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Introdução
O presente texto aborda o existencial ser-para-a-morte na visão de Heidegger
em Ser e Tempo, objetivando criar uma possibilidade de reflexão sobre o sentido da
vida do homem contemporâneo ocidental, cuja existência cotidiana e superficial o
afasta de sua dimensão mais originária que é a temporalidade, horizonte aberto de
toda compreensão e realização. Dentro de sua análise existencial, Heidegger vai
fazer uso da angústia e do ser-para-a-morte para perturbar a lógica do impessoal
que comanda a vida cotidiana. Ele acredita que o homem, ao tomar consciência da
sua condição de ser finito, poderá se apropriar de suas possibilidades, escolher seu
si-mesmo mais próprio e assumir autenticamente a sua maneira de viver enquanto
ser-no-mundo.
Ter consciência de nossa condição de sermos-para-a-morte não significa
vivermos temerosos, assombrados. Significa sim uma abertura ao que a morte nos
revela de mais essencial: nossa própria vida e nosso modo de viver.
A idéia da morte
Dasein
Temporalidade e Ser-para-a-morte
Segundo Safranski nós não apenas somos, mas percebemos que somos e que
estamos entregues a nós mesmos. Ele completa dizendo que somos aquilo que nos
tornamos ao longo do tempo (horizonte aberto) enquanto ser-no-mundo e ser-com-
outros.
E quando Heidegger nos convida a olhar para o tempo como um horizonte
aberto, ele nos faz perceber que entre muitas possibilidades que nos aguarda, uma
ocorrerá com toda certeza: a possibilidade da impossibilidade, o grande passar, a
morte. E nesse sentido, ele relaciona morte/tempo “O Dasein sabe de sua morte…
O Dasein sente que vai passar” para nos lembrar que em cada vivência aqui e agora
já percebemos essepassar e que vivenciamos o tempo em nós mesmos como esse
passar, na maneira como a vida se cumpre. (SAFRANSKI, 2005, p.172).
Nesta relação morte/tempo Abbagnano (2006) afirma que o homem é
definido pelo tempo, que é a possibilidade de que cada uma das possibilidades do
homem se perca, e pela morte que é a possibilidade da impossibilidade, por ser ela
o que finda todas as outras. Nesse sentido ele entende que a temporalidade (relação
morte/tempo) determina essencialmente a natureza do homem enquanto
indeterminação e problematicidade, porque ela “não é uma circunstância acidental
da existência do homem, um estado provisório de seu ser, ao qual se pudesse
conceber que ele fosse subtraído. A temporalidade define a natureza, a constituição
última do homem, porque é a própria problematicidade de seu ser. Tudo que o
homem é, o é por força de sua natureza problemática, que é a própria
temporalidade” (Idem, ibidem, p.63). Isso faz mesmo todo sentido se considerarmos
que em nosso cotidiano vivemos meio escravizados pelo tempo. Ele passa sem
descanso e sem interrupção, e sempre apontando para um futuro que poderá ou não
acontecer, uma vez que na condição de ser-aí, a qualquer momento posso já não
mais existir.
Para Heidegger a morte como possibilidade certa não é um
acontecimento no tempo, mas o fim do tempo, e esta certeza não pode ser
experimentada diretamente já que para isso é preciso morrer e daí ser impossível
ter a experiência dela. Então como fenômeno cotidiano, a morte é vivida sempre
como a morte do outro. Mas a minha morte e a morte do outro revela o caráter
determinante e constituinte do Dasein como ser-para-a-morte. E ser-para-a-morte
revela o não-ser como essência da existência, revela a situação de inconclusão, de
pendência em que o homem se encontra e por isso mesmo sempre passível de
realização.
Onticamente falando, o Dasein só se completa, só atinge a totalidade com sua
morte, quando deixa de ser ente, ou seja, quando deixa de ser-no-mundo. E é por
isso que a morte representa, no existencialismo, a última experiência, a que dará
completude ao indivíduo.
Dastur (2002) completa dizendo que na análise heideggeriana, a morte está
intimamente ligada ao fenômeno da existência e não deve mais ser pensada como
algo externo que determinaria o fim da existência, mas sim como o que constitui
essencialmente a relação do Dasein com seu próprio existir, que ele chama de ex-
sitência. A existência é, por sua própria natureza, nascimento e morte. O ex-sistir do
homem tem seu sentido ontológico na possibilidade inalienável de ser-para-a-
morte, ou seja, “para morrer basta estar vivo”. Nesse sentido Michellazo confirma
que a morte é uma manifestação da própria vida, ou seja, uma não pode ser sem a
outra, porque, como Heidegger esclareceu “tudo o que começa a viver já começa
também a morrer, a caminhar para a morte”. (HEIDEGGER, 1978, p.156)
E como Ivan Ilitch, muitas outras pessoas que se confrontam com uma
situação difícil na vida, nesse caso estar diante da iminência de sua morte,
conseguem após o choque inicial, ultrapassar o desespero e ir de encontro ao que há
de mais íntimo em seu ser, ao que lhes é mais essencial para dar um significado
próprio ao restante de suas vidas. Tal re-significação atinge não somente aquele que
confronta diretamente a circunstância difícil, mas a todos que lhe são próximos.
Dessa forma, o sujeito que vive o “absurdo” de perder alguém que ama também pode
ser chamado a repensar sua vida, seus valores e suas escolhas. Porque é na
obscuridade em que se encontra, no vazio e na dor, que a angústia heideggeriana o
conduzirá a refletir sobre a existência, ao re-encontro consigo mesmo, ao fazer e ser
singular, enfim o conduzirá a realizar seu projeto de vida autêntico.
A diferença dos discursos que são proferidos por parte daqueles que já
vivenciaram o confronto essencial com a finitude e daqueles que jamais sentiram o
chão se abrir sob seus pés é facilmente observável. Estes têm um arsenal teórico e
racional para explicar o que não tem explicação e para procurar saídas, culpados e
para determinar até quando é permitido sofrer. E de tanto fugir da morte e negá-la
perdem a capacidade até de solidarizar para mantê-la distante e não ser tocado por
ela. Este modo impróprio de compreensão é que facilmente os conduzem de volta à
multidão, à impessoalidade sem de fato terem sido tocados na profundidade da
vivência que os intima a refletir e re-significar a própria existência.
Considerações finais
Ter sido apresentada à finitude da vida ainda tão criança foi um grande
motivador para estudar e escrever sobre a morte e suas implicações. Embora
muitos pareçam sair ilesos dessa experiência, a mim parece impossível viver a
extrema angústia da morte e a dor dilacerante de perder quem se ama e lhe é tão
próximo e não extrair nenhum aprendizado disso. Eu precisava encontrar um
destino para todo aquele amor que naquele momento parecia ser o maior de todos.
Ainda muito cedo a morte me revelou a fragilidade e transitoriedade da existência e
a minha impotência diante dela. Ao nos roubar o passado e nos privar do futuro ela
revela o caráter de puro devir da vida e nos chama a viver de modo a não haver
arrependimentos, pois diante da dor da perda é a história que foi vivida que nos
conforta e nos libera para continuarmos sem a pessoa que amamos. Tantas perdas
favoreceram profundas e diversas reflexões que acabaram por me conduzir ao
reconhecimento de mim mesma. Hoje, liberta das garras da multidão e da
inautenticidade, busco assumir a todo o momento as rédeas da minha existência e
“consumir minha própria vida”. E foi através do pensamento heideggeriano e de
suas coordenadas que pude me perceber como ser-para-a-morte, e assim re-
escrever a minha história e atribuir um sentido próprio à minha existência. Foi
também Sponville que muitas vezes nomeou meus sentimentos:
“Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca, senão a morte. Por
isso só se pode escapar da angústia aceitando isso mesmo que ela percebe, que ela
recusa e que a transforma. O quê? A fragilidade de viver, a certeza de morrer, o
fracasso ou o pavor do amor, a solidão, a vacuidade, a eterna impermanência de tudo…
Essa é a vida mesma, e não há outra. Solitária sempre. Mortal sempre. Pungente
sempre. E tão frágil, tão fraca, tão exposta!” (SPONVILLE, 2000)
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