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Folha de S.Paulo - Sobre santos e demônios - 10/02/2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1002200806.

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São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008


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Sobre santos e demônios


O PROFESSOR DE HARVARD INVESTIGA POR QUE AS
REPUTAÇÕES MORAIS DE PERSONALIDADES COMO
MADRE TERESA DE CALCUTÁ E BILL GATES ESTÃO
TÃO EM DESACORDO COM O BEM QUE
PRATICARAM

Albert Gea - 5.ago.2003/Reuters

Meninas
se
abraçam
em fonte
de
Barcelona,
na
Espanha

STEVEN PINKER

Qual das seguintes pessoas é a mais admirável? Madre Teresa,


Bill Gates ou Norman Borlaug? E qual é a menos admirável?
Para a maioria das pessoas é uma pergunta fácil. Madre Teresa,
famosa por socorrer os pobres em Calcutá, foi beatificada pelo
Vaticano, recebeu o Prêmio Nobel da Paz e se classificou em
uma pesquisa americana como a pessoa mais admirada do século
20.
Bill Gates, infame por nos dar o clipe de papel dançante da
Microsoft e a tela azul da morte, foi decapitado simbolicamente
em websites "Eu Odeio Gates" e atingido com uma torta no rosto.
Quanto a Norman Borlaug... quem é ele?
Mas um exame mais profundo poderá levá-lo a reavaliar suas
respostas. Borlaug, pai da "Revolução Verde", que usou a ciência
agrícola para reduzir a fome mundial, recebeu o crédito por
salvar 1 bilhão de vidas, mais que qualquer outra pessoa na
história.
Gates, ao decidir o que fazer com sua fortuna, calculou bem e

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decidiu que podia aliviar mais sofrimento combatendo pragas


comuns no mundo em desenvolvimento, como malária, diarréia e
parasitas.
Madre Teresa, por sua vez, enalteceu a virtude do sofrimento e
dirigiu suas bem financiadas missões apropriadamente: seus
doentes recebiam muitas orações, mas condições exíguas, poucos
analgésicos e tratamentos médicos perigosamente primitivos.

Lei íntima
Não é difícil entender por que as reputações morais desses três
estão tão em desacordo com o bem que praticaram.
Madre Teresa foi a própria personificação da santidade: vestida
de branco, olhar triste, ascética e freqüentemente fotografada com
os miseráveis da Terra. Gates é o mais nerd dos nerds e o homem
mais rico do mundo, com a mesma probabilidade de entrar no
paraíso quanto o proverbial camelo espremido no buraco da
agulha.
E Borlaug, aos 93 anos, é um agrônomo que passou a vida em
laboratórios e instituições sem fins lucrativos, raramente
aparecendo no palco da mídia e, logo, em nossa consciência.
Duvido que esses exemplos convençam alguém a preferir Bill
Gates a Madre Teresa para santificação.
Mas eles mostram que nossas cabeças podem ser atraídas por
uma aura de santidade, distraindo-nos de uma identificação mais
objetiva dos atos que fazem as pessoas sofrerem ou florescerem.
Parece que talvez sejamos todos vulneráveis a ilusões morais.
Hoje, um novo campo está usando as ilusões para desmascarar
um sexto sentido, o senso moral. As intuições morais estão sendo
extraídas das pessoas em laboratórios, em websites e em
escaneadores cerebrais e estão sendo explicadas com ferramentas
da teoria dos jogos, da neurociência e da biologia evolucionária.
"Duas coisas enchem a mente de admiração e respeito sempre
renovados e crescentes, quanto mais freqüente e constantemente
refletimos sobre elas", escreveu o filósofo alemão Immanuel
Kant. "Os céus estrelados no alto e a lei moral no íntimo." Hoje
em dia, a lei moral íntima está sendo vista com crescente respeito,
embora nem sempre com admiração.
Se a moral é um mero truque do cérebro, como temem alguns,
nossas próprias bases para sermos morais poderiam ser erodidas.
Mas, como veremos adiante, a ciência do senso moral pode ser
vista como uma maneira de reforçar essas bases, esclarecendo o
que é a moral e como ela deve conduzir nossas ações.

A tecla da moralização
É a atitude mental que nos faz considerar certos atos imorais, e
não meramente desagradáveis, fora de moda ("calças
boca-de-sino já eram") ou imprudentes ("não coce picadas de
mosquito").
A primeira característica da moralização é que as regras que ela
invoca são consideradas universais. As proibições ao estupro e ao
assassinato, por exemplo, não são consideradas questões de
costume local, mas algo universal e objetivamente sancionado.
A outra característica é que as pessoas sentem que quem comete
atos imorais merece ser punido.

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Todos sabemos como é quando o "botão" da moralização é


acionado dentro de nós -o fulgor virtuoso, a ira flamejante, o
ímpeto de recrutar outros para a causa. O psicólogo Paul Rozin
estudou esse botão comparando dois tipos de pessoas que têm o
mesmo comportamento, mas com regulagens diferentes do botão.
Certos vegetarianos evitam comer carne por razões práticas,
como reduzir o colesterol e evitar toxinas. Os vegetarianos
morais evitam a carne por razões éticas, para não serem
cúmplices com o sofrimento dos animais.
Mesmo quando as pessoas concordam que um resultado é
desejável, podem discordar sobre se ele deve ser tratado como
uma questão de preferência e prudência ou como uma questão de
pecado e virtude.
Rozin nota, por exemplo, que o hábito de fumar foi moralizado
ultimamente. Até pouco tempo atrás, compreendia-se que
algumas pessoas não gostavam de fumar ou o evitavam porque
era prejudicial à saúde. Mas, com a descoberta dos efeitos
nocivos do tabagismo passivo, hoje fumar é tratado como algo
imoral.
Muitas dessas moralizações, como o ataque ao tabagismo, podem
ser entendidas como táticas práticas para reduzir um mal
recém-identificado. Mas, se uma atividade liga nossos botões
mentais no modo "moral", não é só uma questão do mal que ela
provoca. Comer um Big Mac é falta de escrúpulos, mas não
queijo importado ou crème brûlée.
O motivo desses critérios duplos é óbvio: as pessoas tendem a
alinhar sua moralização com seus próprios estilos de vida.

Razão e racionalização
Não é apenas o conteúdo de nossos julgamentos morais que
muitas vezes é questionável, mas o modo como chegamos a eles.
Gostamos de pensar que há boas razões que nos levam a adotar
nossas convicções.
É por isso que uma abordagem mais antiga da psicologia moral,
conduzida por Jean Piaget e Lawrence Kohlberg, tentou
documentar as linhas de raciocínio que levavam as pessoas a
conclusões morais. Mas considere estas situações abaixo,
originalmente imaginadas pelo psicólogo Jonathan Haidt.
Julie está viajando pela França, durante as férias de verão da
faculdade, com seu irmão Mark. Certa noite eles decidem que
seria interessante e divertido se experimentassem fazer amor.
Julie já tomava pílulas anticoncepcionais, mas, para ter mais
segurança, Mark também usa uma camisinha. Ambos apreciam o
sexo, mas decidem não repetir.

As pessoas, em geral, não se


dedicam a um raciocínio moral, mas
à raciona-lização moral: começam
pela conclusão, gerada por uma
emoção inconsciente, e, então,
recuam até uma justificativa
plausível

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Fazem daquela noite um segredo especial, o que os torna ainda


mais próximos. O que você acha disso -foi certo eles fazerem
amor?
Uma mulher está limpando o armário e encontra sua velha
bandeira dos EUA. Ela não quer mais a bandeira, então a corta
em pedaços e usa os trapos para limpar o banheiro.
O cachorro de uma família é morto por um carro na frente da
casa. Eles ouviram dizer que carne de cachorro é deliciosa, então
cortam o animal em pedaços, o cozinham e o comem no jantar.
A maioria das pessoas imediatamente declara esses atos errados e
depois tenta justificar por que são errados. Não é tão fácil. No
caso de Julie e Mark, as pessoas levantam a possibilidade de
filhos com defeitos de nascença, mas elas se lembram de que o
casal foi cauteloso sobre a contracepção.
Elas sugerem que os irmãos ficarão emocionalmente magoados,
mas a história deixa claro que não ficaram. Elas alegam que o ato
ofenderia a comunidade, mas então lembram-se de que foi
mantido em segredo. Afinal as pessoas admitem: "Não sei, não
consigo explicar, só sei que é errado".
As pessoas, em geral, não se dedicam a um raciocínio moral,
afirma Haidt, mas à racionalização moral: começam pela
conclusão, gerada por uma emoção inconsciente, e, então, recuam
até uma justificativa plausível.
A lacuna entre as convicções das pessoas e suas justificativas
também é visível no novo playground favorito dos psicólogos
morais, uma experiência com o pensamento criada pelas filósofas
Philippa Foot e Judith Jarvis Thomson, chamada o Problema do
Bonde.
Em sua caminhada matinal, você vê um bonde correndo nos
trilhos, com o condutor caído sobre os controles. No caminho do
bonde, há cinco homens trabalhando nos trilhos, alheios ao
perigo. Você está parado numa bifurcação dos trilhos e pode
puxar uma alavanca que desviará o bonde para um ramal,
salvando os cinco homens.
Nesse caso, infelizmente, o bonde atropelaria um único homem
que está trabalhando no ramal. É permissível acionar a alavanca,
matando um homem para salvar cinco?
Quase todo mundo diz "sim".
Agora imagine uma cena diferente. Você está numa ponte
olhando para os trilhos e avistou o bonde desgovernado
aproximando-se dos cinco trabalhadores. Agora, o único modo de
deter o bonde é atirar um objeto pesado em seu caminho. E o
único objeto pesado próximo é um homem gordo parado ao seu
lado. Você deve atirar o homem da ponte?

Cinco vidas por uma


Ambos os dilemas apresentam a opção de sacrificar uma vida
para salvar cinco e, portanto, pelo padrão utilitário de qual seria o
melhor resultado para o maior número de pessoas, os dois
dilemas se equivalem moralmente.
Mas a maioria das pessoas não vê a coisa assim: mesmo que
puxassem a alavanca no primeiro dilema, não atirariam o homem
gordo no segundo. Quando pressionadas a dar um motivo, elas
não encontram nenhum coerente, mas filósofos morais também

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não encontraram com facilidade uma diferença relevante.


Joshua Greene, um filósofo e neurocientista da cognição, sugere
que a evolução dotou as pessoas de uma repulsa a manipular uma
pessoa inocente.
Por si só, essa seria apenas uma história plausível, mas Greene
uniu-se ao neurocientista da cognição Jonathan Cohen e vários
colegas de Princeton para examinar os cérebros de pessoas
usando ressonância magnética funcional.
Eles buscaram sinais de conflito entre áreas do cérebro
associadas à emoção (as que se recusam a ferir alguém) e áreas
dedicadas à análise racional (as que calculam vidas perdidas e
salvas).
Quando as pessoas avaliavam dilemas que exigiam matar alguém
com suas próprias mãos, várias redes em seus cérebros se
acendiam.
Uma delas está envolvida nas emoções sobre outras pessoas.
Uma segunda foi relacionada à atividade de computação mental
(incluindo raciocínio não-moral, como decidir viajar de avião ou
de trem). E uma terceira região registra um conflito entre o
impulso que vem de uma parte do cérebro e a avaliação que vem
de outra parte.
Mas, quando as pessoas analisavam um dilema sem intervir,
como desviar o bonde para o ramal com um único trabalhador, o
cérebro reagia de modo diferente: apenas a área envolvida no
cálculo racional se destacava.
Outros estudos mostraram que pacientes neurológicos que têm as
emoções embotadas devido a danos aos lobos frontais se tornam
utilitaristas: acham totalmente sensato atirar o homem gordo da
ponte. Juntas, as descobertas corroboram a teoria de Greene,
segundo a qual nossas intuições não-utilitárias vêm da vitória de
um impulso emocional sobre uma análise de custo-benefício.
As conclusões da "bondeologia" -intuições morais complexas,
instintivas e mundiais- levaram Hauser e John Mikhail (um
acadêmico de direito) a reavivar uma analogia do filósofo John
Rawls entre o senso moral e a linguagem.
Segundo Noam Chomsky, nascemos com uma "gramática
universal" que nos força a analisar o discurso em termos de sua
estrutura gramatical, sem termos uma consciência real das regras
do jogo. Por analogia, nascemos com uma gramática moral
universal que nos força a analisar a ação humana em termos de
sua estrutura moral, igualmente sem uma real consciência disso.
O senso moral, portanto, pode estar enraizado no projeto do
cérebro humano normal.
Mas, apesar de toda a admiração que pode invadir nossas mentes
quando refletimos sobre uma lei moral inata, a idéia é no mínimo
incompleta.
Considere este dilema moral: um bonde desgovernado está
prestes a matar uma professora. Você pode desviar o bonde para
um ramal secundário, mas o bonde acionaria um botão que
mandaria um sinal para uma classe de crianças de seis anos
autorizando-as a dar o nome de Maomé a um ursinho de pelúcia.
Isso não é uma piada.
Em novembro, uma mulher britânica que era professora em uma
escola particular no Sudão permitiu que sua classe batizasse um

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ursinho de brinquedo com o nome do menino mais popular da


classe, que era homônimo do fundador do islamismo. Ela foi
presa por blasfêmia e ameaçada de açoitamento em público,
enquanto uma multidão diante da prisão exigia sua morte.
Para os manifestantes, a vida da mulher claramente tinha menos
valor do que enfatizar a dignidade de sua religião, e o julgamento
deles sobre o acerto de desviar o bonde seria diferente do nosso.
Qualquer que seja a gramática que conduz os julgamentos morais
das pessoas, não pode ser tão universal.

Senso universal
Quando antropólogos como Richard Shweder e Alan Fiske
estudam preocupações morais ao redor do mundo, descobrem que
alguns temas freqüentemente se destacam em meio à diversidade.
Pessoas de todos os lugares, pelo menos em certas circunstâncias
e tendo em mente certas pessoas, acham que é errado ferir os
outros e certo ajudá-los.
Elas têm um senso de justiça; valorizam a lealdade a um grupo, o
intercâmbio e a solidariedade entre seus membros e a
conformidade a suas normas. Acreditam que é certo obedecer às
autoridades legítimas e respeitar as pessoas em posição elevada.
E exaltam a pureza, a limpeza e a santidade, enquanto desprezam
a degradação, a contaminação e a carnalidade.
O número exato de temas depende de você ser um agregador ou
um divisor, mas Haidt conta cinco -agressão, justiça, comunidade
(ou lealdade ao grupo), autoridade e pureza- e sugere que essas
são as cores primárias de nosso senso moral. Não apenas
reaparecem em pesquisas entre diversas culturas, como cada uma
se liga às intuições morais das pessoas de nossa própria cultura.

Pureza e violação
Assim, a violação da comunidade fez pessoas rejeitarem a idéia
de usar uma velha bandeira para limpar um banheiro. A violação
da pureza repeliu as pessoas que julgaram a moralidade do
incesto consensual e impediu que os vegetarianos e os
não-fumantes tolerassem o menor vestígio de um elemento
contaminador.
No outro extremo da escala, demonstrações de extrema pureza
levam as pessoas a venerar líderes religiosos que se vestem de
branco e adotam uma aura de castidade e ascetismo.
As cinco esferas são boas candidatas a uma tabela periódica do
senso moral, não só por serem ubíquas, mas também porque
parecem ter profundas raízes evolucionárias.
O impulso de não fazer mal, que faz os avaliadores do bonde
recuarem quando pensam em atirar o homem da ponte, também
pode ser encontrado em macacos resos, que preferem passar fome
a puxar uma corrente que lhes proporciona comida, mas também
causa um choque em outro macaco.
O respeito à autoridade está claramente relacionado à hierarquia
de dominação e aceitação generalizada no reino animal. O
contraste pureza-devassidão está ligado à emoção de repulsa
provocada por potenciais vetores de doenças, como eflúvios
corporais, carne em decomposição e formas não convencionais de
carne e por práticas sexuais arriscadas, como o incesto.

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As duas outras esferas moralizadas se equiparam aos exemplos


clássicos de como o altruísmo pode evoluir, trabalhados pelos
sociólogos nos anos 1960 e 70 e que se tornaram famosos com o
livro de Richard Dawkins "O Gene Egoísta" (Cia. das Letras).
A justiça é muito próxima do que os cientistas chamam de
altruísmo recíproco, em que a disposição a ser bom para os outros
pode evoluir desde que o favor ajude o receptor mais do que
custa ao doador e o receptor retribua o favor quando as fortunas
se inverterem.
A análise faz parecer que o altruísmo recíproco sai de um cálculo
robótico, mas na verdade o biólogo Robert Trivers, que criou a
teoria, afirmou que ele é implementado no cérebro como um
conjunto de emoções morais. A simpatia leva uma pessoa a
oferecer o primeiro favor, especialmente para alguém necessitado
para o qual seria mais útil.
A raiva protege uma pessoa de trapaceiros que aceitam favores
sem retribuir, levando-a a punir o ingrato ou a interromper o
relacionamento. A gratidão impele o beneficiário a recompensar
os que o ajudaram no passado. A culpa leva o trapaceiro sob risco
de ser descoberto a reparar o relacionamento compensando sua
má ação e avisando que se comportará melhor no futuro.

Manipulando as esferas
Tudo isso nos leva a uma teoria de como o senso moral pode ser
universal e variável ao mesmo tempo. As cinco esferas morais
são universais, um legado da evolução. Mas como elas se
classificam em importância, e qual é acionada para moralizar
cada área da vida social -sexo, governo, comércio, religião, dieta
e assim por diante-, depende da cultura.
Não é fácil reatribuir uma atividade a uma esfera diferente ou
retirá-la totalmente das esferas morais. As pessoas acham que um
comportamento pertence a sua esfera do mesmo modo que uma
necessidade sagrada e que o próprio fato de questionar uma
atribuição é um ultraje moral.

Corrosão
O psicólogo Philip Tetlock mostrou que a mentalidade do tabu -a
convicção de que alguns pensamentos são pecaminosos- não é
apenas uma superstição dos polinésios, mas uma mentalidade que
pode ser facilmente despertada em americanos de nível
educacional superior.
Basta lhes pedir para pensar em aplicar a esfera da reciprocidade
a relacionamentos habitualmente regidos pela comunidade ou a
autoridade.
Quando Tetlock pediu aos entrevistados sua opinião sobre se as
agências de adoção deveriam dar as crianças para os casais que se
dispusessem a pagar mais, se as pessoas deveriam ter o direito de
vender seus órgãos e se elas deveriam poder pagar para não servir
como juradas, os pesquisados não apenas discordaram como se
sentiram pessoalmente insultados e indignados por alguém fazer
essas perguntas.
As instituições da modernidade muitas vezes questionam e
experimentam o modo como as atividades são atribuídas às
esferas morais.

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As economias de mercado tendem a colocar tudo à venda. A


ciência amoraliza o mundo ao buscar entender os fenômenos, em
vez de julgá-los. A filosofia secular está perscrutando todas as
idéias adquiridas, incluindo as entrincheiradas na autoridade e na
tradição.
Não é de surpreender que essas instituições muitas vezes sejam
consideradas moralmente corrosivas.
E "moralmente corrosiva" é exatamente o termo que alguns
críticos aplicariam à nova ciência do senso moral. A tentativa de
dissecar nossas intuições morais pode parecer uma tentativa de
desacreditá-las.
A explicação de como as diferentes culturas apelam para as
diferentes esferas poderia levar a um relativismo sem espinha
dorsal, em que nunca teríamos bases para criticar a prática de
outra cultura, por mais bárbara que fosse, porque "nós temos
nosso tipo de moral e eles têm o deles".
E toda a empreitada parece estar nos arrastando para um niilismo
amoral, em que a própria moralidade seria reduzida de um
princípio transcendental a uma invenção de nosso circuito neural.
Na realidade, nenhum desses temores se justifica, e é importante
entender por quê. A primeira incompreensão envolve a lógica das
explicações evolucionistas. Os biólogos evolucionistas às vezes
antropomorfizam o DNA pelo mesmo motivo que os professores
de ciência acham útil fazer seus alunos imaginarem o mundo do
ponto de vista de uma molécula ou de um raio de luz.
Um atalho para compreender a teoria da seleção sem usar a
matemática é imaginar que os genes são pequenos agentes que
tentam fazer cópias de si mesmos.
Infelizmente, o "meme" do gene egoísta escapou dos livros de
biologia popular e se transformou na idéia de que os organismos
(incluindo as pessoas) agem impiedosamente por interesse
próprio. E isso não tem sentido. Os genes não são um reservatório
de nossos desejos obscuros e inconscientes.
Tampouco o altruísmo recíproco -a razão evolucionária por trás
da justiça- implica que as pessoas fazem boas ações na
expectativa cínica de uma recompensa futura.
Todos sabemos de boas ações sem retribuição, como dar gorjeta
para uma garçonete em uma cidade à qual você nunca voltará ou
se jogar sobre uma granada para salvar os companheiros de
pelotão. Essas irrupções de bondade não são tão anômalas para
um biólogo quanto poderiam parecer.
Uma compreensão biológica do senso moral não significa que as
pessoas sejam calculistas, tentando maximizar seus genes ou seu
interesse próprio. Mas onde ela deixa o próprio conceito de
moralidade?

Deus como solução rápida


A visão científica nos ensinou que algumas partes de nossa
experiência subjetiva são produto de nossa constituição biológica
e não têm contrapartida objetiva no mundo. Mas, se a distinção
entre certo e errado também é um produto da programação do
cérebro, por que deveríamos acreditar que é mais real que a
distinção entre vermelho e verde?
E, se é apenas uma alucinação coletiva, como podemos afirmar

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que males como o genocídio e a escravidão são errados para


todos nós, e não apenas repulsivos para nós?
Colocar Deus a cargo da moral é uma maneira de solucionar o
problema, é claro, mas Platão resolveu isso rapidamente há 2.400
anos. Deus teria um bom motivo para designar certos atos como
morais e outros como imorais? Se não -se seus mandamentos são
caprichos divinos-, por que devemos levá-los a sério?
Talvez nasçamos com um senso moral rudimentar, e, assim que o
elaboramos com o raciocínio moral, a natureza da realidade
moral nos force a algumas conclusões, mas não a outras. O
realismo moral, como essa idéia é chamada, é rico demais para
muitos filósofos. Mas uma versão diluída da idéia -se não uma
lista de mandamentos cosmicamente inscritos, pelo menos
algumas inferências- não é loucura.
Duas características da realidade levam qualquer agente social
racional e autopreservante a uma direção moral. E elas poderiam
fornecer um parâmetro para determinar quando os julgamentos de
nosso senso moral estão de acordo com a própria moralidade.
Uma é a prevalência dos jogos que não são de perder ou ganhar.
Em muitas áreas da vida, duas partes se saem objetivamente
melhor se ambas agirem de maneira não-egoísta do que se cada
uma agir egoisticamente. Você e eu ficaremos melhor se
dividirmos nossos excedentes, salvarmos os filhos do outro em
perigo e não atirarmos um no outro.
Essas projeções contábeis não são minúcias da programação
cerebral nem são ditadas por um poder sobrenatural -estão na
natureza das coisas.
O outro suporte externo da moral é uma característica da própria
racionalidade: ela não pode depender do ponto de vantagem
egocêntrico do raciocinador. Não posso agir como se meus
interesses fossem especiais só porque eu sou eu e você não é,
assim como não posso convencê-lo de que o lugar em que estou é
um lugar especial no universo só porque eu estou nele.
Não por coincidência, o centro dessa idéia -a intercambialidade
de perspectivas- aparece constantemente nas filosofias morais
mais bem pensadas da história, incluindo a "regra de ouro" (ela
mesma várias vezes descoberta); o "ponto de vista da eternidade"
de Espinosa; o "contrato social" de Hobbes, Rousseau e Locke; o
"imperativo categórico" de Kant; e o "véu da ignorância" de
Rawls.
Também é subjacente à teoria de Peter Singer do círculo em
expansão -a proposta otimista de que nosso senso moral, embora
moldado pela evolução para supervalorizar a si mesmo, aos
parentes e ao clã, pode nos levar a um caminho de progresso
moral, pois nosso raciocínio nos obriga a generalizá-lo para
círculos cada vez maiores de seres sencientes.

Autoconhecimento
A moral, portanto, ainda é algo maior do que nosso senso moral
herdado, e a nova ciência do senso moral não torna obsoletos o
raciocínio e a convicção morais. Ao mesmo tempo, suas
implicações para nosso universo moral são profundas.
No mínimo, a ciência nos diz que, mesmo quando a agenda de
nossos adversários é mais surpreendente, eles podem não ser

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psicopatas amorais, mas estar sujeitos a uma mentalidade moral


que lhes parece tão obrigatória e universal quanto a nossa é para
nós.
É claro que alguns adversários são de fato psicopatas; outros
estão tão intoxicados por uma moralização punitiva que estão
além do limite da razão. E em lugar nenhum a moralização é mais
perigosa do que em nosso maior desafio global.
A ameaça da mudança climática provocada pelos seres humanos
se tornou motivo para uma reunião da revivescência moralista.
Em muitas discussões, a causa da mudança climática são o
excesso de indulgência (caminhonetes demais) e a degradação
(sujar a atmosfera), e as soluções são a temperança (conservação)
e a expiação (comprar cupons de crédito de carbono).
Mas os especialistas concordam que esses números não se
somam: mesmo que todos os americanos se tornassem
conscienciosos sobre os efeitos de suas emissões de carbono
sobre a mudança climática, seriam irrisórios, no mínimo, porque
2 bilhões de indianos e chineses provavelmente não imitariam
nossa abstemia renascida.
Embora a conservação voluntária possa ser uma fatia de uma
torta de redução de carbono efetiva, as outras fatias terão de ser
moralmente entediantes, como um imposto de carbono e novas
tecnologias energéticas, ou mesmo tabus, como a energia nuclear
e a manipulação deliberada do oceano e da atmosfera.
Nosso hábito de moralizar os problemas, misturando-os com
intuições de pureza e contaminação, e descansar satisfeitos
quando temos os sentimentos certos, pode nos impedir de agir
acertadamente.
Longe de desmistificar a moral, portanto, a ciência do senso
moral pode fazê-la avançar, permitindo-nos enxergar através das
ilusões que a evolução e a cultura nos impuseram e nos
concentrar em objetivos que podemos compartilhar e defender.
Como escreveu Anton Tchékhov: "O homem se tornará melhor
quando você lhe mostrar como ele é".

STEVEN PINKER é professor de psicologia na Universidade Harvard


(EUA) e autor de "O Instinto da Linguagem" (ed. Martins Fontes) e
"Tábula Rasa" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto foi publicada no
"New York Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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