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ÁLCOOL E POPULAÇÃO INDÍGENA: PRODUÇÃO DE

CONHECIMENTO E ABORDAGENS METODOLÓGICAS

O trecho do vídeo trouxe um pouco de como o povo Mbyá compreende alguns


dos processos de adoecimento e saúde do seu povo e que dentro da comunidade existem
atores responsáveis para cuidar dos processos de cura. A partir disto e de suas
experiências procure refletir sobre a seguinte questão: de que forma pode-se produzir
conhecimento e desenvolver ações de promoção da saúde, prevenção e recuperação dos
agravos associados ao consumo de álcool adequados às realidades socioculturais dos
povos indígenas?

ÁLCOOL E POPULAÇÃO INDÍGENA: CONHECER COMO ESTRATÉGIA


DE AÇÃO INTRODUÇÃO

O módulo Álcool e população indígena: produção de conhecimentos e


abordagens metodológicas focará no processo de produção de conhecimentos
necessário para a elaboração e execução de estratégias de enfrentamento dos problemas
e agravos desencadeados pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas, junto aos coletivos
indígenas brasileiros. Consideraremos a complementaridade entre as abordagens
metodológicas quantitativas e qualitativas como fundamental para a construção de um
panorama sobre os processos de alcoolização indígenas, que permita o
desenvolvimento de ações de promoção da saúde, prevenção e recuperação dos
problemas e agravos associados ao consumo do álcool adequados às realidades
socioculturais dos povos indígenas. Defendemos que estas abordagens devam
contemplar a participação dos sujeitos e coletivos indígenas no processo de produção
de conhecimentos. Assim, as comunidades serão mobilizadas para refletir sobre a sua
situação de saúde e para construir, em conjunto com os serviços de saúde, estratégias
para o enfrentamento dos problemas por elas vivenciados, superando assim a dicotomia
entre pesquisa e intervenção. Para tanto, apresentaremos um conjunto de experiências
exemplares visando ilustrar possibilidades de intervenção já em andamento no Brasil.

As Diretrizes Gerais para uma Política de Atenção Integral à Saúde Mental das
Populações Indígenas, publicada em 25 de outubro de 2007 via Portaria n.º 2.759 do
Ministério da Saúde, institui como primeira diretriz o apoio e o respeito à capacidade
dos coletivos e sujeitos indígenas de identificar os problemas e agravos por eles
vivenciados e, consequentemente, de mobilizar recursos e criar alternativas para a
construção de estratégias para enfrentá-los, visando solucionar ou minimizar estes
problemas.

Da mesma forma, as diretrizes reconhecem a importância de que as políticas


públicas e seus agentes promovam, junto com os povos indígenas, um processo
participativo de construção coletiva de consensos e estratégias de ação, respeitando as
especificidades socioculturais de cada povo indígena. Além disso, é necessário que esse
processo propicie a articulação dos saberes e procedimentos dos serviços de saúde aos
conhecimentos e práticas indígenas tradicionais, possibilitando uma construção de
alternativas viáveis e consensuais de abordagem dos problemas e agravos decorrentes
do uso prejudicial do álcool, enfrentados pelas comunidades indígenas.

Partindo do princípio de que toda ação deve ser dialogada e construída com os
próprios indígenas, promovendo o protagonismo das comunidades e o fortalecimento da
organização social, optamos por ofertar aos aprendentes um leque de possibilidades que
permitam a abordagem dos problemas decorrentes do uso de álcool. Por isso,
organizamos uma caixa de ferramentas para orientar a produção de subsídios para a
intervenção sobre esses problemas. Até porque, para que tenhamos êxito em nossas
ações, precisamos conhecer as realidades sobre as quais estaremos intervindo.

As principais ferramentas utilizadas por profissionais de saúde que atuam na


atenção básica ou nos serviços de saúde mental dependem, fundamentalmente, das
pessoas e do campo das relações que estas se dispõem a estabelecer com os outros. Essa
variedade de possibilidades pode ampliar o leque de respostas que o serviço oferta
diante da necessidade de cada território. Por isso é importante pensarmos em uma
“caixa de ferramentas” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).

Dessa forma, disponibiliza-se a seguir uma série de estratégias e abordagens


interdisciplinares e interculturais voltadas para a produção de conhecimentos sobre os
processos de alcoolização e sobre os problemas e agravos decorrentes do uso prejudicial
das bebidas alcoólicas que buscam identificar, entre outras coisas, como os povos e
comunidades indígenas compreendem esses problemas. Afinal, não há uma fórmula
universal para o enfrentamento dos problemas causados pelo uso prejudicial de álcool
ou que possa ser replicada indistintamente em qualquer território. Toda ação aqui deve
ser construída a partir das necessidades locais, de modo participativo, intercultural e
intersetorial.

O PARTICIPATIVO ENQUANTO PRINCÍPIO ÉTICO DA AÇÃO

As estratégias participativas empregadas para a elaboração e execução de ações


voltadas para a identificação e caracterização dos problemas e agravos associados ao
uso das bebidas alcoólicas nos contextos das sociedades indígenas, bem como para o
seu enfrentamento, constituem o princípio ético que deve orientar qualquer iniciativa a
ser realizada pelos serviços de saúde. Em projetos participativos, os sujeitos indígenas
não são reduzidos à condição de usuários dos serviços, mas participam ativamente do
processo de produção de conhecimentos como agentes da intervenção, sendo
corresponsáveis pela construção dos resultados e objetivos almejados, bem como na
produção da saúde de sua comunidade. Nesse sentido, as metodologias participativas
permitem a elaboração de planos de ação interculturais que articulam saberes, práticas,
procedimentos e sujeitos inscritos em contextos epistêmicos, linguísticos e
socioculturais diversos. Constituem a estratégia por excelência para a efetivação
da Diretriz n.º 4.4, da PNASPI, que prevê a articulação dos serviços de saúde às
medicinas tradicionais indígenas, como forma de garantir uma atenção diferenciada à
saúde dos povos indígenas.
A estratégia participativa constitui uma forma de garantir a sustentabilidade da
ação, bem como dos resultados alcançados junto às comunidades indígenas,
promovendo a emancipação, a autodeterminação e a autonomia destas e superando os
estereótipos instituídos pelo regime tutelar, que relegou os indígenas à condição de
relativamente incapaz. As metodologias participativas, por isso, possuem um papel
fundamental de descolonização tanto das políticas públicas quanto dos efeitos criados
pelo processo colonial sobre os povos indígenas, sendo um desses efeitos o próprio
processo de alcoolização instituído pelo contato interétnico. Esse processo pode ser
mais aprofundado no módulo Álcool e Populações Indígenas - aspectos históricos e
socioculturais do beber e políticas de atenção à saúde.

Importante diferenciar aqui as metodologias participativas do dispositivo de


participação social enquanto controle social, tal como previsto na Lei Orgânica de
Saúde e também pela Diretriz n.º 4.9 da Política Nacional de Saúde Indígena
(PNASPI). O envolvimento das instâncias do controle social em saúde indígena é
importante para o desenvolvimento das ações, mas não substitui a necessidade de
participação das lideranças, especialistas e comunidades indígenas das localidades no
processo de elaboração, execução e avaliação das atividades onde as ações de produção
de conhecimentos e de intervenção serão implementadas.

De qualquer forma, recomendamos que a estratégia participativa seja adotada tanto nas
investigações epidemiológicas, em que prepondera o emprego de métodos quantitativos
com a aplicação de instrumentos de triagem, quanto nas pesquisas antropológicas, que
recorrem a métodos qualitativos para fazer uma caracterização dos processos de
alcoolização particulares, vigentes entre os povos indígenas. Ambas as frentes de
investigação devem atuar de forma complementar na produção de conhecimentos
emancipatórios interdisciplinares e interculturais, na medida em que a produção de
informação em saúde é imprescindível para a compreensão sobre o impacto das práticas
alcoólicas sobre a vida e a saúde de cada comunidade indígena, subsidiando as
estratégias de intervenção a serem desenvolvidas.

VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA

A sistematização de informações epidemiológicas sobre saúde mental das


populações indígenas colabora para o desenvolvimento de ações de enfrentamento
desses agravos no âmbito da promoção, prevenção e/ou atenção à saúde mental.
Enfatiza-se, também, que essas ações devem partir de uma perspectiva ampliada de
saúde, que considere como foco de intervenção os determinantes sociais do processo de
adoecimento e não apenas o sintoma apresentado como demanda.

“Os estudos sobre o uso de álcool em população indígena são muito escassos e
os dados epidemiológicos não servem somente para uma análise comparativa entre os
diferentes grupos, uma vez que possibilitam o reconhecimento dos danos e as
repercussões no grupo, servindo, ao longo do tempo, como parâmetro de avaliação,
além de fornecerem subsídios para o enfrentamento do problema, tanto na prevenção
quanto no tratamento” (OLIVEIRA, 2004, p. 78).
Uma das formas de dimensionar a magnitude dos problemas, necessidades e
agravos decorrentes do uso prejudicial das bebidas alcoólicas entre os povos indígenas é
a proposta pela vigilância epidemiológica. Os instrumentos para triagem epidemiológica
do abuso ou dependência de drogas atualmente existentes constituem ferramentas
elaboradas para identificar os “níveis de uso de álcool e outras drogas” e facilitar a
adoção de estratégias de ação direcionadas para evitar “que o uso dessas substâncias
traga problemas de saúde para os usuários, ou que eles se tornem dependentes”
(BRASIL, 2017a).

Os instrumentos de triagem são utilizados para detectar, em uma amostra


populacional, aquelas pessoas que têm tendência a apresentar determinada doença, ou
seja, “rastreiam” pessoas que tenham maior chance de apresentar aquele problema.
Além disso, ajudam a determinar os focos principais da intervenção e servem para
informar ao usuário seu padrão de consumo (BRASIL, 2017a, p.27).

Dentre esses instrumentos, três são os validados pela Organização Mundial de


Saúde e recomendados pelo Ministério da Saúde. São eles:

1. CAGE – Com uma sigla elaborada a partir das quatro perguntas que o integram, o
CAGE tem como objetivo principal detectar casos de dependência do álcool;

Questionário CAGE
C (cut down) Alguma vez o(a) sr.(a) sentiu que deveria diminuir a quantidade de bebida
ou parar de beber?
A (annoyed) As pessoas o (a) aborrecem porcriticarem o seu modo de beber?
G (guilty) O(a) sr.(a) se sente culpado(a) pela maneira com que costuma beber?
E (eye opened) O(a) sr.(a) costuma beber pela manhã (ao acordar), para diminuir o
nervosismo ou a ressaca?

2. AUDIT - O Teste de Identificação de Desordens Devido ao Uso de Álcool é utilizado


para identificar os problemas associados a diferentes padrões de consumo de bebidas
alcoólicas;

3. ASSIST – Constitui um teste de triagem de álcool, tabaco e outras substâncias com


as mesmas características do AUDIT, mas também utilizado para triagem do uso de
outras substâncias psicoativas.

No entanto, existe um consenso entre os pesquisadores da saúde indígena


(FERREIRA, 2004; LANGDON, 2013; SOUZA, 2013; SOUZA; GARNELO, 2006)
sobre as dificuldades relativas a pesquisa epidemiológica a respeito dos abusos e
dependências do álcool entre indígenas. Segundo os autores, isso se dá por conta das
limitações em identificar aspectos históricos e socioculturais como determinantes dos
processos da alcoolização vividos pelos povos originários hoje (MENENDEZ, 1982).

Os instrumentos de triagem acima apresentados, por operarem com a noção


biomedicamente orientada com foco no indivíduo que desenvolve uma dependência do
álcool e que age de forma a prejudicar a si mesmo e ao seu grupo – os bebedores de alto
risco -, define o alcoolismo como uma doença individual que se manifesta da mesma
maneira em todas as culturas.

No entanto, quando falamos sobre o fenômeno do uso de bebidas alcoólicas


entre os povos indígenas, se faz necessário deslocarmos a nossa atenção do alcoolismo
enquanto doença individual/universal/biológica para uma abordagem que reconheça
múltiplos fatores que determinam esse fenômeno, privilegiando as dimensões coletivas
e socioculturais do beber.

Além disso, quando tratamos de povos indígenas, estamos diante de um universo


extremamente diverso no que diz respeito às culturas, organização social e línguas, em
que nem sempre é adequado empregar a forma de fala instituída por uma situação de
‘entrevista’, como requer a aplicação dos instrumentos de triagem, já que os povos
indígenas possuem suas próprias regras sociolinguísticas por meio das quais organizam
a comunicação no âmbito das suas aldeias (FERREIRA, 2009). Além disso, tais
instrumentos operam como valores e emoções – culpa, por exemplo -, bem como com
uma noção de pessoa particular, diferente das que existem nos múltiplos contextos das
sociedades indígenas.

Portanto, até o momento, não há instrumento de triagem validado para detectar


os problemas, necessidades e agravos associados ao fenômeno do consumo de álcool
entre povos indígenas. Os instrumentos convencionais como o CAGE e o AUDIT não
levam em consideração o contexto cultural e, dessa maneira, não são sensíveis aos
modos diferenciados de utilização das bebidas alcoólicas próprios de cada etnia. Além
disso, esse rastreamento parte de uma perspectiva centrada no indivíduo,
desconsiderando a dimensão coletiva constitutiva dos modos de beber indígena e dos
problemas e agravos daí decorrentes.

De qualquer modo, no Brasil encontramos algumas experiências importantes de


aplicação do instrumento de triagem CAGE entre populações indígenas específicas, que
valem a pena ser retomadas para ilustrar o potencial de cada ferramenta na construção
participativa de ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde.

EXPERIÊNCIAS DE APLICAÇÃO DO CAGE JUNTO A POVOS INDÍGENAS

A pesquisa epidemiológica desenvolvida por Albuquerque e Souza (1997)


aplicou o CAGE entre os Terena do Complexo de Sidrolândia, no Estado do Mato
Grosso do Sul, sem adaptá-lo à cultura desse povo indígena. Os resultados alcançados
junto à população acima de dez anos demonstraram que 26,1% dos homens e 1,2% das
mulheres são CAGE positivo. Já para a população acima de 15 anos, as taxas subiram
para 31% para homens e 1,6% para mulheres. Esses dados revelam o índice dos
possíveis dependentes do álcool nessa população.

Em um estudo de corte transversal realizado, quatro anos depois, com Terenas


moradores da periferia da cidade de Sidrolândia, Aguar e Souza (2001) chegaram aos
seguintes resultados, aplicando o mesmo instrumento de triagem: 12,5% homens e
10,3%, maiores de 10 anos, apresentaram CAGE positivo; e, para maiores de 15 anos,
22,4% homens e 17,1% mulheres foram capturados como positivo pelo instrumento.

Figura 1: CAGE positivo entre os terenas do Complexo de Sidrolância


(MS). Fonte: SEAD/UFSC(2017).

Os resultados alcançados por esse estudo demonstram o quanto a estratégia para


enfrentamento dos problemas causados pelo consumo de bebidas alcoólicas entre os
Terena deve considerar as relações de gênero e focar a intervenção sobre a população
masculina jovem. No entanto, esse estudo, além de não considerar o processo de
alcoolização vigente entre o povo Terena, limitando a compreensão sobre a atual
configuração histórica e sociocultural do fenômeno, por não ter sido realizado de forma
participativa, não capturou o ponto de vista Terena sobre as bebidas alcoólicas e sobre
os possíveis problemas associados a essa prática e nem, tampouco, mobilizou a
comunidade e suas lideranças para construírem, conjuntamente aos serviços, ações para
intervir sobre os problemas, as necessidades e agravos relacionados ao uso abusivo de
bebidas alcoólicas.

O ideal, nesse caso, teria sido combinar a aplicação do instrumento de triagem à


uma pesquisa-ação de cunho qualitativo, visando uma melhor caracterização sobre o
processo de alcoolização, de modo a subsidiar a construção de estratégias participativas
de enfrentamento dos problemas e agravos decorrentes das práticas alcoólicas vigentes
entre os Terena.

A experiência realizada entre os Kaingang da Terra Indígena Apucaraninha, do


estado do Paraná, por sua vez, buscou conciliar o estudo antropológico e um diagnóstico
epidemiológico sobre a prevalência do alcoolismo, de modo a subsidiar o
desenvolvimento de uma série de ações de intervenção orientadas tanto para a promoção
da saúde quanto para a atenção à saúde dos sujeitos com problemas associados ao uso
prejudicial de bebidas alcoólicas. Para a identificação dos “bebedores de alto risco”, o
diagnóstico epidemiológico recorreu ao CAGE (OLIVEIRA, 2004).

Apesar de ser de fácil aplicação e de alta especificidade, a aplicação do CAGE


na população indígena requer que esse instrumento seja adaptado às particularidades
socioculturais de cada povo indígena, visto que, nesses universos, as percepções, as
palavras, os significados das coisas e as concepções de corpo, saúde, doença etc.
diferem da sociedade ocidental. A adaptação, portanto, insere-se na tentativa de uma
maior aproximação dessa realidade. (OLIVEIRA, 2004, p. 78).

Para realização do estudo epidemiológico junto aos Kaingang, o CAGE foi


adaptado por meio da substituição da noção de “culpa” pela noção de “vergonha”, já
que a primeira palavra expressa uma emoção que não é nutrida no contexto
sociocultural kaingang. Segundo Oliveira (2004), “é recomendável que as pessoas
interessadas na utilização desse instrumento façam a adaptação de acordo com as
especificidades de cada grupo” (p. 78).

Os estudos de prevalência sobre o alcoolismo, realizados junto aos Kaingang de


Apucaraninha, em 1999, demonstraram que 26,8% usaram bebidas alcoólicas nos
últimos 12 meses, não significando que todo o universo de pessoas identificadas como
CAGE positivo sejam dependentes do álcool.

Todavia é importante ressaltar que estas pessoas que se encontram em situação


de “risco” podem ou não desenvolver a “dependência do álcool” ou ainda apresentam
uma predisposição para desenvolver outras doenças correlacionadas ao uso do álcool
(OLIVEIRA, 2003).

Mais de 45% das mulheres que fazem uso de bebidas se encontra na faixa de 30
a 49 anos. À primeira vista, parece que, entre os Kaingang, as mulheres apresentam o
problema do alcoolismo em idades mais avançadas que entre os homens. (OLIVEIRA,
2003, p. 55-56).
Figura 2: problemas de alcoolismo entre KAINGANG. Fonte: SEAD/UFSC(2017).

As ações de promoção e prevenção buscaram fortalecer a identidade -


individual, familiar e coletiva – e a cultura Kaingang, envolvendo a comunidade em
oficinas de capacitação sobre o problema do consumo de álcool, no desenvolvimento de
práticas desportivas com os jovens, por meio da criação de uma escolinha de futebol, na
criação de um grupo de canto e dança e retomada de festas tradicionais e na realização
de atividades com as crianças nas escolas. Já as ações de Redução de Danos
(RD) focaram na estratégia de estruturação da atenção básica à saúde, no atendimento
ambulatorial prestado por profissionais da Unidade Básica de Saúde da aldeia –
médicos, enfermeiras e psicólogos - para o paciente e seus familiares, pela elaboração
de protocolos específico de acompanhamento de pacientes e familiares e de diretrizes
que orientam quanto a abordagem que os serviços devem adotar no enfrentamento dos
problemas decorrentes do uso abusivo de bebidas alcoólicas (OLIVEIRA, 2004, p. 82-
83).

Souza e Garnelo (2007), com a intenção de investigar o processo de alcoolização


entre os povos indígenas do Alto Rio Negro, no estado do Amazonas, propõem um
estudo qualitativo sobre os sentidos atribuídos às perguntas e respostas do CAGE para
averiguar se estratégia de adaptação do CAGE para aplicá-lo junto a indígenas, tal como
propôs Oliveira (2004), seria adequada.

A estratégia metodológica utilizada para investigar as limitações do CAGE foi a


de interpretar os significados atribuídos à ingestão de álcool pelos entrevistados (ou
seja, o processo de alcoolização), tendo como balizas os princípios norteadores do
instrumento (o que se busca investigar com cada pergunta, para se proceder à triagem de
dependência) e os sentidos das respostas dos entrevistados às perguntas do instrumento
(o que se diz quando se responde às perguntas) (SOUZA; GARNELO, 2007, p. 92).

Souza e Garnelo concluíram, a partir desse estudo, que a aplicação do CAGE


entre a população indígena do Alto Rio Negro é inadequada devido a “incongruência
entre os objetivos e pressupostos deste, e o significados das respostas fornecidas pelos
entrevistados”. Para os autores, a substituição de palavras, como realizado entre os
Kaingang (Oliveira, 2003) não contribui para a compreensão das “situações sociais em
que o inquérito é realizado e dos sentidos atribuídos a este pela população pesquisada”
(SOUZA; GARNELO, 2007, p. 93), na medida em que o entendimento dos sujeitos
sobre as perguntas que compõem o CAGE é configurado, justamente, por essas mesmas
condições socioculturais.

Nesse sentido, Souza e Garnelo (2007) defendem a necessidade de se atentar


para os sentidos que os instrumentos de triagem padronizados adquirem quando
aplicados em contextos socioculturais diferenciados. Para dimensionar os problemas de
saúde associados ao consumo do álcool, eles propõem a construção de instrumentos de
triagem que incorporem as “dimensões êmicas do problema, ou seja, como e quando, do
ponto de vista nativo, os modos de beber se tornam problemáticos” (2007, p. 23).
No entanto, há povos indígenas que não aceitam participar de triagens tais como
as propostas pela aplicação do CAGE. Por ocasião da negociação do projeto de
pesquisa-ação junto aos Mbyá-Guarani, no estado do Rio Grande do Sul, os líderes se
recusaram a aplicar o CAGE em as suas comunidades, mesmo adaptado ou traduzido
para a língua indígena, não necessariamente pelo conteúdo das perguntas, mas pela
forma como elas são elaboradas. Além disso, eles demonstraram que não tinham
interesse em identificar e nem em quantificar as pessoas com problemas associados ao
consumo do álcool, mas que queriam, sim, tratar sobre a raiz do problema que, para
eles, era a questão da falta de terra suficiente para a manutenção do seu modo de ser – o
Mbyá rekó (FERREIRA, 2002).

Portanto, sejam epidemiológicos, sejam qualitativos, os estudos, diagnósticos,


inquéritos a serem realizados junto aos povos indígenas, para caracterizar e dimensionar
os problemas e agravos associados ao uso abusivo de bebidas alcoólicas, devem ser
negociados com os povos indígenas e com suas lideranças e, de preferência, devem ser
construídos conjuntamente com eles em todas as suas fases – elaboração,
implementação, execução e avaliação. As metodologias participativas atendem, assim,
ao imperativo da ética intercultural, permitindo que, desde a etapa da produção de
conhecimento sobre o fenômeno, as ações estejam implicadas em superar os
estereótipos atribuídos aos sujeitos indígenas difundidos pelo regime tutelar que os
classifica como “relativamente capazes”, sendo a imagem do “índio bêbado,
preguiçoso” um de seus desdobramentos.

A PERSPECTIVA DA SECRETARIA ESPECIAL DA SAÚDE INDÍGENA -


SESAI

Atualmente, a estratégia proposta pela SESAI/MS é a de reconhecer a demanda


por atenção às consequências negativas do uso de substâncias alcoólicas, partindo da
percepção dos próprios indígenas: identificando as aldeias com maiores problemas
decorrentes do uso de álcool, assim como os modelos explicativos e os determinantes
socioculturais envolvidos no processo de alcoolização, os recursos próprios das
comunidades para enfrentamento desse problema, a rede social de suporte, entre
inúmeros outros elementos que poderão ser levantados para qualificar a atuação das
equipes de saúde e engajar a comunidade na busca de soluções.

A orientação institucional adotada pela SESAI recomenda que a abordagem


sobre os problemas decorrentes do uso de álcool deve ser realizada localmente,
identificando problemas e elaborando alternativas de modo participativo e comunitário.
Essa proposta procura aproximar as atividades desenvolvidas ao território de
convivência dos sujeitos, evitando ações que não considerem as perspectivas indígenas
sobre os problemas.

Para dimensionar e caracterizar o fenômeno no contexto de atuação dos serviços


de atenção básica, de modo a subsidiar a atuação das equipes multidisciplinares de
saúde indígena, a SESAI formulou uma ficha de monitoramento do uso prejudicial
de álcool, a ser preenchida pelos profissionais de saúde somente quando os indígenas
demandarem algum cuidado relacionado ao uso do álcool. Essa ficha conta com um
instrutivo de preenchimento e com orientações sobre a abordagem dos processos de
alcoolização em populações indígenas.

Com isso, a SESAI pretende instituir uma forma de vigilância epidemiológica


que respeite os modos diferenciados de os indígenas utilizarem as bebidas alcoólicas e,
concomitantemente, ofertar assistência aos problemas acarretados pelo uso prejudicial
de álcool, principalmente, àqueles surgidos a partir do contato com a sociedade
envolvente. Essa estratégia visa identificar as consequências negativas do uso, não
estando necessariamente vinculadas à quantidade de bebida ingerida ou à frequência de
consumo, por isso seu foco recai nos problemas e agravos relacionados ao consumo de
álcool, bem como no ponto de vista dos sujeitos indígenas sobre os mesmos.

Diante das limitações dos instrumentos de triagem convencionais para dar conta
das especificidades do fenômeno do uso de bebidas alcoólicas junto aos povos
indígenas, a Ficha de Monitoramento do Uso Prejudicial do Álcool está alinhada à
perspectiva adotada pela Redução de Danos, optando enquanto proposta de
sistematização de informações de saúde, pela utilização da categoria Consumo
Prejudicial de Álcool, definido principalmente pelas consequências negativas e não pela
quantidade de bebida ingerida ou pela frequência de consumo. Essas consequências
podem ser individuais ou coletivas, de saúde, sociais ou espirituais e estão diretamente
relacionados ao uso de álcool, como as situações de violência doméstica e comunitária,
conflitos com a polícia, dificuldades com dinheiro, negligência ou abandono de
crianças, adoecimentos físicos e/ou comportamentais relacionados ao álcool e outros
que causem danos ao usuário ou a outros.

No Manual de Monitoramento do Uso Prejudicial do Álcool em Povos


Indígenas, a SESAI orienta os profissionais de saúde a organizar e sistematizar as
informações sobre o uso prejudicial de álcool entre indígenas referente somente as
pessoas que têm consumo problemático de álcool e que tenham demandado à equipe
algum cuidado relacionado ao uso do álcool. Ao registrar apenas as informações das
pessoas que tenham interesse em diminuir as consequências negativas do uso de bebidas
alcoólicas, a SESAI busca respeitar a autonomia e a agência dos sujeitos indígenas na
busca por atendimento à saúde. Essa opção se deve a uma escolha metodológica que
implica levar em consideração as perspectivas do próprio sujeito sobre o uso que ele
mesmo faz de bebidas alcoólicas. Até porque o desejo de se tratar é essencial para
qualquer mudança da condição de saúde e de autocuidado do sujeito. Como diria Seneca
(1991), “é parte da cura o desejo de ser curado”.

RESULTADOS OFICIAIS SOBRE OS PROBLEMAS DECORRENTES DO USO


DE BEBIDAS ALCOÓLICAS ENTRE OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Apresentamos a seguir dados inéditos sobre indígenas com problemas decorridos


do uso de álcool que buscaram assistência das equipes de atenção básica para cuidados
relacionados ao uso prejudicial dessa substância. Essas informações, disponibilizadas
pela SESAI, foram coletadas pelas equipes de saúde através da Ficha de Monitoramento
do Uso de Álcool, apresentada anteriormente, e consolidadas pelas equipes de gestão da
atenção de 27 DSEIs. Conforme a secretaria, esses dados estão sujeitos a revisão e o
processo de monitoramento desse agravo ainda está em implantação. Porém, as
primeiras informações analisadas apontam para questões relevantes na produção de
cuidados relacionados ao uso de álcool em povos indígenas.

Figura 3: distribuição da população indígena por região do país. Fonte: IBGE(2010),


adaptado por SEAD-UFSC (2017).

Em 2016, as equipes de atenção básica que prestam atendimento nos territórios


indígenas em todo o país acompanharam 1.753 indígenas que demandaram cuidados
relacionados ao uso prejudicial de álcool, enquanto em 2015 esse indicador era de 1628
pessoas, havendo um aumento de 7,1% no número de indígenas acompanhados. Destes,
quase metade residem na região Norte do país, como se pode observar no gráfico
abaixo, seguidos por quase uma substancial parcela residente nas regiões Sul e Sudeste.
Figura 4: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram

assistência nas equipes de atenção básica divididos por região do país. Fonte:Ministério
da Saúde, SESAI, adaptado por SEAD-UFSC (2017).

As regiões Sul e Sudeste estão classificadas conjuntamente devido ao modo de


organização dos DSEI nessas regiões, que não permite separar a informação por região.
Mesmo assim, percebe-se que os indígenas com esse tipo de problema seguem
distribuição semelhante à da população indígena geral por região, conforme dados do
IBGE 2010. Entre os 1753 indígenas acompanhados, 1451 eram homens e 302 eram
mulheres, revelando que os problemas decorridos do uso prejudicial de álcool são bem
mais prevalentes entre homens, o que pode apontar para a associação entre construção
da masculinidade e consumo de álcool entre os povos indígenas.
Figura 5: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram
assistência nas equipes de atenção básica distribuídos por sexo. Fonte: Departamento de
Atenção à Saúde Indígena, SESAI, Ministério da Saúde, adaptada por SEAD-UFSC
(2017).

Em relação à distribuição por faixa etária, observa-se que, tanto para homens
quanto para mulheres, a maior parte dessas pessoas têm entre 30 e 59 anos, seguidas
pela faixa etária de 18 a 29 anos. Esses dados demonstram que os indígenas que
buscaram por algum tipo de assistência estão no período da vida adulta. O número de
indígenas menores de 18 anos que demandaram cuidados, no entanto, é pequeno,
podendo demonstrar que a juventude não considera as consequências decorrentes do uso
de álcool como problemas.

Figura 6: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram


assistência nas equipes de atenção básica distribuídos por faixa etária e
sexo. Fonte: Departamento de Atenção à Saúde Indígena, SESAI, Ministério da Saúde,
adaptada por SEAD-UFSC (2017).
Em relação à situação conjugal das pessoas que demandaram cuidados
relacionados ao uso de álcool às equipes, mais da metade dos usuários tinham alguma
relação conjugal, enquanto 40% eram solteiros.

Figura 7: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram


assistência nas equipes de atenção básica distribuídos por situação
conjugal. Fonte: Departamento de Atenção à Saúde Indígena, SESAI, Ministério da
Saúde, adaptada por SEAD-UFSC (2017).

No que se refere aos tipos de bebidas utilizadas, observamos o predomínio das


bebidas destiladas, em especial a cachaça, em 75% dos casos, e outros 20% a utilizam
concomitantemente com cerveja e outras bebidas fermentadas. Ressalta-se, ainda, que
1% dos usuários chegou a fazer uso de gasolina, apresentando situações de intoxicação
e outros danos à saúde.
Figura 8: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram
assistência nas equipes de atenção básica distribuídos por tipo de bebida
utilizada. Fonte: Departamento de Atenção à Saúde Indígena, SESAI, Ministério da
Saúde, adaptada por SEAD-UFSC (2017).

A principal informação coletada por essa estratégia de vigilância epidemiológica


adotada pela SESAI se refere aos principais problemas decorridos do uso de álcool e
reconhecidos pelo próprio sujeito como uma consequência negativa causada pelo
consumo de bebidas alcoólicas. Como pode-se observar no gráfico abaixo, o problema
mais recorrente está relacionado a conflitos familiares com situações de violência física.
Percebe-se que o álcool está associado a situações de violência de diversos tipos,
destacando-se principalmente as violências físicas e simbólicas contra cônjuges e outros
familiares. Essas violências também ocorrem entre membros de uma mesma
comunidade, sendo o terceiro problema mais recorrente os conflitos violentos na aldeia.
Além das violências, outro problema muito recorrente, que aparece em segundo lugar,
são as comorbidades relacionadas ao uso prejudicial de álcool, destacando-se aqui a
cirrose hepática.
Figura 9: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram
assistência nas equipes de atenção básica distribuídos por principal problema
relacionado ao uso da substância psicoativa. Fonte: Departamento de Atenção à Saúde
Indígena, SESAI, Ministério da Saúde, adaptado por SEAD-UFSC (2017).

Apesar de as equipes de atenção básica realizarem atendimentos regulares e


frequentes aos pacientes que demandaram por assistência devido a problemas
decorrentes do uso de álcool, existem dificuldades de acesso a outros pontos de atenção
da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). O fato de apenas 13% desses pacientes
terem pelo menos uma consulta no CAPS demonstra o distanciamento entre os serviços
de saúde indígena e os da RAPS.

Figura 10: indígenas com problemas decorridos do uso de álcool que buscaram
assistência nas equipes de atenção básica com ou sem pelo menos uma consulta nos
CAPS. Fonte: Departamento de Atenção à Saúde Indígena, SESAI, Ministério da
Saúde, adaptado por SEAD-UFSC (2017).
Apesar da extrema importância dos dados produzidos pela estratégia de
vigilância epidemiológica, seja através da aplicação de instrumentos de triagem, seja
por meio de um enfoque centrado nos problemas decorrentes do uso prejudicial das
bebidas alcoólicas e na busca da atenção à saúde, tal como desenvolvido pela
SESAI/MS, faz-se necessário que tais dados sejam complementados com informações
produzidas por estudos qualitativos aprofundados que permitam a compreensão das
configurações específicas que os processos de alcoolização assumem em contextos
socioculturais particulares. Por meio do emprego de metodologias qualitativas
participativas, não apenas será possível acessar os modelos explicativos das
comunidades indígenas sobre o uso de álcool como também construir ações para o
enfrentamento dos problemas decorrentes desse uso que articulem as possibilidades de
atenção disponibilizadas pelos serviços e os saberes e práticas indígenas de cuidado com
a saúde. O método de pesquisa-ação, recomendado pelas Diretrizes Gerais para uma
Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas (Portaria n.º
2.759/2007), parece ser adequado para conhecer e desenvolver estratégias locais de
intervenção sobre os problemas e agravos decorrentes do uso abusivo de bebidas
alcoólicas.

As informações e lições apreendidas pelos projetos de pesquisa-ação integrariam


um sistema de monitoramento a avaliação das ações executadas, congregando dados
epidemiológicos e informações qualitativas que possibilitem a avaliação das estratégias
de intervenção a partir dos diferentes pontos de vista constelados pelas ações
executadas: tanto dos gestores e profissionais dos serviços de saúde quanto dos sujeitos
indígenas e de seus especialistas e praticantes das medicinas tradicionais.

PESQUISA-AÇÃO

A pesquisa-ação constitui um método interessante tanto para sistematizar e


constelar informações epidemiológicas e qualitativas (modelos explicativos, itinerários
terapêuticos, saberes e práticas de cuidado) quanto para implementar um processo
dialógico intercultural voltado a construção de compreensões compartilhadas sobre o
fenômeno do uso de bebidas alcoólicas e de acordos sobre ações práticas a serem
implementadas no enfrentamento e superação dos problemas identificados. A pesquisa-
ação permitirá, assim, a produção de conhecimentos tanto sobre os problemas e
necessidades em pauta, aqui no caso aqueles associados ao consumo de álcool, quanto
sobre o próprio processo de execução da ação, permitindo que os seus rumos sejam
revistos durante o curso do seu desenvolvimento.

A metodologia de pesquisa-ação combina o processo de produção de


conhecimentos com a realização de ações práticas propostas, neste caso em pauta, pelos
líderes e comunidades indígenas. Os resultados alcançados por esses projetos são de
duas naturezas: os resultados da ação (práticos) e os resultados da pesquisa
(THIOLLENT, 2007).
As atividades de pesquisa-ação têm como objetivo contribuir para, ao identificar
e caracterizar o problema em foco, a promoção da transformação social a partir do
processo de construção de saberes plurais e emancipatórios (SANTOS, 2010). O novo
conhecimento intercultural e emancipatório, produzido a partir da pesquisa-ação, pode
contribuir para reinventar as comunidades indígenas que sofrem com os problemas
causados pelo abuso de bebidas alcoólicas, habilitando “[...] seus membros a resistir ao
colonialismo e a construir a solidariedade pelo exercício de novas práticas sociais que
conduzirão a formas novas e mais ricas de cidadania individual e coletiva” (SANTOS,
2011, p. 96).

Os projetos participativos de pesquisa-ação permitem que seja realizada uma


caracterização do fenômeno do consumo de álcool entre os povos indígenas, bem como
saberes e práticas indígenas que podem ser acionados como estratégia de enfrentamento
dos problemas e agravos associados a essa prática. A partir do corpus de conhecimento
produzido pelos projetos de pesquisa-ação, é possível fazer uma descrição do processo
de alcoolização vigente em um dado coletivo indígena (povo, aldeia, comunidade),
diagnosticar os problemas associados a esse consumo e que são identificados por esses
coletivos, e construir, através do diálogo, dispositivos e estratégias para intervir sobre
esses problemas. Esse conhecimento produzido em conjunto subsidiará a elaboração
participativa de Planos de Ação Singulares para o enfrentamento dos problemas e
agravos, bem como as próprias políticas públicas de atenção à saúde mental indígena.

A pesquisa-ação pode recorrer a técnicas de investigação qualitativas e


quantitativas, desde que o seu emprego seja feito a partir de um acordo envolvendo os
sujeitos concernidos no processo de desenvolvimento das ações de intervenção. Os
procedimentos metodológicos e técnicas de pesquisa, apesar de estarem claramente
delineados, devem ser negociados com as lideranças e coletivos indígenas que
orientarão os pesquisadores na forma respeitosa de inserção, atentando para as regras de
interação e de comunicação que orientam a vivência cotidiana desses grupos. Em última
instância, é importante que sejam identificadas e operacionalizadas as próprias formas
de fazer e solucionar problemas – métodos – empregadas pelos indígenas em suas
comunidades.

Ao combinar o processo de produção de conhecimentos ao desenvolvimento de


ações práticas, a pesquisa-ação incentiva as comunidades a se mobilizarem e a
refletirem sobre o fenômeno em foco. Essas ações têm um impacto transformador sobre
a realidade das comunidades locais, na medida em que permitem a criação de estratégias
para a manutenção, atualização e fortalecimento da saúde e do bem viver indígena,
propiciando a emergência de conhecimentos emancipatórios. Nesse sentido, a própria
pesquisa se transforma em uma ação de intervenção, enquanto as ações de intervenção
tornam-se momentos privilegiados para a coleta de dados.

O espaço da pesquisa-ação permite que os diferentes pontos de vista que


integram o contexto enfocado sejam expressos e negociados através dos diálogos
estabelecidos entre os vários sujeitos sociais que participam da ação. O caráter
participativo dos projetos de pesquisa-ação incentiva os gestores e profissionais dos
serviços de saúde a atuarem criativamente junto às lideranças e coletivos locais.
Através desse processo comunicativo, em que as lideranças e povos indígenas atuam
como sujeitos criativos e corresponsáveis pela manutenção da sua saúde e do seu bem-
viver, as realidades locais são reorganizadas.

Com isso, pretendemos balancear as relações assimétricas de poder


historicamente instituídas, na medida em que os técnicos e as lideranças indígenas
compartilham do processo de elaboração, de tomada de decisão sobre o rumo da ação,
da execução e avaliação dos projetos. Ao possibilitar a construção de estratégias
comunitárias para o enfrentamento dos problemas e agravos causados pelo uso abusivo
de bebidas alcoólicas, a pesquisa-ação permite o reconhecimento dos sujeitos e povos
indígenas como agentes criativos e corresponsáveis pela melhoria da qualidade da sua
saúde e pela promoção do bem-viver em suas comunidades.

DIAGNÓSTICO PARTICIPATIVO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DO


ALCOOLISMO ENTRE OS MBYÁ-GUARANI NO RS: A EMERGÊNCIA DA
CATEGORIA “BEBEDOR PROBLEMA”

Ferreira (2002) coordenou o Diagnóstico Antropológico Participativo sobre a


Manifestação do Alcoolismo entre os Mbyá-Guarani, o qual contou com a participação
de lideranças Mbyá que tinham a função de representar o seu grupo frente às instâncias
governamentais e não governamentais atuantes no campo indigenista. Os objetivos
dessa pesquisa eram:

1. reconhecer se o uso de bebidas alcoólicas era considerado um problema pelas


comunidades Mbyá-Guarani;
2. sendo considerado um problema, poder caracterizá-lo a partir do ponto de vista
indígena;
3. identificar as medidas de autoatenção utilizadas para o controle do consumo de álcool
(MENÉNDEZ, 2003), visando apontar os caminhos para a intervenção sobre essa
problemática.

O processo de pesquisa foi constituído através de uma relação dialógica entre a


pesquisadora e os Mbyá participantes do diagnóstico, estabelecendo-se uma intensa
negociação sobre caminhos da pesquisa. Os líderes Mbyá ressaltaram a importância de
conversar com os sábios para que eles indicassem o caminho para abordar a
problemática relacionada ao consumo de álcool (FERREIRA, 2004).

Nas saídas de campo do diagnóstico, os Mbyá que acompanharam a antropóloga


a orientavam quanto à forma adequada de abordar as questões relativas ao consumo de
álcool, atuando nas situações de pesquisa como mediadores do diálogo com os líderes
locais e com as comunidades. Tais conversas, que geralmente ocorriam em torno ao
fogo de chão e oscilavam entre a língua portuguesa e a guarani, eram gravadas para
posterior tradução pelos Mbyá que atuavam como referência no projeto (FERREIRA,
2004).
O caminho de intervenção sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas emergiu do
processo dialógico instituído pelo diagnóstico antropológico, transformando-se, a partir
daí, em um projeto de pesquisa-ação. As ações de intervenção –reuniões gerais dos
Karaí e percurso dos Xondaro Marãgatu – foram organizadas a partir do
reconhecimento e fortalecimento das práticas indígenas de autoatenção e de organização
política Mbyá-Guarani já existentes para a realização de um trabalho de cunho
comunitário: a instituição do aconselhamento através das “boas palavras” (FERREIRA,
2004).

O desenvolvimento de tais ações sustentou-se sobre o princípio de participação


das lideranças indígenas na elaboração, organização e implantação de ações que visaram
à redução do consumo abusivo de álcool nas comunidades indígenas. Os Karaí e os
Xondaro Marãgatu foram os agentes de intervenção centrais nesse processo. Enquanto
os primeiros são os líderes espirituais e conhecedores das “boas palavras”, os segundos
emergiram como agentes de intervenção no contexto de desenvolvimento da pesquisa-
ação. São eles os “guardiões do espírito”, os “mensageiros dos Karaí”, que possuem
como tarefa o aconselhamento às comunidades Mbyá para a redução do consumo de
álcool, através das ‘boas palavras’” (FERREIRA, 2004).

O caráter participativo do diagnóstico foi uma tentativa de construir uma nova


relação com esse grupo, no qual seus integrantes pudessem apropriar-se e participar
ativamente tanto do processo de pesquisa quanto da fase de planejamento das ações
institucionais a serem desenvolvidas, com o intuito de reduzir o consumo de bebidas
alcoólicas. Nesse sentido, propôs-se criar um trabalho e uma reflexão juntamente com
lideranças indígenas sobre um fenômeno que é vigente em algumas comunidades Mbyá
(FERREIRA, 2004).

Com isso, buscou-se superar, ou transcender, o tipo de relação de poder,


dominação e sujeição instituída pelo regime tutelar (SOUZA LIMA, 1995) e que
atualmente assume a forma de uma ideologia da tutela que gira em torno à ideia da
“capacidade (ou incapacidade) relativa” do índio. Ideia essa que perpassa os diferentes
setores da sociedade nacional que atuam com a questão indígena (FERREIRA, 2004).

Um dos pressupostos levados em conta para a realização de um diagnóstico


“participativo” foi: se o uso de bebidas alcoólicas é realmente um problema enfrentado
por essas comunidades – e não apenas uma imposição de problemática dos segmentos
da sociedade nacional responsáveis pela questão da saúde indígena –, supõe-se que,
devido ao longo tempo de convívio com o problema do álcool e ao aspecto dinâmico da
cultura, existam não só reflexões sobre o fenômeno mas também o desenvolvimento de
iniciativas para prevenir, controlar e mesmo recuperar, através de tratamentos
terapêuticos tradicionais, as pessoas que estão “tomando” bebidas alcoólicas
(FERREIRA, 2004).

Essa postura metodológica adotada permitiu aos Mbyá manifestarem para a


antropóloga os caminhos adequados, segundo o seu ponto de vista, tanto para abordar a
questão nas situações de pesquisa nas aldeias quanto para desenvolvermos ações de
intervenção nos problemas relacionados ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas.
Diante disso, a proposta de ação das lideranças, feita durante o diagnóstico, culminou
com a realização da I Reunião Geral dos Karaí, Caciques e Lideranças Mbyá-Guarani
sobre o Uso Abusivo de Bebidas Alcoólicas e Alcoolismo – RS (FERREIRA, 2004).

OS RESULTADOS DO DIAGNÓSTICO E A EMERGÊNCIA DA CATEGORIA


“BEBEDOR PROBLEMA” ENTRE OS MBYÁ-GUARANI

“O fenômeno do uso de bebidas alcóolicas entre as comunidades indígenas


Mbyá-Guarani, no interior de uma cultura do contato, é produzida durante o processo
histórico de contato interétnico. Isso porque, ao consumo de bebidas alcoólicas se
agrega um conjunto de práticas e significados que articula as concepções e o estilo
tradicional indígena aos elementos da sociedade ocidental que foram incorporados a
esse universo: alimentos, músicas, bebidas alcoólicas etc., criando, assim, uma ‘cultura
do beber’ específica.

Os Mbyá reconhecem o uso de bebidas alcoólicas como um problema vigente


em algumas de suas comunidades no RS. Entretanto, até a realização do diagnóstico, o
consumo de álcool e suas consequências era considerado como um ‘problema
interno’ que não dizia respeito aos ‘brancos’. As comunidades Mbyá que possuem
problemas apresentam fatores estruturais em comum que contribuem para configurar o
fenômeno do consumo excessivo de álcool. São eles: terra e ambiente natural
insuficiente ou inadequado para a reprodução do mbyá rekó (modo de ser, sistema,
cultura); inexistência da Opy (casa de reza); inexistência do karaí (sábio, liderança
espiritual e curador); não atualização dos rituais; proximidade dos grandes centros
urbanos; trabalho assalariado; conduta da liderança (se bebe ou não).

As comunidades que estão assentadas nos acampamentos na beira das estradas e


as aldeias localizadas próximas aos centros urbanos são as mais vulneráveis ao consumo
abusivo de bebidas alcoólicas, devido ao contato mais intenso com a sociedade regional
e o acesso mais fácil às bebidas alcoólicas. Esses fatores propiciam a criação de
uma ‘cultura do beber’, com suas ‘festas de branco’: bailes, jogos de futebol e jogos de
cartas. Por outro lado, algumas aldeias localizadas em TI demarcadas ou em vias de,
enfrentam outros problemas, como a fome, que podem levar muitas famílias a não
permanecerem nas aldeias e voltarem para os acampamentos na beira das estradas, onde
há maior facilidade de conseguirem alimentos.

Sendo acampamento ou terra indígena, nos lugares onde há uso abusivo de


bebidas alcoólicas, geralmente, os ensinamentos e o modo de ser dos antigos não são
respeitados, os rituais tradicionais não são atualizados (reza, canto e dança). Ao mesmo
tempo, as ‘festas de branco’ passam a ser práticas recorrentes. Esses momentos festivos
são indissociáveis do uso de bebidas alcoólicas. A cachaça (aguardente) é a bebida
usada com maior frequência entre os Mbyá no RS, por estar ao alcance do poder
aquisitivo dos bebedores. O vinho e a cerveja também são usados, porém com menor
frequência por serem bebidas mais caras.
O uso de bebidas alcoólicas é considerado um problema pelas comunidades
indígenas, não necessariamente como uma doença do indivíduo, que possui uma
dependência química do álcool. Mas sim como tendo um impacto nocivo à vida da
pessoa que bebe e, principalmente, à família e à comunidade na qual se bebe. A prática
de beber não é reconhecida pelos Mbyá por ser vista como geradora de uma
dependência biológica e psicológica no indivíduo, perspectiva esta assumida pela
biomedicina. No percurso do trabalho de campo, pudemos perceber que os Mbyá com
os quais conversávamos empregavam o termo kau para se referir ao bebedor que
causava problemas nas aldeias: o ‘bebedor problema’.

A pessoa Mbyá não é considerada um ‘bebedor problema’ simplesmente porque


bebe, mas principalmente porque cria problemas à sua família e também para a
comunidade. Em primeiro lugar, a pessoa que não tem controle sobre o tomar, que bebe
até acabar a bebida ou até desmaiar, não tem condições para cuidar e sustentar a sua
família, pois gasta a maior parte do seu dinheiro na compra das bebidas alcoólicas e não
em alimentos, podendo inclusive envolver o seu cônjuge e seus filhos também no
consumo do álcool. Além disso, ela torna-se violenta com a sua própria família ou com
outros parentes que moram na comunidade, criando transtornos para todos. Também
o ‘bebedor problema’ é aquele que fica exposto a diferentes tipos de acidentes: as
quedas e aos atropelamentos no trânsito, entre outros. Enfim, o que torna uma pessoa
num ‘bebedor problema’ são as consequências desencadeadas pelo seu ato de beber, ou
seja, os transtornos que causam aos seus parentes e a própria comunidade.

Ao identificarem ‘bebedores problemas’, as lideranças estão apontando não só


para indivíduos, mas para famílias que possuem ‘problemas’ com o uso de bebidas
alcoólicas. Isso porque é comum que o homem, ao beber, seja acompanhado por sua
esposa. Quando o casal bebe, as consequências sobre a formação dos filhos são muito
mais nocivas do que quando apenas um ingere bebidas alcoólicas. Isso porque a prática
do ‘dar exemplo’ é um dos recursos utilizados na educação das crianças. Quando um
dos pais ou os dois bebem, a criança também pode tornar-se um adulto bebedor e
esquecer a tradição e a identidade Mbyá-Guarani.

Nesse sentido, podemos diagnosticar que, nas comunidades onde o uso de


bebidas alcoólicas é intenso, essa prática pode envolver, em diferentes graus, três
esferas da sociedade guarani: a pessoa, a família e a comunidade (bebedeiras coletivas:
festas). Há casos em que uma pessoa apenas na família faz uso diariamente de bebidas
alcoólicas, o que não impede de trazer transtornos a sua família; em outros, o casal usa
bebidas alcoólicas, o que implica nos seus filhos jovens, às vezes também as crianças,
serem envolvidos com as ‘bebedeiras’ de seus pais: ou bebendo junto com eles ou os
observando; e por fim, os momentos festivos em que o uso de bebidas alcoólicas é
coletivo. Estes são os elementos que fazem com que o uso de bebidas alcoólicas seja
considerado um problema para as comunidades Mbyá-Guarani no RS.” (FERREIRA
(2002).
Apesar da categoria “bebedor problema” encerrar um potencial para orientar o
olhar dos serviços de saúde para os problemas decorrentes do uso abusivo de bebidas
alcoólicas, tais como compreendidos e vivenciados pelos próprios sujeitos e coletivos
indígenas, tal categoria foi construída em um contexto de pesquisa-ação particular e,
portanto, não deve ser aplicada automaticamente a outros contextos. Importante é que,
pelos dispositivos da pesquisa-ação, sejam construídas junto com os povos indígenas, de
forma participativa e dialógica, os seus próprios entendimentos, categorias e estratégias
de intervenção pautadas sobre o ponto de vista indígena a respeito dos problemas por
eles vivenciados.

SAÚDE INDÍGENA, RAPS E ARTICULAÇÃO INTERSETORIAL PARA


GARANTIA DE DIREITOS

Para encerrarmos este módulo, propomos ao aprendente uma reflexão acerca de


duas diretrizes apresentadas pela Portaria n.º 2759/2007, que são fundamentais para a
garantia do princípio da integralidade à atenção à saúde mental indígena. A primeira se
refere à necessidade do desenvolvimento de ações intersetoriais para o enfrentamento
dos problemas e agravos associados ao consumo de bebidas alcoólicas entre os povos
indígenas. Já a segunda remete à necessidade de potencializar as ações da atenção
básica e garantir o acesso dos sujeitos indígenas – individuais e coletivos – aos serviços
ofertados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Portanto, um dos aspectos importantes na organização da atenção às


necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool em povos indígenas é a articulação
do cuidado com a rede, em especial para os casos mais complexos. Uma boa articulação
da atenção básica prestada pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena com os
serviços especializados da RAPS pode contribuir para a efetivação de um cuidado
integral, resolutivo e humanizado dos sujeitos indígenas.

No entanto, para a promoção do bem-viver e a prevenção dos problemas


decorrentes do uso abusivo de bebidas alcoólicas, o setor de saúde também deve se
articular com outros setores governamentais – tal como a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o Ministério da Cultura
(MINC), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) etc. –, com
organismos internacionais – organizações das Nações Unidas –, com universidades e
com organizações não governamentais que atuam na defesa dos direitos dos povos
indígenas e, sobretudo, com o movimento social dos povos indígenas. Somente um
esforço entre todos os setores e organizações na produção de ações integradas permitirá
atuar sobre os determinantes sociais do fenômeno do uso abusivo de bebidas alcoólicas,
gerando impacto sobre a dimensão estrutural dos processos de alcoolização entre os
povos indígenas.

No ano de 2016, a SESAI, a FUNAI, a Coordenação Geral de Saúde Mental,


Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde e a Fiocruz-Brasília realizaram a
I Oficina: Povos Indígenas e Necessidades Decorrentes do Uso de álcool – cuidados,
direito e gestão. O evento reuniu representantes das Redes de Atenção Psicossocial
(RAPS), das Coordenações regionais da FUNAI, dos Distritos Sanitários Especiais
Indígenas (DSEI), representantes indígenas e convidados, contabilizando mais de 180
participantes de todas as regiões do país. O objetivo do evento foi acordar de forma
conjunta a construção de princípios éticos para o cuidado, na perspectiva da
intersetorialidade e da garantia dos direitos indígenas, por meio da articulação de redes
de atenção para o cuidado às necessidades decorrentes do uso de álcool, além de
ampliar o debate sobre saúde mental, bem-viver e povos indígenas.

A proposta da oficina também se fundamentou na importância de que as redes de


atenção sejam preparadas para promover um diálogo intercultural efetivo com os
sujeitos e coletivos indígenas, considerando a diversidade sociocultural, seus diferentes
contextos de vida, entendimentos sobre a saúde e modos próprios de cuidado desses
povos. Esse princípio encontra-se em consonância com a necessidade de se adequar as
estratégias de cuidado ao contexto de cada comunidade indígena, observando-se os
determinantes sociais relacionados aos problemas enfrentados.

Os participantes da oficina consentiram que a abordagem de problemas


decorrentes do uso do álcool deve partir de uma atuação interinstitucional e em rede
integrada, devido à complexidade do fenômeno e aos múltiplos fatores que o
determinam e que perpassam várias dimensões do mundo da vida dos coletivos
indígenas.

No que se refere ao cuidado dos sujeitos indígenas, entendeu-se ser necessária a


construção de uma clínica ampliada que considere os determinantes sociais que
contribuem para configurar a condição de saúde das comunidades e famílias indígenas,
bem como o respeito e a articulação com os saberes e práticas de cuidados agenciados
pelos sistemas tradicionais indígenas de saúde.

O relatório da oficina, cedido pela SESAI, apresenta uma série de propostas de


atuação intersetoriais voltadas para o reconhecimento dos direitos diferenciados
garantidos pela Constituição Federal de 1988 e os saberes e práticas tradicionais dos
povos indígenas de promoção e cuidado para com a saúde. As estratégias de fomentos à
autodeterminação e ao protagonismo indígena devem pautar o desenvolvimento ético
das intervenções (pesquisa e ação), havendo uma urgência em se descolonizar as
políticas públicas e do Estado, tanto as ações do setor saúde e da assistência quanto
indigenistas. Da mesma forma, foi recomendada a estratégia da Redução de Danos (RD)
como forma de superar a lógica proibicionista para o cuidado às necessidades
decorrentes do uso de álcool, ainda pautada pela ideologia da tutela que informa as
ações do Estado – daí a necessidade de descolonizá-las.

Para garantir a integralidade do cuidado, o foco deverá recair sobre a construção


de vínculo e a perspectiva dos sujeitos com problemas decorrentes do uso do álcool,
através de atividades de escuta e acolhimento, que demandam os serviços de saúde. A
corresponsabilização e o cuidado, compartilhados entre todos os diversos atores que
integram as redes, são fundamentais para garantir o direito indígena de ter acesso a uma
atenção diferenciada à saúde.
Para o desenvolvimento de processos éticos e de metodologias participativas
interculturais é fundamental a qualificação da gestão das políticas públicas. Assim como
é necessário que sejam criados espaços de gestão compartilhada em nível local, que
contem com a participação de indígenas e suas organizações e dos agentes
governamentais implicados no desenvolvimento das políticas públicas indigenistas, e
que propiciem a elaboração e o planejamento de agendas compartilhadas. Os referidos
espaços de gestão compartilhada podem desenvolver ações de formação dos gestores
municipais e dos DSEI sobre a importância do trabalho em redes intersetoriais para a
efetivação do direito da atenção diferenciada aos povos indígenas.

As metodologias participativas são fundamentais para o desenvolvimento de


ações intersetoriais tanto para o enfrentamento dos problemas decorrentes do uso
abusivo de bebidas alcoólicas quanto para promover a articulação intercultural com os
saberes e práticas dos povos indígenas. Somente com a participação efetiva dos povos
indígenas tais ações poderão estar direcionadas para a produção de conhecimentos e
estratégias emancipatórias voltadas para a promoção da autonomia dos sujeitos e
coletivos indígenas e da sustentabilidade das ações e dos resultados por elas alcançados.

Síntese Reflexiva

Neste módulo vimos que a produção de conhecimentos sobre o fenômeno do


consumo de bebidas alcoólicas entre os povos indígenas no Brasil constitui estratégia
fundamental para qualificar as ações de intervenção sobre os problemas e necessidades
decorrentes do uso do álcool etílico junto a essas sociedades. Para tanto, faz-se
necessário recorrermos a abordagens interdisciplinares que considerem as múltiplas
dimensões e fatores determinantes na configuração específica desse fenômeno no
âmbito das comunidades indígenas.

Vimos também que a colaboração e o diálogo entre os métodos qualitativos e


quantitativos podem contribuir para uma aproximação compreensiva sobre o fenômeno,
de modo a desvelar os caminhos que as ações de promoção, prevenção e recuperação da
saúde devem tomar.

Importante retomar que, para que esses conhecimentos sejam instrumentalizados


de modo a subsidiar a intervenção, faz-se necessário que sua produção seja realizada em
conjunto com os povos indígenas e suas representações, propiciando a emergência de
constelações de saberes interculturais e emancipatórias. Os conhecimentos científicos e
procedimentos dos serviços de saúde devem se articular aos saberes e práticas indígenas
de produção do bem-viver. Assim, as atividades de produção de conhecimentos se
tornam uma oportunidade de reflexão e intervenção sobre os problemas enfocados, bem
como a intervenção propriamente dita se apresenta como uma oportunidade de produção
de conhecimentos inovadores. O princípio ético a orientar esse processo de pesquisa
e ação está ancorado nas estratégias participativas de atuação, sendo os povos
indígenas sujeitos criativos e corresponsáveis na produção do seu próprio bem-
viver.
A partir das contribuições trazidas neste módulo e de suas próprias experiências,
procure refletir de qual maneira você descreveria o processo de alcoolização vigente na
sociedade indígena que você conhece/atua. Como promover a interdisciplinaridade no
processo de produção de conhecimentos sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas? De
que forma podemos envolver os sujeitos e comunidades indígenas na produção de
conhecimentos e construção de estratégias de intervenção?

REFERÊNCIA

BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.


Aberta: portal de formação à distância: sujeitos, contextos e drogas [recurso eletrônico] /
Ministério da Justiça e Segurança Pública, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, [em
parceria com a SEAD-UFSC]. 2018. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/ ISBN:
978-85-67994-68-0
1. Drogas - Abuso - Tratamento. 2. Drogas – Políticas públicas - Brasil. 3. Drogas – Uso-
Prevenção. I. Universidade Federal de Santa Catarina. Secretaria de Educação à Distância.
Título. CDU: 364.272

Como referenciar: BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas sobre


Drogas. Álcool e população indígena: produção de conhecimento e abordagens metodológicas.
In: ______. Aberta: portal de formação a distância. Florianópolis: UFSC, 2017.

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