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Épocas eleitorais sempre revelam pessoas tidas como excêntricas, para não dizer lunáticas,

que, de outro modo, passeavam despercebidas pela multidão. Só então, graças aos holofotes
da propaganda e à generosidade das verbas eleitorais, essas pessoas adquirem notoriedade.
Tudo isto, por si, talvez seja um indício da percepção dorminhoca do povo, que só de dois em
dois anos, e principalmente durante as campanhas presidenciais, se dá conta da corrente de
idéias esquisitas e pessoas instáveis que circulam por aí.

E é bom atentar para uma coisa. Um louco, por doido que seja, tem estômago que ronca igual
ao duma pessoa clinicamente tida como sã. Esta simples constatação, que pode ser tomada
displicentemente como uma platitude, implica uma série de considerações magníficas.

Temos alguns doidos que vivem da caridade pública ou da de seus familiares. Assim matam a
fome e tem um abrigo contra as intempéries. Outros, pelo contrário, obtém seu pão e pagam
suas contas exatamente como qualquer pessoa em seu perfeito — digamos assim — juízo.
Darei um exemplo que basta.

Um psicólogo me contou que tinha um paciente que cria ser um avatar cósmico destinado a
difundir a bondade pelo mundo, não obstante lidar com o ceticismo inoportuno de seus
próprios beneficiários. Sem dúvida qualquer um deveria aplaudir boas intenções, quer venham
dum homem ou duma entidade extraplanetária. Seria de bom tom sempre reconhecer a
elevada solicitude de um ser, mesmo que esse ser tenha cabeça de formiga, tentáculos de
polvo, fale como gente e seja humilde dignitário da estrela Vega. Nosso planeta carece de
criaturas tão boas, conforme as épocas eleitorais constantemente nos recordam, a despeito do
catatau de declarações dos candidatos ou justamente por causa do que eles não declaram e
todo mundo sabe. Quem dera se houvesse ainda mais avatares cósmicos. O fato de uma
criatura dessas ter acabado num consultório psicológico indica, lamentavelmente, os
transtornos que sua excelente missão andou lhe causando e a relativa mesquinharia da nossa
raça ingrata. Cabe outro registro. O paciente, com muita compreensão, observava ao psicólogo
que sabia da existência de câmeras ocultas para registrar as sessões no consultório. (Isto me
foi contado entre sorrisos, não sei por ironia ou com a intenção de me tornar cúmplice duma
malícia. Que sei lá da existência de tais câmeras!) Achava natural, dada a sua história, ser
objeto de curiosidade investigativa.

Também esse paciente, ou avatar, ao menos em sua forma humana, tinha contas a pagar e um
estômago a preencher. Precisava trabalhar. Como era capaz, passou num disputado concurso
público e, passados alguns anos, tornou-se gerente duma estatal. Se a uns parecia doido de
pedra e a outros um autêntico filantropo, o fato é que, fosse uma coisa ou outra, senão as
duas juntas, trabalhava honestamente e obtinha como recompensa um belo. Seu desafio,
entretanto, era precisamente conciliar a aparência de vida humana dum funcionário público —
“honi soit qui mal y pense”, já digo a quem supor que me expressei aqui com ambiguidade
epigramática — com sua grandiosa missão cósmica. Isto lhe causava alguns incômodos
pessoais e percalços empregatícios. Mesmo avatares se molestam ou conseguimos molestar
inclusive avatares. E assim foi parar no consultório.

O tratamento, se é que propriamente deveria ser chamado assim, consistia em manter o


paciente produtivo, isto é, trabalhando e honrando suas contas, sem destruir sua crença
galáctica. O psicólogo me disse que, em casos dessa natureza, só resta manter o carro
andando, para usar uma imagem automobilística, pois insistir em destruir uma fantasia com
porretadas de realidade rígida comportava o risco de estraçalhar o diminuto santuário de
sanidade mental desse tipo de paciente e que lhe permitia ainda agir com razoável
independência; doido, sim, mas trabalhava e não rasgava dinheiro — ainda. Já que só restava
ao paciente dançar, que se lhe aplaudisse, desde que o espetáculo fosse mantido sob controle.

Não sei que tipo de conversa os dois tinham. Percebo que jamais poderia ser psicólogo porque,
após duas sessões desse tipo, o louco seria eu. Profissionais da área de saúde mental, diga-se
de passagem, costumam eles mesmos se dirigir a seus colegas de profissão pelos mesmos
motivos que alguém leva seu carro à repartição do DETRAN uma vez a cada ano: vistoria
devida e salutar.

Estaria me desviando do assunto se realçasse o fato de os serviços públicos, em seus médios e


altos escalões, comportarem pessoas literalmente doidas e sem o menor inconveniente. Há
algo relacionado, entretanto, que vale comentar.

Chesterton tem uma frase famosa: o doido é aquele que perdeu tudo, exceto a razão. Acabei
de relatar um exemplo. Refletindo por bastante tempo a respeito de uma e outra coisa, me
ocorreu o que ora exponho. Caso seja mais um fruto de insanidade, deixo aqui ao alvitre de
quem me ler e estendo a mão à palmatória. As atividades humanas em geral, do ponto de vista
de sua mera execução, são mecânicas e se desenvolvem por uma espécie de automatismo,
desde abrir uma porta até construir um computador e, até certo ponto, redigir um texto, como
talvez seja aqui o caso. Hölderlin, aliás, continuou a escrever poemas ao longo de três décadas
de loucura. Se uma máquina pode substituir o homem em muitas funções, por que um louco
deveria ser considerado inequivocamente incapaz de exercê-las? Se as coisas têm suas razões
de ser e de se comportar, um louco, desde que ainda entenda que o fogo queima, a pedra é
dura e quatro é o dobro de dois ou metade de oito, talvez possa se manter apto e mesmo
competente num domínio específico. Nada impede que seja um notável contador, para dar um
exemplo, bastando que respeite os critérios da contabilidade e sem que eu esteja insinuando
que matemática é um disparate, por mais que às vezes pareça.

E por raciocínios dessa espécie cheguei à conclusão intrigante que é perfeitamente possível
haver um sistema econômico são enganchado numa sociedade insana. O que importa é que a
loucura generalizada não seja tão furiosa a ponto de comprometer as demais as atividades
produtivas; pode muito bem haver casos de a própria loucura generalizada ser, ela própria,
fonte de exploração econômica e, portanto, um elemento interessante no sistema produtivo.

Donde não seria nada estranho observarmos pessoas excessivamente apegadas a questões
econômicas demonstrando uma estranha insensibilidade a tudo que escapa diretamente do
seu campo ou subordinarem tudo a ele dum modo estranho, nem que às vezes pareçam
simpatizar com idéias extravagantes, quando não serem elas próprias meio lelés. E um
corolário de todas essas reflexões estapafúrdias é que um dos sinais mais flagrantes de
demência numa sociedade é a primazia do fator econômico em relação a tudo mais.
Expressando o mesmo dum outro jeito, a demência se justifica na medida em que produza
bens — melhor ainda se tiver alto valor agregado. Algo semelhante poderia ser dito em outras
atividades. Na militar, por exemplo, uma extrapolação indevida e excessiva pode levar à
celebração das piores atrocidades possíveis.
O pecado fundamental inerente a tudo isso é hipostasiar as coisas em detrimento do próprio
homem, uma forma de idolatria cuja consequência, a demência coletiva, não deveria causar
espanto como algo inusitado. O espantoso é recair nela com sorriso de orelha a orelha.

Justamente é nas épocas eleitorais que saraivadas de atitudes e propostas demonstram mais
que há algo de esquisito no ar. Chamam atenção os casos vulgarmente mais extravagantes e
divertidos. Entretanto há coisa muito pior que só não é revelada como tal porque caiu no rol
das discussões corriqueiras, sérias e respeitáveis.

Há um tipo de sono que não provém do cansaço nem da sucessão do sol e da lua, mas das
trevas da loucura, que nunca se manifestam num átimo. Pouco a pouco, insinuam-se e
acostumam a vista, até que, em breve, somente o esplendor da lua guia a pessoa para que
consiga dar dois passos sem cair no buraco ou dar de cara no muro. É a vida lunática.

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