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Os limites da transformação
Dessa maneira, além da luta política, Ondina tem, ainda, de lutar contra os
preconceitos e a repressão moral, características que ainda persistem na
sociedade patriarcal, tradicionalista e conservadora como a de que faz parte. Se
o homem revolucionário almeja uma nova sociedade e luta por ela, diante desse
novo dilema que se lhe apresenta de forma também dialética — revolução versus
tradição —, ainda não tem respostas e atitudes à altura do que se espera. Não
só as camadas mais retrógradas dessas sociedades como também os setores
mais avançados repelirão com veemência tal transformação e serão implacáveis
com essa nova mulher que germina.
Desejava Ondina? Sim, há muito tempo. As suas coxas eram uma tentação. Os
seus olhos que prometiam, que se não baixavam. Ao vê-la na estrada, não tive
nenhum pensamento. Foi no bar que o desejo veio. Começava a escurecer. Por
que não? Ela olhava-me a desfiar. E depois, no jipe, as suas coxas a abrirem-
se... olhei-a e ela fixava-me. Viu que eu mirava as coxas e aproveitou um
solavanco do carro para as afastar mais, imperceptivelmente mas o suficiente.
Parei o jipe, quem não o faria? Um homem não é de pau! Fui eu que a beijei ou
foi ela que fez o primeiro movimento? A puta aceitou logo ir para o capim. Que
fogo, meu Deus! Que vulcão! [...] porque é uma vaca que gosta de homem [....].i
Por outro lado, não devemos deixar de ressaltar que o papel feminino
desequilibra as relações masculinas colocada no romance. Ainda que
objetificada, ela interfere, com atitudes corajosas, de maneira decisiva na
trajetória da personagem heróica encarnada por Sem Medo: Ondina acaba por
ser a responsável pelo estremecimento dos fortes laços afetivos que unem o
Comissário e Sem Medo com desdobramentos importantes para o desfecho da
narrativa.
Assim sendo, parece-nos que Ondina sofre duplamente. Em primeiro lugar sofre
porque, assim como o homem, sente na própria carne o peso da injustiça e
opressão colonial e social — condição que não é, naturalmente, exclusiva de um
gênero. Adere, portanto, à luta tão incondicionalmente quanto o homem. Essa
conscientização política, social e histórica resultará em uma atitude liberadora e
libertária, que, passa, inevitavelmente, pela liberalização sexual e pela mudança
radical do comportamento feminino, condição assumida claramente e que se
chocará com a rigidez moral de toda a sociedade a que pertence.
Nessa instância, vale lembrar que às mulheres sempre foi reservada condição
secundária no âmbito da sexualidade e do prazer, territórios exclusivos do
homem e que são espaços colonizados pelo desejo do masculino hegemônico.
O corpo feminino é, via de regra, associado à ausência, ao vazio e à
incompletude.
É nesse contexto que a figura de Ondina surge como resposta ao que está
solidificado: insubmissa, contribui para o desenho de um novo perfil de mulher,
estabelecendo, assim, uma profunda ruptura do status quo.
Podemos constatar que, por outro lado, Ondina sofre, também, quando se
depara com a contradição que se instala em meio a seus pares, companheiros
de ideologia, parceiros intelectuais. Certa de que as mudanças serão bem-
vindas e de que as novas relações serão baseadas na igualdade de condições,
depara-se com o poder do peso do conservadorismo de que eles não
conseguem libertar-se.
Admira a mulher, que, dentro dos padrões da sociedade, destaque-se por sua
moral individual. Não parece desejar, portanto, uma transformação coletiva.
Companheira da luta não escapa, ainda assim, à pecha moralista que ainda
domina o ideário masculino. Ondina deve sofrer variadas tormentas e “castigos”
que lhe são impostoscomo pena por ter a coragem de ousar. Essa luta duplicada
é, no limite, a luta pela construção da própria identidade. É o preço a pagar.
A personagem luta, por conseguinte, para ser dona do próprio corpo e do próprio
destino, como deveria lhe conferir a nova ordem social em gestação; mas, ao
assumi-lo, percebe que essa nova ordem não implicará, necessariamente, na
sua aceitação e na sua inclusão como sujeitos da história.
Nesse sentido, Ondina atrai e afasta o “novo” homem como uma Circe moderna,
pois representa a dualidade do mito grego: ao mesmo tempo em que controla a
criação, controla, igualmente, a destruição. Essa é, sobretudo, a mais perfeita
tradução para o papel desempenhado por Leli na vida de Sem Medo, por
exemplo. No limite, essa dualidade feminina provoca um impasse, pois exporá
as fraquezas, medos e incertezas masculinas como feridas de guerra.
[Sem Medo] Ele foi a pessoa mais livre que conheci. Sempre o invejei.
Depois conformei-me. Um homem deve conhecer exatamente os seus limites e
aceitálos. De outro modo é um parvo que se ilude sobre si mesmo. Ou um
desonesto.
[...]
Eu detestaria, não poderia mesmo suportar, que mulher minha dormisse com
outro. Sei o que é isso, já sofri, não poderia repeti-lo.ix
No entanto, em determinado momento, parecerá que tudo terá sido em vão: por
isso, mas apenas aparentemente, aceita ser punida por suas atitudes, como
forma de germinar um futuro diferente e continuar, no final, a se concentrar na
essência como crucial para a identidade.
Fizeram amor. Desesperadamente. Sem Medo sabia que era a última vez:
depois da missão, só voltaria a Dolisie quando recebesse a ordem da partida
para o Leste. Entretanto, Ondina já teria partido.xi
Em certa medida, atirar-se à morte acaba por ser a única possibilidade de atirar-
se aos braços de Ondina.
Referências bibliográficas: