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pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.602 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Escultora é a representante
de Portugal na bienal de arte
Os fantasmas
de Leonor
Antunes
em Veneza
b52758ce-38b1-47e1-878e-9d621e8b2ab3
Acção Paralela Crónica
António Guerreiro John Freeman
Anti-sionismo e anti-semitismo A voz
H
á dez anos eu estava
A
s reacções desmesuradas a um cartoon de identidade religiosa e a normalizá-lo, através da sentado à secretária em
António publicado no Expresso e na edição reterritorialização e politização num Estado. Sobre o Londres quando deparei
internacional do New York Times trouxe até amor místico pelo “povo judeu” (e nem é preciso com um embrulho que me
nós a questão de uma crescente equiparação, recorrer às teses altamente polémicas de um era destinado debaixo da
em toda a Europa e nos Estados-Unidos, historiador judeu, Shlomo Sand, para o qual esse secretária de um editor
entre anti-sionismo (ou, ainda mais entidade chamada “povo judeu”, à qual se quer que trabalhava para a revista
estritamente, a política e o reforço de um Estado atribuir uma unidade eterna, é um mito), devemos Granta, onde eu na altura era
militar e colonial pelo actual governo de Israel) e recordar o que escreveu Hannah Arendt, numa dura editor. Era um embrulho castanho
anti-semitismo. Ainda recentemente, ao visitar um troca epistolar com Gershom Scholem, em 1963, já e rectangular, reconheci a escrita,
cemitério judeu, o Presidente francês Emmanuel depois da publicação de Eichmann em Jersusalém. em estilo de notas ao acaso, do
Macron, prometendo adoptar medidas legais para Scholem escreveu-lhe a contestar a sua visão da meu pai. O que é isto? A secretária
combater o anti-semitismo, definiu o anti-sionismo “banalidade do mal” e a tentar refutar as acusações do editor estava sempre uma
como uma das formas modernas de anti-semitismo. É que a filósofa judia tinha feito aos dirigentes judeus, confusão — eu não tinha problemas
verdade que neste domínio é difícil traçar fronteiras imputando-lhes responsabilidades no Holocausto, e a com isso, até que comecei também
rigorosas, evocando contingências históricas e certa altura diz-lhe o seguinte: “Na tradição judaica a viver em estado de caos. Trouxe o
pragmatismos políticos, porque há um “eterno existe um conceito, difícil de definir e, no entanto, embrulho para a minha secretária
anti-semitismo” responsável por uma mística tão forte bastante concreto, que se chama Ahabath Israel: ‘o e abri-o com uma faca. A última vez
como aquela que envolve a figura simétrica, a do amor pelo povo hebraico...’ Em ti, cara Hannah, não que vira o meu pai estávamos os
“judeu eterno”. Por isso, aliás, é que se pratica hoje encontro vestígios dele”. Ao que Hannah Arendt lhe dois de pé na sala de sua casa a
uma nefasta indistinção entre o anti-semitismo respondeu: “Tens toda a razão, não me sinto animada norte do estado de Nova Iorque. Os
europeu moderno e o anti-sionismo árabe que não se por nenhum ‘amor’ desse género: na minha vida, médicos legistas tinham acabado
baseia em questões de hostilidade étnica e de nunca ‘amei’ nenhum povo ou colectividade. Amo de fechar a minha mãe dentro do
impurezas biológicas, mas apenas em conflitos ‘apenas’ os meus amigos e a única espécie de amor saco e carregavam-na com cuidado
territoriais. que conheço e em que acredito é o amor pelas para a sua última viagem de carro.
Basta um conhecimento superficial da história do pessoas”. Hannah Arendt foi talvez a mais importante 90 milhas por colinas e estreitos do
sionismo para sabermos que o projecto sionista crítica do sionismo político, no século XX. E um dos Mohwak Valley até à Universidade
causou sempre muitas reticências nalguns sectores seus argumentos era o de que o objectivo de fundar de Syracuse onde cientistas iriam
judaicos, incluindo os mais ortodoxos do ponto de um Estado judaico “como a França é francesa e a dissecar o seu cérebro para
vista religioso. E alguns dos mais importantes Inglaterra é inglesa” teria como resultado “uma encontrar provas do Alzheimer que
anti-sionistas e opositores da política de Israel foram Esparta moderna, uma nação de dois milhões e meio a tinha morto.
e são intelectuais judeus. Pensemos em duas figuras de ‘iguais’ que reina sobre dois milhões de hilotas”. Não me lembro do que é que a
eminentes do judaísmo, na Alemanha, os filósofos e Lidos hoje, os argumentos de Hannah Arendt (que nota dele dizia. Mas dentro do
teólogos Martin Buber (1878-1965) e Franz não podem ser desligados da crítica radical que fez embrulho o meu pai tinha colocado
Rosensweig (1886-1929), que trabalharam em do Estado-nação) já não têm o mesmo alcance que um pequeno CD, que enfiei no
conjunto numa tradução da Bíblia para a língua tiveram no tempo em que foram formulados, na computador. Fechei a porta da
alemã. O primeiro achava que os fins do sionismo medida em que parecem fornecer matéria para pôr minha sala. Sem ter pressionado
político pervertiam o espírito do sionismo cultural. em causa a legitimidade do Estado de Israel. Mas não qualquer botão o meu minúsculo
Por isso, ele e muitos membros da organização a que é isso que devemos deduzir do discurso de Arendt. O posto que dava sobre Holland Park
pertencia contestaram a legitimidade da declaração que ela queria afirmar era que a guerra entre Israel e encheu-se com uma voz. Falava
da soberania política de Israel como estado judaico, o povo palestiniano é uma guerra entre dois povos com um sotaque uniforme,
feita por Ben-Gurion em 1948. Por seu lado, que se combatem pela mesma terra e que, por isso, anasalado, típica do norte do estado
Rosensweig via no sionismo uma forma laicizada do só pode encontrar solução no recíproco de Nova Iorque. Soava a uma voz
messianismo que tendia a privar o judaísmo da sua reconhecimento das duas partes. jovem, a voz de uma jovem mãe —
na verdade era. Era a minha mãe. O
meu pai tinha encontrado e
digitalizado 60 minutos de
Livro de recitações gravações de 1983, quando eu tinha
8 ou 9 anos. O meu pai mudara-se
“A taxa de mortalidade infantil disparou em Portugal” para Sacramento, indo à nossa
in RTP, Telejornal das 20h, de 29 de Abril frente para um trabalho que atrairia
a minha família para a Costa Oeste
“Medialecto” é um neologismo para designar a é que a mortalidade infantil dispara o que quer que durante o resto da minha infância.
linguagem dos media, o idioma que eles constroem seja? E, no entanto, todos nós percebemos o que ela Na altura em que as chamadas
ou amplificam, quer por motivações ideológicas significa porque já estamos familiarizados com o seu telefónicas eram caras, eles
(conscientes ou inconscientes), quer por puro uso. Mas a dimensão pragmática da linguagem não comunicavam através de cassetes.
idiotismo (“idiotismo” é uma palavra que tem a justifica tudo, e a prova é que fora do idioma a que “Com Jaaahn”, dizia a minha mãe ao
mesma etimologia de “idioma”. O que pode leva Karl Kraus chamou “jornalês” ninguém ousa dizer ou meu pai, “com Jaaahn” estava a
alguém a escrever ou a dizer “A taxa de mortalidade escrever esta barbaridade. Ela fica assim reservada a correr tudo bem na escola, ainda
infantil disparou em Portugal” sem perceber que se um “jogo de linguagem” que mais ninguém joga. brincava com carros. Em fundo, eu
trata de uma frase absurda, isto é, sem sentido? Como Estes idiotismos são o sintoma de um mal maior. com oito anos imitava o barulho de
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO FOTO DA CAP
4 12 16 18 22
Leonor Antunes Lena d’Água New Order Brasil Maguy Marin
leva os seus Volta como e A Certain Ratio O cinema que a grande
fantasmas a Veneza se nunca tivesse Histórias de talvez não exista sabotadora
ido embora sobreviventes amanhã
24
Andrew Sean Por Joana Amaral
Greer Cardoso
joana.
O desespero, cardoso@publico.pt
cardo
o riso e o
Pulitzerfres
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4 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
MIGUEL MANSO
“Trabalho com
a suspensão,
mas não é uma coisa
etérea. Não é uma
coisa em que se olha
para cima, a que não
temos acesso.
É sempre uma relação
corpo a corpo”
Leonor Antunes é como as suas elegantes esculturas: o seu lado conceptual esconde
outro mais manual, táctil. Mas é preciso tempo para as descobrirmos. No Palácio
Giustinian Lolin, onde Portugal tem instalado o pavilhão nacional em Veneza,
as esculturas da artista encontram novas formas de se pendurarem, de viverem
suspensas, de treparem. O desaÄo, imposto pela natureza histórica do espaço,
pode ver-se já partir da próxima semana com a inauguração da Bienal de Arte.
MIGUEL MANSO
Museu de Arte Moderna de São Fran- em usar a palavra escultura, porque
cisco (2016) —, o seu trabalho não é se adequa mais aquilo que faço. Até
autobiográfico e tem passado pouco hoje não encontrei uma forma me-
por Portugal, onde se mantém quase lhor de o definir. O que acontece é
uma desconhecida fora do meio das que as esculturas que faço são, muitas
artes plásticas. vezes, pensadas para um sítio. De-
Comecemos, então, pelo princí- pois, há sempre o diálogo das peças
pio, muito antes da chegada a Berlim umas com as outras e o espaço que
em 2004: quando é que soube que existe entre elas também me inte-
queria ser artista e qual é a sua me- ressa. Essa energia também é escul-
mória mais antiga em relação a esse tura, não é só o material com que é
desejo? “Não sei. É uma pergunta feita e o objecto que está lá. Interessa-
difícil. Mas acho que sempre quis ser me a presença e a relação com o
artista, porque nunca quis ser outra corpo, com uma atmosfera que é ge-
coisa. Tem um pouco a ver com a rada. Interessa-me a proximidade fí-
forma como nos relacionamos com sica que se tem através do corpo com
o mundo: como é que transforma- esse objecto.”
A exposição mos as coisas que vemos e que nos Na exposição do Gropius Bau, que
para a Bienal interessam em matéria.” Lembra-se ficará até meados de Junho nesta ins-
de Veneza foi de desenhar desde pequena, de tituição próxima de Potsdamer Platz
pensada na sempre ter tido imensa curiosidade e de um dos trechos do Muro de Ber-
verticalidade pelas coisas à volta, condição que lim que ainda é possível encontrar na
porque as acha obrigatória para se ser artista, cidade, há peças feitas em materiais
esculturas porque sem curiosidade não se con- familiares como o cabedal, o vidro, a
se agarram segue criar. “Nunca tive artistas na cana, o latão ou a corda que mostram
entre o chão família, mas os meus pais, de alguma a importância do trabalho artesanal
e o tecto; forma, sempre me incentivaram. e da manualidade na obra da artista.
a artista criou Talvez mais o meu pai, que era um Muitas das obras de Leonor Antu-
um sistema de apaixonado por cinema e mostrava- nes estão penduradas a partir de
perfis nos, a mim e aos meus dois irmãos, cordas, como as que foram executa-
em alumínio imensos filmes.” das em cana importada da Indoné-
branco capaz O pai, engenheiro civil, fê-la pensar sia. Têm nomes de outros artistas,
de esconder em como nos situamos no lugar em identificados pelas iniciais ou pelo
as paredes que vivemos mas também como con- nome próprio, como Franca Helg,
do palácio, seguimos ser transportados para fora designer e arquitecta italiana já de-
incluindo do que conhecemos. “Isso é muito saparecida, cujo trabalho Leonor
as pinturas importante, porque os artistas ou as investigou intensamente para as ex-
históricas: obras de arte levam-nos a viajar. A posições que fez em Milão e na Bie-
“Tentei curiosidade que tinha e a forma como nal de Veneza de 2017, em que foi a
encaixar o via as coisas fazia com que conseguís- única portuguesa seleccionada.
meu trabalho semos viver num mundo um pouco Algumas esculturas chamam-se
num espaço à parte.” Franca, mas podiam chamar-se Anni
com uma Como muitos artistas da sua gera- (Albers), Carlo (Scarpa) ou Lygia As obras de cana foram executadas
linguagem
mais
ção, fez a escola artística António
Arroio, em Lisboa, onde acabou o
(Clark), os fantasmas que povoam,
suspensos, as exposições da artista.
“Há sempre o diálogo na oficina Bonacina 1889, que existe
há um século e já produziu os móveis
moderna” secundário. Não entrou logo em
Belas-Artes. Frequentou durante um
Nada disto é uma metáfora, porque
as obras de Leonor Antunes têm no-
das peças umas de Franca Helg feitos no mesmo ma-
terial. “O senhor que tem esta oficina
ano o curso de Cenografia da Escola
Superior de Teatro e Cinema. “Não
mes de figuras históricas, muitas ve-
zes desconhecidas. E a suspensão é
com as outras lembra-se de ela trabalhar à escala
real em cima do desenho. Aqueciam
foi uma hesitação. Não queria estar
um ano parada sem estudar. Depois
um dos temas que mais tem explo-
rado na última década.
e o espaço entre a cana com o maçarico até consegui-
rem a forma que estava no desenho.”
entrei em Belas-Artes, onde se podia
escolher entre pintura, escultura e
“Trabalho muito com a suspensão,
mas não é uma coisa etérea. Existe
elas também me Mas a escultura Franca mostra ape-
nas um detalhe de um cabide feito
design. Só havia essas três opções. Eu
pintura nunca faria. It’s not my thing.
agarrada a uma parte de um tecto, a
uma superfície que está lá. Depois, a
interessa. Essa pela designer nos anos 50, irreconhe-
cível à primeira vista. “É a menos
Não saberia o que haveria de fazer.”
Vê-se como uma escultora e ao que
escultura chega quase até ao chão.
Não é uma coisa em que se olha para
energia também abstracta das esculturas da exposi-
ção, porque o detalhe é mesmo as-
faz chama escultura num mundo em
que os meios de expressão são cada
cima, que está pendurada e a que não
temos acesso. É sempre uma relação
é escultura, não é só sim. Exagerei o fragmento, que deve
estar umas dez vezes maior.”
vez mais interdisciplinares e amplia-
dos. “Não tenho nenhum problema
corpo a corpo, não é uma relação fe-
tichista.”
o material com que é De facto, agora que já sabemos
para onde olhar, conseguimos e
feita e o objecto que
está lá. Interessa-me
a relação com
o corpo, com uma
atmosfera que é
gerada. Interessa-me
a proximidade física
que se tem através
do corpo com esse
objecto”
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 7
“Sempre quis fazer
o que faço hoje.
ver os resquícios de um gancho, de
onde saem duas novas linhas verti-
a exposição de Milão, mas a da elas-
ticidade, da gravidade ou do colapso.
candeeiro da Casa Zentner, em Zuri-
que, a única casa que Carlo Scaroa, o Se tivesse ficado sas ideias aos outros. Como diz um
amigo meu: ‘há tantas coisas que se
cais que se unem mais à frente para
permitir suspender a escultura. “O
Convoca-se Lygia Clark, mas também
Eva Hesse, que estabeleceram cami-
arquitecto mais relevante para a Ve-
neza do século XX, conseguiu cons- em Portugal nunca fez tão bem porque é que não have-
mos de fazer isso outra vez?’ É muito
entrançado que existe em cada uma
delas agarra a estrutura em si, mas
nhos alternativos para a escultura no
século XX.
truir fora de Itália. “O círculo entre
aquilo que é perdido e encontrado, iria conseguir. difícil para um de nós criar coisas
ainda. Não acho que aquilo que faça
também cria zonas de opacidade e
transparência.”
É uma frase desse texto que dá o
título à exposição da Bienal de Ve-
entre o que é esquecido e lembrado,
desafia as narrativas convencionais”, Percebi que era uma seja original.”
As coisas vivem
O atelier em Kreuzberg
neza: Uma Costura, uma Superfície,
uma Dobradiça e um Nó. Talvez por
sublinha a historiadora de arte que
também vai escrever um artigo para vida estagnada. no mundo
Estamos à porta do atelier de Leonor
Antunes, situado no logradouro do
isso Briony Fer, uma das curadoras
da recente exposição de Anni Albers
o catálogo da Bienal de Veneza.
No trabalho de Leonor Antunes Sinceramente, ser Foi em 2008 que suspendeu as pri-
meiras esculturas, depois de se inte-
nº 38 da Naunynstraße, no bairro
Kreuzberg, que mesmo antes da
na Tate Modern de Londres, seja a
melhor pessoa para explicar os fan-
existem formas vindas da obra de
outros artistas, muitas vezes da tradi- uma artista mulher ressar pelo trabalho do arquitecto
Carlo Mollino, que desenhou em Tu-
queda do Muro já era o local onde os
artistas viviam misturados com uma
tasmas de Leonor que vão chegar a
Veneza. Os detalhes são tirados do
ção modernista, que depois são retra-
balhadas, de maneira mais orgânica em Portugal rim o edifício da sociedade hípica, já
desaparecido. “Queria falar da ques-
grande comunidade turca. Mas
mesmo nesta área menos gentrifi-
cada as rendas não páram de subir,
seu contexto original, como o gancho
do cabide Franca Helg ou os nós dos
têxteis de Albers, e o seu significado
e táctil, através da produção artesa-
nal. “Não é uma recriação, essa não é
a palavra certa. É mais uma reapro-
era muito difícil” tão do espectro, da presença, da
sombra. Elas têm nomes de perso-
nagens, porque têm elementos des-
numa cidade que, escrevia o New transformado no processo. priação, também sou um pouco uma sas personagens ou são reapropria-
York Times, continua a ser conside- “Os artistas e designers desapare- ladra. Completamente. Roubo imen- ções de coisas que essas pessoas fi-
rada a capital criativa do mundo ar- cidos estão longe de estarem mortos, zeram.” Foi para a exposição de
NICK ASH
tístico europeu com os seus 20 mil mas continuam a viver de formas Turim que começou a fazer as peças
artistas profissionais. complexas e não apenas como pon- relacionadas com os arreios de cava-
Tínhamos acabado de subir tos de referência ou explicações ca- los. “Se colocasse a peça em cima de
quando soa a campainha e Leonor suais da obra. Obviamente que a uma mesa ou no chão, estávamos a
interrompe a apresentação de duas artista pesquisa estas figuras, muitas ver uma coisa muito específica que
das suas colaboradoras que termi- vezes marginalizadas, de forma a era um arreio aumentado à escala.”
nam de coser uma das esculturas obter o material de que faz a sua Sentada em frente ao ecrã de um
para Veneza. À porta, está a direc- obra, mas mesmo esse processo pa- computador, Leonor mostra imagens
tora do museu Haus Konstruktiv, de rece mais um processo de acrescen- de exposições que fez em 2011, data
Zurique, que veio a Berlim discutir tar do que de retirar.” importante na evolução do seu traba-
com a artista a exposição do Prémio Leonor Antunes revela muitas das lho porque foi a partir daí que criou
Zurich Art 2019, que a artista rece- suas fontes nos títulos das obras — na esculturas capazes de suportarem
beu no início deste ano. Sabine Bienal de Veneza são principalmente outras esculturas. “Criei a primeira
Schaschl promete uma conversa rá- Savina Masieri e Egle Trincanato, dessas esculturas, a que chamo ‘es-
pida, porque só está hoje em Berlim. mulheres ligadas à arquitectura da culturas-mãe’, para uma feira de arte
“Têm de estar orgulhosos dela!”, cidade —, mas muitas vezes essas re- que fiz a seguir à exposição do Museu
comenta a director suíça. “Leonor, ferências servem para acrescentar Rainha Sofia, em Madrid. Elas tor-
não se esqueceu da exposição mar- opacidade e não o contrário, co- nam-me ainda menos dependente do
cada para Outubro?...” menta ainda Briony Fer. espaço de exposição. É uma grelha,
Ela não se esqueceu mas o calendá- De facto, a artista constrói narrati- suspensa a partir do tecto, onde posso
rio deste ano não está fácil. Em No- vas complexas, às vezes paralelas, pendurar outras esculturas de forma
vembro há outra exposição na Suíça, que nos afastam do contexto que pro- mais aleatória, sem obedecer a deter-
desta vez na Fundação Beyeler de curamos perceber: para conhecer- minado contexto. A partir daí, as es-
Basileia, e em Dezembro será a vez do mos o detalhe que lhe interessou na culturas-mãe foram sendo repensa-
Museu de Arte de São Paulo, para só casa que Savina Masieri encomendou das para diversas situações. A peça
falar das individuais em instituições a Carlo Scarpa, a Casa Zentner, cons- mãe é a origem de tudo.”
museológicas. truída na Suíça, temos ainda que pas- Nessa altura, começa a preocupar-
No meio do atelier com quase 200 sar por Frank Lloyd Wright e pelo se como é que as suas esculturas vi-
metros quadrados e duas salas com marido de Savina, que morreu num vem no mundo — ideia que dá título
grandes janelas estão pousadas qua- desastre de carro quando viajou para ao texto de Briony Fer e esteve para
tro espirais desenhadas em borracha conhecer as obras do mestre nos Es- ser o primeiro título da exposição
industrial que também vão seguir tados Unidos. Perdidos? A ideia era desta bienal —, tal como antes já re-
para Veneza. Chamam-se Lygias, mas Frank Lloyd Wrigt fazer uma casa flectira sobre a vida das formas de
só se tornarão esculturas quando a para Savina no Grande Canal, que outros artistas. “Os trabalhos que faço
espiral for suspensa, porque a lin- nunca foi construída e alimentou a dependem muito da forma como os
guagem escultórica da artista não é discussão sobre a Veneza moderna. instalo no espaço, mas penso também
a da massa e do volume, como ex- As várias camadas da história, que em que é que vai montar isto que eu
plica a historiadora de arte Briony não conseguimos contar toda, aca- não estiver.”
Fer num texto no ano passado para bam num pormenor em pedra de um Quando saímos para almoçar, faz
Reencontro
com Portugal
O primeiro atelier na cidade estava
situado na famosa Künstlerhaus
Bethanien, a porta de entrada para
muitos artistas portugueses em Ber-
lim, onde Leonor chegou através de
uma residência artística conseguida
com uma bolsa. Faz parte de uma
geração de artistas portugueses que
começa a trabalhar por volta do ano
2000 já numa lógica internacional.
Os artistas e personalidades que cita
no seu trabalho são internacionais,
as quatro galerias com que trabalha
são internacionais, circula e mostra
o seu trabalho novo quase exclusiva-
mente em circuito internacional.
Já de volta ao atelier falamos deste
reencontro com Portugal através de
Veneza e como é que está a vivê- e
NICK ASH
na verticalidade e as coisas agarram- para a Alemanha (AfD) se tornou o e que foi feito.”
se todas entre o chão e o tecto. Há primeiro partido de extrema-direita Quando voltar a Lisboa, a família,
uma espécie de perfis de alumínio, a entrar no Parlamento no pós- que tem actualmente um aparta-
que depois são pintados de branco, guerra. “Eles agora têm bastantes mento na Baixa pombalina, ao lado
que se vão apropriando das paredes políticos no Parlamento, o que é bas- da Sé, quer sair do centro histórico
e tornando o espaço mais orgânico. tante assustador. Mas, apesar de que se tornou turístico. “A minha
Criei este sistema para esconder as tudo, Berlim continua a ser uma ci- ideia era encontrar uma coisa que
pinturas, os radiadores e toda aquela dade muito diferente. Podemos ter fosse mais sossegada e tivesse um
informação que está nas paredes do movimentos de extrema-direita, mas bocadinho de espaços verdes. Mas
palácio histórico, como os tecidos também o triplo dos movimentos queremos ficar em Lisboa, porque
que são muito presentes. Tentei en- que são opostos a isso. Há tantas co- viajo imenso e não quero passar
Na exposição caixar o meu trabalho num espaço munidades na cidade, há tantos ar- muito tempo no carro, sempre de
Discrepâncias com uma linguagem mais mo- tistas, mesmo que a cidade já esteja um lado para o outro. Não vai ser
com C.P. derna.” tão gentrificada. Se formos para o sul fácil encontrar isso.”
(2018), Chamou Egle a estas peças que têm da Alemanha, já é mais conservador. Antes desse regresso agendado
no Museu cinco metros de altura e criam uma É um bocadinho como Londres em para 2020, planeia passar uns meses
Tamayo,
NICK ASH
espécie de biombos entre o palácio e relação ao Brexit no Reino Unido ou no Japão. “Adorava poder trabalhar
na Cidade a exposição, onde ficam escondidas Nova Iorque em relação ao Trump lá pelo menos três meses para apren-
do México, as pinturas históricas que pediu para nos Estados Unidos.” der cerâmica. Desde criança que sem-
trabalhou com serem apeadas e ficarem viradas con- Foi este contexto político novo na pre fui fascinada pelo Japão.” O plano
um artesão tra a parede. Egle Trincanato, lembra, Alemanha — e, por antecipação, o que é chegar a Quioto a seguir às férias da
que fazia evocando um dos fantasmas da expo- as eleições espanholas também aca- Páscoa do próximo ano, depois de
cadeiras sição, tem um importante trabalho baram de mostrar — que explica o uma exposição no Reino Unido, que
em juta ligado à renovação da imagem dos entusiasmo da artista pela paisagem vai inaugurar um novo centro cultural
museus em Veneza, tendo trabalhado governativa nacional. Com uma fran- em Plymouth. O regresso ao Japão
no Palácio Ducal. queza que só os tímidos têm, Leonor servirá igualmente para fazer uma
“Também vou retirar os candela- Antunes provocou uma pequena tem- exposição na nova galeria japonesa,
bros e as cortinas. É uma tentativa de pestade mediática ao afirmar na con- a Takahishi. “Já me convidaram há
apagar certos elementos com que não ferência de imprensa de apresentação dois anos, mas estou sempre a adiar
quero lidar, como aquelas pinturas da representação nacional em Ve- a exposição. Gosto imenso do pro-
feitas por outro artista e que não fui neza, o “pavilhão nacional” na bienal, grama da galeria. Tem bastantes ar-
eu que escolhi. Não tem a ver com a que só tinha aceitado o convite para tistas que conheço e sou amiga de
NICK ASH
qualidade, até podiam ser do Rothko. participar porque este governo “de alguns deles. Mas para o ano vou fazer
Foi uma negociação muito dura com esquerda” instaurou, pela primeira uma exposição de certeza.”
a fundação que gere o palácio.” vez, um modelo de concurso “demo- Para já, não há nenhuma exposição
É em frente às Egles que vão estar crático e transparente”, como volta agendada em Portugal e não está a
13 esculturas-mãe, número recorde agora a explicar. “Acho que outro Go- pensar arranjar uma galeria lisboeta
para uma exposição de Leonor Antu- verno que lá estivesse não teria feito depois do regresso em 2020. “Isso
nes. Desta vez, têm a forma de pru- essa aproximação à escolha do artista hoje é um bocado indiferente. Actual-
mos, que já surgiam na exposição de para a bienal, com um júri profissio- mente, também não tenho uma gale-
Milão mas sem esta função de su- nal e independente.” ria em Berlim. Há muito mais pessoas
porte. “As outras esculturas-mãe No seu entendimento, as declara- a deslocarem-se a Portugal, a terem
eram menos possessivas, porque po- ções foram mal interpretadas porque curiosidade sobre as pessoas que tra-
diam receber mais filhos. Estas estão os jornalistas quiseram partidarizar balham lá. Há uma geração muito
bastante limitadas nessa capacidade.” a questão: “Eu não falei em partidos, diferente a trabalhar e noto algum
Por isso, usa-se a repetição, outro falei em ideologias. Nunca quis parti- interesse pelos artistas que estão a
tema do seu trabalho. É aqui que se darizar a questão. Temos uma situa- viver em Portugal ou que são dali.”
Gonçalo Frota
12 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
VITORINO CORAGEM
Desalmadamente
Lena d’Água
Universal Music
mmmmm
O “Aconteceu-me
hipocampo é um pequeno de família. Quando me perguntavam,
órgão alojado no lobo tem- tinha a certeza de que ninguém se ia
poral central do cérebro.
Dizem os estudos científicos cantar para esquecer.” E ri-se — ainda que sem
azedume algum — da sua ingenui-
que é uma das primeiras
regiões do cérebro a serem 30 pessoas muitas dade. “Claro que não foi bem assim.
Mas eu também exagerei. Foram mui-
afectadas pela doença de Alzheimer,
conduzindo à perda de memória. Até vezes nos últimos tos anos escondidinha.”
Benjamim, que confessa ter “um
porque uma das suas funções pri-
mordiais está relacionada com a for- anos. É duro e triste fetiche com a Lena d’Água — como
quase todos os músicos portugue-
mação da memória a longo prazo,
mas também com a fabricação de quando se está ses”, sempre fora um admirador do
reportório da cantora, mas tinha-lhe
novas memórias. Pode também con-
tribuir para uma certa desinibição a fazer uma cena perdido também o rasto, achando
então que a sua história era a de
comportamental. Pedro da Silva
Martins andava, por acidente, a ler incrível, só voz “uma diva que se perdeu”. Lena
d’Água atravessou os anos 90 com o
sobre o assunto quando deparou
com dois aspectos associados ao hi- e piano, como espectáculo Canções do Século — ao
lado de Helena Vieira e Rita Guerra
pocampo e que não conseguiu dei-
xar de associar a Lena d’Água: a re- aconteceu na —, com o qual ganhou muito dinheiro,
mas que pouco se demorava nos seus
lação com a memória — sendo que a
cantora é capaz de registar e recitar Damaia. Quando me bolsos graças ao consumo de he-
roína; começou os anos 2000 como
de pronto a data, a hora, o estado do
tempo e a roupa que vestia alguém perguntavam, tinha concorrente do Big Brother Famosos
e dedicou os anos seguintes a essa
com quem se tenha cruzado e nela
causado alguma impressão; e uma a certeza de que reanimação com várias formações de
clássicos como Dou-te um doce, Sem-
certa “latência sexual”, ligada tam-
bém à tal desinibição. ninguém pre que o amor me quiser ou Estou
além (de António Variações). Mas
Acontece que o homem que du-
rante quatro álbuns municiou com
letras e músicas os álbuns dos Deo-
se ia esquecer” numa curva descendente que acaba-
ria por deixá-la entregue a uma som-
bra nostálgica do que fora.
linda — e foi estendendo a sua pena
para discos de Ana Moura, Cristina Três em um
Branco ou António Zambujo — se en- Quase se diria provocação do des-
contrava em pleno período de desen- que era impossível estar numa espla- tino. Num curto espaço de tempo,
freada laboração de uma nova for- nada quietinha, a beber um café e a três ideias complementares de discos
nada de temas para Lena d’Água e conversar.” O que lhe dava gozo era em parceria com Lena d’Água haviam
não resistiu a escrever uma “canção o palco e isso bastava-lhe. Ou pelo de fundir-se num só álbum: Pedro da
meio estouvada” que se alimenta menos assim lhe parecia na altura. Só Silva Martins falava de compor um
também da natureza “muito pura, que o seu apagamento progressivo disco de novas canções para sua voz;
muito surrealista e muito contraditó- foi deixando as suas marcas cruéis e, Benjamim e o seu guitarrista António
ria” da cantora. E depois havia a irre- mesmo tendo visitado o reportório Vasconcelos Dias entusiasmavam-se
sistível sugestão fonética que remetia de Billie Holiday e Elis Regina, as apa- com a ideia de produzirem um álbum
também para o facto de, em 2007, rições de Lena d’Água foram-se apro- de originais com a cantora; os They’re
Lena d’Água ter saído de Lisboa, ximando mais do circuito dos casinos Heading West planeavam gravar um
abandonado a vida citadina e, por- e tornando-a estranha dos grandes EP enquanto banda que acompa-
tanto, decidido ir para o campo. Hi- palcos de uma música portuguesa nhava Lena d’Água a interpretar al-
pocampo é o título de uma das mais com um ritmo febril de renovação de guns dos seus temas passados. Sem
inebriantes e estivais canções de De- figuras de primeira linha. Permane- saberem ainda uns dos outros, todos
salmadamente, álbum que Pedro es- cer visível e relevante era toda a uma avançavam em 2016 com propostas
creveu para Lena d’Água, produzido espinhosa missão. de colaborações que haviam de jun-
a oito mãos por Francisca Cortesão, Mesmo depois de Pedro da Silva tá-los pouco depois.
Mariana Ricardo, Sérgio Nascimento Martins ter convidado Lena d’Água a Tudo começou a alinhar-se quando,
e Lena d’Água
(todos dos They’re Heading West) e interpretar a sua criação para o Festi- no final do Verão de 2016, os They’re
Benjamim, e que põe fim a um lon- val da Canção 2017 — muito apropria- Heading West chamaram Lena d’Água
guíssimo período em que uma das damente intitulada Nunca me fui em- para se lhes juntar num concerto de
mais emblemáticas vozes da pop na- bora —, a cantora cuja voz era omni- domingo à tarde, pertencente a uma
cional foi subindo aos palcos apenas presente na década de 1980 série que apresentaram na Casa Inde-
para reavivar a sua obra passada. continuaria entregue a um circuito pendente, e em que se faziam sempre
Durante muitos anos, a populari- demasiado marginal, desanimando acompanhar por um convidado. Fi-
dade de Lena d’Água era tão gritante com concertos como aquele que zeram um primeiro ensaio na sala da
no inocente mundo pop português apresentou no Cineteatro D. João V, cantora, em A-dos-Ruivos, aldeia para
que lhe parecia uma ideia absurda na Damaia. os lados do Bombarral, cientes que
quando lhe perguntavam se não re- “Aconteceu-me cantar para 30 pes- estavam nos antípodas da experiên-
Como se, aos 60 anos, ceava que viessem a esquecer-se dela. soas muitas vezes nos últimos anos”, cia anterior de Lena com uma banda,
não pudesse cantar “Não tinha mesmo medo de que isso desabafa. “É duro e triste quando se a Rock’n’Roll Station, mais chegada
música pudesse vir a acontecer”, conta ao está a fazer uma cena incrível, só voz ao hard rock. “Nós estávamos um
desavergonhadamente Ípsilon. “Queria lá saber. Estava e piano, como aconteceu na Damaia pouco no lado oposto, só ukuleles,
pop e actual... muito cansada, foi muito tempo em — ainda por cima ao pé da minha casa guitarras acústicas, pessoal a fa- e
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 13
VITORINO CORAGEM
zer coros e todos a tocar baixinho”, Desalmadamente, álbum que
comenta Francisca Cortesão. Mas Pedro da Silva Martins escreveu
tudo tomou forma sem grande es- para Lena d’Água, põe fim
forço, Dou-te um doce, Sempre que o a um longo período em que uma
amor me quiser ou Vígaro cá, vígaro das mais emblemáticas vozes
lá ganharam uma nova vida e o con- da pop nacional foi subindo
certo foi tão mágico que a ideia de lhe aos palcos apenas para reavivar
dar continuação se instalou. “Ficá- a sua obra passada
mos todos muito encantados uns com
os outros quando tocámos com a
Lena e ela também ficou muito con-
manter o posto de compositor. E vie-
ram logo temas como Vígaro cá, ví-
pessoal da Xita”, diz. “Faço com ela
o mesmo que faço com eles. É uma A evidência de que trabalhadas a fundo pela banda, ou-
tras tinham letras que Lena não se
tente”, lembra Francisca.
No público desse mesmo concerto,
garo lá e Labirinto, seguindo-se os
álbuns Perto de Ti, Lusitânia e Terra
das pessoas mais especiais que tive o
prazer na minha vida e transformou- tinha de escrever sentia confortável a cantar. Mas vi-
nham todas ajudadas pelas muitas
também com uma parceria na manga,
Benjamim já há algum tempo que
Prometida — antes de o músico ter
produzido Fado Bailado, de Rão Kyao,
me de várias maneiras.”
mmmmm
Raridades,
singles, lados
B e inéditos,
entre eles
uma versão
de Houses
in motion
dos Talking
Heads com
a voz de
Grace Jones;
chegou
a ser iniciada
na altura
pelo produtor
Martin
Hannett
e só agora foi
finalizada
16 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
divisão. As primeiras incursões mais
dançantes dessa fase, os magníficos
ter”, incorporada por Stone Roses,
Happy Mondays e outros, transfor-
o rock, electrónica, o funk, a soul, o
dub e outros elementos estéticos,
surpresas, como duas versões de Hou-
ses in motion dos Talking Heads — que Manchester:
singles Ceremony (1981), Everything’s
gone green (1981) e Temptation (1982),
mando-a numa espécie de cidade do
êxtase. Durante cinco anos parecia
num caldeirão onde mais tarde, a
partir dos anos 2000, muitos foram
era para ter sido cantada por Grace
Jones — que nunca foi finalizada por cinzenta, marcada
simbiose perfeita homem-máquina
de movimentos electrónicos, foram
ser o local onde tudo acontecia, até
que em 1991 encerra pela primeira
procurar inspiração.
De todos esses nomes terão sido
Martin Hannett, e que o grupo resol-
veu agora em boa hora completar, ou pela crise.
nessa altura rejeitadas por muitos e
aceites por outros tantos. E quando
vez, com muitas dívidas para saldar.
Mas o legado havia sido deixado.
provavelmente os A Certain Ratio a
alcançar maior refinamento estético
temas nunca antes revelados, como
Bitter pill, de balanço rítmico e sen- Manchester:
o grupo lançou pouco depois Power,
Corruption and Lies (1983) ou o single
Na verdade quando se olha para a
história dos Division e dos New Or-
na primeira metade dos anos 1980.
Há até quem afirme com convicção
sualidade soul totalmente actual.
De forma diferente dos New Order, hedonista, com
Blue Monday (1983) já havia mudado
definitivamente.
der percebe-se que foram capazes
de organizar o que vinha de trás (Vel-
que a troca de informação com os
New Order acabou por ter impacto
mas com a mesma actualidade, os A
Certain Ratio foram capazes de en- festas ilegais
Durante muitos anos o próprio
grupo pareceu não viver bem com
vet, Bowie, Kraftwerk, punk), como
projectaram o que se seguiria — cru-
no som de Movement, principalmente
ao nível rítmico. Pode ser, mas en-
contrar pontos de contacto entre di-
versas tipologias, técnicas, emoções ao ar livre. New Order
essas memórias. Aos poucos, foi acon-
tecendo a dessacralização, come-
zamentos de rock e dança, electró-
nica, fisicalidade, negritude, recicla-
quanto os primeiros abriram caminho
para a criação de uma pop electrónica
e estados de espírito, dos mais intros-
pectivos aos mais exteriorizados, fa- e A Certain Ratio
çando a tocar também temas dos Di-
vision ao vivo, como em 2005 em
gens e hibridismos vários. O que
acaba por ser também o terreno dos
dançável, os A Certain Ratio são mais
diversos e isso é perceptível na forma
zendo-os confluir para uma música
que contém a dose certa de familiari- fizeram a passagem
Lisboa, no emocionante concerto do
festival Super Bock Super Rock, mos-
companheiros na Factory, os A Cer-
tain Ratio.
como assimilaram influências.
Claro que existiam as cumplicida-
dade e sentido de aventura.
Não espanta que tanto New Order da música soturna
trando que entre as duas entidades
existe um contínuo, um elo que é in-
quebrantável, embora constituam
Na segunda metade dos anos 1970
chegaram a fazer concertos em con-
junto com os Division e, nos primei-
des com os grupos da época — dos
Wire aos Throbbing Gristle — mas
acima de tudo havia uma consciência
como A Certain Ratio estejam activos.
Os primeiros vão estar no festival Pa-
redes de Coura em Agosto. E os se-
para a dança
identidades separadas. ros temas, da extensa antologia agora muito mais global da música. Por um gundos estão também em digressão.
A inspiração para essa transforma- lançada essa cumplicidade é patente, lado partilhavam o fascínio pelo funk, E ambos continuam a ser emblemas
ção mais dançante, positiva e lúdica, com uma sonoridade que não fica soul e jazz e pela génese do hip-hop de Manchester. Hoje a cidade é dife-
foram em parte os membros do grupo distante, até no estilo de cantar, que (The Last Poets, por exemplo), a par- rente de há 40 anos. Zonas antes es-
buscá-la às caves dançantes de Nova faz lembrar Curtis. Aliás é justo que tir do momento em que também es- quecidas e industrializadas consti- editora Factory, exemplo de paixão e
Iorque, onde em clubes como Para- se diga que essa relação entre o punk tiveram na alvorada dos anos 1980 tuem hoje o centro de uma urbe mo- independência, que influenciou ge-
dise Garage ou Danceteria nomes — fenómeno cultural essencialmente em Nova Iorque, mas havia também dernizada. Mas a música continua a rações. Depois da morte de Curtis e
como Larry Levan ou Arthur Baker branco — e a música negra, que teve marcas tropicais assumidas no seu ser factor de coesão. do fim dos Division, é como se New
congeminavam com elementos disco expressão na fase pós-punk em Nova som e um grande fascínio por música Ainda em 2017, na ressaca dos aten- Order ou A Certain Ratio tivessem
ou electro a revolução dançante que Iorque (Talking Heads, ESG, Liquid brasileira (de Hermeto Pascoal aos tados terroristas na cidade, se falava prenunciado uma nova era com uma
se seguiria. Na cidade-natal, Man- Liquid, Bush Tetras), também teve o Azymuth). da música (e para além dos nomes já música mais física e intercultural
chester, clubes de dança era coisa que seu paralelo em Inglaterra, com inú- A retrospectiva agora lançada co- citados poder-se-iam evocar outros, abrindo caminho para a cultura acid-
não havia e, na companhia de Tony meras formações (Gang Of Four, Ca- lecta toda essa informação de forma dos Smiths aos The Fall) como marca house e outras aventuras menos cin-
Wilson, resolveram tornar-se proprie- baret Voltaire, Clock DVA, 23 Skidoo, admirável. Por um lado temos temas identitária. Ao longo dos anos é como zentas, sinal de que nem toda a mú-
tários do Haçienta. Inicialmente foi Shriekback, Au-Pairs, Pig Bag, Maxi- clássicos que mantém uma actuali- se ela tivesse funcionado como essa sica de Manchester dos anos 1980 era
um fiasco, mas na segunda metade mum Joy, Pop Group, Rip Rig & Panic, dade invejável — oiça-se a longa di- utopia onde todos se podiam projec- funerária. Nas traseiras dos cemité-
dos anos 1980 acabaria por atribuir Malaria, Section 25) a criarem uma gressão funk electrónica em torno de tar um pouco, independentemente rios, ou onde calhasse na verdade, a
sentido à febre dançante “Madches- música de ritmos trepidantes, entre Knife slits water — e depois existem das diferenças. Aconteceu isso com a festa também se fazia.
mmmmm
O primeiro
álbum, de
1981, depois
do fim dos Joy
Division,
contém agora
raridades
(versões
alternativas,
gravações
de ensaios
e maquetes)
e um DVD com
actuações
ao vivo
registadas em
Nova Iorque
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 17
Fabiana, a última viagem de uma camionista
Brasil:
Divino Amor, de Gabriel Mascaro, pega na
importância dos evangélicos no Brasil actual para
pintar um país utópico entre o laicismo tecnocrata
e a fé
“O principal é a vida”
meia-dúzia de planos o
desempoderamento das
minorias, o abuso de poder, a
raiva, a injustiça, a violência
“N
inguém inventou a
roda. Para mim a
dramaturgia parou
na Grécia, no
B
universo, a textura, o envolvimento cineasta reside agora no Alentejo
— mergulhar o espectador naquele (“que eu chamo a brincar do meu
acurau, o novo filme de Kle- dor do Cinema Novo: Terra em Transe mundo, fazê-lo sentir o que o sertão tuga!”). O paradoxo é que
ber Mendonça Filho (O Som (1967) de Glauber Rocha. próprio Marins sente, “uma Marins foi um dos primeiros nomes
ao Redor, Aquarius) está a Brasil em Transe é por isso o ge- sensação minha de pertencimento da nova vaga brasileira a ganhar
concurso para a Palma de nérico deste “balanço de quinze àqueles lugares.” E o espectador repercussão internacional —
Ouro de Cannes, daqui a anos de Indie em relação com o Bra- fica na dúvida — é ficção, é Girimunho estreou em Veneza,
duas semanas, a par de Al- sil”. Porque foi o Indie que revelou realidade, ambas, nenhuma? passou por Roterdão, San
modóvar, dos irmãos Dardenne, de entre nós muita desta nova geração Marins confirma que a realidade Sebastián e Toronto; Querência
Ken Loach. A Vida Invisível de Eurí- de cineastas: O Som ao Redor de Kle- é o que surge primeiro, “e depois teve estreia no Forum da Berlinale
dice Gusmão, de Karim Aïnouz (Praia ber Mendonça Filho (2012) esteve na pequenas coisas para fazer a curva e é co-produzido pelos irmãos
do Futuro) junta-se-lhe na paralela da competição oficial do festival; no dramática, uma historinha de Walter e João Moreira Salles — e,
Croisette, Un Certain Regard. Dois ano passado, o prémio máximo foi fundo. Essa ideia de o espectador contudo, o seu nome poucas vezes
filmes do Brasil no mais importante dividido por duas longas brasileiras não perceber o que é verdade e o vem ao de cima.
festival de cinema do mundo, depois — Baronesa de Juliana Antunes (2017) que é ficção é um objectivo meu.” “Só fui descoberto no Brasil de
das edições 2019 de Roterdão e Ber- e Lembro Mais dos Corvos de Gustavo Hipnótica polaroid Invoca como referência maior no verdade porque o Eduardo
lim terem recebido uma grande re- Vinagre (2018); autores como Ga- do quotidiano, Querência seu cinema o iraniano Abbas Coutinho amou o Girimunho!”, diz
presentação brasileira — e no mo- briel Mascaro (Boi Neon, 2015), Anita acompanha um vaqueiro que, Kiarostami, e a sua capacidade o cineasta, que não se importa com
mento em que o governo suspende Rocha da Silveira (Mate-me por Fa- na sequência de um roubo para dirigir não profissionais. E essa dimensão de outsider. “Não
todo o financiamento da produção vor, 2015), Marcelo Lordello (Eles de gado, contempla abandonar quando fala da necessidade de tenho muita paciência para
local, usando como pretexto os re- Voltam, 2012), Affonso Uchôa e João o emprego e tornar-se mestre sentir vida não é por acaso: “se o cineasta,” ri-se. “Quero é que me
sultados de uma auditoria encomen- Dumans (Arábia, 2017), Renata Pi- de cerimónias em rodeos filme não tiver vida acabou,” como deixem trabalhar, estou cada vez
dada pela anterior administração aos nheiro (Amor, Plástico e Barulho, sertanejos diz, também como modo de mais fora do meio e inclusive ando
contratos da Agência Nacional do 2013) ou André Novais Oliveira (Ela em pé de guerra com alguns
Cinema. Volta na Quinta, 2014) passaram pe- amigos. Talvez seja demasiado
É com este pano de fundo, com a los ecrãs do certame, a concurso ou discreto para o meu cinema — gosto
eleição de Jair Bolsonaro e o regresso fora dele. é de estar quietinho no campo!” E
ao poder de um conservadorismo de São duas dúzias de filmes, entre preocupa-o a cada vez maior
direita que parece fazer gala do seu longas e curtas, fazendo pontes entre formatação da produção de
desinteresse pela arte, que o IndieLis- as várias secções do festival e, nas cinema “para festival” (“os
boa propõe um olhar sobre o cinema palavras de Sena, reflectindo sobre o directores de festivais hoje são
brasileiro actual. Na apresentação do presente e o futuro do cinema brasi- quase como os governantes do
programa do festival, Nuno Sena, um leiro. Em comum, são todos dirigidos mundo, têm o poder na mão…”),
dos seus directores, falou de “vitali- por cineastas surgidos nos últimos capaz de sufocar os talentos que
dade, diversidade e originalidade” quinze anos, coincidindo com a exis- (como o seu) não “encaixam”.
para definir a produção actual do tência do IndieLisboa mas, sobre- “Sinto falta de vida no cinema
Brasil, evocando no título escolhido tudo, com a renovação de uma pro- contemporâneo,” remata. E vida é
para a retrospectiva Herói Indepen- dução independente agilizada pelos o que ele quer registar.
dente sobre o Brasil o clássico defini- mecanismos de financiamento e J.M. em Berlim
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 19
André Novais Oliveira
O classicismo da observação
Depois de Ela Volta na Quinta, o cineasta brasileiro traz
ao concurso a sua segunda longa, Temporada.
N Do que em nenhum
ão é imediato identificar modo como a câmara acompanha estatais da última década (agora pos-
dois rapazes com ar Grace Passô, no papel de Juliana, tos em causa). Uma produção que
juvenil de vizinhos do
lado com um dos mais
mulher em tempo de recomeço.
Evocamos Alice Já Não Mora momento se duvida não surgiu dos grandes centros urba-
nos nem do eixo Rio-São Paulo mas
activos núcleos do novo
cinema brasileiro. Filmes
Aqui de Martin Scorsese ou O
Diário Íntimo de uma Mulher de é da urgência sim das regiões — Pernambuco, Mi-
nas Gerais, Brasília, Recife, Paraíba
de Plástico, a produtora que
André Novais Oliveira, realizador
Frank Perry, mas André Novais
Oliveira (n. 1984) vai em e efervescência — algo de bem visível no modo como
vários destes filmes se ancoram em
e argumentista, e Thiago Macêdo
Correia, produtor, co-fundaram
simultâneo mais para trás e mais
para a frente. “Um filme que foi de uma cena que realidades específicas. Na hipnótica
polaroid do quotidiano Querência,
na cidade mineira de Contagem
em 2009, ajudou a rodar filmes
uma grande referência foi Certain
Women da Kelly Reichardt, que mulher daí resultante vem, é das mais vivas Helvécio Marins Jr. (Culturgest, sá-
bado 11 às 14h30 e domingo 12 às
como Baronesa de Juliana
Antunes ou Arábia de Affonso
tem uma onda meio setentista,
sim,” diz. “Gosto muito do tom
contudo, menos da actriz do que
do próprio realizador, igualmente do cinema global. 17h15) acompanha vaqueiros e ro-
deios pelo sertão nordestino. Bruna
Ochôa e João Dumans. Ninguém o
diria: num dos espaços de
feminino desse filme, e nos serviu
muito de base tanto para o
autor do argumento. “Não sei
muito bem onde fui buscar Há razões para temer Laboissière filma no discreto docu-
mentário Fabiana (Ideal, quinta 2 às
Locarno usados para a sua
academia de jovens críticos e
argumento como para a rodagem.
Mas tem muito também de John
Juliana, e não sei se tem tanto da
Grace em termos de que a recente 22h30, sábado 4 às 18h30) a última
viagem de uma camionista. A cidade
cineastas, em Agosto de 2018,
Novais Oliveira e Macêdo Correia
Cassavetes — como na cena da
cozinha, que tem uma influência
personalidade... Foi uma
personagem que foi surgindo da suspensão mineira de Contagem serve como
pano de fundo para três realizadores
parecem turistas, não
profissionais.
grande do Tempo de Amar, da
personagem da Gena Rowlands...”
observação de outras mulheres
fortes” — como a própria mãe do dos financiamentos diferentes: André Novais Oliveira (no
comovente retrato de mulher que é
Temporada, a segunda longa de
André Novais Oliveira depois do
Inevitavelmente, isso vem
também da presença de Grace
realizador, que filmou emEla
Volta na Quinta (e que faleceu possa ser um Temporada: São Jorge, segunda 6 às
21h45, e Ideal, quarta 8 às 20h30), a
excelente Ela Volta na Quinta (a
concurso no Indie 2015), teve
Passô, que transporta o filme aos
ombros com uma performance de
durante a montagem de
Temporada). primeiro obstáculo dupla Gabriel Martins e Maurílio Mar-
tins (no propulsivo mas derivativo No
estreia mundial na competição
Cineastas do Presente do festival
extraordinária delicadeza. E,
ironicamente, Temporada não
Essa capacidade de observar é
um bom exemplo do lugar de ao prosseguimento Coração do Mundo: São Jorge, terça 7
às 18h45, e Ideal, domingo 12 às 18h),
suíço, e está agora na competição
do IndieLisboa (e também no
tinha sido pensado para uma
actriz: Passô impôs-se-lhe durante
André Novais Oliveira na actual
cena brasileira: onde outros dessa vitalidade, Affonso Uchôa (no arrasador Sete
Anos em Maio: Culturgest, domingo
programa de homenagem Brasil
em Transe). Entusiasmados por
estarem no festival, “coisa meio
as rodagens de um outro filme que
Novais Oliveira produziu. “O
guião de Temporada tinha
realizadores partem para o
experimentalismo ou forçam
fronteiras de género, ele prefere a
repondo tudo a zero 5 e terça 7, às 19h15).
A par desta dimensão regional, este
é também um cinema que insiste em
de criança, não só pela questão de originalmente sido pensado para simplicidade. “Isso vem muito do dar voz aos que de outro modo não a
exibir um filme mas sobretudo de uma personagem masculina,” meu contacto com o teriam e que, antes da democratiza-
curtir o festival como cinéfilo”, confessa o cineasta. “Estávamos documentário. As pessoas ção dos financiamentos, não a conse-
realizador e produtor falam de produzindo No Coração do associam o cinema que fazemos guiam ter, os habitantes de um
Alice Rohrwacher, Spike Lee, Mundo, que foi filmado antes, e foi na Filmes de Plástico, de uma enorme Brasil que as elites brancas
cineastas que admiram muito forte ver a Grace no filme — forma meio estranha, a um urbanas deixaram de lado: os pobres,
profundamente. Mas Temporada, logo no primeiro ensaio ela nem documentário, como se fosse mais as minorias, os favelados, as mulhe-
retrato delicado e atento de uma tinha lido bem o texto e foi fácil de fazer que uma ficção. E res, as comunidades LGBTQ. Em
mulher em mudança, tem mais a impressionante. E isso mudou a não é. Quis fazer um filme que suma, os que vivem num Brasil cada
ver com o cinema americano dos ficha. A gente disse, ‘tem de ser fosse o mais ficção possível, uma vez menos “país do futuro” e cada vez
anos 1970, quer no tom solar da ela’, e mudou o sexo da coisa clássica, muito escrita.” mais uma sociedade a duas velocida-
fotografia de Wilssa Esser, quer no protagonista.” O retrato de J.M. em Locarno des, em dois patamares: objectos de
um cinema que convida o espectador
a sentar-se (e a sentir-se) no lugar do
outro num país cada vez mais divi-
dido entre “uns” e “os outros”.
O melhor exemplo disso é o mais
poderoso dos filmes desta retrospec-
tiva: Sete Anos em Maio desenha em
40 minutos e meia-dúzia de planos
um relato do desempoderamento
das minorias, do abuso de poder, da
raiva, da injustiça, da violência, num
filme que faz um encontro imprová-
vel mas certeiro entre Adirley Quei-
rós e Wang Bing. Uchôa assina sozi-
nho Sete Anos em Maio, mas João
Dumans, que com ele dirigiu Arábia,
é presença importante na criação
desta média que se desenha como
“negativo” daquele: um testemunho
Temporada nocturno que (se) pergunta se o Bra-
é o retrato sil está a condenado a repetir ad infi-
delicado nitum o século XX mas que trans-
e atento de uma cende a mera boa intenção ou o
mulher em panfleto político, para reduzir tudo
mudança à dimensão humana.
20 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
Sete Anos em Maio é um dos poucos pintar um Brasil utópico futuro entre também de criar uma persona pe- Kiarostami. Em anos anteriores, casos, o ambiente ganha à narrativa,
filmes abertamente políticos deste o laicismo tecnocrata e a fé corpora- rante o espectador), o retratado do Affonso Uchôa e João Dumans reivin- mas a vantagem vai para Os Jovens
Brasil em Transe. Há também o do- tizada, ancorado num moralismo novo filme, Marcelo Diorio, está longe dicavam o cinema americano dos Baumann, que integra na sua pró-
cumentário-ensaio de Petra Costa retrógrado disfarçado de ópio do de ter o carisma de Julia Katharine, e anos 1970, Kleber Mendonça Filho pria narrativa a dimensão “artesa-
sobre o impeachment de Dilma Rous- povo. Mas aquilo que terá querido acaba por limitar o filme a um gueto evocava John Carpenter, e Anita Ro- nal” da sua produção.
seff (Democracia em Vertigem, produ- ser uma sátira religiosa muito seven- LGBTQ do qual Lembro Mais dos Cor- cha da Silveira, Marco Dutra e Juliana Do que em nenhum momento se
zido pelo Netflix: São Jorge, terça 7 ties cruzada de retrato de mulher em vos escapara. Rojas assumiram o cinema de género. duvida é da urgência e da efervescên-
às 21h45), ou Vigília, curta documen- crise de fé parece ter-se perdido du- O olhar de Bruna Laboissière sobre Este ano, Ramon Porto Mota, em A cia de uma cena que, hoje, é das mais
tal de Rafael Urban sobre a vigília rante o percurso, desbaratando uma a camionista à beira da reforma, Fa- Noite Amarela (São Jorge, segunda 6 vivas e produtivas do cinema global.
frente à cela onde Lula está detido. série de boas ideias num filme cu- biana, propõe o mesmo tipo de mer- às 16h15 e quarta 8 às 16h), e Bruna Há razões para temer que a recente
Mas — à excepção de Tragam-me a rioso mas com uma forte sensação gulho imersivo na realidade que Ju- Carvalho Almeida, em Os Jovens Bau- suspensão dos financiamentos possa
Cabeça de Carmen M., de Felipe Bra- de incompletude. liana Antunes explorara em Baronesa; mann (Ideal, sábado 4 às 20h30, sexta ser um primeiro obstáculo ao pros-
gança e Catarina Wallenstein, cuja Não é caso único numa selecção e No Coração do Mundo seria uma es- 10 às 23h30), utilizam o teen movie e seguimento dessa vitalidade, re-
rodagem coincidiu com (e reflecte) a que, mesmo quando não desce abaixo pécie de remake mineira do Som ao o cinema de terror para retratar a in- pondo tudo a zero. Mas, também por
campanha presidencial de 2018 — to- do interessante, define os limites de Redor —filme-mosaico fazendo esta- segurança sobre o futuro. essa efervescência, continua a haver
dos estes filmes são pratica ou criati- algumas das direcções criativas desta feta entre personagens inter-relacio- O primeiro é uma variação atmos- espaço para a sobrevivência deste
vamente anteriores à eleição de Jair geração. Por exemplo: A Rosa Azul de nadas que acaba por ceder à lógica do férica, quântica e exangue, sobre o cinema, destes cineastas que tanto
Bolsonaro. E todos eles vêem e fil- Novalis de Gustavo Vinagre e Rodrigo melodrama de favela cristalizado na slasher, com um grupo de adoles- nos dizem sobre o Brasil de hoje. Que
mam o Brasil por prismas que nunca Carneiro (São Jorge, quinta 9 às 18h45 Cidade de Deus de Fernando Meirelles centes em viagem de fim de ano a insistem em dizer-nos que nem tudo
escamoteiam que mesmo o que não e sexta 10 às 17h) poderia ser o se- e Kátia Lund, e esgotando-se numa verem-se indefesos perante o pesa- vai bem, que, como cantava Chico,
é político acaba por o ser. gundo numa série de retratos de figu- espécie de package vistoso à medida delo que os espera; o segundo en- “a coisa aqui tá preta / Muita careta
Exemplo disso será aquele que é ras transgressivas na sequência do das expectativas internacionais. cena uma fantasmagoria melancó- pra engolir a transação / E a gente tá
(sessão única, São Jorge, sábado 11 às anterior filme de Vinagre, Lembro Nada disto invalida a fortíssima ins- lica sobre o desaparecimento dos engolindo cada sapo no caminho”.
19h) o mais aguardado dos filmes da Mais dos Corvos. Mas, embora nave- piração de toda esta geração: nas en- herdeiros de uma fazenda mineira, Mas que “a gente vai se amando que,
selecção — Divino Amor de Gabriel gue nas mesmas águas (trata-se de trevistas aqui ao lado, André Novais metáfora de um Brasil condenado também, sem um carinho / Ninguém
Mascaro pega na importância dos filmar alguém que expõe a sua dife- Oliveira evoca Kelly Reichardt e John ao desaparecimento sem deixar segura esse rojão”. O transe segue
evangélicos no Brasil actual para rença como modo de se revelar mas Cassavetes, Helvécio Marins Jr. fala de rasto nem saudades. Em ambos os dentro de momentos.
IndieLisboa
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16.º Festival Internacional de Cinema
2 a 12 de maio
Cinema São Jorge
Culturgest
Cinema Ideal
Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema
PARCEIRO DE PATROCINADOR
ORGANIZAÇÃO APOIOS INSTITUCIONAIS CO-PRODUÇÃO PROGRAMAÇÃO PRINCIPAL PATROCINADORES PARCERIAS MEDIA
RÁDIO OFICIAL RÁDIO OFICIAL RÁDIO OFICIAL JORNAL OFICIAL PORTAL OFICIAL TELEVISÃO OFICIAL
Maguy Marin,
permita romper um ciclo imparável. obrigam-na a esconder-se menos grafa, “tento sempre devolver a ima-
Foi a partir da descoberta de uma atrás da poesia. Em simultâneo, há gem de uma realidade que se torna
ideia de restabelecimento de um “re- “uma urgência”, imposta por um insuportável. E é exactamente isso
gime do desejo”, extraída por Marin “planeta cada vez mais doente e mais que está em curso.”
a grande
do livro Capitalisme, Désir et Servi- pobre” que a encosta à parede, sem O espaço opressivo e sufocante de
tude, do filósofo e economista Frédé- lhe deixar espaço para as subtilezas. Ligne de Crête é disso espelho, de uma
ric Lordon, que a coreógrafa desco- “Neste momento temos os Coletes ausência de espaço para pensar, na-
briu “a peça que tinha vontade de Amarelos em França e há outros pe- quilo que entende ser uma estratégia
sabotadora
fazer”. “Lordon é alguém que recla- quenos movimentos de esperança e do neoliberalismo para matar o de-
mou a palavra há alguns anos em sinais de pessoas que entendem que sejo individual. E lembra o quanto o
França e que me parece muito esti- as coisas não podem continuar assim. capitalismo sabe estetizar a resistên-
mulante”, justifica ao Ípsilon. Tenho vontade de me juntar a eles, cia, como se permitisse o embeleza-
“Já há muito tempo que me influen- de fazer um trabalho que ajude a co- mento da imagem da dinamite ao
cio e inspiro em textos de pessoas que locar em marcha esse movimento.” mesmo tempo que lhe apaga o rasti-
Criadora essencial da dança trabalham com conceitos”, diz-nos lho. Daí que Maguy Marin recuse in-
contemporânea, a coreógrafa dias antes de apresentar Ligne de Sem esperança jectar esperança nas suas criações.
Crête em estreia nacional no Teatro Acreditando em cada indivíduo “Essa esperança dá alguma confiança
francesa regressa a Almada com Municipal Joaquim Benite, em Al-
mada, a 4 de Maio — palco a que re-
como um “espaço de resistência”,
Maguy Marin aponta sem hesitação
de que as coisas se possam resolver e
isso é perigoso porque a situação está
Ligne de Crête, peça dura e gressa depois de, em 2016, ter trazido para a política da educação dos últi- mais bloqueada do que se crê.” Por
sufocante, em que humanos quase ao Festival de Almada a muito
beckettiana May B.
mos 30 ou 40 anos como algo que foi
transformado numa câmara de “pre-
isso, fala da violência das paixões dos
homens. Em vez da esperança, são
autómatos limitam cada vez mais o “Encontro nessa matéria a liber-
dade para depois lhe dar uma forma.”
paração para entrarmos neste
mundo capitalista”. Os seis intérpre-
estas paixões que a criadora quer al-
finetar. Para tentar sabotar o adorme-
seu espaço de acção. A coreógrafa fareja, portanto, concei- tes que vemos em Ligne de Crête são, cimento colectivo.
Gonçalo Frota
S
e Less fosse um cliché seria “Uma vez, quando ele estava na
está a chegar à talvez assim: “Um homem a
vaguear por São Francisco,
casa dos vinte, uma poetisa com
quem tinha estado a falar apagou o
edição portuguesa e pelo seu passado, retor- cigarro numa planta envasada e disse-
nando a casa após uma série lhe: ‘És uma pessoa sem pele.’ Uma
e o seu autor diz de reveses e desilusões”, o poetisa tinha dito aquilo. Alguém que
que tudo “romance melancólico e pungente
acerca da vida difícil de um homem.
ganhava a vida a autoflagelar-se em
público tinha dito que ele, o alto, jo-
começou por ser Da meia-idade falida e gay.” Mas Less
não é isso. Entre aspas está a descri-
vem e promissor Arthur Less, era uma
pessoa sem pele. Mas era verdade.
autobiográÄco até Less ção de outro livro, o último de Arthur ‘Precisas de ganhar dureza’, dizia-lhe
Andrew Sean Less, protagonista do romance ven- constantemente o velho rival Carlos,
se tornar cómico. Greer cedor do Pulitzer de 2018, criatura em tempos idos, sem que Less com-
(Trad. Vasco com pouco de sedutor além da sua preendesse o que isso queria dizer.
em Nova mmmmm
ção, insinuações, ou resistência à
perda. Seja de um amor ou da ilusão
de voltar a sentir uma paixão. Arthur
dureza, da mesma forma que será
possível ‘ganhar’ sentido de humor?
Ou será que se finge, tal como um em-
Livros
Lourenço avança para a sintaxe,
continua a excelente (prática) de
não abandonar nunca a literatura
para todas as ilustrações do que se
encontre a expor. Apenas a título
de exemplo, quando descreve as
orações finais, o autor ilustra a sua
explicação com um trecho lapidar
de Cícero (objecto de diversas
reflexões e louvores de Lourenço
ao longo da sua gramáatica): “por
este motivo todos somos escravos
das leis, para que possamos ser
livres” (p.327). Ao estudar a
evolução fonética da língua
(“Noções de fonética histórica do
latim”), Frederico Lourenço lança
mão de três tipos de analogia que
merecem referência. Camões, a
pronúncia do português do Brasil
e a da área de Lisboa, mas também
a forma de enunciar o nome de
algumas localidades inglesas. São
formas de tornar a sua exposição
mais dinâmica, facilmente
compreensível — e um modo
expedito de aproximar o mundo
Frederico Lourenço apresenta as matérias que compõem a sua gramática com um equilíbrio notável clássico do actual. Outro aspecto
entre rigor e limpidez expressiva que beneficiou da atenção cuidada
do autor foi a métrica, que
Frederico Lourenço expõe do
esclarecimentos são a cada passo labor de tradução da Vulgata. A ponto de vista da poesia, mas
Ensaio acompanhados de intervenções estes se juntam a poesia do período também da prosa, na qual o
que apresentam contextos de ouro da literatura latina e a estudioso distingue “o desenho
Latim: o apelo históricos, recuam e avançam na
cronologia, exemplificam com os
notável “revolução” de um
Satyricon. São, por conseguinte, os
métrico proporcionado pelo ritmo
final das frases” (p.407).
da fonte mais consumados momentos da longos séculos da literatura latina, Nova Gramática do Latim faz jus
literatura latina. Motivo pelo qual a nas suas diversas e aliciantes fases, ao seu título. Na sua metodologia,
Um livro que é, exposição se faz sempre — que aqui se representam. na clareza elegante com que se
elegante, sóbria e claramente — Esta Nova Gramática do Latim de apresenta, no carácter
simultaneamente, uma com o recurso a trechos de poetas, Frederico cumpre plenamente um profundamente arreigado nos
gramática para o estudo do prosadores e dramaturgos que dos propósitos enunciados logo no textos e na fruição literária,
latim, um guia prático e um compõem o vasto panteão da seu Preambulum, e que é o de constitui, realmente, um objecto
recurso inestimável para literatura latina. Para citar apenas “sistematizar de forma novo. Frederico Lourenço
um exemplo, no capítulo desempoeirada os tópicos apresenta as matérias que
(re)visitar a cultura e a “Introdução aos casos”, o caso esenciais para a leitura de textos compõem a sua gramática com um
literatura latinas. Hugo Pinto nominativo é exemplificado com latinos em prosa e em verso”. É, de equilíbrio notável entre rigor e
dos Santos uma citação das Metamorfoses de resto, nesta mesma secção da sua limpidez expressiva. A organização
Ovídio, mas também com palavras gramática que o autor nos chama a dos conteúdos é distinta e
Nova Gramática do Latim extraídas de um grafito de atenção para um aspecto em que logicamente formada, os
Pompeios; o vocativo é servido por seria difícil discordar: uma das encadeamentos são proveitosos, e
Frederico Lourenço
Quetzal nada menos do que excertos de peculiaridades mais interessantes as relações que se estabelecem
Vergílio, Marcial e Catulo. César, desta obra consiste num entre momentos da obra
mmmmm Horácio, Propércio e Plauto, por “Vocabulário essencial da língua enriquecem o aproveitamento do
exemplo, farão as honras dos latina”. São mais de 30 páginas de leitor.
Não há escassez restantes casos. Esta prática, que se vocábulos que, por exemplo, no
de motivos que mantém ao longo da Nova caso das preposições, incluem a
distingam a Nova Gramática do Latim — e que se indicação dos casos regidos por Ficção
Gramática do amplia, com trechos mais longos —, cada uma delas — o acusativo para
Latim de vê-se reforçada com a inclusão de “ad”, ou o ablativo para “cum”.
Frederico uma “Antologia de textos” que Quando se trata de verbos Um romance
Lourenço das
suas
conclui o volume. Trata-se de um
elenco aparentemente breve,
irregulares, estes são enunciados
de acordo com o modelo seguido
sobre nós
predecessoras. composto de vinte e quatro por Frederico Lourenço, ou seja,
Desde logo, convém relembrar que espécimes; contudo, cada um dos “a norma anglo-saxónica” (p.134): Virginie Despentes
não é exactamente habitual que se excertos é antecedido de uma “1.ª pessoa do singular do presente apresenta-nos um anti-herói
publique entre nós um livro desta introdução individual, e todos eles do indicativo (amô); infinitivo melancólico e desiludido —
natureza. A progressiva rarefacção são comentados em pormenor, do presente activo (amâre); 1.ª pessoa em jeito de uma ousada e
do estudo do Latim nas escolas ponto de vista vocabular, do singular do perfeito do
(para nada dizer do Grego) poderá morfológico sintáctico e histórico — indicativo activo (amâuî)”; supino sofisticada radiografia da
explicar esse facto — mas talvez não além de serem alvo de análises (amâtum).” (id.) Todas as palavras “comédia humana” dos
o justifique exclusivamente. comparativas. Por outro lado, o são traduzidas, como se de um nossos dias. José Riço
Acresce que este é tanto um arco compreendido nesta antologia pequeno dicionário se tratasse, e Direitinho
compêndio da língua latina quanto estende-se do século III a.C., com há ao longo de todo o conjunto
uma abordagem fundamental da uma passagem retirada de uma constantes remissões para vários Vernon Subutex 1
sua cultura e literatura. Assim, este comédia de Plauto, ao século VIII d. momentos da gramática. Essa é,
Virginie Despentes
livro nunca deixa de ser uma C, através de um excerto do aliás, uma técnica que marca,
(Trad. de Pedro M. Fernandes
descrição exacta, clara e Venerável Beda. De César e Salústio muito positivamente, esta obra — a
Ventura)
consumada das regras e dos a Santo Agostinho e São Jerónimo, comunicação entre as suas Elsinore
meandros mais intricados da passando por Tito Lívio, Vergílio, diferentes secções revela-se um
“floresta antiga” (p.39) de que Propércio e Petrónio, estamos instrumento de grande utilidade. mmmmq
falam uns versos de Vergílio citados perante alguns dos mais ilustres Tal como fizera ao apresentar
por Frederico Lourenço; e, no exemplos da historiografia latina, todas as incidências da Vernon Subutex 1 — o primeiro
entanto, as explicações e os mas também da patrística e do morfologia, quando Frederico volume de uma trilogia já
26 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
publicada em pedir-lhes, nos dias que correm, dinheiro não era problema. E assim
França — da que considerem isso doentio?” vive alguns meses. Para Alex,
cineasta e Vernon, a personagem principal Vernon servia para dar algum valor
escritora que titula o livro, é um inesquecível real ao seu dinheiro. Mas chegou o
francesa Virginie anti-herói melancólico e dia em que Alex adormeceu numa
Despentes (n. desiludido. Desde os 20 anos de banheira e morreu afogado, uma
1969), é um idade que mantinha uma loja de co-produção de “champanhe e
romance audaz e venda de discos, e em 2006, com pastilhas”, e “vá-se lá saber que
modernamente cerca de 40 anos, a loja teve de caralho fazia sozinho numa
pícaro, escrito numa prosa vívida fechar e ele viu-se sem emprego. banheira, num hotel, em plena
e fluída que, numa prova de risco Solteiro e sem filhos foi tarde.” Vernon é despejado. Foi
e ousadia, deixaria o senhor sobrevivendo durante uns anos de assim que tudo começou.
Houellebecq lá para trás. Este pequenos expedientes e vendendo Esta brilhante narrativa de
livro várias vezes premiado — e a sua colecção de discos de vinil (e Virginie Despentes vai decorrendo
finalista do International Man de outros objectos que em ritmo acelerado: Vernon
Booker Prize 2018 — é uma épica coleccionara ao longo dos anos) no digere a morte do amigo enquanto
sátira social, um quadro realista eBay; depois escreveu uns artigos bate a outras portas, entre várias a
da França do século XXI, mas sobre rock e também compilou de Emilie, antiga amante do amigo
também um retrato dos nossos imagens para um livro sobre o morto, que entretanto se tornara
dias atarefados, do nosso cantor Johnny Hallyday. Seguiu-se “gorda e invisível”. As várias
egoísmo, das injustiças a que a inscrição no “rendimento personagens vão formando uma
quase nos tornámos indiferentes. mínimo”. “Viu as coisas espécie de teia em que os nós que
Vernon Subutex 1 é um romance desmoronarem-se em câmara lenta ligam os vários fios são os seus
lúcido, com uma clara intenção e afundarem-se de forma passados partilhados. Aos poucos,
política, e que ao descrever as acelerada. Mas Vernon não cedeu, Vernon apercebe-se que já tem
consequências de um modo de nem quanto à indiferença, nem poucos vínculos de amizade:
vida no cenário de uma cidade quanto à elegância.” De seguida muitos dos amigos já tinham
(Paris, mas podia ser qualquer vieram as desgraças em série. morrido, e outros já não viviam
outra capital europeia) não deixa Terminada (por uma decisão em Paris, deixaram a cidade por
de radiografar as causas: “as burocrática) a atribuição do causa dos preços. Ele é uma
pessoas desta geração foram “rendimento mínimo”, Vernon espécie de última testemunha de
criadas ao ritmo da Voz da casa vê-se sem dinheiro para pagar a um “mundo perdido”. Mas Vernon
do Big Brother: um mundo em renda da casa que habita. Hesita não se separa dos mortos, fica na
que o telefone pode tocar a em pedir dinheiro durante dois sua companhia deixando-os no
qualquer momento para ordenar meses, mas na proximidade de ser seu tempo. Ao olhar uma foto
a expulsão de metade dos seus despejado, socorre-se de um amigo antiga, vê: “Quatro rapazes no
colegas. Eliminar o próximo é a de há muitos anos, Alex Bleach, nevoeiro, mas magros, com muito
regra de ouro dos jogos que lhes uma estrela rock, bonito e cabelo, os olhos vivos e o sorriso
meteram no biberão. Como atormentado, para quem o desprovido de amargura”, e que
JEAN-FRANÇOIS PAGA
ignoravam como estavam na parte
boa do que a vida lhes reservava.
Com um talento impiedoso, e
num registo quase sempre áspero
e cru, Virginie Despentes vai
tecendo observações satíricas (à
mistura com um impressionante
conhecimento musical dos anos
das décadas de 1980 e 1990) que
compõem uma “comédia humana”
que se desenrola pela topografia
social de uma Paris hostil — quase
uma versão século XXI das
narrativas da França de Balzac no
século XIX. No meio de todo o
caótico frenesim narrativo,
atravessado por apartes cáusticos
e muita ironia, Despentes vai
controlando a escrita do romance
de maneira impressionante, numa
“desarrumação” disciplinada e
coesa. Não sendo um romance
polifónico (no sentido teórico do
termo), é-o pelos vários pontos de
vista dos muitos olhares que o
enchem. A mestria com que a
autora orquestra as energias
necessárias para captar e
descrever os males do nosso
tempo, parece desdobrar-se numa
cortina de melancolia que não
abandona Vernon, o homem
cercado pelos fantasmas dos
amigos mortos.
No meio da trama descrita, há
um pormenor (ou muito mais do
que isso) que faz do romance
também um thriller: Vernon tem
em seu poder três cassetes de
vídeos que Alex fez antes de
morrer; uma frase deixada sem
cuidado num comentário no
Facebook anunciou-o. Sem saber,
Um talento impiedoso, um registo áspero e cru: Virginie Despentes tem no seu encalço uma multidão
de produtores, estrelas porno e fãs.
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 27
Discos
Pop
O venturoso
Anderson .Paak
Não é que a diferença seja da
água para o vinho, mas o
certo é que Ventura, disco
produzido no mesmo
período de Oxnard (editado
no ano passado), é bem claro
na demarcação do terreno
onde a voz e o groove do
californiano melhor se
movimentam.
Francisco Noronha
Ventura
Anderson .Paak
Aftermath
mmmmq
Venice, Malibu,
Oxnard: qual a
próxima Um digníssimo sucessor dos grandes nomes da soul americana
paragem de
Anderson .Paak?
— era a pergunta rappado do que cantado, com great fighters, once every ten years: faz sentir em Ventura: a
que aqui fazíamos em Dezembro tónica nas cadências hip-hop, . Rocky Marciano, Sugar Ray instrumentação orgânica, a
sem imaginar que o Paak volta à soul mais clássica de Robinson, Joe Lewis. Sometimes you sofisticação dos arranjos, o
esclarecimento chegaria escassos Malibu (e a isso não será alheia a get ‘em all at once. Me? I had my classicismo (que só
quatro meses depois. A resposta é, maior liberdade de movimentos three when I was sixteen”. A voz de equivocadamente poderá passar
então, Ventura — ou, baralhando que afirmou ter beneficiado por Chazz Palminteri — enxertada de A por simplismo a ouvidos menos
para voltar a dar, Malibu. Ou parte de Dr. Dre., produtor Bronx Tale (1960, filme realizado e rodados) da orquestração, com
ainda… Venice. Dito de outra executivo aqui como em Oxnard), contracenado por Robert De Niro) destaque para as secções de
forma: depois de um disco mais um dos pontos altos — senão o — condensa bem, no início de sopros (sax, trompetes, as flautas
mais alto — do ano discográfico de Winners Circle, a toada global de que fecham Come Home) e,
2016. E volta com muito acerto, Ventura: os amores e desamores, sobretudo, de cordas (os baixos
pois que, sem prejuízo da sua encontros e desencontros (“Now gordíssimos, sim, mas, acima de
impressionante transversalidade, we’re strangers in the night”, o tudo, os soberbos violinos de
é, de facto, nos campos mais célebre verso de Sinatra de pernas Make It Better, Reachin’ 2 Much ou
lânguidos, cantados, esparsos, para o ar), o sempiterno boy Chosen One) — algo que também
que a sua voz, o grão do seu (un)meets girl de que “Make It leva o disco para aquela soul
espantoso timbre, o swing da sua Better” fala (mas que .Paak nos faz festiva, requintadamente tocada,
atitude plenamente se revelam — é ouvir, com um certo travo a muito seventies (Kool & The Gang,
nesses campos, enfim, que se doo-wop, como se fosse a primeira Ohio Players, Earth, Wind & Fire,
afirma, de pleno direito, como um vez — a isto se chama, meus por aí). Pelo caminho, claro, a
digníssimo sucessor dos grandes senhores, um “clássico”). E, claro, vibração funk, o pulsar disco que
nomes da soul americana como, a ideia do amor como luta, fazem igualmente do álbum um
por exemplo, Smokey Robinson, procura, resistência, enfim, generoso, irresistível, convite
colaborador na composição de “sangue, suor e lágrimas” (e será para a pista ao ritmo das já
Make It Better, single — belíssimo que não está já tudo perdido mencionadas Reachin’ 2 Much
na sua (aparente) simplicidade quando se diz à amada “Let’s (que encerra com uma guitarra
(idem para o videoclip) — que please make some new wah e .Paak a trautear em registo
pré-anunciou o álbum (para o qual memories”?...). Esta ideia de “abossado”, reiterado nos apitos
contribuíram, é certo, inúmeros struggling, hustling mesmo, no de King James), Winners Circle
nomes de primeira água, mas algo amor é também, contudo, (preenchida por muito scat,
que só a ficha técnica melhor política, e ela é aqui, como vem recurso algo esquecido na música
elucida, tamanho o brilho que . sendo hábito na verve de .Paak., negra mais recente) ou “Jet Black”
Paak guarda para si da primeira à um dos seus maiores trunfos: a (onde, já com um pé no house, .
última malha). Ventura — o forma como, nas suas canções Paak repesca Brandy, esquecida
primeiro trabalho em que (nas letras e no modo como as voz do R&B dos noventas, se bem
DDD − Festival Dias da Dança abandona o padrão de collage pop trabalha e declina vocalmente), o que numa aparição quase tão
na capa, agora substituído por amor e o olhar sobre a sociedade discreta como a do ex-The
4
western a colorir o cenário e sem certezas do que deveria ser e
pianada blues à Nicky Hopkins. que relevância teriam ainda,
Continuemos, então. actualmente, as bandas de guitarras
Aquela é Harmony hall, a segunda (expressão deles), foram viver a vida
canção do quarto álbum dos
Vampire Weekend, o primeiro da
segunda vida da banda
longe. Até que…
Até que Ezra Koenig começou a
compor canções. Canções umas
mai21h30
nova-iorquina. Chega depois desse atrás das outras, canções que
Modern Vampires of the City que era dariam, diz ele, para editar um par
todo ele sobre o crepúsculo da de álbuns com 25 temas. Não foi tão
imortalidade juvenil e o medo longe. Ficou-se pelo álbum duplo,
perante as sombras ameaçadoras 18 canções, em que, sem a presença
no horizonte. Isso já foi há muito, já constante e a influência directa de
foi há uma vida. De 2013 para cá, Batmanglij, os Vampire Weekend
citemos uma evidência, o mundo passam a ser a visão de Ezra Koenig,
enlouqueceu mais ainda. Daí para com o baterista Christopher
cá, o teclista Rostam Batmanglij,
primeiro cúmplice do vocalista/
Tomson e o baixista Chris Baio
como figurantes empenhados, e
Bélgica Itália
guitarrista Ezra Koenig na definição uma mão cheia de colaboradores monolog event it moves me
Samuel Lefeuvre Aristide
do som dos Vampire Weekend, externos — pelo álbum passa a voz
abandonou a banda — divórcio de Danielle Haim, das Haim, o
amigável, Batmanglij até co-compôs
algumas canções do novo álbum.
Quanto a Koening, trocou Nova
guitarrista Steve Lacy, dos The
Internet, ou David Longstreth, dos
Dirty Projectors. Pois bem, que é
Florencia Demestri Rontini
Iorque por Los Angeles, colaborou então Ezra Koenig hoje? Continua
com Kanye West, criou uma série de um compositor de lírica inspirada e
anime para a Netflix (Neo Yokio), um vocalista capaz de carregar uma
ª