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O direito

achado na rua.
Alguns
apontamentos

José Geraldo de Sousa Junior


Princípios de uma organização social da
liberdade E mais:

>> José Carlos Braga:


Jacques Alfonsin Política cambial é homicida
O direito achado na rua: positivismo
de combate
Artur Cesar Isaia:
305
>>
100 anos depois: a mudança
Roberto Efrem Filho
Ano IX radical da Igreja gaúcha
O “peso” dos movimentos sociais é
24.08.2009
ISSN 1981-8469 maior que o das “leis”
Direito achado na rua

O direito moderno é normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente, advertia o


jurista português Castanheira Neves. Por isso, “esse direito tem de ser encontrado em outro lugar,
lá na rua onde vive e sofre o povo daquela inadequação e ineficiência, porque, afinal de contas, é
dele a origem e causa de ser, tanto da lei como do Estado”, afirma Jacques Alfonsin, procurador do
Estado do Rio Grande do Sul aposentado, em entrevista concedida à IHU On-Line e publicada nesta
edição. Trata-se de reconhecer no povo a “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”.

Por sua vez, José Geraldo de Sousa Junior, reitor da Universidade de Brasília – UNB -, um dos
teóricos mais respeitados do assim chamado direito achado na rua, atesta que, quando a “constitui-
ção diz que ‘o elenco de direitos descrito dela não exclui outros direitos que derivem da natureza
do regime ou dos princípios que a constituição adota’, abre uma pauta muito larga, que tanto do
ponto de vista teórico quanto do político, nós pensemos o direito como relações legitimadas”. Ou
seja, trata-se de “pensar o direito como relação, e não como um banco de enunciados legislativos,
é criar as condições para que as lutas por reconhecimento encontrem espaço politizado adequado
para que se manifestem”.

Participam também do debate sobre o direito achado na rua, Roberto Efrem Filho, professor da
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, José Carlos Moreira da Silva Filho e Lenio Streck,
professores do PPG em Direito da Unisinos. Para Streck, “não há mais como falar em direito achado
na rua, direito alternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição é muito mais avançada que qual-
quer uma destas bandeiras”. Segundo ele, “hoje a luta é concretizar a Constituição e não buscar
alternativas a ela”.

Outros importantes temas são tratados nesta edição. José Carlos Braga, economista e professor
do Instituto de Economia da Unicamp, analisa a atual política cambial e seu impacto no projeto
desenvolvimentista brasileiro. Tendo presente o centenário da criação da Arquidiocese de Porto
Alegre, Artur Cesar Isaia, professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC -, reflete
sobre duas figuras centrais: João Becker e Vicente Scherer, arcebispos de Porto Alegre.

Uma entrevista com Marcelo Fernando da Costa, professor de História da Alimentação e Cultura
Gastronômica Internacional, da Unisinos, descreve a história dos alimentos que caracterizam as
religiões monoteístas da humanidade e que serão apresentados e consumidos na próxima edição do
evento Religiões no Mundo. Um perfil do filósofo francês Paul Valadier, que esteve recentemente
na Unisinos, a convite do IHU, é outro destaque desta edição.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
Expediente

Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
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Alves (vanessaam@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Traba-
lhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling,
Greyce Vargas (greyceellen@unisinos.br) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.
br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Concei-
ção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).
Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: ihuonline@unisinos.br. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail
do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 | Jacques Alfonsin: O direito achado na rua: positivismo de combate
PÁGINA 11 | José Geraldo de Sousa Junior: Princípios de uma organização social da liberdade
PÁGINA 15 | José Carlos Moreira da Silva Filho: Um direito mais amplo e interdisciplinar
PÁGINA 18 | Roberto Efrem Filho: O “peso” dos movimentos sociais é maior que o das “leis”
PÁGINA 22 | Lenio Luiz Streck: Uma análise sociológica do direito

B. Destaques da semana

» Brasil em Foco
PÁGINA 26 | José Carlos Braga: Política cambial é homicida
» Entrevista da Semana
PÁGINA 29 | Artur Cesar Isaia: 100 anos depois: a mudança radical da Igreja gaúcha
» Coluna Cepos
PÁGINA 32 | Eduardo Andres Vizer: Socioanálise e intervenção nas cidades: cultivando entornos
» Destaques On-Line
PÁGINA 35 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Eventos
PÁGINA 38| Marcelo Fernando da Costa: Alimento: fornecedor da vida
» Personalidades
PÁGINA 41| Paul Valadier
PÁGINA 43| Sala de Leitura

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 


 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305
Religiões do Mundo
De 10-08-2009 a 08-10-2009

Hinduísmo
>> Nesta semana participe da exibição do documentário
sobre o Hinduísmo

* 28/08, na Sala 1G119, junto ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU


Horário: das 16h às 18h.
* 17/09, na Casa de Cultura Mario Quintana - Porto Alegre
Horário: das 19h às 21h.

Informações em www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 


O direito achado na rua: positivismo de combate
Jacques Alfonsin entende que o direito achado na rua gera efeitos particularmente
favoráveis ao povo pobre do Brasil, diferente daqueles que a lei prevê como direi-
tos desse mesmo povo, mas que jamais são respeitados na medida das urgências
humanas que ele padece

Por Graziela Wolfart

U
m dos principais nomes lembrados no Brasil quando o assunto é o direito achado na rua,
o advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, Jacques
Távora Alfonsin, fala à IHU On-Line, por e-mail, sobre as pessoas que têm se aproximado
deste movimento. “Conscientes dessa injustiça e dessa impropriedade manifesta, esses
juristas encontram grande aceitação das suas ideias e da sua prática entre pessoas do
povo pobre, movimentos, ONGs, estudantes, e até uma parte significativa de professoras/es, juízas/
es, promotoras/es e advogadas/os. Aí reside o diferencial que caracteriza novas posturas hermenêu-
ticas da lei, como o direito achado na rua, o ‘positivismo de combate’, o ‘direito alternativo’ e outras
denominações que se tem ouvido sobre um mesmo e saudável fenômeno. O de a dignidade humana
e a cidadania, por um lado, e o Estado democrático de direito, por outro, deixem de se submeter à
clausura formal dos seus postulados, e passem a ser realidade vivida materialmente por todo o povo”.
E Alfonsin deixa clara a sua posição quando lembra que “o direito de manifestação e opinião aqui
exercidos não foram dados de mão beijada pela lei. Até pelo contrário. Foram conquistas do povo na
rua, que ao mesmo custaram sacrifícios os mais dolorosos perpetrados por gente, à época, instituída e
apoiada por ela! Assim, se o olhar que for lançado à história reconhecer os fatos concretos que deram
origem a tais conquistas, o presente jurídico das relações do Poder Público com as pessoas deixará de
identificá-las como súditas de uma nobreza encastelada em cortes, mas sim como cidadãs, capazes
de construir democracia, não só representativa, mas também participativa”.
Jacques Alfonsin é mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. Atualmente, é
membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e colabora periodicamente com artigos para as
“Notícias do dia” do sítio do IHU. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten- que jamais são respeitados na medi- barreira formal e material ao devido
der por direito achado na rua? Qual da das urgências humanas que ele pa- processo social, de modo a fazer da
sua origem? dece. Trata-se de um direito plural, regulação um obstáculo à emancipa-
Jacques Alfonsin - Precisar, com se- no sentido de que, sem ignorar e até ção, como Boaventura de Sousa San-
gurança, o que esse direito seja, não aproveitar “brechas” de interpreta- tos insiste de forma convincente, em
me julgo capaz, tais as nuances teóri- ção e aplicação do direito como pre- seus estudos e na sua prática. Sobre a
co-práticas que a sua interpretação e visto nas leis do Estado, em favor de sua origem, talvez seja útil esclarecer
aplicação têm alcançado, mesmo sob direitos humanos não valorizados de- duas coisas.
as duras críticas que sofrem, ele e o vidamente, também cria e dá eficácia A primeira, de que o povo, particu-
seu contemporâneo “alternativo”. O a formas de convivência social, com larmente o pobre e oprimido, sempre
que posso esclarecer, por mera apro- poder sancionatório paralelo às que o  Boaventura de Sousa Santos (1940): é dou-
ximação do seu posicionamento inter- mesmo Estado prevê em suas leis. tor em sociologia do direito pela Universidade
pretativo da realidade e do ordena- Para ele, o “devido processo legal”, de Yale e professor catedrático da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra. É
mento jurídico, é que esse direito se tão enfatizado pelo Poder estatal, so- um dos principais intelectuais da área de ci-
constitui e gera efeitos particularmen- mente merece respeito e acatamento ências sociais, com mérito internacionalmente
te favoráveis ao povo pobre do Brasil, na medida em que não se constitua, reconhecido, tendo ganho especial populari-
dade no Brasil, principalmente, depois de ter
diferente daqueles que a lei prevê como a história vem testemunhando, participado nas três edições do Fórum Social
como direitos desse mesmo povo, mas num fim em si mesmo, servindo de Mundial em Porto Alegre. (Nota da IHU On-
Line)

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teve, historicamente, formas outras lá no mundo da lua,/ mas eu tento só de garantir-lhe efeitos. Isso ainda vale
de defender sua vida e dignidade, fora ver, sem viés deformante,/ o que pude como verdade indiscutível para grande
das regras impostas por poderes afir- encontrar bem no meio da rua.”  parte, senão a maioria, dos juristas.
mados e reconhecidos institucional- Não é fácil contestar essa ironia, Em todo o caso, fica difícil negar que
mente como legais. Aqui no nosso país, quando se avaliam os efeitos materiais aqueles mesmos efeitos desmentiram
servem de exemplo as aldeias indíge- das previsões que a lei do Estado faz, esse dogma, pela histórica incapacida-
nas, nas quais a propriedade privada, particularmente no que concerne às de que a lei e o Estado demonstraram
um dos direitos mais protegidos pelas garantias devidas aos direitos sociais e demonstram em cumprir o que lhes é
nossas leis, era e ainda é, em muitas do povo, como alimentação, habita- mais indispensável promover, ou seja,
delas, totalmente alheia ao seu modo ção, saúde, educação, por exemplo. a justiça. A lei não é onisciente nem
de vida. Os antigos quilombos dos ne- Cada vez que o povo pobre “se desa- consegue abranger, com poder sancio-
gros fugidos da escravidão, igualmen- perta”, portanto, satisfazendo por sua natório, todo o comportamento huma-
te, constituíram-se em formas visíveis própria iniciativa, essas necessidades no. Suas lacunas têm sido preenchidas
de um direito existente, válido e efi- vitais que, embora previstas na lei pelos seus intérpretes (juízes de modo
caz, a favor da liberdade, completa- como direitos humanos, ele nunca os particular) de acordo com o que se tem
mente estranho e até oposto ao direi- denominado de “espírito do sistema”.
to vigente no Estado. Embora muito Basta um juízo minimamente isento
semelhante ao último, até o direito “É um tal paradoxo, sobre a realidade social, todavia, para
canônico tem poder sancionatório, ti- se concluir que isso não está dando
picamente jurídico, sobre multidões, justamente, que o certo. A sua interpretação e aplicação
paralelamente ao Direito estatal. pelo Poder Público mal tangencia, por
A segunda, bem mais recente, pode direito achado na rua exemplo, medidas preventivas ou re-
ser localizada nas lições de um jurista pressivas das perversas consequências
professor de direito da UNB, Roberto denuncia e prova que, entre outras, os movimentos de
Lyra Filho, já falecido. Defendia ele bolsas de valores, a corrupção política
e, hoje, muitos dos seus seguidores, exercendo um direito e a devastação ambiental, para lem-
um “humanismo dialético, mais próxi- brar apenas as mais visíveis, provocam
mo da prática, da vida jurídica real, ‘terreno’, que o estatal sobre toda a humanidade. Questões
do que a teoria legalista (não confun- antigas como aborto e eutanásia, di-
damos a legalidade com o legalismo não reconhece, sempre retamente ligadas à vida das pesso-
que é a sua transformação em fetiche, as, questões outras, mais modernas,
desconhecendo tudo o que fica fora do que o examina desde a como a da engenharia genética e a dos
bitolamento legislativo e canonizando clones, ainda são objeto de dúvidas e
como jurídico tudo o que ali se põe, lua dos seus dogmas e angústias humanas para as quais o or-
ainda que não seja o Direito autênti- denamento jurídico como um todo e o
co, mas o soco do autoritarismo). Por preconceitos Estado encarregado da sua aplicação
isso mesmo dei à exposição sistemáti- enfrentam enormes dificuldades de
ca do meu humanismo dialético, num ideológicos” dar resposta convincente e eficiente.
compêndio alternativo de Introdução No que concerne à disciplina da
à Ciência do Direito, o título de Direi- alcança garantidos, quase sempre é economia, então, com tudo o que essa
to achado na rua, que aplica ao nosso julgado como violador da lei ou crimi- tem de poder para gerar injustiça so-
campo de estudos o epigrama nº 3 de noso. É um tal paradoxo, justamente, cial, não há nem necessidade de se
Marx (...): “Kant e Fichte buscavam que o direito achado na rua denuncia e acentuar a anemia dos poderes que se-
o país distante,/ pelo gosto de andar prova exercendo um direito “terreno”, ria indispensável e lícito contar para a
que o estatal não reconhece, sempre sua regulação. Por tudo isso, ainda sur-
 Roberto Lyra Filho (1926-1986) foi um ju- que o examina desde a lua dos seus preende ver-se repetido outro dogma
rista e escritor brasileiro. No início de sua
carreira jurídica se destacou por estudos dog- dogmas e preconceitos ideológicos. forte daquele monismo, presente em
máticos, área que foi perdendo importância conflitos administrativos e, ou, judi-
em seu pensamento, progressivamente mais IHU On-Line - Por que o direito acha- ciais, segundo o qual, “o que não está
ligado à Filosofia e à Sociologia Jurídica, cam-
po em que é um dos expoentes brasileiros do do na rua rejeita as concepções mo- no processo não está no mundo”, assim
pensamento jurídico de esquerda. Fundou a nistas do Direito? se advertindo as chamadas “partes”
Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), cujo Jacques Alfonsin - Porque aquelas (autores e réus) de que as suas versões
boletim era a Revista Direito & Avesso. Nela
defendia que o direito não se reduzia à norma, concepções eram pretensiosas demais, e provas são mais importantes do que
nem a norma à sanção. Contestava o monismo como se a lei fosse a única fonte de os fatos efetivamente em causa. Tal-
jurídico, o monopólio da legitimidade do direi- direito, e o Estado o único ente capaz vez sejam males desse tipo que leva-
to pelo Estado que, a seu ver, estava na práxis
histórica, na abolição da sociedade de classes  LYRA. Doreodó Araujo (org.) Desordem e ram um jurista português, Castanheira
e nos direitos humanos (sem se prender às de- processo (Porto Alegre: Sergio Fabris, 1986, p.
clarações oficiais). (Nota da IHU On-Line) 312). (Nota do entrevistado)

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Neves, a advertir que o direito mo- re, de modo visível, na dominação da de “medo” que se tinha do juiz?
derno é normativamente inadequado e terra. Jacques Alfonsin - Esse é, sem dú-
institucionalmente ineficiente. Outra Conscientes dessa injustiça e des- vida, um dos seus maiores méritos.
não é a razão, por isso mesmo, de que sa impropriedade manifesta, esses Sabendo-se que a distância entre o
esse direito tem de ser encontrado em juristas encontram grande aceitação poder da autoridade e o abuso da arro-
outro lugar, lá na rua onde vive e sofre das suas ideias e da sua prática, entre gante prepotência é muito curta, até
o povo daquela inadequação e inefici- pessoas do povo pobre, movimentos, alguns/mas juízes/as e promotoras/es
ência, porque, afinal de contas, é dele ONGs, estudantes, e até uma parte censuram seus colegas quando essa
a origem e causa de ser, tanto da lei significativa de professoras/es, juízas/ distância é vencida cumprindo aquele
como do Estado. es, promotoras/es e advogadas/os. Aí inconveniente trajeto. Três casos re-
reside o diferencial que caracteriza centes comprovam esse fato. Segundo
IHU On-Line - O que faz com que ju- novas posturas hermenêuticas da lei, o Estadão, edição de 23 de junho de
ristas e outros operadores jurídicos, como o direito achado na rua, o “posi- 2007, um juiz de Vara do Trabalho de
intérpretes do Direito Constitucio- tivismo de combate”, o “direito alter- Cascavel, no dia 13 do mesmo mês,
nal, voltem às ruas para ter contato nativo” e outras denominações que se apoiado no poder de polícia que tem,
com o povo pobre? Qual o diferencial tem ouvido, sobre um mesmo e sau- “cancelou uma audiência (...) apenas
que faz aumentar o número de adep- dável fenômeno. O de a dignidade hu- por ter constatado que as sandálias de
tos do direito alternativo? mana e a cidadania, por um lado, e o dedo vestiam os pés de uma das par-
Jacques Alfonsin - Há uma inspiração Estado democrático de direito, por ou- tes.” Segundo sua decisão, isso “é in-
axiológica nesse tipo de conduta pro- tro, deixem de se submeter à clausura compatível com a dignidade do Poder
fissional que, a meu ver, encontra fun- formal dos seus postulados, e passem Judiciário.” A repercussão foi muito
damento numa justificada indignação a ser realidade vivida materialmente negativa e as muitas críticas contrá-
ética diante da injustiça social que o por todo o povo. rias àquela atitude logo se fizeram
sistema capitalista gera e reproduz ouvir. Até o presidente da Anamatra
sobre o povo, inclusive com apoio de (Associação Nacional dos Magistrados
grande parte da mídia e de intérpretes
“A lei não é onisciente da Justiça do Trabalho), colega daque-
da lei. A dominação ideológica positi- le juiz, traduziu bem a indignação que
vista, normativa e liberal, de cunho
nem consegue abranger, o incidente provocou: “Não se pode
marcadamente privatista e patrimo- considerar que a roupa do trabalha-
nialista, é dotada de um tal poder de
com poder sancionatório, dor, muitas vezes a única que possui,
dominação, que o mundo todo do di- atenta contra a dignidade da Justiça,
reito fica sujeito, aí, apenas aos que
todo o comportamento pois assim se está dizendo que os mais
já têm, contra os que não têm (“or- humildes não são dignos da atenção do
dem econômica”?), aos que já podem
humano” juiz e que apenas os bem vestidos a
contra os que não podem (“ordem po- merecem.”
lítica”?), os que já são cidadãos com Aí se conta com outro apoio sólido. Em Ponta Porã, por ocasião de outra
seus direitos garantidos, contra os que Uma reinterpretação moderna que a audiência realizada em julho passado,
ainda não são (“ordem social”?). Como teologia da libertação fez do chamado uma juíza federal exigiu de um advo-
se observa, essa realidade testemunha “direito natural” e dos direitos huma- gado, não só que a tratasse por exce-
o completo fracasso das três principais nos trouxe um grande número de cris- lência, como se levantasse cada vez
ordens constitucionais, sobre o povo tãos leigos para trabalhar com as CEBS que ela entrasse na sala onde jurisdi-
pobre do país, sem acesso ao ser, ao (comunidades eclesiais de base), estu- cionava. O curioso, mesmo desconside-
poder e ao ter. Assim, os chamados di- dando e trabalhando sob a inspiração rada a grosseria da sua atitude, é que
reitos adquiridos, por mais que o seu do evangelho, formas novas de denun- a referida juíza provou desconhecer a
exercício gere injustiça, impedem a ciar injustiças e ilegalidades, reivindi- própria lei. O Estatuto da Ordem dos
aquisição dos novos, coisa que ocor- cando direitos sociais violados. Gente Advogados do Brasil permite, em seu
 António Castanheira Neves (1929) é um muito pobre, como índios, catadores art. 7º que a/o advogada/o ingresse
filósofo do direito português, professor jubi-
lado da Faculdade de Direito da Universidade de material, miseráveis desemprega- livremente nessas salas de audiência e
de Coimbra. Para Castanheira Neves, o direito dos, quilombolas, boias frias, mora- em outras dependências dos tribunais
deve ser entendido através da ideia de pro- dores de rua, essa multidão até hoje e repartições públicas, podendo não
blema jurídico, de que são principal exemplo
os casos judiciais. Os problemas têm de ser historicamente desprezada e abando- só “permanecer sentado ou em pé”,
resolvidos no sistema jurídico, o que já inclui nada passou a tomar consciência de como delas “retirar-se”, “independen-
uma relação necessária com a moral. O autor que é digna, titula direitos, deve ser temente de licença” (inciso VII). Pelo
afirma que o direito não é um dado, não é algo
prévio, mas a totalidade das soluções dos pro- respeitada, amar e ser amada. inciso XII do mesmo artigo, a/o advo-
blemas jurídicos. Estes, sim, são o ponto de gada/o também pode “falar, sentado
partida necessário. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line - O direito achado na rua ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão
pode ser capaz de mudar a imagem de deliberação coletiva da Administra-

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ção Pública ou do Poder Legislativo.” qual o direito é estudado, não a partir
Por denúncia de violação dos direi-
“Ao humanismo dialético de códigos e de doutrinas, mas sim a
tos humanos das/os agricultores sem- partir da dura realidade fática sofri-
terra, feitas pelo MST contra ações pro-
pregado pelo Dr. Roberto da pelo povo. Depois desse trabalho é
postas pelo Ministério Público Estadual que tudo chega nas salas de aula e nas
do Rio Grande do Sul, no ano passado,
Lyra Filho, acima bibliotecas, nas pesquisas de Internet,
liminarmente acolhidas por quatro juí- em relação dialético-crítica com o “di-
zes/as de diferentes comarcas do Esta-
lembrado, somam-se, reito legal”, valorizando suas virtudes,
do, até a Associação dos Juízes para a é verdade, mas sem deixar de questio-
democracia, vendo os vídeos relaciona-
hoje, vários outros nar os mais notáveis defeitos gerados
dos com o abuso de poder que vitimou por grande número de quantas/os têm
as/os sem-terra, reagiu, publicando em
paradigmas poder de interpretar a aplicar as leis.
um dos seus boletins, o seguinte: “As
imagens divulgadas chocam pela bruta-
interpretativos da lei e IHU On-Line - O direito e a justiça
lidade: bombas jogadas em meio a fa- hoje se encontram mais na lei ou
mílias com crianças, balas de borracha
do direito, influenciando mais na rua?
disparadas à altura das cabeças e es- Jacques Alfonsin - Segundo o atual mi-
pancamentos. É contra essas medidas
novas maneiras de nistro presidente do Supremo Tribunal
de cunho autoritário e ditatorial que Federal, Gilmar Mendes, somente na
vimos a público manifestar nosso apoio
considerar os fatos que lei, o que, com o respeito que se lhe
ao MST. Democracia não pode ser uma deve, me parece um pronunciamento
palavra vazia. Dissolver o MST, torná-
lhe deram origem e extremamente infeliz, para dizer o
lo ilegal, processar e criminalizar suas mínimo. Ele nem seria presidente se
ações e seus militantes políticos para
vigência, para que o a lei que hoje garante o seu cargo não
‘quebrar sua espinha dorsal’ significa, tivesse sido conquistada com o sangue
sem meias palavras: cassar os direitos
legalismo não sepulte, de que o povo teve de derramar nas ruas
democráticos dos trabalhadores rurais para defender a democracia e o Estado
sem-terra.”
vez, a legalidade, como de direito. Uma afirmação daquele tipo
Grande parte do povo, felizmente, revela a antiga concepção de poder,
toma conhecimento disso e já sabe
aquele jurista que já deveria ter sido ultrapassada,
que juiz/as são servidores/as públi- da espécie vertical, piramidal, todo
cos/as muito importantes, mas não
denunciou” feito de dominação e não de serviço,
deixam, de ser servidoras/es. Merece- um tipo de “direito de propriedade”
dora de respeito, isso toda a pessoa é, dendo as ideias do Dr. Roberto Lyra sobre a lei, como se essa somente pu-
nenhuma outra tendo mais obrigação Filho, desde Brasília. O atual reitor da desse ser reconhecida como respeitada
de cumprir esse dever que não aquela UNB, José Geraldo de Sousa Junior, é quando pronunciada por um tribunal.
que está encarregada de, justamente, um dos principais inspiradores e incen- Aliás, o fato de os Tribunais, até hoje,
garantir que uma tal regra não seja le- tivadores dessa moderna fundamenta- admitirem ser chamados de “Cortes”
tra morta. ção ética, jurídico-social, de conce- parece um sintoma grave dessa doen-
ber o direito. Os cursos de extensão ça. Bem ao contrário do que afirma o
IHU On-Line - Como o direito achado e à distância que a UNB promove, a Dr. Gilmar, não são poucos os juristas
na rua tem sido estudado e discutido propósito, sustentam um novo méto- que reconhecem no povo a “comuni-
nas faculdades de direito? do pedagógico, em tudo semelhante dade aberta dos intérpretes da Cons-
Jacques Alfonsin - Como toda a ideia ao que aconselhava Paulo Freire, no tituição”, coisa que, por sinal, está
de mudança, enfrentando bastante  José Geraldo de Sousa Junior possui gra- acontecendo agora mesmo, na medida
oposição, às vezes, até, debochada duação em Ciências Jurídicas e Sociais pela em que a pergunta me é formulada li-
Associação de Ensino Unificado do Distrito Fe-
e humilhante. As adesões, mesmo as- deral, mestrado em Direito pela Universidade vremente, eu a respondo livremente
sim, são crescentes, pelo reconheci- de Brasília e doutorado em Direito (Direito, Es- e as/os leitoras/es acolhem, ou não,
mento dos estudantes, de modo par- tado e Constituição) pela Faculdade de Direito livremente, a minha crítica.
da UnB. Atualmente é membro de associação
ticular, do método teórico-prático de corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil, O direito de manifestação e opinião
sua ação, marcadamente favorável ao professor e reitor da Universidade de Brasília. aqui exercidos não foram dados de
povo pobre, divulgado com um conte- Confira, nesta edição, uma entrevista exclusi- mão beijada pela lei. Até pelo contrá-
va com ele. (Nota da IHU On-Line)
údo profundamente humanístico, ago-  Paulo Freire (1921-1997): educador bra- rio. Foram conquistas do povo na rua,
ra apoiado pelo chamado NEP (Núcleo sileiro. Como diretor do Serviço de Extensão também professor da Unicamp (1979) e secre-
de Estudos para a Paz e os Direitos Cultural da Universidade de Recife, obteve su- tário de Educação da prefeitura de São Paulo
cesso em programas de alfabetização, depois (1989-1993). Confira a edição número 223 da
Humanos) e a “nova escola jurídica” adotados pelo governo federal (1963). Esteve IHU On-Line, de 11-06-2007, intitulada Paulo
(NAIR), aquela que prossegue defen- exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Institu- Freire. Pedagogo da esperança. (Nota da IHU
to de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi On-Line)

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que ao mesmo custaram sacrifícios os “Políticos e pel do povo e dos políticos para que
mais dolorosos perpetrados por gente, o direito achado na rua cresça e se
à época, instituída e apoiada por ela! representantes seus, desenvolva com mais força na socie-
Assim, se o olhar que for lançado à dade?
história reconhecer os fatos concretos junto à administração Jacques Alfonsin - Apesar de vivermos
que deram origem a tais conquistas, o numa sociedade sujeita a uma econo-
presente jurídico das relações do Po- pública e ao Judiciário, mia consagradora de desigualdades
der Público com as pessoas deixará de extremamente injustas, há sinais cla-
identificá-las como súditas de uma no- se quiserem ser fiéis a ros de que grande parte do povo já se
breza encastelada em cortes, mas sim organizou e tem força de pressão atu-
como cidadãs, capazes de construir esse mesmo povo, ante em favor dos seus direitos, a pon-
democracia, não só representativa, to de empoderar formas de defender
mas também participativa. As relações precisam recuperar um direito contrário, ou no mínimo
sociais, aquelas que geram conflito e paralelo ao “direto oficial”, não con-
injustiça entre essas mesmas pessoas, o sentido etimológico taminado por sanções que preservem
não escamotearão origens viciadas de aquelas desigualdades, em nome da
opressão que possam se fantasiar ide- do mandato que igualdade, sustentem opressões, em
ológica e juridicamente de direito. O nome da liberdade e, principalmente,
lugar social da fala do poder jurídico receberam dele” reduza toda a relação humana à pro-
não será ocupado, com exclusividade, priedade. Políticos e representantes
pelas instituições de direito, antes de seus, junto à administração pública e
órico-práticas, que estão descobrindo
ouvir quem desse é o verdadeiro titu- ao Judiciário, se quiserem ser fiéis a
as vias concretas de, especialmente os
lar. Para tanto, é urgente que a lingua- esse mesmo povo, precisam recuperar
direitos sociais, alcançarem respeito e
gem da lei, sua interpretação e apli- o sentido etimológico do mandato que
garantia concretamente. Talvez baste
cação, abandone o seu dizer pedante receberam dele. Essa palavra vem do
lembrar que elas estejam alcançando
e incompreensível, que, muitas vezes, latim e significa mão dada. Que essa
o “acesso ao mundo da vida”, inclusive
disfarça, cinicamente, fantasiado de mão nunca o abandone, de modo todo
no terreno processual, que tenta dar
“o único e soberano direito oficial”, particular hoje, bem no meio da rua,
solução aos conflitos humanos, para
obediência servil à preservação da in- onde ele se encontra e sofre.
que esse seja auxiliado pela “herme-
justiça.
nêutica, naturalmente incompatível
com o pensamento dogmático”, como
IHU On-Line - Quais são os novos pa-
ensinou um velho professor de direito Leia mais...
radigmas de concepção das garantias
aqui da Unisinos que, lamentavelmen- >> Jacques Alfonsin já concedeu outras
materiais que devem sustentar os di- entrevistas à IHU On-Line. O material está
te, também já nos deixou. Do vício
reitos humanos das/os pobres defen- disponível na nossa página eletrônica (www.ihu.
de se atribuir a pecha de ideológicos unisinos.br)
didos pelo direito achado na rua?
apenas aos outros, como ele lembrou,
Jacques Alfonsin - Ao humanismo dia- Entrevistas:
com base em Terry Eagleton (“os par-
lético pregado pelo Dr. Roberto Lyra Fi-
tidários do socialismo são ideológicos, * “O povo gaúcho merece mais do que ‘transpa-
lho, acima lembrado, somam-se, hoje,
mas os do capitalismo, não”)  o direi- rência’”. Publicada nas Notícias do Dia, de 12-
vários outros paradigmas interpretati- 08-2009, e disponível no link http://www.ihu.
to achado na rua parece se defender
vos da lei e do direito, influenciando unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Ite
muito bem como o NEP e a Nova Es- mid=18&task=detalhe&id=24733;
novas maneiras de considerar os fatos
cola jurídica fazem hoje. O primeiro, * Estado é incapaz de remediar a justiça social.
que lhe deram origem e vigência, para Publicada na edição número 266, de 28-07-2008,
em sua página na Internet, deixa claro
que o legalismo não sepulte, de vez, e disponível no link http://www.ihuonline.unisi-
que “diversifica os papéis e as respon- nos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemi
a legalidade, como aquele jurista de-
sabilidades do direito por meio da in- d=23&task=detalhe&id=1189;
nunciou. Doutrinas garantistas, subs-
tegração compreensiva de seus deter-
tancialistas estão passando em revista Alguns artigos:
minantes sociais. A prática jurídica é
o positivismo normativista que, talvez,
contextualizada, obtendo-se com isso * Do direito alternativo até aquele que a própria
ainda conte com a maioria dos intér- Constituição Federal encontra na rua. Publicado
uma aplicação e inteligibilidade mais
pretes da realidade, da lei e do direi- nas Notícias do Dia, de 15-07-2009, e disponí-
seguras.” vel no link http://www.ihu.unisinos.br/index.
to. As obrigações públicas do Estado php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detal
democrático de direito são cobradas he&id=23899;
IHU On-Line – Qual deve ser o pa-
com mais rigor e até a tão traída fun-  SILVA, Ovidio Araujo Baptista da. Processo e * Uma dura crítica da Anistia Internacional aos
carrascos das/os Agricultoras/es Sem-Terra. Pu-
ção social da propriedade começa a ideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 1
blicado nas Notícias do Dia, de 21-06-2009, e
ter algum efeito prático contra quem (Nota do entrevistado)
disponível no link http://www.ihu.unisinos.br/
 Terry Eagleton (1943) é um filósofo e crítico
a infringe. Não conheço, como deve- literário britânico identificado com o marxis- index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task
=detalhe&id=23286.
ria, todas essas novas concepções te- mo. (Nota da IHU On-Line)
 Idem, p. 16. (Nota do entrevistado)

10 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


Princípios de uma organização social da liberdade
Na opinião de José Geraldo de Sousa Junior, a repercussão do direito achado na
rua é ampla e não apenas técnica, teórica e do ponto de vista do conhecimento do
direito, mas, também, política e social e de suas formas de realização

Por Graziela Wolfart, Greyce Vargas e Juliana Spitaliere

P
odemos considerar que o principal mentor do movimento pelo direito achado na rua tenha
sido o professor Roberto Lyra Filho, já falecido. No entanto um exemplar aluno seu encar-
regou-se de tocar em frente o projeto iniciado pelo mestre. E, hoje, é o grande nome no
Brasil quando o assunto é o direito achado na rua: José Geraldo de Sousa Junior. Ao gentil-
mente aceitar conceder a entrevista que segue à IHU On-Line, por telefone, o professor
José Geraldo, atual reitor da Universidade de Brasília, afirma que “pensar o direito como relação, e
não como um banco de enunciados legislativos, é criar as condições para que as lutas por reconhe-
cimento encontrem espaço politizado adequado para que se manifestem”. Para ele, “muitas vezes,
sob a forma de legalidade, a plenitude da realização subjetiva dos direitos humanos fica limitada,
portanto, lutar pelo reconhecimento é conseguir a resposta fundamentadora para que as demandas
estabelecidas se integrem ao mundo alargado do direito, que é mais amplo que a legislação”.
José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de
Ensino Unificado do Distrito Federal, mestrado em Direito pela Universidade de Brasília e doutorado em
Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB. Atualmente é membro de as-
sociação corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil, professor e reitor da Universidade de Brasília.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a origem do direi- horizonte de crítica que coincidia com pouco sobre a experiência do curso
to achado na rua? o que muitos hoje chamam de pós-mo- a distância de capacitação de atores
José Geraldo de Sousa Junior - A ori- dernidade, que é a mudança de para- populares no direito, que iniciou em
gem surge com um grau de curiosida- digmas no campo do conhecimento. 1987?
de, pois combina a metáfora com a Em seu trabalho na UnB, sobretudo José Geraldo de Sousa Junior - Tra-
indicação de uma certa disposição po- com os alunos de pós-graduação, en- balhei com o professor Roberto Lyra
lítica e teórica. É preciso recordar que tre os quais eu me incluía, ele lançou Filho na revista “Direito e Avesso” e
os anos 1970 foram de crítica jurídica. uma revista que se chamou “Direito e chegamos a editar três números. Ele
Na Europa, houve movimentos de uso Avesso”. Lyra queria aplicar no cam- era presidente do Conselho Editorial
alternativo do direito, como “Critique po do direito a extensão da metáfo- da revista e eu, diretor. Com sua mor-
de Droit”, na França, que notabilizou ra e procurar o direito na rua. Desta te, pensei que, ao invés de dar conti-
personalidades como Michel Miaille e origem do direito achado na rua está nuidade à revista, que era muito iden-
Antoine Jeammaud; tivemos o criti- em causa o movimento de crítica jurí- tificada com a construção editorial de
cismo nos Estados Unidos; e o movi- dica que procurava construir uma base Lyra Filho, o melhor era trabalhar em
mento do direito alternativo no Brasil. epistemológica para a formulação de um outro projeto que realizasse o seu
Na UnB um professor que fazia parte uma nova construção de sentido em programa. Como professor da UnB,
desta reflexão crítica, Roberto Lyra que o direito, segundo Lyra Filho, fos- propus à universidade, no ano de 1987,
Filho, lançou um manifesto em 1978, se entendido como a enunciação dos quando a instituição começou a rever
mesmo ano em que Granoble e o gru- princípios de uma legítima organiza- uma planta epistemológica e repen-
po Critique de Droit também lança- ção social da liberdade. Esta era sua sar seu projeto político e pedagógico
vam seu manifesto. Lyra Filho falava definição de Direito. com a redemocratização, de criar um
do direito sem dogmas, buscando uma programa de capacitação jurídica de
leitura mais problematizada. Este é o IHU On-Line – O senhor pode falar um assessorias populares de movimentos

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 11


sociais por meio da educação à distân- de um processo de criminalização dos audiovisual do mesmo tema, foi pre-
cia. Buscamos uma construção inter- movimentos sociais que defendem a miado em festival de cinema.
disciplinar que envolvesse o diálogo à reforma agrária, falando dos defen-
luz dessas premissas, do direito como sores de direitos humanos, sobretudo IHU On-Line – O “direito achado na
liberdade e a dimensão emancipatória aqueles que, na questão da terra, so- rua” é academicamente reconheci-
do direito, e chamamos o programa de frem mais diretamente as consequên- do? De que forma ele é tratado nos
“O direito achado na rua”. Lançamos, cias dessa atitude de criminalização, cursos de direito?
então, um curso a distância pela UnB e com o assassinato de advogados de José Geraldo de Sousa Junior - Sim.
pelo seu Centro de Educação a Distân- lideranças. O quarto volume acabou Na faculdade de direito da UnB, o di-
cia, elaborado no espaço do Núcleo de de ser lançado com o título de “Intro- reito achado na rua é uma linha de
Estudos para Paz e Direitos Humanos, dução crítica ao direito da saúde”. Na pesquisa da pós-graduação e integra
que permitiu o diálogo entre as várias esteira das grandes formulações do a plataforma Lattes de grupos de pes-
áreas, inclusive as jurídicas. Esse cur- modelo de constituição participativa, quisa. Enquanto linha de pesquisa se
so de capacitação recebeu várias edi- elaborado em 1988, a ideia é da exis- chama “O direito achado na rua e o
ções e foi reeditado inúmeras vezes, tência de um sistema único de saúde, pluralismo jurídico”, já que a concep-
ganhando uma atenção muito grande, o SUS, que incorporava o princípio da ção se apoia na ideia de que no mesmo
não só das assessorias jurídicas dos universalização do acesso e do contro- espaço social podem vigorar diferen-
movimentos sociais mas, surpreenden- le social com a ativação dos mecanis- tes ordens jurídicas em concorrência e
temente, dos estudantes de direito mos de cidadania participativa que a em cooperação, aludindo a bases fun-
das escolas brasileiras, que encontra- constituição prevê. Este volume serve dantes diferentes. O direito achado na
ram na proposta uma espécie de alter- de elemento de capacitação, sobretu- rua é de referência internacional, pois
nativa crítica ao estudo formal do di- como é uma experiência de universida-
reito nos manuais tradicionais. Não só de, serve de fundamento para a elabo-
esses estudantes, mas também muitos “São as lutas por ração de inúmeras teses, dissertações
professores, pediram à UnB a continui- e monografias. Seus autores circulam
dade desse projeto. Editamos o volu- reconhecimentos de nos congressos. A graduação da facul-
me “O direito achado na rua” várias dade de direito também tem servido
vezes e também começamos uma série normas que podem ser de base para o desenvolvimento de
que passou a dar nome à continuida- conteúdo de cadeiras que têm conteú-
de do projeto, esta também chamada tanto mais fortalecidas do variável. Uma experiência foi criar
“O direito achado na rua”. A partir de uma coluna num jornal da cidade de
1993 tomou forma o primeiro volume, quanto mais a nossa Brasília chamada “O direito achado na
com o título de “Introdução crítica ao rua” que respondia questões de leito-
direito”; em seguida, editou-se o se- sociedade se eduque, res. Isto se fazia dentro de uma dimen-
gundo volume com o título de “Intro- são emancipatória, não se trabalhava
dução crítica ao direito do trabalho”, por exemplo, para os a resposta que fosse deduzida dos có-
um diálogo com os juízes trabalhistas digos e da legislação, mas que impli-
que, no final de década de 1990, em direitos humanos” casse abrir horizontes tanto políticos
suas entidades, faziam uma discussão quanto teóricos para novas demandas
da crise do direito, do sistema sócio- jurídicas. Um exemplo disso são os
econômico, do juiz e da lei. Eles se co- do de juízes e membros do Ministério questionamentos: “A união estável en-
locavam na perspectiva de enfrentar Público e também de conselheiros dos tre homem e mulher, que não é deriva-
a síntese dessas crises em dois prin- conselhos de saúde e de estudiosos, de da do casamento, produz direitos? E se
cipais movimentos, um que procurava um chamado direito sanitário, que se tratar de homossexuais?”. A legislação
rever os fundamentos da função social desenvolveu a partir dessa premissa. O tem limites, pois a própria constitui-
do magistrado e outro que procurava volume continua com a mesma carac- ção formalmente se refere a homem
pensar aquilo que eles chamavam de terística, preparado pela editora da e mulher. Porém os estudantes busca-
limitação da base legalista da forma- UnB, e tem a incorporação de parcei- vam referências no direito comparado
ção jurídica dos operadores do direito. ros como a Fiocruz e a OPAS (Organiza- e nas lutas dos movimentos sociais, e
No começo dos anos 2000 lançamos um ção Pan-Americana da Saúde). Além do enunciavam uma possibilidade jurídica
terceiro volume com o título de “Intro- material teórico, também elaboramos com base nesse arranjo político e te-
dução crítica ao direito agrário”. Tra- vídeos. O primeiro vídeo “O direito órico. Da criação desta coluna em um
ta-se de um debate sobre a condição achado na rua”, que faz a abordagem jornal surgiu um livro sobre a prática
da apropriação da terra, as dificulda-  Sobre o Sistema Único de Saúde, confira a re- jurídica da UnB, em que os professores
des de se pensar uma forma solidária vista IHU On-Line número 260, de 02-06-2008, refletem sobre as condições da prática
de uso social da terra e a função social intitulada SUS: 20 anos de curas e batalhas, jurídica, uma das categorias do mo-
disponível no link http://www.ihuonline.uni-
da propriedade. Discutimos o começo sinos.br//index.php?id_edicao=288 (Nota da derno currículo jurídico, ao lado das
IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


matérias fundamentais e profissionais, e também, base para políticas públi- de, a plenitude da realização subjeti-
que vê a prática como uma dimensão cas de realização de direitos humanos. va dos direitos humanos fica limitada,
do conhecimento. O livro conta tam- A repercussão é ampla e não apenas portanto, lutar pelo reconhecimento é
bém com artigos dos alunos publicados técnica, teórica e do ponto de vista do conseguir a resposta fundamentadora
no jornal. Existia na sala de aula uma conhecimento do direito, mas, tam- para que as demandas estabelecidas se
disciplina de produção de textos que bém, política e social e de suas formas integrem ao mundo alargado do direi-
permitia que alunos, de diferentes ní- de realização. to, que é mais amplo que a legislação.
veis do curso, trabalhassem qualquer O direito de morar, que hoje já está
questão que fosse apresentada por lei- IHU On-Line – Como o senhor acha consagrado na legislação, durante mui-
tores do jornal ou de temas que sur- que o Direito deve ser trabalhado na to tempo foi discurso reinvidicativo das
gissem nos balcões de atendimento da conjuntura atual brasileira? comunidades excluídas das periferias
faculdade de direito. O direito achado José Geraldo de Sousa Junior - Dentro das cidades lançadas nas favelas e nas
na rua teve um papel requalificador da da dimensão, cada vez mais forte, de palafitas. Esse discurso pela mediação
estrutura e do desempenho do currí- que os direitos são relações. Quando a dos direitos humanos foi transformado
culo acadêmico em direção ao ensino constituição diz que “o elenco de di- em pauta para o alargamento do reco-
jurídico com outro perfil, outra cons- reitos descrito dela não exclui outros nhecimento de direitos. E a teoria jurí-
trução político-pedagógica e com uma direitos que derivem da natureza do dica, que é inspirada no direito achado
outra perspectiva de desempenho do na rua, permite identificar as fontes,
estudante e da relação pedagógica. tanto teóricas quanto jurisprudenciais,
“Com o discurso de que que sustentam esses direitos. Pensar o
IHU On-Line – Qual o impacto do di- direito como relação, e não como um
reito achado na rua para o Direito, a ação em defesa da banco de enunciados legislativos, é
em si? criar as condições para que as lutas por
José Geraldo de Sousa Junior - O im- reforma agrária se faz reconhecimento encontrem espaço po-
pacto é quanto ele interpela o conhe- litizado adequado para que se manifes-
cimento do direito e sua aplicação. por ocupação se politiza tem. Isto, sobretudo, em um contexto
Não é por acaso que hoje esse impacto de uma sociedade ainda muito desigual
chega a setores inesperados. Há pou- uma prática que é em que há dificuldades para discernir o
co tempo o presidente do STF, Gilmar sentido legitimado dessas lutas. Eu mes-
Mendes, fez uma afirmação, que de- constitutiva de direito. mo estou vivenciando, na UnB, a tensão
pois foi retomada como artigo da re- decorrente do fato da nossa construção
vista Veja, sob o fundamento de que Usar o discurso da de uma ideia de legitimação jurídica,
o direito é achado na lei e não na rua. fruto da luta por reconhecimento dos
A revista fazia crítica à abordagem do invasão é criminalizar movimentos negros e indígenas, que
que se chamava o movimento do “di- conseguiram formular uma política pú-
reito achado na rua”. Isto enseja uma esta prática, retirá-la do blica de ações afirmativas, incluindo a
dimensão de impacto e de repercus- política de cotas. Infelizmente sempre
são que vai além da sala de aula e que reconhecimento e há os que dizem que isto é ilegal. Um
interpela a própria atitude política da partido apresentou uma arguição de
aplicação do direito. O direito deixa desqualificar o seu descumprimento de preceito funda-
de ser, sob esse ângulo, apenas uma mental para desconstituir a nossa po-
questão para os acadêmicos e para os agente” lítica de cotas, afirmando que no Brasil
especialistas e se torna objeto de in- não há racismo, país que há pouco tem-
teresse no âmbito do senso comum da po mantinha a escravidão e que ainda
sua realização. Tal como nesse caso, regime ou dos princípios que a consti- mantém o tipo penal do plágio da redu-
frequentemente temos assistido mo- tuição adota”, abre uma pauta muito ção de alguém à condição análoga a de
bilizações em que essa perspectiva se larga, que tanto do ponto de vista te- escravo. É muito importante, portanto,
espalha. Um exemplo: em Minas Ge- órico quanto do político, nós pensemos poder trabalhar na linha da luta por
rais, dentro de uma política de acesso o direito como relações legitimadas. É reconhecimento, do caráter relacional
à justiça, uma prefeitura municipal preciso trabalhar as estratégias de re- dos direitos, e ter a consciência de que
criou um programa de assessoria ju- conhecimento. São as lutas por reco- os direitos não são quantidades que
rídica à cidadania e deu a esse pro- nhecimentos de normas que podem ser estão estocadas em um repertório. Os
grama o título de “Direito achado na tanto mais fortalecidas quanto mais a direitos são cotidianamente construí-
rua”. Mais tarde isto se espalhou para nossa sociedade se eduque, por exem- dos. Então, é preciso educação jurídica
outros programas. Assim se trabalha plo, para os direitos humanos. O res- e capacidade de tradução de deman-
crítica jurídica, diretriz para aplica- peito aos direitos humanos é um dos das legítimas que venham baseadas nos
ção jurídica por meio dos operadores princípios que a constituição adota. direitos humanos, para positivá-los no
de direito, magistrados e advogados, Muitas vezes, sob a forma de legalida- sentido de sua aplicação. E positivar
SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 13
não é somente legalizar, mas é o que a do direito achado na rua está claramen-
jurisprudência realiza. te inscrita nesta fundamentação. O texto
clássico de Roberto Lyra Filho, “Direito
IHU On-Line – Quais as principais di- que se ensina errado”, diz que o direito
ferenças entre o Direito e o direito se ensina errado pela inadequada apre-
achado na rua? ensão do objeto de conhecimento, pois
José Geraldo de Sousa Junior - Uma quem só vê o direito como lei não vê as
delas, que já citei anteriormente, é o manifestações jurídicas que se realizam
trabalho de assessoramento jurídico, na sociedade e que interpela a própria
que a partir da linha teórica do direito legislação existente. Daí deriva o que ele
achado na rua e com o aporte da capa- chamava de “defeito da pedagogia”, que
citação dos operadores de direito, se faz “não ensina bem quem aprende mal o
em função da luta pelo reconhecimento objeto de conhecimento”. A partir daí o
do direito de moradia em face do direito direito achado na rua teve uma influên-
de propriedade. São inúmeras as formu- cia muito grande na formulação dos prin-
lações que elaboramos, como em asses- cipais trabalhos, que desde a portaria nº

Informações no endereço www.ihu.unisinos.br


Participe dos eventos do IHU.
soramento a movimentos populares e 1886 do MEC, baliza a questão do ensino
em assessoramento na linha da atuação do direito no país.
dos advogados trabalhistas e dos advo-
gados desses movimentos para a defesa Plus
jurídica da modificação do sentido de
entendimento, em termos de construir A recepção do direito achado na rua
discursos que pudessem assimilar o senti- não é só nacional, mas internacional
do emancipatório das demandas sociais. também. É com o direito achado na
Um exemplo em um campo próximo é rua”que podemos estabelecer um de-
a questão da terra: ocupar ou invadir? bate muito forte com um participante
Com o discurso de que a ação em defesa do primeiro momento desta discussão,
da reforma agrária se faz por ocupação o professor Boaventura de Sousa San-
se politiza uma prática que é constituti- tos, com sua ideia de interlegalidade,
va de direito. Usar o discurso da invasão contextos espaciais e temporais, cons-
é criminalizar esta prática, retirá-la do truções de cartografias de cidades, e
reconhecimento e desqualificar o seu como ele apresentou desde seus estu-
agente. A construção de sentido na le- dos nas favelas brasileiras, a ideia de
gitimação de discursos é também outra pluralismo jurídico. Também há o diá-
estratégia que temos trabalhado e que logo com os principais juristas que se
caracteriza o “direito achado na rua” e engajam nesta dimensão crítica da te-
seu programa. Sempre que nos defronta- oria jurídica, André-Jean Arnaud e Jo-
mos com estas situações limites, como, aquim Herrera Flores. Joaquim Gomes
por exemplo, a criminalização dos movi- Canotilho, o principal constitucionalis-
mentos sociais e dos defensores de direi- ta em língua portuguesa, ao discutir na
tos humanos, são formas pelas quais nós sua obra Teoria da constituição e do di-
atuamos e que, de alguma maneira, fa- reito constitucional, alude ao fato de
zem parte desta plataforma de atuação que se coloca hoje uma exigência para
do “direito achado na rua” e de outros o direito constitucional que é escapar
modos de considerar o direito. ao formalismo positivista em que ele se
aprisiona e se abrir a outros modos de
IHU On-Line – O que o direito achado consideração da regra do direito que
na rua nos ensina? dialoguem com as teorias da socieda-
José Geraldo de Sousa Junior - O direi- de e da justiça. Ele menciona que uma
to achado na rua tem suscitado inúmeras das formas de diálogo que é preciso es-
teses e dissertações. Temos hoje, no âm- tabelecer é com o “direito achado na
bito da reforma de ensino do direito, um rua” e menciona exatamente o projeto
enunciado de premissas que modificaram desenvolvido na UnB.
suas diretrizes curriculares. Se tomar-
mos algumas das fundamentações que, a  André-Jean Arnaud: professor na Universi-
partir dos anos 1990, estão presentes no (Nota da IHU On-Line)
dade de Paris. ���������
campo do ensino do direito, veremos que  Joaquín Herrera Flores: professor na Uni-
versidad Pablo Olavide, de Sevilha, Espanha
muito do que foi a base da teoria crítica (Nota da IHU On-Line)

14 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


Um direito mais amplo e interdisciplinar
Na visão de José Carlos Moreira da Silva Filho, a concepção de justiça que sustenta
o direito achado na rua é toda aquela que se revela sensível às concretas, diversas
e históricas manifestações de afirmação de direitos que tomam corpo nas dinâmi-
cas reais e contraditórias das sociedades

Por Graziela Wolfart

E
m entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, o professor José Carlos Moreira
da Silva Filho entende que o direito achado na rua “não identifica o direito com a norma,
pura e simplesmente, e muito menos com a lei. O direito é visto como um processo social
de lutas e conquistas de grupos organizados, em especial dos novos movimentos sociais, na
busca da emancipação de situações opressoras caracterizadas pela experiência da falta de
satisfação de necessidades fundamentais”. Ele destaca que “é muito fácil aprendermos e ensinarmos,
nas faculdades de Direito, que as leis e os direitos que elas abrigam são para todos, mas nem sempre
é cômodo e conveniente perceber que, de fato, uma boa parte das pessoas em nosso país está alijada
da esfera de concretização dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal”.
E dispara: “Creio que o poder judiciário brasileiro ainda tem um longo caminho a percorrer para agir
com base na compreensão de que ele é um poder que tem de prestar contas à sociedade brasileira,
e não apenas aos entendimentos dos seus próprios pares”.
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, José Carlos Mo-
reira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
- UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente, é professor no Programa
de Pós-Graduação em Direito e na graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Uni-
sinos, além de Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que conceito de jus- “Temos, pois, um claro problema de hermenêutica
tiça prevalece no direito achado na
rua? Quais são os seus princípios ju- em nossa cultura jurídica”
rídicos?
José Carlos Moreira da Silva Filho
- O direito achado na rua não ignora processos existentes dentro de uma são no Estado do Rio Grande do Sul,
ou despreza a lei e o Estado, tanto sociedade desigual como a nossa, per- em especial a partir da atuação de
que muitas das lutas propostas e de- cebendo também que o Estado é um Amilton Bueno de Carvalho, Rui Por-
senvolvidas pelos movimentos sociais espaço de tensões e lutas acessíveis à tanova, Marcos Scarpini e do saudoso
desembocam justamente no apelo ao política e à participação, não somente  Amilton Bueno de Carvalho é desembarga-
através do voto, e que o ordenamento dor no Rio Grande do Sul, sendo juiz de car-
cumprimento das leis e princípios já reira. Foi um dos integrantes do grupo que,
existentes. Basta perceber também jurídico compõe um sistema de nor- nos anos 1980, tornou-se conhecido como o
que a própria Constituição de 1988 mas a ser interpretado de acordo com movimento fundador do Direito Alternativo no
as circunstâncias reais e concretas que Brasil. É palestrante respeitado no País e no
foi, em grande parte, resultado da Exterior, além de professor de Direito Penal e
mobilização de diferentes movimen- envolvem a aplicação da lei. de Processo Penal. (Nota da IHU On-Line)
 Rui Portanova: bacharel em Direito pela
tos e grupos sociais. O que diferencia PUCRS, foi nomeado Juiz de Direito em 1976,
a abordagem crítica do direito acha- Direito alternativo
atuou nas comarcas de São Luiz Gonzaga, São
do na rua da abordagem dogmática Vicente do Sul, Santo Augusto, Nova Prata,
do Direito é o fato de que aquela se A expressão “Direito Alternativo” Novo Hamburgo e Porto Alegre. Foi promovido
está mais próxima, em seu sentido não a Juiz do Tribunal de Alçada em maio de 1995,
apoia em um espectro de visão muito e a desembargador do Tribunal de Justiça em
mais amplo e interdisciplinar do que pejorativo, ao movimento de juízes maio de 1998. É autor de, entre outros, Mo-
esta, sendo por isso mesmo capaz de brasileiros que, inspirados na magis- tivações Ideológicas da Sentença (Porto Ale-
tratura democrática italiana do final gre: Livraria do Advogado, 2003). Confira uma
perceber as contradições, conflitos e entrevista concedida por ele na IHU On-Line
dos anos 1960, teve grande repercus- número 253, de 07 de abril de 2008, intitula-

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 15


Márcio Puggina. A ideia básica do mo- tenta o direito achado na rua é toda mais amplas, o que nos leva a uma to-
vimento foi a de explorar as brechas e aquela que se revela sensível a este tal inversão hierárquica na aplicação
conflitos do próprio ordenamento jurí- olhar, e, em especial, às concretas, das leis, priorizando-se as normas in-
dico, apoiando-se principalmente nos diversas e históricas manifestações de fraconstitucionais às constitucionais.
princípios e valores protegidos, para afirmação de direitos que tomam cor- Temos, pois, um claro problema de
realizar uma interpretação da lei que po nas dinâmicas reais e contraditórias hermenêutica em nossa cultura jurídi-
fosse mais inclusiva em relação aos das sociedades em questão. ca. Esta é uma das razões de por que
grupos mais vitimados na sociedade o curso de Pós-Graduação em Direito
brasileira, excluídos do acesso à satis- IHU On-Line - Em que medida o lega- da Unisinos, de cujo corpo docente me
fação de necessidades fundamentais. lismo pode ser visto como um instru- orgulho de fazer parte, tem como uma
Este movimento teve um papel impor- mento de injustiça social? de suas linhas de pesquisa prioritárias
tantíssimo na formação e fortaleci- José Carlos Moreira da Silva Filho - O o tema da hermenêutica jurídica asso-
mento de uma cultura crítica do direi- problema não é a lei em si. Roberto ciada à concretização de direitos. A lei
to no país. Não é demais lembrar que Lyra Filho já recomendava aos grupos e é um parâmetro fundamental para a
saímos da ditadura apenas na segunda movimentos empenhados na busca de afirmação de uma sociedade mais livre
metade dos anos 1980, e que questio- maior igualdade e afirmação de direi- e justa, é instrumento indispensável
namentos, críticas ou qualquer forma tos que fizessem um bom uso do “posi- do que chamamos de Estado Demo-
de pensamento mais elaborado era tivismo de combate”. São inúmeras as crático de Direito. Temos que enten-
algo vetado e combatido pelos agen- situações nas quais a injustiça social der que muito da injustiça social que
tes do governo autoritário, ainda mais poderia ser combatida ou diminuída assola a sociedade brasileira vem do
no seio de uma das instituições histori- bastando a mera aplicação da lei, mui- fato de que ainda são frágeis as nossas
camente mais conservadoras e menos tas vezes, no seu sentido mais literal. instituições democráticas, pois a de-
democráticas do país, que é o Poder Imagine, por exemplo, se o Código de mocracia que se concentra apenas no
Judiciário. Como estudante de Direito âmbito político-partidário e deixa sob
fui atingido em cheio por esta inquie- princípios nada democráticos a econo-
tude e por este exemplo, e se hoje “Muito da injustiça social mia e a educação, por exemplo, não
temos um amplo espaço de atuação é uma verdadeira democracia. O que
na interpretação e concretização do que assola a sociedade deve ser buscado é uma via de diálogo
Direito Constitucional, muito se deve e participação entre o Estado e os mo-
aos questionamentos e grupos pio- brasileira vem do fato de vimentos sociais organizados, manten-
neiros que lograram quebrar a dura e do-se uma tensão dialética constante,
opaca casca do enfoque exclusivamen- que ainda são frágeis as afinal, tanto a democracia como a
te dogmático do direito. Romper com própria ideia de justiça devem sempre
este viés simplista e rasteiro, contudo, nossas instituições ser vistas como algo inacabado e um
segue sendo ainda uma tarefa urgente processo em curso.
e inacabada, especialmente nos cur- democráticas”
sos de direito, que em grande parte IHU On-Line - A proposta do direito
ainda se deixam seduzir pela cantilena achado na rua evidencia a desatua-
positivista. Defesa do Consumidor, ou as normas e lização de nossas leis ou a falta de
O direito achado na rua, a par de re- princípios do Sistema Único de Saúde, confiança no poder judiciário?
presentar um compromisso ético com ou ainda o Estatuto da Criança e do José Carlos Moreira da Silva Filho -
a eliminação da desigualdade intolerá- Adolescente fossem fielmente cumpri- Creio que ela evidencia os dois aspec-
vel e com a afirmação de identidades, dos? O problema, como já deixa en- tos. Diante da desatualização das leis
direitos e participações dos grupos trever a sua pergunta, é o “ismo”. O ou de um texto legal insatisfatório e
e movimentos sociais que partilham legalismo, a meu ver, padece de duas inadequado, especialmente na opi-
experiências de exclusão no acesso à grandes deficiências: a primeira delas nião das pessoas que são os destinatá-
satisfação de necessidades fundamen- é que não consegue ver o direito que rios diretos desta lei, é preciso buscar
tais, representa uma lupa de observa- existe e se forma fora do espaço da tanto a via do debate, do protesto e
ção, análise e reflexão que percebe lei, seja antes de virar lei, indo além da participação política que objeti-
o fenômeno jurídico como algo bem dela ou até mesmo contra ela, o que vam a reforma do texto em si, como
maior e complexo do que se pensa nos contraria, portanto, o enfoque mais também o trabalho hermenêutico de
meios mais conservadores e dogmáti- amplo e adequado que sustenta o di- construção judicial das interpretações
cos. A concepção de justiça que sus- reito achado na rua. E, em segundo mais adequadas, capazes de compen-
lugar, o legalismo costuma apegar-se a sar, muitas vezes, as falhas do texto
da “A sociedade não acredita que haja amor
entre as pessoas homossexuais”, disponível no uma leitura pobre e tacanha do orde- legal. Desde a Constituição de 1988 é
link http://www.ihuonline.unisinos.br/index. namento jurídico, concentrando-se na muito visível a abertura desse flanco
php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task literalidade das regras mais específicas hermenêutico na via judicial, daí por-
=detalhe&id=968&id_edicao=281 (Nota da IHU
On-Line) e no desprezo aos princípios e normas que muitos juristas, como o meu co-
16 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305
lega Lenio Luiz Streck, por exemplo, sua tese de doutorado, defendida na sistemáticas exercidas sobre inte-
afirmam ter sido o Poder Judiciário Universidade de Yale, Boaventura de grantes do seu próprio grupo. Temos
alçado à condição de mediador entre Sousa Santos viveu durante meses em aqui, por exemplo, os povos indígenas
os outros dois poderes do Estado, pas- uma favela situada na cidade do Rio de e os movimentos sociais organizados,
sando a assumir um protagonismo que Janeiro. Logo ele pôde perceber que como o Movimento dos Trabalhadores
não existia em tempos nos quais se no vácuo da não satisfação de direitos Rurais Sem Terra. Importante lem-
acreditava ser o juiz “a boca da lei”. básicos, inscritos na legislação e na brar também que as exclusões não
Contudo, não se pode esquecer, como ausência da presença das instituições são apenas relativas às questões de
já afirmei antes, que o Poder Judici- estatais, a não ser para repressão e classe. Na agenda dos direitos huma-
ário no Brasil é uma das instituições violação de direitos, constituiu-se o nos, no Brasil, há muitos outros gru-
historicamente mais conservadoras e espaço de um sistema jurídico para- pos cuja questão central não se limita
menos democráticas do país, na qual lelo. Importante perceber que não se ao tema da pobreza, embora por ele
predomina o princípio da autoridade trata de defender pura e simplesmen- perpassem. São questões de gênero,
e o apego a rituais e a termos de di- te a existência desses sistemas, mas étnicas, ecológicas de opção sexual,
fícil compreensão para a maior parte sim de entender o fato e as razões de entre outras.
da população. É um poder ainda opa- eles existirem. A ausência do Estado Quanto à afirmação de que a justi-
co, que muitas vezes não fundamenta e de políticas públicas mais integra- ça convencional não atende às cama-
as razões dos seus entendimentos e os das economicamente desfavorecidas
meandros do funcionamento de seus da população, eu diria que em muitas
órgãos e agentes, permanecendo, via situações ela atende sim, mas ainda
de regra, muito reticente a críticas “A democracia que se padece de problemas estruturais que
e a questionamentos feitos sobre si, impedem que ela o faça de um modo
que são logo apontados como amea- concentra apenas no mais global e satisfatório. Dou como
ças à sua independência. Creio que o um bom sintoma disto o fato de que
poder judiciário brasileiro ainda tem âmbito as Defensorias Públicas no Brasil não
um longo caminho a percorrer para possuem pessoas e estrutura suficien-
agir com base na compreensão de que político-partidário e tes para cumprir a sua missão princi-
ele é um poder que tem de prestar pal. Costumam ter mais sucesso nas
contas à sociedade brasileira, e não deixa sob princípios nada demandas judiciais aqueles que po-
apenas aos entendimentos dos seus dem pagar bons advogados. Além dis-
próprios pares. democráticos a economia so, se formos olhar de um modo ain-
da mais global, perceberemos que os
IHU On-Line - Podemos dizer que a e a educação, por problemas sociais do país não dizem
proposta do direito achado na rua respeito apenas à atuação do judici-
está relacionada com a defesa dos exemplo, não é uma ário ou às ações do ministério públi-
direitos humanos dos pobres? Se co, mas sim a questões diretamente
sim, podemos entender que a justiça verdadeira democracia” relacionadas à política, ao sistema
convencional não atende às camadas produtivo, à educação e ao atual qua-
economicamente desfavorecidas da dro de relações de força na sociedade
população? brasileira. Devemos sempre nos lem-
José Carlos Moreira da Silva Filho - doras e inclusivas estimula também a brar que instituições como o Estado e
Como já disse na resposta à primeira constituição de sociedades criminosas o Mercado não são neutras, que o dis-
pergunta, a realidade da sociedade que também oprimem e reprimem a curso técnico do qual muitas das suas
brasileira está muito longe do ideal população que vive nas favelas e nas decisões se revestem apenas encobre
assumido pelo direito moderno dos demais periferias do país, interme- a realização de escolhas sustentadas
Estados Nacionais, qual seja, a de que diando esta violência com o atendi- em configurações morais e opções
o direito é para todos. Em um qua- mento de demandas que o Estado dei- axiológicas que estruturam imaginá-
dro como este não é de admirar que xou desamparadas. A legitimidade das rios e modelos de compreensão so-
nasçam sistemas jurídicos paralelos, sociedades de traficantes, por exem- ciais que acabam por ser naturaliza-
desvinculados da instituição estatal, plo, é algo extremamente ambíguo e dos. Daí porque, creio eu, a canção
ainda que com ela pretendam, em não deve ser visto com o olhar mani- de Caetano Veloso, intitulada “Um
muitos casos, dialogar. Ao reconhe- queísta e infantil de um Bush Jr. e sua índio”, traz, no seu último verso, a
cimento deste fenômeno social cha- “sociedade do mal”. Por outro lado, afirmação de que o que surpreenderá
mamos de “pluralismo jurídico”. Em também existem outros sistemas ju- a todos não será o exótico, mas sim
 Lenio Streck é professor no PPG em Direito rídicos paralelos que são a expressão o “fato de poder ter sempre estado
da Unisinos. Confira uma entrevista exclusiva da legítima organização popular e que oculto quando terá sido o óbvio”.
com ele publicada nesta edição. (Nota da IHU
On-Line)
não recorrem à violência e à opressão

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O “peso” dos movimentos sociais é maior que o das “leis”
Para o professor Roberto Efrem Filho, com o direito achado na rua, os movimentos
sociais puderam começar a ser reconhecidos, embora não sem a resistência dos
setores conservadores do campo jurídico, como sujeitos coletivos de direito

Por Graziela Wolfart

“O
direito achado na rua (...) constituiu um movimento teórico - inexoravelmente
político - de afirmação de um estilo específico de fazer o direito, aquele con-
duzido pelos movimentos sociais em meio às suas lutas por libertação”. É assim
que o professor Roberto Efrem Filho define o termo “direito achado na rua”,
nosso tema de capa na edição desta semana. Na entrevista que concedeu, por
e-mail, à IHU On-Line, Efrem Filho lembra que “as teses do direito achado na rua servem às classes
subalternas e sujeitos oprimidos ao tempo em que são capazes de reconhecer tais sujeitos e de, com
eles, encontrar caminhos para a formação de uma contra-hegemonia”. No entanto, “definitivamente
não se trata, nesse contexto, de qualquer hipótese de panacéia judicial”, alerta ele.
Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela Universidade Federal de Pernambuco, professor subs-
tituto da mesma instituição e assessor jurídico popular da Terra de Direitos, organização de Direitos
Humanos. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten- nas, o que se está a defender é que movimentos sociais de afirmar (e, por-
der por direito achado na rua? Qual existem direitos atinentes à organiza- tanto, criar) direitos, ainda que esses
sua origem? ção popular e que só essa organização direitos não sejam, a priori, conheci-
Roberto Efrem Filho - O direito acha- poderá acessar. dos pelo Estado. É o direito à terra,
do na rua, assim como boa parte das proposto pelo MST, por exemplo, em
teses relativas ao “direito alternati- A legitimidade dos oposição ao habitus estatal, que me-
vo”, constituiu um movimento teórico movimentos sociais ramente reconhece o direito à pro-
- inexoravelmente político - de afir- priedade.
mação de um estilo específico de fa- O segundo é o reconhecimento da O direito achado na rua e todas as
zer o direito, aquele conduzido pelos legitimidade dos movimentos sociais demais teses do direito alternativo
movimentos sociais em meio às suas na criação de direitos e na feitura da reúnem diversas proposições, por ve-
lutas por libertação. Isso significa, em história. Está aí a ideia de que os di- zes com certas divergências internas,
outras palavras, que, com o direito reitos não estão limitados ao monismo mas que, sem dúvida, estabeleceram
achado na rua, os movimentos sociais estatal, ou seja, ao monopólio estatal um marco histórico para a esquerda
puderam começar a ser reconhecidos, da criação do direito, e de que há, do campo jurídico nacional. Nas duas
embora não sem a resistência dos seto- destarte, o que Antonio Carlos Wolk- últimas décadas, não houve membro
res conservadores do campo jurídico, mer chamou de “pluralismo jurídico”. da esquerda desse campo, ainda que,
como sujeitos coletivos de direito. Há Numa das vertentes do pluralismo, com severas críticas e discordâncias,
aí, portanto, no mínimo, dois avanços discute-se acerca da legitimidade dos não precisasse prestar contas ao direi-
teóricos merecedores de destaque. O to achado na rua. A origem do direito
 Antonio Carlos Wolkmer: professor e advo-
primeiro é o da revisão do conceito de gado brasileiro. É um teórico do direito vin-
achado na rua está ligada aos traba-
“sujeito de direito”, costumeiramente culado aos estudos sobre Pluralismo Jurídico. lhos de Roberto Lyra Filho e de sua
encarado pela tradição liberal de modo Professor titular de História do Direito na Uni- Nova Escola Jurídica. Possuiu, assim,
versidade Federal de Santa Catarina, atua na
individualista e correspondente àque- graduação e no curso de pós-graduação em
ao menos inicialmente, algumas inter-
le modelo do “homem ideal” burguês, direito dessa instituição. Conferencista convi- ferências de pensamentos de caráter
de origem europeia, branco, do gêne- dado em universidades do Brasil e do exterior, marxista, dos quais suas teses foram
é considerado um dos iniciadores do debate
ro masculino etc., de que fala Marx. sobre o Direito Alternativo no Brasil. (Nota da
se afastando pouco a pouco. Encontra-
Se o Movimento Negro é um sujeito de IHU On-Line) se hoje numa fase “humanista” - cuja
direito, e não cada pessoa negra ape- influência também não foge a Lyra Fi-

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lho - mas, sobretudo, “pós-moderniza- O tema é complexo e sua discussão direito achado na rua é de relevância
da”, como se pode constatar a partir não cabe numa entrevista, é verdade. evidente. Os sujeitos atualmente orga-
da leitura da tese de doutoramento de Pretendo com essa referência, apenas nizados entre os setores progressistas
Jose Geraldo de Sousa Júnior, talvez a dizer que as teses do direito achado na do direito devem, sem dúvida, parte
maior referência no tema. rua servem às classes subalternas e su- significativa de seu acúmulo ao achado
jeitos oprimidos ao tempo em que são na rua. É o que se dá, por exemplo,
Sobrevalorização do judiciário capazes de reconhecer tais sujeitos e com a assessoria jurídica popular. Os
de, com eles, encontrar caminhos para núcleos pertencentes à Rede Nacional
Um dos problemas decorrentes das a formação de uma contra-hegemonia. de Assessoria Jurídica Universitária,
mudanças citadas é o do nascimento Mas definitivamente não se trata, nes- a RENAJU, organizações não-gover-
de uma sobrevalorização do Judiciário se contexto, de qualquer hipótese de namentais como a Terra de Direitos
e do direito como um todo, diretamen- panacéia judicial. Se o direito achado e a Themis, e inclusive alguns grupos
te relacionada a uma maior litigância na rua um dia reconheceu os movi- acadêmicos vinculados a Programas
jurisdicional dos movimentos sociais mentos sociais como sujeitos de direi- de Pós-Graduação em Direitos Huma-
com vistas à efetivação dos direitos já tos é porque, nas lutas históricas des- nos e Sociologia Jurídica compõem,
constitucionalizados em 1988. Existe, ses movimentos, está sua legitimidade com suas variáveis, a tradição teórica
nesse cenário, uma linha bastante tê- para a criação desses direitos. Uma iniciada pelo direito achado na rua.
nue entre acreditar no direito estatal contra-hegemonia no campo jurídico Acontece atualmente um interessan-
como a panacéia das transformações te movimento conjuntural: os/as ex-
sociais - o que se lê em trabalhos te- graduandos(as) partícipes dos núcleos
óricos substancialistas, como o de Le- “O direito achado na rua de assessoria têm ocupado cada dia
nio Streck - e acreditar que a disputa mais os Programas de Pós-Graduação
tática de certas questões no Judiciário e todas as demais teses em Direito, notadamente os da UFSC,
pode servir conjunturalmente à con- UFPB e UFPA, dada seja à história
quista de certos avanços democráticos do direito alternativo progressista desses Programas, como
- concepção coerente com a noção ocorre com o de Santa Catarina, seja
gramsciana de disputa de hegemonia. reúnem diversas a existência neles de linhas específicas
Fico, certamente, com esta última em Direitos Humanos. É o que se dá
concepção. Enxergar o direito como proposições (...) que, com a UFPA e a UFPB, por exemplo.
“solução para os conflitos sociais” é Outros Programas, certamente por
parte da crença legitimadora do pró- sem dúvida, conta da existência de núcleos de as-
prio campo jurídico no espaço social. sessoria fortes nas universidades, têm
As estruturas do campo jurídico e seus estabeleceram um demonstrado maior aceitabilidade
agentes cumprem um intrínseco papel com relação aos sujeitos deles advin-
de dominação simbólica e material, marco histórico para a dos. É que tem sucedido com a UFPE.
que toma maior ou menor relevância Isto, claro, com o companheirismo de
a depender das relações de poder for- esquerda do campo docentes comprometidos com os ci-
madoras do bloco histórico. Em tem- tados setores progressistas, como é o
pos de descrença no campo político jurídico nacional” caso de Luciano Oliveira, Gustavo San-
ou em tempos de disciplinamento, a tos, Larissa Leal e Alexandre da Maia,
importância do Judiciário para a ma- apenas para citar alguns nomes.
nutenção das relações de dominação não reivindicaria para si a legitimida-
aumenta. Noutras conjunturas, quan- de de efetivação da democracia e de IHU On-Line - Os movimentos e or-
do a dominância sofre menos media- desconstrução das desigualdades. Isto ganizações sociais têm demonstrado
ções sociais e a “violência” é mais seja porque as estruturas do campo força para representar os reclames
eficaz para as classes dominantes do jurídico alimentam-se dessa crença no de nossa sociedade?
que a “hegemonia” e o aparato simbó- próprio campo como salvador demo- Roberto Efrem Filho - Os movimentos
lico, a importância do direito diminui. crático para perpetuar a hegemonia; sociais brasileiros atravessam, dentre
Numa ou noutra conjuntura, contudo, seja porque tal crença usurpa dos mo- outros problemas, um difícil e bastan-
a estrutura do campo jurídico mantém vimentos sociais e das classes popula- te peculiar processo de fragmentação.
cumplicidades com as estruturas do res a competência para a real trans- As novas facetas simbólicas do modo
espaço social, ou seja, com o modo de formação que não advém do direito, de produção capitalista - em que esta-
produção capitalista. Tais cumplicida- mas da luta e do fazer histórico. mos todos(as) imbuídos(as), inexora-
des, de modo algum correspondem às velmente, ainda que dele discordemos
panacéias ou ao fim das desigualdades, IHU On-Line - Quem são os adeptos - têm prendido os movimentos numa
senão a uma negação dos conflitos so- do direito achado na rua no Brasil, disputa interna e autofágica pela cen-
ciais que passam a assumir feição de hoje? O que os caracteriza? tralidade da pauta. Isto significa que
“direitos ainda não efetivados”. Roberto Efrem Filho - O legado do os diversos movimentos terminam
SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 19
por ingressar numa concorrência para inclusive, das desigualdades de classe. oprimidos. Noutros termos, os Direitos
provar “quem mais sofre” com as de- A concorrência pelo financiamento ou Humanos advindos das legítimas lutas
sigualdades sociais, ou “quem é mais pela política pública constitui, portan- dos movimentos sociais, restam rifados
oprimido”, em razão de, enfim, de- to, um dos fatores de impossibilidade por lobbies. Os movimentos sociais,
monstrar “quem merece mais recursos de construção de uma pauta política por essas razões, encontram-se numa
financeiros ou quem deve mais rapida- comum que fortaleça as reivindica- encruzilhada que, se não é culpa sua
mente ser alvo de políticas públicas”. ções dos movimentos sociais. Além - porque o papel das estruturas sociais
A alegada “escassez” de orçamento es- dessa determinação diretamente eco- de dominação não pode ser negado -
tatal para a efetivação dos chamados nômica, uma outra, oriunda das rela- conta com seu consentimento incons-
Direitos Humanos Econômicos, Sociais, ções próprias à economia simbólica do ciente e com a inexorável reprodução
Culturais e Ambientais é parte fundan- campo político, perfaz-se. Não é rara a dos vínculos hegemônicos com as clas-
te desse cruel processo de fragmen- concorrência no seio do Poder Legisla- ses subalternas e grupos oprimidos.
tação. Em outras palavras, a “reserva tivo, pela pauta sustentável na lógica Nada disso quer dizer, entretanto, que
do possível econômico” - assim deno- das coalizões e da governabilidade. É tais movimentos são sujeitos coletivos
minada por alguns constitucionalistas o que ocorre atualmente, apenas para menos legítimos para a afirmação de
- faz-se fator de concorrência. A lógica citar um exemplo, com o Projeto de direitos. Pelo contrário, são eles os su-
é mais ou menos a seguinte: se o Esta- Lei do Estatuto da Igualdade Racial. jeitos sociais capazes da organização
do afirma que os recursos financeiros O Estatuto vem sendo cercado, des- popular, sem a qual, por certo, nunca
para políticas sociais são limitados, de sua propositura, por diversos Parti- haverá rastro qualquer de democracia
nem todos(as) se beneficiarão de tais ou soberania popular.
recursos. É assim que o Movimento Ne-
IHU On-Line - Em que medida os mo-
gro disputa financiamento com o Movi-
mento de Mulheres, que disputa com
“Nas duas últimas vimentos sociais e demais organiza-
ções da sociedade civil podem ter
o Movimento Camponês, que disputa
com o Movimento Quilombola etc.
décadas, não houve mais peso do que as leis na hora de
fazer justiça?
Certamente, tal concorrência não
é consciente ou intencional, o que,
membro da esquerda Roberto Efrem Filho - A tradição ju-
como notaria Pierre Bourdieu, faz as
relações de dominação simbólica ain-
desse campo, ainda que, rídica costuma neutralizar as leis e as
normas. O Ensino Jurídico pouco ou
da mais eficazes. Não é preciso que
o Movimento de Mulheres, por exem-
com severas críticas e nada diz das relações de poder res-
ponsáveis pela legislação ser desta e
plo, intencione excluir o Movimento
Negro do acesso a recursos públicos.
discordâncias, não não daquela maneira. A norma resta,
assim, desprovida de história, o que
Para que a fragmentação se reprodu-
za eficientemente, basta que o Movi-
precisasse prestar é sobremaneira contrário à concep-
ção de justiça comprometida com a
mento de Mulheres se perca em suas
“especificidades” - sem notar que a
contas ao direito achado libertação das classes e sujeitos opri-
midos. A negação da história das leis,
desconstrução do machismo está im-
bricada à desconstrução do racismo e,
na rua” dos interesses sociais que as movem, é
um dos instrumentos simbólicos atra-
vés dos quais a hegemonia se perfaz,
 Pierre Bourdieu (1930 - 2002) sociólogo
francês. De origem campesina, filósofo de for-
fabricando consensos e naturalizando
mação, chegou a docente na École de Socio- dos Políticos conservadores. Primeiro, relações. A afirmação de direitos, le-
logie du Collège de France, instituição que o notadamente, por conta da proposta vada a cabo pelos movimentos sociais,
consagrou como um dos maiores intelectuais
de seu tempo. Desenvolveu, ao longo de sua
da instituição nacional das Cotas So- em razão da garantia da justiça é (jus-
vida, mais de trezentos trabalhos abordando ciorraciais, como política afirmativa tamente) a antípoda da naturalização
a questão da dominação, e é, sem dúvida, efetiva de combate ao racismo; segun- com a qual o campo jurídico legitima
um dos autores mais lidos, em todo mundo,
nos campos da Antropologia e Sociologia, cuja
do, por causa do dispositivo que trata suas posições conservadoras. É na “fei-
contribuição alcança as mais variadas áreas do da demarcação de terras de rema- tura da história”, citando Paulo Frei-
conhecimento humano, discutindo em sua obra nescentes de quilombos. Atualmente, re, que os direitos são conquistados e,
temas como educação, cultura, literatura,
arte, mídia, linguística e política. Seu primei-
ocorre um jogo de poderes pelo o que dialeticamente, as identidades reco-
ro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute “passará com o Estatuto”: ou as cotas nhecidas. Acontece com os movimen-
a organização social da sociedade cabila, e em ou os direitos dos quilombolas. Isso tos sociais que suas lutas por direitos
particular, como o sistema colonial interferiu
na sociedade cabila, em suas estruturas e des-
porque as coalizões políticas do Go- são o que os formam como sujeitos, o
culturação. Dirigiu, por muitos anos, a revista verno Federal e a disputa com os Par- que conduz ao reconhecimento um do
Actes de la recherche en sciences sociales e tidos de oposição parecem “impedir” outro e, necessariamente, ao autor-
presidiu o CISIA (Comitê Internacional de Apoio
aos Intelectuais Argelinos), sempre se posicio-
que ambos os direitos sejam garanti- reconhecimento, numa desconstrução
nado clara e lucidamente contra o liberalismo dos aos povos negros historicamente daquilo que Marx chamou de “estra-
e a globalização. (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


nhamento”. Enquanto a história das Rurais Sem Terra pode cobrar junto
leis e dos interesses que as movem nos ao Estado brasileiro que seja ela efe-
é estranha, visto que diuturnamente tivada. É porque ela está na lei e não
negada, a história dos movimentos é realizada que podemos demonstrar
é sua luta diária pela justiça e pela o quanto o Estado parece indispos-
transformação. to à sua concretização e como esse
Posso dizer, respondendo dire- mesmo Estado capitalista nos deve
tamente a pergunta, que o “peso” justificativas. Se a “cobrança” pela

Religiões do Mundo | De 10-08-2009 a 08-10-2009


dos movimentos sociais é maior que efetivação da lei inexoravelmente le-
o das “leis”, porque os movimentos gitima o Estado e as casamatas que o
não negam ou neutralizam a história, sustentam, também evidencia as con-
constroem-na. Os Direitos Humanos tradições - não eternamente suportá-
não estão na lei porque a lei é a lei, veis - desse Estado e do modo de pro-
simplesmente. Se tais direitos estão dução. Talvez, na atual conjuntura,
nas leis - e nem sempre nelas estão a maior contribuição dos movimentos
- é por conta de uma história de lutas sociais, em suas lutas pela afirmação
sociais que se consubstanciou numa de direitos, seja a de aprofundar as
determinada legislação. Contudo, é contradições do mundo em que vive-

Informações em www.ihu.unisinos.br
preciso evitar duas manifestações da mos, resistindo.
ingenuidade purista normalmente pre- A segunda ingenuidade citada, qual
sente em debates como este: a) a de seja, a de que os movimentos sociais
que a positivação de direitos neces- são absolutamente justos e livres de
sariamente constitui uma conquista e contradições, é tão repleta de ele-
b) a de que os movimentos sociais são mentos hegemônicos como a primeira.
absolutamente justos e livres de con- Os movimentos - como todos(as) nós,
tradições. inclusos numa realidade de domina-
Acerca da primeira delas, oriunda ção - são contraditórios e muitas ve-
do discurso liberal que mais ou me- zes reproduzem, por exemplo, fatores
nos inconscientemente nos forma, opressivos de discriminação presentes
nota-se certo caráter “evolucionista” no espaço social. Não há de se falar,
bastante funcional à manutenção das portanto, em qualquer “bom selva-
relações de dominação. Nela, vê-se, gem”. Nem sempre a “justiça alter-
equivocadamente, a história como nativa”, aplicada por um movimento
uma linha reta, de começo, meio e popular, constitui uma decisão “justa”
fim: primeiro, há pessoas oprimidas, segundo os princípios que orientam
depois elas se reúnem, então lutam os processos históricos de libertação
e conquistam direitos reconhecidos dos sujeitos oprimidos. Reconhecer as
pela legislação, e, assim, acabam contradições existentes nos movimen-
com a opressão. Dá-se, no entanto, tos sociais é fundamental, sobretudo,
que a absorção pelo Estado do “dis- para sua superação.
curso de justiça” afirmado pelos mo-
vimentos sociais funda-se, não rara-
mente, em “concessões de direitos” Leia mais...
sob o objetivo de garantir a manu-
tenção de relações de poder. O “di- >> Roberto Efrem Filho já concedeu ou-
tras entrevistas à IHU On-Line. O material está
reito” na “lei”, por mais que pareça disponível na nossa página eletrônica
justo, lá está envolto em negociações
materiais e simbólicas que mantêm Entrevista:
* “A” verdade jurídica é um monopólio. A trans-
os sujeitos oprimidos esperançosos ferência da política para o direito. Publicada na
para com o Estado, ao tempo em que edição número 266, de 28-07-2008, e disponível
legitimam o Estado como “democrá- no link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
tico”, ainda que as desigualdades e etalhe&id=1186&id_edicao=294;
opressões se aprofundem. Isso não * Veja criminaliza a política brasileira. Publicada
significa, porém, que eu esteja a des- na edição número 292, de 11-05-2009, e dispo-
nível no link http://www.ihuonline.unisinos.br/
considerar completamente as leis. É index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&t
porque a reforma agrária está na lei ask=detalhe&id=1606&id_edicao=320
que o Movimento dos Trabalhadores

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 21


Uma análise sociológica do direito
Na opinião de Lenio Luiz Streck, professor no PPG em Direito da Unisinos, a
Constituição incorporou em seu texto tudo aquilo que se queria nas décadas de
1970 e 1980. Hoje a luta é concretizar a Constituição e não buscar alternativas
a ela, defende ele

Por Graziela Wolfart

“N
esta quadra da história, não é mais possível colocar-se de forma ‘alternativa’
buscando um direito que ‘esteja na rua’ ou, simplesmente, no cotidiano. Vive-
mos sob a égide de uma Constituição democrática que, aliás, é prenhe em direi-
tos fundamentais”. A contundente opinião é do professor Lenio Luiz Streck, do
PPG em Direito da Unisinos. Ferrenho defensor da Constituição Federal, Streck
afirma, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, que a “luta atual é criar condições
para que a legalidade tenha um terreno fértil para produzir seus frutos. Ser crítico hoje é concre-
tizar a Constituição. Em outras palavras, não há mais como falar em direito achado na rua, direito
alternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição é muito mais avançada que qualquer uma destas
bandeiras”.
Lenio Luiz Streck possui mestrado e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina. Atualmente, além de professor da Unisinos, é colaborador da Unesa e visitante da Universidade
de Coimbra; presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica; e membro da comissão per-
manente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Direito do Estado, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, her-
menêutica, constituição, jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Entre seus livros publicados
citamos Hermenêutica Jurídica E(m) Crise (8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) e Verdade
e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas - da possibilidade à necessidade de res-
postas corretas em direito (3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009). Seu site pessoal é http://www.
leniostreck.com.br/. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten-


der por direito achado na rua? Qual
“Temos uma Constituição democrática
sua origem?
Lenio Streck - Trata-se de um movi-
compromissória que estabelece as condições para
mento e não uma teoria sobre ou do
direito. Seu criador foi o jusfilósofo
o resgate daquilo que venho chamando de promessas
Roberto Lyra Filho, jurista marxista,
que foi uma espécie de ícone das te-
incumpridas da modernidade”
orias críticas do direito na década de
1970.
de pensamento de esquerda. De todo Afinal, o corolário do movimento era
IHU On-Line - Qual a fundamentação modo, embora o próprio Roberto Lyra uma análise sociológica do direito,
filosófica do direito achado na rua? não admitisse, também havia, mor- com o que passavam a depender do
Lenio Streck - Penso que a principal mente nos seguidores do direito acha- ativismo judicial, criando, assim, um
influência filosófica seja a do mate- do na rua, uma pitada daquilo que, em parentesco com o direito alternativo.
rialismo dialético, temperado por al- teoria do direito, chamamos de “posi-
gumas das teses das teorias críticas tivismo fático” (por todos, Alf Ross). IHU On-Line - Que novas perspecti-
frankfurtianas, enfim, trata-se daqui- vas hermenêuticas da realidade e da
 Alf Niels Christian Ross (1899-1979) foi um
lo que, classicamente, era chamado jurista e filósofo dinamarquês, além de pro- como um dos fundadores do realismo jurídico
fessor de Direito Internacional. É conhecido escandinavo. (Nota da IHU On-Line)

22 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


lei são apontadas pelo direito alter- do na rua e o direito alternativo, é que qualquer uma destas bandeiras.
nativo? possível responder que, nesta quadra
Lenio Streck - Você perguntou primei- da história, não é mais possível co- IHU On-Line - Quais os limites e en-
ro sobre o direito achado na rua. Ago- locar-se de forma “alternativa” bus- traves do direito achado na rua?
ra, pergunta sobre direito alternativo. cando um direito que “esteja na rua” Quais são as principais críticas feitas
Advirto, desde logo, que os dois mo- ou, simplesmente, no cotidiano. Vive- a ele?
vimentos tratam de coisas diferentes. mos sob a égide de uma Constituição Lenio Streck - A resposta a essa per-
Mais do que isso, os dois movimentos democrática que, aliás, é prenhe em gunta está entrelaçada com a da per-
possuem matrizes diversas, embora, direitos fundamentais. Para ser mais gunta anterior. Como disse, em nosso
como já dito, teleologicamente pos- simples: a Constituição incorporou, contexto atual, não faz mais sentido
sam apontar para a mesma direção, em seu texto, tudo aquilo que que- defender bandeiras como o direito
isto é, os fatos sociais é que deter- ríamos nas décadas de 1970 e 1980. achado na rua ou o direito alternati-
minam a normatividade. Na especi- Hoje a luta é concretizar a Constitui- vo. Isso pelo simples motivo de que
ficidade, o direito alternativo é um ção e não buscar alternativas a ela. temos uma Constituição democráti-
movimento – portanto, também não se Ou seja, para preservação das insti- ca compromissória que estabelece
trata de uma teoria sobre ou do direi- tuições democráticas – conquistadas a as condições para o resgate daquilo
to – político, surgido na Itália, nos anos tão duras penas – não cabe hoje falar que venho chamando de promessas
1970. Mas note-se: na Itália havia por em uma “legalidade alternativa” ou incumpridas da modernidade. Ora,
parte dos assim chamados “juízes al- em “pluralismo normativo”, como, nossa batalha atual passa pela con-
ternativos”, um ferrenho compromisso por exemplo, coisas velhas como o cretização dessas medidas que foram
com a Constituição, com o que usavam introduzidas pela Constituição que
o direito alternativo como uma “ins- representa o grande marco da lega-
tância normativa” contra o direito in- lidade. Não pela construção de espa-
fraconstitucional e, para isso, usavam
“Nossa batalha atual ços alternativos a ela. Pelo contrário,
a Constituição como um instrumento defender um tal posicionamento pode
de correção e filtragem. Já no Brasil,
passa pela enfraquecer as conquistas democráti-
no contexto em que surge o alterna- cas dos últimos anos, na medida em
tivismo, não tínhamos – propriamente
concretização dessas que, ao fim e ao cabo, tais posturas
– uma Constituição (lembro que vi- acabam por apostar demasiadamente
víamos sob a égide de um regime de
medidas que foram no poder dos juízes. É por isso que na
exceção, ditatorial). O movimento do última edição de minha obra Verdade
direito alternativo se colocava, então,
introduzidas pela e Consenso (Lumen Juris, 2009) pro-
como uma alternativa contra o status curo demonstrar a possibilidade e a
quo. Era a sociedade contra o Estado.
Constituição que necessidade de respostas corretas em
Por isso, em termos teóricos, era uma direito. Resposta correta entenda-se:
mistura de marxistas, positivistas fáti-
representa o grande adequadas à Constituição.
cos, jusnaturalistas de combate, todos
comungando de uma luta em comum:
marco da legalidade. IHU On-Line – Como entra nesse de-
mesmo que o direito fosse autoritário, bate a questão da democracia?
ainda assim se lutava contra a ditadura
Não pela construção Lenio Streck - Até 1988, aqueles que
buscando “brechas da lei”, buscando militavam em alguma corrente crítica
atuar naquilo que se chamam de “la-
de espaços alternativos do direito apostavam numa espécie
cunas” para conquistar uma espécie de “democracia judicial” pela qual se
de “legitimidade fática”. Achávamos
a ela” buscava fortalecer as posturas acio-
– e nisso me incluo – que o direito era nalistas acerca do direito. Em termos
um instrumento de dominação e da re- simples: na ausência de uma democra-
produção dos privilégios das camadas cia “de direito”, apostávamos na vi-
dominantes. Buscávamos, assim, tirar “direito da favela” de que falava Bo- vacidade dos fatos, na infraestrutura
“leite de pedra”. aventura de Sousa Santos. Nossa luta que determinasse a superestrutura. E,
atual é criar condições para que a le- portanto, queríamos que os juízes não
IHU On-Line - Em que medida o direi- galidade tenha um terreno fértil para fossem a “boca da lei”. Com a vitória
to achado na rua pode ser visto como produzir seus frutos. Ser crítico hoje da democracia, não é necessário mais
um instrumento de erradicação da é concretizar a Constituição. Em ou- fazer esse tipo de aposta. Aliás, se eu
pobreza e de redução das desigual- tras palavras, não há mais como fa- fosse fazer uma escolha, no atual mo-
dades? lar em direito achado na rua, direito mento, melhor mesmo é que os juízes
Lenio Streck - Considerando que há alternativo ou pluralismo jurídico. A sejam a “boca que pronuncia a Cons-
pontos comuns entre o direito acha- Constituição é muito mais avançada tituição”.

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 23


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SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 25


Brasil em Foco
Política cambial é homicida
Para ter uma taxa de câmbio competitiva e impedir movimentos prejudiciais à
economia, países em desenvolvimento devem agir no mercado à vista e no mercado
futuro de câmbio, aconselha o economista José Carlos Braga

Por Patricia Fachin

A
crise financeira internacional que deixou o mundo em choque acaba de dar sinais de recu-
peração e “os capitais já estão retomando velhas e novas práticas de acumulação financeira
à escala global”, diz José Carlos Braga à IHU On-Line em entrevista concedida por e-mail.
Num país onde os juros reais são elevadíssimos em comparação com o resto do mundo, o
que atrai capital especulativo, existe ainda um tripé formado pelo cambio flutuante, metas
de inflação e superávit primário que “estrangula o salto brasileiro para o desenvolvimento”, frisa o
professor da Unicamp. Braga classifica a política cambial do Brasil como homicida e recorda que, após
o colapso cambial de 1998, “ingressamos na ‘era da política de câmbio flutuante’”. No ano seguinte,
continua, “a política cambial foi marcada pela instabilidade e, na maior parte do tempo, implicou a
apreciação do real frente ao dólar; movimento que agora assistimos de maneira contundente”. Com
um cenário de desalinhamento cambial, menciona, “as consequências não são positivas para o cres-
cimento e distribuição de renda”.
Na opinião do economista, o Brasil foi um dos países menos afetados pelo colapso econômico inter-
nacional, mas adverte, “podemos pôr tudo a perder se deixarmos correr solta essa especulação cambial
que está derrubando o dólar e tornando o real ficticiamente uma moeda forte”.
José Carlos Braga é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ, mestre e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Hoje,
é docente no Instituto de Economia da Unicamp. Entre suas obras, citamos Temporalidade da riqueza. Teo-
ria da dinâmica e financeirização do Capitalismo (Campinas: Unicamp, 2000). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como percebe histori- sob a tutela do Senhor Gustavo Fran- de 1998/99 ao qual chegamos pelas
camente a posição brasileira em rela- co que, ao sair do governo, tornou-se mãos do economista acima menciona-
ção a sua política cambial? Em algum um financista. Essa política não esti- do, ingressamos na “era da política de
momento, essa política favoreceu o mulou o crescimento econômico como câmbio flutuante” na qual, durante a
crescimento econômico efetivo e a é do conhecimento geral da nação. A maior parte do tempo, destaca-se a fi-
distribuição de renda? queda da inflação ajudou os “de bai- gura do Senhor Meirelles, que sucedeu
José Carlos Braga - Consideremos a xo” na escala social, mas isso não foi o Armínio Fraga, discípulo de George
partir do Plano Real. Inicialmente o suficiente para promover a distribui-  Henrique de Campos Meirelles (1945): en-
câmbio foi utilizado como âncora para ção de renda na dimensão que o Bra- genheiro de produção civil brasileiro, atual
combater a inflação e, assim, tivemos sil necessita. Após o colapso cambial presidente do Banco Central do Brasil desde
janeiro de 2003, ocasião da posse do presiden-
valorização nominal e real da taxa de  Gustavo Franco (1956): economista brasilei- te Luís Inácio Lula da Silva. Na lista de presi-
câmbio. Prejudicamos as exportações, ro. Teve participação central na formulação, dentes do Banco Central do Brasil, é quem por
a competitividade da indústria brasi- operacionalização e administração do Plano mais tempo ocupou a presidência da institui-
Real. A partir de sua experiência de governo ção. (Nota da IHU On-Line)
leira; criamos déficit comercial e de publicou dois livros: O Plano Real e Outros En-  Armínio Fraga Neto (1957): economista bra-
transações correntes, desequilibrando saios (Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, sileiro. Foi presidente do Banco Central do Bra-
o balanço de pagamentos. É história 1995) e O Desafio Brasileiro: ensaios sobre sil de 1º de março de 1999 a 17 de janeiro de
desenvolvimento, globalização e moeda (São 2003 durante o governo de Fernando Henrique
conhecida da barbeiragem cometida Paulo: Editora 34, 1999). (Nota da IHU On- Cardoso. Atualmente, Fraga é o principal acio-
Line) nista de um grupo de investimentos chamado

26 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


Soros, financista e megaespeculador gramas sociais de transferência de ren- vida pelo Banco Central e suas taxas
internacional. No período posterior a da, ao bolsa família, à recuperação real de juros decididas nas reuniões presi-
1999, a política cambial foi marcada do salário mínimo, aos investimentos didas pelo Senhor Meirelles. Depois da
pela instabilidade e, na maior parte do públicos. E adicione-se: as empresas pri- crise, o Brasil se mostrou como um dos
tempo, implicou a apreciação do real vadas de porte médio-grande e as gran- países menos afetados por causa desse
frente ao dólar; movimento que agora des resistiram, reorganizaram-se micro- paradoxo. Mas, é claro, que podemos
assistimos de maneira contundente. A economicamente, desendividaram-se, pôr tudo a perder se deixarmos correr
persistir tal “coisa”, as consequências ganharam no financeiro e no operacional solta essa especulação cambial que
não são positivas quer para o cresci- e partiram para crescer aqui e lá fora. está derrubando o dólar e tornando o
mento quer para a distribuição. E seguiríamos crescendo não fossem a real ficticiamente uma moeda forte.
crise internacional e a reação retardada
IHU On-Line – Por que há desalinha- do Banco Central brasileiro em termos IHU On-Line - Qual deveria ser a po-
mento cambial no país? Quais são as de política de juros altos à turbulência e lítica do Brasil em relação às taxas
consequências da sobreapreciação aos tombos da economia mundial. de câmbio? Como essa política pode
cambial atual para a economia bra- favorecer a economia brasileira?
sileira? IHU On-Line - Depois da crise finan- José Carlos Braga - O Banco Central do
José Carlos Braga - Há um Brasil que ceira internacional, a abertura cam- Brasil e de países em desenvolvimento
paga juros reais elevadíssimos ainda bial se torna mais arriscada? não podem abrir mão de ter uma taxa de
em comparação com o resto do mun- José Carlos Braga - O Brasil está in- câmbio realista e competitiva. Para tan-
do, e isso atrai capitais especulativos tegrado à globalização financeira e, to têm que agir no mercado à vista e no
evidentemente que derrubam o dólar e mesmo antes da crise, já vinha no mercado futuro de câmbio para impedir
valorizam o real frente a essa moeda. E movimentos prejudiciais à economia
há um contexto internacional de capi-
talismo sob dominância financeira que
“A queda da inflação como um todo. Essas medidas favorecem
a balança comercial, as outras políticas
persiste neste momento pós-trauma da
crise financeira amainada pelos Estados
ajudou os ‘de baixo’ na que empurram o progresso industrial e
tecnológico, e desestimulam especula-
Nacionais que, entretanto, ainda não
regularam nada. Os capitais já estão re-
escala social, mas isso ções que envolvem as interações entre
taxa de juros e taxa de câmbio. E preci-
tomando velhas e novas práticas de acu-
mulação financeira à escala global. Veja
não foi suficiente para so parar com essa tolice de que as forças
livres do mercado é que devem indicar o
a Bovespa, veja a recuperação em Wall
Street, veja o crescimento das opera-
promover a distribuição caminho, os pontos de equilíbrio. Depois
da “explosão” que arrasou a capacidade
ções com derivativos financeiros mundo
afora. E há um Banco Central brasileiro
de renda na dimensão de autorregulação dos mercados e que
iniciou com a crise imobiliária americana
que é passivo em nome de que não pode
ter uma meta cambial, de que o regime
que o Brasil necessita” – subprime -, só os cretinos ou falsários
podem ficar nessa ideologia desmascara-
é flutuante, blá, blá, blá!!! Acaba como da a cada crise, à qual a teoria econômi-
cúmplice da dominância dos ganhos fi- ca mainstream aplica, volta e meia, ares
nanceiros sobre os ganhos produtivos jogo da elevada financeirização do ca- de ciência com a ajuda de modelos ma-
em nossa economia. Esse tripé: cambio pitalismo vigente nas últimas décadas, temáticos de última geração que nada
flutuante, metas de inflação e superá- conforme analisei em minha tese de explicam da realidade; só servem para
vit primário estrangula o salto brasileiro doutoramento posteriormente publi- lhes dar diplomas, publicar artigos em
para o desenvolvimento. É um triângu- cada no livro Temporalidade da Rique- revistas indexadas, inflar currículos va-
lo de ferro mortal. A política cambial é za. Não foi um país-ator importante na zios de conteúdos e render consultorias
homicida do nosso desenvolvimento. É crise sistêmica global atual por uma com base nas quais a mídia dirá que “o
isso! O Brasil foi capaz de crescer entre ironia e um paradoxo desde o início mercado prevê que...” e os financistas
2004/ terceiro trimestre de 2008 a taxas apontado pela mestra Conceição Tava- de todo tipo seguirão sua acumulação.
superiores a 4% ao ano graças aos finan- res. É que os detentores de riqueza
ciamentos dos bancos públicos, aos pro- que operavam no Brasil - os nacionais IHU On-Line - O Brasil vive uma ame-
Gávea Investimentos, além de ser membro do e os internacionais - não precisavam ir aça daquilo que se denomina peste
conselho de administração do Unibanco. (Nota à folia financeira internacional, já se holandesa? A desindustrialização ain-
da IHU On-Line)
 George Soros (1930): empresário húngaro bastavam com a folia nacional promo- da pode ocorrer no país?
conhecido por suas atividades enquanto espe-  Maria da Conceição Tavares (1930): eco- José Carlos Braga - Isso ocorrerá se a
culador, nomeadamente em matéria de taxas nomista portuguesa naturalizada brasileira. sociedade deixar-se levar pelo poder da
de câmbio, chegando a ganhar 1 bilhão de É também professora-titular da Universidade
dólares em um único dia apostando contra o Estadual de Campinas (UNICAMP) e professo- finança. Não são apenas os bancos que
banco da Inglaterra, bem como pela sua ativi- ra-emérita da Universidade Federal do Rio de fazem essa finança! Vejam a especula-
dade filantrópica, que apoiou entre outros, a Janeiro. Filiada ao Partido dos Trabalhadores, ção da Sadia e outras 500 empresas nos
Universidade Central Europeia. (Nota da IHU já foi deputada federal pelo estado do Rio de
On-Line) Janeiro. (Nota da IHU On-Line) derivativos cambiais. Creio que as condi-

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 27


ções para uma arrancada em direção ao
desenvolvimento estão dadas como uma
“A dificuldade é IHU On-Line - O que medidas distri-
oportunidade histórica bem especial butivas como bolsa família e eleva-
neste início do século XXI. Temos que
que como somos ção do salário mínimo significam para
aproveitá-la. Mas temos que superar a o país? Como essas iniciativas favore-
mediocridade e varrer a mesmice políti-
atrasados no cem melhores condições de vida?
ca do Executivo e do Legislativo. Aumen- José Carlos Braga – Essas iniciativas
tar a participação popular. Mobilizar a
subdesenvolvimento, estão na base do crescimento maior
sociedade. Desmascarar a pseudociência que temos tido nos últimos tempos.
de boa parte dos economistas. O projeto
temos muito a fazer Mas a meta tem que ser, no futuro,
conservador envolve crescimento com não mais precisar de bolsa família,
aperto fiscal, privatização e distribuição
simultaneamente. porque a economia desenvolveu-se
mais à frente, “quando o bolo tiver cres- e gerou as oportunidades. Claro que
cido”. É aquela velha história mesmo
Então a harmonização por economia entendemos uma ar-
por parte dos “neodesenvolvimentistas” ticulação entre Estado e mercado. O
de direita. Não nos enganemos. O cres-
e sincronicidade mercado sozinho não existe e quando
cimento é necessário, mas não suficien- existe termina por provocar crises de
te. Nós até podemos crescer e agravar o
tornam-se difíceis, grandes proporções como a dos anos
problema social, ambiental e outros. 1930 e a que estamos a assistir desde
conflituosas” 2007, para não falar de outras como,
IHU On-Line - Como o senhor perce- por exemplo, a Depressão Argentina
be a “decadência” das exportações? rências de renda do governo, o que não dos anos 2000.
Esse fenômeno é bom para o país ou pode ser permanente. A meta tem que
as exportações deveriam ser estimu- ser a superação do subdesenvolvimento IHU On-Line - Que aspectos devem
ladas através de subsídios? Quais são que inclui a contundente distribuição da permear a construção de um novo
os efeitos disso para a distribuição riqueza e da renda. padrão de desenvolvimento produti-
de renda no país? vista e distributivista? O Brasil se en-
José Carlos Braga - Apesar dos pesares, IHU On-Line - Como o senhor perce- caminha, de algum modo, para esse
como se diz, não sou dos que acreditam be o Brasil frente à desaceleração projeto?
que o Brasil padece já da tal da doença econômica global? José Carlos Braga – Há “coisas” difíceis
holandesa, ou que tenhamos sofrido um José Carlos Braga - O Brasil já disse por enfrentar, como a reforma tributá-
verdadeiro processo de desindustriali- que está bem na foto internacional. ria, reforma agrária, reordenamento das
zação como México, Argentina e outros Agora, o nosso Banco Central, com regiões metropolitanas, enfrentamento
países sofreram. Os produtos manufa- essa diretoria que aí está, faz gol inteligente e balanceado entre desenvol-
turados ainda têm peso importante nas contra. Essa é a verdade. Então, tem vimento e meio ambiente. A consciência
exportações. Os setores de bens de con- que mudar a lógica do triângulo: fis- e o debate avançaram no Brasil. Mas es-
sumo, de bens intermediários e de bens co, câmbio e juros. Torná-lo a favor da tamos longe de uma prática mais funda
de capital seguem bem como a dinâmica combinação de estabilidade com de- e irreversível até onde consigo enxergar.
entre eles e aquele com o agronegócio. senvolvimento. Usar os bancos públi- Minha esperança se funda em que cresce
O papel que o BNDES vem desempenhan- cos como já se vem fazendo e ampliar o número de inteligências que se direcio-
do nos últimos anos poderá recuperar essa utilização inclusive para quebrar nam politicamente para essas questões.
em tempo hábil elos perdidos da cadeia a oligarquia financeira que tripudia so- E não esqueçamos que somos um país
industrial, sobretudo através da iniciati- bre o povo e a nação como vimos em continental. Logo temos que ter uma
va de criar projetos na qual agora ele se declarações recentes de banqueiros a política nacional de desenvolvimento re-
lança. O crédito de capital a custo ade- favor de spreads elevados; isso numa gional para resolver essa outra dimensão
quado e as desonerações fiscais em cur- reação à atitude dos bancos públicos de nossas heterogeneidades estruturais.
so são estímulos suficientes. Agora, não de reluzi-los. E a política social tem Haja força e luta política com conheci-
pode continuar com aquele triângulo de que ser ampla e para tal necessita de mento de causa.
ferro mortal. E tem que chamar a banca recursos fiscais para saúde, educação,
privada para negociar seu engajamento esgotos sanitários, merenda escolar, IHU On-Line - É possível conciliar
no projeto nacional de desenvolvimen- todas essas coisas. É uma barbaridade crescimento econômico e sustenta-
to. Dar um basta nessa moleza dela, morrer brasileiros de morte evitável, bilidade num país que deseja acele-
ficar faturando com a dívida pública, seja criança, seja adulto. Logo, o go- rar o crescimento e que investe em
assim como o fazem as tesourarias das verno começou a mover-se bem, mas programas como o PAC? Percebe al-
grandes empresas e os donos de grandes há muito a ser feito pelos governos guma sinalização nesse sentido?
fortunas no país. A distribuição de renda que virão para adentrarmos digamos José Carlos Braga – Sim, a dificulda-
com tudo isso avança pouco; fica na de- assim: uma senda Furtadiana de supe- de é que como somos atrasados no
pendência do Bolsa Família, das transfe- ração do subdesenvolvimento. subdesenvolvimento, temos muito a
28 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305
fazer simultaneamente. Então a har-
monização e sincronicidade tornam-se
difíceis, conflituosas; além das con-
tradições reais mesmas - ou vai ou ra-
cha; ou, de outro lado, preservemos
Entrevista da Semana
a qualquer custo! É curioso que duas
mulheres simbolizem - no limite - essa
bifurcação - Dilma e Marina. Mas é
100 anos depois: a mudança radical
claro que ambas querem combinar e
buscar o desenvolvimento sustentável. da Igreja gaúcha
Aliás, doravante em qualquer lugar do
mundo, penso que a médio prazo qual- Artur Cesar Isaia avalia que, nos últimos 100 anos, a Igreja em
quer proposta que não se proponha a
isso está fadada à derrocada. A menos cidades como Porto Alegre, Pelotas e Santa Maria deixou de ter
que apostemos na barbárie a valer. O a comodidade antes desfrutada como produtora de bens cul-
padrão de crescimento de costas para turais e teve que se inserir em uma sociedade cada vez mais
as questões ambientais não tem mais
credibilidade e apoio, está condenado pluralista
politicamente porque simplesmente
destruirá o planeta. Por Graziela Wolfart | Foto Divulgação

A
IHU On-Line - O fato de 2010 ser ano
eleitoral afeta de alguma maneira a o relembrar a história da Igre-
política econômica do país? Em que ja no Rio Grande do Sul e no
sentido?
Brasil, nos últimos 100 anos,
José Carlos Braga – Espero que sim.
o historiador Artur Cesar Isaia
Mas isso será de pouca valia, de curto
prazo, mas, que venha. Que o triân- destaca que “a Arquidiocese
gulo de ferro seja derretido. Que os de Porto Alegre esteve muito ligada, em
grilhões ao desenvolvimento sejam vários momentos, à vida política estadu-
quebrados. Mas o importante é que al e nacional. Basta analisarmos a história
o processo eleitoral implique mobili- política recente para que salte aos olhos
zação da sociedade para que os com- a sua presença. Por exemplo, é impossível
promissos do novo governo sejam com estudarmos a revolução de 1930, a ascen-
a construção acelerada da civilização são da ditadura getulista, a democracia populista e o regime militar, sem que
brasileira cujo fundamento, insisto, se dê a devida atenção à Arquidiocese de Porto Alegre”. Na entrevista que
como aprendi com meus mestres, é a segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, o professor também aborda
superação do subdesenvolvimento.
a importância histórica de Dom João Becker que, segundo ele, “foi um bispo
totalmente comprometido em estabelecer uma relação entre o magistério da
Igreja e a atuação política”. E continua: “Podemos pensar que D. João Becker
foi um grande colaborador para que se perpetuasse o predomínio político de
Leia mais... um gaúcho a nível nacional (Getúlio Vargas), mas, ao mesmo tempo, um gran-
>> José Carlos Braga já concedeu outras de aliado de Vargas no seu projeto de ‘domesticar’ a oligarquia gaúcha”.
entrevistas à IHU On-Line. O material está dis- Artur Cesar Isaia é graduado em História pela Universidade Federal do Rio
ponível em nossa página eletrônica.
• “Precisamos ter um ‘projeto de Nação’”. Pu- Grande do Sul, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
blicada na edição número 227, intitulada Frida Grande do Sul e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. De-
Kahlo 1907-2007. Um olhar de teólogas e teólo-
gos, de 09-06-2007. Disponível em http://www.
senvolveu estágio de pós-doutoramento na École de Hautes Études en Sciences
ihuonline.unisinos.br//index.php?option=com_ Sociales, em Paris. Atualmente, é professor da Universidade Federal de Santa Ca-
destaques_semana&Itemid=24&task=detalhes&i
tarina. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Re-
dnot=548&idedit=9;
• O Brasil regido por um “novo” padrão de desen- pública e Teoria e Filosofia da História, pesquisando principalmente os seguintes
volvimento capitalista. Entrevista publicada nas temas: discurso religioso, catolicismo, espiritismo, umbanda. É autor de, entre
Notícias do Dia, de 29-05-2006. Acesse em http://
www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_notici outros, Catolicismo e Autoritarismo No Rio Grande do Sul (Porto Alegre: EDIPU-
as&Itemid=18&task=detalhe&id=3435; CRS, 1998); e dos Cadernos IHU Ideias número 64, de 2006, intitulado Getúlio e
• “O Brasil regido por um ‘novo’ padrão de de-
senvolvimento capitalista”. Publicado nos Cader- a Gira: a Umbanda em tempos de Estado Novo. Confira a entrevista.
nos IHU em Formação número 9, de 2006.

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 29


IHU On-Line - Qual a importância de Artur Cesar Isaia - São muitos os no- liderança do arcebispo do Rio de Ja-
lembrar os 100 anos da Arquidiocese mes importantes revelados pela his- neiro, D. Sebastião Leme. D. Vicente
de Porto Alegre, bem como o cente- tória da Arquidiocese de Porto Alegre Scherer, por seu turno, um homem, da
nário das Arquidioceses de Pelotas e nestes últimos 100 anos. É muito di- mesma maneira, extremamente fiel à
Santa Maria? fícil nominar, sem esquecer. Vou citar ortodoxia, mas que teve que conviver
Artur Cesar Isaia - Penso que a come- apenas dois nomes, sabendo que estou com uma sociedade que aprofundava
moração pode representar, sobretudo, deixando de fora inúmeros outros (sa- o processo de laicização, que tornava
um momento de reflexão, de aprofun- cerdotes, leigos e religiosos), extrema- cada vez mais relativa a voz da Igre-
damento da visão crítica sobre o traba- mente relevantes: Dom João Becker ja. Representou, ao mesmo tempo,
lho desenvolvido por essas Arquidioce- e Dom Vicente Scherer. Sem dúvida, uma continuidade e uma ruptura. Uma
ses no terreno social, principalmente. foram arcebispos com uma projeção continuidade com seu predecessor, se
Neste esforço reflexivo, a pesquisa enorme na vida nacional. Tanto no pensarmos o seu comprometimento
histórica poderia colaborar muito, uma que concerne aos aspectos internos, com os valores que julgava inegociá-
vez que, nestes 100 anos, a fisionomia institucionais da Igreja no Rio Grande veis do magistério eclesial; com aquilo
do Rio Grande do Sul e das cidades de do Sul, quanto no relacionamento da que julgava que nem as circunstâncias
Porto Alegre, Pelotas e Santa Maria se Igreja com a sociedade e com as es- históricas, nem as características pes-
transformou radicalmente. A questão feras de poder. São dois nomes inse- soais dos pastores podiam alterar. Uma
social tornou-se mais aguda e a pobre- ridos em conjunturas históricas muito ruptura, se pensarmos que a maneira
za bem mais visível. Por outro lado, a de expor esse magistério é completa-
Igreja teve que enfrentar problemas mente outra. A época em que D. Vi-
muito sérios no campo cultural. Nessas cente ocupou a cátedra arquiepiscopal
cidades, nesses 100 anos, a Igreja dei-
“Dom João Becker exigia uma negociação crescente com
xou de ter a comodidade antes desfru- outros atores políticos e com outros
tada como produtora de bens culturais
representou um produtores de bens culturais. Se D.
e teve que se inserir em uma socieda- João Becker restringia em boa parte
de cada vez mais pluralista. Penso que
momento muito sua interlocução com as elites políti-
este desafio continua sendo muito atual cas, D. Vicente Scherer teve que di-
e continua a exigir um trabalho inces-
especial na busca latar essas interlocuções, fazendo-se,
sante, não só dos bispos, mas também inclusive, presente nos meios de co-
dos padres, religiosos e leigos.
da afirmação do municação, de uma maneira impensa-
da por D. João Becker, que expressava
IHU On-Line - Qual a importância da
catolicismo frente às seu posicionamento, sobretudo através
Arquidiocese de Porto Alegre para a da palavra escrita, das suas famosas
história da Igreja no Rio Grande do
esferas de poder Cartas Pastorais. Nesse sentido, a pre-
Sul e no Brasil? sença semanal de Dom Vicente Sche-
Artur Cesar Isaia - Nesses 100 anos a
nacional e estadual” rer no rádio e no jornal (refiro-me ao
Arquidiocese de Porto Alegre esteve programa “A voz do Pastor”) mostrava
muito ligada, em vários momentos, à a sua intenção em ocupar espaços em
vida política estadual e nacional. Basta uma sociedade na qual a presença da
analisarmos a história política recente diferentes. Ambos polêmicos, dotados Igreja precisava concorrer com outras
para que salte aos olhos a sua presen- de personalidades fortes, de opiniões presenças.
ça. Por exemplo, é impossível estudar- firmes no campo doutrinário, postos
mos a revolução de 1930, a ascensão à prova em circunstâncias muito pró- IHU On-Line - Qual a importância de
da ditadura getulista, a democracia prias. D. João Becker, sendo um dos Dom João Becker para a história po-
populista e o regime militar, sem que grandes articuladores da aliança políti- lítica brasileira? Como era sua postu-
se dê a devida atenção à Arquidiocese ca, daquela “concordata não escrita”, ra em relação a Getúlio Vargas, por
de Porto Alegre. A elevação do então que marcou a aliança entre Vargas e o exemplo?
arcebispo Dom Vicente Scherer ao car- catolicismo e no qual se sobressaiu a Artur Cesar Isaia - Dom João Becker
dinalato, em 1969, tornou ainda mais  Dom João Batista Becker (1870-1946): bispo representou um momento muito espe-
católico brasileiro. Foi nomeado pelo Papa Pio
patente a importância da Arquidiocese X como 1º bispo de Santa Catarina, em 3 de
cial na busca da afirmação do catolicis-
de Porto Alegre no contexto nacional. maio de 1908. Foi ordenado bispo na Paróquia mo frente às esferas de poder nacional
Nossa Senhora das Dores, em Porto Alegre, em
(Nota da IHU
13 de setembro do mesmo ano. ���������  Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra
IHU On-Line - Quais o senhor desta- On-Line) (1882-1942): segundo cardeal brasileiro. Foi
caria como os grandes momentos e  Dom Vicente Scherer (1903-1996): cardeal Arcebispo de Olinda e Recife e Arcebispo do
os grandes nomes que marcaram a brasileiro. Dom Vicente Scherer foi ordenado Rio de Janeiro. Exerceu relevante papel nos
padre em 1926, em Porto Alegre. Recebeu or- dias finais da Revolução de 1930, quando con-
história da Igreja no Rio Grande do denação episcopal em fevereiro de 1947. En- venceu o renitente presidente Washington Luís
Sul, nos últimos 100 anos? tre os anos de 1946 e 1981, foi arcebispo de Pereira de Sousa a entregar o poder aos revol-
Porto Alegre. (Nota da IHU On-Line) tosos. (Nota da IHU On-Line)

30 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


e estadual. Ele tinha um projeto muito e, por outro, vai voltar-se de costas
claro de dilatar a importância da Igreja IHU On-Line - Qual o legado de Dom para as siglas políticas que tradicional-
Católica frente ao poder político. Ele João Becker para a constituição do mente representavam os interesses da
punha em ação o que era a concepção projeto político do Rio Grande do Sul? oligarquia gaúcha tradicional (o PRR e o
vigente em relação à atuação da Igreja: Artur Cesar Isaia - Se pensarmos que PL). Esse posicionamento do arcebispo
fortalecer internamente a instituição a proposta de Getúlio Vargas visava a é muito importante se pensarmos que
eclesial, formar um clero e um laica- dois objetivos claros: a centralização tanto no PRR quanto no PL militava boa
to comprometidos com o que entendia política e o necessário enquadramento parte da elite católica rio-grandense da
como recristianização da sociedade e, das oligarquias estaduais, vamos ver época e isso poderia causar, como cau-
a partir deste fortalecimento, influir sou, momentos bastante incômodos no
junto às elites políticas. O projeto da relacionamento do arcebispo com seto-
Igreja passava, necessariamente, pela res desta elite. Podemos pensar que D.
interlocução com as elites e com es- “Uma das João Becker foi um grande colaborador
tado. Foi baseado nesses pressupostos para que se perpetuasse o predomínio
que D. João Becker decidiu manter um características mais político de um gaúcho a nível nacional
total alinhamento político com Getúlio (Getúlio Vargas), mas, ao mesmo tem-
Vargas. Este alinhamento era visto pelo marcantes na po, um grande aliado de Vargas no seu
arcebispo, portanto, dentro do seu pro- projeto de “domesticar” a oligarquia
jeto maior de fortalecimento do poder modificação da gaúcha.
da Igreja. Entre as opções políticas exis-
tentes naquele momento, pareceu a D. fisionomia religiosa IHU On-Line - De modo geral, quais
João Becker que o alinhamento com as principais transformações históri-
Vargas representava a oportunidade nestes cem anos foi cas ocorridas no campo religioso bra-
maior para concretizar-se o projeto de sileiro nos últimos cem anos?
recristianização. Vargas aparecia para o avanço do chamado Artur Cesar Isaia - Nestes últimos cem
o arcebispo como o aliado mais viável anos, tanto o campo religioso rio-gran-
da Igreja e como a opção política mais ‘neopentecostalismo’, dense quanto o nacional foram marca-
acorde com os interesses católicos. Por dos por um acentuado aumento de sua
isso, decide apoiá-lo integralmente e capaz de fazer frente complexidade. A obviedade de uma
endossa todo o processo de centraliza- sociedade católica cedeu lugar a uma
ção política que culmina com a instau- tanto ao catolicismo crescente disputa, justamente àquilo
ração do Estado Novo em 1937. que está presente na ideia de campo
quanto ao defendida por Bourdieu, ou seja, uma
IHU On-Line - Em que sentido Dom economia de forças religiosas mar-
João Becker contribuiu para a cons- protestantismo cadamente tencional. Considero que
tituição do discurso religioso católico uma das características mais marcan-
brasileiro? histórico, ao espiritismo tes na modificação da fisionomia re-
Artur Cesar Isaia - D. João Becker foi ligiosa nestes cem anos foi o avanço
um bispo totalmente comprometido e às religiões do chamado “neopentecostalismo”,
em estabelecer uma relação entre o capaz de fazer frente tanto ao catoli-
magistério da Igreja e a atuação políti- afro-brasileiras” cismo quanto ao protestantismo histó-
ca. Pode-se dizer que D. João Becker, a rico, ao espiritismo e às religiões afro-
partir de sua produção intelectual (re- brasileiras.
firo-me especialmente às numerosas
Cartas Pastorais que escreveu), tentou que D. João Becker vai jogar um papel
sempre estabelecer os nexos entre a decisivo no projeto varguista nos anos
“ratio” teológica e as posições políti- 1930. Por um lado, vai defender por
cas que assumiu. Suas Cartas Pastorais completo a criação de um partido polí- Leia mais...
formam um “corpus” documental ex- tico que representava esses interesses >> Artur Cesar Isaia já concedeu outra
tremamente importante e inigualável (o Partido Republicano Rio-Grandense) entrevista à IHU On-Line. O material está dis-
em se tratando do episcopado brasi-  Partido Republicano Rio-grandense (PRR):
ponível na nossa página eletrônica (www.ihu.
unisinos.br)
leiro do período. Nelas, o arcebispo fundado em 1882, foi um partido político de
aborda uma diversidade enorme de as- motivação republicana no Estado do Rio Gran- Entrevista:
de do Sul. Recebeu e acentuou a influência po-
suntos, que iam da política partidária sitivista, caracterizando-se pela valorização da
* Vargas pôs os valores religiosos a serviço de
seu projeto político. Publicada na IHU On-Line
à saúde pública, evidenciando a pre- ordem social, a preocupação com a segurança número 111, de 16-08-2004, e disponível no link
ocupação em explicitar o magistério do Estado e do indivíduo para a obtenção do http://www.ihuonline.unisinos.br//uploads/
bem público e a consciência de serem porta-
católico frente a uma sociedade cada dores de uma missão social de “regenerar a
edicoes/1158263657.28pdf.pdf
vez mais complexa. sociedade”. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 31


Socioanálise e intervenção nas
cidades: cultivando entornos
Por Eduardo Andres Vizer*

A Modernidade gerou processos de para a formação de novos processos de


expansão espacial (ocidentalização, relacionamento social (como as redes
globalização, mundialização) e de ace- sociais), a formação e recriação de vín-
leração crescente do tempo. Tempos culos e representações de todo tipo,
regulados primeiro por relógios mecâ- assim como os sentidos e valores da
nicos, logo elétricos e finalmente por cultura, ou seja, estruturas fundamen-
meio de dispositivos cibernéticos de tais para o que chamamos de capital
controle; estes últimos não só da pro- social.
dução e da circulação dos processos Podemos dizer que nossa moderni-
econômicos, como também das rela- dade tardia se reconstrói e se mantém
ções e práticas da vida cotidiana. Te- tanto através de tecnologias como por
mos deixado de viver em ambientes meio das representações sociais que
naturais. Nossos ambientes são cons- temos sobre nossos ambientes físicos.
truídos industrialmente, mantidos e E estes são regulados tanto através de
controlados por dispositivos que geram dispositivos informacionais como sim-
uma Cultura Tecnológica. Os processos bólicos. Nossos ambientes e cidades
de informação e de comunicação estão estão construídos por meio de trabalho
transformando as relações com nossos tanto físico como intelectual, e pelos
ambientes sociais, culturais, simbó- usos que a sociedade e os indivíduos
licos e imaginários. Não somente se dão às tecnologias. Nossos entornos
transformam as realidades materiais e ambientais são “cultivados” por todos
as práticas sociais, como também nos- nós, seja de modo consciente ou in-
sas percepções do meio ambiente e da consciente. As cidades, comunidades,
realidade, mediatizadas pelos meios bairros e até nossas moradias parti-
de comunicação e por dispositivos de culares são organizadas e cultivadas
produção e acesso às informações. As – bem ou mal - pelo que fazemos nelas,
Tecnologias de Informação e Comunica- com elas e dentro delas. Cada um de
ção (TIC’s) sustentam uma infraestru- nós – ou cada família - elege o modo
tura sobre a que se constroem as bases como são organizados nossos lares e,

* Eduardo Andres Vizer, Instituto Gino Germani, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de
Buenos Aires e-mail: eavizer@gmail.com; é doutor em Sociologia. Tem quatro pós-doutorados pelas
seguintes instituições: Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, University of Massachusetts
at Amherst - UMass, Universidade de Bonn e Mc Gill University, Montréal. CNPq. categoria 1, Progra-
ma de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) Universidade Federal Rio Grande do Sul - UFRGS.
Atualmente é Professor Consultor (emérito) da Universidad de Buenos Aires - UBA, professor titular
da Universidade Nacional de La Pampa, Professor Visitante da Universidade Católica da Argentina
- UCA. É autor de nove livros.

32 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


coletivamente, até nossas cidades. que habitamos e as tecnologias dos congruência - entre o mundo “objeti-
Organizamos as moradias como culti- processos de informação e comunica- vo” e as percepções subjetivas. Uma
vamos nossos jardins: alguns os aban- ção que mediatizam as relações entre ecologia simbólica (crescentemente
donam, outros somente regam a grama os atores sociais, as instituições e as mediatizada e virtual) que recria as re-
e outros cultivam flores ou até mesmo representações simbólicas, tanto em lações entre os indivíduos e os proces-
plantas comestíveis. Mas, o segredo de nível macro social como subjetivo. So- sos coletivos em cada um dos aspectos
um bom entorno ambiental – desde o mente assim se logra dar um novo sig- e das dimensões mencionadas.
próprio lar até o bairro - encontra-se nificado e valor ao espaço geográfico Intervir sobre as dimensões de re-
no valor e no sentido que atribuímos ao que nos circunda: desde a cidade, o construção de uma comunidade a fim
que é percebido e vivido como “nos- bairro e o lar. de modificá-la, implica tomar conhe-
so”. Esse termo não implica uma posse cimento dos processos e das práticas
de objetos ou de entorno, senão uma Socioanálise, diagnóstico e que são desenvolvidas consciente ou
compreensão de que estamos perma- transformação social inconscientemente. Consciência de
nentemente construindo – cultivando - que uma comunidade está realmente
nossos ambientes. O “nosso” implica a Para iniciar um projeto de interven- “reconstruindo” de forma coletiva seus
consciência e a responsabilidade sobre ção/transformação em uma comunida- ambientes, entornos e modos de vida.
nossas ações – e inércias - na recons- de, devemos começar por saber não Para o “êxito”, é indispensável produ-
trução dos entornos. como a mesma é, mas sim como “fun- zir uma transformação nos modos de
Barbero (2008, p.18) comenta o ciona”, como se inter-relacionam seus perceber os entornos, e a própria re-
exemplo da campanha exitosa, realiza- membros e como a mesma se reproduz. lação com eles. Isto é o que propomos
da para a transformação de Bogotá por Segundo a metodologia de Socioanálise, com a metodologia de Socioanálise.
Mockus, candidato a prefeito no ano de devemos conhecer as formas de traba-
1995: “o tema de governo de Mockus lho e as práticas de uma sociedade, de Referências:
era formar cidade. Esse tema signifi- acordo com diferentes ‘dimensões’ de MARTÍN-BARBERO, Jesús. Novas visibilidades
cava três coisas: a verdadeira forma análise, a saber: a) as técnicas e tec- políticas da cidade e visualidades narrativas
de uma cidade não é dada por suas nologias (o trabalho como ação instru- da violência. In: COUTINHO, Eduardo Granja
(org.). Comunicação e contra-hegemonia: pro-
arquiteturas ou seus engenheiros, mas mental); b) a organização política se cessos culturais e comunicacionais de contes-
pelos cidadãos. Para isso, os cidadãos dá através de instituições organizadas tação, pressão e resistência. Rio de Janeiro:
devem se reconhecer na cidade. Esses tanto em forma “vertical” (poder, re- Ed. UFRJ, 2008.
VIZER, Eduardo A., La trama (in)visible de la
dois processos se apoiam um no outro, presentação e decisão); assim como c) vida social: comunicación, sentido y realidad.
para tornar visível a cidade como um formas “horizontais” de mobilização 2. ed. Buenos Aires: La Crujía, 2006. Próxima
todo, ou seja, em sua condição de es- (normas e valores de pertencimento, versão em português a ser publicada pela Edi-
tora Sulina.
paço/projeto/tarefa de todos. Buscou- igualdade e diferença); d) vínculos de _________. Midiatização e (trans)subjetividade
se mudar o foco de visão para que as afetividade e “continência” (família, na cultura tecnológica. A dupla face da socie-
deficiências deixem de ser percebidas amizade, amor e reprodução); e) Uma dade midiatizada. In: FAUSTO NETO, Antonio (org.);
GOMES, Pedro Gilberto (org.); BRAGA, J. L. (org.);
como um fato isolado e inevitável, e distribuição do espaço e das práticas FERREIRA, Jairo (org.). Midiatização e processos so-
passem a ser vistas como característica sociais em tempos regulados (trabalho, ciais na América Latina. São Paulo: Paulus, 2008.
de uma figura deformada em seu con- circulação, ócio); f) Por último, devem- __________. Investigar en comunicación. Teo-
rías y estrategias de intervención y socioanáli-
junto” (...), e foi assim que a cidade se conhecer os processos simbólicos e sis. Buenos Aires: La Crujía, (no prelo, para ser
começou a tornar-se visível, com uma imaginários pelos quais os cidadãos re- editado).
série de estratégias comunicativas de constroem as representações sociais de VIZER, Eduardo Andres . PARADIGMAS Y ESTI-
LOS DE CONOCIMIENTO. Revista Eletrônica da
ruas e lugares públicos, provocando os sua ‘ecologia’ sociocultural. Ou seja, Universidade Federal da Bahia, Bahia, p. 1 -
transeuntes a observar e ver. pesquisar a comunicação como pro- 23, 02 nov. 2005.
Devemos fazer a diferença entre as cesso fundamental onde as narrações, __________. Socioanálisis, acción colectiva e
intervención social estratégica. Savia No. 5.
tecnologias de engenharia que cons- cerimônias e rituais articulam e certi- Public. Dept. Trabajo Social. Universidad de
troem os objetos e os entornos físicos ficam a coerência – ou ao menos certa Sonora, México, 2008.

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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- Werneck Vianna, sociólogo
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- Confira nas Notícias do dia 20-08-2009
nos.br) de 18-08-2009 a 22-08-2009. “A vitória de Marina mudará o Brasil e muda as relações
do Brasil com o mundo. É um ‘efeito Obama’ muito
“É um mito contemporâneo o de que uma pílula maior”, afirma o sociólogo.
mágica soluciona tudo’’.
Entrevista com Alicia Stolkiner, psicanalista “O Cristianismo tem por vocação atender as deman-
Confira nas Notícias do dia 18-08-2009 das de forma plural e diversa”. Entrevista com Joe
As mídias noticiaram os casos de gripe A “de maneira Marçal, teólogo
alarmista e com escassa informação útil”, constata a Confira nas Notícias do dia 21-08-2009
psicanalista argentina. Segundo ela, “as epidemias são “O que me encanta na mensagem do cristianismo, pen-
fenômenos biosocioculturais. Todas devem ser com- sando na atualidade dele, é o elemento de liberdade
preendidas no contexto econômico, político e social em que ele implica e, ao mesmo tempo, de responsabili-
que ocorrem”. dade”, afirma o teólogo luterano.

Um jornalismo cidadão a favor dos hondurenhos. Lembranças vivas, feridas abertas: a punição aos tor-
Entrevista com a equipe do HablaHonduras. turadores da ditadura no Brasil
Confira nas Notícias do dia 19-08-2009 Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho, ad-
“O papel dos meios de comunicação em Honduras é o vogado
mesmo que em todo o mundo – atuar como um mecanismo Confira nas Notícias do dia 22-08-2009
de controle do governo e da sociedade”, contextualiza o O professor da Unisinos fala sobre a punição que o coro-
coletivo hondurenho no estrangeiro. nel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais tor-
turadores da época da ditadura no Brasil, pode sofrer em
Da fábrica para a selva. ‘’A candidatura Marina é uma decorrência dos crimes que cometeu num dos períodos
mutação na política brasileira’’. Entrevista com Luiz mais duros da história do nosso país.

Leia as Notícias
do Dia em
www.ihu.unisinos.br

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Eventos
Alimento: fornecedor da vida
Marcelo Fernando da Costa, professor de História da Alimentação, explica a origem
dos alimentos sagrados e proibidos das religiões monoteístas

Por Patricia Fachin e Márcia Junges

“E
m quase todas as civilizações, o alimento é um dos primeiros deuses (...). A comida
em si tem a capacidade de fornecer vida, fluido vital”, diz Marcelo Fernando da Costa,
professor de História da Alimentação e Cultura Gastronômica Internacional, da Unisi-
nos. Em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o pesquisador explica que a
percepção da comida como fornecedor da vida “determinou uma interpretação sagrada
do ato de se alimentar e dos alimentos, muitas vezes, encarnando divindades”.
Na entrevista a seguir, Costa fala da origem dos alimentos puros e impuros e diz que em tempos de
fast-food, de desintegração das relações à mesa e da percepção da comida como repositório de ener-
gias, “dotar o alimento de sua tradição simbólica permitirá e motivará uma valorização do ato de comer
e de preparar os alimentos, independentemente da religião que comunguemos”.
Marcelo Fernando da Costa é docente do curso de Gastronomia da Unisinos e atualmente está cur-
sando doutorado em História da Alimentação, na universidade.
Na próxima sexta-feira, 28-09-2009, logo após a exibição do documentário Religiões do Mundo,
haverá um momento gastronômico no Bistrô da Gastronomia, no campus da Unisinos. Trata-se de uma
parceria com o curso de Gastronomia, para a degustação de pratos e belisquetes das tradições religiosas
já apresentadas: judaísmo, cristianismo, islamismo e hinduísmo. Em 25-09-2009, acontece a degustação
de comidas das tradições das religiões chinesa, tribais e budismo. Conheça mais informações e os car-
dápios completos no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Goethe disse que “o ho- sagrada do ato de se alimentar e dos contribuiu, e muito, para a constru-
mem é aquilo que o homem come”. A alimentos, muitas vezes, encarnando ção dos hábitos alimentares da Euro-
comida, na celebração religiosa, tem divindades. Porém, em contrapartida, pa Ocidental. As cozinhas portuguesa,
um sentido tão elevado como tinha existem e existiram, animais e plan- francesa, italiana e principalmente a
para Goethe? Como podemos com- tas proibidos, profanos que poderiam espanhola se beneficiaram muito em
preender a comida do ponto de vista ter fornecido proteína animal e vege- técnicas e ingredientes da ocupação
religioso? tal a milhões de pessoas, e que, por muçulmana. O Mediterrâneo era a
Marcelo Fernando da Costa - Embo- motivos religiosos ou hermenêuticos, grande estrada, o sistema geográfico
ra a paternidade destas afirmações: que respeito, não se consumiam ou onde se produziu a globalização ali-
“somos o que comemos” ou “o homem ainda não se consomem. As pesquisas mentar na antiguidade, um intercam-
é aquilo que o homem come” sejam históricas recentes neste segmento bio fértil e profícuo que se estendeu
duvidosas, não temos dúvida da cen- tão particular e esclarecedor que é a aos continentes asiático, africano e
tralidade e da importância da alimen- Historia da Alimentação se debruçam europeu. Muitos dos vegetais, especia-
tação na vida humana, não somente e tentam explicar as proibições e sa- rias e técnicas culinárias que hoje fa-
na esfera fisiológica, mas também na crifícios, sem esquecer as implicações zem parte dos menus europeus foram
simbólica. Em quase todas as civiliza- culturais, políticas e econômicas que contribuições do mundo islâmico que
ções, o alimento é um dos primeiros intervêm nas decisões religiosas. bebeu das fontes egípcias e mesopo-
deuses ou tem um deus tutelar. O ali- tâmicas. Maomé exaltava o alimento
mento, a comida em si, tem a capaci- IHU On-Line - Quais são os alimentos como uma dádiva divina que se de-
dade de fornecer vida, fluido vital: se sagrados e proibidos do cristianismo, via degustar. O Alcorão, inicialmente
eu como, eu vivo; se não como, morro judaísmo, islamismo e o que eles re- entusiástico quanto ao vinho, passou
de inanição. Logicamente que a per- velam sobre as crenças dessas reli- a restringi-lo e acabou por proibi-lo.
cepção do alimento como fornecedor giões? A lista de interditos estendeu-se a
de vida determinou uma interpretação Marcelo Fernando da Costa - O Islã mais cinco categorias alimentares: o

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sangue, a carne putrefata, a carne de barbatanas para os aquáticos. Dife- Os que transitavam em dois elementos
porco, os alimentos com substancias rentemente dos vegetais, os animais eram espécies do mal e afastadas da
intoxicantes e os animais sacrificados se locomovem, se deslocam e, é pre- obra perfeita de Deus, e quem con-
aos ídolos ou abatidos sem observa- cisamente esta a capacidade do “ser sumisse esses alimentos, comungava
ção das regras. O vinho foi substituído vivente”: movimentar-se. São então com o mal, incorporava-o.
pelo café, que foi difundido pela or- proscritos aqueles animais aquáticos O porco é um animal que se encai-
dem mística Sufi Shadhili,com o intui- que se fixam no fundo ou nas pedras. A xa em outro tipo de proibição, já que
to de manter os fiéis acordados toda a Bíblia não cita exemplos, mas a tradi- ele locomove-se pela terra, anda e,
noite durante os cânticos. Os muçul- ção judaica proíbe todos os mariscos. portanto, respeita o elemento terra.
manos serviram também de interme- Da mesma forma, todo animal terres- Ainda tem “o casco fendido, partido
diários para a introdução do café no tre que não possui patas é declarado em duas unhas”, característico dos
mundo além das suas fronteiras. Os impuro: “Todo animal que se arrasta animais puros, porém, não rumina. No
peregrinos que vinham de lugares re- sobre a terra vos será abominável: não Gênesis, está a chave da resposta: “E
motos à Meca levavam grãos de café se comerá dele” (Levítico 11, 41). Mes- a todos os animais da terra, e a todas
no regresso. Poderíamos ainda falar da mo sendo animais que se movimentam, as aves do céu, a tudo o que se arrasta
cana-de-açúcar, das berinjelas, dos li- sobre a terra, e em que haja sopro de
mões e cítricos em geral, dos melões vida, eu dou toda a erva verde por ali-
e melancias, da romã, do açafrão, do “Cada espécie pertence mento” (Gênesis 1, 30). Os carnívoros,
espinafre e do arroz que foram intro- como se desprende desta citação, não
duzidos na Península Ibérica e Itálica a a um único elemento, foram previstos nos planos de Deus e
partir da ocupação Islâmica. são os mais impuros entre os animais
e o animal impuro é impuros. No Levítico e Deuteronômio,
Alimentos bíblicos enumeram-se as aves de rapina, que
aquele que não se alimentam de restos de outros ani-
A Bíblia, como todo livro religioso mais mortos, portanto, carnívoras. Por
oriental, é o compêndio dos compor- respeita a obra de outro lado, os bovinos e ovinos são du-
tamentos não somente religiosos, mas plamente puros, pois como ruminan-
sim políticos, alimentares, culturais Deus, que está no meio tes, só comem ervas e mastigam-na
etc. das sociedades da época. Nela de novo depois de tê-la engolido. Os
encontramos inúmeras referências à aquático e não nada, suínos, pelo contrário, não ruminam
alimentação, principalmente ao tripé e são, indistintamente, carnívoros e
do que conhecemos como Cultura gas- que é ave e não voa, herbívoros. Esta particularidade suína,
tronômica Mediterrânea: O azeite de numa sociedade que repudia a hibri-
oliveira, o vinho de videiras (em opo- que é da terra e não dez, era imperdoável.
sição ao vinho de tâmaras) e o pão de
trigo. O Antigo Testamento, por outro anda” Culinária cristã e islâmica
lado, é rico em proibições. Moisés nos
apresenta, no Levítico 11 e Deutero- O cristianismo foi, junto com o islã,
nômio 14, quais são os alimentos puros os répteis não possuem órgãos de loco- um difusor de alimentos e da cultura
e profanos. Ele não expõe nenhum mo- moção. Esta característica se percebe gastronômica mediterrânea na Europa
delo explicativo ou uma justificativa. como sendo um mal, uma maldição. No Ocidental. Distendeu as proibições ali-
capítulo que trata sobre animais puros mentares. O pão, o vinho e o azeite
Puros x impuros e impuros, as espécies são divididas estão tão presentes na liturgia católica
em três grupos: os que andam, os que quanto na cultura gastronômica medi-
As espécies que devem ser evitadas voam e os que nadam. Assim, cada es- terrânea que compõem as bases das
são as “impuras”. Explicam ainda al- pécie pertence a um único elemento, cozinhas espanhola, portuguesa, ita-
guns critérios para que se reconheçam e o animal impuro é aquele que não liana e regiões da França. Não gostaria
os animais terrestres “puros”: eles de- respeita a obra de Deus, que está no de especular hermeneuticamente so-
vem ter o casco fendido, partido em meio aquático e não nada, que é ave bre a transubstanciação, no entanto,
duas unhas e devem ruminar. Referin- e não voa, que é da terra e não anda. corpo e sangue de Cristo se vêm re-
do-se aos peixes “puros” eles devem Citamos o exemplo das aves, que per- presentados por dois alimentos: pão e
ser dotados de barbatanas e escamas. manecem mais tempo na água do que vinho. A unção do óleo de oliva, outro
Percebemos claramente uma classifi- voando, como o cisne, o pelicano e elemento central nos hábitos alimen-
cação pelos órgãos de locomoção, as as garças. O povo hebraico repelia e tares mediterrâneos, também é um
patas para os animais terrestres, as condenava a hibridez, aqueles animais alimento sagrado que na antiguidade
 Sufi Shadhili: ordem sufi fundada por Abu-l- que não respeitassem a separação, a tinha funções cosméticas, gastronômi-
Hassan ash-Shadhili no Norte da África. (Nota divisão do mundo em: água, terra e ar. cas e era utilizado como combustível.
da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 39


Em 1 Samuel 16, 13 encontramos refe- enforcado. Dionísio/Baco, ou de Ceres, a Deusa
rências. A unção de óleo é considera- Não podemos deixar de mencionar da agricultura e do próprio óleo de
da como ato direto de Deus: “Samuel a relevância da Igreja Católica e, prin- oliveira que era considerado um fluido
tomou o corno de óleo e ungiu-o no cipalmente dos mosteiros e abadias divino, sagrado e mágico. O Mediterrâ-
meio dos seus irmãos. E a partir da- que após a derrocada do Império Ro- neo atuou como a grande artéria que
quele momento, o Espírito do Senhor mano manteve a estrutura e unidade colocou em contato diversas culturas
apoderou-se de David”. Tanto a Igreja gastronômica mediterrânea plantando e difundiu uma estrutura alimentar
Católica quanto a Anglicana despreza- videiras, cereais e oliveiras por toda que posteriormente foi reforçada tan-
ram ostensivamente os escrúpulos so- Europa. Muitas das famosas regiões to pela Igreja Católica quanto pelos
bre tabus alimentares. Por outro lado, vinícolas da França, da Espanha, Por- muçulmanos. O pão branco de trigo se
percebemos uma obsessão alimentar tugal e Itália foram plantadas pelos impôs, mesmo depois da queda do Im-
(a Última Ceia, o pão, os peixes e a monges e, em várias regiões do que pério Romano e da subsequente inva-
transubstanciação), porém eram im- hoje é Alemanha, onde a uva, por mo- são bárbara do pão preto de centeio.
placáveis nos jejuns. O jejum impli- tivos climáticos não vingava, estabe- O vinho continuou sendo a bebida pre-
cava na abstenção da carne, também leceram-se os mosteiros cervejeiros. ferida nos países conquistados pelos
a outros produtos de origem animal Os monges beneditinos de Weihenste- povos do norte e o consumo de azeite
como os ovos, manteiga, queijo, leite phan foram os primeiros a receber, ofi- de oliveira não foi substituído por ou-
e a restrição do consumo de uma refei- cialmente, a autorização profissional tras gorduras vegetais ou animais que
ção diária. Isto se fazia regularmente para fabricação e venda da cerveja, os germanos utilizavam. A unidade e
durante a Quaresma (Quadragésima, em 1040 d.C, e produzem e exportam manutenção da Igreja Católica, mes-
os 40 dias entre a Quarta-Feira de Cin- cerveja até os dias de hoje. mo depois da derrocada do Império,
zas e a Páscoa) e os 30 dias do Adven- foram de fundamental importância
to, antes do Natal – meses de Inverno IHU On-Line - Quais são as peculia- para a manutenção dos hábitos ali-
em que não havia muita carne para ridades da comida cristã? O senhor mentares mediterrâneos e da própria
pôr na mesa. Além disso, as quartas e pode nos falar da história de alguns estrutura religiosa.
sextas-feiras eram também reservadas alimentos que fazem parte do ritual O estudo da dimensão religiosa do
para o jejum. Devemos considerar que religioso? alimento e da comensalidade nos per-
a maioria das dietas achava-se restrita Marcelo Fernando da Costa - Des- mite descobrir a centralidade do ali-
durante 150 dias, aproximadamente. tacaria o pão, o vinho e o azeite de mento e dos hábitos alimentares na es-
As penalizações eram severas e, na oliveira, que são elementos centrais fera humana. Em tempos de fast-food,
Inglaterra, antes que Henrique VIII no cristianismo e em toda a região de serialização e homogeneização, da
rompesse com o Vaticano, o homem mediterrânea. Mas sua importância e desintegração das relações à mesa e
que comesse carne na sexta-feira era simbologia vêm desde a antiguidade. da percepção do alimento como repo-
Foram os egípcios e mesopotâmicos sitório de energias para o trabalhador,
 Henrique VIII Tudor (1491-1547): rei da In-
glaterra de 21 de abril de 1509 até sua morte.
que desenvolveram a tecnologia para dotar o alimento da sua tradição sim-
Em seu reinado destaca-se a ruptura com a produzir estes alimentos há milhares bólica permitirá e motivará uma valo-
Igreja Católica Romana e seu estabelecimento de anos. Os gregos e romanos incor- rização do ato de comer e de preparar
como líder da Igreja Anglicana, a dissolução
dos monastérios, e a união da Inglaterra com
poraram os hábitos alimentares das os alimentos, independentemente da
Gales. (Nota da IHU On-Line) antigas civilizações: seja na figura de religião que comunguemos.

>> Confira outros eventos do IHU nesta semana

26 de agosto
Sala de Leitura 27 de agosto
Apresentação e debate do livro: IHU Ideias
A crítica da religião Sociedades sustentáveis no contexto do acirramento
De autoria do Prof. Dr. Urbano dos conflitos socioambientais
Zilles Palestrante: MS Lucia Schild
Horário: Das 17h30min às 19h Ortiz – Núcleo Amigos da Ter-
Local: Sala 1G119 – IHU ra/Brasil
Horário: Das 17h30min às 19h
Local: Sala 1G119 – IHU

40 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


Personalidades
Paul Valadier
Por Patrícia Fachin | Tradução Susana Rocca e Luciana Cavalheiro

A
partir desta edição, a IHU On-Line apresenta uma nova editoria, Personalidades,
na qual irá entrevistar pesquisadores que visitam o IHU durante o ano, participan-
do de simpósios e palestras especiais. Nesta semana preparamos uma entrevista
especial com Paul Valadier, jesuíta e professor de Filosofia Moral e Política nas
Faculdades Jesuítas de Paris - Centre Sèvres. Ele já visitou a Unisinos em outros
momentos e esteve novamente no Brasil para participar do colóquio A ética da psicanálise.
Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”?
A voz serena e a paciência revelam a face de um homem que têm esperança na humanidade,
acredita em Deus, ama a arte e, embora solitário, busca aproveitar todos os instantes da vida.
No trajeto de São Leopoldo a Porto Alegre, na manhã do dia 15-8-2009, com disposição e bom hu-
mor, o filósofo francês conversou com a IHU On-Line e contou pontos marcantes de sua trajetória
pessoal, falou de sua rotina em Paris, sonhos, e alguns dilemas da sociedade. Confira.

IHU On-Line – O senhor pode nos con- a adultos que tinham medo. suíta, tive professores notáveis que co-
tar um pouco de sua história, onde nheciam admiravelmente Hegel, Marx,
nasceu e lembranças de sua infância? IHU On-Line – De onde surgiu o inte- Heidegger, Kant, muito abertos à Bíblia.
Paul Valadier - Nasci em uma cidade resse de ingressar na Companhia de E, isto, para um homem de 25, 30 anos
industrial que se chama Saint-Etienne, Jesus? Pode nos contar sobre sua tra- é algo fascinante pela vitalidade intelec-
perto de Lyon, mais ou menos no centro jetória como jesuíta? tual. O Concílio foi um grande momento
da França. Meu pai era doceiro e con- Paul Valadier - Enquanto eu estava no de alegria, de formação intelectual ex-
feiteiro. Sou filho único. Nasci antes da ensino médio, era militante da Jeunesse traordinária e que parecia uma vanta-
Segunda Guerra Mundial e uma de mi- Étudiante Chrétienne - J.E.C.(Juventude gem para a Igreja.
nhas lembranças é a ausência do meu Estudantil Cristã), um movimento de
pai durante três anos e os bombardeios ação católica de jovens. Esse movimento IHU On-Line – Como é seu dia-a-dia
em minha cidade. Ele estava envolvido foi muito importante para mim, pois me em Paris? Conte-nos um pouco de
com a guerra na Alemanha e, quando ensinou a ter responsabilidade na escola sua rotina.
foi mobilizado, eu tinha seis anos e não e na Igreja. Além do mais, ensinou mui- Paul Valadier - Tenho o cotidiano de um
compreendia bem o que estava aconte- tos jovens, meninos e meninas, a terem trabalhador intelectual. O trabalho inte-
cendo, mas via a minha mãe e minhas responsabilidade com a cidade. Então, lectual supõe reflexão, leituras. É claro
tias chorarem porque seus maridos par- foi a partir disso que me interroguei para que discuto ideias com outros pesquisa-
tiam para a guerra. Lembro-me também saber qual era a minha vocação. Após ter dores, mas, antes disso, trabalho em mi-
que um dia recebemos um telegrama hesitado, pensei que ter responsabilida- nha sala, nas bibliotecas, escrevendo; é
dizendo que meu pai havia desapare- de com a Igreja era o que Deus queria uma atividade bastante solitária. Então,
cido. Pensamos que ele estava morto. de mim. Então, como gostava muito do sem querer dizer coisas extraordinárias,
Na verdade ele era prisioneiro no caos trabalho intelectual e acreditava que a é um trabalho austero. Além disso, tam-
da guerra. Mas soubemos alguns meses Igreja precisava refletir um pouco sobre bém sou responsável pela preparação
depois que ele estava vivo. De qualquer esse assunto, que havia necessidade de de alguns cursos, seminários. Como sou
modo, ele retornou para casa quando eu formar intelectualmente leigos, optei professor emérito, tenho menos conta-
já tinha quase dez anos. pelos jesuítas que me pareciam mais to e responsabilidade em relação aos
Entre as memórias engraçadas, lem- orientados para o trabalho intelectual. estudantes. A vantagem é que encontro
bro que descia com outras crianças Paris foi para mim, em minha juventu- pessoas, converso sobre várias questões
nos porões durante a noite. Para nós, de religiosa, um lugar extraordinário de e isto é, evidentemente, apaixonante.
esse era um momento de brincadeira vitalidade intelectual antes e depois do Mas, mesmo assim, é uma vida menos
muito agradável e engraçado em meio Concílio Vaticano II. Como estudante je- ativa se comparada à atividade de um

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 41


padre em uma paróquia, que encontra pessoas, compreender o que está
jovens, casais, pessoas em luto etc. Fico acontecendo. Mas a vida também é
um pouco isolado. Mas acho esta vida difícil quando se tem sofrimentos,
completamente apaixonante. incompreensões, quando se está
envelhecendo. Nem sempre é fácil
IHU On-Line – Além de se dedicar a envelhecer. Mas eu adoro a vida. É
pesquisas, o que o senhor gosta de por isso que creio em Deus, pois Ele
fazer nos momentos de lazer? é a vida, é o amor em cada instan-
Paul Valadier - Pratico esportes, faço te. Estudei muito Nietzsche e um de
natação. Também adoro caminhar, pois seus propósitos é o de dizer sim à
Paris é uma cidade muito bela. Digo sem riqueza do instante. Tento continuar
orgulho, mas é muito bonita. Caminhar jovem, apesar de tudo. Nem sempre
é uma atividade muito relaxante, apesar é fácil dizer sim; há o sofrimento, a
da poluição. Como gosto de artes, adoro derrota.
ir a museus, a exposições, ao cinema, às
vezes ao teatro, ouvir música. Adoro as IHU On-Line – Como o senhor vê a
artes. Acho que são muito importantes. Companhia de Jesus ao longo des- >> Paul Valadier com Susana Rocca,

E, em Paris se tem muitas oportunida- ses anos? no evento a Ética da Psicanálise


des: o Louvre, o museu d’Orsay, as expo- Paul Valadier - Hoje estamos um sáveis políticos. Começou-se a construir
sições todos os anos. Tudo é pretexto! pouco na situação inversa a do Concílio a Europa pelo lado econômico, o que era
do Vaticano II. A Igreja não soube tirar bom, mas, não se consegue construí-la
IHU On-Line – Quais são seus sonhos? partido das consequências do Concílio no plano político. Poder-se-ia dizer da
Paul Valadier - Tenho muitos. Mas, com e, agora, tenta se fechar em si mesma, Europa atual o que se disse por muito
a idade, tento compreender o que pos- sufocar o trabalho intelectual. Em todo tempo na Alemanha Federal: é um gi-
so fazer no limite de minhas capaci- o caso, ela não o torna fácil. E a Com- gante econômico, mas um anão político.
dades. Então, diminuem-se os sonhos, panhia, ao menos na Europa, está bas- A Europa poderia desempenhar um papel
embora continue ativo. Tento continu- tante enfraquecida, pois temos poucas de intermediador gigante no mundo, por
ar escrevendo, desenvolvendo obras in- vocaççoes. Quando os jovens não estão exemplo, no Oriente Médio. Mas, está
telectuais, se possível, estar presente integrados, a vitalidade desaparece. fraca e, infelizmente, impotente, acre-
na mídia, concedendo entrevistas em São os jovens que trazem ideias novas, dito. Impotente. Sou contrário ao alar-
rádios, na televisão, mostrando uma algumas vezes incômodas, mas neces- gamento para 27 países, sem falar de
Igreja aberta. É um sonho modesto, sárias de se escutar. Bom, uma vez que outros, porque a Europa está se tornan-
mas, creio que acessível, necessário, eles não estão, encontramo-nos enfra- do ingovernável. É uma imensa adminis-
na medida do possível. quecidos. Todavia, a Companhia está tração dominada por burocratas. Então,
viva na Ásia, na Índia. Recebemos em os povos da Europa não se reconhecem,
IHU On-Line – Que filme o senhor assis- Paris jovens jesuítas indianos que são infelizmente, nesta Europa.
tiu e recomenda para nossos leitores? homens muito notáveis. Então, se a
Paul Valadier - Recomendo os filmes de Companhia se enfraquece na Europa, IHU On-Line – Em sua opinião, a hu-
Charlie Chaplin. São filmes sobre a so- pode-se esperar que na Ásia, na África manidade se encaminha para um fu-
ciedade moderna, sobre o risco de auto- ou quem sabe aqui, na América Latina, turo próspero?
ritarismo, a mecanização. São ao mesmo ela continue viva. Mas a situação hoje Paul Valadier - Creio que será difícil.
tempo engraçados e muito profundos. é muito difícil. Mas não sou pessimista. Alguns dizem
Penso que é uma grande lição de huma- que a presença terrorista vai dominar,
nidade que nos é dada. Teria vários ou- IHU On-Line – A Europa ainda repre- vai faltar matéria-prima, o planeta vai
tros filmes. Mas é Chaplin que nos ajuda senta um berço de formação política superaquecer. Não creio nestes discur-
a compreender um pouco as coisas e a e intelectual para o Ocidente? sos. Porém, não quero dizer com isso
rir. Eu diria que conseguiríamos transfor- Paul Valadier - Para homens da minha que não devemos abrir os olhos para os
mar o mundo se ríssemos mais. Rir do geração, a construção da Europa, da perigos. Fomos uma geração inconscien-
mundo; não levá-lo a sério demais. Os União Européia foi uma maravilhosa te da devastação do planeta, por exem-
ditadores nunca são sérios; são cômicos. utopia após a Segunda Guerra Mundial. plo. Então, é preciso que reflitamos para
É por isso que Chaplin teve razão em fa- Era a ideia de reconciliação entre países não dar às gerações futuras um mundo
zer de Hitler um palhaço. que lutaram muito entre si e a ideia de no qual é impossível de se viver, seja em
fazer um espaço de liberdade, de pros- nível de meio ambiente, seja em nível
IHU On-Line – O que o senhor tem a peridade econômica e de paz. Infeliz- político, as tensões entre, por exemplo,
dizer sobre a vida? mente, creio que este belo projeto está o Islã e o Ocidente. Mas, creio muito que
Paul Valadier - Posso lhe dizer que a em perigo, em particular, por causa do os homens podem se recuperar. Que o
vida me apaixona. Adoro viver. Encon- alargamento da Europa e pela ausência Espírito Santo não os abandone.
tro muita alegria em conversar com as de unidade política da parte dos respon-
42 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305
Sala de Leitura

>> A batalha da mídia

“Estou lendo A batalha >> Inês da minha alma!


da mídia, de Dênis de Mora-
es. Tento entender como um “Não deixem de ler Inês da
intelectual do seu porte vê minha alma! O título poético
‘letargia’ no processo de de- dado por Isabel Allende ao ro-
mocratização da comunicação no Brasil (onde se prepara mance escrito em 2006 revela a
uma Conferência Nacional) e dinamismo na América La- sensibilidade com que a autora
tina (onde predominam ações estatais). Também busco chilena reconstitui a história de
subsídios para compreender como, da sua visão analítica, uma jovem e humilde costurei-
brota o seu apoio ao movimento ‘mídia livre’, cujo slogan ra espanhola que alterou para
mais recente é (inacreditavelmente) sempre seu destino, ao partir
‘Nós somos a mídia’”. para a América em busca do marido, no ano de 1537.
Recorrendo a documentos e aos cronistas da época da
Prof. Dr. Pedro Luiz S. Osório, professor conquista, Isabel constrói a personagem Inês como uma
na Unidade de Ciências da Comunicação mulher inquieta que se tornaria exemplo de sabedoria,
da Unisinos determinação e coragem no episódio da conquista e
fundação do Chile. Ao lado de Pedro de Valdívia e Ro-
drigo Quiroga, homens com quem dividiria seus sonhos
e paixões, Inês enfrentou não apenas a paisagem árida,
>> Educação e democracia os indígenas Mapuche, as epidemias e a fome, mas,
>> Escolas democráticas principalmente, os preconceitos próprios de uma so-
ciedade de padrões morais rígidos como a seiscentista.
“Em função do Grupo de Estu- A história desta extraordinária mulher resgata as de
dos sobre Democracia e Edu- muitas outras que guiadas pelo destino ou movidas pela
cação, que temos na Univer- aventura – ou pelo amor – tiveram papel fundamental
sidade, estou retomando a na conquista e colonização da América”.
leitura de vários autores como
John Dewey, Tocqueville, Pla- Profa. Dra. Eliane Fleck, professora da Gra-
tão e Rousseau. Todos eles duação e do PPG em História da Unisinos
podem nos oferecer aborda-
gens importantes sobre essa
temática, instigando nossa pesquisa e debate. Em especí-
fico, menciono as obras Educação e democracia, de John
Dewey, e Escolas democráticas, de Michael Apple, total- >> O que você está lendo? Comparti-
mente pertinentes ao recorte que estamos lhe uma dica de leitura com a IHU
trabalhando”. On-Line. Professores e funcionários
da universidadade podem escrever
Profa. Dra. Rute Baquero, professora no PPG em
Educação e no curso de Pedagogia da Unisinos
para ��������������������
mjunges@unisinos.br
Destaques
A gastronomia das religiões no mundo
Na próxima sexta-feira, 28-09-2009, logo após a
exibição do documentário Religiões do Mundo,
haverá um momento gastronômico no Bistrô da
Gastronomia, no campus da Unisinos. Trata-se de
uma parceria com o curso de Gastronomia, para a
degustação de pratos e belisquetes das tradições
religiosas já apresentadas: judaísmo, cristianismo,
islamismo e hinduísmo. Em 25-09-2009, acontece
a degustação de comidas das tradições das re-
ligiões chinesa, tribais e budismo. Conheça mais
informações e os cardápios completos no sítio do
IHU (www.ihu.unisinos.br). Sobre o tema, leia
também a entrevista com Marcelo Fernando da
Costa, docente do curso de Gastronomia da Unisi-
nos, publicada nesta edição.

Sociedades sustentáveis e os conflitos socioambientais


O próximo encontro do evento IHU Ideias, promovido semanalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos
- IHU, acontece dia 27 de agosto, das 17h30min às 19h, na sala 1G119 do IHU. Na ocasião, a MS Lucia Schild
Ortiz, do Núcleo Amigos da Terra/Brasil, abordará o tema “Sociedades sustentáveis no contexto
do acirramento dos conflitos socioambientais”. Acesse o sítio www.ihu.unisinos.br e obtenha mais
informações.

A crítica da religião
E na quarta-feira, dia 26 de agosto, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU re-
toma o evento Sala de Leitura, com a apresentação e debate sobre o livro
A crítica da religião, conduzido pelo próprio autor da obra Prof. Dr. Urbano
Zilles, da PUCRS. O evento acontece das 17h30min às 19h, na sala 1G119 do
IHU. Acesse o www.ihu.unisinos.br e saiba como participar.
Apoio:

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