Bandeira.
Não, o professor deve fazer com que o aluno aprenda o maior número de usos possíveis, e que o
aluno saiba escolher e saiba eleger as formas exemplares para os momentos de maior necessidade,
em que ele tenha que se expressar com responsabilidade cultural, política, social, artística etc.

E isso fazendo, o professor transforma o aluno num poliglota dentro da sua própria língua. Como,
de manhã, a pessoa abre o seu guarda-roupa para escolher a roupa adequada aos momentos
sociais que ela vai enfrentar durante o dia, assim também, deve existir, na educação lingüística,
um guarda-roupa lingüístico, em que o aluno saiba escolher as modalidades adequadas a falar com
gíria, a falar popularmente, a saber entender um colega que veio do Norte ou que veio do Sul, com
os seus falares locais, e que saiba também, nos momentos solenes, usar essa língua exemplar, que
é o patrimônio da nossa cultura e que é o grande baluarte que esta Academia defende.

Muito obrigado.

Acadêmico CARLOS NEJAR


Coloco a palavra à disposição de qualquer dos presentes que queira fazer alguma pergunta para o
conferencista.

PLATÉIA
A obra Os Lusíadas de Camões era considerada a língua mater de Portugal. A nossa língua
portuguesa é considerada, em Os Sertões de Euclides da Cunha, como nossa língua principal, a
mais importante?

EVANILDO BECHARA
A nossa língua mater é, incontestavelmente, a portuguesa. Aquela realizada por Camões no século
XVI, realizada por Euclides da Cunha e Machado de Assis, e por todos os bons escritores que,
graças a Deus, vivem espalhados por todo o Brasil e por todo o Portugal. De modo que uma língua
não se concentra num autor só. O próprio Camões é um poliglota. Conhecemos Camões, por
exemplo, geralmente dos Lusíadas, mas há um Camões épico, há um Camões lírico e há um Camões
teatrólogo.

O Camões teatrologo é tão gil-vicentino, como Gil Vicente. Lendo Camões, lendo as peças teatrais
de Camões, El-rei Seleuco, Anfitriões, Filodemo, estamos praticamente diante de uma língua
especial do teatro, do chamado teatro popular, que é o teatro vicentino. Assim como, na Grécia,
os diversos gêneros tinham dialetos diferentes - o épico, por exemplo, era o dialeto homérico, o
lírico era o ático etc. -, assim também Camões, quando faz teatro, faz teatro na grande língua
saiaguês de Gil Vicente.

Então, para responder à sua pergunta, todo falante culto é um clássico na sua língua, seja ele
escritor, seja ele médico, seja ele advogado, desde que utilize a língua nesses três níveis: no seu
saber elocutivo, no seu saber idiomático e no seu saber expressivo.

Acadêmico CARLOS NEJAR


Mais alguma pergunta? Quero, em nome da Academia Brasileira de Letras, agradecer ao professor
Evanildo Bechara pela extraordinária conferência aqui proferida, onde mostra efetivamente a sua
sabedoria, o seu conhecimento, a sua condição de um dos maiores filólogos da nossa língua. Nós

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aqui muito aprendemos nesta tarde, porque vivemos de palavras e elas também vivem de nós.

Quero também agradecer aqui a participação de Antonio Olinto, nosso tesoureiro, a presença de
todos os acadêmicos, do público em geral. E tenho o prazer de anunciar a próxima palestra, que
será feita na terça-feira próxima, dia 11 de julho, pelo acadêmico Candido Mendes de Almeida, que
falará sobre Identidade e prospectiva nacional, encerrando este Ciclo de Língua portuguesa em
debate.

Muito obrigado. Está encerrada a sessão.


Acade m ia Brasile ira de Le tras - Todos os dire itos re se rvados

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