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Galera, tô fazendo trinta anos hoje e os divertidamente tão tudo saindo na porrada aqui

dentro da cabeça. Mas eu gosto de pensar neles menos como Divertidamente e mais como
uma bancada do Choque de Cultura:

Rogerinho: Você achou que não ia ter crise dos trinta só porque conseguiu não morrer aos
27? Achou errado, otário! Tá começando mais um Choque de Realidade, programa
existencial, com os maiores nomes do transporte de serotonina do organismo, e hoje, idade!
Vamo falar aqui sobre essa data, que marca aí a entrada do Felipe numa nova fase,
aparentemente terminal, que é a da terminação "nta". Renan, seu boa noite e a contribuição
aí pro debate.

Renan: Boa noite Rogerinho, colegas pilotos, eu queria começar essa crise dizendo que eu
sou contra o envelhecimento. A natureza infelizmente errou nesse ponto, covardemente
fazendo o indivíduo perder suas forças aos poucos, quando podia perfeitamente seguir aí
um modelo muito mais bem-sucedido de expiração, que é o do prazo de validade dos
produtos perecíveis. Passou do prazo, a pessoa já devia tombar no chão que nem uma
peteca.

Rogerinho: É, mas tem produto no mercado aí que você ainda pode comer tranquilamente
mesmo já tendo vencido. O que também vale pra alguns seres humanos.

Julinho: Eu já acho esse modelo aí do prazo de validade furada, meu irmão. Porque é o
seguinte, antes de lançar qualquer coisa perecível no mercado, os cara contrata uma
pessoa só pra comer o produto todo dia e mandar um relatório pra empresa informando se
ela tá bem. Todo dia um relatório diferente falando a mesma coisa, "tô aqui", "tá suave", "até
agora tá tranquilo". E dependendo do produto, pode levar décadas até o maluco parar de
mandar mensagem e a empresa sacar que é porque ele morreu de intoxicação e marcar lá
no fundo da embalagem a quantidade segura de tempo que dá pra comer aquilo sem
morrer.

Rogerinho: Eu tenho um tio que tá provando o Danete light há vinte e três anos pra Danone.

Julinho: Agora eu te pergunto, como é que ia ficar uma logística dessa no contexto de uma
pessoa com prazo de validade? O InMetro não dá conta nem de determinar a quantidade de
vodka que tem no Biotônico.

Maurílio: Só lembrando que não precisa ser produto pra estar vencido. O Felipe mesmo já
está vencido em uma série de aspectos da vida dele, trabalho, mestrado.

Renan: Não vou nem entrar no mérito aqui, companheiros, dos boletos desse rapaz.
Impressionante como tudo vence ele. Na verdade, a última coisa que ele ganhou foi a
corrida pra chegar no óvulo, e mesmo assim até hoje tem espermatozoide lá no RH do
reprodutor pedindo recontagem de ponto.

Rogerinho: Ok, parô, parô a depreciação, que a autoestima nem tá aqui pra se defender,
embora a gente tenha aí mandado um e-mail avisando da reunião. Vamo agora aqui pro
quadro "conquistas importantes e perspectivas pro futuro"!

[Entra a vinheta]

Rogerinho: Maurílio, dá seu panorama aí sobre esses últimos trinta anos e o quê que o
Felipe pode esperar de daqui pra frente.

Maurílio: Boa noite, amantes dos dilemas etários de todo o organismo, meu nome é Maurílio
dos Anjos, e eu acho que a nossa trajetória até o momento infelizmente tem mais pontos
negativos do que positivos. Ainda mais se a gente considerar que, com a metade da idade
do Felipe, o Rimbaud já tinha escrito toda a sua obra poética, o Orson Welles já tinha feito o
Cidadão Kane e vários outros exemplos. Dentre os pontos positivos, a gente tem a carteira
de habilitação, a desistência do curso de Biologia, do curso de Engenharia Sanitária, do
curso de História...

Renan: Se bem que – e isso tem que ser dito aqui -- continuar fazendo História impediria a
gente de ter passado muita vergonha postando merda em rede social. O negócio lá de ficar
escrevendo Revolução Farroupinha. Lembram disso?

Rogerinho: É, mas aí entra naquele probleminha de dislexia dele, e a gente não vai ficar
falando de disfunção neurobiológica em programa de crise psicológica não.

Julinho: E eu vou ser obrigado a defender o Felipe aqui pelo seguinte: eu não acho justo
criticar o rapaz por motivo de “ah, porque na idade dele o Beethoven já tinha composto a
nona sinfonia, o Orson Welles já tinha feito o cidadão Kane”. Na época que esse pessoal aí
viveu, a expectativa de vida era de 28 anos. Nego tinha que viver tudo mais rápido, tinha
exame de próstata aos 13, aposentadoria compulsória por suspeita de peste negra aos 23.

Renan: Exatamente. E por essa visão aí brilhante do nosso amigo Julinho, a gente percebe
que os grandes gênios que a gente acha que eram prodígios, não passavam de senhores
de idade em estágio terminal de envelhecimento, o que também tira todo o mérito das obras
que eles fizeram.

Maurílio: Só pra fechar, Rogerinho, eu diria que o Felipe é um Benjamin Button ao contrário.

Julinho: Então tu quer dizer que ele é uma pessoa normal.


Maurílio: Não, porque ser um Benjamin Button ao contrário quer dizer...

Rogerinho: Ok, ok, vamo encerrando o programa, que eu já tô recebendo mensagem aqui
do hipocampo, tá na hora do Felipe dormir, a reunião continua de madrugada, porque a
gente sabe que ele vai acordar sem fôlego por causa daquele probleminha de apneia.

Julinho: Posso dar o recado final?

Rogerinho: Pode. Recado final aí... do Julinho.


Julinho: Queria dizer aí pro resto do organismo o seguinte: tem coisa muito pior que fazer
trinta anos; passe de calcanhar que dá errado; banheiro de rodoviária; gente que para em
sinal amarelo; morrer aos 29 atropelado por um Uno quadrado; amarelinho. O negócio é
focar nos pontos positivos. Poder aí finalmente responder uma criança que chama a gente
de tio com “eu não tenho sobrinho feio”.

Rogerinho: Excelente recado final aí do Julinho, cabô, cabô.

[Entra a vinheta de encerramento: voz de Renan de fundo: Jesus mesmo morreu com 33, o
que deixa o Felipe com uma vantagem de 3 anos antes de poder se lamentar por não ter
dividido a História em antes e depois dele e nem criado uma legião de fãs que durante
vários séculos propagarão o terror em seu nome.

Maurílio: sem falar na multiplicação dos peixes.]

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