Você está na página 1de 13

SER-PARA-A-MORTE É SER EM VIDA

Hélia Regina Caixeta Consonni

Introdução
O presente texto aborda o existencial ser-para-a-morte na visão de Heidegger
em Ser e Tempo, objetivando criar uma possibilidade de reflexão sobre o sentido da
vida do homem contemporâneo ocidental, cuja existência cotidiana e superficial o
afasta de sua dimensão mais originária que é a temporalidade, horizonte aberto de
toda compreensão e realização. Dentro de sua análise existencial, Heidegger vai
fazer uso da angústia e do ser-para-a-morte para perturbar a lógica do impessoal
que comanda a vida cotidiana. Ele acredita que o homem, ao tomar consciência da
sua condição de ser finito, poderá se apropriar de suas possibilidades, escolher seu
si-mesmo mais próprio e assumir autenticamente a sua maneira de viver enquanto
ser-no-mundo.
Ter consciência de nossa condição de sermos-para-a-morte não significa
vivermos temerosos, assombrados. Significa sim uma abertura ao que a morte nos
revela de mais essencial: nossa própria vida e nosso modo de viver.

A idéia da morte

De todas as experiências humanas, nenhuma traz mais implicações e


inquietude do que a ideia da morte e o medo que ela inspira. Nem as doutrinas
filosóficas ou as religiões, e nem mesmo a ciência foi capaz de aplacar a angústia que
a consciência da finitude promove. Por isso nós, ocidentais contemporâneos, a
negamos, e negamos das mais variadas maneiras, ansiosos por ideias vitais que
resolvam nossas tensões e que nos dão a sensação – falsa – de a estarmos domando.
Porém, negar essa realidade ou fugir de qualquer reflexão sobre a morte não a evita
como bem colocou Ariès:
“Não é fácil lidar com a morte, mas ela espera por todos nós… Deixar de pensar
na morte não a retarda ou evita. Pensar na morte pode nos ajudar a aceitá-la e a
perceber que ela é uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer
outra” (ARIÈS, 2003, p.20). Hennezel e Leloup (2005) acreditam que as pessoas
precisam entender que a morte não é um fracasso, (sentimento esse que surge
devido à ideia de que a vida é sempre inacabada), mas uma realidade que obriga o
homem a tomar consciência de seus valores mais profundos e a se posicionar diante
da vida.
Dessa forma, Angerami (2007) conclui que “a morte é, muitas vezes, um
processo vital que determina inclusive o modo de viver e a própria condição da
vida”. Por isso ela não deve ser pensada como uma inimiga a ser derrotada, pois isto
faz segundo Rubem Alves (1992) com que nos tornemos surdos às lições que ela
pode nos ensinar e tolos na arte de viver. Ele entende que deveríamos nos tornar
discípulos da morte e não inimigos. E Sponville (2000) afirma sabiamente que
“ninguém jamais fracassou em morrer, mas em viver (…)” e nos lembra da
impossibilidade de vivermos felizes “sem aceitar a própria trama de nossa
existência que é o tempo que passa e a vida que se desfaz”.

Dasein

Ao trazer a temática da morte na abordagem fenomenológico-existencial, a


referência que melhor nos orienta é a desenvolvida por Martin Heidegger, filósofo
alemão discípulo de Husserl, que em sua obra fundamental Ser e Tempo (Sein und
Zeit), desenvolve um estudo do sentido do ser no horizonte do tempo, tomando
como objeto de reflexão o homem pensado como Dasein, como ser-aí, existindo no
mundo e lançado como projeto. Isto porque Heidegger considera que o homem é o
único ente que desde sempre já possui em seu ser uma compreensão do ser, ou seja,
apenas o Dasein (o ser-aí) é capaz de se questionar sobre o sentido do Ser e sobre a
existência. E é em sua análise da condição existencial do homem que Heidegger
conclui ser o Dasein um ser-para-a-morte. Mas antes de aprofundar no tema
proposto é fundamental entender a noção heideggeriana de homem como Dasein e
Ex-Sistência e o que ele pretendeu com seu estudo sobre o sentido do ser.
Inicialmente faz-se necessário esclarecer o que Heidegger quer dizer com a
palavra Dasein. Segundo Michelazzo (1999), a palavra em alemão significa
“existência” e ele a escolhe porque vê em sua composição Da(aí) Sein (ser) “a
possibilidade de veicular com maior clareza o traço determinante da essência do
homem” (Idem, ibidem, p.127) Ele, portanto a utiliza, ainda conforme Michelazzo,
para designar o comum-pertencer do homem e do ser na unidade de sua pertinência
e distinção, em substituição às noções tradicionais de sujeito que tomam a essência
do homem em sua dualidade: animal-racional, corpo-alma, sujeito-objeto. Tal noção
está condicionada ao pensamento metafísico de esquecimento do Ser que é o que
em Ser e Tempo (Sein und Zeit) ele pretende superar ao propor a construção de uma
ontologia fundamental.
Em sua ontologia, Heidegger procura explicitar a relevância da relação
originária entre Ser e ente, existência e essência como pertencentes ao mesmo
âmbito e se enfrentando na unidade de um único e mesmo acontecimento, como
uma identidade sempre escondida sob a dualidade de suas aparências. E o que ele
toma como ponto de partida não é o ente objetivado e cindido da metafísica, mas o
ser que se mostra à “existência humana” de forma concreta e imediata: o homem, o
único ente para o qual o ser mostra um sentido. (MICHELAZZO, 1999, p.75).
Portanto o que distingue o homem como Dasein é o fato de ele ser “aquele
ente que existe compreendendo o ser e que por isso pode interpretar de uma certa
maneira a si mesmo e ao mundo” (NUNES, 1999, p. 58). O que significa que “desde
sempre o homem é compreensão, compreende-se em seu ser e nele já antecipa uma
implícita compreensão do ser em geral” (STEIN apud MICHELAZZO, 1999 p. 109).
Mas a compreensão do ser que é inerente ao Dasein, relaciona-se com o
compreender-se no mundo porque o ser-aí é fundamentalmente estruturado como
ser-no-mundo, o que significa dizer que o Dasein não se defronta com um mundo,
mas já se encontra diante dele desde sempre, num vínculo em que um e outro estão
entregues reciprocamente de tal maneira que fora dessa unidade não existiria nem
homem, nem mundo.
E se desde sempre no-mundo, O Dasein já é também desde sempre ser-com-
outros, pois ele se reconhece enquanto homem e desenvolve suas maneiras de se
relacionar, de pensar e ser, a partir de uma experiência que é coletiva. Assim,
o Dasein é um ser-no-mundo e um ser-no-mundo-com-os-outros, e esta é a sua
facticidade básica, pois o homem, “é aquele que é justamente por força de sua
relação consigo mesmo e com o mundo; ele é a relação” (ABBAGNANO, 2006, p.75).
Existir é, portanto, uma experiência pessoal e intransferível, onde eu, apenas eu me
construo perante o mundo, embora implique necessariamente ser alguém com o
outro já que o Dasein se encontra sempre em situações comuns com outros. E
embora o homem se constitua em virtude dessas relações, elas são
fundamentalmente indeterminadas, não fixadas, o que acaba por oferecer ao
homem a liberdade necessária para decidir ou escolher acerca delas. Mas a própria
indeterminação do sujeito enquanto ser-aí é o limite que define o homem em sua
finitude, pois “pela instabilidade que lhe é constitutiva, o homem pode perder e não
mais achar todas e cada uma de suas possibilidades de ser”. (Idem, ibidem, p. 63).

Temporalidade e Ser-para-a-morte

Segundo Safranski nós não apenas somos, mas percebemos que somos e que
estamos entregues a nós mesmos. Ele completa dizendo que somos aquilo que nos
tornamos ao longo do tempo (horizonte aberto) enquanto ser-no-mundo e ser-com-
outros.
E quando Heidegger nos convida a olhar para o tempo como um horizonte
aberto, ele nos faz perceber que entre muitas possibilidades que nos aguarda, uma
ocorrerá com toda certeza: a possibilidade da impossibilidade, o grande passar, a
morte. E nesse sentido, ele relaciona morte/tempo “O Dasein sabe de sua morte…
O Dasein sente que vai passar” para nos lembrar que em cada vivência aqui e agora
já percebemos essepassar e que vivenciamos o tempo em nós mesmos como esse
passar, na maneira como a vida se cumpre. (SAFRANSKI, 2005, p.172).
Nesta relação morte/tempo Abbagnano (2006) afirma que o homem é
definido pelo tempo, que é a possibilidade de que cada uma das possibilidades do
homem se perca, e pela morte que é a possibilidade da impossibilidade, por ser ela
o que finda todas as outras. Nesse sentido ele entende que a temporalidade (relação
morte/tempo) determina essencialmente a natureza do homem enquanto
indeterminação e problematicidade, porque ela “não é uma circunstância acidental
da existência do homem, um estado provisório de seu ser, ao qual se pudesse
conceber que ele fosse subtraído. A temporalidade define a natureza, a constituição
última do homem, porque é a própria problematicidade de seu ser. Tudo que o
homem é, o é por força de sua natureza problemática, que é a própria
temporalidade” (Idem, ibidem, p.63). Isso faz mesmo todo sentido se considerarmos
que em nosso cotidiano vivemos meio escravizados pelo tempo. Ele passa sem
descanso e sem interrupção, e sempre apontando para um futuro que poderá ou não
acontecer, uma vez que na condição de ser-aí, a qualquer momento posso já não
mais existir.
Para Heidegger a morte como possibilidade certa não é um
acontecimento no tempo, mas o fim do tempo, e esta certeza não pode ser
experimentada diretamente já que para isso é preciso morrer e daí ser impossível
ter a experiência dela. Então como fenômeno cotidiano, a morte é vivida sempre
como a morte do outro. Mas a minha morte e a morte do outro revela o caráter
determinante e constituinte do Dasein como ser-para-a-morte. E ser-para-a-morte
revela o não-ser como essência da existência, revela a situação de inconclusão, de
pendência em que o homem se encontra e por isso mesmo sempre passível de
realização.
Onticamente falando, o Dasein só se completa, só atinge a totalidade com sua
morte, quando deixa de ser ente, ou seja, quando deixa de ser-no-mundo. E é por
isso que a morte representa, no existencialismo, a última experiência, a que dará
completude ao indivíduo.
Dastur (2002) completa dizendo que na análise heideggeriana, a morte está
intimamente ligada ao fenômeno da existência e não deve mais ser pensada como
algo externo que determinaria o fim da existência, mas sim como o que constitui
essencialmente a relação do Dasein com seu próprio existir, que ele chama de ex-
sitência. A existência é, por sua própria natureza, nascimento e morte. O ex-sistir do
homem tem seu sentido ontológico na possibilidade inalienável de ser-para-a-
morte, ou seja, “para morrer basta estar vivo”. Nesse sentido Michellazo confirma
que a morte é uma manifestação da própria vida, ou seja, uma não pode ser sem a
outra, porque, como Heidegger esclareceu “tudo o que começa a viver já começa
também a morrer, a caminhar para a morte”. (HEIDEGGER, 1978, p.156)

Angústia, Autenticidade e Inautenticidade


Sêneca já professava que “quem teme a morte, nunca agirá conforme sua
dignidade”, pois apenas aquele que tem consciência de estar sua sorte decidida
desde o momento de sua concepção, “viverá em conformidade com tal projeto e, ao
mesmo tempo irá cortejá-lo, com pleno vigor de alma” e que a desarmonia entre o
comportamento social e a autenticidade da pessoa é fonte de grande inquietude
(SÊNECA, p.62). E é a partir desta inquietude, que em Heidegger chama-se angústia
que o homem poderá descobrir-se capaz de se libertar do mundo alienante e do
ritmo alucinante ditado pelo dia-a-dia para assumir as rédeas do seu destino e dar à
sua existência o sentido que lhe é mais próprio.
Mas em geral, o Dasein não tem um saber expresso sobre sua condição de
estar entregue à própria morte, porque está absorvido no mundo de suas ocupações
fugindo da angústia, ontologicamente considerada, que nos remete à totalidade da
existência como ser-no-mundo e como ser-para-a-morte. De fato, muitos homens
fogem da angústia provocada pela consciência da morte e evitam refletir sobre suas
implicações. Outros poucos meditam sobre ela e sobre a abertura que ela
proporciona de tornar o Dasein aquilo que ele realmente é: autêntico e singular.
Pois, conscientizar-se da realidade da morte e assumi-la como minha, obriga-me,
por meio da angústia existencial, a encarar o meu ser como um ser de projeto que
não dispensa a morte, mas que faz dela a mola propulsora de minhas atitudes e
projetos existenciais.
Assim, é possível afirmar que, a liberdade para a morte que a angústia
viabiliza é o que libera o homem da banalidade cotidiana para a possibilidade de
uma existência autêntica, na qual a morte é doadora de sentido das outras
possibilidades, por ser ela o que confronta o ser humano com seu mais genuíno
modo de ser. E é por essa razão que Heidegger afirmou em Ser e Tempo que “a
angústia singulariza a pré-sença em seu próprio ser-no-mundo que, na
compreensão, se projeta essencialmente para possibilidades.” (HEIDEGGER, 1993,
p. 251). É através dela que me volto em minha própria direção, e de posse de mim
mesmo viabilizo um projeto de existência autêntica e possível.
Nesse caso a tarefa do homem enquanto se “está sobre o próprio ser”,
enquanto ser-aí é para Nogueira (2007) apropriar-se de si mesmo, do seu ser,
apropriando-se assim de suas possibilidades de ser. E entre as possibilidades de ser,
há duas radicais pelas quais o homem decide seu destino: a autenticidade e a
inautenticidade. São os modos fundamentais de existir que dão forma a todos os
outros no espaço-tempo da vida humana. E é pela autenticidade que o Dasein é capaz
de encontrar-se plenamente com o seu ser, quando é remetido, pela voz da
consciência, ao sentido da morte que nos mostra o nada de todo o projeto. A
existência autêntica é aceitação da finitude o que significa ter “a coragem da angústia
diante da morte”. (Idem, ibidem, p.110)
Mas a massificação do mundo contemporâneo nos induz ao consumismo, nos
dita valores e define nossas necessidades, nos leva a perder-nos num cotidiano
frenético e a vivermos de maneira alienada, esquecidos de nós mesmos e dissolvidos
no modo de ser dos outros, de tal maneira que a singularidade e a diferença se
perdem no “todo mundo” que na verdade não é ninguém. A esse modo cotidiano de
ser, Heidegger chama de “impessoal”, pois falamos diariamente como “a gente” fala,
nos comportamos como esperam que nos comportemos, e “nos relacionamos com
os outros de modo a não sermos nós mesmos, mas ‘a gente” (MICHELAZZO, 1999,
p.130). Bauman (2009) menciona em “A Arte da Vida”, que Max Frisch, o grande
romancista suíço do pós-guerra que sofreu influência do existencialismo e de Brecht,
escreveu em seu diário que apenas conseguiremos resistir à corrente e fugir das
garras imobilizantes do impessoal, se rejeitarmos e repelirmos resolutamente as
definições e identidades impostas ou insinuadas por outros para desenvolvermos a
arte de “ser você mesmo”, que é reconhecidamente a mais exigente de todas. E
desenvolver esta arte depende segundo Heidegger de conscientizarmos de nossa
condição humana de sermos-para-a-morte, pois só então poderemos nos apropriar
de nossa existência e de nossas possibilidades mais próprias.
Na forma inautêntica de existir o Dasein se envolve nas ocupações diárias e é
absorvido pelas preocupações de modo a se deixar levar pela vida vivida
superficialmente em vez de tomar-se à sua própria responsabilidade e realizar-se
verdadeiramente enquanto ser-no-mundo. E tantas ocupações e distrações
encobrem exatamente o fato do homem estar fugindo da sua condição de ser-no-
mundo e de estar entregue a si mesmo, dando-lhe a ilusão de que o mundo, como
verdadeiro sujeito do homem, é que determina sua existência e destino. Nesse caso,
o homem pode inclusive crer que “tudo no mundo se acomoda às suas necessidades,
que até mesmo a constituição de mundo está ordenada a fim de lhe possibilitar a
vida e a felicidade, e que por isso nada há no mundo que não se possa medir pelo
metro de sua utilidade e critério” (ABBAGNANO, 2006, p.144). Ora, com esse
pensamento o mundo está mesmo em perigo, já que o homem se nega a reconhecer
que o próprio destino do mundo depende dele e não do mundo.
Mas Abbagnano (2006) nos lembra sobre a impossibilidade de antepor o
mundo à existência e renunciar a ele a iniciativa e responsabilidade da própria
existência, pois “se não tomo sobre mim a responsabilidade da decisão, perco-me a
mim mesmo e à realidade do mundo” (Idem, ibidem, p.147). E perder-se é
naturalmente a recusa de assumir-se a si mesmo, é a fuga diante da finitude radical
da qual nenhuma existência pode se desfazer. E esse perder-se próprio da condição
inautêntica da existência “expressa o esforço do Dasein na sua busca da
familiaridade para escapar do confronto com o ser” (MICHELAZZO, 2006, p. 130).
Confrontar-se significa dar-se conta do paradoxo de que o que é mais
pertinente à sua essência como existência é estar aberto à impossibilidade da
própria existência. E mesmo a busca pela familiaridade no sentido do previamente
trilhado, também nem é assim tão seguro e tranquilo, porque no impessoal também
experimentamos o sofrimento; tanto o sofrimento próprio das identificações
estabelecidas, como o sofrimento gerado pelas “necessidades” de consumo e de
constante satisfação, bem como do medo de não alcançarmos. Para Rodrigues:
“Será sobre esse território de familiaridade, povoado de incerteza e “angústia”,
que a experiência da estranheza se dará, marcando a provisoriedade de todas as
coisas, estabelecendo novas referências, abrindo o terreno para outras possibilidades
de sentido”. (RODRIGUES, 2008, p.196)
A angústia advinda dessa constatação é um estado de ânimo que rompe a
existência para o mundo, que tira o Dasein do cotidiano nivelador e o abre para
aquilo que ele pode ser a partir unicamente de si mesmo. Na abertura privilegiada
dessa angústia, é que nos angustiamos com a falta de sentido no mundo, que não
mais pode nos sustentar, é nela que nos remetemos ao fato de estarmos desde
sempre lançados no mundo por nossa própria conta. Ao nos apontar para o que de
fato somos, ela naturalmente desconstrói as nossas certezas, as nossas prioridades
e referências, e então tudo que consideramos importante é convocado a uma
ressignificação.
Assim, quando o homem se defronta com a morte, ou porque perdeu um ente
amado, ou porque se descobriu com uma doença grave, ou ainda porque assistiu
pela televisão, espantado e comovido, a um desastre natural ou a uma tragédia
provocada pelo homem ele naturalmente se angustia. E é em consequência desta
angústia devidamente assumida que ele será capaz de promover mudanças
significativas em sua vida, de “abraçar a sua responsabilidade humana fundamental
de construir uma autêntica vida de compromisso, conectividade, significação e
satisfação consigo mesmo” (YALON, 2008, p.39). O que significa que o homem está
essencialmente determinado tanto pela finitude como pela angústia, pois ambas
levam o homem a transcender a si mesmo enquanto ser-no-mundo.
Sponville (2000) considera que a angústia é o que há de mais humano, e que
apenas a morte nos liberta dela, mas sem jamais contestá-la, porque sua verdade
revela que “somos fracos no mundo e mortais na vida”. (Idem, ibidem, p.12). Um
importante personagem da literatura russa (que jamais fizera o que de fato queria,
mas sempre o que esperavam dele), Ivan Ilitch, de Tolstói, é um bom exemplo de
quem se tornou consciente da vida e da morte quando se descobriu com câncer e na
iminência de morrer. Foi nestas circunstâncias que ele pode se questionar sobre a
morte, rememorar sua vida e avaliar o que foi vivido e o que deixou de viver:
“E na opinião dos outros eu estava o tempo todo subindo e todo o tempo minha
vida deslizava sob meus pés. E agora acabou tudo e é hora de morrer. (…) Talvez eu
não tenha vivido como deveria (…). Mas, como se eu sempre fiz o que devia (grifo meu)
fazer?” (TOLSTOI, 2008, p.89)
Mesmo sentindo terríveis dores e com a morte se aproximando, Ivan Ilitch
pôde passar por uma considerável mudança, descobrindo a compaixão, a ternura e
empatia que até então lhe eram estranhas. Sua história ilustra a passagem de uma
vida morta, esvaziada de sentido, para uma morte que lhe ensina sobre a vida.
Podemos até pensar que Sponville inspirou-se em Ivan Ilitch quando escreveu:
“Quantas vidas, de tanto querer evitá-la, condenam-se assim inteirinhas à morte?”
(SPONVILLE, 2000, P.67)

E como Ivan Ilitch, muitas outras pessoas que se confrontam com uma
situação difícil na vida, nesse caso estar diante da iminência de sua morte,
conseguem após o choque inicial, ultrapassar o desespero e ir de encontro ao que há
de mais íntimo em seu ser, ao que lhes é mais essencial para dar um significado
próprio ao restante de suas vidas. Tal re-significação atinge não somente aquele que
confronta diretamente a circunstância difícil, mas a todos que lhe são próximos.
Dessa forma, o sujeito que vive o “absurdo” de perder alguém que ama também pode
ser chamado a repensar sua vida, seus valores e suas escolhas. Porque é na
obscuridade em que se encontra, no vazio e na dor, que a angústia heideggeriana o
conduzirá a refletir sobre a existência, ao re-encontro consigo mesmo, ao fazer e ser
singular, enfim o conduzirá a realizar seu projeto de vida autêntico.
A diferença dos discursos que são proferidos por parte daqueles que já
vivenciaram o confronto essencial com a finitude e daqueles que jamais sentiram o
chão se abrir sob seus pés é facilmente observável. Estes têm um arsenal teórico e
racional para explicar o que não tem explicação e para procurar saídas, culpados e
para determinar até quando é permitido sofrer. E de tanto fugir da morte e negá-la
perdem a capacidade até de solidarizar para mantê-la distante e não ser tocado por
ela. Este modo impróprio de compreensão é que facilmente os conduzem de volta à
multidão, à impessoalidade sem de fato terem sido tocados na profundidade da
vivência que os intima a refletir e re-significar a própria existência.

Considerações finais

Encarar a realidade da morte nos remete à nossa condição irremediável de


estarmos lançados a um futuro que pode ser limitado exatamente por ela. Mas
também é o que nos permite ter mais consciência da nossa vida, do quanto podemos
usufruí-la e de como queremos vivê-la, pois quando nos damos conta da
simplicidade e fragilidade que pode ser a vida, é que nos perguntamos sobre as
coisas que realmente importam. É a partir desse confronto que poderemos
modificar nossos valores, re-significar nossas vidas, e refletir sobre o que de fato é
essencial enquanto seres-no-mundo. Afinal esse nada existencial que o ser-para-a-
morte nos revela é que nos garante a possibilidade sublime de refazer caminhos.

O distanciamento que temos com tudo referente à morte e ao morrer, deixa


claro o quanto nos defendemos dela e a negamos. Ela, a morte, e a angústia vão se
esbarrar exatamente no projeto moderno de controle, de previsibilidade, de
consumo, e de busca da imortalidade e da felicidade a todo custo. E ao nos
posicionarmos assim, perdemos a oportunidade de refletir sobre o rumo que
estamos dando à nossa existência e ao próprio mundo. Isto porque ao mesmo tempo
em que negamos nossa condição humana de sermos finitos, vivemos literalmente a
cultura do carpie diem, que interpretamos erroneamente como se aproveitar o “aqui
e agora” significasse apenas “ter” e “prazer”. Essa busca incessante de gratificação
nos leva a estabelecer relações hedonistas, liquidas e descompromissadas com tudo
e todos à nossa volta numa completa banalização do ser e da vida.
Ter consciência de sermos-para-a-morte, de quem realmente somos
enquanto singularidade, e do que queremos enquanto seres-no-mundo, é que nos
abrirá para a possibilidade de uma existência autêntica e para a construção de um
mundo mais decente.
Viver de modo próprio e autêntico nada mais é que nos apropriarmos de
nossa existência utilizando nossa liberdade para fazer, conscientemente, escolhas
responsáveis que englobem inclusive o outro e o mundo. Sobre as nossas escolhas é
importante questionarmos a todo o momento se elas provêm de uma escolha
pessoal ou se fomos induzidos a elas, para evitar sermos levados pela multidão e
pelo modo impessoal. Porém escolher viver de modo mais próprio parece ir na
contramão da realidade instalada na nossa sociedade, a saber: ser normal é ser igual
a “todo mundo”, é estar no mundo da mesma maneira que todos. Desse modo,
mesmo quando nos apropriamos da nossa existência e nos tornamos singulares,
ainda assim somos novamente tentados a ceder à força da multidão, à alienação, ao
esquecimento de nós mesmos, e a abrir mão de nossos projetos existenciais. Isto
porque na condição de ser-com-os-outros, portanto social, nós humanos, complexos,
limitados e falíveis, não permanecemos o tempo todo num mesmo modo de ser. Por
isso mesmo deveríamos nos ocupar em efetivar nosso projeto existencial, não
apenas quando a morte se impõe a nós, mas continuamente e de forma
compromissada, pois o fato de ela ser possível a qualquer momento nos coloca na
condição de estarmos sempre na sua iminência.

Ter sido apresentada à finitude da vida ainda tão criança foi um grande
motivador para estudar e escrever sobre a morte e suas implicações. Embora
muitos pareçam sair ilesos dessa experiência, a mim parece impossível viver a
extrema angústia da morte e a dor dilacerante de perder quem se ama e lhe é tão
próximo e não extrair nenhum aprendizado disso. Eu precisava encontrar um
destino para todo aquele amor que naquele momento parecia ser o maior de todos.
Ainda muito cedo a morte me revelou a fragilidade e transitoriedade da existência e
a minha impotência diante dela. Ao nos roubar o passado e nos privar do futuro ela
revela o caráter de puro devir da vida e nos chama a viver de modo a não haver
arrependimentos, pois diante da dor da perda é a história que foi vivida que nos
conforta e nos libera para continuarmos sem a pessoa que amamos. Tantas perdas
favoreceram profundas e diversas reflexões que acabaram por me conduzir ao
reconhecimento de mim mesma. Hoje, liberta das garras da multidão e da
inautenticidade, busco assumir a todo o momento as rédeas da minha existência e
“consumir minha própria vida”. E foi através do pensamento heideggeriano e de
suas coordenadas que pude me perceber como ser-para-a-morte, e assim re-
escrever a minha história e atribuir um sentido próprio à minha existência. Foi
também Sponville que muitas vezes nomeou meus sentimentos:
“Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca, senão a morte. Por
isso só se pode escapar da angústia aceitando isso mesmo que ela percebe, que ela
recusa e que a transforma. O quê? A fragilidade de viver, a certeza de morrer, o
fracasso ou o pavor do amor, a solidão, a vacuidade, a eterna impermanência de tudo…
Essa é a vida mesma, e não há outra. Solitária sempre. Mortal sempre. Pungente
sempre. E tão frágil, tão fraca, tão exposta!” (SPONVILLE, 2000)

Referências Bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Introdução ao Existencialismo. São Paulo: Martins
Fontes Editora, 2006.
ANGERAMI, Valdemar Augusto. Psicoterapia existencial. São Paulo: Thomson
Learning Brasil, 2007.
ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte. São Paulo: Paulus, 1992.
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2009.
DARTIGUES, André. O que É a Fenomenologia? São Paulo: Centauro Editora,
2005.
DASTUR, Françoise. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL,
2002.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978.
___________. Ser e Tempo. Volume I e II. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
HENEZEL, Marie & Jean-Yves LELOUP. A arte de morrer: traduções religiosas
e espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. Petrópolis, RJ: Vozes,
1999.
KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a morte.
MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade –
Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999.
NOGUEIRA, João Carlos. A Arte de Morrer – Visões Plurais. Bragança Paulista,
SP: Editora Comenius, 2007.
NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004.
RODRIGUES, Tavares Rodrigues. Interpretações fenomenológico-existenciais
para o sofrimento psíquico na atualidade. Rio de Janeiro: GdN Editora, 2008.
SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: Um mestre da Alemanha. São Paulo: Geração
Editorial, 2005.
SÊNECA. A Tranquilidade Da Alma – A Vida Retirada. Coleção Grandes Obras
do Pensamento Universal – 53. São Paulo: Editora Escala.
SPONVILLE, André Comte. Bom dia angústia. São Paulo, Martins Fontes,
2000.
TOLSTOI, Leon N. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008

Você também pode gostar