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Análise de Discurso

11º
Pedro de Souza

Período

Florianópolis - 2014
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Ficha Catalográfica
S728a Sousa, Pedro de
Análise do discurso / Pedro de Souza, — Florianópolis :
LLV/CCE/UFSC, 2011.
114p. : il
Inclui bibliografia
UFSC. Licenciatura em Letras Português na modalidade a Distância

ISBN 978-85-61482-42-8

1. Análise do discurso. 2. Ideologia. 3. Subjetividade. 4. Psicanálise.


5. Materialismo histórico. I. Título

CDU 801

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina
Sumário
Unidade A - No princípio, há a fala, a língua e o falante...... 9
1  Linguagem, língua, fala..............................................................................11
2  A fala, o indivíduo falante..........................................................................15
3  A fala entre o descontrole e o controle.................................................19
4  O discurso como procedimento de controle......................................23

Unidade B - Elementos da noção arqueológica de discurso.


................................................................................................................27
5  Do enunciado à função enunciativa .....................................................29
6  O correlato do enunciado..........................................................................31

Unidade C - Do discurso como objeto de análise ao modo


da escola francesa............................................................................41
7  Da fala ao discurso: relações de força e de sentido .........................43
8  Análise de discurso: artefato de leitura.................................................47
9  O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso ..........57
10  Os limites entre o mesmo e o diferente ............................................65
11  Do jogo de posições à formação discursiva......................................73
12  A definição discursiva de ideologia.....................................................75
13  A história das formas-sujeito .................................................................81

Unidade D - Construindo a análise............................................89


14  Do conceito ao trabalho de escavação do processo
discursivo.......................................................................................................91
15  Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices ..........................99
16  Da dispersão do sujeito à unidade do autor.................................. 105

Considerações Finais.................................................................... 119

Referências....................................................................................... 121

Referências das imagens............................................................ 123


Apresentação
A Análise de Discurso, quando ela não é praticada por um espe-
cialista, é uma atividade cotidiana inseparável do exercício da lin-
guagem. Todo indivíduo “analisa” seu jornal, a carta que acaba de
receber, a conversa à mesa vizinha, o que escuta no rádio, etc. Esta
análise, o mais das vezes, praticada inconscientemente, pode de-
mandar um esforço mais considerável, às vezes percebido como tal,
no momento em que palavras e textos parecem esconder um sentido
não imediatamente acessível e se dirigem a pessoas difíceis de iden-
tificar. Toda leitura e toda escuta é portanto Análise de Discurso.
Baylon e Mignot

A
Análise de Discurso, no currículo do Curso de Letras, da Universidade
Federal de Santa Catarina, segue a sequência do grupo de disciplinas
colocadas no elenco da Linguística. Mais precisamente é uma matéria
que deveria ter como pré-requisito a Semântica e a Teoria da Enunciação. Por isso,
é uma disciplina oferecida no presencial no penúltimo semestre do curso.

Por quê? A ideia é que a Análise de Discurso, especialmente na vertente da escola


francesa, seja uma disciplina que proponha uma nova maneira de considerar o
sentido na linguagem. No campo do discurso, encontramos o levantamento de um
problema pouco considerado nos outros domínios que tratam da significação em
Linguística. Trata-se do problema do sujeito e da história. Em Análise de Discur-
Figura 1 - Meditando. Eliseu
so, aprendemos que esses elementos não podem ficar à parte do estudo de como Visconti. 1916.
os sentidos se realizam na língua. Só que o modo de incluí-los não é à maneira
tradicional de abordar o histórico, o social, o subjetivo como um contexto que se
acrescenta aos funcionamentos linguísticos, ou como se separasse o lado interior
– o que importa ao objeto linguístico – e o lado exterior, aspectos suplementares
que não são pertinentes ao domínio dos estudos linguísticos. Não é bem assim.
O pensamento novo que a Análise de Discurso traz para os estudos linguísticos,
especialmente do sentido em língua, é que a exterioridade, a dimensão tida como
da ordem do contexto histórico, social e ideológico, à língua. Do ponto de vista do
discurso, não se pode entender a língua como algo separado da história e dos con-
textos sociais. Portanto, é como fato de linguagem que problemas de subjetividade,
de história e de ideologia vão ser abordados aqui, nunca como elementos à parte.
Por isso, nosso ponto de partida será retomar o conhecimento que temos da ciência
linguística e de seu objeto e rever como ele se formou deixando de lado os aspectos
tidos como impertinentes para o estudo da língua, especialmente a consideração do
sujeito. Daí que vai fazer todo sentido começarmos pela inauguração da Linguística
por Ferdinand de Saussure e, em seguida, examinar como sua dicotomia langue/pa-
role é repensada no âmbito da Psicanálise até chegar a examinar como a visão psica-
nalítica do signo linguístico visando o sujeito é aproveitada pela Análise de Discurso.
O que será posto em foco é a reinclusão do sujeito na análise da língua e do discurso.

Propomos a entrada propriamente no terreno do discurso a partir de


Figura 2 – Ferdinand de Saussure. Michel Foucault. Lendo os primeiros parágrafos de A ordem do discurso (1996),
vamos fixar a perspectiva de que o ponto de partida e alvo da Análise de Dis-
curso é o homem tomando em sua fala, porque é através de homens falando que
vemos o discurso agir e o sujeito e o sentido se realizarem.

Na sequência, o plano de estudo será privilegiadamente calcado no manual propos-


to por Eni Orlandi, Análise de Discurso: princípio e procedimentos (2003). Esse
será nosso guia de estudo para que se leve, via ensino a distância, o que tem sido
feito com ele nas aulas presenciais. Teremos assim um mapa para a leitura de ou-
tros textos que auxiliarão na compreensão mais precisa e nos aprofundamentos de
conceitos. O interesse é que todos possam perceber a produtividade da disciplina,
não apenas como acréscimo ao conhecimento intelectual, mas também como fer-
ramenta para desenvolver criticamente ações pedagógicas e intervenções sociais.
Figura 3 – Michel Foucault.

Neste ponto, encerramos esta apresentação anunciando que o instrumento que


aqui propomos é a oportunidade de partilhar o que temos conseguido ao longo de
16 anos de ensino de Análise de Discurso. Tudo o que aqui vai proposto, além de
ser um subsídio para a educação a distância e uma partilha, é também uma forma
de rever o caminho e, nessa revisão, avançar para outros caminhos que estabele-
çam e cristalizem a importância desta disciplina no campo das ciências humanas
em geral e das letras, servindo aí de instrumento teórico e pedagógico de cruza-
mento entre Linguística e Literatura.

Pedro de Souza
Figura 4 – Eni Orlandi.
Unidade A
No princípio, há a fala, a língua e o
falante

Figura 5 - Caliban. Franz Marc. 1914.


Linguagem, língua, fala Capítulo 01
1 Linguagem, língua, fala
Apresentar a conjuntura intelectual que, na França dos anos de 1960,
serviu de quadro epistemológico para dar origem à escola francesa de Análise
de Discurso como campo de conhecimento sobre a linguagem.

A Análise de Discurso se interessa por homens falando (ORLAN-


DI, 2003, p. 15). Assim, por toda situação em que há pessoas falando,
conversando, debatendo, dialogando, expondo ideias, portanto palavras
sendo ditas, oralmente ou por escrito, ou até mesmo por meio de formas
não verbais de linguagem. Em todas essas práticas de linguagem, há dis-
curso, ou seja, efeito de sentido entre interlocutores. Isso se estende às
situações em que se lê um livro, assiste-se a um filme ou a um espetáculo
teatral, escuta-se uma música popular ou erudita. O que se interpõe en-
tre o indivíduo e essas diferentes modalidades de linguagem é di’scurso,
isto é, o regime simbólico em que um simples ruído ou uma simples
imagem produz sentido e, por isso mesmo, demanda interpretação.

Todavia interpretar, levando em conta o processo discursivo que se


interpõe entre o intérprete e o objeto a ser interpretado, não é atri-
buir sentido a tudo que se lê, se vê ou se escuta. Muito ao contrário,
diante do que acontece no cotidiano como enunciável, legível, vi-
sível ou audível, enfim, como fato simbólico, observam-se sentidos
sendo produzidos. Tem-se aqui o ponto de partida que apresenta
uma atividade de interpretação em que o discurso, e não o senti-
do, é o seu objeto primeiro. Em outros termos, a Análise de Discurso
interessa-se somente por processos em que o sentido é abordado
como efeito de linguagem, e nunca como propriedade literal das
coisas expressas em palavras. Dessa perspectiva, decorre que a lin-
guagem é condição material do discurso.

Afinal, o que é linguagem? Sempre que em Linguística propõe-se


uma definição para linguagem, nota-se que, em verdade, o que se defi-
ne mesmo é a língua. É como se a linguagem fosse um sistema que só

11
Análise do Discurso

pudesse ser apresentado e definido por algo que expõe sua sistemati-
cidade, mas também algo de que a linguagem pode prescindir para se
definir por si mesma. Isso porque a linguagem pode se estruturar por
outras modalidades formais que não remetem necessariamente ao sig-
no verbal. Levando isso em conta, Saussure não hesitou em eleger, em
Figura 6 - Ceci n’est pas une pipe. René gesto excludente e exclusivo, a língua enquanto objeto que diz respeito
Magritte. 1928.
à faculdade humana da linguagem. Excludente porque, como veremos
adiante, exclui o sujeito que fala e exclusivo porque propõe a língua
como objeto de saber que só cabe à Linguística estudar.

Em um famoso artigo – A semântica e o corte saussuriano –, que


Michel Pêcheux escreve com Claudine Haroche e Paul Henry (2007, p.
13-32), argumenta-se sobre o cuidado de Saussure para distinguir teo-
ricamente língua e linguagem. Quando se põe no plano da língua, o lin-
guista retira dela todos os traços empiricistas com que se depara quando
se considera a linguagem, plano onde tudo cabe em termos de modo
de expressão social e individual. De modo que, na visão saussuriana,
Figura 7 – Michel Pêcheux.
a língua é parte da linguagem, mas só está contida naquela em termos
puramente formais e não empíricos. Deixam-se de lado aspectos indivi-
duais implicados no exercício da linguagem.

Roland Barthes – Elementos de semiologia (1964) – vai mais di-


reto ao ponto e afirma que, na língua concebida por Saussure, encon-
tramos a subtração do que acontece na linguagem em ato, ou seja, para
isolar a língua como objeto de investigação, é preciso que a Linguística
subtraia a fala e os homens falando. Barthes enfatiza que a linguagem
é, para Saussure, um ponto de tensão entre a dimensão social da língua
e a individual da fala.

A língua é então, praticamente, a linguagem menos a fala; é, ao mes-


Figura 8 – Roland Barthes. mo tempo, uma instituição social e um sistema de valores. Como insti-
tuição social, língua não é absolutamente um ato, pois escapa a qualquer
premeditação; língua é a parte social da linguagem; o indivíduo não pode
sozinho nem criá-la, nem modificá-la (BARTHES, 1964, p. 17-18).

12
Linguagem, língua, fala Capítulo 01
Daí a seguinte equação:

(linguagem - [fala]) = LÍNGUA

O psicanalista Jean-Claude Milner (1987, p. 24) toca também nes-


sa questão. Aos olhos de Saussure, não é questionado o fato de que, sob
a língua, há linguagem. Essa é tomada como o ponto de partida, mas
nunca é adotada como objeto da Linguística. Milner conclui que, para
Saussure, a linguagem só interessa à Linguística como condição ma-
terial de possibilidade da língua e das línguas. É como se a linguagem
Figura 9 – Jean-Claude Milner.
fosse genericamente um sistema de signos e, especificamente, um sis-
tema de unidades sonoras articuladas: em vários níveis – o fonológico, o
morfológico e o sintático –, estruturando a língua, ou o que a Linguística
estabelece como seu objeto de saber.

A leitura que Jacques Lacan faz de Saussure leva-o a concluir que


a língua que interessa aos linguistas não é a mesma que interessa aos
psicanalistas. Para formular as propriedades da língua como estrutura
constitutiva de um sistema de linguagem, Saussure precisa excluir a
fala (parole), atividade individual por onde se articula a língua (lan-
gue). Lacan (1978), ao emitir seu postulado “o inconsciente se estru-
tura como uma linguagem”, faz uso justamente do que a linguística
saussuriana exclui, isto é, a fala. Figura 10 – Jacques Lacan.

Vemos que, no caso do estudo científico sobre a língua, a estratégia de


Saussure é moldar o objeto da Linguística, de tal modo que a fala imbrica-
da nela não intervenha, comprometendo o objetivismo pretendido. Essa
postura fica clara quando Jacques Lacan mostra que a Psicanálise que ele
propõe, em contato com os postulados saussurianos, faz uso justamente
do que não interessou ao linguista, a saber, a fala, como já mencionamos
anteriormente. Isso porque o objeto da Psicanálise é o inconsciente, algo Figura 11 - Sem esperança. Frida
Kahlo. 1945.
que não pode ter existência senão no indivíduo falante. Portanto, se Saus-
sure pode chegar ao seu objeto passando pela fala e, ao mesmo tempo,
desconsiderando-a, Lacan mostra que a Psicanálise, para abordar o seu
objeto, o inconsciente, não pode prescindir da fala e do indivíduo falante.

13
Análise do Discurso

O sujeito que interessa à Análise de Discurso, tal como formulada


por Michel Pêcheux, é bem diverso do que investiga a psicanálise laca-
niana em seus diferentes percursos. Veremos depois que o ponto em
que a questão do sujeito na Análise de Discurso encontra a Psicanálise
diz respeito ao modo com que o conceito de inconsciente é mobilizado
para a construção de outro ponto de vista conceitual sobre o sujeito na
relação com a ideologia. É que, a partir de Louis Althusser, fica estabele-
cido, segundo Pêcheux, que não há discurso sem sujeito e não há sujeito
Figura 12 – Louis Althusser.
sem ideologia, e esse é o liame material entre a linguagem e o incons-
ciente. Esse tema voltará no momento oportuno.

Em ambas as perspectivas postas anteriormente, há o fenômeno da


fala diante da qual se coloca a linguagem ou uma linguagem em questão.
Em termos gerais, quando se trata de considerar a evidência da lingua-
gem, não importa observar diretamente a fala ou as unidades materiais
que produzem o efeito de interpretação, mas sim o fato de essas unida-
des serem estruturadas e articuladas segundo as regras de uma siste-
maticidade linguística. De outra parte, em termos singulares, quando o
caso é encarar a opacidade de uma linguagem, a fala é sempre o evento
do qual se parte e ao qual se chega, no trajeto que tende a configurar um
modo de fazer sentido.

14
A fala, o indivíduo falante Capítulo 02
2 A fala, o indivíduo falante
Vamos tomar uma narrativa cinematográfica como recurso para
representar o que estamos desenvolvendo até aqui sobre a consideração
do sujeito e da língua na fala. Nell é o título do filme produzido pela
FoxVideo, em 1995. Ele foi dirigido por Michael Apted e produzido por
Missel e Jodie Foster. Os atores que protagonizam a história são Jodie
Foster, Liam Neeson e Natasha Richardson.

Nell narra a história de uma moça criada isolada junto com sua
mãe em uma floresta distante, sem contato com a cidade. Depois que
morre a mãe, a personagem Nell fica sozinha. É quando ela é encontrada
pelo médico e pela psicóloga, que tentam levá-la para a civilização. Mas
antes de saber se ela quer sair do isolamento, eles precisam investigar
que língua é aquela que ela fala e se é capaz de se comunicar.

São, portanto, duas questões levantadas na narrativa. Va-


mos nos ater aqui à segunda questão: será que nos sons que a
personagem emite pode-se reconhecer uma língua?

Para aceitar que Nell tem linguagem, a psicóloga preci-


sa atestar a existência de traços de um sistema linguístico nos
sons que ela emite. Já o médico, desde o princípio, escuta o
modo com que os sons emitidos e os gestos de Nell podem ser
associados a uma linguagem, na mesma medida em que são
associáveis a um sentido. “Precisamos ouvir a linguagem dela”,
diz o médico, fazendo objeções à atitude da psicóloga que, tan-
to nos gestos quanto nos sons, sempre projeta um sistema for-
mal que apaga a fala de Nell.

No início do filme, a partir do procedimento científico da Figura 13 – Capa do DVD do filme Nell, dirigido
por Michael Apted.
psicóloga, os comportamentos de Nell, por exemplo, sua reação
diante de um espelho, levam a interpretar formas previsíveis de percep-
ção de si: “Ela tem um ego objetivo e um ego subjetivo. Nunca vi uma
projeção tão perfeita!”, exclama conclusivamente a psicóloga, interpre-
tando os gestos exibidos a partir de alguma abordagem preconcebida.

15
Análise do Discurso

Finalmente, desvenda-se o mistério: que língua há na fala de Nell? A


partir da adoção de uma perspectiva simbólica na qual se situa um sistema
linguístico, as sequências sonoras emitidas são, na interpretação da psicólo-
ga, associadas a um modo de articulação no qual se deduz, na fala de Nell, a
atualização de uma língua. No momento em que o médico pede que a cole-
ga interprete os sons que Nell acaba de proferir, a psicóloga responde: “Eis o
que eu acho: Nell fala inglês”. Este é o instante em que a fala da moça da flo-
resta só ganha estatuto de linguagem, quando, segundo a postura científica
da psicóloga, surge a descoberta da língua por trás da fala de Nell.

A breve análise de trechos do filme Nell serve para ilustrar como se


coloca o aspecto constitutivo da noção de linguagem que é preciso
salientar a fim de que possamos compreender a especificidade do
objeto de estudo da Análise de Discurso. Há uma diferença funda-
mental entre a língua tomada em sua sistematicidade pelo linguista
(é o caso da maneira de a psicóloga abordar a fala de Nell) e a que
se escuta em um acontecimento discursivo (exemplo da atitude do
médico diante das formas de a menina interagir com as pessoas e
com as coisas do mundo que a circunda).

Quando a psicóloga pergunta: “Que gesto é aquele?”, o médico, as-


sociando aos gestos e aos sons emitidos uma maneira de significar, su-
gere: “Não sei. Um gesto de autoconforto. Ela o faz quando diz ‘mim’”.

Mas a psicóloga insiste na procura dos elementos repetíveis que


levam ao encontro da língua que a fala de Nell atualiza. Para ela, o que
se pode interpretar dos fragmentos sonoros emitidos explica, no caso de
Nell, “como a degradação da fala é enganadora”.

A posição da psicóloga ilustra a perspectiva da fala tal como na


linguística saussuriana, ou seja, apaga-se efetivamente o modo como a
fala aparece a fim de considerar nela apenas a realização concreta de um
sistema linguístico formal.

16
A fala, o indivíduo falante Capítulo 02
A posição do médico representa a atitude de quem se deixa in-
terpelar pela fala tal como aparece, considerando a língua como o ele-
mento que atravessa o ato concreto de falar e só significa nas condições
históricas em que a fala acontece. A história de Nell é marcada pelas
vicissitudes entre entregar-se ao bem-estar que lhe oferece o seu hábitat
na floresta e precaver-se do perigo presente na intromissão de pessoas
e eventos estranhos em seu cotidiano. É no horizonte desse esquema
pré-construído que o médico chega ao que pode ser a língua, ou a lin-
guagem, que assenta a fala de Nell.

Atingimos o ponto nodal das noções colocadas em questão até


aqui. A noção de discurso, nos termos da escola francesa, pressupõe
uma noção própria de linguagem e de língua, bem distante do que se
propõe no terreno estrito da Linguística. Em verdade, seguindo o que
ensina Eni Orlandi, trata-se muito mais de pensar a linguagem como
maneira de significar, e não como sistema fechado de regras de ordem
fonológica, morfológica ou sintática.

As diferentes maneiras de significar que englobam a língua – gra-


mática tradicional, diversas vertentes da Linguística – indicam a di-
versidade de ponto de vista para abordar a linguagem. Na Análise de
Discurso, a língua não é concebida em relação a si mesma, mas em re-
lação com a história e com a ideologia, isto é, os regimes de evidência
discursiva nos quais os sentidos podem ser múltiplos, mas não qualquer
um. Ou ainda, nos termos de Michel Foucault: de como arqueológica e
genealogicamente não se pode dizer qualquer coisa em qualquer tempo.

Em Análise de Discurso, a fala, antes de ser mera manifestação do


sistema da língua, é já um evento discursivo. Toda vez que um indiví-
duo fala não apenas se apropria da língua em suas unidades e regras
formais, conforme se diria em Linguística. Do ponto de vista discursi-
vo, no ato de falar, o falante deixa-se interpelar por formas linguísticas
enredadas em uma série de ocorrências de dizeres cuja historicidade,
ou maneira de fazer sentido, define o discurso em suas condições de
possibilidade e em sua forma material de linguagem. Em resumo, a
língua que funciona na fala remete não a regras formais puras, mas a

17
Análise do Discurso

regularidades arquivadas em formações discursivas e que atravessam


a fala. Depois vamos ver como, através de Foucault, explicitar melhor
esse aspecto da relação fala/discurso.

O que Ferdinand de Saussure tomaria como a língua em ato na fala,


em Análise de Discurso, privilegia-se as formas concretas de a lín-
gua aparecer na história, ou simplesmente, nos termos de Orlandi,
a língua inscrita na história. A dedução é imediata: na perspectiva
da Linguística, a expressão língua em ato equivale à língua a priori
e fora da história. Por outra parte, na perspectiva discursiva, a língua
que emerge na fala é acontecimento discursivo, ou seja, está ligada
ao tempo e ao oscilar descontínuo da história. É exatamente isso
que ressalta Orlandi (2003, p. 15): “O discurso é assim palavra em
movimento [...]”.

18
A fala entre o descontrole e o controle Capítulo 03
3 A fala entre o descontrole e o
controle
Retomemos o estatuto da fala e do indivíduo falante. Nessa parte,
vamos nos deter no indivíduo falante para, a partir da fala que ele co-
mete, observar a ordem discursiva que o interpela e o sujeito em que se
converte ao tomar a palavra.

Daí que nosso ponto de partida, para começar


a compreender o que é discurso, será o texto da aula
inaugural proferida por Michel Foucault, no Collège de
France em 1971: A ordem do discurso. Nesse texto, va-
mos ver que a fala e o sujeito que dela decorre são os
elementos fundamentais a partir dos quais depreende-
mos a existência e o funcionamento de um processo de
linguagem chamado discurso. Se, nessa parte, escolhe-
mos tomar o Foucault da célebre aula é porque sempre
nos guiamos pelo pressuposto de que a fala e o falante
remetem ao discurso, concebido como sistema de re-
gras, ou, mais precisamente, de acordo com o que o Figura 14 - Pátio do Collège de France. Monumento a
Guillaume Bude.
pensador francês desenvolve em sua conferência, como
princípios e procedimentos de controle.

Os princípios de controle que regem a entrada do falante em


dada ordem de discurso definem essa mesma ordem como prática.
Por isso mesmo, o conceito de ordem de discurso aqui sempre diz
respeito ao quadro institucional em que determinada fala é exercida
e considerada legítima. A fala por si só não é nada, não existe. A fala
por si só é acontecimento aleatório. E para monitorar o aleatório da
fala é necessário impor-lhe princípios de controle vindos de fora e de
dentro do discurso.

Nesse sentido, a maneira com que Foucault introduz sua expo-


sição em A ordem do discurso certamente é uma estratégia que nos
permite focalizar a noção de indivíduo falante. Ele é aquele que fala

19
Análise do Discurso

de modo não submetido à ordem do discurso: o eu insinuado sub-


-repticiamente no discurso.

Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pro-


nunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos.
Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e leva-
do bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no
momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo:
bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojas-
se, sem ser percebido, em seus interstícios. Como se ela me houvesse
dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria,
portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso,
eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o pon-
to de seu desaparecimento possível. (FOUCAULT, 1996, p. 6).

Vamos comparar a situação dramatizada com outra re-


latada no filme O discurso do rei, dirigido por Tom Hooper, em
2010. A sinopse do filme nos dá conta da seguinte história:

Desde os 4 anos, George (Colin Firth) é gago. Este é um sério pro-


blema para um integrante da realeza britânica, que freqüentemente
precisa fazer discursos. George procurou diversos médicos, mas ne-
nhum deles trouxe resultados eficazes. Quando sua esposa, Elizabe-
th (Helena Bonham Carter), o leva até Lionel Logue (Geoffrey Rush),
Figura 15 - Cena do filme em que o príncipe Albert,
o rei Jorge VI, realiza um de seus discursos.
um terapeuta de fala de método pouco convencional, George está
desesperançoso. Lionel se coloca de igual para igual com George e
atua também como seu psicólogo, de forma a tornar-se seu amigo.
Seus exercícios e métodos fazem com que George adquira autocon-
fiança para cumprir o maior de seus desafios: assumir a coroa, após a
abdicação de seu irmão David (Guy Pearce).

Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/o-discurso-do-rei/>.

Bem diferente da postura de quem quer tomar a palavra, mas resis-


te a fazê-lo, o rei George VI quer falar, mas não pode. Só que a tomada
da palavra era a condição a ser cumprida para que ele ocupasse a devida

20
A fala entre o descontrole e o controle Capítulo 03
posição do sujeito cuja missão tinha início na sua fala. O problema é
que ele não podia falar por limitações próprias de quem não conta com
a própria voz para deixar passar a voz da ordem do discurso que ali o
convocava. George VI, de fato, até não ser preparado, não falava porque
estava impedido pela gagueira.

Guardadas as devidas proporções, a antecâmara do pro-


nunciamento de George VI assemelha-se, nos termos de Michel
Foucault, “ao teatro muito provisório” do trabalho que deve fazer
aquele a quem se encarrega a função de representar o ponto de
origem de um discurso que não vem dele. Na cena primeira da
aula inaugural que Foucault pronuncia no Collège de France, ele
hesita entre permanecer recolhido à própria voz ou submetê-la à
da ordem do discurso que ali o convocava, mesmo tendo toda a
garantia de não perder a continuidade ao longo de sua enuncia- Figura 16 - Presidente dos Estados Unidos
despedindo-se do público após o encerramento de
ção. Podemos comparar esta hesitação do filosofo com o caso de seu discurso no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

George VI tendo a seu lado o amigo Lionel a lhe dar apoio para
vencer a gagueira. Vale a pena aqui contrapor essas duas perfomances, que
beiram o fracasso do sujeito no momento de falar, a outra cuja tomada da
fala acontece de modo muito bem sucedido. Barack Obama, em sua visita
ao Brasil, em 19 e 20 de março de 2011, começou o seu discurso, pronun-
ciado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, de forma muito coloquial.
Cumprimentou os brasileiros, em português, agradecendo pela calorosa
acolhida a toda sua família, foi simpático ao lembrar da importante parti-
da de futebol que haveria naquela tarde e lembrou também a primeira vez
que viu imagens do Brasil em um filme: Orfeu negro.

Desde o momento em que chegamos o povo desta nação tem gentilmente


mostrado à minha família o calor e a generosidade do espírito brasileiro, obri-
gado. Quero agradecer a todos por estarem aqui, pois me disseram que há
um jogo do Vasco ou do Botafogo... Eu sei que os brasileiros não abrem mão
de seu futebol tão facilmente.

Uma das primeiras impressões que tive do Brasil veio de um filme que vi
com minha mãe quando eu era muito pequeno. Um filme chamado Orfeu

21
Análise do Discurso

negro, que se passava nas favelas durante o carnaval. E minha mãe adorava
aquele filme, tinha música e dança e, como pano de fundo, os lindos mor-
ros verdes. Esse filme estreou primeiramente como uma peça bem aqui, no
Theatro Municipal.

Qualquer que fosse a retórica, vemos um orador tomando a palavra


sempre sabendo quem era, e, sendo quem era, o presidente dos Estados
Unidos, ouvimos a performance do chefe do estado que não perde de
vista o lugar que ali deveria ocupar como o sujeito do discurso.

22
O discurso como procedimento de controle Capítulo 04
4 O discurso como
procedimento de controle
É preciso lembrar que Foucault não está considerando a fala que se
exerce no âmbito político. Lendo os primeiros parágrafos de A ordem do
discurso, entendemos que o filósofo dramatiza o que supostamente acon-
tece quando alguém resiste a falar mesmo sendo convocado a fazê-lo.
Nesse sentido, observem que o tema da aula inaugural não é o indivíduo
falante destituído da vontade ou da impossibilidade de falar. O tema desse
texto é o próprio discurso enquanto ordem, diante da qual, alegoricamen-
te, Foucault põe em cena o falante situado na soleira da porta da ordem
discursiva que o habilita a falar já sendo o sujeito do discurso.

A certa altura de sua conferência, da página 8 em diante, Foucault já


não mais dramatiza a atitude daquele que como toda gente desejaria se
colocar do outro lado do discurso. É inevitável falar e tornar-se sujeito,
e isso só é possível através do discurso enquanto instituição que dita as
regras para que, de dentro dela, alguém tome a palavra. Mas essa possi-
bilidade, conforme dadas condições, não está aberta a qualquer um. Na
sequência de sua explanação, Foucault passa a mostrar e definir quais
princípios regem a entrada do falante em dada ordem de discurso para
nela converter-se de simples falante a sujeito de discurso. Descrever tais
princípios é já fazer Análise de Discurso, já que os mesmos princípios
podem compor diferentes ordens discursivas; ora a do saber, ora a da
religião, ora a do político, etc.

Esse ritual alegórico com que Foucault inicia sua conferência ser-
ve para compreender o que ele concebe como discurso já desde o que
propôs em A arqueologia do saber (1986). O discurso pode então ser
definido de duas maneiras:

Materialmente, seja no plano oral ou escrito, o discurso é a fala


atravessada por uma ordem simbólica, a mesma que, mediante procedi-
mentos de exclusão e controle, converte o falante em sujeito do discurso;

23
Análise do Discurso

Formalmente, o discurso é a ordem, isto é, os preexistentes princí-


pios de exclusão, controle e rarefação que constituem o sujeito mediante
a fala ancorada no indivíduo falante.

Fica claro que, em princípio, a noção de or-


dem discursiva que Michel Foucault desenvolve
apenas se aplica a determinados quadros institu-
cionais ligados à produção do conhecimento. As-
sim, só há ordem de discurso nos domínios em
que está em jogo a constituição de objetos do sa-
ber e o estabelecimento da diferença entre o ver-
dadeiro e o falso. Se alguém diz qualquer coisa,
em qualquer tempo, não importando a verdade
ou a falsidade e a legitimação de campos de sa-
ber, então o que é assim dito, ou seja, no âmbito
do senso comum, não vale como discurso. Mais
adiante vamos ampliar a noção de prática discur-
Figura 17 - Feira de São João. Cândido Portinari. 1936-1939.
siva à fala que acontece fora de domínios institu-
cionais do saber ou das práticas científicas. É quando introduziremos
o conceito de ideologia do modo com que é desenvolvido por Michel
Pêcheux para definir formação discursiva.

Mas cabe aqui enfatizar que, pensando nos termos de Michel Fou-
cault, o importante é guardar que a fala e o indivíduo falante são os
ingredientes essenciais que o discurso – formalmente concebido como
ordem – investe para constituir o indivíduo como sujeito e dotar de sen-
tido os enunciados que produz. O investimento da ordem discursiva so-
bre a fala ou a enunciação é tomado como as condições de possibilidade
do discurso e do sujeito que nele se produz.

Observando, portanto, como acabamos de fazer, o desempenho


oral de Michel Foucault, nos primeiros parágrafos de sua aula inaugural
– A ordem do discurso –, anotamos dois fatos:

O pensador francês introduz sua aula expressando-se na condição


de indivíduo falante não submetido à ordem do discurso, isto é, como o

24
O discurso como procedimento de controle Capítulo 04
eu que, ao encadear aleatoriamente uma sequência de palavras, gostaria
de se não se arriscar a entrar na discursividade na qual ele é institucio-
nalmente convocado a proferir sua aula. Trata-se do momento hipoté-
tico em que o falante e sua fala expõem-se destituídos de discurso em
uma dada situação;

Na sequência, o filósofo se distancia da po-


sição do falante que teme se apropriar da palavra
e define o que ele chama de ordem de discurso
usando a expressão “princípio de controle e ex-
clusão”. Ele define enfim que discurso não se re-
duz a palavras proferidas, mas fundamentalmente
aos princípios e às regras institucionais aos quais,
atravessando o falante e sua fala, cabe constituir
o sentido e o sujeito do discurso. Essa leitura nos
leva a concluir que se trata então mais de explici-
Figura 18 - Manifestación. Antonio Berni. 1934.
tar o caráter institucional da ordem discursiva, e
menos de apresentar sua forma de estruturação ou
formulação linguística.

Os princípios de controle que regem a entrada do falante em dada


ordem de discurso definem essa mesma ordem como prática. Nesses
termos, a prática discursiva é constituída de procedimentos de controle
ou, dito nos termos do livro A arqueologia do saber, de regras de forma-
ção discursiva. Por isso mesmo, o conceito de ordem de discurso aqui
sempre diz respeito ao quadro institucional em que determinada fala é
exercida e considerada legítima. A fala por si só não é nada, não existe.
A fala por si só é acontecimento aleatório. E, para monitorar o aleatório
da fala, é necessário impor-lhe princípios de controle vindos de fora e
de dentro do discurso.

25
Unidade B
Elementos da noção arqueológica
de discurso

Figura 19 - Lição de anatomia do Dr. Tulp. Rembrandt H. van Rijn. 1632.


Do enunciado à função enunciativa Capítulo 05
5 Do enunciado à função
enunciativa
Apresentar a construção do conceito de discurso e de formação discursiva
desenvolvida por Michel Foucault em A arqueologia do saber.

Estudamos, na Unidade A, como a noção de discurso se constrói


em Michel Foucault. Partimos da leitura da introdução da aula inaugu-
ral A ordem do discurso e examinamos com que intuito Foucault focali-
za o indivíduo falante hesitando a se pronunciar. Supomos que o autor
pretendeu expor a fala em ato como lugar concreto em que intervém a
ordem discursiva constituindo ao mesmo tempo o sujeito e o discurso.
Ficou entendido que o discurso é ordem que atravessa o falante, deter-
minando, em sua fala, o que e como deve ser dito. O discurso é ordem
que se traduz em práticas de controle. Em síntese, vimos que o referen-
cial para o conceito de discurso nessa conferência é a fala definida como
evento aleatório de enunciação.

A leitura dos primeiros parágrafos de A ordem do discurso tem a ver


com o que já havíamos apresentado em nossas primeiras conversas: para
analisar e compreender como o discurso se faz, é preciso levar em conta
a fala e nela os homens falando. Por isso, se você bem se recorda, condu-
zimos a leitura de A ordem do discurso focalizando a cena de um indiví-
duo recusando-se não simplesmente a falar, mas a falar submetendo-se
à ordem do discurso. Era como se ele, sendo forçado a ser aquele que se
enuncia como sujeito do saber em uma aula inaugural, tivesse que ocupar
uma posição de discurso, assim como um piloto levado a uma decolagem
de emergência ou a um pouso forçado sob o risco de não ser reconhecido
como sujeito na posição atribuída a ele por uma sociedade de discurso.

Como é que o indivíduo pode não resistir a essa complexa maneira


de fazê-lo entrar na ordem do discurso? Como é que de repente ele se
vê enredado em regras anônimas de proferimento de enunciados e ain-
da por cima tendo que responder por aquilo que diz exatamente como
prescreve a formação discursiva em que se inscreve seu dizer?

29
Análise do Discurso

Essa questão já tinha sido introduzida por Michel Foucault, antes


de ele proferir sua conferência de posse no Collège de France. Foi quando
desenvolveu, de modo mais programático, o conceito de discurso. Em
A arqueologia do saber, publicado em 1969, logo depois de haver sido
lançado sua série de obras arqueológicas As palavras e as coisas (1966),
Nascimento da clínica (1963) e História da loucura (1961), a construção
do conceito de discurso tem outro ponto de partida: o enunciado em
sua materialidade de coisa dita ou escrita.

Você deve estar perguntando: por que então não começamos por
este livro, A arqueologia do saber? De fato, seria o caminho normal, se
quiséssemos adotar um procedimento cronológico de levantamento
dessa noção nos textos de Foucault. Mas existe explicação para esta es-
tratégia didática de expor a concepção foucaultiana de discurso come-
çando pela escrita de sua aula inaugural: tem a ver com o enfoque que
estamos empregando nesta disciplina. Você já deve estar percebendo
que queremos colar a noção de sujeito à noção de discurso mostrando
que a discursividade se constitui ao mesmo tempo que o sujeito. Lem-
bre-se da primeira frase citando Orlandi (2003, p. 15), que abriu a uni-
dade anterior: “A Análise de Discurso se interessa por homens falando”.
A essa se liga o postulado de Michel Pêcheux: “Não há discurso sem
sujeito” (PÊCHEUX, 1990). Também Foucault disse repetidas vezes que
o discurso interessava a ele pelo fato de que alguém disse alguma coisa.

30
O correlato do enunciado Capítulo 06
6 O correlato do enunciado
Só que para chegar ao conceito de discurso do qual deve derivar a
noção de formação discursiva, em A arqueologia do saber, Foucault inicia
pondo em questão a forma da unidade elementar do discurso, ou seja,
do enunciado. Embora tendo sempre como pressuposto o fato de que há
sempre alguém sustentando materialmente a possibilidade do dizer, o
pensador problematiza a abordagem do dizer pela forma com que apare-
ce, seja no plano escrito ou oral. Essa abordagem não pode ser a mesma
que adota em Lógica, Semântica Formal ou Pragmática na Linguística.

Para substituir o termo frase ou proposição pelo de enunciando, é


que, nos primeiros capítulos do A arqueologia do saber, Foucault gastou
um tempo demonstrando que não há uma relação direta entre o enun-
ciado proferido e aquilo que ele diz, bem como que a origem do dizer
não está na intenção de um sujeito prévia e psicologicamente concebido.
A relação entre o enunciado e aquilo que se diz nele vem de outro lugar
chamado o seu correlato, o domínio ou a condição de possibilidade do
dizer e do sujeito que diz.

A correspondência entre enunciado e um domínio possível de exis-


tência de objetos ou coisas a saber leva ao conceito de função enuncia-
tiva, isto é, à relação de enunciado que descreve a posição que o sujeito
tem que assumir para ser o sujeito do que diz. É no exercício da função
enunciativa que se localiza a formação discursiva na qual o indivíduo se
constitui como sujeito de discurso.

Dito ainda em outros termos, a relação entre o enunciado e seu


correlato, domínio de condições de possibilidade, leva ou constrói a
função enunciativa ou função de existência, ou seja, é do enunciado
correlacionado a certas leis ou condições de possibilidade que se chega
à definição de discurso como o ato que faz existir com ele aquele de
que fala e aquilo de que se fala.

Exercitemos o entendimento dessa conceituação a partir de uma


singular narrativa cinematográfica. Trata-se do filme escrito e dirigido

31
Análise do Discurso

pelo cineasta britânico Derek Jarman, Blue. Nele, há a exposição do es-


pectador a uma tela em azul. Atrás dela se escuta uma voz emitindo
palavras em inglês, que podem ser exibidas pelas legendas expostas na
língua original ou traduzidas para o português ou para o francês. A es-
tranheza está na espera por imagens e cenas que nunca aparecem. De-
pois de algum tempo, o espectador conclui que só pode acompanhar
o que se passa no filme concentrando-se na sequência de palavras que
se sucedem ininterruptamente por sobre o plano de fundo azul. E, se
quiser captar algum conteúdo, tem de fazer alguma relação entre a for-
mulação escrita ou falada e aquilo que é dito.
Figura 20 – Derek Jarman.

Blue - Derek Jarman

You say to the boy open your eyes


When he opens his eyes and sees the light 
 You make him cry out. Saying 
 O Blue come forth 
 O Blue arise 
 O Blue ascend 
 O Blue come in 

Assim começa o filme Blue: imagem sempre estática em fundo azul,


a voz humana em off, trilha musical, ruídos diversos e a opção de acom-
panhar a voz com ou sem a legenda em inglês ou português.

Em que sentido a ausência de imagens que aparece acompanhada


de letras e sons pode ter a ver com o que diz Foucault com respeito à
relação entre o enunciado e aquilo que ele diz? O cuidado é de a gente
efetuar uma análise sem sair do terreno do conceito de função enuncia-
tiva, aproveitando-se do efeito que tem sobre nós as imagens do filme
de Derek Jarman. Não é o caso de substituir o texto de Foucault pelo do
filme. A linguagem poética de Blue vem a calhar como chance de fazer
passar o conceito sem transformá-lo num mero exercício acadêmico.

32
O correlato do enunciado Capítulo 06
Vejamos como fica essa tentativa de usar a experiência de se expor
à estranheza de um filme para vivenciar e compreender o que Foucault
diz a respeito de a relação entre o enunciado e aquilo que ele enuncia
estar em seu correlato, alguma coisa outra que nada tem a ver com o
que se possa a ele associar de modo imediato. A pretensão é mostrar
que o correlato do enunciado, conforme Foucault, não está na busca
do referente daquelas frases, sejam elas percebidas na forma escrita em
português ou na forma falada em inglês pela voz over.

A voz over (voice over, em inglês) acontece no cinema toda vez que
o narrador conta ou descreve uma situação em que ele não está em
cena. Diferentemente da voz off (voice off, em inglês), em que não
se vê a personagem que está em cena, mas se escuta sua voz vindo
fora do campo de visão do espectador. Imaginemos uma cena em
que vemos uma mulher acabando de se arrumar para sair e escu-
tamos apenas a voz do marido gritando, lá de fora da casa, que já
estão atrasados.

Ao longo do filme sempre alguém fala. Mas, na perspectiva de Mi-


chel Foucault, o correlato do que é dito nada tem a ver com quem fala,
nem com a situação e o tempo imediato em que alguém fala. Tudo isso é
válido quando se busca vencer a perturbação que nos causa a incompre-
ensão, através de alguma estratégia de interpretação de ordem semânti-
ca, lógica ou gramatical. Mas não vale quando se tenta buscar o que se
constitui como condição de possibilidade do sentido procurado, antes e
por trás de qualquer resposta.

Retomando o que lemos em A arqueologia do saber, o correlato do


enunciado está numa contextualização mais ampla e de nível mais ra-
dical, isto é, é o domínio de leis ou condições de possibilidade que dá
existência ou torna possível que algo seja dito a partir do aparecimento de
uma fala ou escrita, ou seja, a partir do proferimento oral ou da emissão
escrita de uma sequência qualquer de signos. Na experiência que fazemos

33
Análise do Discurso

ao ver Blue, a palavra-título do filme, acompanhada pela constante tela


vazia em azul, pode ser a formulação (acontecimento) de uma doença a
partir da qual toda a narrativa se encadeia. Isso quer dizer que a sequência
sonora que se diz ao longo do filme só faz sentido graças às condições de
existência dadas em uma história em certo tempo e lugar.

Mas as alternativas de encontro de correlatos se multiplicam quando


pela sinopse ficamos sabendo que Derek Jarman, além de cineasta, foi pin-
tor e poeta, e filmou Blue quando sua saúde já estava bastante debilitada
em decorrência da AIDS. Veja como esses dados podem fazer avançar nos-
so exercício analítico. Essas informações não são diretamente o correlato
das formulações compostas de uma tela azul e uma sequ-
ência de letreiros, acompanhadas de uma voz e de música
constante. O que permite a correlação é a existência de
um domínio em que esse conjunto de informações são
possíveis. Tanto é assim que o correlato pode vir do domí-
nio – jornalístico ou biográfico – em que se encontram as
regras que tornam possíveis que o filme seja o enunciado
de algo, por exemplo, o enunciado das ideias e reflexões
pessoais do cineasta a respeito da arte, da poesia, da me-
mória, do tempo e da morte. Da mesma forma, se con-
siderarmos, no campo das artes plásticas, a existência de
Figura 21 – Yves Klein.
um pintor francês chamado Yves Klein, o mesmo filme
pode ser analisado como o enunciado da composição monocromática que
se pode aplicar à arte da pintura, assim como à tela cinematográfica.

Este renomado artista é famoso por seu azul IKB (International Klein Blue)
e suas obras monocromáticas, mas seu trabalho ainda está por ser desco-
berto: Performances com a arte conceitual, projetos arquitetônicos, obras
sonoras, coreografia, sets de filmagem, as principais obras escritas [...] Yves
Klein pensa e age sem limites, expressando sua contemplação eferves-
cente sobre o papel do artista, cuja razão de ser não pode ser reduzida
ao simples ato de “produzir”, mas abrange todos os campos de expressão.

(Disponível em: <http://www.culturecuts.net/shortlist/2006/12/yves-


-klein.html>. Acesso em: 3 abril. 2011).

34
O correlato do enunciado Capítulo 06
Veja então que a análise da função enunciativa aqui é proposta a
partir de quatro perguntas básicas:

a) Qual a forma de expressão usada no filme?

b) Quem fala no filme?

c) Do que se fala no filme?

d) A que contextos e situações a voz conduz o espectador?

Essa é a mesma série de perguntas de que parte Foucault para


elaborar seus conceitos de formulação, enunciado e função enuncia-
tiva, o que respectivamente equivaleria a responder sobre a forma
de expressão do enunciado, sobre o que se enuncia e sobre quem é
o sujeito que enuncia. Foucault levanta essas questões de um modo
que não precisa recorrer às operações de relação entre a frase e o seu
sentido, entre a proposição e seu referente ou entre a frase e o sujeito.
Isso porque seu propósito não é interpretar, decodificar conteúdo ou
identificar individualmente o autor do enunciado, mas sim chegar às
correlações e aos domínios associados, que tornam possível relacionar
o enunciado com aquilo que se diz nele.

Por isso, como vimos, não é o caso de deduzir que no filme se fala
o tempo todo do vírus do HIV, nem que o sujeito que enuncia o tempo
todo é um doente de AIDS. Em resumo, para que as formulações do fil-
me façam sentido, é preciso analisá-las em um nível diferente da análise
linguística ou semântica. Elas podem ser associadas quer ao domínio
de um indivíduo acometido pela cegueira, quer ao domínio em que se
pode referir a alguém que faz poesia jogando com a palavra blue.

É importante que fique claro que não tomamos o filme de Derek


Jarman como objeto de interpretação. Nos termos foucaultianos, a ex-
periência de sermos expostos momentaneamente diante de uma tela
vazia nos auxilia a compreender o que é o enunciado como sequência
material de expressão e como função enunciativa.

35
Análise do Discurso

Então é isso. Agora todos sabemos que o enunciado e o seu sujeito


não têm origem no ato de apropriar-se da língua para falar. Não é ape-
nas em um recurso poético como de Derek Jarman em Blue que falamos
no escuro. Se, conforme diz Michel Foucault, é a ordem discursiva que
instaura a posição de sujeito, então o ponto de partida para preencher o
espaço escuro da formulação é correlacionar a que se escuta aqui com
as formuladas antes em outros espaços enunciativos. Daí que o correlato
do enunciado tem uma função fundamental. Quando o indivíduo pro-
fere um enunciado, é como se acionasse interruptores e fizesse iluminar
uma sala escura onde aparece a posição em que está colocado para ser
o sujeito. Tudo depende do interruptor acionado, isto é, da correlação
que se opera; cada operação tem sua própria potência ou alcance para
distribuir luz indicando de que se fala, de que lugar de sujeito se trata.
Todos esses elementos são constitutivos da função enunciativa.

Faltou ainda verificar como se define a função enunciativa a partir


da pergunta – quem fala. Observem que continuamos, desde o início, si-
tuados no ponto de vista da fala. Insistimos em não perder de vista que
em Análise de Discurso o trabalho começa na fala. Só que, diferentemen-
te da tradição interpretativa, não se começa procurando quem fala na fala.

Ao analisar uma frase, um texto, enfim, qualquer formulação, mais


do que saber quem falou ou escreveu, pergunta-se como se produz o
sujeito que enuncia; em termos mais precisamente foucaultianos, per-
gunta-se pelo modo de operar a posição que ocupa o indivíduo falan-
te para ser o sujeito do enunciado ou do discurso. De cara, temos que
considerar que o sujeito do enunciado não é o elemento gramatical que
ocupa uma posição sintática na frase. A diferença, por exemplo, entre
“Pedro chegou” e “Eu cheguei” não é que nessa segunda frase o sujeito
do enunciado coincide com o da enunciação, coincidência que não se
verifica no primeiro exemplo. Como veremos adiante, há dois exemplos
de operações indicando que a relação entre o enunciado e aquele que diz
está na posição a ser ocupada pelo indivíduo falante. Por isso, a diferen-
ça entre dizer em primeira ou terceira pessoa está no lugar a partir do
qual o falante se relaciona com o que diz.

36
O correlato do enunciado Capítulo 06
Deduzimos então que o sujeito do enunciado não é o indivíduo
que usou sua voz ou suas mãos para produzir uma sentença ou um
texto, mesmo se a formulação está composta em primeira pessoa.
Mesmo porque, diz Foucault (1996, p. 105), “[...] não há signos sem
alguém para proferi-los ou, de qualquer forma, sem alguma coisa
como elemento emissor.” Essa dissociação entre o emissor de signos
e o que Foucault propõe como sujeito de enunciado é do mesmo tipo
da diferença entre o cantor e a personagem que interpreta ao can-
tar. Chico Buarque, ao compor e interpretar canções no feminino,
é o exemplo entre o indivíduo que emite os versos e a melodia com
sua própria voz e o sujeito do enunciado da canção. Foi esse mesmo
compositor que, na sua canção intitulada Olhos nos olhos, colocou
sua voz no enunciado “Quantos homens me amaram/Bem mais e
melhor que você”; no entanto, o “eu” dessa formulação linguística
não coincide com o indivíduo que profere a frase. Exemplos como
esses cabem na afirmação de que: “[...] ainda que o autor seja o mes-
mo [...] não implicam a mesma relação entre o sujeito e o que ele está
enunciando.” (FOUCAULT, 1996, p. 106).

Entende-se então que a busca do sujeito, nos termos discursivos,


demanda uma operação outra que consiste em determinar, como diz
Michel Foucault, qual a relação entre o enunciado e aquele que pro-
duz. Essa relação se faz mediante a determinação qualquer que seja
a estrutura da formulação. Nesse sentido, o sujeito do enunciado, ou
aquele a quem se atribui sua escrita ou proferimento oral, não passa
de uma relação específica que define o sujeito como posição, lugar ou
função no exterior do enunciado. Daí que o sujeito não é o autor físico,
nem a intenção ao produzir um enunciado. O sujeito do enunciado, ou
o que responde pela sua emissão e aparecimento, é o lugar que ocupa
o indivíduo ao enunciar. Quando Foucault diz se tratar de lugar vazio,
justamente porque é resultado de uma operação que independe do autor
concreto que nesse mesmo lugar vai exercer a função de ser o sujeito.

Esse lugar é o produto da relação entre uma formulação linguística


e o quadro em que elas aparecem. As formulações podem ou não serem
apresentadas na mesma estrutura. Por isso, na frase “Chove”, o lugar ou

37
Análise do Discurso

a posição de sujeito varia conforme a formulação: é dita como notícia


meteorológica ou como o verso de uma canção popular. Em cada uma
dessas alternativas, o sujeito dela será o lugar que pode ser ocupado por
qualquer um para dizer o enunciado. Ou seja, o mesmo indivíduo pode
emitir esse enunciado, mas não será o mesmo sujeito conforme o lugar
associado a essa formulação caracterizada como enunciado.

Estamos falando enfim do ato de enunciar que molda o sujeito como


lugar ou posição, o que pressupõe uma operação realizada pelo indivíduo
que emite o enunciado, mas que não vem dele, não é ele que estabele-
ce. Para marcar o lugar que lhe corresponde como sujeito do enunciado,
aquele que fala ou escreve deve então realizar uma operação. Que ope-
ração é esta? Em vez de retomar o exemplo do Foucault, tomemos outro
mais simples. Alguém pode escolher uma ou outra forma seguintes:

1) Constato que o país cresceu.

2) Constata-se que o país cresceu.

O que se observa no corpo de cada uma dessas duas frases são dife-
rentes operações de produção de lugar ou posição de sujeito. Em ambas
as formulações, o sujeito enunciante é o resultado da operação que o
define como diferentes lugares ou posições de sujeito. Contudo, a dife-
rença entre as duas conduz ao traço definidor da operação que gera o
sujeito do enunciado como lugar.

Na primeira, o falante expõe que aquele que realiza a constatação é


o mesmo que a enuncia. Já na segunda, o modo de formular mostra que
o sujeito que apresenta a constatação não coincide com o que a realiza,
isto é, ele toma como pressuposto que existe fora de si as condições de
possibilidades estabelecidas anteriormente ao instante de sua enuncia-
ção. Veja que não importa saber quem é o indivíduo que está emitindo
uma ou outra frase, mas sim a operação que está realizando, a que dese-
nha no modo de construir a formulação linguística o lugar que ocupa o
mesmo falante para ser o sujeito do enunciado ou do discurso.

38
O correlato do enunciado Capítulo 06
Podemos perguntar se o indivíduo que realiza operações de mar-
cação de sujeito desse tipo tem consciência do que opera. A resposta é
não. Ela decorre do que a análise foucaultiana atenta sobre “a posição
específica do sujeito enunciante”: “[...] a posição do sujeito está ligada
à existência de uma operação ao mesmo tempo determinada e atual.”
(FOUCAULT, 1986, p. 108). Isso quer dizer que, mesmo se dando conta,
as operações que ele deve efetuar em seu dizer não têm origem no sujei-
to enunciante: o sujeito que enuncia apenas inclina-se às leis do dizer, já
dadas antes dele, como condição para o sujeito do que diz. Isso significa
para Foucault (1996, p.108) que “[...] enquanto sujeito falante ele aceita
o enunciado como sua própria lei.”

É claro que se trata de operações que se apoiam e se realizam pela


língua e pela ação do indivíduo falante. Só que essas operações não
se definem nem ao nível de estruturas linguísticas, nem ao nível da
consciência individual. Essas operações remetem ao lugar em que se
determina, independentemente de quem profere o enunciado, a posi-
ção que pode e deve ocupar o indivíduo para ser o sujeito. Em outros
termos, é justamente pelo fato de essa função já estar determinada an-
tes, é que a operação, no plano linguístico e no plano do ato de enun-
ciação, funciona abrindo nela diferentes possibilidades de geração de
posição de sujeito.

39
Unidade C
Do discurso como objeto de
análise ao modo da escola francesa

Figura 22 - Parangolés. Hélio Oiticica. 1964. Foto da


coleção de César e Claudio Oiticica.
Da fala ao discurso: realções de força e sentido Capítulo 07
7 Da fala ao discurso: relações
de força e de sentido
Apresentar a concepção de discurso proposta por Michel Pêcheux e Eni
Orlandi no quadro da escola francesa de Análise de Discurso.

Começamos essa disciplina apresentando a conjuntura intelectual


em que a fala e o indivíduo falante são deixados de lado na abordagem
da língua como objeto de saber da linguística saussuriana. Destacamos
a objeção que é feita tanto pela psicanálise lacaniana quanto pela escola
francesa de Análise de Discurso. Ambas se interessam pela fala e pelo
falante porque esses são o ponto de partida empírico para que, cada
uma a seu modo – a Psicanálise e a Análise de Discurso –, investiguem
o processo de constituição de sujeito. Nesse contexto, fizemos uma bre-
ve passagem pela abordagem foucaultiana. Primeiro, mapeando como,
ao desenvolver os elementos constitutivos da ordem do discurso, Fou-
cault parte do evento da fala perfomatizando como o falar por si só
carece da ordem discursiva para que haja sujeito
e sentido. Em seguida, em A arqueologia do sa-
ber nos detivemos no capítulo “A função enun-
ciativa” justamente com o objetivo de reter a
noção de sujeito como posição. Vimos que, sem
entrar no terreno da Linguística, da Psicanálise
e da Lógica, Foucault retoma a fala que pode se
realizar de modo escrito ou oral. Nessa aborda-
gem, a estratégia de Foucault é chamar qualquer
emissão linguística de formulação e propor so-
bre ela um tipo de análise que conduz ao con-
ceito de enunciado. Em A ordem do discurso, o
Figura 23 – Divã de S. Freud.
discurso é mostrado como uma força – prática
social, histórica e anônima – que age sobre a fala e sobre o sujeito que fala.

Em A ordem do discurso, a fala não é definida, nem descrita em ter-


mos precisos. Mas Foucault dá indicações de que ela é feita de frases, de
palavras, de arranjos de palavras. Nessa mesma conferência, o pensador

43
Análise do Discurso

francês nos conduz a concluir que a fala e o indivíduo falante são con-
trapostos ao discurso. O discurso é aludido como a voz que fala antes que
fale o falante. Mas quem se refere ou faz apelo a essa voz que está por trás
da palavra é o próprio indivíduo falante no momento em que é convocado
pela voz a tomar a palavra.

Que natureza tem a voz do indivíduo falante? Ela não é da natu-


reza da fala tomada como unidade linguística articulada segundo um
sistema formal ou gramatical determinado. À medida que hesita e se
recusa a entrar na ordem arriscada do discurso, essa voz é simples-
mente ruído, som desarticulado.

Só que não é em relação a um sistema linguístico de-


terminado que a voz não articulada se torna voz articulada.
Para mostrar bem o que é o discurso em ato, Foucault precisa
desconsiderar o som que se torna som linguístico e conside-
rar o som que constitui sujeito e sentido pela intercessão da
ordem do discurso. Nisso consiste a dimensão aleatória da
fala. A cadeia falada irrompe indiferente à interpelação de
Figura 24 – Noam Chomsky.
uma ordem que caracteriza o discurso, o que, nos termos de
Michel Pêcheux, é provedor de sentido e de sujeito, e, para Foucault, é
condição de possibilidade do saber e do sujeito que sabe.

Não é que qualquer ruído ou grunhido vale para a ordem discur-


siva. É que o som enquanto som linguisticamente articulado, enquanto
fala dotada de sentido já é um efeito da intervenção da ordem do discur-
so, isto é, já é acontecimento discursivo.

Em resumo, não há a língua com suas regras de um lado provendo


as condições para a formulação de um enunciado e de outro o discurso
que atravessa fazendo sentido. O começo de tudo isso – a diferença entre
som articulado e não articulado, fala e não fala, sujeito e não sujeito – é
o próprio discurso. Foucault performatiza apenas esse começo que en-
quadra toda fala e todo indivíduo falante, destacando no discurso o seu
modo de ser como prática social de caráter institucional. Como já o fizera
no livro A arqueologia do saber ele deixa de lado a dimensão linguística

44
Da fala ao discurso: realções de força e sentido Capítulo 07
do discurso, porque justamente não se aventura a elaborar outra noção
de língua e linguagem que se contraponha ao objeto formal e fechado,
tanto da linguística chomskyana quanto da linguística saussuriana:

Diz respeito à Teoria


[...] o que se descreve como “sistemas de formação” não constitui a eta- Gerativa, proposta por
pa final dos discursos, se por este termo entendermos os textos (ou as Noam Chomsky
falas), tais como se apresentam com seu vocabulário, sintaxe, estrutura
lógica, ou organização retórica. A análise permanece aquém desse nível
manifesto, que é o da construção acabada: [...] se ela estuda as modali-
dades de enunciação, não põe em questão nem o estilo, nem o encade-
amento das frases, em suma, deixa em pontilhado a disposição final do
texto. (FOUCAULT, 1986, p. 83-84).

Nada a ver com a dimensão linguística, atravessada pela história e


pela ideologia, que, necessariamente, está pressuposta em outra noção
de discurso. Isso explica porque o autor inspirador e balizador da Aná-
lise de Discurso que Eni Orlandi propõe não é Michel Foucault, e sim
Michel Pêcheux. A partir desse autor, Orlandi marca o lugar teórico em
que a linguagem é concebida como a forma material do discurso, e este
como a forma material da ideologia. O vínculo entre língua e ideologia
no plano do discurso é dado pela noção de inconsciente, conceito posto
pela psicanálise lacaniana e retomado por Althusser e Pêcheux como
dispositivo da Análise de Discurso.

Nesse ponto, já estamos avançando agora especificamente em di-


reção ao campo da escola francesa de Análise de Discurso – a corrente
analítica proposta por Michel Pêcheux, na França, e Eni Orlandi, no
Brasil. É importante não perder o foco sobre o sujeito que se constitui
na fala através do atravessamento de um processo discursivo, porque
o discurso e o sujeito são problemas comuns aos pensadores franceses
Foucault e Pêcheux. Eni Orlandi (2004, p. 67) observa que entre Mi-
chel Foucault e Michel Pêcheux há um ponto de contato que se dá atra-
vés do discurso. Só que ambos adotam diferentes pontos de vista para
definir discurso. Preocupado com a produção dos saberes no universo
das ciências humanas, Foucault (1959, p. 153) diz: “[...] chamaremos
discurso um conjunto de enunciados enquanto derivam da mesma for-

45
Análise do Discurso

mação discursiva.” Já para Pêcheux, na perspectiva do intelectual ligado


diretamente nas lutas sociais, o discurso é “efeito de sentido entre locu-
tores”. Duas expressões, conforme salienta Orlandi (2004), singularizam
o conceito de discurso para cada um dos autores; a noção de enunciado
para Foucault, com seus constituintes fundamentais conforme vimos
antes, e a noção de efeito de sentido para Michel Pêcheux.

É assim que na escola francesa de Análise de Discurso o problema


do sujeito, nunca antes considerado pela Linguística, aparece necessa-
riamente ligado aos conceitos de língua e ideologia. Estabelece-se, nes-
sa corrente, a ideia de sujeito como posição, porém, com um estatuto
diverso daquele proposto por Foucault em A arqueologia do saber, ou
seja, o de focar o discurso como materialidade específica da ideologia e
a língua como materialidade do discurso. Vemos aí os pontos principais
que devem fazer a diferença de uma Análise de Discurso filiada a Michel
Pêcheux. A diferença se explica pelo modo como qual cada um escolhe
sobre o que fazer o seu zoom em um campo de questões históricas e so-
ciais que leva em conta a linguagem. Foucault quer compreender como
se escala o jogo de constituição de objetos e de sujeitos de saber. Pêcheux,
por sua vez, quer entender como as relações sociais de dominação e de
transformação se estruturam mediante processos discursivos que se dão
tanto dentro quanto fora das instituições políticas e acadêmicas.

Aqui é que achamos oportuno e importante inserir outra conjuntu-


ra teórica: teoria materialista da ideologia de Louis Althusser e aborda-
gem lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem. Com
esses ingredientes, Michel Pêcheux encontra um jeito de introduzir a
noção de ideologia como um mecanismo de constituição do sujeito no
discurso. Foucault jamais quis recorrer ao conceito de ideologia, por
razões muito particulares. Mas a maneira com que Pêcheux recorre ao
conceito leva a compreender que o que torna possível que o sujeito fale
como se fosse a origem de si e do sentido do que diz é o esquecimento.
É que, ao dizer, ele esquece aquilo que o falante na ordem do discurso,
pela voz de Michel Foucault, não consegue esquecer, isto é, o fato de que
ele mesmo e o sentido do que diz vêm de uma ordem que fala antes e o
interpela como uma intervenção judicial. Sobre tal esquecimento como
estruturante do sentido e do sujeito, conversaremos adiante.
46
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
8 Análise de discurso: artefato
de leitura
Temos agora a conjuntura e o quadro intelectual que nos permitem
definir a que vem a escola francesa de Análise de Discurso. Para início
de conversa, essa escola põe em questão as noções de linguagem e de
sentido. Como assim? Na abordagem discursiva, a linguagem não é sim-
ples meio de transmissão de sentido. Dois aspectos se ressaltam aqui:

a) a linguagem é um processo inscrito na história e é por essa ins-


crição que ela faz sentido;

b) o sentido não é uma entidade isolada e independente a ser


transmitido pela linguagem, o sentido é relação a, isto é, efeito
do contato ideologicamente atravessado entre um dizer aqui e
outro lá (ORLANDI, 2003, p. 25).

A ideia de que o sentido é efeito de relação – relação a – lembra o


que vimos em A arqueologia do saber, quando Foucault lança o ponto de
vista da relação de enunciados. Só que Orlandi, seguindo Pêcheux, em
vez de falar em relação de enunciados, fala em relação de sentidos, o
que corresponde à diferença que já apontamos antes entre Michel Fou-
cault e Michel Pêcheux, em que o primeiro vê enunciado e o segundo vê
efeito de sentido. O mais importante, contudo, não é se deter só a dife-
rentes objetos de análise, mas sobretudo a diferença da natureza da rela-
ção que Orlandi enfatiza como sendo de natureza ideológica e pertinente
à ordem das relações de força. Vamos voltar a esse ponto mais tarde.

Depois de colocar em suspenso o problema da linguagem e do


sentido, Orlandi mostra como a conjuntura teórica referida por ela nos
anos de 1960 leva a problematizar a noção de leitura. Isso acontece a
partir de três regiões teóricas:

Teoria da sintaxe e da enunciação – o modo de pôr as palavras em


ordem em formulações linguísticas de qualquer dimensão (frase, texto,

47
Análise do Discurso

etc.) é resultado do ato de enunciar, ato em que o vínculo entre o sujeito


falante e a língua se dá pela história;

Teoria da ideologia – âmbito em que o falante se converte de in-


divíduo em sujeito, indicando de que modo se constitui a posição que
ele ocupa;

Teoria do discurso – relativo aos processos de constituição do sen-


tido, ou de como objetos a serem lidos/interpretados produzem sentido.

Na medida em que o sujeito é ao mesmo tempo o efeito e o suporte


dessa operação, esses três lugares teóricos pressupõem o atravessamento
de uma dada teoria do sujeito de natureza psicanalítica, ou seja, dos mo-
dos de produção de sentido que se efetuam à maneira do inconsciente.
Assim é que a articulação dessas três regiões teóricas compõe o campo
de discurso e permite colocar em questão uma ideia tradicional de leitu-
ra, isto é, a leitura como relação direta e imediata entre o texto e o leitor.

Acontece que “[...] toda leitura precisa de um artefato teórico para


que se efetue.” (ORLANDI, 2003, p. 25). Quando Althusser escreveu so-
bre Marx, não é deste autor, mas da leitura dele que se tratava. A leitura
que Althusser fez de Marx empregou o artefato teórico proposto pela
psicanálise de Freud. Esta, por sua vez, não é um texto ou objeto primei-
ro que traz um sentido em si. Freud é um campo de relações de sentido
operado pela leitura que Lacan faz da psicanálise freudiana. Tudo isso
tem a ver com certa concepção de leitura proposta por Roland Barthes,
isto é, um texto ou qualquer objeto de linguagem ou simbólico sempre
significa partir de escrituras operadas por procedimentos de leitura, a
mesma que, segundo Orlandi (2003), “[...] mostra-se como não trans-
parente [...]”, sendo ela própria, como é o caso da leitura que Althusser
faz de Freud, resultado da articulação de dispositivos teóricos, no caso,
o dispositivo da teoria saussuriana do linguístico articulado com o da
teoria freudiana do inconsciente.

Em resumo, isso nos remete mais uma vez ao Foucault de A arque-


ologia do saber, quando diz que enunciado não é uma unidade isolada,

48
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
mas resultado da relação com outros enunciados que a eles se ligam,
formando um domínio correlato ou campo associado. Mas a remissão
a Foucault para aqui, nessa ideia de que sentido e enunciado são efeitos
de relação. Resta agora saber como a escola francesa de Análise de Dis-
curso descreve tais relações, demonstrando como elas se dão a partir de
dispositivos ou artefatos conceituais e práticos.

Assim, outro conceito que é posto em suspenso é o de interpreta-


ção. É certo que ler é interpretar. Mas não do jeito que se faz em Her-
menêutica, em que a interpretação não passa do ato de ler atribuindo
sentido. De modo que leitura e interpretação são duas noções que fun-
cionam solidariamente, e a primeira noção, a de ler, remete à segunda,
o gesto de interpretar. Orlandi (2003) propõe aqui uma concepção de
Análise de Discurso que visa a analisar os gestos de interpretação con-
siderados como “atos no domínio do simbólico”. O que quer dizer isso?
Certamente Orlandi (2003) refere-se a atos que colocam em relações
múltiplos jogos e possibilidades de sentido. O grau zero do simbólico ou
das relações possíveis de sentido é o real do sentido, ou seja, o ponto em
que se cai no não sentido. Esse é o lugar que, conforme Orlandi, a Aná-
lise de Discurso intervém, não para impor sentidos possíveis, mas para
fazer compreender como eles se produzem. Isso explica como e porque

A Análise de Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus li-


mites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação.
Também não procura um sentido verdadeiro através de uma chave de
interpretação. Não há esta chave, há método, há construção de um dis-
positivo teórico. Não há verdade atrás do texto. Há gestos de interpre-
tação que o constituem e que o analista, com seu dispositivo deve ser
capaz de compreender.(ORLANDI, 2003, p. 26).

Os gestos de interpretação de que fala Orlandi nada mais são do


que a colocação do objeto a ser lido em uma rede de relações, porque
os efeitos de sentido ocorrentes em um texto não se encontram ali pré-
via e naturalmente dados – nem como o inteligível, advindo do conhe-
cimento da língua em que se encontra uma formulação, nem como o
interpretável, advindo de um estoque de sentidos, dos quais se escolhe

49
Análise do Discurso

o contextualmente mais adequado para interpretar um texto. Nesse sen-


tido, cabe lembrar o que diz Jean-Luc Nancy (1982, p. 78) quando se
refere ao trabalho de interpretação feito pelos filósofos: “Ele precisa de
uma técnica que lhe permite controlar o incontrolável, que apare a voz
do texto sobre um sentido tão claro quanto possível.”

Ao contrário, no campo da escola francesa de Análise de Discurso


o analista não visa a um controle da interpretação. Nesse campo, o tra-
balho de interpretação relaciona o que lê aos sentidos pré-construídos,
ideologicamente pré-fixados. O dispositivo analítico provê o intérprete
de uma técnica que consiste não a trabalhar a língua na relação com
ela mesma, mas em relação ao quadro exterior em que tenta driblar a
imprevisibilidade da língua e da história pela mediação da memória
discursiva. Trata-se de focar a compreensão, isto é, o funcionamento
da interpretação como gesto que põe sentidos em relação e tira dessas
relações os efeitos que explicam de que modo, ao interpretar, o leitor já
está tomado por um sentido.

Na visão de Orlandi (2003), há algo na própria organização textual


que separa os atos ou gestos de interpretação. O próprio da Análise de
Discurso é mostrar a maneira com que isso acontece. Tudo gira em tor-
no da leitura como prática, prática de relação que pressupõe o contato
imbricado entre sujeito e sentido, e de como esse contato pressupõe rela-
ção de sujeito a sujeito: significar é sempre significar para, em um movi-
mento que implica o próprio sujeito que se efetiva no ato de interpretar.

Dessa forma, é que se resume o dispositivo teórico da Análise de


Discurso. Ao mesmo tempo em que se apresenta como prática que põe
em questão a linguagem, a leitura, a interpretação, a Análise de Discur-
so se provê de artefatos conceituais através dos quais o analista marca a
responsabilidade de sua tarefa. Ele delimita parâmetros teóricos a partir
dos quais lança seu trabalho de analista. Mas a responsabilidade do ana-
lista não está na armadura do dispositivo teórico: “[...] o que é de sua
responsabilidade é a formulação da questão que desencadeia a análise.”
(ORLANDI, 2003).

50
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
Decorre daí que, se retomarmos o que vimos há pouco sobre a con-
juntura intelectual que deflagra um novo modo de conceber a leitura,
concluímos que ler é interpretar. Então, o mais importante do disposi-
tivo analítico é levantar questão. Dito de outro modo, sem questão não
há análise, isto é, o ato de compreender como determinado sentido se
constrói só ocorre a partir da colocação de uma pergunta.

Tomemos o exemplo da última campanha Bombril, que foi veicula-


da na televisão nos meses março e abril de 2011. Seu mote, para vender
produtos de limpeza da marca, era a produção de textos publicitários
que prestassem homenagem à mulher moderna. Assim, a campanha foi
composta de uma série de vídeos em que aparecem mulheres, interpre-
tadas por conhecidas atrizes, descrevendo situações em que a fragilidade
dos homens está diretamente ligada à sua incapacidade de administrar
um serviço de higiene doméstica. No final de cada vídeo, o depoimento
sempre termina com a seguinte frase:

“Bombril, os produtos que evoluíram com


as mulheres.”

Temos, nessa campanha publicitária, o


exemplo de exposição de um objeto simbólico,
no caso, uma série de vídeos: textos estrutura-
dos por signos verbais e não verbais. O que cha-
ma atenção aí é o encadeamento das palavras na
fala, aliado à entonação e à postura corporal da
personagem feminina. Todos esses elementos Figura 25 – Peça publicitária.

estão organizados de modo a fazer funcionar certos gestos de interpre-


tação; ou seja, o ato de leitura que se pressupõe para essa propaganda se A declaração está disponí-
realizar através da relação dos dizeres presentes em cada vídeo com outros vel em <http://colunistas.
ig.com.br/consumoepro-
dizeres verificáveis na história. Assim, o sentido do enunciado-emblema de paganda/2011/03/10/
cada vídeo – “Bombril, os produtos de limpeza que evoluíram com as mu- bombril-lanca-mulheres-
-evoluidas/?doing_wp_
lheres” – está ligado à forma com que as diferenças entre homem e mulher cron>. Acesso em 19 de
tornam-se históricas mediante a expressão guerra dos sexos. A declaração abril de 2011.

do diretor de marketing da Bombril marca precisamente o referencial de


sentido a partir do qual todo destinatário deve ler esta propaganda: “Que-

51
Análise do Discurso

remos colocar a mulher em evidência numa espécie de guerra dos sexos”


(grifo nosso). Essa declaração aponta para o domínio simbólico em que o
leitor deve ser interpelado a fim de que seja feito nele e por ele o sentido e
a posição de sujeito, tanto do lado de quem fala nos vídeos quanto do lado
de quem ouve. Ao escrever essa propaganda da Bombril, o seu redator ou
criador deixou-se tomar por uma entre as várias interpretações disponíveis
na história do dizer da mulher e sobre a mulher.

Isso explica porque o gesto de leitura deve ser, nesse caso e em ou-
tros, um prolongamento do gesto de escritura: o ato de ler, ao produ-
zir sentidos para um texto como o que exemplificamos aqui, recria o
mesmo texto, fazendo com que ele seja remetido, ou não, às mesmas
condições de produção com que foi escrito. Nesse ponto, mais um con-
ceito vem compor o que Orlandi (2003, p. 30) chama de condições de
produção: “[...] elas compreendem fundamentalmente os sujeitos e as
situações.” Trata-se, obviamente, da produção da leitura ou da interpre-
tação como o equivalente à produção do discurso.

Acontece que as condições em que se produz o discurso e, portanto,


a interpretação que o pressupõe não são imediatamente apreensíveis ou
acessadas. As condições de produção, conforme define Orlandi (2003),
resultam do acionamento da memória e aparecem em dois níveis: es-
trito e amplo. Voltemos ao caso da campanha publicitária da Bombril.
A possibilidade de ser lida na direção de sentido em que é formulada
exige determinar quem a produziu, para quem foi produzida e em que
situação é veiculada.

No caso, dizemos que a Bombril, através de uma agência de pro-


paganda, foi quem produziu o texto publicitário a ser transmitido na
forma de vídeo. As mulheres, donas de casa, são o público-alvo para
quem se destina a mesma peça publicitária. Temos assim os elementos
do contexto imediato das condições estritas de produção:

ӲӲ A veiculação da peça nos horários mais assistidos dos canais


abertos da televisão;

52
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
ӲӲ Os agentes mentores da Bombril como sujeitos assinantes da
propaganda.

O momento em que – no mês do Dia Internacional da Mulher – a


Bombril suspende a sua maneira padrão de propagandear seus produtos
e decide usar a campanha para render uma especial homenagem para as
que denomina “mulheres evoluídas”.

Mas as condições estritas ou contexto imediato de produção do


discurso que funciona na textualização dessa propaganda só garantem
seus efeitos de sentido no quadro das condições mais amplas de produ-
ção cujos elementos podem ser os seguintes:

ӲӲ A forma com que a sociedade, em suas instituições jurídica,


política, familiar, significa mulher em relação aos homens;

ӲӲ O modo como a mulher reage ao domínio do masculino lutando


através de acontecimentos que marcam sua luta por posição de
igualdade.

O aparecimento de fatos na história marcando a contraposição de


modalidades de feminismo; um propondo a sobreposição do feminino
sobre o masculino, outro propondo a conquista de direitos iguais sem
inversão e sobreposição de papéis da mulher em relação ao homem.

É possível deduzir que os elementos das condições amplas de produ-


ção do discurso são acessíveis por acontecimentos datados e localizáveis em
arquivos históricos. Só que não por meio de datas e fatos na historiogra-
fia que esse contexto amplo funciona como o referencial da memória do
discurso. Visto dessa maneira, fica parecendo que é tudo uma questão de
intenção, isto é, tudo depende da intenção do sujeito que formula o texto.

De fato, o enunciado que se repete a cada veiculação “Bombril,


os produtos que evoluíram com as mulheres” não tem origem na in-
tenção de um sujeito. Ainda que de forma irônica e provocativa os sen-
tidos que se induzem na propaganda não seriam possíveis não fosse a

53
Análise do Discurso

intervenção de uma memória que fala antes e fora do sujeito que cria
a propaganda e dos leitores e espectadores a quem se destina. Seja para
rir da ironia ali implícita, seja para tomá-la a sério, os sujeitos já se en-
contram tomados por esses mesmos sentidos que, no caso da referida
campanha publicitária da Bombril, podem ser ambiguamente negados
e afirmados. Esse é o papel da memória que dá conta da produção do
discurso que ecoa na base linguística da formulação e da leitura de
qualquer objeto de linguagem.

Pela memória que, silenciosamente intervêm no momento da


enunciação, as palavras, seja qual for o modo com que vêm arran-
jadas sintaticamente e combinadas com signos não verbais, estão já
significadas, justamente porque a língua através da qual são emitidas
só funciona em vínculo com a história. É porque já foram ditas antes,
encarregadas de fazer sentido em contextos outros, que as palavras
ditas aqui ligam-se à memória de seus acontecimentos para fazer sen-
tido no aqui e agora da emergência de um discurso. Assim como o
caso exemplar da faixa “Vote sem medo”, evocado por Eni Orlandi
(2003), também a campanha da Bombril é uma amostra do processo
em que condições imediatas do dizer, em verdade, fazem aparecer o
modo com que condições históricas mais amplas compõem a possibi-
lidade de efeitos de sentido ou de discursos. Há entre o âmbito restrito
e mais amplo do processo discursivo uma espécie de eco em que o
que se diz em certo instante é eco do que está dito lá atrás. O primeiro
designa o plano do intradiscurso, o efeito de sentido a se fazer no aqui
e agora da enunciação; o segundo, o das condições amplas, remete ao
interdiscurso, ou propriamente o da memória definida como modo de
constituição do sentido. Neste plano, define-se mais exatamente o que
pode e deve ser dito. Relacionar semanticamente a evolução de uma li-
nha de produtos de limpeza com a evolução da mulher é algo quem vem
do dizível colocado na memória ou no interdiscurso. Há aí um jogo de
sentidos que advém do encontro entre uma memória (constituição) e
uma atualidade (formulação) (ORLANDI, 2003, p. 33). Apliquemos
esse raciocínio analítico, em primeiro lugar, à atualidade verificável
na formulação de uma homenagem e de uma propaganda de produtos
de limpeza; e, em segundo lugar, à memória ou a constituição do sen-

54
Análise de discurso: artefato de leitura Capítulo 08
tido do feminismo que torna possível a história do confronto ou das
relações homem/mulher e suas consequências tanto no domínio dos
saberes quanto no das relações sociais e políticas.

Veja bem. Basta agora voltar às páginas do nosso texto de refe-


rência – de Eni Orlandi – e rever o mesmo raciocínio aplicado a outro
exemplo. Com certeza, não restarão dúvidas sobre esses conceitos de
condições de produção e de interdiscurso e todas suas consequências
para o estatuto do sujeito, da leitura e da interpretação na perspectiva da
escola francesa de Análise de Discurso.

55
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
9 O esquecimento no jogo da
memória ou do interdiscurso
A grande questão que se levanta é como se pode desvincular a pro-
dução do discurso da intenção do sujeito, já que não há discurso sem
sujeito e não há sujeito sem ideologia. A resposta reside justamente nes-
1 Em 1965, foi mostra-
sa relação sujeito/ideologia. Essa é a razão porque propomos agora exa- da pela primeira vez por
minar um fenômeno e um conceito que é ao mesmo tempo inerente ao Marcos Valle no espetáculo
A bossa no Paramount, rea-
processo discursivo e ideológico, ou, em outros termos, do modo com lizado no Teatro Paramount
que se produz simultaneamente o sujeito e o sentido. Trata-se do fenô- (SP)

meno do esquecimento.

Voltemos um tanto ao conceito de interdiscurso para desmanchar


o ilusório parentesco que ele entretém com a noção de intertexto. Con-
sideremos o caso da criação de uns versos em que se pode acumular
a ocorrência simultânea do intertexto e do interdiscurso. Na música
popular brasileira, há duas canções cujos títulos são bem próximos. A Figura 26 – Fachada do Teatro
Abril, antigo Teatro Paramount, em
primeira é Preciso aprender a ser só1, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio São Paulo.

Valle, lançada em 1965. A segunda intitula-se Preciso aprender a só ser2,


de Gilberto Gil, gravada em 1974. Antes de comentarmos o desloca- 2 GIL, Gilberto. Maracatu
mento de um elemento que torna diferente um dizer de um título e o de Atômico. [S.l.]: Philips,
p1974. 1 compacto sim-
outro, é interessante atentar para o trecho da canção de Gil que, à pri- ples.
meira vista, apresenta-se como o intertexto da composição dos irmãos
Valle. Nos quatro últimos versos de Preciso aprender a só ser, lemos e
ouvimos um trecho que diz assim:

E quando escutar um samba-canção.

Assim como: “Eu preciso aprender a ser só”.

Reagir e ouvir o coração responder:

“Eu preciso aprender a só ser.”


Figura 27– Gilberto Gil cantando no 3º Festival de
Música Popular Brasileira da TV Record, transmitida por
TV e rádio em 21 de outubro de 1967.

57
Análise do Discurso

À primeira vista, estamos diante de um evidente caso de intertex-


to, o que equivale a dizer que Gilberto Gil, em uma diferente criação
de letra e melodia, cita os compositores literalmente com o verso da
canção de Marcos e Paulo Sérgio Valle, introduzindo-o no final de sua
composição com o mesmo fraseado linguístico e melódico. À parte
toda riqueza, pertinência e particularidade do trabalho do intertexto,
pelo viés da Análise de Discurso podemos logo ver que se trata de
outro processo, o que põe em foco o jogo do interdiscurso no intradis-
curso. Ao emparelhar, mantendo em cada formulação o encadeamento
sintático e melódico próprio a cada uma, vê-se, nesse trecho da canção
de Gilberto Gil, aparecer o efeito de sentido que ali só acontece porque
já está dado em formulações anteriores. O dizer “Preciso aprender a
só ser” significa na relação com o sentido já posto na memória em que
se localiza o dizer de “Preciso aprender a ser só”. Trata-se bem de abrir
o feixe de formulações que, ao nível do interdiscurso, em suas respec-
tivas possibilidades de formação de discurso, realiza o intradiscurso
pertinente a uma e outra canção.

“O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estôma-


gos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos,
até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar, escondida.”
Machado de Assis, Esaú e Jacó, capítulo LV.

Em verdade, o verso “Reagir e ouvir o coração responder” fun-


ciona como uma espécie de lembrete que o discurso lança sobre si
mesmo marcando ali que há dois gestos de interpretação em con-
fronto. Apresenta-se, assim, o mecanismo em que o esquecimento
ou apagamento de um dizer – “Eu preciso aprender a ser só” – deter-
mina o sentido posto em “Eu preciso apreender a só ser”. Feito esse
esboço analítico, vem de imediato a consideração do esquecimento
definido por Michel Pêcheux (1994) como um fenômeno enunciati-
vo e discursivo operado em dois níveis, que o autor denomina res-
pectivamente nível 2 e nível 1.

58
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
Vamos ficar ainda especificamente no exemplo da canção de
Gilberto Gil. No trecho em que o sujeito canta enunciando a dife-
rença entre escutar “a ser só” e ouvir “a só ser” indica que em sua
enunciação a escolha de uma entre duas maneiras de dizer, o que re-
troativamente aponta como todos os versos anteriores de sua canção
formam o que Orlandi (2003, p. 35) chama de “família parafrástica”.
Isso significa que o texto de sua composição em relação interdis-
cursiva com o texto da canção dos irmãos Valle assinala o quanto o
dizer da solidão sempre pode trazer o mesmo em outras maneiras de
formular. O efeito de sentido que aqui aparece leva a compreender
que, ao proferir “Preciso aprender a ser só”, pode-se também proferir
“Preciso aprender a só ser”.

E tudo isso parece ser resultado do pensamento do sujeito que


diz, como se houvesse uma relação evidente entre o pensamento, a
linguagem e o mundo. Ao deslocar um elemento no enunciado, co-
mutando “a ser só” por “a só ser”, é como se Gil dissesse que o que
pretende dizer somente pode ser dito da maneira com que organizou
as mesmas palavras diferentemente empregadas por Marcos e Paulo
Sérgio Valle. Tudo isso se explica pela crença necessária de que as pala-
vras e as coisas guardam entre si uma correspondência natural.

Figura 28 – Pintura em 3D na parede de um restaurante criada por John Pugh.

59
Análise do Discurso

Trata-se, contudo, de uma ilusão referencial (ORLANDI, 2003) que


determina a enunciação. O sujeito esquece que ele não é a origem do
dizer que formula. No entanto, essa é a condição para que o que diz
faça sentido no momento em que enuncia. Vemos aqui os traços do
esquecimento no nível 2: “[...] é o chamado esquecimento enunciativo e
que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos
sentidos.” (ORLANDI, 2003, p.35). Daí que o detalhe do esquecimento
enunciativo nos títulos das canções que analisamos está na estrutura
sintática baseada na mudança da ordem de um único elemento na frase.

O que se passa é que o sujeito da enunciação é constituído de modo


a não poder ter acesso às diferentes maneiras de dizer que vão lhe per-
mitir se significar e significar o mundo ao qual se refere. O fato é que
ele não tem acesso ao modo com que a diferença de sentido se aloja
em diferentes maneiras de dizer. A isso a que o sujeito não tem acesso,
em termos de constituição de sentido, é que se chama esquecimento
no nível 2, ou esquecimento ideológico. O sujeito referido com o nome
próprio Gilberto Gil pode ter sido genial ao encontrar outra maneira de
dizer os sentidos interpretáveis na composição de Marcos e Paulo Sérgio
Valle. Só que esse processo o tomou no plano do inconsciente, ou seja,
no plano em que a diferença entre “ser só” e “só ser” é uma retomada de
sentidos pré-construídos. Esses sentidos já aparecem como evidência e
se representam como originados no próprio sujeito que enuncia.

De modo que o esquecimento no nível 1 caracteriza um horizonte


de possibilidades de significar muito distante e fora do sujeito enuncian-
te. Não se trata do que o sujeito um dia soube e esqueceu. Em verdade,
a noção de esquecimento que se apresenta na Análise de Discurso, a
partir de Pêcheux, é sinônima de desconhecimento. Então, em nível 2, o
sujeito desconhece que não depende dele propor a distância entre uma
maneira e outra de dizer. Ainda assim, age como se estivesse pleno desse
saber: sei bem que sou eu quem determina a diferença ao dizer aprender
a só ser, em vez de dizer aprender a ser só. No momento, porém, em
que imagina ter a posse dos sentidos que o sujeito profere pelo modo
e pelas palavras que escolhe, há outra voz que já decidiu e determinou
antes: determinou inclusive que aquele que vai expressar a diversida-

60
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
de do sentido, colocando-se em uma posição em detrimento de outra,
deve ser feito junto e da mesma matéria que os efeitos de sentido que o
interpelam ao enunciar. Essa matéria é a ideologia, uma espécie de tec-
nologia inacessível de discurso e de sujeito. A eficácia dessa tecnologia
ideológica consiste no funcionamento do esquecimento em nível 1, isto
é, o sentido e sua fonte no sujeito devem ser absoluta e inquestionavel-
mente evidentes. Cabe ao sujeito apenas pôr em questão o que ele diz na
diferença com que o outro diz, mas nunca questionar a evidência de si
como lugar da autoria e da responsabilidade do que diz. Tal é a forma da
subjetividade que passou a imperar no trânsito entre a época clássica e a
modernidade, conforme veremos mais tarde.

O exemplo do qual nos servimos para expor o conceito de esque-


cimento, em nível 2 e em nível 1, vem a calhar porque mostra bem duas
possibilidades de ocorrência de uma forma na língua. Mostra também
o modo de essas operações linguísticas aparecerem não isoladamente,
mas cumulativamente na qualidade de fato que se inscreve na história.
Aqui se trata da história da música popular brasileira como plataforma
de discursos que se confrontam, se comutam e se apagam mutuamente.
Isso não anula os gestos singulares que propiciaram a criação das can-
ções que analisamos. O próprio da subjetividade em Gilberto Gil e na
dupla Marcos e Paulo Sérgio Valle está justamente na maneira com que
cada um foi afetado pela história e pela língua. Não é no sistema linguís-
tico que as diferenças de arranjos se estabelecem. Não é tampouco nos
indivíduos falantes que está a origem dos sentidos
interpretáveis nos diversos modos de ordenar seus
elementos. Se na língua só há diferença, é justamen-
te porque as maneiras diferentes de dizer se deixam
atingir no movimento da língua e da história.

Segundo Orlandi (2003, p. 35): “Quando nas-


cemos, os discursos já estão em processo e nós é
que entramos nesse processo. Eles não se originam
em nós.” Essa constatação está diretamente ligada
ao processo de constituição da memória e de como
Figura 29 – Biblioteca bombardeada durante a 2ª Guerra
o esquecimento é a condição da memória discursi- Mundial.

61
Análise do Discurso

va. Nesse sentido, é que o “esquecimento é estruturante”, ou seja, a cons-


tituição da memória vem da disposição e distribuição dos dados que a
compõem operados pelo apagamento do que foi dito para que no dito o
efeito de sentido se estabeleça como memória discursiva.

Na constituição da memória discursiva não se trata de resgatar


para lembrar, mas, muito pelo contrário, de resgatar para decidir, de
tudo que foi resgatado, o que deve ser esquecido para que uma memó-
ria seja possível. É o caso de nações como a Alemanha pós-nazista que,
para fazer a memória de sua identidade nacional enquanto discurso, há
que sempre considerar esquecidos os vestígios do holocausto que im-
possibilitam essa mesma memória. O filme Uma cidade sem passado
ilustra bem esse processo. Nele, a protagonista, uma jovem estudante,
vê-se impedida de realizar um trabalho sobre a atuação dos alemães
diante das atrocidades de Adolf Hitler contra os judeus. Todas as insti-
tuições públicas na cidade dificultam seu acesso aos dados de arquivo
que remontam ao tempo em que a cidade vivia sob o regime do Terceiro
Reich. O fato é que, depois de muito insistir, a protagonista descobre
documentos atestando a participação dos habitantes de sua cidade na-
tal no genocídio contra o povo judaico. Descobre ainda que a periferia
dessa cidade, a qual pretende construir e prolongar uma
memória de heroísmo contra os nazistas, esconde terri-
tórios que serviram de campo de concentração. O filme
prossegue narrando muitas peripécias da personagem a
fim de conseguir manter para a sua cidade natal e para
toda a Alemanha uma memória possível, estruturada por
sentidos de dignidade e solidariedade. Só que, para tanto,
terá de contrapor o que encontrou de ruim nessa história
ao que também encontrou de bom.

Nesse jogo entre os sentidos que concorrem para a


sordidez ou para a nobreza é que se deve isolar o plano do
a ser esquecido, para que o dizer possa encontrar o dizível
da memória a se manter, isto é, a formação discursiva que
sustenta a nacionalidade alemã, sob condição de apagar
Figura 30 – Passagem. dela sentidos que remetem à memória do nazismo. Não é

62
O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso Capítulo 09
que o esquecimento tenha a ver com o que se oculta. Em verdade, o es-
quecimento ideológico tem a ver com a presença inevitável de algo que
só pode aparecer sob a dimensão do não sentido para dar passagem ao
evidente, ao que não pode ser de outra maneira. Vale aqui repetir o que
Orlandi (2008, p. 59) afirma sobre o interdiscurso em outro texto: “[...]
o interdiscurso é o conjunto dos dizeres já ditos e esquecidos que deter-
minam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer.”
Por exemplo, no contexto do filme, a ausência da palavra judeu em toda
a narrativa mostra como a palavra não pode ser pronunciada em um
quadro de constituição de memória sem que mobilize sentidos vindos
de outras palavras.

Daí que, no ato de dizer, o sujeito e o sentido do que diz já estão de-
terminados no cruzamento entre a língua e a história. O fenômeno que se
pode descrever na maneira com que as palavras significam de sujeito para
sujeito é o da identificação involuntária ou inconsciente, justamente por-
que o fundamental do esquecimento estruturante acontece em tempo an-
terior ao dizer e fora do falante. A natureza ideológica desse fenômeno de
esquecimento advém do fato de que, no momento em que são proferidas,
as palavras já acontecem como se seus sentidos fossem pontualmente ori-
ginados no sujeito no instante em que as profere. Isso é que se chama uma
ilusão necessária: é preciso que o sujeito se tome como fonte do sentido
para que esse aconteça mediante uma retomada do que antes fora dito.

63
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
10 Os limites entre o mesmo e o
diferente
Quando Eni Orlandi (2003, p. 36-39) desenvolve os conceitos de pa-
ráfrase e polissemia, entendemos logo a especificidade do interdiscurso
em relação à formação discursiva. Fica claro que a palavra não é sim-
plesmente formulações linguísticas diferentes para dizer o mesmo e que,
por sua vez, a polissemia não é o emprego de formulações idênticas para
designar sentidos diferentes. Paráfrase e polissemia definem respectiva-
mente em todo dizer o sentido que se mantém e o que se desestabiliza. De
modo que, voltando ao exemplo do título das canções que analisamos an-
teriormente, a manutenção ou o deslocamento do sentido não vêm sim-
plesmente da mudança de posição de um termo na frase. A despeito da
mudança na estrutura de uma frase dada, seu sentido pode se conservar
ou tender a se modificar conforme a memória, o dizível em que se pro-
duz. Se duas formulações linguisticamente diferentes retomam a mesma
memória discursiva, então elas mantêm entre si uma relação parafrástica.
Por outro lado, tendo ou não a mesma estrutura sintática, há formulações
que remetem a uma diversidade de significação. Esse é o jogo da polisse-
mia: o dizer pode ser formulado de modo idêntico, mas se expõe de modo
a produzir uma ruptura com lugares já estabelecidos de sentido. Foi o
que vimos na diferença entre dizer “Preciso aprender a ser só” e “Preciso
aprender a só ser”. O que se faz aqui é tanto uma relação de paráfrase,
quanto de polissemia. Isso quer dizer que a comutação da expressão “a ser
só” por “a só ser” só põe em crise o sentido sedimentado pela memória da
primeira. Mas, ao mesmo tempo em que se estabelece uma nova memó-
ria, o procedimento desloca o dizer da primeira para novo lugar, fazendo
com que as duas formulações, nessa outra região do dizível, passem a re-
cobrir entre si uma relação parafrástica.

Dessa forma, o funcionamento discursivo da paráfrase consiste em


produzir mecanismos de controle da instabilidade interdiscursiva. Com
isso, concluímos que a paráfrase é da ordem da formação discursiva, en-
quanto a polissemia é da ordem do interdiscurso. Parafrasear é dizer po-
sicionado sempre no mesmo lugar da memória discursiva. Já produzir

65
Análise do Discurso

polissemia é formular na fronteira da formação discursiva, ou seja, a re-


gião do interdiscurso (o dito e esquecido), em que o sentido tende a ser
outro e por isso desestabiliza o processo discursivo. O intervalo aberto
pelo confronto entre a paráfrase e a polissemia descreve o que Orlandi
(2003, p. 36) refere como a “[...] tensão entre o mesmo e o diferente.”

“[...] a linguagem é o tecido da memória, isto é, sua modalidade de


existência essencial” (COURTINE, J.-J,. Le tissu de la mémoire: quel-
ques perspectives de travail historique dans les sciences du langage.
Langage, n.114, p. 5, jun. 1994.)

Em resumo, a paráfrase e a polissemia são maneiras de as relações


de sentido se mostrarem na forma de um funcionamento de linguagem
em ação no processo discursivo. Os sentidos sempre se mostram por
relações que são de diferença ou de semelhança, mas a possibilidade de
o sentido se produzir em uma dessas duas relações já está prevista na
história e no modo como a língua se inscreve nela. Sempre que um dizer
acontece fazendo sentido é porque ocorre na forma da convergência (o
mesmo) ou na forma da colisão (o diferente) entre dizeres. “Um dizer
tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis”
(ORLANDI, 2003, p. 39).

Esse processo mais amplo em que um discurso ou um efeito de sen-


tido se dá sempre em contato com outro é algo exterior ao sujeito que
diz. Mas, para que o jogo de relações se efetive em sua enunciação, é pre-
ciso que o sujeito seja dotado de uma capacidade: a da antecipação. Não
se trata de uma faculdade cognitiva, mas sim de uma peça do proces-
so discursivo sem o qual nem o sujeito, nem o sentido se constitui. De
modo que a antecipação (ORLANDI, 2003, p. 40) descreve um modo
de interpretação através do qual o falante interpreta antecipando a po-
sição de onde o sentido foi produzido. A cena emblemática é a de um
debate em que um se dirige ao outro prevendo como suas palavras serão
interpretadas pelo outro. Aqui cabe o cuidado: não estamos falando de

66
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
esquema behaviorista de comunicação. Em vez disso, trata-se de um
processo a que Michel Pêcheux denomina de formações imaginárias.

 A diferença com o esquema de comunicação é que a interlocução


não se dá de emissor e destinatário como pessoas físicas e psicológi-
cas envolvidas na interação verbal. Em vez de emissor e destinatário,
temos um complexo de formação de imagens (as formações imagi-
nárias) do que A significa para B e vice-versa. O que interessa nessa
intercambialidade de imagens mutuamente projetadas é que elas de-
signam posições de sujeito já significadas. É o que vai explicar a dife-
rença entre um falante ser escutado na posição de pai ou de filho, na
posição de aluno ou professor. Ditas de um desses posicionamentos,
as palavras significam conforme historicamente as mesmas posições
se estabelecem como posições de discurso.

Fica assim explicado porque a antecipação não é uma simples capaci-


dade cognitiva atribuída ao sujeito falante, mas sim uma propriedade dis-
cursiva dentro da qual as palavras significam em relação com a posição de
onde são ditas, e isso faz parte das condições amplas de produção do dis-
curso. Aí está: se o sentido é relação a, como vimos através de Eni Orlandi,
aqui avançamos para descobrir que o ponto de sustentação das relações
de sentido é a posição em que é levado a colocar aquele que profere certas
palavras. O que faz então com que as pala-
vras façam sentido tem a ver com um jogo
de posições. Mais um ponto que se esclarece
aqui: não é por mera convenção que as pala-
vras significam conforme a posição de onde
são faladas. É bem outra coisa, muito pró-
pria do processo das condições amplas de
produção do discurso. Em verdade, o que
faz com que um efeito de sentido dependa
da posição em que se produz é a força his-
toricamente anexada à posição. Portanto, é
porque carrega força simbólica institucio-
nal e histórica que a posição de onde se diz Figura 31 – Cena do filme O grande desafio, de 2010. Baseado na trajetória
acadêmica do professor Melvin B. Tolson e de sua equipe de debates da Faculdade
constitui o sujeito e o que ele diz. Wiley, no Texas (EUA), em 1935.

67
Análise do Discurso

Por isso, as relações de sentido, dadas em seus movimentos pa-


rafrásticos e polissêmicos, são diretamente correlativas às relações de
força. Essa é mais uma maneira de pensar a entrada da língua na histó-
ria: descrever paráfrase e polissemia é descrever um fato de língua que
funciona por forças emergentes na história, cristalizando regimes de
sentido. Fica ainda mais esclarecido como a Análise de Discurso cons-
trói uma visão em que as condições de produção não dizem respeito
simplesmente a contextos factuais e datados “pilotando” possibilidades
de efeitos de sentido. As condições de produção têm como matriz dos
elementos que a compõem as relações de sentido aliadas às relações de
força: em outros termos, o dizer imbricado a posições de discurso ou a
posicionamentos de produção do sujeito e do sentido.

Posição e força são termos que mostram que os sentidos têm luga-
res e validade histórica e política, fazendo com que um mesmo indiví-
duo proferindo uma mesma palavra se signifique como sujeito de modo
completamente excludente. É o que exemplifica Orlandi (2003) quando
ressalta: “[...] se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras
significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno.” Dito
desse modo, parece apenas uma questão óbvia de troca de papéis. Mas é
muito mais que isso. Veja com esta outra explicação de Pêcheux:

[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produ-


ção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que
participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal
ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está “isolado”
etc. Ele está pois, bem ou mal, situado no interior de relações de força
existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado:
o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo esta-
tuto conforme o lugar que ele ocupa. (PÊCHEUX,1990, p. 77).

Como vimos, através da concepção de relações de sentido e de for-


ça, só é possível prever e interpretar quem diz e o que é dito porque
ambos, sujeito e sentido, são resultados do modo com que as palavras
são jogadas em posições dadas com suas respectivas forças. Talvez isso
explique como foi possível na história política brasileira ter havido um

68
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
presidente – Luiz Inácio Lula da Silva – interpretado e criticado como
alguém que falando na posição de sindicalista era um e na posição de
presidente da República era outro sujeito. O que fica posto em questão é
a literalidade e autenticidade do sujeito e do sentido, já que, pela língua
e pela história, são produtos passíveis de se tornarem outro de acordo
com a posição e força com que se realizam.

Retomemos o que já dissemos sobre as formações imaginárias. Por


serem posição e força produtos de funcionamentos discursivos histo-
ricamente passíveis de falha e ruptura, é que os sentidos e os sujeitos,
enquanto efeitos desse processo, mostram-se como um jogo de projeção
de imagens. Isso quer dizer que a existência da posição e a força que essa
pode ter na história sedimentam-se como formações imaginárias, isto
é, a imagem que se projeta sobre a fala e o sujeito fazendo-a significar
em uma direção e não em outra. Segundo Orlandi (2003, p. 40): “Assim
não são os sujeitos físicos, nem seus lugares empíricos como tal [...] que
funcionam no discurso mas suas imagens que resultam de projeções.”
Lembremos que era muito comum ouvir alguém dizer sobre o presi-
dente Luiz Inácio Lula da Silva: “Lula não serve para ser presidente, ele
é ignorante, nem sabe falar direito.” Não é da figura física do Lula, de
sua fala ou da Presidência da República que se fala. O sentido de um
comentário como esse está nas projeções de imagens que transformam
o lugar empírico em que o indivíduo é tomado em posição de discurso.

Vale aqui aproveitar a celeuma em torno do presidente dos Estados


Unidos, Barack Obama, no momento em que, ao mesmo tempo em que
é pressionado a apresentar sua certidão de nascimento para comprovar
sua nacionalidade norte-americana, é pressionado a apresentar a certi-
dão de óbito para comprovar a morte efetiva do terrorista Osama Bin La-
den. Não se trata da origem como lugar físico de nascimento, mas como
posição e força de discurso em que se faz o sujeito presidente e o que ele
diz. Do mesmo modo, não se trata da prova física da morte do terrorista,
mas da posição em que o presidente se significa como sujeito ao cometer
o gesto de mostrar uma certidão de óbito. Certidão de nascimento desig-
na a posição e a força do discurso que constitui o presidente dos Estados
Unidos. Já certidão ou atestado de óbito refere-se à posição em que Ba-

69
Análise do Discurso

rack Obama se constitui como sujeito político diante da comunidade in-


ternacional, ou seja, à posição em que se diz, é dito e celebrado por ser o
chefe da nação cujas tropas militares mataram Osama Bin Laden. Dessa
maneira é que o jogo das posições não remete simplesmente a um jogo de
troca de papéis, mas sobretudo ao mecanismo que “[...] produz imagens
de sujeito, assim como objetos do discurso, dentro de uma conjuntura
sócio-histórica.” (ORLANDI, 2003, p. 40). Podemos esquematizar esse
mecanismo de produção e projeção de imagens da seguinte maneira:

Expressão das Questão implícita cuja “resposta”


formações Significação da Expressão subentende a formação imaginária
imaginárias correspondente

Imagem do lugar de A para o sujeito


A Ia(A) “Quem sou eu para lhe falar assim?”
colocado em A

Imagem do lugar de B para o sujeito co-


A Ia(B) “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”
locado em A

Imagem do lugar de B para o sujeito co- “Quem sou eu para que ele me fale as-
B Ib(B)
locado em B sim?”

Imagem do lugar de A para o sujeito


B Ib(A) “Quem é ele para que ele me fale assim?”
colocado em B

(PÊCHEUX, 1969)

Aplicando o funcionamento das formações imaginárias, tal como


demonstra o quadro anterior, ao caso de Barack Obama, vemos que não
importa a figura do presidente tomada empiricamente.

Pelo esquema, dizemos que o presidente Obama (A) faz uma ima-
gem da posição que ocupa como presidente da República (Ia(A)). Ao
mesmo tempo, dizemos que Obama (A), colocado na posição A, faz
uma imagem do lugar do povo americano (Ia(B)) assim como projeta
uma imagem do povo americano (B) sobre posição em que está co-
locado como presidente (Ib(A)).

70
Os limites entre o mesmo e o diferente Capítulo 10
O que importa é como se constitui o sujeito presidente como po-
sição discursiva e, anexada a esse, como se constitui para o presidente a
imagem que seus eleitores têm da posição que ocupa quando se dirige
aos cidadãos norte-americanos. A antecipação diz respeito a essa dinâ-
mica das formações imaginárias em que o sentido dado em uma posi-
ção já está previsto pelo modo com que é constituído na posição do ou-
tro. Obama, ao aceitar comprovar sua condição de cidadão americano
mostrando sua certidão de nascimento, o faz mediante a imagem pre-
visível que o povo americano faz da posição em que ele toma a palavra.
Explicita-se o modo discursivo com que o problema da governabilidade
e da formação política historiciza-se. É por essa via que a questão su-
cessória presidencial aparece como acontecimento discursivo em dadas
circunstâncias para o povo dos Estados Unidos.

71
Do jogo de posições à formação discursiva Capítulo 11
11 Do jogo de posições à
formação discursiva
Chegamos aqui a um ponto em que os mecanismos discursivos
de antecipação dados pela distribuição do dizer segundo as posições
definem a maneira como as relações de sentido e de força desenham
regularidades ou formações discursivas. Tudo se resume na força com
que a posição determina sentido e sujeito. Certamente para conceber
formação discursiva Michel Pêcheux liga às relações de força uma de-
terminação ideológica. Ou, dito de outro modo, a posição pela qual
se faz o sujeito e aquilo que ele diz é constituída pela ideologia, isto é,
pelo modo de produzir sentido marcado por circuitos de forças cuja
permanência como formação discursiva depende da anulação de uma
para colocação de outra força em evidência. Vemos aqui uma espécie
de radiografia da formação discursiva pela qual Pêcheux identifica o
funcionamento do que chama de formação ideológica, ou seja, a po-
sição dada em certa conjuntura sócio-histórica a partir da qual fica
determinado o que pode e não pode ser dito, o que deve e não deve
ser dito. Daí que as palavras têm que ser necessariamente parte de
uma formação discursiva para significarem. Isso equivale a dizer que,
conforme a posição ideológica em que são faladas, as mesmas pala-
vras acontecem com diferentes sentidos, tornando evidente que são
proferidas a partir de uma formação discursiva ou outra. Portanto, o
que define uma formação discursiva não é um conjunto particular de
vocabulário, mas é o modo ou a posição ideológica com a qual certo
vocabulário indica o processo de formação de discurso de que faz par-
te, ou precisamente o mecanismo de efeitos de sentido que funciona
nele. Em síntese, nos termos de Michel Pêcheux, sempre que se fala
em formação discursiva, remete-se a algo como formação ideológica,
caracterizando-a enquanto tal, isto é, enquanto processo histórico de
efeitos de sentidos.

73
A definição discursiva de ideologia Capítulo 12
12 A definição discursiva de
ideologia
Tocamos algumas vezes, em trechos anteriores, no termo ideologia.
Mas vamos agora verificar como essa noção tem uma especificidade na
Análise de Discurso. Entendam que nos refirimos a um modo de conce-
ber a ideologia que não se encontra em versões variadas do marxismo,
em filosofia ou sociologia.

Deixe-nos tentar ser ainda mais claros. Há um sentido historica-


mente cristalizado para a palavra ideologia que, por mais que se tente
fazê-lo deslocar e derivar outras possibilidades de sentido, sempre in-
siste em se impor. Não é o caso de apresentar aqui toda a história de
formação desse conceito. Além de não termos espaço suficiente para
isso, fugiríamos do nosso objetivo. De qualquer modo, é preciso pelo
menos indicar a rede conceitual que deriva e reverbera a forma com
que certa acepção tradicional de ideologia circula nos mais diferentes
contextos sociais e acadêmicos. Comecemos por esboçar de que modo Figura 32 – Figura, prato e livro.
Anita Malfati. 192-.
as sucessivas derivações do conceito de ideologia sempre apresentam
um elemento que se repete. Para irmos mais rápido, vamos partir da
maneira com que o termo está dicionarizado, com base apenas em um
competente dicionário de língua portuguesa: Dicionário Houaiss da lín-
gua portuguesa, disponível no sítio da UOL.

Esse dicionário traça a origem das acepções de ideologia desde sua


proposição, no âmbito do materialismo iluminista, do filósofo francês Des-
tutt de Tracy (1754-1836). Depois passa imediatamente, já por extensão, às
acepções recobertas pelo marxismo em que a ideologia aparece sempre
como um conjunto de ideias e visão de mundo cuja propriedade é de mas-
carar sua finalidade de dominação de um grupo econômico sobre outro.

Em seguida, considera uma perspectiva mais ampla em que a ide-


ologia inclui tanto formas de consciência social que visam à dominação
quanto as que visam reagir e se contrapor à dominação. Nesse caso, há
ideologia tanto do lado do dominador quanto do lado do dominado.

75
Análise do Discurso

Na sequência, acrescenta a acepção de ideologia em voga no campo


da sociologia, isto é, sua definição como sistema de ideias, crenças, tra-
dições construídos e defendidos em função de interesses e compromis-
sos institucionais de ordem moral, religiosa ou política. Desse modo,
finalmente o dicionário chega ao senso comum da noção de ideologia
como “conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um
indivíduo ou grupo de indivíduos.”

Notemos que em qualquer dessas acepções registradas nesse di-


cionário repete-se o mesmo traço conceitual implícito e inseparável da
noção de ideologia, ou seja, o fato de que a ideologia é o limite entre
o falso e o verdadeiro, entre o sentido literal e o manipulado. Para
sermos mais claros, basta lembrarmos os debates políticos em que as
propostas de melhor governo sempre se tomam como as que mais per-
to da verdade estão no que diz respeito aos interesses da sociedade em
sua totalidade. Por isso é que se diz que, na universidade, o conheci-
mento deve ser desvinculado de qualquer ideologia. E, ainda mais, a
única via para chegar à verdade, seja ela social, política ou jurídica, é o
saber científico. Na ciência, não há lugar para a ideologia, já que essa
sempre se refere a conjuntos partidários de ideias e visão de mundos.
Certamente, a definição comporta um preconceito contra os cientis-
tas, do qual a Análise de Discurso não partilha. Trata-se aqui somente
de observar as maneiras muito ortodoxas de definir ideologia.

Foi isso que fez com que Michel Foucault evitasse em toda sua obra
empregar, de modo teórico e analítico, o conceito de ideologia. É que, do
modo com que esse termo estabelece-se no campo das ciências humanas,
o intelectual que o utiliza está comprometido com uma perspectiva que
acredita na separação entre o que é desinteressadamente mais científico
e verdadeiro e o que é apenas estratégia de manipulação e falsificação da
realidade. Em últimos termos, fica aí implícito o compromisso com uma
crença nos fatos como um dado natural sempre sujeito a ser falseado por
esse ou aquele sistema de pensamento. Eis aí a razão porque o autor de
A arqueologia do saber simplesmente evitou trabalhar com o conceito de
ideologia. Vejamos como ele justifica a recusa do uso dessa noção:

76
A definição discursiva de ideologia Capítulo 12
Em certa concepção que o meio universitário faz do marxismo ou em
certa concepção do marxismo que se impôs à universidade, há sem-
pre no fundamento da análise a idéia de que as relações de força, as
condições econômicas, as relações sociais são dadas previamente aos
indivíduos, mas, ao mesmo tempo, se impõem a um sujeito de co-
nhecimento que permanece idêntico salvo em relação às ideologias
tomadas como erros.

Chegamos assim a esta noção muito importante e ao mesmo tempo


muito embaraçosa de ideologia. Nas análises marxistas tradicionais a
ideologia é uma espécie de elemento negativo através do qual se tra-
duz o fato de que a relação do sujeito com a verdade ou simplesmente
a relação de conhecimento é perturbada, obscurecida, velada pelas
condições de existência, por relações sociais ou por formas políticas
que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento. A ideologia
é a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de
existência sobre um sujeito de conhecimento que, de direito, deveria
estar aberto à verdade. O que pretendo mostrar nestas conferências é
como, de fato, as condições políticas, econômicas de existência não
são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas
aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por
conseguinte, as relações de verdade. (FOUCAULT, 2002, p. 26).

O trecho pode ser um tanto longo, mas é justamente para mostrar


que a razão pela qual o conceito de ideologia está ausente da Análise
de Discurso de estilo foucaultiano é a mesma pela qual ele se encon-
tra presente como o próprio fundamento da escola francesa de Análise
de Discurso fundada por Michel Pêcheux. Explicitando as objeções ao
conceito, Foucault eliminou o termo de seu vocabulário analítico. Mi-
chel Pêcheux, por sua vez, encarando o mesmo obstáculo elabora uma
outra noção de ideologia.

Tanto em um quanto em outro o problema passa pelo estatuto do


sujeito. Mesmo quando se trata da produção do saber, o sujeito do co-
nhecimento é sempre efeito das condições em que enuncia, nunca uma
entidade a priori neutra e desvinculada do objeto de seu discurso. Lem-

77
Análise do Discurso

bremos: para Foucault, o sujeito é feito das próprias relações de poder


que anuncia ou denuncia. Isso em Pêcheux equivale ao postulado de
que não há sujeito sem ideologia.

Bem, não vamos pensar que Orlandi quer justificar o uso do con-
ceito se referindo ao conceito que Foucault rejeitou e Pêcheux acolheu.
Nada disso. A ideia é radicalmente outra, isto é, criar uma definição dis-
cursiva de ideologia, ou seja, uma definição que a mostre como um fun-
cionamento no discurso. Fica fácil notar porque Orlandi (2003, p.45),
logo de início, introduz o polêmico conceito dizendo que “[...] um dos
pontos da Análise de Discurso é re-significar a noção de ideologia a
partir da consideração da linguagem.”

“A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação necessária


entre a linguagem e o mundo.” (ORLANDI, 1996, p. 31).

Pensemos na afirmação comum de que o sentido depende da in-


terpretação. Daí logo se deduz que o que vem primeiro é o ato de inter-
pretar. Em outros termos, o sentido não existe antes da interpretação,
nem de modo figurado, nem de modo literal. O pressuposto é de que a
relação entre homem e o mundo sempre leva a um ato de interpretação.
Orlandi (2003, p. 45) deixa isso ainda mais claro: “[...] diante de qual-
quer objeto simbólico, o homem é levado a interpretar, colocando-se
diante da questão o que isso quer dizer?”

O caso é que esse movimento sempre se dá em rede na história e


sempre como efeito de luta entre posições. Muitos sentidos entram em
confronto estabelecendo relações que, como já vimos, levam ao mesmo
ou ao diferente. Mas o sentido que deve responder à questão “O que isso
quer dizer?” não pode ser qualquer um. É bem por isso que a interpre-
tação deve aparecer como evidente e inquestionável. E como a interpre-
tação se coloca ante a possibilidade de múltiplos sentidos para o dizer, é
necessário um mecanismo para que uma relação de sentido se imponha
como evidente em detrimento de outro.

78
A definição discursiva de ideologia Capítulo 12
Pensemos em como ficou mais do que evidente que o verso do
samba Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Alves, “Amélia é que era mu-
lher de verdade” só pode literalmente ter um sentido machista, apesar
de o compositor ter se defendido e argumentado que só quis mostrar
como a mulher pode dominar o homem. Mas o deslocamento não
se dá porque em sua historicidade o sentido produzido pelas inúme-
ras vezes em que se repetiu o mesmo verso ficou tão evidente que se
apagou nele a possibilidade de vir a ser outro. Nesse mecanismo é
que está a definição discursiva de ideologia: a ideologia em Análise de
Discurso é modo de produzir sentido. Figura 33 – O pintinho. 25 de agosto
de 2011.

Diz Hannah Arendt: 1. As ideologias desenvolvem sua tarefa tão bem


que preservam a pessoa de fazer qualquer experiência. 2. O poder
[...] não pode impedir o início, o acontecimento, mas pode tentar,
um instante depois, abortá-lo, ou seja, frear o que aconteceu, sepa-
rando-nos do acontecimento. Com efeito, o real desperta em nós
um maravilhamento que nos atrai. A ideologia nos “preserva” dessa
experiência, freia-a e nos separa dela; assim, nossos pensamentos
caminham sozinhos, separados de uma experiência. As ideologias
– diz ainda Arendt – não se interessam nunca pelo milagre do ser.
3. O pensamento ideológico torna-se independente de qualquer
experiência, por isso não pode comunicar nada novo, nem mesmo
quando se trata de um fato que acabou de acontecer. (ARENDT, H.
A condição humana. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007.)

Vejamos o apelo contido no verso que se ouve na canção de Ca-


zuza: “Ideologia, eu quero uma pra viver”. Ele pode ser tomado como
uma alegoria da dimensão necessária do conceito de ideologia em
Análise de Discurso. É isso mesmo. Não é que Cazuza criou sua can-
ção como se fosse um analista de discurso. É que na letra e no título de
sua música o cantor e compositor colocou sobre a ideologia o mesmo
problema posto pela escola francesa de Análise de Discurso. Diante
das contingências do mundo, nas mais variadas situações, o sujeito só

79
Análise do Discurso

existe pelo trabalho da ideologia, isto é, pelo processo de linguagem o


falante se constitui, de modo inconfundivelmente evidente e o sentido
de suas palavras. A chave do processo está no ato incessante de in-
“Na transparência da terpretação. As pessoas precisam se colocar no mundo interpretando.
linguagem, é a ideo- Não dá pra viver sem sentido. Mas o sentido e o sujeito só se produ-
logia que fornece as zem à medida que se apaga para aquele que fala o fato de que o sujeito
evidências que apa- em que ele se torna e o sentido do que diz é efeito de interpretação. O
gam o caráter mate- homem está condenado a interpretar sejam quais forem as condições
rial do sentido e do de existência em que se encontra. Mas ele precisa acreditar que o sen-
sujeito.” (ORLANDI, tido que dá às coisas é um fato natural que preexiste a qualquer ato de
1996, p. 51). interpretar. Daí que metaforicamente querer uma ideologia para viver,
conforme gritava Cazuza em sua canção, era discursivamente apoiar-
-se na crença do sentido como dado natural, evidente e na imaginária
impossibilidade de viver no não sentido.

“[...] a ideologia, então, é o apagamento, para o sujeito, de seu


movimento de interpretação, na ilusão de ‘dar’ sentido.” (OR-
LANDI, 1996, p. 95).

O que mais caracteriza a definição discursiva de ideologia é o fato


de ela designar um processo que constitui a realidade. Note bem: a ideo-
logia pensada como um funcionamento discursivo não representa, mas
constitui, incluindo sujeito e sentido. A propósito, mesmo o formato
das subjetividades ao longo da história é efeito de ideologia, analisável
estritamente para cada época, ou para um estrato histórico e não outro.
Isso aparece, por exemplo, no modo como alguém se definia na posição
de quem trabalhava no século dezesseis, no século dezenove e no século
vinte e um. Tudo depende do regime de memória disponível em arquivo
e das modalidades de dizível para que o falante refira-se a si como sujei-
to. Veremos a seguir como isso tem a ver com a passagem da forma da
subjetividade do regime religioso para o regime jurídico.

80
A história das formas-sujeito Capítulo 13
13 A história das formas-sujeito
Eni Orlandi apresenta duas maneiras de o sujeito se referir a si
mesmo enquanto fala. Na primeira, ele aparece sob a forma da contra-
dição, ou seja, ele se mostra como livre e responsável por suas ações.
No entanto, não se dá conta de que para responder livremente por seus
atos, antes tem que se submeter a certa ordem de discurso. (ORLAN-
DI, 1996, p. 50).

Tentemos compreender como isso acontece, através do diálogo a


seguir, retirado do filme Viver a vida, de Jean-Luc Godard.

Retomemos o diálogo entre as duas persona-


gens. Depois de ouvir a amiga contando como se
tornou prostituta, Nana comenta:

- Isso não é nem um pouco divertido.

- Não mesmo. Mas não sou responsável, afirma a


amiga.

Imediatamente Nana retruca: Figura 34 – Cena do filme Viver a vida, de Jean-Luc Godard.

- Acho que somos sempre responsáveis pelo que fazemos. Somos livres.
Eu levanto a mão, eu sou responsável. Eu viro a cabeça, eu sou respon-
sável. Eu sou infeliz, eu sou responsável. Eu fumo, eu sou responsável.
Eu fecho os olhos, eu sou responsável. Eu esqueço que sou responsável,
mas eu o sou.

Para compreender em que consiste a contradição como caracterís-


tica do sujeito na atualidade, conforme propõe Orlandi, temos de con-
siderar as falas de Nana e de sua amiga como posições que compõem o
mesmo sujeito. Isso quer dizer que o que a amiga de Nana diz pode ser
dito também pela própria Nana, assim como o que diz Nana pode ser
dito por sua amiga.

81
Análise do Discurso

Assim, ambas as afirmações – “não sou responsável/sou respon-


sável” – fazem parte da composição discursiva de uma mesma forma-
-sujeito, o da contradição. Proferir uma ou outra dessas afirmações é
ocupar uma posição no discurso diretamente contraposta a outra. O
que apaga o caráter contraditório da fala e do sujeito é o fato de ele não
saber que, para dizer X, precisa necessariamente deixar de dizer Y. Isso
sem que ambos os dizeres deixem de estar presentes na sua fala.

“A forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual re-


presenta bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e
submisso.” (ORLANDI, 2003, p. 50).

A subjetividade, portanto, tem uma história, isto é, nem sempre


fomos como nos percebemos e como lutamos para ser hoje: coerentes
e responsáveis pelo que fazemos e pelo que dizemos. Qual seria a traje-
tória histórica que desenha formas diversas de ser sujeito? Examinemos
um primeiro esquema proposto por Orlandi (2003):

Sujeito - Sua forma histórica

As formas-sujeito na histórica

Sujeito Religioso: Idade Média


Subordinação explícita ao discurso religioso; crença na Letra
(submissão a Deus)

Sujeito-de-direito: Idade Moderna


Subordinação implícita ao dircurso jurídico; crença nas Letras
(submissão ao Estado e às Leis)

Por esse esquema vemos que, ao longo da história, o sujeito não se


faz nunca por ele mesmo. O que modifica são os sistemas e dispositi-

82
A história das formas-sujeito Capítulo 13
vos institucionais que geram formas de ser sujeitos. Primeiro, da Idade
Média até o Renascimento, era a religião que ditava a maneira pela qual
os indivíduos deveriam ser convertidos em sujeitos. É o tempo em que
para ser sujeito o indivíduo deveria crer na letra da sagrada escritura e
se submeter inteiramente à vontade e aos desígnios de Deus. Tem-se a
forma do sujeito religioso em plena vigência na Idade Média.

Na passagem do Renascimento para a Modernidade, outros siste-


mas institucionais entraram na história determinando o modo de o in-
divíduo converter-se em sujeito. É a etapa da criação
do Estado e das leis. Nesse momento, o que define
o sujeito não é mais puramente a submissão, mas a
contradição, pois o sujeito deve ser submisso e au-
tônomo ao mesmo tempo. Eis o formato do sujeito-
-de-direito, ou aquele que responde pelos seus atos,
define suas leis, mas só que desde que autorizado
para tanto. Figura 35 - Trecho da adaptação de O processo para os qua-
drinhos.

De modo que a melhor maneira de descrever e definir o sujeito-


-de-direito é através do regime de linguagem que passou a determinar o
modo de dizer. Por isso, os termos sujeito-de-direito
e sentido literal passaram a significar a mesma coisa.
As características do sujeito-de-direito passam a ser
definidas pela:

ӲӲ crença na precisão sustentada pelo mecanis-


mo lógico;

ӲӲ preservação da ideia de autonomia, de liber-


dade individual;
Figura 36 - Cena do filme The Trial, adaptação para o cinema
da obra O processo, de Franz Kafka, dirigida por Orson Wells.
ӲӲ respeito a não contradição;

ӲӲ garantia de submissão ao saber.

83
Análise do Discurso

Já os elementos que caracterizam o sentido literal, também presen-


tes no conceito de sujeito-de-direito, são:

ӲӲ independência do contexto;

ӲӲ caráter básico, discreto, inerente, abstrato e geral.

Assim o sentido literal carrega a mesma sina que a forma do su-


jeito-de-direito, isto é, deve identificar uma coisa a si mesma – um
tapete é um tapete – estabilizando o fluxo das percepções ou do acon-
tecimento. Do mesmo modo, a foma sujeito-de-direito deve sempre
apresentar-se coerente a si mesmo, sem se dar conta de que o modo
de o indivíduo subjetivar-se está propenso à falha ou ao deslize con-
forme a determinação ideológica que ocupa no discurso para falar.
Ocorre que o sentido literal é uma ilusão histórica, necessário, mas
ilusório. Nesses termos, a ilusão do sentido literal é produto histórico,
logo efeito de discurso. Longe de uma compreensão – histórica, bio-
lógica e natural dada pelo senso comum –, a determinação do sujeito
vem dos modos de assujeitamento constitutivo das formas-sujeito, no
caso o da modernidade na forma do direito ou do regime jurídico.
Daí que sua instituição histórica só pode se dar através da relação do
sujeito com a língua. É a língua, portanto, que deve ser sistematizada
a fim de garantir que o sujeito se constitua e sempre se apresente coe-
rente e transparente como produto da relação do falante com a língua.
A história da gramática com suas regras de bem falar está diretamente
ligada à forma do sujeito-de-direito. Conclui-se, desse modo, a histo-
ricidade da noção de sujeito em que se marca a ambiguidade da noção
de sujeito: ele determina o que diz, ele é determinado pelo que diz.
Aqui estão as bases do assujeitamento:

ӲӲ contradição;

ӲӲ liberdade sem limites;

ӲӲ submissão sem falhas.

84
A história das formas-sujeito Capítulo 13
Esses traços devem ser estruturados na forma de um discurso que
seja instrumento límpido do pensamento e reflexo da realidade. A gra-
mática aqui entra como função primordial. Sujeito na gramática, ele deve
fornecer ao sujeito ferramentas para que este ao falar torne-se mestre de
suas palavras, sempre tendo presente a seguinte questão: quem garante
que sou “eu”, o sujeito que diz “eu penso”, que pensa? A regra é que o pen-
samento seja produzido como efeito de um sujeito. É pela gramática que
se chega ao ideal de completude, o que se opera por elementos gramaticais
sintaticamente categorizados: sujeito, predicado, agente, paciente, causa,
efeito. À medida que essas categorias estruturam uma sentença, obede-
cem a pressupostos conceituais a partir dos quais o mundo enunciado na
sentença deve aparecer como logicamente estável.

Temos aqui o que Orlandi (2003) chama de o real da gramáti-


ca, ou seja, o plano da realidade que possibilita que o mundo exista
como efeito de estrutura lógico-gramatical da linguagem. Em outros
termos, o mundo é o que é gramaticalmente possível; o mundo é
efeito do discurso estruturado pelas regras fundamentais da lógica
e da gramática. Fora da linguagem vinculada à história, o sujeito e o
mundo não existem.

Mais uma vez voltemos ao mesmo ponto: o que compõe a maneira


discursiva de constituir sujeito são os processos da língua, da ideologia
e da história. Esses são elementos geradores da posição do sujeito no
discurso. Basicamente, o modo de constituição do sujeito está fora dele,
isto é, não se trata de um processo produzido na consciência do indiví-
duo. Pelo contrário, a consciência individual, forma que corresponde a
uma subjetividade, é produto de discurso.

Assim, de que maneira o indivíduo que fala pode ter acesso aos
modos através dos quais ele está sendo levado a se tornar o sujeito do
discurso? Em verdade, essa experiência é inacessível ao falante. Quan-
do ele se pega sendo levado a falar, já se encontra à beira de se con-
verter em sujeito de uma ordem discursiva que o interpela mediante
o inconsciente.

85
Análise do Discurso

“[...] a noção de sujeito-de-direito se distingue da de indivíduo. [...]


há determinação do sujeito, mas há, ao mesmo tempo, processos de
individuação do sujeito pelo Estado.” (ORLANDI, 2003, p. 51).

Vamos recorrer a outra cena do mesmo filme de Godard, Viver a


vida, para ter uma tímida compreensão do que acontece na relação do
sujeito com a língua e com o discurso. Nessa cena, Nana encontra um
homem num café de Paris. Os dois conversam sobre a relação entre o
indivíduo e a palavra.

Figura 37 – Outra cena do filme Viver a vida.

É estranho. De repente, não sei o que dizer. Isso sempre me ocorre. Sei
o que quero dizer. Estou pensando sobre o tempo. É isso que quero
dizer. Eu penso antes de dizer para saber se é bem isto que é preciso
dizer. Mas no momento de falar, eu não sou mais capaz de dizer. [...]

Por que é necessário sempre falar? Acho que muitas vezes não de-
veria falar, e sim ficar em silêncio. Por mais que alguém fale menos
as palavras significam.

Eu gostaria de viver sem falar. As palavras deveriam expressar exata-


mente o que queremos dizer. Será que as palavras nos traem? Falar
é um pouco arriscar-se a mentir. Como alguém pode ter certeza de
ter encontrado a palavra certa?

86
A história das formas-sujeito Capítulo 13
Nana aqui está às voltas com a impossibilidade de não falar e “Entre o jogo e a re-
com o fato de que as palavras quando caem em sua boca estão su- gra, a necessidade e
jeitas a falhas e expostas ao movimento de incompletude que é pró- o acaso, no confron-
prio do processo discursivo em incessante confronto e embate com to do mundo e da
descolamentos e rupturas. Vale a pena examinar o que diz Orlandi linguagem, entre o
(2003, p. 52-54) sobre esse trajeto do discurso em pontos de desli- sedimentado e o a se
zamento. Aí, a luta do sentido para ser ideologicamente um tem que sedimentar na expe-
ver com o jogo, com a falha, com o acaso e também com a necessida- riência e na história,
de. Em suas ocorrências escorregadias, as palavras tendem ao equí- na relação tensa do
voco significando de um jeito quando são proferidas para significar simbólico com o real
de outro. Da necessidade de encontrar a palavra certa, o sujeito se e o imaginário, o su-
desestabiliza com o desencontro dos sentidos a que se vê exposto, daí jeito e o sentido se re-
a inquietação de Nana: “Como alguém pode ter certeza de ter encon- pelem e se deslocam.”
trado a palavra certa?” Mas o que é certo mesmo é que o movimento (ORLANDI, 1996, p.
do discurso não se fecha, e isso é a propriedade que vem daquilo 50-51).
de que o discurso se serve para se fazer, ou seja, a materialidade da
língua sempre transitando na história. Nunca é demais repetir: em
Análise de Discurso, a língua não existe fora da história. E como
o próprio da história é descontinuidade e ruptura, as produções de
efeitos de sentido não se historicizam sem falha, sem equívoco. Tudo
isso define também a condição com que o indivíduo é interpelado
em sujeito. O falante se segura na língua e na história para se garantir
como sujeito, mas tanto uma – a língua – quanto a outra – a história
– são como corda ruindo em andaime sem apoio seguro.

Essa exposição ao deslizamento, essa permanência do movimen-


to contra a estabilização, tudo isso é apagado pela ideologia. Acontece
como a perda da experiência de que fala Hanna Arendt. Ao produzir
o efeito de evidência, a ideologia satura o sentido e o sujeito apagan-
do todos os seus vestígios materiais observáveis principalmente em
uma língua que falha e uma memória ou história esburacada, o que
Orlandi (2003) chama de “des-historização”. A evidência faz o sujeito
significar como se tudo sempre fosse como aparece, destituído de seu
laço com a historicidade. Mas é exatamente na superfície suturada
do processo discursivo provocado pela ideologia que o trabalha que
o analista de discurso atua. Do modo como Orlandi (2003) elabora

87
Análise do Discurso

as proposições analíticas da escola francesa de Análise de Discurso,


o que fica perdido como processo em movimento nas condições de
produção do sentido torna-se legível e interpretável. É o caso que va-
mos ver a seguir do projeto de análise cujas bases estão no trabalho
de interpretação que não se interessa em procurar sentidos ocultos,
mas em se mostrar trazendo à tona gestos de interpretação apoiados
e determinados pela ideologia.

88
Unidade D
Construindo a análise

Figura 38 – Do escritor e jornalista Millôr Fernandes.


Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
14 Do conceito ao trabalho
de escavação do processo
discursivo
Aplicar os conceitos desenvolvidos nas unidades anteriores em exemplos
pontuais de análise.

Os conceitos e as considerações teóricas que desenvolvemos até


aqui nos levam a compreender que o discurso como objeto de análise
não é previamente dado, mas construído pelo próprio procedimento
analítico. Nesse sentido, a escola francesa de Análise de Discurso tem
uma maneira muito própria de conceber seu objeto de estudo. Esse
objeto não é de natureza empírica, isto é, ele não é imediatamente per-
ceptível nas palavras escritas ou faladas, muito embora seja na superfí-
cie textual dos proferimentos escritos ou orais que o discurso se cons-
trói. Lembre-se de que uma das primeiras coisas ditas no início deste
livro é que a Análise de Discurso se interessa por homens falando.

Observemos agora como essa afirmação diz respeito a dois as-


pectos implicados no procedimento analítico. O primeiro é que, ao
falar, o homem se faz e é feito por discursos que atravessam sua fala.
Segundo é que, na fala ou no exercício da linguagem oral ou escrita,
há sempre um processo discursivo que determina a possibilidade de
a fala derivar coerência e coesão em certos arranjos de palavras, e,
por consequência, derivar efeitos de sentido. Pois bem, é esse processo
que é construído pela análise. Daí o discurso é concebido como ob-
jeto teórico. Isso quer dizer que, antes de ser o processo que se busca
na análise, o discurso interessa como conceito que permite abordar a
problemática do sentido no contexto onde se exerce a fala e como as
coisas ou fatos são falados.

Tudo isso envolve o modo como a linguagem funciona e de como, a


partir desse funcionamento, deve-se proceder à análise. Essa é a questão
fundamental que Orlandi (2003) levanta ao atingir o dispositivo de análi-
se, depois de haver exposto o aparato teórico que baliza a Análise de Dis-

91
Análise do Discurso

curso de linha francesa. O mais importante é que o analista atente para


opacidade do texto, isto é, de ele não remeter a sentido nenhum a não ser
pelo atravessamento de uma ordem de discurso. De que maneira? Ele não
deve se deixar levar pelas evidências que compõem a superfície textual,
ou seja, o analista deve escutar o discurso que ali ressoa para além das
aparentes estruturas de coerência, de coesão, enfim, do encadeamento de
palavras que caracterizam a superfície de um texto tomado como solo, em
que o discurso se organiza saindo da dispersão que lhe é própria.

O discurso acontece, como efeito de sentido, no plano textual; aí ele


se encontra deslocado em nível diferente daquele em que, aparentemen-
te, ele se organiza mediante uma frase determinada ou um conjunto de
parágrafos, tal como se estrutura um texto ou um livro. O processo de
formação de discurso tem a ver com relações de força e de sentido sob
as quais se edifica uma textualidade.

Isso é o que diz a Análise de Discurso sobre o que ela se sustenta


como dispositivo de interpretação. Não se trata de interpretar. O pro-
blema não é saber se um discurso tem ou não tem sentido. A questão
da Análise de Discurso é saber como se produz discurso como efeito de
sentido. Nesse caso, analisar discurso é como desmontar uma peça para
examinar de que maneira foi fabricada e de que modo ela funciona. Sim,
porque, como diz Michel Foucault, se o discurso é algo fabricado, então
ele tem um funcionamento, como peça fabricada ele produz seus efeitos.
Mas isso só se pode descobrir desmontando-o a partir de sua superfície
aparente, para assim restituir o processo pelo qual o discurso se faz.

A interpretação está presente em toda e qualquer manifestação da


linguagem. Não há sentido sem interpretação. Mais interessante
ainda é pensar os diferentes gestos de interpretação, uma vez que as
diferentes linguagens, ou as diferentes formas de linguagem, com
suas diferentes materialidades, significam de modos distintos. (OR-
LANDI,1996, p. 9).

92
Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
Para restituir o processo que levou à fabricação do discurso, ou o
que chamamos processo discursivo, é imprescindível adotar critérios.
O primeiro é de ordem conceitual e pressupõe todo o estudo que rea-
lizamos até aqui. O que significa partir dos conceitos e não dos dados
empíricos, isto é, da forma e do conteúdo do texto? Pensemos na for-
mulação de promessas de campanha eleitoral. Na forma como o can-
didato se dirige a seus eleitores e promete um conjunto de melhoria
para a cidade, não importa o lugar empírico a que remete o nome da
cidade, interessa sim observar a cidade se produzindo como discurso
ou como efeito de sentido.

Analisando por esse viés, têm-se consequências tão fortes a ponto


de ser possível afirmar que a cidade como discurso na fala de um can-
didato não se constrói da mesma maneira que na fala de seu oponente.
Ou, de modo ainda mais radicalmente constitutivo do discurso, diz-se
que as condições de produção de discurso sobre certa cidade em um
regime socialista não podem ser as mesmas que se observam em um
regime capitalista. Veja que o que está funcionando aqui como critério
conceitual da análise tem a ver com conceitos, como:

a) interdiscursivo (memória discursiva) – o conjunto de formu-


lações que disputam múltiplos sentidos dando lugar à cidade
como efeito de discurso;

b) imaginário – as imagens de cidade projetadas a partir de dadas


posições de enunciação;

c) real – o que escapa a qualquer ordem simbólica de determina-


ção de sentido para a cidade.

Esse exemplo mostra tanto o discurso como produção quanto


como objeto de análise. Esses elementos podem ser detectados a partir
de uma hipótese temática. É o que Orlandi (2003) aponta em termos da
construção do corpus e do objetivo do trabalho analítico. A sugestão de
Orlandi é a descrição baseada na escolha temática. Acabamos de lançar
o exemplo da campanha eleitoral focalizando a sucessão administrativa

93
Análise do Discurso

de uma cidade. A proposta é que os conceitos sejam o princípio a partir


do qual o analista vai abordar o material bruto, isto é, as formulações
sob as quais certo discurso está sendo fabricado.

Pensando nos conceitos como elementos do artefato analítico, co-


meça-se por observar fatos de linguagem levando em conta a materia-
lidade linguística e a memória discursiva. Trata-se de buscar que pala-
vras, que estruturas sintáticas formam um enunciado e que memória
de sentidos pode estar relacionada a certo modo de dizer a cidade.
Nesse ponto, fica claro como critérios teóricos orientam o trabalho de
produzir montagens discursivas. O que isso quer dizer? Por exemplo,
mediante o conceito de interdiscurso, levantam-se várias outras pos-
sibilidades de dizer; mediante o conceito de imaginário, observam-
-se os modos de dizer que não podem ser formulados diferentemente;
mediante o conceito de real, observa-se o problema que desencadeia
uma crise de sentidos, uma indecidibilidade de interpretações. Desse
modo, chega-se por fim a mostrar como funciona o discurso ao se
produzir como efeito de sentido.

Isso equivale a definir quais são as propriedades do discurso ana-


lisado. Obviamente tais propriedades não existem a não ser como ob-
jeto construído pelo viés do analista. É isso: a construção do analista
diz respeito ao fato de que o discurso a ser analisado não está dado de
imediato no material de linguagem levantado. O discurso não se dá
como algo já posto. Para se chegar a tal construção, é preciso consi-
derar que o corpus discursivo só é produzido e organizado em função
do material selecionado e da pergunta do analista. No caso, a pergunta
que se aplica é a seguinte: em dado regime discursivo de campanha
eleitoral, que cidade pode se produzir como efeito de discurso?

Veja que o discurso é, portanto, o objeto a que se chega por proce-


dimentos conceitualmente amparados. Mas não basta dispor e dominar
conceitos. É preciso colocar as mãos na massa, assim como faz o confei-
teiro depois de se inteirar teoricamente dos elementos que distinguem a
consistência de um pão de trigo da de um pão de aipim.

94
Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
Bem, quando se trata da matéria bruta de uma formulação dis-
cursiva, é preciso efetuar a passagem da superfície material – o texto
tal qual se apresenta – para a dessuperficialização – o discurso como
efeito de sentido que se procura. É uma questão de método, diz Or-
landi (2003). A travessia do ponto de partida ao de chegada na análise
compõe-se de duas etapas. Nos termos de Orlandi, a primeira descre-
ve a passagem da superfície linguística ao objeto discursivo. Trata-se
de dessuperficializar o discurso examinando na materialidade da lin-
guagem o como se diz, quem diz, em que circunstâncias se diz. Isso se
aplica ao processo de enunciação em que se sinalizam pistas do modo
pelo qual certo discurso – no caso do exemplo anterior a eleição em
uma cidade – se textualiza no material levantado.

Ao levar em conta a enunciação, é o caso de levantar a imagem que


se tem de um eleitor, de um cidadão, de um candidato a prefeito, de um
movimento e espaço urbano. O conceito de que se serve nesse levanta-
mento é o de formação imaginária, ou seja, o que permite chegar aos
traços que remetem ao lugar de que fala X, Y, formando as relações de
força na trama do discurso, ou da produção de efeitos de sentido. Nessa
primeira etapa da análise, ficam desmontados os efeitos da ilusão do que
o que é dito só pode ser dito de uma maneira. Assim é que da matéria
bruta, por fim, atinge-se o objeto teórico, isto é, o discurso. Esse objeto
resulta da análise do que é dito em uma enunciação e o que é dito em
outras, segundo outras condições de produção e outras determinações
da memória discursiva.

A segunda passagem é aquela em que o analista já está de posse do


discurso em seu processo de produção e funcionamento. Nesse ponto,
o analista vem do objeto ao processo discursivo. A análise nessa eta-
pa consiste em sair do nível do objeto acabado – o discurso em suas
propriedades – e analisar a discursividade. O analista deve se colocar
de tal modo que, mesmo implicado como sujeito que analisa <inserir
quadro lateral> “[...] o analista não só procura compreender como o
texto produz sentidos, ele procura determinar que gestos de interpreta-
ção trabalham aquela discursividade que é objeto de sua compreensão.
Em outras palavras, ele procura distinguir que gestos de interpretação

95
Análise do Discurso

estão constituindo os sentidos (e os sujeitos, em suas posições).” (OR-


LANDI,1996, p. 88). <fechar quadro lateral>, ele deve tomar distância
e expor os funcionamentos linguísticos e ideológicos que compõem o
objeto discursivo. Pensemos no que seria tomar um determinado enun-
ciado de campanha ou fragmento dele como este:

Você tem um terreno de posse?

E relacioná-lo com outro, como:

Você é dono de sua propriedade?

O exemplo se aplica à campanha eleitoral da prefeitura da cidade


de Florianópolis, em 2000, em que, ao fazer a pergunta, o candidato se
referia à situação problemática de vários proprietários de terrenos. Es-
ses, embora possuindo documento comprovando a compra, não conse-
guiam retirar a escritura do imóvel devido à situação de clandestinidade
de vários loteamentos na cidade.

Relações desse tipo permitem desmontar o objeto discursivo, fa-


zendo aparecer o processo que lhe dá forma.
“A noção de interpre-
tação passa por ser
transparente quando “Com efeito, pode-se considerar que a interpretação é um gesto, ou
na realidade são muitas
e diferentes suas defi- seja, ela intervém no real do sentido.” (ORLANDI, 1996, p. 84).
nições. Na maior parte
das vezes os teóricos a
utilizam como se ela fos-
se evidente [...]” (ORLAN- O que exercitamos aqui é apenas uma possibilidade de atingir um
DI,1996, p. 9). processo discursivo. Ele sempre pode ser outro. Em qualquer ponto
que se pegue na superfície textual, o analista nunca deve ficar seguro
de seu fechamento em torno de uma relação de sentido dada de uma
vez por todas. Por isso, é preciso recorrer, não por dentro da planície
textual; é preciso deixar de lado o fio condutor de sua coesão e coerên-
cia. É preciso rachar sua superfície e encontrar por baixo ou entre seus
fragmentos de palavras e frases outros vindos de alhures, prestando-se
a compor, desde uma região do interdiscurso ou da memória discur-
siva, um efeito de sentido. É quando ali na imagem que a superfície

96
Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo Capítulo 14
textual dá, de unidade e coerência, de atribuição segura de autoria,
percebemos que o que se diz ou escreve de uma maneira bem pode ser
de outra. Chega-se assim ao objeto discursivo. É quando ainda, sem
nos contentar com o ponto a que se chega na interpretação, aceitamos
o risco de cair em abismo, renunciar ao imaginário de que nem tudo
está completo e nos deparar com o vazio do real. O analista toca o
processo discursivo e o movimento múltiplo e incessante dos sentidos
no âmbito do interdiscurso.

97
Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices Capítulo 15
15 Textualidade e discurso:
vivem Marias e Clarices
O procedimento analítico que acabamos de expor e exercitar nos
serve para deixar claro que a textualidade não passa de plataforma a
partir da qual o discurso se superficializa. Os conceitos que aplicamos
a esse processo analítico indicam os pontos a partir dos quais se verifi-
cam jogos de superfície que constituem o discurso com seus efeitos de
autoria e de sentido. Isso equivale a dizer que a dessuperficialização do
discurso nos leva à textualidade e à função-autor como produto do pro-
cesso discursivo que atua por baixo da superfície textual.

Para ampliar a compreensão, vamos trabalhar agora sobre o exem-


plo que tem um texto como ponto de partida. Propomos aqui o diálogo
entre Clarice Lispector e Maria Martins:

- Se você tivesse que recomeçar sua vida do início, que destino escolhe-
ria, se é que se escolhe destino?

- Eu seria uma artista como sou, livre e libertada.

- Maria, a vida é difícil. Mas vale a pena viver?

- Vale, Clarice, porque a morte, afinal, é a última coisa de onde a gente


não pode voltar. Apesar de tudo, acho a vida uma beleza.

(LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 81.


Trecho da conversa entre Maria Martins e Clarice Lispector.)

Aplicando-se a esse diálogo, muitas interpretações podem ser fei-


tas. Mas lembremos que não interessa precisamente o sentido que se
venha atribuir ao enunciado dessa conversa. O que interessa é compre-
ender como, entre muitas, alguma interpretação se pode fazer aqui.

Tomemos um caso bem concreto de leitura: a cena em que o pro-


fessor e crítico de literatura, Raul Antelo, propõe certa interpretação
99
Análise do Discurso

no ponto em que Maria Martins lança certas palavras a Cla-


rice Lispector tematizando a relação entre vida e morte. Nesse
preciso trecho da enunciação, o crítico inscreve a fala de Maria
Martins no discurso nietzschiano. Veja bem que trabalhar so-
bre esse exemplo de gesto interpretativo é ousado e desafiante.
Por isso, ao retomar as ponderações de um respeitável especia-
lista em literatura brasileira, temos de atentar que não se trata
de discutir a validade ou pertinência da interpretação. Isso não
é o interesse do analista de discurso. O que interessa é com-
preender como, a partir do dispositivo teórico da Análise de
Discurso, pode-se explicitar a interpretação proposta por An-
telo, nome que tão somente deve indicar a posição de sujeito na
leitura, nunca a figura empírica da pessoa do leitor. É hora de
tomar os conceitos analíticos considerados até aqui para expli-
Figura 39 - Clarice Lispector e
Maria Martins.
citar o funcionamento de um processo interpretativo. A inter-
pretação proposta pelo crítico é a seguinte:

Há aí um ultrapassamento da noção de limite, de vanguarda, de ruptu-


ra, relacionada, em primeiro lugar, com uma teoria como a do eterno
retorno, e, em segundo lugar, com uma clara definição da felicidade
como gaia ciência. A felicidade, dizia Nietzsche, consiste em ingerir in-
termitentemente, à maneira dos homens dionisíacos. Só podemos ter
esperança, dizia o filósofo, quando uma ruminação permite conhecer
tanto o infortúnio quanto a felicidade, de modo que, assim como o
pensamento da vida inclui, a seu modo, o da morte, da mesma for-
ma, o pensamento dionisíaco nos dá acesso à concepção trágica da
vida, a concepção do entre - lugar marginal. É o que, mais tarde, será
retomado por Adorno em Mínima moralia. (Fonte: Fala oral comen-
tando um projeto de dissertação.)

Vê-se logo que o texto da conversa entre a escritora Cla-


rice Lispector e a escultora Maria Martins é aqui interpretado
nos termos do que podemos chamar a discursividade nietzs-
chiana, ou seja, do que se pode e se deve dizer a partir de uma
dada posição inaugurada no campo da filosofia, em relação
Figura 40 - O Impossível III. Maria Martins. 1946. colateral com o espaço discursivo da teoria literária. Emprega-

100
Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices Capítulo 15
-se aí um dispositivo analítico, quer dizer, um conjunto de conceitos
próprios do espaço discursivo a que se remete o texto da conversa. Den-
tre eles, destacam-se os conceitos de eterno retorno e de gaia ciência.
Tais conceitos remetem aqui a precisas relações de sentido. Mas o que
importa é que os conceitos ou os sentidos não seriam os mesmos se
o texto em questão fosse levado a interpretar a partir de outro lugar
discursivo. É isso que Orlandi (2003) propõe como sendo da ordem da
especificidade do dispositivo analítico, isto é, o campo de questões em
que se efetua a análise – no caso o cruzamento entre uma teoria literária
e uma perspectiva filosófica.

Retomemos ponto por ponto o procedimento analítico que está


por baixo da interpretação formulada. É como se acompanhássemos,
a modo de making-off, o trajeto dos gestos interpretativos procedidos
pelo professor e crítico de literatura Raul Antelo.

1) Dessuperficializando o discurso teoricamente pressuposto no


texto tomado como objeto de análise, o primeiro gesto consiste
em pinçar da superfície do texto o fragmento “[...] a morte é
a última coisa de onde a gente não pode voltar”, resposta de
Maria Martins a Clarice Lispector.

2) Em seguida, o gesto é de contrapor esse segmento a outros.

2.1) Em outra entrevista, anterior a essa, a mesma Maria Mar-


tins, quando perguntada sobre como aguardar a morte, dis-
se: “Tenho alma de cigana e ser-me-ia profundamente in-
grato ter que fincar os pés na terra, em determinado lugar,
até a visita da morte (aliás, não morremos, são os outros
que morrem) […]” (O JORNAL, 9 nov. 1956).

2.2) A frase acrescentada como que en passant – “aliás, não mor-


remos, são os outros que morrem” – é o epitáfio de Marcel
Duchamp que só viríamos a conhecer em 1968: “D´ailleurs,
c´est toujours les autres qui meurent.”

101
Análise do Discurso

2.3) A mesma frase é ainda o título de um roman noir de Jean


François Vilar, em que o pesquisador Victor Blainville é
chamado a investigar a morte de uma mulher cujo corpo
jaz no passage du Caire, exatamente na mesma posição em
que Maria Martins posou para Etant donnés.

2.4) Essa mesma frase é ressonância de outra escrita por Nietzs-


che, pela primeira vez, em Humano, demasiado humano, e
que foi copiada por Maria Martins em 1965, quando estava
no Rio escrevendo uma biografia de Nietzsche, publicada
naquele ano pela Civilização Brasileira: Os deuses maldi-
tos I: Nietzsche. A frase do filósofo é assim: “A verdadeira
imortalidade é o movimento, o retorno, e o retorno é tudo
aquilo que, uma vez em movimento, se mescla com uma ca-
deia integral de todo o ser como um inseto que, aprisiona-
do em uma substância resinosa, torna-se imortal e eterno.”

O que se explicita nessa análise de Antelo é o movimento que


parte da desmontagem do texto em análise (o da conversa entre Maria
Martins e Clarice Lispector). Observa-se que o gesto associa ao dizer
colocado em foco a outros atestáveis em outros espaços e tempos. A
dessuperficialização consiste em mostrar o modo de circulação dos di-
zeres destacando em seu acontecimento discursivo o quem diz, o quan-
do diz, o onde diz – elementos da memória discursiva. Levanta-se assim
a maneira como o gesto de interpretar mostra nele mesmo as diferentes
possibilidades de leituras que produzem os sentidos do texto em foco.
Veja que, em termos de procedimento, a análise consiste em perseguir,
na história do dizer, os vestígios linguísticos que levam ao processo dis-
cursivo em funcionamento no objeto analisado.

No recorte exemplificado, ocorre a passagem do objeto para o pro-


cesso discursivo no ponto em que, a partir da relação de um dizer com
outro, delineiam-se os contornos da formação discursiva, ou seja, aqui-
lo que pode e deve ser dito a partir de uma posição ideologicamente
constituída. Trata-se, no caso, de explicitar como se constitui o sentido
do dizer “a morte é a última coisa de onde não se pode voltar”, tomado
como eixo condutor do texto da conversa. Ao relacionar esse dizer com
102
Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices Capítulo 15
outros em uma rede de filiação de sentidos, pode-se anotar como seu
efeito se faz num ponto da memória discursiva conectando-o à forma-
ção discursiva que aqui pode ser denominada nietzschiana. Isso pode
acontecer independentemente do conhecimento do locutor, daquele que
fala ou comete o ato de enunciação, porque a memória discursiva nada
tem a ver e não depende da memória pessoal ou individual. Mesmo
quando há intenção de fazer um dado proferimento, fazer cadeia com
outros atestáveis na história, tal intenção já está implicada na memória
discursiva, isto é, a intenção é apenas um dispositivo pelo qual o sujeito
foi feito e tomado em seu dizer em certa posição de discurso.

A interpretação de Antelo, por mais que se apoie em elementos do-


cumentais atestáveis em arquivos de bibliotecas, se pensada do ponto de
vista discursivo, não toma os textos interpretados como “[...] documen-
tos que ilustram idéias pré-concebidas.” (ORLANDI, 1999, p. 64). Ou
seja, a fala de Maria Martins, tomada como fragmento textual em uma
situação de entrevista com Clarice Lispector, não deve ser lida como
mera ilustração das ideias de Nietzsche, como se essas fossem o sen-
tido oculto daquela. Não. No momento, em que dados segmentos tex-
tuais são recortados da superfície em que ocorrem para ser colocados
em relação com outros ocorrentes em outra superfície linguística, são
considerados como “[...] monumentos nos quais se inscrevem múltiplas
possibilidades de leituras.” (ORLANDI, 2003, p.64).

Por isso, o texto analisado não se esgota em uma única leitura. O


que Antelo faz aqui é recortar o discurso no qual funciona a fala de Ma-
ria Martins, que é recortada em um processo discursivo mais amplo. O
recorte observado nessa interpretação mostra a maneira como a análise
ou a interpretação funciona, isto é, pela colocação de fragmentos textu-
ais em redes de possíveis filiações de efeitos de sentido.

103
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
16 Da dispersão do sujeito à
unidade do autor
Já vimos que tornar-se sujeito é ocupar posição no discurso, ou seja,
enunciarno lugar de cruzamentos de dizeres em que o dizer que se realiza
faz sentido em uma direção e não em outra. Vimos também que isso impli-
ca que em um mesmo falante pode haver diferentes possibilidades de ser
sujeito. Tudo depende da posição em que ele vai jogar com as palavras. No
entanto, a partir do momento em que o falante enuncia em certa posição
de discurso, ele define para sua fala certa orientação de sentido atingindo a
coerência. Nesse ponto é que o sujeito passa da dispersão para unidade. É
quando, ao se relacionar com o texto, ele não pode mais se expor à deriva
do sentido, sem assumir a responsabilidade do lugar do efeito de sentido
de suas palavras. Essa é a condição para que ele se torne enfim autor. Por
isso, Orlandi pondera que, ao contrário da relação do sujeito com o texto,
relação que é caracterizada pela dispersão, a autoria distingue-se pela dis-
ciplina, organização e unidade. Observemos os textos a seguir, um escrito
por uma escritora e outro escrito por um jornalista, e analisemos de que
maneira eles podem e não podem ser remetidos à mesma autoria.

As caridades odiosas

Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela


rua depressa, emaranhada, nos meus pensamentos, como às vezes
acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se engan-
chara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão peque-
na e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno
davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da
grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engoli-
das, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi
vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concre-
to. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da
criança o que me ceifara os pensamentos.

– Um doce, moça, compre um doce para mim.

105
Análise do Discurso

Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o


menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar
uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma
grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas
da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete,
entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar:
um doce para o menino.

De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena,


humilhante para mim terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você...

Antes de terminar, o menino disse apontando depressa com o dedo:


aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu
me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

– Que outro doce você quer? perguntei ao menino escuro.

Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade


pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com deli-
cadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele
poupava a minha bondade.

Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para frente. O menino he-


sitou e disse: aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, le-
vantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mes-
mo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para
mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

– Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta
há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas
ninguém quis dar.

Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era


inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sen-

106
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
timento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer,
o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de... E para
isso fora necessário um menino magro e escuro... E para isso fora necessá-
rio que outros não lhe tivessem dado um doce.

E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com


autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que
os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que
teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora
sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores,
só que inúteis.

(LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo.


Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 249-250.)

Mendicância chique

Nada mais familiar aos brasileiros do que as esquinas cheias de gen-


te pedindo esmola. Entre os pedintes há os que se apresentam em
cadeiras de rodas ou muletas. Há os velhos, os barbudos, os bêbados
e as mulheres com bebês no colo. Há as crianças, sobretudo, muitas
crianças. De uns tempos para cá elas se especializaram em fazer ma-
labarismo na frente dos carros. Algumas são realmente competentes
na arte de manter no ar três, quatro ou cinco bolinhas. Demonstram
que tiveram sagacidade e persistência para aprender, o que pode ser
sinal de talento também para outras coisas na vida. Outras vão mal,
constrangedoramente mal. Fazem papel de pequenos palhaços invo-
luntários no show das esquinas. Todos têm em comum os andrajos
com que se vestem e a fuligem da pobreza que lhes cola à pele, sinais
do desvio social em que estão metidos.

Todos? Não. Há uma exceção: uma tribo de mendigos chiques que


sazonalmente invade as ruas. Vestem roupa de butique. Não raro,
terminado o expediente nas esquinas, dirigem-se ao carro que esta-
cionaram nos arredores – carro bom, de modelo recente. O compro-
misso seguinte será uma compra no shopping center ou, se estiver

107
Análise do Discurso

na época, uma sessão da Fashion Week. A noite terá o restaurante da


moda e a balada. São os novos alunos das faculdades. Nesta época,
de divulgação dos resultados dos vestibulares, eles se postam nos
cruzamentos, monitorados pelos “veteranos”, para pedir dinheiro.
Não dizem que estão pedindo esmolas. Dizem que é para arrecadar
fundos para a festa dos calouros, para a cervejada, algo nessa linha.
O.k., assim é mais elegante para com a clientela, ainda que cruelmen-
te deselegante com quem pede para comer mesmo. [...] Há algo de
deprimente, no entanto, nessa gente bem-posta, bem-vestida e, em
regra, claro, branca – a cor de pele da esmagadora maioria dos que
entram nas faculdades – reunida nas esquinas para mendigar. Para
começar, os calouros pecam contra os princípios da sadia concorrên-
cia. Drenam os trocados que, de outra forma, poderiam destinar-se ao
andrajoso de pele escura da esquina seguinte.

Mas esse é um aspecto secundário da questão. Importante é o significado


que o exercício da mendicância chique assume no plano mais simbólico.

Outrora, uma das cenas favoritas, nos desenhos ou nas gravuras que ex-
ploravam a estética do grotesco, era o festim dos mendigos. Em torno
de uma mesa farta, reuniam-se os maltrapilhos, os sujos, os desdentados.
Considerava-se muito divertida a inversão dos papéis. Na mesa dos ricos,
por vezes até provida de finas toalhas e cristais, os pobres se esbaldavam.
No caso da mendicância dos calouros, observa-se a mesma inversão de
papéis, mas em sentido contrário: são os ricos que imitam os pobres. É
a velha história do príncipe e do mendigo, na faceta não do mendigo
reinando no palácio, mas do príncipe esmolando pela rua.

[...] A caricata versão do mendigo de camiseta de grife é o Brasil achinca-


lhando a si mesmo. É a encenação, na avenida, para usar da linguagem
carnavalesca, do enredo da imitação da miséria, campeão indiscutível,
num país já suficientemente aquinhoado de miséria, no quesito escár-
nio. [...]. Ainda não chegamos, porém, ao pior efeito da mendicância
chique. O pior, porque melancolicamente ilustrativo de uma sociedade
fragmentada, é a inter-relação que se estabelece entre pedintes e doa-
dores, esmoleiros e esmoleres. Há uma relação de cumplicidade. Com o

108
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
mendigo de verdade, a reação é de medo, de asco ou, mesmo quando
há simpatia, de distância e instintivo alerta. Os sentidos põem-se em
guarda. Todo cuidado é pouco. Com o falso mendigo representado pelo
calouro, relax, ele é um dos nossos. São os nossos meninos. As nossas
meninas. Ah, essas nossas crianças e suas travessuras! Não são como
aquelas outras, assustadores seres de um mundo que não conhecemos
senão por raros vislumbres através da janela do automóvel. Pode-se até
não dar esmola alguma, mas sai-se com a alma leve. Foi como encon-
trar um amigo, como rever-se na juventude. No caso do mendigo de
verdade, pode-se até dar a esmola, mas a alma sai pesada de temores. O
contraste entre as duas situações magnífica, nas esquinas, o sulco que,
além de dividir no plano objetivo a sociedade brasileira, se prolonga in-
sidiosamente para dentro de cada um de nós.

(TOLEDO, Roberto Pompeu. Veja, 12fev. 2003.)

Temos aqui o que poderíamos chamar dois pontos de vista sobre o


mesmo tema, desenvolvidos em dois textos. A autoria aqui não deve ser
identificada pelo nome do indivíduo que escreveu, mas pela maneira de
o tema ser convertido em texto. De modo que essa primeira percepção
não passa de arranjos sem uma composição textual predefinida e sem
uma determinação de autores apreensíveis fora de um jogo discursivo.
O ato de pedir e dar esmola tomados em certas formações discursivas
derivam ao mesmo tempo autor e texto. A derivação vem de duas linhas
de partida que se contrapõem de forma complementar. Ao perguntar
quem é o autor em cada uma das textualizações anteriores, encontra-
mos a primeira linha que já definimos como discurso, ou os efeitos de
sentido entre locutores. A outra linha que se junta a essa é a que mostra
os efeitos de sentido múltiplos e dispersos organizados em texto. Nes-
se sentido, é que Orlandi (2003) demonstra como a textualidade é o
discurso exposto e veiculado na ordem da organização. Isso equivale
a definir o texto “[...] como sendo uma unidade que podemos, empiri-
camente, representar como tendo começo, meio e fim, uma superfície
lingüística fechada nela mesma.” (ORLANDI, 2003, p. 73).

109
Análise do Discurso

Não é que em cada um dos textos aqui exemplificados tenhamos a


representação da prática de dar esmolas. Do ponto de vista do discurso,
é bem outra coisa de que se trata, tanto no primeiro texto quanto no
segundo. Algo na escrita de cada um garante ou não a cristalização de
certa representação da prática da mendicância, e esse algo tem a ver
com o processo discursivo. Lembremos bem o que Orlandi (2003, p. 73)
esclarece sobre isso: “[...] há na base de todo discurso um projeto totali-
zante do sujeito, projeto que o converte em autor”.

Fica claro, portanto, que o autor é uma função e nunca a descri-


ção e nomeação do indivíduo que escreve. Como se caracteriza anali-
ticamente essa função? A característica do autor como lugar de apaga-
mento do sujeito, como dispersão e de sua construção como unidade
está nos traços definidores do texto, isto é, a unidade traduzida em
termos de coerência e coesão. Estamos perto de compreender de que
maneira o texto é o lugar da constituição do sujeito como autor. Trata-
-se de uma operação em que, ao se enunciar, falando ou escrevendo
– com coesão, coerência e completude ou fechamento – o escrevente
ou o falante transforma-se em autor do que diz. Isso acontece porque
cumpre a tarefa de fazer texto a fim de que o discurso seja organizado
pela indicação de onde parte, por onde passa e onde quer chegar em
termos de efeitos de sentido.

Acontece que a pretensão de unidade e de coerência é apenas ima-


ginária, pois o real do discurso é descontinuidade, dispersão, incom-
pletude, falta, equívoco, contradição. Vemos então que há a articulação
necessária entre o real, – plano do disperso – e o imaginário – plano do
unificado. É articulando-se nesses dois movimentos que o discurso se
realiza e funciona. Nos termos dessa articulação, localiza-se do lado do
real, a relação sujeito/discurso, e do imaginário, a relação autor/texto.
O que diferencia os pontos precisos dessa relação é que a primeira é
marcada pela escorregadela, pela falha, pelo lapso, enquanto a segunda
marca-se pelo efeito de amarração, definição, certeza, evidência, clareza,
coerência, exatidão. É assim que do discurso se faz a posição sujeito,
sempre passível de deslocamento, à diferença, e do texto se faz a função-
-autor, sempre submetida à permanência, ao mesmo.

110
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
Eis a primeira razão porque colocamos em confronto os dois tex-
tos citados anteriormente: As caridades odiosas e Mendicância chi-
que. Se examinarmos em detalhes as características textuais de cada
um, logo observamos que, em relação à discursividade de que são par-
te, o primeiro desliza na confluência dos sentidos. Ali a função-autor
opera na contramão da textualidade porque os sentidos, embora se in-
sinuem nas palavras e construções sintáticas, não chegam a se fechar.
Ao contrário do segundo, que por deixar organizar-se e fechar-se em
dada região da formação discursiva de onde retira sua condição textu-
al, torna-se imaginariamente completo, coeso e coerente.

Vejamos na montagem que se pode proceder mostrada na figu-


ra a seguir. Nela recortamos ou dessuperficializamos fragmentos de
cada uma das superfícies textuais dadas em separado e, em seguida,
colocamos lado a lado, confrontando a maneira com que se procede
a textualização do discurso significando a situação em que se verifica
uma prática urbana em que um passante cede esmola a um pedinte. É
o modo como essa prática social encontra ou não encontra uma ma-
neira de significar que está em questão.

[...], a reação é de medo, de asco ou, [...], de distância e instintivo alerta.


Os sentidos põem-se em guarda. Todo cuidado é pouco. [...], assustado-
res seres de um mundo que não conhecemos senão por raros vislum-
bres através da janela do automóvel. [...], pode-se até dar a esmola, mas
a alma sai pesada de temores.

(Roberto Pompeu de Toledo)

“Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Eu


estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha.
[...] Eu tivera a oportunidade de... E para isso fora necessário um menino
magro e escuro... E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem
dado um doce.”

(Clarice Lispector)

111
Análise do Discurso

Admitamos que os recortes aqui remetem ao trabalho de textu-


alizar um processo em curso na memória discursiva de grandes cen-
tros urbanos em contexto de capitalismo. Vê-se aqui a cena do que é
possível dizer acerca da relação entre o que dispõe do que lhe sobra e
o que nada tendo só resta pedir. O ponto que se toca nessa discursi-
vidade é de como se significa aquele que tem a palavra na posição de
doador e também de como significa o outro que lhe demanda esmola.
Mais ainda: o dizer tenta textualizar o modo como o próprio pedinte
se significa diante da suposta generosidade de quem lhe estende a mão
oferecendo-lhe a esmola.

Na posição ideológica do que se pode e deve ser dito a partir das


regras de formação de discurso sobre as diferenças socioeconômicas,
em A mendicância chique, as expressões “a reação de medo”, “de asco”,
“de alerta”, “de distância instintiva” devem ser ditas coerentemente re-
lacionadas às palavras do outro texto, proferindo que se pode até dar a
esmola. Esse, por sua vez, entra na mesma cadeia enunciativa em que se
junta a expressão contraditória da “alma sai pesada de temores”.

Temos, nesse breve exercício analítico, as relações de sentido que


se podem atestar na série de enunciações que destacamos através dos
textos escolhidos. Nela deve-se, sobretudo, pressupor, como acontece
no encontro entre a língua e a história. As mesmas palavras fixam sen-
tidos mutuamente excludentes. Entretanto, mesmo que díspares, do
jeito com que as palavras se juntam protocoladas em certa formação
discursiva, garante-se, nesse arranjo, unidade textual e, portanto, efei-
to de completude. Assim, o nome do jornalista Roberto Pompeu de
Toledo pode designar um lugar de autoria exatamente por garantir o
fechamento do sentido em torno de uma posição em discurso.

Podemos dizer que As caridades odiosas enceta uma textualidade


na mesma direção discursiva. Com a ressalva de que aqui a textua-
lização acontece sob difíceis condições por mal conseguir apagar os
vestígios do real, da dispersão do sujeito e do discurso que assombra
a obrigação da autoria e da unidade textual. Ao formular a retirada
realçando linguisticamente as circunstâncias com o rosto corado de

112
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
vergonha, tem-se a impressão de uma significação que entra na con-
tramão do que se diz no outro texto – não mais superioridade diante
do pedinte, mas constrangimento perante o escancaramento da dife-
rença. Só que logo em seguida a pergunta: “De vergonha mesmo?”.
Mais do que as palavras sintaticamente encadeadas, ponto de interro-
gação é também o ponto de inflexão do dizer, marcando nele a contin-
gência do deslize, do lapso da falha. Tem-se aí a marca da dificuldade
de o discurso se fechar em uma unidade textual e também o flagrante
do sujeito em dispersão, tomado entre uma e outra posição: ou ele se
diz tomado de vergonha, ou ele repete a palavra vergonha para, pela
interrogação, fazê-la escorregar para outro lugar de sentido. É quando
o deslize irrompe de modo quase incontrolável e onde se diz vergo-
nha, se pode também dizer amor, gratidão, revolta. Palavras que não
dizem nada por si mesmas a não ser pelos percursos não coinciden-
tes que fazem até que possam organizar uma discursividade em texto.
Assim que o nome de Clarice Lispector, fora do campo da literatura
brasileira, não chega a estabelecer uma remissão do texto a autoria, ou
vice-versa. O que se pode ter é a explícita mostração das vicissitudes
do sujeito capturado pelo movimento do discurso cujo destino é o de
sempre abrir para múltiplos sentidos.

Até aqui podemos então concluir que a autoria é uma das possibi-
lidades ou um dos lugares – previstos no processo discursivo – de o su-
jeito se constituir. Isso quer dizer que pode haver sujeito na passagem
entre uma posição e outra, isto é, no movimento equívoco dos senti-
dos ideologicamente monitorados: ao ser um em dado lugar, o sujeito
sempre pode resvalar-se para se constituir em outro. Já com a função-
-autor se passa bem ao contrário, pois é preciso que a ela corresponda
o sujeito imaginariamente fixado como o eu que é fonte e princípio de
completude de seu discurso. Por isso mesmo, reportando-se ao Michel
Foucault de A ordem do discurso, é que Orlandi (2003) assinala que a
autoria é uma função de sujeito, ou seja, um dos efeitos de subjetivação
discursiva mais social e historicamente controlada. Aí está o espectro
da exterioridade, condição material da efetivação do sujeito, aqui cir-
cunscrito na forma da autoria.

113
Análise do Discurso

Desdobrando-se nas funções enunciativas de locutor e enunciador,


o sujeito-autor deve se representar como o eu que se responsabiliza pela
tomada da palavra e apresentar, na qualidade de enunciador, que pers-
pectiva ele toma a palavra, seja no plano oral, seja no escrito. É dessa
forma que, enquanto autor, o sujeito se faz “[...] produtor de linguagem,
produtor de texto.” (ORLANDI, 2003, p. 75).

“[...] o princípio do autor limita o acaso do discurso pelo jogo de uma


identidade que tem a forma da individualidade e do eu.” (ORLANDI,
2003, p. 75).

Voltamos aqui ao nosso ponto de partida: no atravessamento que


submete a fala à ordem do discurso o que se espera é a concretização do
sujeito-autor. O que a ordem discursiva garante é certeza de o sujeito,
falando na posição de autor, ser visível, calculável, identificável, contro-
lável. O que faz Orlandi (2003) é ampliar a noção de sujeito de discurso
tal como vimos Foucault desenvolver em sua aula A ordem do discurso.
Vimos como ali o sujeito que se apresenta hesitante ao falar se apresen-
ta como um problema das instituições de saber. Esse é o lugar restrito
da aplicação das regras discursivas para ser sujeito-autor. Mas Orlandi
(2003), como dissemos antes, amplia a aplicação dessas regras – coerên-
cia, clareza, não contradição – a toda situação em que se demanda que
o sujeito se faça desempenhando sua fala ao modo do que se estabelece
socialmente como texto bem formado.

Não basta falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma
inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histó-
rico-social. Aprender a se representar como autor é assumir, diante
das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a
linguagem, constituir-se e mostrar-se autor. (ORLANDI, 1988).

Retomemos as características que separam o texto Caridades odio-


sas do texto Mendicância chique. O que se vemos no primeiro é o modo
com que se opera uma textualização situando-se mais do lado da mul-

114
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
tiplicidade das representações possíveis da prática de dar esmola. Já o
segundo texto é mais eficaz em uma economia de posições excludentes,
que organiza sua dispersão garantindo coerência, dando lugar ao apa-
recimento do autor, assumindo-se naquilo que diz e ostentando a pers-
pectiva de onde seu dizer faz texto.

De sua parte, como adverte Orlandi (2003), o leitor deve se ver


refletido nessa mesma dinâmica em que a função-autor se concretiza.
Cabe ao leitor adotar procedimentos de interpretação como suporte
da apreensão dos vestígios discursivos da autoria. Certamente, a auto-
ria há que ser o mesmo lugar em que o leitor deve se constituir como
sujeito-autor de sua leitura, ainda que em sua relação com o texto ele
se depare em posição diferida com respeito ao jogo discursivo que cir-
cunscreve a unidade do texto e de seu autor. Tudo isso varia conforme
o regime histórico no qual os textos são dados à leitura. A liberdade
de acesso ao ato de ler nem sempre é vigente em todas as épocas, e
naquelas em que a distribuição da leitura é rarefeita, isto é, não é para
todos, a leitura se define como a mediação que a autoriza nas direções
discursivamente dadas segundo a época; “[...] não se é autor (ou leitor)
do mesmo modo na idade média e hoje”, diz Orlandi (2003, p.76).

Ainda nos detendo sobre os textos aqui propostos como ilustra-


ção de processos textuais submetidos ao discurso, vale exercitar de que
maneira, contrapondo um e outro, pode-se fazer vir à tona os processos
discursivos que ora afastam ora aproximam uma formulação e outra em
termos de efeitos de sentido. No que toca às aproximações de relações
de sentido, explicitam-se os mecanismos parafrásicos. É quando o lugar
de onde fala Clarice Lispector coincide com o lugar de onde fala Ro-
berto Pompeu de Toledo. Pincemos um fragmento enunciativo de cada
texto e os coloquemos lado a lado. É o caso do seguinte exemplo:

“[...], mas a alma sai pesada de temores.”“Fui embora, com o rosto corado
de vergonha.”

Dessa maneira, dessuperficializados os fragmentos bem podem ser


remetidos à mesma formação discursiva, ou seja, à mesma posição em

115
Análise do Discurso

que na relação entre dar e pedir esmola se põe em questão o que signi-
fica ser doador de esmola. Não importa se em cada formulação alude-se
a modos diferentes de focalizar o sujeito que dá esmola. As palavras da
língua aqui se inscrevem na cena induzindo a diferença entre quem diz
“alma pesada de temores” e aquele que diz “rosto corado de vergonha”.
O que importa é que uma mesma memória discursiva aloca as duas
maneiras de dizer, e é isso que as torna uma paráfrase da outra. A enun-
ciação se habilita a partir do que pode e deve ser dito no interior de uma
posição ideologicamente estabelecida para significar a relação entre o
doador e pedinte.

Em contrapartida podemos, por dessuperficialização, proceder ao


confronto de outros dois fragmentos, nos quais os dizeres remetem a lu-
gares irredutíveis de sentido, portanto a formações discursivas diferentes.

“[...] Os sentidos põem-se em guarda. Todo cuidado é pouco.” “Eu estava


cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha.”

Trata-se apenas não de propor uma interpretação, mas de expor o


gesto ou o procedimento pelos quais duas maneiras de dizer não podem
se encontrar no mesmo lugar de discurso. Nos fragmentos anteriores,
o da esquerda induz uma maneira de significar o pedinte que não pode
ser incluída no modo com que é significado no fragmento à esquerda.
Digamos que, mediante a história das relações de diferença social, a po-
sição de quem vê o pedinte só pode tomá-lo como suposto perigo. É
que alude discursivamente a formulação da esquerda; “Todo cuidado
é pouco”. À direita, a formulação indica alusivamente o pedinte como
suposta vítima definindo-se na situação como alguém pleno “[...] de um
sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha”.

É claro que precisaríamos projetar a análise em um quadro maior


de memória discursiva em que se poderia expor a historicidade dos sen-
tidos em regiões de discurso que tornam possível um dizer e não outro.
Mas o objetivo aqui é demonstrar o jogo interpretativo que, a partir de
Michel Pêcheux, Orlandi (2003) define como efeito metafórico.

116
Da dispersão do sujeito à unidade do autor Capítulo 16
Orlandi refere-se ao deslize que é próprio de toda língua. Isso quer
dizer que nenhuma forma linguística está presa a um sentido permanente.
Por mais que se torne literal na história, o sentido das palavras entra em
deriva a cada vez que é empregado. Justamente nisso que consiste a cone-
xão entre língua e história. É que a cada vez que a língua é mobilizada em
dadas circunstâncias, uma vez que o significado que pode instaurar não é
evidente, é preciso interpretar. A interpretação é, portanto, o procedimento
inerente ao próprio modo de a língua funcionar em conexão com a história.

O efeito metafórico, nos diz Michel Pêcheux (1969), é o fenômeno


semântico produzido por uma substituição contextual, lembrando
que este deslizamento de sentido entre x e y é constitutivo tanto do
sentido designado por x como por y. (ORLANDI, 2003, p. 78).

Bem, o que isso tem a ver com a metáfora? A metáfora designa


a maneira com que, pelo movimento deslizante das palavras, pode-se
descrever a ação discursiva que constitui o sujeito e o sentido. O que se
descreve exatamente nesse movimento não é desvio, mas transferência
(ORLANDI, 2003, p. 79).

É o que propusemos fazer ver no confronto entre os dois frag-


mentos anteriores. Ao dizer “os sentidos põem-se em alerta”está pre-
sente também “eu estava cheia de um sentimento de amor”. Palavras
e estruturações linguísticas diferentes que estão mutuamente em re-
lação de paráfrase e polissemia, já que respectivamente a diferença
de sentido de uma formulação está contida em outra. Aquele que diz
alerta está sujeito a dizer gratidão e assim sinalizar a articulação de
formações discursivas, o que evidencia o efeito metafórico determi-
nado pelo deslocamento dos lugares de sentido aplicado a palavras
alocadas e significadas em lugares outros.

Pode-se dizer que, no que concerne ao dar esmola, Clarice Lispec-


tor e Roberto Pompeu falam a mesma língua, mas em modos diferentes.
Lembremos aqui o que já foi dito de o interdiscurso ser esse movimento
aberto à multiplicidade dos sentidos. O que está apresentado aqui são

117
Análise do Discurso

dois textos organizados em estilo, em gêneros que lhe são próprios po-
derem ser capturados na mesma e na diferente formação discursiva.

Veja que é do movimento que se trata, ou do ponto em que a super-


fície textual é rasurada para fazer fragmentos se encontrarem com outros
reconhecendo-se na coincidência e se confrontando na não coincidência.
É como se imaginássemos os dois autores falando entre si do mesmo tema
e na mesma língua, contudo tendendo a dizer com as mesmas palavras
sentidos diversos, e com palavras diversas os mesmos sentidos. Mas é
importante pontuar que a textualização de Clarice Lispector deixa mais
escancarado o deslize, enquanto que a de Roberto Pompeu tende mais
ao fechamento e ao apagamento da deriva que lhe é inerente. É só quan-
do confrontado com o que diz Clarice que o dizer de Roberto mostra-se
mais deslizante. O que está em destaque no jogo metafórico é a função
inevitável da alteridade; o sentido não se dá nunca como o mesmo sem ter
o outro como seu referencial, o que acontece não como dado natural da
linguagem, mas como efeito da história, ou da historicidade.

“[...] a historicidade deve ser compreendida em Análise de Discurso


como aquilo que faz com que os sentidos sejam os mesmos e tam-
bém que eles se transformem.” (ORLANDI, 2003, p. 80).

Praticar Análise de Discurso como princípio e como procedimento


fica bem mais interessante se o analista assimila o jogo que caracteriza
a relação entre a língua e o discurso. A definição de base para língua é
a que propõe Michel Pêcheux, isto é, “sistema sintático intrinsecamente
passível de jogo.” (PÊCHEUX, 1980). Já a definição própria para a dis-
cursividade consiste em pensá-la como inscrição de efeitos linguísticos
materiais na história.” (PÊCHEUX, 1980). Tudo se passa como se para
haver história fosse necessário a passagem dos fatos pela dinâmica pró-
pria da língua. Por outro lado, para haver sentido, é como se a língua
cravasse suas formas e mecanismos nos fatos dando forma ao dizer e ao
sujeito que diz. Tudo isso resume o que é a historicidade.

118
Considerações Finais

Considerações Finais
Com esse exercício, ao mesmo tempo de desconstrução e de bus-
ca de lugar discursivo determinante do autor, chegamos ao final des-
te plano. O intuito foi propor uma maneira de apresentar a Análise de
Discurso dando conta do exercício da linguagem tanto no campo das
Letras como no das Ciências Humanas em geral. Começamos mos-
trando como a fala do indivíduo é a medida do sentido do que ele diz
e da possibilidade que ele tem de tornar-se sujeito; palavras que diz em
contextos bem determinados, seja de âmbito político, científico, ou no
mais amplo sentido social do exercício da linguagem.

Fechando no que concerne à linguagem, ficou estabelecido pela


Análise de Discurso que essa tem certa precedência frente ao que social
e historicamente se dá como realidade. É que, ao relacionar-se com o
mundo e interagir com outro, o homem precisa da linguagem. Fora dela,
nem ele, nem o mundo significa; e, sem sentido, a realidade não existe.
O que se apresenta como conceito de linguagem refere-se ao trabalho
simbólico do discurso, que, conforme radicalmente adotamos com Or-
landi (2003, p.15), “[...] está na base da produção da existência humana”.
Basta a exposição dessa radicalidade conceitual para que a linguagem,
nas palavras de Orlandi (2003, p.15), se imponha analiticamente como
“[...] mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social.”

Decorre daí que a linguagem é forma material do discurso porque


nela se observam analiticamente homens falando, dito de outro modo,
observa-se o aspecto constitutivo do fazer da língua, submetida ao pro-
cesso histórico e ideológico que descreve o modo como, através do exer-
cício da fala, se produz sujeito e sentido.

O que é analisar discurso? Para analisar discurso, é preciso consi-


derar falas efetivamente produzidas, de modo oral ou escrito. Não im-
porta se a fala produzida está ou não conforme as regras gramaticais, tal
como seria o caso de uma abordagem estritamente normativa. O que
interessa é descrever como qualquer coisa dita, do jeito que é formulada,
faz sentido. Essa descrição de como qualquer coisa dita pode fazer sen-

119
Análise do Discurso

tido define o que é analisar discurso, ou seja, é descrever as condições


– de natureza histórica, social, ideológica – nas quais uma fala qualquer
produz sentido.

Trata-se não de associar uma fala a um quadro contextual de datas


e fatos, mas de relacionar a fala, tomada como ponto de partida a outras
produzidas em diferentes tempos e lugares. Considerar, portanto, o his-
tórico, o ideológico, o social, na escola francesa de Análise de Discurso,
é considerar atos de enunciação atravessados por domínios de memória
feitos de enunciados efetivamente realizados. Enfim, o que se faz em
Análise de Discurso é descrever, mediante artefatos teóricos e procedi-
mentos analíticos, modos de aparecimento do sentido e do sujeito.

120
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Figura 36 - Cena do filme The Trial, adaptação para o cinema da obra O


processo, de Franz Kafka, dirigida por Orson Wells.
Fonte: Disponível em <www.katharsis.blogger.com.br/2006_04_01_ar-
chive.html >. Acesso em: 10 out. 2011.

Figura 37 – Outra cena do filme Viver a vida.


Fonte: Disponível em <http://cinecafe.files.wordpress.com/2010/05/un-
titled-1.jpg?w=510&h=385 >. Acesso em: 10 out. 2011.

Figura 38 – Do escritor e jornalista Millôr Fernandes.


Fonte: Disponível em <http://www2.uol.com.br/millor/ > Acesso em:
10 out. 2011.

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Análise do Discurso

Figura 39 – Clarice Lispector e Maria Martins.


Fonte: Disponível em <http://nao2nao1.com.br/img/clarice.jpg >. Aces-
so em: 10 out. 2011.

Figura 40 - O Impossível III. Maria Martins. 1946.


Fonte: Disponível em <http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=maria-
-martins >. Acesso em: 10 out. 2011.

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