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A INVENÇÃO DO NORDESTE NA OBRA DE GILBERTO FREYRE E DE


CELSO FURTADO

Ricardo E. Ismael de Carvalho - PUC-Rio

Introdução

É recente a idéia de Nordeste como uma região constituída por unidades territoriais com
aspectos sociais, econômicos e culturais integrados, permitindo assim que se possa falar de uma
identidade comum na federação brasileira. É uma idéia nascida no século passado, talvez mais forte em
alguns estados do que em outros, mas que fincou raízes na cultura política nacional. Esta comunicação
pretende discutir as contribuições de Gilberto Freyre e de Celso Furtado para a consolidação do
Nordeste com unidade política regional, procurando ressaltar o Manifesto Regionalista de 1926
elaborado pelo sociólogo pernambucano, e as reflexões em torno da criação da Sudene em 1959
conduzidas pelo economista paraibano.

O Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre

O primeiro período federalista no Brasil, indo da proclamação da República até a revolução de


1930, quando Vargas foi conduzido ao poder, foi marcado por pelo menos três fases. No início
predominou a instabilidade política, em que a anarquia e a incerteza se misturavam no plano estadual e
na esfera federal (Lessa, 1988). A segunda fase começa com a eleição de Campos Sales. Neste
momento, a referência principal vai ser o pacto oligárquico realizado entre o governo federal e os
governos estaduais, no qual a autonomia política conferida aos estados é assegurada como
contrapartida para garantir a própria autonomia do Executivo federal(Lessa, 1988). A última fase está
associada aos anos 20, quando o modelo federal perde legitimidade, ficando associado ao
fortalecimento do poder privado nos estados. A insatisfação contra o federalismo oligárquico fazia
crescer o sentimento antiliberal e antifederalista, o qual ia dos tenentes, passava pelos nacionalistas e
chegava até os comunistas (Faoro, 1987).
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2

Não havia cooperação entre os governos estaduais do Nordeste na República Velha.1 O


federalismo significava para todos a possibilidade de se conseguir transferências de impostos da União.
Entretanto, predominavam as disputas estadualistas voltadas para cortejar o governo federal e os três
grandes estados da federação, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, em busca dos recursos
almejados. A passagem a seguir enfatiza tal comportamento:
“La política ‘exterior’ de los estados del noroeste era similar a la política de las naciones
balcánicas entre el declive del Imperio otomano y el final de la segund Guerra Mundial:
cortejaban y trataban de propiciar los ‘grandes poderes’ (el gobierno federal y los tres grandes
estados), mientras que relaciones entre sí mostraban un cauto oportunismo, cuando luchaban entre
ellos mismos para conseguir los favores otorgados por la federación. Aunque no entraban en
guerra entre sí por exigencias territoriales en conflicto, como los regímenes contemporáneos de
los Balcanes en 1912-1913, los estados satélite no cesaban de pressionar en la Corte para
conseguir dichas exigencias”(Love, 1993, pp. 198-199).

É bom lembrar que a expectativa das antigas províncias do Norte, com a implantação do novo
regime, é de serem mais protegidas do que no tempo da monarquia. Esta posição estava condicionada,
entre outros fatores, pelo declínio econômico do açúcar e pela baixa integração com o centro dinâmico
da economia brasileira. Uma União protetora, portanto, é o que querem, na primeira experiência
federalista, os estados economicamente fracos (Faoro, 1987).
É possível dizer que o modelo federal, sobretudo a partir da gestão de Campos Sales, produziu
duas reações diversas nos estados nordestinos. A primeira delas foi de aceitação do federalismo. O
domínio das oligarquias familiares, já presente no império, ampliou-se naquele contexto histórico. A
estadualização do sistema judiciário e policial terminou fortalecendo o poder privado local, na medida
em que os direitos civis permaneceram fora da realidade ou eram concedidos através de lealdades
pessoais e políticas (Carvalho, 1994). Além disso, o fenômeno do coronelismo funcionava como
elemento decisivo para reduzir os efeitos da decadência econômica da grande propriedade rural, o que
terminava ajudando a manutenção da dominação oligárquica.2 Na verdade, o sistema político
coronelista era uma complexa rede de relações que vai desde o coronel, ou chefe político local,
passando pelo governador do estado, até chegar ao presidente da República. O controle da política

1
A utilização do termo “Norte” seria mais apropriada para a época, como forma de designar os estados situados
atualmente nas regiões Nordeste e Norte. No entanto, preferimos adotar o termo “Nordeste” para que fique
claro que a discussão, desde já, refere-se aos seguintes estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão.
2
O coronelismo pode ser visto, destaca Leal no seu estudo pioneiro, como “um compromisso entre o poder
público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos
senhores de terras [...]. Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo
poder público, e isto se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o
governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável”(Leal,
1975, p.20).
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estadual e da política nacional passava pelo apoio das oligarquias locais, das quais os coronéis eram os
principais representantes. Os chefes políticos locais, por sua vez, precisavam do apoio do Estado, agora
politicamente descentralizado, para fazer frente à conjuntura econômica adversa e manter a antiga
dominação. Nesta rede de interesses recíprocos fundava-se o coronelismo e boa parte do apoio dos
estados do Nordeste ao modelo federal vigente (Carvalho, 1997).
Entretanto, uma segunda reação marcou os estados do Nordeste frente ao federalismo reinante.
O tempo mostrou que a política dos estados, adotada como referência para a política nacional a partir
do governo Campos Sales, era, sobretudo, a política dos estados economicamente mais fortes e com
maior eleitorado. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e, principalmente, São Paulo dominavam a política
nacional (Carvalho, 1994). A hegemonia das oligarquias no plano estadual era, por assim dizer,
acompanhada pela hegemonia de alguns estados no âmbito federal, embora existissem diferenças entre
as elites paulistas, mineiras e gaúchas.3 Minas Gerais e São Paulo alternavam-se sucessivamente na
presidência da República. Os grandes estados conseguiam impor seus interesses na formulação da
política econômica, sendo, portanto, os mais favorecidos, ou mais protegidos, na federação brasileira.
As pequenas unidades federadas obedeciam porque eram pobres, continuando nessa condição porque
não participavam dos estímulos oferecidos pela União. Um federalismo hegemônico prevalecia,
fazendo cair o apoio ao modelo federal (Faoro, 1997). Esta situação provocou uma reação de rejeição
ao federalismo por parte das elites do Nordeste. O federalismo, na perspectiva delas, terminou
privilegiando os estados mais ricos, por isto mesmo perdia legitimidade.
As duas reações sublinhadas não produziram uma cooperação entre os governos estaduais
nordestinos. Na verdade, não havia, naquele momento, a idéia do Nordeste como unidade regional. Isto
vai prosperar depois da revolução de 1930. A iniciativa de promover a articulação regional no contexto
histórico em foco não veio da política, mas sim de um movimento inspirado na valorização das
tradições culturais da região, comandado por setores da elite pernambucana. Mesmo assim, como
veremos adiante, tudo se passa no final da primeira experiência federalista.
Em fevereiro de 1926 realizou-se na cidade do Recife o 1O. Congresso Brasileiro de
Regionalismo. A oportunidade serviu para que Gilberto Freyre, principal animador do evento,
anunciasse, através de um manifesto, as idéias do que ele mesmo denominaria de “Movimento
Regionalista, Tradicionalista e, ao seu modo, Modernista do Recife”. É importante lembrar algumas

3
É possível dizer, por exemplo, que os estados de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul defendiam um
federalismo centralizado, no qual a União teria o papel mais importante na modernização do país.
Diferentemente, São Paulo lutava por um federalismo descentralizado, em que a modernização da nação
dependesse mais das iniciativas estaduais (Bonfim, 1993).
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passagens do documento, de modo a explicitar os principais aspectos do discurso apresentado. O


manifesto declarava que o movimento regionalista é formado por “um grupo apolítico”, pois reunia
tanto pessoas politicamente de esquerda, como Alfredo Morais Coutinho, e da extrema direita, como
Carlos Lyra Filho (Freyre, 1996). O enfoque regionalista, portanto, parecia não querer estimular
divergências políticas. Por outro lado, apresentava-se como um inibidor natural de iniciativas
separatistas e estimulador da unidade nacional, na medida em que procurava valorizar a articulação
entre as regiões brasileiras, em vez da relação entre a União e os estados da federação. O trecho a
seguir expressa bem esta idéia:
“A maior injustiça que se pode fazer a um regionalismo como o nosso seria confundi-lo
com separatismo ou bairrismo. [...] Ele é tão contrário a qualquer espécie de separatismo que,
mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo,
lamentavelmente desenvolvido aqui pela República - este sim, separatista - para substituí-lo por
novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os estados, se completem e se
integrem ativa e criadoramente em uma verdadeira organização nacional.” (Freyre, pp.49-51).

O manifesto destaca, também, que o regionalismo é um movimento de defesa das expressões


culturais locais, das tradições populares e aristocráticas regionais, e de resistência contra as influências
externas ao Nordeste. A passagem seguinte é bastante esclarecedora:
“Procuramos defender valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem
abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que passam por adiantados e progressistas pelo fato
de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. [...] Talvez não haja região no Brasil
que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários de seus
valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela
superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste durante um século do que pela sedução
moral e pela fascinação estética dos mesmos valores. [...] Como se explicaria, então, que nós,
filhos de região tão criadora, é que fôssemos agora abandonar as fontes ou raízes de valores e
tradições de que o Brasil inteiro se orgulha ou de que se vem beneficiando como de valores
basicamente nacionais?” (Freyre, pp.51-52)

É importante destacar ainda, que o documento aponta para a perspectiva inter-regional como um
recurso metodológico fundamental para a compreensão da sociedade brasileira. A leitura do Nordeste,
especialmente, deve ser feita a partir da comparação com outras regiões brasileiras (Freyre, 1996). A
manifestação de Gilberto Freyre no encontro de Recife, em resumo, passa à margem das divergências
políticas na dimensão intra-regional, concede ao regionalismo um papel decisivo na preservação da
unidade nacional e na compreensão da sociedade brasileira, e defende as tradições culturais regionais
em face das influências externas. Esta iniciativa será interpretada de diferentes maneiras. Para alguns,
nasce aqui o regionalismo “do pitoresco, do sabor, do gosto, do apego a estilos e flagrantes vividos ou
presenciados em dimensão local” (Saldanha, 1985). Para outros, a abordagem culturalista de Gilberto
Freyre representa uma das três visões que ajudaram a formar o conceito de Nordeste, juntamente com a
perspectiva estadualista do início do período republicano – em que predominava a divisão político-
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administrativa da região, e o enfoque dualista – um Brasil desenvolvido e um outro subdesenvolvido,


defendido por Celso Furtado na década de 1950 (Silveira, 1982). Há ainda quem identifique no
discurso regionalista de Freyre a origem do regionalismo predatório do Nordeste. Tratava-se, nesta
perspectiva, de uma construção intelectual das elites conservadoras nordestinas, orquestrada por
Pernambuco, para arrancar recursos públicos do governo federal (Castro, 1989).

A Articulação dos Interesses dos Estados do Nordeste na Perspectiva de Celso


Furtado

Na experiência federalista iniciada em 1945 e que terminou com o golpe militar de 1964, vai
prevalecer, sob a influência do ambiente europeu e do norte-americano, o chamado federalismo
cooperativo, no qual o governo federal amplia sua participação no planejamento e na execução de
políticas públicas voltadas para o desenvolvimento das unidades da federação (Carvalho, 1994). Neste
sentido, é possível apontar duas iniciativas importantes. A Constituição de 1946 deu início à prática de
transferências constitucionais da União para a solução de problemas nordestinos, destinando um total
de 3% dos impostos federais para o desenvolvimento das áreas atingidas pela seca no Nordeste (Love,
1993). Além disso, foram criadas, no período, políticas federais dirigidas para a integração das regiões
brasileiras e a redução das desigualdades regionais no país. O governo de Juscelino Kubitschek teve
uma participação destacada nesta transformação do federalismo brasileiro, com destaque para os
estímulos dados às regiões Nordeste e Centro-Oeste através da criação da SUDENE, e da construção de
Brasília, respectivamente (Skidmore, 1998).
A cooperação entre os governos estaduais do Nordeste conheceu, nesta época, uma alternativa
diferente daquela praticada pelos políticos ligados à cultura política tradicionalista a partir dos anos 30.
É importante discutir as possíveis razões ligadas ao surgimento de um novo padrão de cooperação entre
os governos nordestinos, quando da relação com a União, procurando salientar as condições que
favoreceram a criação da SUDENE naquele contexto histórico.
É preciso lembrar, em primeiro lugar, o crescimento da oposição à política realizada pelo
governo federal no Nordeste para combater os efeitos da seca, a qual favorecia a cooperação
horizontal-vertical tradicionalista. Neste sentido, um dos jornais mais influentes da capital da
República, o Correio da Manhã, denunciaria a chamada “indústria da seca”, contando para isso com as
observações in loco do jornalista Antonio Callado (Furtado, 1989). As críticas não buscavam condenar
o apoio da União ao desenvolvimento econômico do Nordeste. Na verdade, pretendiam estimular uma
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reformulação nas relações governamentais, exigindo assim uma nova forma de intervenção do governo
federal na região sem privilégios ou concessões para os interesses políticos locais (Cohn, 1978).
Em segundo lugar, avançava no país a idéia de regionalização do Estado Federal, através da
criação de instituições regionais federais, como elemento de apoio para reduzir as desigualdades
regionais e impulsionar a industrialização das regiões brasileiras economicamente menos
desenvolvidas.4 Desta forma, foi possível, no período, a expansão de agências públicas tais como a
Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco (CHESF), criada em 1945, do Banco do Nordeste do
Brasil (BNB), fundado em 1954, e, posteriormente, da Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE), surgida em 1959. As mudanças introduzidas no sistema federal brasileiro
estabeleceriam novos condicionantes para as relações entre a União e os estados do Nordeste, e destes
entre si, pois introduziam um nível governamental intermediário entre as esferas federal e estadual.
Neste particular, destacavam-se duas contribuições de Celso Furtado. A primeira delas esteve ligada à
sua participação como coordenador do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
(GTDN), criado no governo Kubitschek (Furtado, 1967). Além disso, Furtado procurou defender
publicamente, como no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), as ações federais
voltadas para o desenvolvimento econômico do Nordeste (Furtado, 1959).
Um terceiro aspecto contribuiu para a mudança no padrão de cooperação entre os governos
nordestinos no período entre 1945 e 1964. A redemocratização do país fizera emergir políticos menos
dependentes da cultura política tradicionalista. Em Pernambuco, por exemplo, Cid Sampaio foi eleito
governador no final dos anos 50 com o apoio dos segmentos ideologicamente localizados à esquerda no
espectro político, contra as forças políticas ligadas às elites agrárias. É certo, porém, que a aliança com
a esquerda não demorou muito tempo: o principal projeto industrial do governo estadual, uma fábrica
de borracha sintética, utilizaria o álcool como matéria-prima, o que atendia aos interesses dos setores
ligados ao plantio da cana-de-açúcar. De qualquer forma, Cid Sampaio era um político mais
identificado com os setores urbanos e industriais do que com a grande propriedade rural (Andrade,
1989). A eleição de Miguel Arraes em 1962, entretanto, é o exemplo mais citado para indicar a
ascensão de uma nova cultura política em Pernambuco. É difícil deixar de reconhecer que Arraes,
naquele momento, tinha maior independência em relação aos setores oligárquicos, apesar da aliança

4
A corrente desenvolvimentista nacionalista, uma das principais do pensamento econômico brasileiro nos anos
50, defendia uma industrialização planificada fortemente apoiada nas empresas estatais. As idéias desta
tendência em relação às desigualdades regionais foram apresentadas por Rômulo de Almeida, a partir de sua
participação no Banco do Nordeste do Brasil, e sobretudo por Celso Furtado, quando de sua colaboração com o
governo Kubitschek. Eles defendiam a criação de instituições regionais federais de fomento, como forma de
promover o desenvolvimento econômico do Nordeste, Norte e Centro-Oeste (Bielschowsky, 1998).
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política que fizera para viabilizar sua eleição no interior do estado (Callado, 1980). Talvez estas novas
lideranças políticas representem mais a exceção do que a regra. Entretanto, é importante destacar que a
emergência de uma nova geração de políticos mais independentes das oligarquias rurais oferecia, de
alguma forma, condições propícias para o surgimento de um novo padrão de cooperação entre os
estados do Nordeste.
Uma outra razão pode ser lembrada para explicar o surgimento desta nova forma de
relacionamento entre as esferas federal e estadual. É certo dizer que a proposta fazendo surgir a
SUDENE não partiu dos estados do Nordeste, e que até mesmo encontrou resistências entre eles. Ao
que parece, portanto, dificilmente teria se tornado realidade sem a firme disposição do governo
nacional (Furtado, 1989). Desta forma, talvez seja possível enxergar a criação da SUDENE como uma
manobra do poder público federal, com o intuito de recuperar o controle político da região, ameaçado
pelo surgimento de líderes populistas e pela vitória da oposição nas eleições de 1958 (Cohn, 1978).
Há quem ache, finalmente, que predominaram, naquele momento, os desígnios do capitalismo
monopolista em expansão no Centro-Sul, maiores beneficiados com a introdução do sistema de
incentivos fiscais federais adotado pela SUDENE (Oliveira, 1981). Em outras palavras, a renúncia
fiscal da União direcionada ao financiamento do setor privado no Nordeste possibilitaria, com o passar
do tempo, a integração desta região com aquelas economicamente mais dinâmicas. Desta forma, uma
boa parte da produção industrial nordestina seria alcançada através de compras de matérias- primas, e
de vendas de produtos industrializados, realizadas com o mercado do Centro-Sul. Isto significava, entre
outras coisas, que parte dos benefícios fiscais concedidos retornariam para os principais segmentos
industriais localizados nas regiões mais ricas do país.
De qualquer forma, a criação da SUDENE significava um novo padrão cooperativo na relação
entre a União e os governos estaduais nordestinos. Tratava-se de uma nova forma de expressar a ação
regional, particularmente quando voltada para negociar o apoio do poder público federal ao
desenvolvimento econômico do Nordeste. A SUDENE, inicialmente, ficou diretamente ligada à
presidência da República, o que mostrava o prestígio da instituição regional junto ao governo
Kubitschek, indicando também que ela teria como objetivo planejar e coordenar as ações federais no
Nordeste (Furtado, 1989). Desta forma, seria possível fazer com que as diversas instituições federais
com atuação na região tivessem uma unidade de propósito, evitando a recorrente dispersão ou
superposição nas iniciativas praticadas à época. (Sudene, 1990). Além disso, a indicação de um técnico
para dirigir a instituição, como era o caso do economista Celso Furtado, apontava para a predominância
do insulamento burocrático, fundamental para que os recursos públicos reunidos ali fossem
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administrados segundo os princípios republicanos. A SUDENE, portanto, não era originariamente mais
uma fonte de dinheiro federal para favorecer os interesses oligárquicos ou para reproduzir a estrutura
social dominante. Na verdade, pretendia, pelo contrário, opor-se à cultura política tradicionalista e criar
as condições para as mudanças na estrutura socioeconômica (Araújo, 2000).
Entre os objetivos principais da SUDENE destacava-se a articulação dos interesses dos
governos estaduais nordestinos, o que transformava a instituição numa arena política regional
responsável pela harmonização dos diferentes pontos de vista na região. A coesão regional estimulada
pela SUDENE representaria um elemento-chave nesta nova institucionalização do federalismo
brasileiro, particularmente nas negociações dos governos nordestinos com o governo federal ou com o
Congresso Nacional, voltadas para a redução das desigualdades regionais. Em outras palavras, a
cooperação entre os governadores nordestinos através da SUDENE preparava caminho para as
intervenções federais na região e permitia ao Nordeste participar das negociações federativas em
melhores condições, sobretudo nas disputas envolvendo os estados economicamente mais fortes da
federação (Furtado, 2000).
É importante perceber que na perspectiva de Furtado a cooperação entre os governos
nordestinos aparece como um problema, ou como uma tradição ausente da realidade nordestina. Para
ele não existia um Nordeste antes da SUDENE, pois faltava uma articulação institucionalizada dos
interesses estaduais. Tampouco existia uma consciência de solidariedade regional. A idéia de
institucionalizar a cooperação regional veio de fora da região, enfrentou resistências estaduais e foi
estimulada pelo desafio de modernizar a economia nordestina. Nesse sentido, o Nordeste representava
um processo em curso, historicamente apoiado pelo governo federal, constituído por forças estaduais
centrífugas, envolvido pelo irresistível impulso industrializante. Em depoimento recente, Furtado
destaca o seguinte a respeito desta questão:
“A cooperação regional é inventada modernamente pela necessidade de um mercado
maior. É colocada pela economia. Antes cada estado cuidava de seu quinhão e se rivalizava com
os demais. O problema era ter influência. A Paraíba, por exemplo, foi muito beneficiada com o
governo Epitácio Pessoa, que puxava a brasa para Paraíba.

[...] Antes o apoio público [federal] era projeto por projeto. Com a SUDENE veio uma
inovação, pois [a União] tinha uma política para uma região inteira”(Furtado, 1999).

A concepção inicial da SUDENE sofreu um revés com o golpe militar de 1964. Furtado teve
que sair do país, interrompendo o trabalho que realizava, o que, sem dúvida, provocou uma
descontinuidade nas transformações em curso e, mais importante para nossa discussão, reacendeu a
disposição dos segmentos predatórios de fazerem predominar novamente um regionalismo oligárquico.
Além disso, a SUDENE foi se transformando em uma mera agência de financiamento de projetos
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industriais, reproduzindo no Nordeste o modelo de concentração espacial das atividades econômicas


predominante no país, aceitando a concentração industrial em torno dos pólos localizados em Recife,
Salvador e Fortaleza.

Conclusão

A idéia de Nordeste se institucionalizou a partir da divisão do Brasil em cinco regiões, feita pelo
IBGE nos anos de 1940, e em seguida por conta da criação do Banco do Nordeste e da SUDENE,
ocorrida nos anos de 1950. Desde então tornou-se freqüente falar em articular as forças políticas do
Nordeste, em estudar os problemas do Nordeste, em fazer o Nordeste pressionar o governo federal e
agir no Congresso Nacional Tudo isso, de certa forma, contribuiu, muitas vezes, para encobrir as
diferentes realidades, os interesses contraditórios, os impasses, os conflitos, as rupturas e os
ressentimentos no interior da região. No entanto, a história dos estados do Nordeste não revela uma
tendência para a unidade regional, sendo marcada por diferenças políticas e econômicas importantes.
Desta forma, o Nordeste pode ser visto como uma construção recente desafiando antigas tradições
estadualistas, a qual teve início nas idéias de Gilberto Freyre, expressas no Manifesto Regionalista de
1926, e ganhou impulso com as contribuições de Celso Furtado, traduzidas na implantação da Sudene
em 1959. Como tal não está imune contra retrocessos. Continuará dependente da cooperação regional,
estimulada pela União ou pela disposição dos próprios estados componentes.

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