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Humanas
Na atual universidade, parece que, fora das ciências naturais, praticamente tudo é
válido, e as ciências humanas não possuem método ou qualquer estrutura de
conhecimento adquirido, cabendo ao professor decidir o que ensinar em suas aulas.
As tentativas esporádicas de estabelecer um cânone de grandes obras são
facilmente derrubadas, enquanto as revistas se enchem de artigos dedicados àquilo
que Jean Bricmont e Alan Sokalcastigaram como “absurdos da moda”.
Um problema adicional decorre do crescimento dos cursos de pós-graduação em
ciências humanas e sociais. Os departamentos universitários e as pessoas que nele
ensinam são cada vez mais avaliados — incentivando tanto o status como o
financiamento — em sua produção de “pesquisa”. O uso desta palavra para
descrever o que antes fora chamado de “bolsa de estudos”, sugere, naturalmente,
uma afinidade entre ciências humanas e naturais, implicando que ambas estão
empenhadas em “descobrir coisas”, sejam fatos ou teorias, para ser adicionadas ao
repositório do conhecimento humano. Pressionadas a justificar sua existência, as
ciências humanas começam, então, a buscar nas ciências naturais “métodos de
pesquisa” e uma promessa de “resultados”. Sugerir que a principal preocupação
das ciências humanas é a transmissão da “cultura” — como fizeram os seguidores
do poeta e crítico do século XIX Matthew Arnold — seria condená-las ao status de
segunda classe. Se tudo que as ciências humanas tivessem para oferecer fosse
“cultura”, então dificilmente poderiam reivindicar a mesma parte nos cofres públicos
que reivindicam as ciências naturais, constantemente rentáveis ao mercado do
conhecimento. A cultura não possui método, enquanto a pesquisa se desenvolve
por conjecturas e evidências. Cultura significa o passado, pesquisa significa o
futuro.
Como sujeito consciente, tenho um ponto de vista sobre o mundo. O mundo parece
uma coisa para mim, e essa “aparência” define minha perspectiva exclusiva. Todo
ser autoconsciente possui essa perspectiva; é o que significa ser um sujeito e não
um objeto. Mas quando eu explico cientificamente o mundo, estou descrevendo
apenas objetos. Estou descrevendo o modo como as coisas são, e as leis causais
que explicam o modo como elas são. Essa descrição não parte de uma perspectiva
particular. Não contém palavras como “aqui”, “agora” e “eu”; e, embora sirva para
explicar o modo como as coisas aparentam ser, o faz oferecendo uma teoria de
como elas são. Em suma, o sujeito é, em princípio, inobservável para a ciência —
não porque existe em outro domínio, mas porque não faz parte do mundo empírico.
Está à margem das coisas, como um horizonte, e jamais pode ser entendido “do
outro lado”, o lado da própria subjetividade.
O sujeito é uma parte real do mundo real? Em determinado sentido, não. Pois, se
eu procurá-lo no mundo dos objetos, jamais o encontrarei. No entanto, sem minha
natureza como sujeito, nada para mim é real. Se eu devo cuidar do meu mundo,
primeiro devo cuidar do meu sujeito, sem o qual não possuo perspectiva para
enxergar o mundo, e não tenho, portanto, um mundo. Essa atenção ao sujeito é o
propósito da arte, ou pelo menos da arte que importa. E esta é uma das razões
pelas quais as ciências humanas que têm a arte e a cultura como objeto jamais
serão redutíveis às ciências naturais.
Compreendemos os outros através das atitudes que Martin Buber resumiu como
relações entre Ich e Du (eu e você), mas que seriam, talvez, melhores descritas
como relações entre “eu” e “eu”. Nós vemos um ao outro de “eu” para “eu”, e a partir
desta relação emergem todos os julgamentos, toda responsabilidade, toda
vergonha, orgulho e plenitude. Esse fato importante sobre a condição humana pode
ser resumido na palavra que nos é legada pelo direito romano e assumida por
Boécio e Aquino: “pessoa”. Somos pessoas, e a personalidade é da nossa essência.
A resposta normal a esse tipo de exemplo é dizer que as imagens pictóricas são
características emergentes dos objetos físicos em que estão contidos. O retrato da
jovem senhora de Urbino não é algo além ou aquém da superfície colorida em que
a vemos, mas tampouco é redutível a essa superfície: embora a distribuição correta
de pigmentos coloridos possa produzir a imagem, no que ela consiste é um aspecto
da pintura que emerge para aqueles dotados dos poderes imaginativos necessários
para percebê-lo.
Com efeito, alguém pode muito bem ser um especialista na produção de cópias da
Vênus de Urbino, embora seja cego para o seu objeto, vendo-a apenas como uma
distribuição de pigmentos em uma tela.
É certo que há muito a dizer sobre a pintura de Ticiano em termos de disposição de
pigmentos em uma matriz bidimensional. Mas isso não seria uma interpretação da
pintura e não nos informaria sobre sua importância ou valor. Pois não mencionaria
o fato mais importante sobre a pintura, sobre o que ela trata. A palavra “sobre” é
notória: é a mesma palavra que causa todas essas dificuldades na compreensão
dos estados mentais que um dia foram pensados para apresentar um obstáculo
imobilizador a qualquer análise física sutil sobre a mente. As pinturas possuem
intencionalidade, assim como crenças e desejos. E elas podem ser comparadas
não apenas com outras pinturas, mas com obras de literatura e música. É uma
questão de interpretação se a pintura de Ticiano deve ser entendida como a
expressão de uma sexualidade doméstica e nupcial, ou se a jovem deve ser vista
mais como uma cortesã do que como uma esposa. Pode-se comparar a pintura com
outra que se refere explicitamente a Ticiano, a famosa “Olympia” de Manet (1863,
veja abaixo), na qual o grosseiro comércio de Boulevard é posto em uma relação
irônica com os abraços suaves da Veneza Renascentista.
Assim como há uma compreensão da arte, que forma o domínio da crítica e que é
um exercício racional com seus próprios padrões de validade, há também uma
compreensão das pessoas, que forma o domínio das relações interpessoais, e que
é um exercício racional obediente às próprias normas. E assim como é um erro
pensar que você pode substituir a crítica de arte pela neurociência que
supostamente explica a experiência da arte, também é um erro pensar que você
pode substituir o entendimento interpessoal pela neurociência que alega explicar
nossos comportamentos. Essa troca exige descrever o comportamento humano em
termos que o eliminem do contexto que lhe dá sentido; exige que se torne um
reducionista, alguém que não consegue perceber que as características mais
importantes da condição humana são características emergentes, aquelas que
habitam a superfície do mundo e são invisíveis para aqueles cujos olhos estão
fixados nas profundezas.
A Ilusão Memética
As culturas humanas são reflexões “sobre” e “na” superfície da vida, formas pelas
quais entendemos o mundo das pessoas e o quadro moral dentro do qual as
pessoas vivem. Mas esta louvável ideia de cultura, nas últimas décadas, sofreu
outro ataque cientificista, desta vez de Richard Dawkinse seu conceito de “meme”,
explicado inicialmente em O Gene Egoísta (1976). A seleção natural pode explicar
todos os fatos complexos apresentados pela cultura humana, sugere Dawkins, uma
vez que enxergamos a cultura como algo evoluindo de acordo com os mesmos
princípios darwinianos que impulsionam a evolução biológica. Assim como qualquer
organismo é uma “máquina de sobrevivência” que existe para servir genes
autorreplicantes, os seres humanos são também “máquinas de sobrevivência” para
“memes” autorreplicantes — entidades mentais que utilizam as energias dos
cérebros humanos para se multiplicar, do mesmo modo que os vírus utilizam a
energia das células. Como os genes, os memes precisam de um lugar para habitar,
e seu sucesso depende de encontrar o nicho ecológico que lhes permite gerar mais
espécimes de seu tipo. Esse nicho é o cérebro humano.
A ideia do meme é apelativa ao nível da metáfora, mas o que ela significa de fato?
Do ponto de vista da memética, as ideias absurdas têm a mesma origem das teorias
verdadeiras, e o assentimento é uma honra regressa concedida ao mérito. A única
distinção significante a ser feita, ao contabilizar esse sucesso, é entre memes que
melhoram a vida de seus anfitriões, e memes que destroem essa vida ou coexistem
de maneira consistente com ela.
Uma das características distintivas dos seres humanos, no entanto, é que eles
podem distinguir um conceito da realidade que o descreve, podem entreter
proposições as quais recusam o seu consentimento, podendo, assim, mover-se
como juizes no campo das ideias, intimando cada uma ao tribunal do argumento
racional, aceitando-as e rejeitando-as independentemente do custo reprodutivo. E
não é apenas na ciência que essa atitude de reflexão crítica é mantida. Matthew
Arnold, em sua coleção clássica de ensaios Cultura e Anarquia (1869), descreveu
a cultura como “uma busca de nossa perfeição plena por meio do conhecimento
sobre todos os assuntos que mais nos interessam, sobre o melhor que já fora
pensado e dito no mundo, transformando, através desses conhecimentos, o fluxo
do pensamento recém-preparado em nossos hábitos e noções”.
Como tantas pessoas casadas com uma visão novecentista da ciência, que
prometeu explicações científicas para os fenômenos sociais e culturais, Dawkins
negligencia a reação do século XIX que dizia: espere um minuto; a ciência não é a
única maneira de buscar o conhecimento. Existe também um conhecimento moral,
que é o domínio da razão prática; existe um conhecimento emocional, que é o
domínio da arte, literatura e música. E possivelmente existe um conhecimento
transcendental, que é o domínio da religião. Por que privilegiar a ciência, só porque
ela se propõe a explicar o mundo? Por que não dar peso às disciplinas que
interpretam o mundo, e assim nos ajudam a estar em casa?
Essa reação não perdeu nenhuma força. E aponta para uma fraqueza fundamental
na “memética”. Mesmo que existam unidades de informação memética propagadas
de cérebro em cérebro, não são essas unidades que se aproximam da mente no
pensamento consciente. Memes representam ideias na medida que os genes
representam os organismos: se eles existem de alguma forma (e nem Dawkins e
nem qualquer outro deu evidência de que existem), a sua reprodução incessante e
sem propósito não interessa à cultura. As ideias, em contrapartida, fazem parte da
rede consciente do pensamento crítico. Nós as avaliamos por sua verdade, sua
validade, sua propriedade moral, sua elegância, plenitude e charme. Nós as
aceitamos e as descartamos, às vezes no curso da nossa busca por verdade e
explicação, e outras na nossa busca por significado e valor. E ambas as atividades
são essenciais para nós. Embora a cultura não seja ciência, é também uma
atividade consciente da mente crítica. A cultura — tanto a alta cultura da arte como
a da música, e a cultura mais ampla incorporada em uma tradição moral e religiosa
— classifica as ideias por suas qualidades intrínsecas, ajudando-nos a nos sentir
em casa no mundo e a ressoar seu significado pessoal.
É verdade que a teoria do meme não nega o papel da cultura nem prejudica a visão
do século XIX de que a cultura bem compreendida é tanto uma atividade da mente
racional quanto a ciência. Mas o conceito do meme pertence a outros conceitos
subversivos — a “ideologia” de Marx, o inconsciente de Freud, o “discurso” de
Foucault — no sentido de desacreditar o preconceito comum. Procura expor ilusões
e explicar nossos sonhos. Mas o meme é ele mesmo um sonho, uma ideologia,
aceito não pela sua verdade, mas pelo poder ilusório que confere àquele que com
ele conjura. Produziu alguns argumentos interessantes, não menos interessantes
que os pensados por Daniel Dennett em “Breaking the Spell”, em que ele explica a
religião como um meme particularmente bem sucedido, mas perigoso.
Contudo, a memética nos mostra a própria ferida da qual pretende ser o remédio: é
um feitiço com o qual a mentalidade científica procura esconjurar aquilo que
representa uma ameaça para ela — e é como devemos enxergar o cientificismo em
geral. O cientificismo envolve o uso de formas e categorias científicas para dar a
aparência de ciência a modos de pensamento não científicos. É uma forma de
magia, uma forma de reformar a matéria complexa da vida humana, sob o comando
do mago, em uma forma sobre a qual ele possa exercer o controle. É uma tentativa
de subjugar o que não se entende.
Certamente os seres humanos podem fazer melhor que isso — pela busca de uma
verdadeira explicação científica, por um lado, e pelo estudo da alta cultura, por
outro. Uma cultura não inclui apenas obras de arte, nem é dirigida unicamente a
interesses estéticos. É a esfera de artefatos intrinsecamente interessantes, ligados
pela faculdade de julgamento às nossas aspirações e ideais. Apreciamos obras de
arte, argumentos, obras de história e literatura, modos, roupas, piadas e formas de
comportamento. E todas essas coisas são moldadas através do julgamento. Mas
que tipo de julgamento e para o quê esse julgamento conduz?
Creio que a cultura, nesse sentido, que decorre da perspectiva do “eu”, que é a raiz
da condição humana, aponta sempre para o transcendental — o ponto na borda do
espaço e do tempo, que é a subjetividade do mundo. E quando perdemos nosso
sentido desse ponto, e da sua eterna, serena vigilância, toda a vida humana é
lançada nas sombras. Aproximamos-nos do ponto em que até mesmo a Paixão de
São Mateus e a Pietá de Rondanini não têm nada mais significante para dizer do
que um tubarão em formol.[1] Essa é a direção que tomamos. Mas é uma direção à
deriva, uma recusa em adotar a postura que é inerente à condição humana, pela
qual nos esforçamos para ver os eventos externos como eles são aos olhos de
Deus.
Notas: