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Sexta-feira | 3 Maio 2019 | publico.

pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.602 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

Escultora é a representante
de Portugal na bienal de arte

Os fantasmas
de Leonor
Antunes
em Veneza

b52758ce-38b1-47e1-878e-9d621e8b2ab3
Acção Paralela Crónica
António Guerreiro John Freeman
Anti-sionismo e anti-semitismo A voz
H
á dez anos eu estava

A
s reacções desmesuradas a um cartoon de identidade religiosa e a normalizá-lo, através da sentado à secretária em
António publicado no Expresso e na edição reterritorialização e politização num Estado. Sobre o Londres quando deparei
internacional do New York Times trouxe até amor místico pelo “povo judeu” (e nem é preciso com um embrulho que me
nós a questão de uma crescente equiparação, recorrer às teses altamente polémicas de um era destinado debaixo da
em toda a Europa e nos Estados-Unidos, historiador judeu, Shlomo Sand, para o qual esse secretária de um editor
entre anti-sionismo (ou, ainda mais entidade chamada “povo judeu”, à qual se quer que trabalhava para a revista
estritamente, a política e o reforço de um Estado atribuir uma unidade eterna, é um mito), devemos Granta, onde eu na altura era
militar e colonial pelo actual governo de Israel) e recordar o que escreveu Hannah Arendt, numa dura editor. Era um embrulho castanho
anti-semitismo. Ainda recentemente, ao visitar um troca epistolar com Gershom Scholem, em 1963, já e rectangular, reconheci a escrita,
cemitério judeu, o Presidente francês Emmanuel depois da publicação de Eichmann em Jersusalém. em estilo de notas ao acaso, do
Macron, prometendo adoptar medidas legais para Scholem escreveu-lhe a contestar a sua visão da meu pai. O que é isto? A secretária
combater o anti-semitismo, definiu o anti-sionismo “banalidade do mal” e a tentar refutar as acusações do editor estava sempre uma
como uma das formas modernas de anti-semitismo. É que a filósofa judia tinha feito aos dirigentes judeus, confusão — eu não tinha problemas
verdade que neste domínio é difícil traçar fronteiras imputando-lhes responsabilidades no Holocausto, e a com isso, até que comecei também
rigorosas, evocando contingências históricas e certa altura diz-lhe o seguinte: “Na tradição judaica a viver em estado de caos. Trouxe o
pragmatismos políticos, porque há um “eterno existe um conceito, difícil de definir e, no entanto, embrulho para a minha secretária
anti-semitismo” responsável por uma mística tão forte bastante concreto, que se chama Ahabath Israel: ‘o e abri-o com uma faca. A última vez
como aquela que envolve a figura simétrica, a do amor pelo povo hebraico...’ Em ti, cara Hannah, não que vira o meu pai estávamos os
“judeu eterno”. Por isso, aliás, é que se pratica hoje encontro vestígios dele”. Ao que Hannah Arendt lhe dois de pé na sala de sua casa a
uma nefasta indistinção entre o anti-semitismo respondeu: “Tens toda a razão, não me sinto animada norte do estado de Nova Iorque. Os
europeu moderno e o anti-sionismo árabe que não se por nenhum ‘amor’ desse género: na minha vida, médicos legistas tinham acabado
baseia em questões de hostilidade étnica e de nunca ‘amei’ nenhum povo ou colectividade. Amo de fechar a minha mãe dentro do
impurezas biológicas, mas apenas em conflitos ‘apenas’ os meus amigos e a única espécie de amor saco e carregavam-na com cuidado
territoriais. que conheço e em que acredito é o amor pelas para a sua última viagem de carro.
Basta um conhecimento superficial da história do pessoas”. Hannah Arendt foi talvez a mais importante 90 milhas por colinas e estreitos do
sionismo para sabermos que o projecto sionista crítica do sionismo político, no século XX. E um dos Mohwak Valley até à Universidade
causou sempre muitas reticências nalguns sectores seus argumentos era o de que o objectivo de fundar de Syracuse onde cientistas iriam
judaicos, incluindo os mais ortodoxos do ponto de um Estado judaico “como a França é francesa e a dissecar o seu cérebro para
vista religioso. E alguns dos mais importantes Inglaterra é inglesa” teria como resultado “uma encontrar provas do Alzheimer que
anti-sionistas e opositores da política de Israel foram Esparta moderna, uma nação de dois milhões e meio a tinha morto.
e são intelectuais judeus. Pensemos em duas figuras de ‘iguais’ que reina sobre dois milhões de hilotas”. Não me lembro do que é que a
eminentes do judaísmo, na Alemanha, os filósofos e Lidos hoje, os argumentos de Hannah Arendt (que nota dele dizia. Mas dentro do
teólogos Martin Buber (1878-1965) e Franz não podem ser desligados da crítica radical que fez embrulho o meu pai tinha colocado
Rosensweig (1886-1929), que trabalharam em do Estado-nação) já não têm o mesmo alcance que um pequeno CD, que enfiei no
conjunto numa tradução da Bíblia para a língua tiveram no tempo em que foram formulados, na computador. Fechei a porta da
alemã. O primeiro achava que os fins do sionismo medida em que parecem fornecer matéria para pôr minha sala. Sem ter pressionado
político pervertiam o espírito do sionismo cultural. em causa a legitimidade do Estado de Israel. Mas não qualquer botão o meu minúsculo
Por isso, ele e muitos membros da organização a que é isso que devemos deduzir do discurso de Arendt. O posto que dava sobre Holland Park
pertencia contestaram a legitimidade da declaração que ela queria afirmar era que a guerra entre Israel e encheu-se com uma voz. Falava
da soberania política de Israel como estado judaico, o povo palestiniano é uma guerra entre dois povos com um sotaque uniforme,
feita por Ben-Gurion em 1948. Por seu lado, que se combatem pela mesma terra e que, por isso, anasalado, típica do norte do estado
Rosensweig via no sionismo uma forma laicizada do só pode encontrar solução no recíproco de Nova Iorque. Soava a uma voz
messianismo que tendia a privar o judaísmo da sua reconhecimento das duas partes. jovem, a voz de uma jovem mãe —
na verdade era. Era a minha mãe. O
meu pai tinha encontrado e
digitalizado 60 minutos de
Livro de recitações gravações de 1983, quando eu tinha
8 ou 9 anos. O meu pai mudara-se
“A taxa de mortalidade infantil disparou em Portugal” para Sacramento, indo à nossa
in RTP, Telejornal das 20h, de 29 de Abril frente para um trabalho que atrairia
a minha família para a Costa Oeste
“Medialecto” é um neologismo para designar a é que a mortalidade infantil dispara o que quer que durante o resto da minha infância.
linguagem dos media, o idioma que eles constroem seja? E, no entanto, todos nós percebemos o que ela Na altura em que as chamadas
ou amplificam, quer por motivações ideológicas significa porque já estamos familiarizados com o seu telefónicas eram caras, eles
(conscientes ou inconscientes), quer por puro uso. Mas a dimensão pragmática da linguagem não comunicavam através de cassetes.
idiotismo (“idiotismo” é uma palavra que tem a justifica tudo, e a prova é que fora do idioma a que “Com Jaaahn”, dizia a minha mãe ao
mesma etimologia de “idioma”. O que pode leva Karl Kraus chamou “jornalês” ninguém ousa dizer ou meu pai, “com Jaaahn” estava a
alguém a escrever ou a dizer “A taxa de mortalidade escrever esta barbaridade. Ela fica assim reservada a correr tudo bem na escola, ainda
infantil disparou em Portugal” sem perceber que se um “jogo de linguagem” que mais ninguém joga. brincava com carros. Em fundo, eu
trata de uma frase absurda, isto é, sem sentido? Como Estes idiotismos são o sintoma de um mal maior. com oito anos imitava o barulho de

FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO FOTO DA CAP

4 12 16 18 22
Leonor Antunes Lena d’Água New Order Brasil Maguy Marin
leva os seus Volta como e A Certain Ratio O cinema que a grande
fantasmas a Veneza se nunca tivesse Histórias de talvez não exista sabotadora
ido embora sobreviventes amanhã

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O que me passa pela cabeça
Foi há quase 20 anos que nos disseram que os nerds
estavam a vingar-se e que os geeks agora eram cool.
Com eles (e com a internet, claro) viriam os trailers
como acontecimento, viria a cultura spoiler ou a
indústria dos recaps — uma avalanche de termos em
inglês que nos persegue desde o advento do
blockbuster nos EUA. Esta é a cultura partilhada de
massas e o título do filme de hoje é Geração X:
Apocalipse, porque tudo está a chegar ao fim. Pausa
dramática.

Têm sido semanas, e serão meses, de nostalgia no


um Volkswaggen, o meu carro responder com luz através da sua presente. Nos anos 1990 começaram os fan studies,
favorito na altura. Ao ouvir isso em bela, inteligente, segura e gentil com a academia interessada em dissecar os
2010 senti um aperto no coração — voz. Gradualmente, no entanto, à comportamentos de quem tornava em identidade o
ali estava ela, e no entanto ela estava medida que ficou mais doente, esse seu gosto por um livro, filme ou videojogo. No final
também, e estaria para sempre som foi substituído pelo som da sua dos anos 1990, a fan culture saltava para o
depois disso, em parte alguma. voz na minha cabeça. Foi uma mainstream, George Lucas fazia fan service e
Direi porque é que isso foi substituição segura porque esse começava a primeira trilogia Star Wars desde o
especialmente estranho. Nos som interior tem estado sempre lá. pecado original de 1977. Uma década depois o
últimos cinco ou oito anos da Era o som da minha consciência, Universo Cinemático Marvel já estava em movimento
minha vida, a minha mãe ficara penso às vezes, um som construído e nascia A Guerra dos Tronos, uma série global a
incapaz de falar. Primeiro, o pela memória. Quando esse som replicar tudo isto na televisão. Este ano, todos saem
Alzheimer e o Parkinson interior substituiu completamente de cena — alerta de spoiler — pelo menos na sua
privaram-na das suas a sua voz ouvi-o cada vez mais e encarnação actual.
responsabilidades, depois do mais, ou tentei — porque era tudo o
equilíbrio, depois da capacidade que eu tinha. Disse coisas a essa Em Dezembro, com Star Wars: The Rise of
de se movimentar, e algures nesse voz interior, na minha cabeça, Skywalker, acabam os filmes centrados na família
período a fala também se foi. coisas que não disse a mais Skywalker encetados em 1977. Por estes dias, o
Durante anos visitava os meus pais ninguém — porque sentia a falta Universo Cinemático Marvel que entrelaçou no
naquela pequena, sombria cidade, dela. Ou porque queria e precisava cinema pilhas de comics pôs fim à actual encarnação
falando com a minha mãe através de perdão. Por não a ter visto de super-heróis em Vingadores: Endgame. E aquela
do toque. Dava-lhe a mão, e suficientemente quando ela estava série que é uma fantasia de dragões e política está a
afagava-lhe a cabeça, e sorria-lhe, e doente. Por não ser quem eu bombardear o mundo com os seus últimos episódios.
até aos últimos anos da sua vida ela queria ser. Viver estes tempos é pensar como estas histórias têm
correspondia com o sorriso. Ela Depois dela morrer, ouvi essa tanto em comum. Uma delas é a Geração X, nascida
estava ali dentro, eu sabia, e por voz, alto. Era de manhã, não muito entre os anos 1960 e 1980, que os consumiu pela
isso ficava incomodado quando o tempo depois de termos espalhado primeira vez e que agora, sentada nas cadeiras de
meu pai tinha certas conversas as suas cinzas, e o som dessa voz produtor, decisor ou realizador vê os seus
assustadoras à frente dela. O que interior acordou-me. Como se ela heróis no entretenimento de massas ou
fazer com a herança; como saber estivessee no quarto. As pessoas em repete as suas fórmulas para criar novos
que ela se aproximava do fim. luto contam
ntam frequentemente isto. produtos à sua imagem. Outro traço comum
Ocorreu-me no entanto que o Até isso me acontecer permanecia é esse tipo de ficção que hoje domina
do televisão
pedaço mais duro era o dele: ele céptico. Pensava sempre: a mente e cinema (cada vez mais parecidos nas suas
tinha que fazer o luto primeiro do sabe tratar
tar de nós de formas que escolhas e formatos quando são sinónimos
sinón de
que nós para nos dizer, aos seus nem imaginamos.
aginamos. Talvez seja massas), saída de uma Terra do Nunca
Nunca.
três filhos, o que esperar. Não verdade.e. O que sei é que o som da
apenas presenciara tudo em voz delaa acordou-me. Ela disse, de Estamos no cume do que o crítico de T TV Brian Lowry
câmara lenta, mas passara anos e forma muito distinta, está tudo chamou “peak geek”? O produto geek k que simboliza
anos com ela em silêncio. Que bem… estástá tudo bem. E o que a Geração X consumiu hoje é um raro
estranho deve ter sido partilhar desapareceu.
receu. E de repente algo públi
acontecimento de comunhão de públicos cada vez
essa decadência íntima sem poder cedeu em m mim, algo muito duro mais fragmentados. O geek k era minoria,
minori o nerd era
ouvir de volta amo-te ou obrigado. dentro do qual eu tinha metido franja, mas há anos que os seus gostos mais pop são
Ou tenho saudades tuas. Ou toda a raiva
aiva e frustração, o o entretenimento de massas que nos ffaz sentar na
porquê eu? Ou desculpa. Ou tenho sentimento
nto de ter sido sala mesmo até ao final dos créditos — outro
medo. Ou: não tenhas medo. enganado.
do. Pela primeira vez comportamento do fandom (mais um inglesismo),
São coisas que sei que ela diria em anoss sentia-me livre. que é ficar à espera (e aí vem outro inglesismo)
ing de um
porque quando ela podia falar ela Não muitoito depois fui qu faz uma
stinger. A cena final depois do final, que
dizia-nos coisas assim. A minha mãe trabalhar
ar e recebi ponte para mais um filme, para mais u um franchise,
tinha uma bela voz, era um perfeito o embrulho.
ulho. apoc
para mais séries. Neste mundo, o apocalipse é
instrumento de cuidados. Usava-a Havia a voz meramente temporário.
no seu trabalho. Como assistente dela, a
social, ela ouvia pessoas com voz Vive-se o fim de uma era de storytelling
storyte de género,
problemas, pessoas que estavam real, a como proclamava há dias a crítica Melanie
muito doentes ou a morrer, e ela voz McFarland na revista online Salon.
Salo Mas tal
utilizava as mesmas palavras para saudávelel que tinha sido. Às vezes como a geração que viu Star Wars
W e agora
lhes responder. As pessoas forço-me e a ouvir essa gravação, produz filmes Marvel, séries com
co dragões e
adoravam-na por isso. Eu adorava-a porque é essa mulher que recordo mais filmes Star Wars, “os cria
criadores de mitos
pela coragem e pela dificuldade também. m. de amanhã estão a absorver agora toda
desse trabalho, também. Estava esta informação e a destilá-la
destilá- em novas
orgulhoso da sua habilidade de John Freeman
eman é o autor de histórias, mesmo que só nos
n confins das
encher o mundo com tanta ternura. Mapas, acabado de editar em suas imaginações”. É o fim
fi de uma era
De absorver tanto terror e Portugal mas vai haver séries de TV de Tronos,
Star Wars ou Marvel, e novos filmes
verdade o teaser de
também. Na verdade,
A CAPA NICK ASH E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT Ataqu dos Clones
Geração Z: Ataque
deve estar mesmo
mes a chegar.

24
Andrew Sean Por Joana Amaral
Greer Cardoso
joana.
O desespero, cardoso@publico.pt
cardo
o riso e o
Pulitzerfres
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 3
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MIGUEL MANSO

“Trabalho com
a suspensão,
mas não é uma coisa
etérea. Não é uma
coisa em que se olha
para cima, a que não
temos acesso.
É sempre uma relação
corpo a corpo”
Leonor Antunes é como as suas elegantes esculturas: o seu lado conceptual esconde
outro mais manual, táctil. Mas é preciso tempo para as descobrirmos. No Palácio
Giustinian Lolin, onde Portugal tem instalado o pavilhão nacional em Veneza,
as esculturas da artista encontram novas formas de se pendurarem, de viverem
suspensas, de treparem. O desaÄo, imposto pela natureza histórica do espaço,
pode ver-se já partir da próxima semana com a inauguração da Bienal de Arte.

Isabel Salema, em Berlim ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 5


“A
nd Berlin will always
needs you”, diz a can-
ção que dá título à
mais recente exposi-
ção em Berlim de Leo-
nor Antunes, a artista
portuguesa que este ano represen-
tará Portugal na Bienal de Arte de
Veneza e que há 15 vive e trabalha na
capital da Alemanha. É um verso que
soa a despedida, que ressoa nas pa-
lavras que hão-de vir aí, quando nos
sentamos na cafetaria do Gropius
Bau, galeria pública que mostra o
trabalho da artista entre vários ou-
tros berlinenses. “Sim, estou a pen-
sar em voltar para Portugal, mas não
sei exactamente quando. Talvez da-
qui a dois anos.”
Aos 47 anos, a caminho de Veneza
com as suas esculturas suspensas,
onde vai inaugurar a exposição a 9 de
Maio, Leonor Antunes começa tam-
bém a preparar-se para uma viagem
mais definitiva, pondo em prática
uma decisão que já está tomada há
tempo: regressar a Portugal em 2020
com o resto da família, o artista Sérgio
Taborda e a filha Olga, de oito anos.
“É uma ideia que temos estado a tra-
balhar. Não tem nada a ver com que-
rer deixar esta cidade, porque estou
muito bem em Berlim, mas com ter
um pouco mais de qualidade de vida.
Em Lisboa, podemos ver o mar nas
viagens entre o atelier e a casa, coisas
desse género… E a Olga precisa de ter
mais contacto com a língua, porque
só fala connosco em português ou
quando vai a Portugal nas férias. Es-
tamos a pensar voltar quando ela
entrar para o quinto ano.”
Leonor Antunes é como as suas
elegantes esculturas: o seu lado con-
ceptual, abstracto, esconde outro
mais manual, táctil, orgânico. Mas é
preciso tempo para descobrirmos
ambas. Artista e obra são complexas
e gostam de manter o mistério. Tam-
bém não é comum Leonor falar da
dimensão extra-artística da sua vida,
porque embora tenha já uma car-
reira de 20 anos, com exposições
que lhe deram alguma notoriedade
em importantes instituições de arte
contemporânea — do Hangar Bic-
coca, em Milão, ao Museo Tamayo,
na Cidade do México (2018), pas-
sando pelo New Museum de Nova
Iorque (2015), pela Whitechapel
Gallery de Londres (2017) ou pelo

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NICK ASH

MIGUEL MANSO
Museu de Arte Moderna de São Fran- em usar a palavra escultura, porque
cisco (2016) —, o seu trabalho não é se adequa mais aquilo que faço. Até
autobiográfico e tem passado pouco hoje não encontrei uma forma me-
por Portugal, onde se mantém quase lhor de o definir. O que acontece é
uma desconhecida fora do meio das que as esculturas que faço são, muitas
artes plásticas. vezes, pensadas para um sítio. De-
Comecemos, então, pelo princí- pois, há sempre o diálogo das peças
pio, muito antes da chegada a Berlim umas com as outras e o espaço que
em 2004: quando é que soube que existe entre elas também me inte-
queria ser artista e qual é a sua me- ressa. Essa energia também é escul-
mória mais antiga em relação a esse tura, não é só o material com que é
desejo? “Não sei. É uma pergunta feita e o objecto que está lá. Interessa-
difícil. Mas acho que sempre quis ser me a presença e a relação com o
artista, porque nunca quis ser outra corpo, com uma atmosfera que é ge-
coisa. Tem um pouco a ver com a rada. Interessa-me a proximidade fí-
forma como nos relacionamos com sica que se tem através do corpo com
o mundo: como é que transforma- esse objecto.”
A exposição mos as coisas que vemos e que nos Na exposição do Gropius Bau, que
para a Bienal interessam em matéria.” Lembra-se ficará até meados de Junho nesta ins-
de Veneza foi de desenhar desde pequena, de tituição próxima de Potsdamer Platz
pensada na sempre ter tido imensa curiosidade e de um dos trechos do Muro de Ber-
verticalidade pelas coisas à volta, condição que lim que ainda é possível encontrar na
porque as acha obrigatória para se ser artista, cidade, há peças feitas em materiais
esculturas porque sem curiosidade não se con- familiares como o cabedal, o vidro, a
se agarram segue criar. “Nunca tive artistas na cana, o latão ou a corda que mostram
entre o chão família, mas os meus pais, de alguma a importância do trabalho artesanal
e o tecto; forma, sempre me incentivaram. e da manualidade na obra da artista.
a artista criou Talvez mais o meu pai, que era um Muitas das obras de Leonor Antu-
um sistema de apaixonado por cinema e mostrava- nes estão penduradas a partir de
perfis nos, a mim e aos meus dois irmãos, cordas, como as que foram executa-
em alumínio imensos filmes.” das em cana importada da Indoné-
branco capaz O pai, engenheiro civil, fê-la pensar sia. Têm nomes de outros artistas,
de esconder em como nos situamos no lugar em identificados pelas iniciais ou pelo
as paredes que vivemos mas também como con- nome próprio, como Franca Helg,
do palácio, seguimos ser transportados para fora designer e arquitecta italiana já de-
incluindo do que conhecemos. “Isso é muito saparecida, cujo trabalho Leonor
as pinturas importante, porque os artistas ou as investigou intensamente para as ex-
históricas: obras de arte levam-nos a viajar. A posições que fez em Milão e na Bie-
“Tentei curiosidade que tinha e a forma como nal de Veneza de 2017, em que foi a
encaixar o via as coisas fazia com que conseguís- única portuguesa seleccionada.
meu trabalho semos viver num mundo um pouco Algumas esculturas chamam-se
num espaço à parte.” Franca, mas podiam chamar-se Anni
com uma Como muitos artistas da sua gera- (Albers), Carlo (Scarpa) ou Lygia As obras de cana foram executadas
linguagem
mais
ção, fez a escola artística António
Arroio, em Lisboa, onde acabou o
(Clark), os fantasmas que povoam,
suspensos, as exposições da artista.
“Há sempre o diálogo na oficina Bonacina 1889, que existe
há um século e já produziu os móveis
moderna” secundário. Não entrou logo em
Belas-Artes. Frequentou durante um
Nada disto é uma metáfora, porque
as obras de Leonor Antunes têm no-
das peças umas de Franca Helg feitos no mesmo ma-
terial. “O senhor que tem esta oficina
ano o curso de Cenografia da Escola
Superior de Teatro e Cinema. “Não
mes de figuras históricas, muitas ve-
zes desconhecidas. E a suspensão é
com as outras lembra-se de ela trabalhar à escala
real em cima do desenho. Aqueciam
foi uma hesitação. Não queria estar
um ano parada sem estudar. Depois
um dos temas que mais tem explo-
rado na última década.
e o espaço entre a cana com o maçarico até consegui-
rem a forma que estava no desenho.”
entrei em Belas-Artes, onde se podia
escolher entre pintura, escultura e
“Trabalho muito com a suspensão,
mas não é uma coisa etérea. Existe
elas também me Mas a escultura Franca mostra ape-
nas um detalhe de um cabide feito
design. Só havia essas três opções. Eu
pintura nunca faria. It’s not my thing.
agarrada a uma parte de um tecto, a
uma superfície que está lá. Depois, a
interessa. Essa pela designer nos anos 50, irreconhe-
cível à primeira vista. “É a menos
Não saberia o que haveria de fazer.”
Vê-se como uma escultora e ao que
escultura chega quase até ao chão.
Não é uma coisa em que se olha para
energia também abstracta das esculturas da exposi-
ção, porque o detalhe é mesmo as-
faz chama escultura num mundo em
que os meios de expressão são cada
cima, que está pendurada e a que não
temos acesso. É sempre uma relação
é escultura, não é só sim. Exagerei o fragmento, que deve
estar umas dez vezes maior.”
vez mais interdisciplinares e amplia-
dos. “Não tenho nenhum problema
corpo a corpo, não é uma relação fe-
tichista.”
o material com que é De facto, agora que já sabemos
para onde olhar, conseguimos e
feita e o objecto que
está lá. Interessa-me
a relação com
o corpo, com uma
atmosfera que é
gerada. Interessa-me
a proximidade física
que se tem através
do corpo com esse
objecto”
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 7
“Sempre quis fazer
o que faço hoje.
ver os resquícios de um gancho, de
onde saem duas novas linhas verti-
a exposição de Milão, mas a da elas-
ticidade, da gravidade ou do colapso.
candeeiro da Casa Zentner, em Zuri-
que, a única casa que Carlo Scaroa, o Se tivesse ficado sas ideias aos outros. Como diz um
amigo meu: ‘há tantas coisas que se
cais que se unem mais à frente para
permitir suspender a escultura. “O
Convoca-se Lygia Clark, mas também
Eva Hesse, que estabeleceram cami-
arquitecto mais relevante para a Ve-
neza do século XX, conseguiu cons- em Portugal nunca fez tão bem porque é que não have-
mos de fazer isso outra vez?’ É muito
entrançado que existe em cada uma
delas agarra a estrutura em si, mas
nhos alternativos para a escultura no
século XX.
truir fora de Itália. “O círculo entre
aquilo que é perdido e encontrado, iria conseguir. difícil para um de nós criar coisas
ainda. Não acho que aquilo que faça
também cria zonas de opacidade e
transparência.”
É uma frase desse texto que dá o
título à exposição da Bienal de Ve-
entre o que é esquecido e lembrado,
desafia as narrativas convencionais”, Percebi que era uma seja original.”

As coisas vivem
O atelier em Kreuzberg
neza: Uma Costura, uma Superfície,
uma Dobradiça e um Nó. Talvez por
sublinha a historiadora de arte que
também vai escrever um artigo para vida estagnada. no mundo
Estamos à porta do atelier de Leonor
Antunes, situado no logradouro do
isso Briony Fer, uma das curadoras
da recente exposição de Anni Albers
o catálogo da Bienal de Veneza.
No trabalho de Leonor Antunes Sinceramente, ser Foi em 2008 que suspendeu as pri-
meiras esculturas, depois de se inte-
nº 38 da Naunynstraße, no bairro
Kreuzberg, que mesmo antes da
na Tate Modern de Londres, seja a
melhor pessoa para explicar os fan-
existem formas vindas da obra de
outros artistas, muitas vezes da tradi- uma artista mulher ressar pelo trabalho do arquitecto
Carlo Mollino, que desenhou em Tu-
queda do Muro já era o local onde os
artistas viviam misturados com uma
tasmas de Leonor que vão chegar a
Veneza. Os detalhes são tirados do
ção modernista, que depois são retra-
balhadas, de maneira mais orgânica em Portugal rim o edifício da sociedade hípica, já
desaparecido. “Queria falar da ques-
grande comunidade turca. Mas
mesmo nesta área menos gentrifi-
cada as rendas não páram de subir,
seu contexto original, como o gancho
do cabide Franca Helg ou os nós dos
têxteis de Albers, e o seu significado
e táctil, através da produção artesa-
nal. “Não é uma recriação, essa não é
a palavra certa. É mais uma reapro-
era muito difícil” tão do espectro, da presença, da
sombra. Elas têm nomes de perso-
nagens, porque têm elementos des-
numa cidade que, escrevia o New transformado no processo. priação, também sou um pouco uma sas personagens ou são reapropria-
York Times, continua a ser conside- “Os artistas e designers desapare- ladra. Completamente. Roubo imen- ções de coisas que essas pessoas fi-
rada a capital criativa do mundo ar- cidos estão longe de estarem mortos, zeram.” Foi para a exposição de

NICK ASH
tístico europeu com os seus 20 mil mas continuam a viver de formas Turim que começou a fazer as peças
artistas profissionais. complexas e não apenas como pon- relacionadas com os arreios de cava-
Tínhamos acabado de subir tos de referência ou explicações ca- los. “Se colocasse a peça em cima de
quando soa a campainha e Leonor suais da obra. Obviamente que a uma mesa ou no chão, estávamos a
interrompe a apresentação de duas artista pesquisa estas figuras, muitas ver uma coisa muito específica que
das suas colaboradoras que termi- vezes marginalizadas, de forma a era um arreio aumentado à escala.”
nam de coser uma das esculturas obter o material de que faz a sua Sentada em frente ao ecrã de um
para Veneza. À porta, está a direc- obra, mas mesmo esse processo pa- computador, Leonor mostra imagens
tora do museu Haus Konstruktiv, de rece mais um processo de acrescen- de exposições que fez em 2011, data
Zurique, que veio a Berlim discutir tar do que de retirar.” importante na evolução do seu traba-
com a artista a exposição do Prémio Leonor Antunes revela muitas das lho porque foi a partir daí que criou
Zurich Art 2019, que a artista rece- suas fontes nos títulos das obras — na esculturas capazes de suportarem
beu no início deste ano. Sabine Bienal de Veneza são principalmente outras esculturas. “Criei a primeira
Schaschl promete uma conversa rá- Savina Masieri e Egle Trincanato, dessas esculturas, a que chamo ‘es-
pida, porque só está hoje em Berlim. mulheres ligadas à arquitectura da culturas-mãe’, para uma feira de arte
“Têm de estar orgulhosos dela!”, cidade —, mas muitas vezes essas re- que fiz a seguir à exposição do Museu
comenta a director suíça. “Leonor, ferências servem para acrescentar Rainha Sofia, em Madrid. Elas tor-
não se esqueceu da exposição mar- opacidade e não o contrário, co- nam-me ainda menos dependente do
cada para Outubro?...” menta ainda Briony Fer. espaço de exposição. É uma grelha,
Ela não se esqueceu mas o calendá- De facto, a artista constrói narrati- suspensa a partir do tecto, onde posso
rio deste ano não está fácil. Em No- vas complexas, às vezes paralelas, pendurar outras esculturas de forma
vembro há outra exposição na Suíça, que nos afastam do contexto que pro- mais aleatória, sem obedecer a deter-
desta vez na Fundação Beyeler de curamos perceber: para conhecer- minado contexto. A partir daí, as es-
Basileia, e em Dezembro será a vez do mos o detalhe que lhe interessou na culturas-mãe foram sendo repensa-
Museu de Arte de São Paulo, para só casa que Savina Masieri encomendou das para diversas situações. A peça
falar das individuais em instituições a Carlo Scarpa, a Casa Zentner, cons- mãe é a origem de tudo.”
museológicas. truída na Suíça, temos ainda que pas- Nessa altura, começa a preocupar-
No meio do atelier com quase 200 sar por Frank Lloyd Wright e pelo se como é que as suas esculturas vi-
metros quadrados e duas salas com marido de Savina, que morreu num vem no mundo — ideia que dá título
grandes janelas estão pousadas qua- desastre de carro quando viajou para ao texto de Briony Fer e esteve para
tro espirais desenhadas em borracha conhecer as obras do mestre nos Es- ser o primeiro título da exposição
industrial que também vão seguir tados Unidos. Perdidos? A ideia era desta bienal —, tal como antes já re-
para Veneza. Chamam-se Lygias, mas Frank Lloyd Wrigt fazer uma casa flectira sobre a vida das formas de
só se tornarão esculturas quando a para Savina no Grande Canal, que outros artistas. “Os trabalhos que faço
espiral for suspensa, porque a lin- nunca foi construída e alimentou a dependem muito da forma como os
guagem escultórica da artista não é discussão sobre a Veneza moderna. instalo no espaço, mas penso também
a da massa e do volume, como ex- As várias camadas da história, que em que é que vai montar isto que eu
plica a historiadora de arte Briony não conseguimos contar toda, aca- não estiver.”
Fer num texto no ano passado para bam num pormenor em pedra de um Quando saímos para almoçar, faz

Na exposição do Gropius Bau,


há peças feitas em materiais
familiares como a cana
ou a corda que mostram
a centralidade do trabalho
artesanal na obra da artista.
Ao lado, o artelier de Leonor
Antunes, com quase
200 metros quadrados,
em Kreuzberg

8 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019


NICK ASH
uma pequena visita guiada pelo
bairro. Começa pelo segundo atelier
que teve em Berlim, no nº 15 de En-
geldamm. Situa-se já na parte orien-
tal de Berlim e pertencia a um Meis-
terchuh, um mestre de sapatos.
“Agora é muito difícil arranjar atelier.
É preciso ir para lá de Britz, depois
de Neukölln.”
Já chegámos ao mercado turco que
se instala alguns dias por semana em
Paul-Lincke-Ufer, onde Leonor pro-
cura mais agulhas e dedais para as
assistentes. A questão do artesanato,
do saber fazer, interessa-a pelo valor
do conhecimento que se transmite
entre famílias, de geração em gera-
ção, através de rituais. “Em Berlim
há muitas oficinas, produz-se muito,
porque há muitos artistas a viver
aqui. Oficinas de metalurgia, carpin-
taria, imensos ateliers de arquitec-
tura e design. Em Portugal o artesa-
nato ainda é considerado arte menor
e as pessoas que o fazem são muito
mal pagas. Desde o senhor que faz
os cestos, ao correeiro que trabalha
com os couros, às pessoas que traba-
lham com o tear, lido muito com eles
e vejo a forma como são tratadas. O
conhecimento que têm não é aceite.
No contexto de Berlim, se pedisse
para me fazerem determinado tipo
trabalho cobravam-me dez vezes
mais do que em Portugal.” Um dos
seus mais fiéis colaboradores é o Sr.
Ataíde Neves, que faz arreios em Lis-
boa. “Foi ele que me ensinou a coser
cabedal.”

Reencontro
com Portugal
O primeiro atelier na cidade estava
situado na famosa Künstlerhaus
Bethanien, a porta de entrada para
muitos artistas portugueses em Ber-
lim, onde Leonor chegou através de
uma residência artística conseguida
com uma bolsa. Faz parte de uma
geração de artistas portugueses que
começa a trabalhar por volta do ano
2000 já numa lógica internacional.
Os artistas e personalidades que cita
no seu trabalho são internacionais,
as quatro galerias com que trabalha
são internacionais, circula e mostra
o seu trabalho novo quase exclusiva-
mente em circuito internacional.
Já de volta ao atelier falamos deste
reencontro com Portugal através de
Veneza e como é que está a vivê- e

ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 9


NICK ASH
lo: “Sempre quis fazer o que faço
hoje. Se tivesse ficado em Portugal
nunca iria conseguir. Quando acabei
a universidade, as Belas-Artes, con-
segui inscrever-me noutras escolas
no estrangeiro, mas não tinha di-
nheiro para as pagar. Por isso, fiz
várias residências e comecei a dar
aulas. Percebi que era uma vida es-
tagnada, nem tinha tempo para des-
envolver o meu trabalho. Também
não havia interlocutores como há
hoje em Portugal, nem muitos cura-
dores que visitassem o país. Depois,
sinceramente, ser uma artista mu-
lher em Portugal era muito difícil.”
Decidiu que não podia estar depen-
dente dos convites que recebia em
Portugal para trabalhar e chegou a
Berlim com uma bolsa de um ano da
Fundação Gulbenkian faz em Dezem-
bro 15 anos. Já conhecia bem o país,
porque tinha feito o programa Eras-
mus durante seis meses na universi-
dade de Karlsruhe, cidade no sul da
Alemanha. “O meu trabalho precisava
de outros estímulos. Nessa altura fazia
imensas obras site-specific e não podia
estar a depender de uma exposição
para desenvolver o meu trabalho.
Quando vim para Berlim foi quando
o trabalho começou a distanciar-se
mais do sítio onde está exposto.”
A exposição Duplicate, na Künstler-
haus Bethanien em 2005, em que
trabalhou o tema da duplicação dos
equipamentos em Berlim após a cons-
trução do Muro, com a torre da tele-
visão ou biblioteca municipal, foi
importante para essa progressiva li-
bertação do espaço de exposição.
“Continuei a resolver as questões
da duplicação, da repetição de ele-
mentos que existiam no espaço, mas
o meu trabalho ficou cada vez mais
autónomo. Eram cinco esculturas
que conseguiam perfeitamente exis-
tir em qualquer espaço. Não pensei
na sala, mas pensei no conteúdo da-
queles trabalhos e na sua relação uns
com os outros.”
O trabalho que vai mostrar em Ve-
neza, com a curadoria de João Ribas,
antigo director do Museu de Serral-
ves, é uma evolução da pesquisa que
fez para Milão e para a bienal de
2017, quando vendeu seis esculturas
para a colecção do Museu Gugge-
nheim de Nova Iorque.
Apesar de ter sonhado com Álvaro
Siza na véspera da apresentação do

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“Roubo imensas
ideias aos outros.
pavilhão de Portugal em Veneza, não
lhe interessa desenhar o espaço onde
vão suspender as esculturas Lygias ou
Helg, que partem de detalhes da casa Como diz um amigo ção muito alarmante que se está a
espalhar pelo mundo e pela Europa,
as suas esculturas se mostram. Não
consegue interpretar esse sonho,
de Carlo Scarpa na Suíça. “Pensei
muito no trabalho da Lygia Clark por- meu: ‘há tantas enquanto Portugal, neste momento,
vive uma boa situação. Falei em ideo-
além de dizer que admira muito o
trabalho de Siza. Talvez possa ter a
que ela fez aquelas esculturas que se
chamam Trepantes. A escultura é coisas que se fez tão logias e da forma como os populismos
estão cada vez mais radicalizados.”
ver com as dificuldades que apresenta
o Palácio Giustinian Lolin, situado
mole, disforme, e vai ganhando forma
em cima desse suporte.” bem porque é que Agora queixa-se que as pessoas só
querem saber da polémica, mas Leo-
fora do recinto habitual da bienal, um
edifício barroco onde as suas escultu- A polémica não havemos de nor não quer falar mais dela. “E só
vão pensar nisso daqui para a frente.
ras-mãe não podem ser penduradas
a partir do tecto, o que dificulta muito
a apropriação do espaço.
O regresso futuro a Portugal tem um
pouco a ver com os resultados das
últimas eleições legislativas na Ale-
fazer isso outra vez?’” Espero que algumas possam ver a
exposição e que o trabalho está ali
para ser visto e experienciado. É isso
“A exposição foi sempre pensada manha, aquelas em que a Alternativa que interessa, o trabalho que existe

NICK ASH
na verticalidade e as coisas agarram- para a Alemanha (AfD) se tornou o e que foi feito.”
se todas entre o chão e o tecto. Há primeiro partido de extrema-direita Quando voltar a Lisboa, a família,
uma espécie de perfis de alumínio, a entrar no Parlamento no pós- que tem actualmente um aparta-
que depois são pintados de branco, guerra. “Eles agora têm bastantes mento na Baixa pombalina, ao lado
que se vão apropriando das paredes políticos no Parlamento, o que é bas- da Sé, quer sair do centro histórico
e tornando o espaço mais orgânico. tante assustador. Mas, apesar de que se tornou turístico. “A minha
Criei este sistema para esconder as tudo, Berlim continua a ser uma ci- ideia era encontrar uma coisa que
pinturas, os radiadores e toda aquela dade muito diferente. Podemos ter fosse mais sossegada e tivesse um
informação que está nas paredes do movimentos de extrema-direita, mas bocadinho de espaços verdes. Mas
palácio histórico, como os tecidos também o triplo dos movimentos queremos ficar em Lisboa, porque
que são muito presentes. Tentei en- que são opostos a isso. Há tantas co- viajo imenso e não quero passar
Na exposição caixar o meu trabalho num espaço munidades na cidade, há tantos ar- muito tempo no carro, sempre de
Discrepâncias com uma linguagem mais mo- tistas, mesmo que a cidade já esteja um lado para o outro. Não vai ser
com C.P. derna.” tão gentrificada. Se formos para o sul fácil encontrar isso.”
(2018), Chamou Egle a estas peças que têm da Alemanha, já é mais conservador. Antes desse regresso agendado
no Museu cinco metros de altura e criam uma É um bocadinho como Londres em para 2020, planeia passar uns meses
Tamayo,

NICK ASH
espécie de biombos entre o palácio e relação ao Brexit no Reino Unido ou no Japão. “Adorava poder trabalhar
na Cidade a exposição, onde ficam escondidas Nova Iorque em relação ao Trump lá pelo menos três meses para apren-
do México, as pinturas históricas que pediu para nos Estados Unidos.” der cerâmica. Desde criança que sem-
trabalhou com serem apeadas e ficarem viradas con- Foi este contexto político novo na pre fui fascinada pelo Japão.” O plano
um artesão tra a parede. Egle Trincanato, lembra, Alemanha — e, por antecipação, o que é chegar a Quioto a seguir às férias da
que fazia evocando um dos fantasmas da expo- as eleições espanholas também aca- Páscoa do próximo ano, depois de
cadeiras sição, tem um importante trabalho baram de mostrar — que explica o uma exposição no Reino Unido, que
em juta ligado à renovação da imagem dos entusiasmo da artista pela paisagem vai inaugurar um novo centro cultural
museus em Veneza, tendo trabalhado governativa nacional. Com uma fran- em Plymouth. O regresso ao Japão
no Palácio Ducal. queza que só os tímidos têm, Leonor servirá igualmente para fazer uma
“Também vou retirar os candela- Antunes provocou uma pequena tem- exposição na nova galeria japonesa,
bros e as cortinas. É uma tentativa de pestade mediática ao afirmar na con- a Takahishi. “Já me convidaram há
apagar certos elementos com que não ferência de imprensa de apresentação dois anos, mas estou sempre a adiar
quero lidar, como aquelas pinturas da representação nacional em Ve- a exposição. Gosto imenso do pro-
feitas por outro artista e que não fui neza, o “pavilhão nacional” na bienal, grama da galeria. Tem bastantes ar-
eu que escolhi. Não tem a ver com a que só tinha aceitado o convite para tistas que conheço e sou amiga de

NICK ASH
qualidade, até podiam ser do Rothko. participar porque este governo “de alguns deles. Mas para o ano vou fazer
Foi uma negociação muito dura com esquerda” instaurou, pela primeira uma exposição de certeza.”
a fundação que gere o palácio.” vez, um modelo de concurso “demo- Para já, não há nenhuma exposição
É em frente às Egles que vão estar crático e transparente”, como volta agendada em Portugal e não está a
13 esculturas-mãe, número recorde agora a explicar. “Acho que outro Go- pensar arranjar uma galeria lisboeta
para uma exposição de Leonor Antu- verno que lá estivesse não teria feito depois do regresso em 2020. “Isso
nes. Desta vez, têm a forma de pru- essa aproximação à escolha do artista hoje é um bocado indiferente. Actual-
mos, que já surgiam na exposição de para a bienal, com um júri profissio- mente, também não tenho uma gale-
Milão mas sem esta função de su- nal e independente.” ria em Berlim. Há muito mais pessoas
porte. “As outras esculturas-mãe No seu entendimento, as declara- a deslocarem-se a Portugal, a terem
eram menos possessivas, porque po- ções foram mal interpretadas porque curiosidade sobre as pessoas que tra-
diam receber mais filhos. Estas estão os jornalistas quiseram partidarizar balham lá. Há uma geração muito
bastante limitadas nessa capacidade.” a questão: “Eu não falei em partidos, diferente a trabalhar e noto algum
Por isso, usa-se a repetição, outro falei em ideologias. Nunca quis parti- interesse pelos artistas que estão a
tema do seu trabalho. É aqui que se darizar a questão. Temos uma situa- viver em Portugal ou que são dali.”

De cima para baixo, exposição


no Hangar Bicocca, em Milão
(2018), na Bienal de Veneza
de 2017 e na galeria Marian
Goodman, em Londres,
no ano passado

ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 11


A fábrica de novas memórias de
Após uma longa ausência, regressa a 10 de Maio com Desalmadamente, resgatada por
quem cresceu a ouvi-la. Pedro da Silva Martins, Benjamim e They’re Heading West
acompanham-na em disco. Em Junho, actua no Primavera Sound com Primeira Dama.

Gonçalo Frota
12 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
VITORINO CORAGEM
Desalmadamente
Lena d’Água
Universal Music

mmmmm

O “Aconteceu-me
hipocampo é um pequeno de família. Quando me perguntavam,
órgão alojado no lobo tem- tinha a certeza de que ninguém se ia
poral central do cérebro.
Dizem os estudos científicos cantar para esquecer.” E ri-se — ainda que sem
azedume algum — da sua ingenui-
que é uma das primeiras
regiões do cérebro a serem 30 pessoas muitas dade. “Claro que não foi bem assim.
Mas eu também exagerei. Foram mui-
afectadas pela doença de Alzheimer,
conduzindo à perda de memória. Até vezes nos últimos tos anos escondidinha.”
Benjamim, que confessa ter “um
porque uma das suas funções pri-
mordiais está relacionada com a for- anos. É duro e triste fetiche com a Lena d’Água — como
quase todos os músicos portugue-
mação da memória a longo prazo,
mas também com a fabricação de quando se está ses”, sempre fora um admirador do
reportório da cantora, mas tinha-lhe
novas memórias. Pode também con-
tribuir para uma certa desinibição a fazer uma cena perdido também o rasto, achando
então que a sua história era a de
comportamental. Pedro da Silva
Martins andava, por acidente, a ler incrível, só voz “uma diva que se perdeu”. Lena
d’Água atravessou os anos 90 com o
sobre o assunto quando deparou
com dois aspectos associados ao hi- e piano, como espectáculo Canções do Século — ao
lado de Helena Vieira e Rita Guerra
pocampo e que não conseguiu dei-
xar de associar a Lena d’Água: a re- aconteceu na —, com o qual ganhou muito dinheiro,
mas que pouco se demorava nos seus
lação com a memória — sendo que a
cantora é capaz de registar e recitar Damaia. Quando me bolsos graças ao consumo de he-
roína; começou os anos 2000 como
de pronto a data, a hora, o estado do
tempo e a roupa que vestia alguém perguntavam, tinha concorrente do Big Brother Famosos
e dedicou os anos seguintes a essa
com quem se tenha cruzado e nela
causado alguma impressão; e uma a certeza de que reanimação com várias formações de
clássicos como Dou-te um doce, Sem-
certa “latência sexual”, ligada tam-
bém à tal desinibição. ninguém pre que o amor me quiser ou Estou
além (de António Variações). Mas
Acontece que o homem que du-
rante quatro álbuns municiou com
letras e músicas os álbuns dos Deo-
se ia esquecer” numa curva descendente que acaba-
ria por deixá-la entregue a uma som-
bra nostálgica do que fora.
linda — e foi estendendo a sua pena
para discos de Ana Moura, Cristina Três em um
Branco ou António Zambujo — se en- Quase se diria provocação do des-
contrava em pleno período de desen- que era impossível estar numa espla- tino. Num curto espaço de tempo,
freada laboração de uma nova for- nada quietinha, a beber um café e a três ideias complementares de discos
nada de temas para Lena d’Água e conversar.” O que lhe dava gozo era em parceria com Lena d’Água haviam
não resistiu a escrever uma “canção o palco e isso bastava-lhe. Ou pelo de fundir-se num só álbum: Pedro da
meio estouvada” que se alimenta menos assim lhe parecia na altura. Só Silva Martins falava de compor um
também da natureza “muito pura, que o seu apagamento progressivo disco de novas canções para sua voz;
muito surrealista e muito contraditó- foi deixando as suas marcas cruéis e, Benjamim e o seu guitarrista António
ria” da cantora. E depois havia a irre- mesmo tendo visitado o reportório Vasconcelos Dias entusiasmavam-se
sistível sugestão fonética que remetia de Billie Holiday e Elis Regina, as apa- com a ideia de produzirem um álbum
também para o facto de, em 2007, rições de Lena d’Água foram-se apro- de originais com a cantora; os They’re
Lena d’Água ter saído de Lisboa, ximando mais do circuito dos casinos Heading West planeavam gravar um
abandonado a vida citadina e, por- e tornando-a estranha dos grandes EP enquanto banda que acompa-
tanto, decidido ir para o campo. Hi- palcos de uma música portuguesa nhava Lena d’Água a interpretar al-
pocampo é o título de uma das mais com um ritmo febril de renovação de guns dos seus temas passados. Sem
inebriantes e estivais canções de De- figuras de primeira linha. Permane- saberem ainda uns dos outros, todos
salmadamente, álbum que Pedro es- cer visível e relevante era toda a uma avançavam em 2016 com propostas
creveu para Lena d’Água, produzido espinhosa missão. de colaborações que haviam de jun-
a oito mãos por Francisca Cortesão, Mesmo depois de Pedro da Silva tá-los pouco depois.
Mariana Ricardo, Sérgio Nascimento Martins ter convidado Lena d’Água a Tudo começou a alinhar-se quando,

e Lena d’Água
(todos dos They’re Heading West) e interpretar a sua criação para o Festi- no final do Verão de 2016, os They’re
Benjamim, e que põe fim a um lon- val da Canção 2017 — muito apropria- Heading West chamaram Lena d’Água
guíssimo período em que uma das damente intitulada Nunca me fui em- para se lhes juntar num concerto de
mais emblemáticas vozes da pop na- bora —, a cantora cuja voz era omni- domingo à tarde, pertencente a uma
cional foi subindo aos palcos apenas presente na década de 1980 série que apresentaram na Casa Inde-
para reavivar a sua obra passada. continuaria entregue a um circuito pendente, e em que se faziam sempre
Durante muitos anos, a populari- demasiado marginal, desanimando acompanhar por um convidado. Fi-
dade de Lena d’Água era tão gritante com concertos como aquele que zeram um primeiro ensaio na sala da
no inocente mundo pop português apresentou no Cineteatro D. João V, cantora, em A-dos-Ruivos, aldeia para
que lhe parecia uma ideia absurda na Damaia. os lados do Bombarral, cientes que
quando lhe perguntavam se não re- “Aconteceu-me cantar para 30 pes- estavam nos antípodas da experiên-
Como se, aos 60 anos, ceava que viessem a esquecer-se dela. soas muitas vezes nos últimos anos”, cia anterior de Lena com uma banda,
não pudesse cantar “Não tinha mesmo medo de que isso desabafa. “É duro e triste quando se a Rock’n’Roll Station, mais chegada
música pudesse vir a acontecer”, conta ao está a fazer uma cena incrível, só voz ao hard rock. “Nós estávamos um
desavergonhadamente Ípsilon. “Queria lá saber. Estava e piano, como aconteceu na Damaia pouco no lado oposto, só ukuleles,
pop e actual... muito cansada, foi muito tempo em — ainda por cima ao pé da minha casa guitarras acústicas, pessoal a fa- e
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 13
VITORINO CORAGEM
zer coros e todos a tocar baixinho”, Desalmadamente, álbum que
comenta Francisca Cortesão. Mas Pedro da Silva Martins escreveu
tudo tomou forma sem grande es- para Lena d’Água, põe fim
forço, Dou-te um doce, Sempre que o a um longo período em que uma
amor me quiser ou Vígaro cá, vígaro das mais emblemáticas vozes
lá ganharam uma nova vida e o con- da pop nacional foi subindo
certo foi tão mágico que a ideia de lhe aos palcos apenas para reavivar
dar continuação se instalou. “Ficá- a sua obra passada
mos todos muito encantados uns com
os outros quando tocámos com a
Lena e ela também ficou muito con-
manter o posto de compositor. E vie-
ram logo temas como Vígaro cá, ví-
pessoal da Xita”, diz. “Faço com ela
o mesmo que faço com eles. É uma A evidência de que trabalhadas a fundo pela banda, ou-
tras tinham letras que Lena não se
tente”, lembra Francisca.
No público desse mesmo concerto,
garo lá e Labirinto, seguindo-se os
álbuns Perto de Ti, Lusitânia e Terra
das pessoas mais especiais que tive o
prazer na minha vida e transformou- tinha de escrever sentia confortável a cantar. Mas vi-
nham todas ajudadas pelas muitas
também com uma parceria na manga,
Benjamim já há algum tempo que
Prometida — antes de o músico ter
produzido Fado Bailado, de Rão Kyao,
me de várias maneiras.”

Agora como em 1983


canções para Lena conversas entre os dois e a leitura de
muitas entrevistas que garantiam que
vinha trocando mensagens pela inter-
net com Lena d’Água, desde que a
e ter passado a acompanhar o saxo-
fonista/flautista. A evidência de que tinha de escrever d’Água surgiu a Pedro eram mesmo pensadas para aquela
banda, aquela voz e aquela história
cantora descobrira que o músico a
nomeava na lista de influências cita-
“A produção desses discos é muito
à frente”, defende Benjamim.
canções para a voz de Lena d’Água
surgiu a Pedro da Silva Martins no da Silva Martins de vida. Seguiram-se dois anos de
trabalho muito intermitente, devido
das — ao lado de Duo Ouro Negro, The
Beatles, Beach Boys e Bob Dylan — na
“Aquilo está a milhas do que aconte-
cia naquele tempo com as bandas
clube Fontória, na sexta edição do
Festival Alternativo da Canção — in- no clube Fontória, aos afazeres de todos os músicos,
enquanto Lena apenas podia esperar.
sua página de Facebook. Era o reco-
nhecimento público de uma admira-
portuguesas.” Também isso defende
Manel Lourenço (conhecido no meio
venção de Fernando Alvim. Da sua
cadeira de jurado, Pedro viu Lena na sexta edição “Já sentia que ia ser incrível e às vezes
tinha medo de morrer sem isto estar
ção assumida para todos aqueles que
tivessem falhado em identificar o beat
como Primeira Dama), para quem
“mesmo nos grandes hits da pop
subir ao palco e cantar um tema a
capella que o levou a verbalizar logo do Festival feito”, desabafa.
Em termos estritamente musicais,
inicial de Volkswagen, esse tema com
a irresistível proposta romântica “Va-
dessa altura vindos dos Estados Uni-
dos há muita coisa que não chega aos
essa vontade de escrever para a can-
tora. “Aquilo foi tão impressionante Alternativo da Pedro adoptou o exercício de imagi-
nar que disco Lena d’Água gravaria
mos queimar gasóleo / para a margi-
nal”, como filho bastardo de Sempre
calcanhares do que aquele homem
e aquela banda faziam”. Basta voltar
que lhe disse logo que tinha de fazer
música para ela”, recorda ao Ípsilon. Canção. “Foi tão hoje se a sua carreira discográfica (de
originais) nunca tivesse entrado em
que o amor me quiser. Daí até à par-
tilha desse tema, passado um par de
a passar os ouvidos por Nuclear não,
obrigado ou No fundo dos teus olhos
“Não há muitos cantores que idenfi-
quemos logo assim que começam a impressionante que suspensão. E esboçou mesmo uma
cronologia ficcional, em que a ima-
meses, no concerto de Benjamim no
Centro Cultural de Belém, seria um
d’água para se perceber o quanto
não há exagero no elogio ao aprumo
cantar. E ela estava a cantar muito
bem. Tinha um potencial enorme e lhe disse logo que ginava a seguir caminhos mais
rockeiros nos anos 90 e a acercar-se
curto e lógico passo.
Já há muito que a “inovação sónica”
e à sofistificação pop de então. “Não
é fácil escrever depois do Luís Pe-
não fazia sentido a Lena não estar a
cantar.” tinha de fazer da electrónica em discos próximos
da abordagem d’A Naifa na década
que Benjamim descobria nos discos
de Lena d’Água com a banda Atlân-
dro”, concede Lena d’Água. “Se ca-
lhar foi por isso que, até agora, mais
Esse deslumbramento era natural-
mente acentuado por uma juvenili- música para ela. Não seguinte. Até chegar aqui, a um De-
salmadamente de “regresso” a uma
tida o “cativava muito”. Claro que
havia o “fascínio pela Lena por causa
ningúem se tinha atrevido.”
Aos 14 ou 15 anos, numa altura em
dade na voz de Lena d’Água que o
tempo parece ter-se esquecido de fazia sentido a Lena sonoridade pouco impositiva, de-
nunciadora na conta certa do impe-
daquela voz e daquelas canções, mas
também pelo Luís Pedro Fonseca que
era um escritor de canções brilhante”.
que esgravatava na pop portuguesa
à procura dos seus próprios heróis,
Manel Lourenço descobriu em Lena
actualizar. Mesmo agora, quando a
escutamos a cantar os novos (e mag-
níficos) Queda para voar, Formatada,
não estar a cantar” cável faro pop de Benjamim e da
certeira simplicidade dos They’re
Heading West.
Foi Luís Pedro quem resgatou Lena d’Água um dos poucos exemplos que Voltas trocadas, Hipocampo ou A Se no último álbum dos Deolinda,
d’Água dos Beatnicks, mais dados ao o motivou “para ir à procura desse grande festa, é como se tivesse gal- Outras Histórias, Pedro se punha a
rock progressivo, e ao lado de Zé da som e dessa maneira de fazer can- gado duas ou três décadas e o reen- imaginar na excelente As canções que
Ponte formou, em 1980, essa banda ções”. Também ele começou por contro se desse logo após Lena ter apesar de recorrer a alguns elemen- tu farias uma forma de aceder aos
mítica da pop portuguesa chamada interagir com a cantora através das gravado pela última vez com a banda tos que podem remeter para a década temas de que a vida interrompida de
Salada de Frutas. A passagem dos dois redes sociais, tendo ido ao seu en- Atlântida. “Às tantas, quando já tínha- de 80, a mais emblemática na carreira António Variações nos privou, aqui
(Lena e Luís Pedro) pela Salada de contro à saída de um encontro sobre mos as canções e estávamos a ensaiá- da cantora, trata-a como uma intér- dedicou-se a “perceber onde é que
Frutas é meteórica o suficiente para mulheres na música, decorrido no las, fechava os olhos e dizia para mim prete do presente. É fácil, aliás, des- estava e quem era a Lena agora”.
com a gravação do álbum Sem Açúcar bar Damas, onde se apresentou com que aquela era a memória de um Ve- cobrir afinidades com os Clã ou, cu- Sem cair na tentação da homena-
e o single Robot provocar uma pe- um vinil de Perto de Ti para que Lena rão que nunca existiu”, recorda Pe- riosamente, com os preciosos álbuns gem, mas propondo-lhe versos difí-
quena revolução antes de a cantora autografasse. Despediu-se com — dro. “E é mesmo bizarro — para aquilo que Benjamin Biolay compôs para ceis de como “Espero ainda ser um
ser corrida da banda na sequência do “meio em tom de piada”, diz ele — que ela passou é espantoso como a Coralie Clément — e M para Vanessa furacão / ter uma cintura de ballet”
concerto na Festa do Avante, em Se- “Um dia ainda vamos tocar juntos”, voz se preservou.” Paradis. Até porque, diz a própria (A grande festa). “A Lena foi extrema-
tembro de 1981. As razões nunca fo- em que a cantora ouviu apenas a “A experiência de vida não é obvia- Lena, com o passado está “completa- mente corajosa na forma como acei-
ram claras, mas Lena desconfia que convicção de quem sabia que esse mente de uma pessoa de 20 anos, mente em paz — às vezes com o pre- tou estas propostas”, diz com óbvia
“resolveram que não queriam vede- momento chegaria. Foi já depois de mas a voz é igualzinha”, reforça Fran- sente é que não.” admiração. “Também queríamos
tas, não queriam gajas à frente com a no seu álbum homónimo de 2017 cisca. E também Manel Lourenço Após o desafio inicial para Lena desmontar esse preconceito que
atenção toda dos fotógrafos” e fecha- terminar Rua das flores com uma (que não integra o grupo de Desalma- d’Água ser a intérprete do seu tema existe sobretudo acerca de uma mu-
ram-lhe a porta. “Era uma banda com citação de Perto de ti que Manel de- damente) afirma que quando sobem no Festival da Canção, e num período lher”, como se, aos 60 anos, não
duas metades diferentes: eu e o Luís safiou Lena d’Água para se lhe juntar para palco podiam “estar em 1983”. em que os Deolinda entravam numa pudesse cantar música desavergo-
Pedro éramos vegetarianos, eles eram e à Banda Xita num concerto na Ga- De forma pragmática, Lena d’Água pausa sem fim à vista, o jorro criativo nhadamente pop e actual, e tivesse
dos cabritos e dos leitões; nós fumá- leria Zé dos Bois. Seguiram-se festi- responde que poupou a voz nos últi- de Pedro da Silva Martins resultou de se limitar a ruminar amores de
vamos ganzas, eles eram dos vinhos vais como Bons Sons e Super Bock mos 20 anos, com uma agenda de numa fornada de 27 canções surgido adolescência. Como se não pudesse
e das aguardentes.” em Stock e terminarão (por agora) espectáculos menos preenchida. Mas em dois meses. “Vinha com um im- cantar ainda sobre o hipocampo e
Os dois pegaram nessas diferenças esta parceria em Junho, no Prima- apesar dessa imediata viagem ao pas- pulso, em que me sentava à mesa e fazer jus à sua função de preservar a
e levaram-nas para Lena d’Água e vera Sound. Ficará tudo o resto. sado, Desalmadamente nunca enve- aquilo saía — com a Lena a inspirar”, memória de longo prazo e, melhor
Atlântida, com Luís Pedro Fonseca a “Sou amigo da Lena como sou do reda por uma sonoridade retro e conta. Algumas não chegaram a ser ainda, fabricar novas memórias.
14 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
F Vítor
oi há oito anos na Universi- caixa, ACR: BOX, com raridades, sin- de vida se tornaram no grupo mais ção pacífica — especialmente no início
dade de Preston, perto de gles, lados B e inéditos, entre eles uma alegórico desse tempo. dos Division — o mesmo acontecendo
Manchester, quando, numa versão de Houses in motion dos Em 1980, quando se preparavam com Peter Saville, o designer das ca-
aula especial, Peter Hook, his-
tórico baixista dos Joy Division
e New Order que é ali profes-
sor convidado, lançou uma piada a
Talking Heads que originalmente era
para ter sido vocalizada por Grace
Jones, mas que depois de iniciada
pelo produtor Martin Hannett nunca
para entrar em digressão pelos Esta-
dos Unidos, Curtis suicidou-se. Nesse
contexto, naturalmente, Movement
transformou-se num disco de transi-
pas depuradas e minimalistas. Em
2009, em Lisboa, no âmbito de uma
conferência da Experimenta Design,
o co-fundador da Factory, criador de
Belanciano
propósito de Atmosphere, uma das
mais solenes canções dos Joy Divi-
chegou a ser finalizada. Foi-o agora.
A história dos New Order é indisso-
ção. Na altura não foi muito bem
compreendido. A memória dos Divi-
capas icónicas e director criativo na
operação de revitalização de Man-
Na cinzenta
sion: “Ao que parece é uma das can- ciável dos Joy Division. Foi em 1976, sion era ainda muito latente. Mas chester, dizia que o seu lema na con- Manchester a
ções que as pessoas mais gostam de depois de terem assistido a um con- ouvido hoje é difícil não concluir que cepção da imagem gráfica para os
tocar em funerais”, afirmou, sendo certo dos Sex Pistols, que decidiram é um álbum admirável, marcado Division e New Order foi sempre algo festa também se
de imediato secundado na assistên-
cia por alguém que ripostou: “Mas
formar um grupo, marcados pela me-
mória dos Velvet Underground,
ainda pelas guitarras cerradas e pela
herança dos anos anteriores, mas já
da ordem do eterno. “Queria que a
marca do tempo estivesse lá.”
fazia. New Order
nas traseiras do cemitério também
se dançava e de que maneira!” E toda
Bowie, Kraftwerk ou Can. No centro
da sonoridade, ao longo de três ál-
com um som mais expansivo e maior
presença da secção rítmica, nave-
São grupo com muitas cicatrizes,
os New Order. Assistiram a muitas
e A Certain Ratio
a gente se riu. buns (Unknown Pleasures de 1979, gando entre o optimismo da faixa mortes (Curtis, Wilson, Hannett ou prenunciaram
Os dois imaginários coexistem em Closer de 1980 e Still de 1981, já depois inicial, Dreams never end, com as pa- Rob Gretton, o manager), histórias
Manchester. Por um lado idealizamos da morte de Ian Curtis), estava a ba- lavras (“No looking back now, we’re de falências, da editora Factory ao uma nova era
uma cidade cinzenta, decadente, in-
dustrial, marcada por sucessivas cri-
teria nervosa de Stephen Morris, o
baixo pulsante de Peter Hook, a gui-
pushing throught”) tentando expor
esperança no futuro, e a tonalidade
clube Haçienta, e muitas cisões in-
ternas (basta olhar para a lista de
com uma música
ses económicas, personificada pelo tarra cerrada de Bernard Sumner e a mais sombria de Truth, o segundo projectos paralelos ao longo dos tem- física e
pós-punk, da passagem dos anos 1970 interpretação intensa de Curtis. Se o tema, com guitarras coabitando com pos — Monaco, Electronic, Other
para os 1980, em especial pela editora punk constituía um vislumbre raivoso caixas-de-ritmos e teclados — da nova Two, Revenge, Freebass, Bad Lieute- intercultural. Dos
Factory e pelos Joy Division. E anos
mais tarde o irromper de uma cidade
para o estado do mundo, os Joy Divi-
sion olhavam para dentro, com deses-
membro do grupo, Gilliam Gilbert,
namorada de Morris — conduzindo o
nant) que culminou nos últimos anos
com a separação de Peter Hook dos
primeiros acaba
hedonista, simbolizada por Stone
Roses, Happy Mondays, pelo clube
pero. As letras expressavam culpa,
cólera e claustrofobia, o som era aus-
som do grupo para outras zonas.
É nitidamente uma obra de divisões
restantes.
Do que também nunca se salvaram
de ser lançado a
Haçienda e pelas festas ilegais ao ar tero e sonhador em simultâneo. sonoras — entre a introversão severa foi de uma discussão recorrente — e definitive edition
livre. Dois dos grupos que melhor “Se pensarmos bem os Joy Division e uma respiração mais exteriorizada que regressa agora com a reedição de
representaram essa passagem da mú- foram profissionais apenas durante — e também de indecisões, com todos Movement — e que é imaginar o que de Movement,
sica soturna para a dança foram New
Order e A Certain Ratio.
seis meses. É incrível se imaginarmos
o impacto cultural e musical que ob-
os membros do grupo a vocalizarem
temas, mas onde, apesar desses sin-
pensaria ou como se adaptaria Ian
Curtis aos New Order. Por um lado
com raridades.
Dos primeiros acaba de ser lançado tivemos em tão pouco tempo. Quando tomas, existe unidade, para a qual parecia subsistir nele um fascínio por Dos segundos, a
Movement: The Definitive Edition, o Unknown Pleasures saiu estávamos muito deverá ter contribuído Martin ícones rock como David Bowie, mas
primeiro álbum, de 1981, depois do todos ainda a trabalhar: Ian no centro Hannett, o produtor que era um estu- era ele também quem dava a conhe- caixa ACR: BOX,
fim dos Joy Division, contendo rarida-
des (versões alternativas, gravações
de emprego, eu nas docas e Stephen
com o pai. É incrível, não é?”, dizia-
dioso de acústica, que foi capaz de
criar com eles um som monolítico,
cer aos restantes as aventuras sónicas
mais arrojadas do krautrock alemão.
com raridades,
de ensaios e maquetes) e um DVD
com actuações ao vivo registadas em
nos Peter Hook há oito anos e é im-
possível não concordar com ele. É
fechado como uma redoma de gra-
nito, mas ao mesmo tempo aberto e
Portanto, nunca o saberemos.
Mas na altura percebeu-se que,
singles, lados B
Nova Iorque. E dos segundos uma notável, sim, como num curto espaço indefinido. Nem sempre foi uma rela- entre os admiradores, se deu uma e inéditos.

Quando New Order e A Certain Ratio da


ACR: Box
A Certain Ratio
Mute, distri.
Edel

mmmmm

Raridades,
singles, lados
B e inéditos,
entre eles
uma versão
de Houses
in motion
dos Talking
Heads com
a voz de
Grace Jones;
chegou
a ser iniciada
na altura
pelo produtor
Martin
Hannett
e só agora foi
finalizada
16 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
divisão. As primeiras incursões mais
dançantes dessa fase, os magníficos
ter”, incorporada por Stone Roses,
Happy Mondays e outros, transfor-
o rock, electrónica, o funk, a soul, o
dub e outros elementos estéticos,
surpresas, como duas versões de Hou-
ses in motion dos Talking Heads — que Manchester:
singles Ceremony (1981), Everything’s
gone green (1981) e Temptation (1982),
mando-a numa espécie de cidade do
êxtase. Durante cinco anos parecia
num caldeirão onde mais tarde, a
partir dos anos 2000, muitos foram
era para ter sido cantada por Grace
Jones — que nunca foi finalizada por cinzenta, marcada
simbiose perfeita homem-máquina
de movimentos electrónicos, foram
ser o local onde tudo acontecia, até
que em 1991 encerra pela primeira
procurar inspiração.
De todos esses nomes terão sido
Martin Hannett, e que o grupo resol-
veu agora em boa hora completar, ou pela crise.
nessa altura rejeitadas por muitos e
aceites por outros tantos. E quando
vez, com muitas dívidas para saldar.
Mas o legado havia sido deixado.
provavelmente os A Certain Ratio a
alcançar maior refinamento estético
temas nunca antes revelados, como
Bitter pill, de balanço rítmico e sen- Manchester:
o grupo lançou pouco depois Power,
Corruption and Lies (1983) ou o single
Na verdade quando se olha para a
história dos Division e dos New Or-
na primeira metade dos anos 1980.
Há até quem afirme com convicção
sualidade soul totalmente actual.
De forma diferente dos New Order, hedonista, com
Blue Monday (1983) já havia mudado
definitivamente.
der percebe-se que foram capazes
de organizar o que vinha de trás (Vel-
que a troca de informação com os
New Order acabou por ter impacto
mas com a mesma actualidade, os A
Certain Ratio foram capazes de en- festas ilegais
Durante muitos anos o próprio
grupo pareceu não viver bem com
vet, Bowie, Kraftwerk, punk), como
projectaram o que se seguiria — cru-
no som de Movement, principalmente
ao nível rítmico. Pode ser, mas en-
contrar pontos de contacto entre di-
versas tipologias, técnicas, emoções ao ar livre. New Order
essas memórias. Aos poucos, foi acon-
tecendo a dessacralização, come-
zamentos de rock e dança, electró-
nica, fisicalidade, negritude, recicla-
quanto os primeiros abriram caminho
para a criação de uma pop electrónica
e estados de espírito, dos mais intros-
pectivos aos mais exteriorizados, fa- e A Certain Ratio
çando a tocar também temas dos Di-
vision ao vivo, como em 2005 em
gens e hibridismos vários. O que
acaba por ser também o terreno dos
dançável, os A Certain Ratio são mais
diversos e isso é perceptível na forma
zendo-os confluir para uma música
que contém a dose certa de familiari- fizeram a passagem
Lisboa, no emocionante concerto do
festival Super Bock Super Rock, mos-
companheiros na Factory, os A Cer-
tain Ratio.
como assimilaram influências.
Claro que existiam as cumplicida-
dade e sentido de aventura.
Não espanta que tanto New Order da música soturna
trando que entre as duas entidades
existe um contínuo, um elo que é in-
quebrantável, embora constituam
Na segunda metade dos anos 1970
chegaram a fazer concertos em con-
junto com os Division e, nos primei-
des com os grupos da época — dos
Wire aos Throbbing Gristle — mas
acima de tudo havia uma consciência
como A Certain Ratio estejam activos.
Os primeiros vão estar no festival Pa-
redes de Coura em Agosto. E os se-
para a dança
identidades separadas. ros temas, da extensa antologia agora muito mais global da música. Por um gundos estão também em digressão.
A inspiração para essa transforma- lançada essa cumplicidade é patente, lado partilhavam o fascínio pelo funk, E ambos continuam a ser emblemas
ção mais dançante, positiva e lúdica, com uma sonoridade que não fica soul e jazz e pela génese do hip-hop de Manchester. Hoje a cidade é dife-
foram em parte os membros do grupo distante, até no estilo de cantar, que (The Last Poets, por exemplo), a par- rente de há 40 anos. Zonas antes es-
buscá-la às caves dançantes de Nova faz lembrar Curtis. Aliás é justo que tir do momento em que também es- quecidas e industrializadas consti- editora Factory, exemplo de paixão e
Iorque, onde em clubes como Para- se diga que essa relação entre o punk tiveram na alvorada dos anos 1980 tuem hoje o centro de uma urbe mo- independência, que influenciou ge-
dise Garage ou Danceteria nomes — fenómeno cultural essencialmente em Nova Iorque, mas havia também dernizada. Mas a música continua a rações. Depois da morte de Curtis e
como Larry Levan ou Arthur Baker branco — e a música negra, que teve marcas tropicais assumidas no seu ser factor de coesão. do fim dos Division, é como se New
congeminavam com elementos disco expressão na fase pós-punk em Nova som e um grande fascínio por música Ainda em 2017, na ressaca dos aten- Order ou A Certain Ratio tivessem
ou electro a revolução dançante que Iorque (Talking Heads, ESG, Liquid brasileira (de Hermeto Pascoal aos tados terroristas na cidade, se falava prenunciado uma nova era com uma
se seguiria. Na cidade-natal, Man- Liquid, Bush Tetras), também teve o Azymuth). da música (e para além dos nomes já música mais física e intercultural
chester, clubes de dança era coisa que seu paralelo em Inglaterra, com inú- A retrospectiva agora lançada co- citados poder-se-iam evocar outros, abrindo caminho para a cultura acid-
não havia e, na companhia de Tony meras formações (Gang Of Four, Ca- lecta toda essa informação de forma dos Smiths aos The Fall) como marca house e outras aventuras menos cin-
Wilson, resolveram tornar-se proprie- baret Voltaire, Clock DVA, 23 Skidoo, admirável. Por um lado temos temas identitária. Ao longo dos anos é como zentas, sinal de que nem toda a mú-
tários do Haçienta. Inicialmente foi Shriekback, Au-Pairs, Pig Bag, Maxi- clássicos que mantém uma actuali- se ela tivesse funcionado como essa sica de Manchester dos anos 1980 era
um fiasco, mas na segunda metade mum Joy, Pop Group, Rip Rig & Panic, dade invejável — oiça-se a longa di- utopia onde todos se podiam projec- funerária. Nas traseiras dos cemité-
dos anos 1980 acabaria por atribuir Malaria, Section 25) a criarem uma gressão funk electrónica em torno de tar um pouco, independentemente rios, ou onde calhasse na verdade, a
sentido à febre dançante “Madches- música de ritmos trepidantes, entre Knife slits water — e depois existem das diferenças. Aconteceu isso com a festa também se fazia.

dançavam nas traseiras do cemitério


Movement —
The Definitive
Edition
New Order
Mute, distri.
Edel

mmmmm

O primeiro
álbum, de
1981, depois
do fim dos Joy
Division,
contém agora
raridades
(versões
alternativas,
gravações
de ensaios
e maquetes)
e um DVD com
actuações
ao vivo
registadas em
Nova Iorque
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 17
Fabiana, a última viagem de uma camionista

Brasil:
Divino Amor, de Gabriel Mascaro, pega na
importância dos evangélicos no Brasil actual para
pintar um país utópico entre o laicismo tecnocrata
e a fé

o cinema que talvez


O documentário-ensaio de Petra Costa sobre
o impeachment de Dilma Rousseff: Democracia
em Vertigem
não exista amanhã
O IndieLisboa escolhe duas dúzias de Älmes
brasileiros dos últimos doze meses para desenhar
um retrato possível de uma das cinematograÄas
mais activas do momento. Brasil em Transe, para falar
do cinema de hoje que talvez não exista amanhã.

18 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019


Jorge Mourinha
Helvécio Marins Jr.
O mais poderoso dos filmes da
retrospectiva: Sete Anos em
Maio desenha em 40 minutos e

“O principal é a vida”
meia-dúzia de planos o
desempoderamento das
minorias, o abuso de poder, a
raiva, a injustiça, a violência

Querência, segunda longa de um dos


primeiros pontas-de-lança do novo cinema
do Brasil: nem documentário nem Äcção.

“N
inguém inventou a
roda. Para mim a
dramaturgia parou
na Grécia, no

Brasil em Transe Aristóteles. Já está


tudo feito!” Num

é o genérico deste átrio de hotel berlinense, Helvécio


Marins Jr. (n. 1973) procura explicar

“balanço de quinze o seu cinema. “A dramaturgia


nunca é o principal da coisa,”

anos de Indie explica animadamente, ao longo


de uma conversa que passa o explicar porque é que esta é apenas

em relação tempo a disparar em todas as


direcções. “O principal é a vida. A
a segunda longa metragem numa
carreira de 15 anos. “Morei cinco

com o Brasil”. realidade. Depois é simples.”


O pretexto da conversa é
anos naquela zona, e me sinto
muito dali. O Marcelo é meu amigo,

Porque foi o Indie Querência, apenas a segunda


longa-metragem do cineasta
tenho seis vacas, duas éguas, um
cavalo com ele… Conheço muito

que revelou mineiro após Girimunho (2011,


dirigido a meias com Clarissa
tudo aquilo. Quando a equipa de
rodagem chega, já está tudo muito

entre nós muita Campolina). O filme acompanha


Marcelo di Souza, vaqueiro que, na
preparado.”
É um processo longo, paciente,

desta nova geração sequência de um roubo de gado em


que é forçado a participar,
no cinema de Marins, que conhece
bem Portugal — a sua obra foi

de cineastas contempla abandonar o emprego e


tornar-se mestre de cerimónias em
rodeos sertanejos. Mas a história é
mostrada regularmente no Curtas
Vila do Conde, para os quais
realizou um dos filmes do 20º
menos importante do que o aniversário, O Canto do Rocha, e o

B
universo, a textura, o envolvimento cineasta reside agora no Alentejo
— mergulhar o espectador naquele (“que eu chamo a brincar do meu
acurau, o novo filme de Kle- dor do Cinema Novo: Terra em Transe mundo, fazê-lo sentir o que o sertão tuga!”). O paradoxo é que
ber Mendonça Filho (O Som (1967) de Glauber Rocha. próprio Marins sente, “uma Marins foi um dos primeiros nomes
ao Redor, Aquarius) está a Brasil em Transe é por isso o ge- sensação minha de pertencimento da nova vaga brasileira a ganhar
concurso para a Palma de nérico deste “balanço de quinze àqueles lugares.” E o espectador repercussão internacional —
Ouro de Cannes, daqui a anos de Indie em relação com o Bra- fica na dúvida — é ficção, é Girimunho estreou em Veneza,
duas semanas, a par de Al- sil”. Porque foi o Indie que revelou realidade, ambas, nenhuma? passou por Roterdão, San
modóvar, dos irmãos Dardenne, de entre nós muita desta nova geração Marins confirma que a realidade Sebastián e Toronto; Querência
Ken Loach. A Vida Invisível de Eurí- de cineastas: O Som ao Redor de Kle- é o que surge primeiro, “e depois teve estreia no Forum da Berlinale
dice Gusmão, de Karim Aïnouz (Praia ber Mendonça Filho (2012) esteve na pequenas coisas para fazer a curva e é co-produzido pelos irmãos
do Futuro) junta-se-lhe na paralela da competição oficial do festival; no dramática, uma historinha de Walter e João Moreira Salles — e,
Croisette, Un Certain Regard. Dois ano passado, o prémio máximo foi fundo. Essa ideia de o espectador contudo, o seu nome poucas vezes
filmes do Brasil no mais importante dividido por duas longas brasileiras não perceber o que é verdade e o vem ao de cima.
festival de cinema do mundo, depois — Baronesa de Juliana Antunes (2017) que é ficção é um objectivo meu.” “Só fui descoberto no Brasil de
das edições 2019 de Roterdão e Ber- e Lembro Mais dos Corvos de Gustavo Hipnótica polaroid Invoca como referência maior no verdade porque o Eduardo
lim terem recebido uma grande re- Vinagre (2018); autores como Ga- do quotidiano, Querência seu cinema o iraniano Abbas Coutinho amou o Girimunho!”, diz
presentação brasileira — e no mo- briel Mascaro (Boi Neon, 2015), Anita acompanha um vaqueiro que, Kiarostami, e a sua capacidade o cineasta, que não se importa com
mento em que o governo suspende Rocha da Silveira (Mate-me por Fa- na sequência de um roubo para dirigir não profissionais. E essa dimensão de outsider. “Não
todo o financiamento da produção vor, 2015), Marcelo Lordello (Eles de gado, contempla abandonar quando fala da necessidade de tenho muita paciência para
local, usando como pretexto os re- Voltam, 2012), Affonso Uchôa e João o emprego e tornar-se mestre sentir vida não é por acaso: “se o cineasta,” ri-se. “Quero é que me
sultados de uma auditoria encomen- Dumans (Arábia, 2017), Renata Pi- de cerimónias em rodeos filme não tiver vida acabou,” como deixem trabalhar, estou cada vez
dada pela anterior administração aos nheiro (Amor, Plástico e Barulho, sertanejos diz, também como modo de mais fora do meio e inclusive ando
contratos da Agência Nacional do 2013) ou André Novais Oliveira (Ela em pé de guerra com alguns
Cinema. Volta na Quinta, 2014) passaram pe- amigos. Talvez seja demasiado
É com este pano de fundo, com a los ecrãs do certame, a concurso ou discreto para o meu cinema — gosto
eleição de Jair Bolsonaro e o regresso fora dele. é de estar quietinho no campo!” E
ao poder de um conservadorismo de São duas dúzias de filmes, entre preocupa-o a cada vez maior
direita que parece fazer gala do seu longas e curtas, fazendo pontes entre formatação da produção de
desinteresse pela arte, que o IndieLis- as várias secções do festival e, nas cinema “para festival” (“os
boa propõe um olhar sobre o cinema palavras de Sena, reflectindo sobre o directores de festivais hoje são
brasileiro actual. Na apresentação do presente e o futuro do cinema brasi- quase como os governantes do
programa do festival, Nuno Sena, um leiro. Em comum, são todos dirigidos mundo, têm o poder na mão…”),
dos seus directores, falou de “vitali- por cineastas surgidos nos últimos capaz de sufocar os talentos que
dade, diversidade e originalidade” quinze anos, coincidindo com a exis- (como o seu) não “encaixam”.
para definir a produção actual do tência do IndieLisboa mas, sobre- “Sinto falta de vida no cinema
Brasil, evocando no título escolhido tudo, com a renovação de uma pro- contemporâneo,” remata. E vida é
para a retrospectiva Herói Indepen- dução independente agilizada pelos o que ele quer registar.
dente sobre o Brasil o clássico defini- mecanismos de financiamento e J.M. em Berlim
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 19
André Novais Oliveira
O classicismo da observação
Depois de Ela Volta na Quinta, o cineasta brasileiro traz
ao concurso a sua segunda longa, Temporada.

N Do que em nenhum
ão é imediato identificar modo como a câmara acompanha estatais da última década (agora pos-
dois rapazes com ar Grace Passô, no papel de Juliana, tos em causa). Uma produção que
juvenil de vizinhos do
lado com um dos mais
mulher em tempo de recomeço.
Evocamos Alice Já Não Mora momento se duvida não surgiu dos grandes centros urba-
nos nem do eixo Rio-São Paulo mas
activos núcleos do novo
cinema brasileiro. Filmes
Aqui de Martin Scorsese ou O
Diário Íntimo de uma Mulher de é da urgência sim das regiões — Pernambuco, Mi-
nas Gerais, Brasília, Recife, Paraíba
de Plástico, a produtora que
André Novais Oliveira, realizador
Frank Perry, mas André Novais
Oliveira (n. 1984) vai em e efervescência — algo de bem visível no modo como
vários destes filmes se ancoram em
e argumentista, e Thiago Macêdo
Correia, produtor, co-fundaram
simultâneo mais para trás e mais
para a frente. “Um filme que foi de uma cena que realidades específicas. Na hipnótica
polaroid do quotidiano Querência,
na cidade mineira de Contagem
em 2009, ajudou a rodar filmes
uma grande referência foi Certain
Women da Kelly Reichardt, que mulher daí resultante vem, é das mais vivas Helvécio Marins Jr. (Culturgest, sá-
bado 11 às 14h30 e domingo 12 às
como Baronesa de Juliana
Antunes ou Arábia de Affonso
tem uma onda meio setentista,
sim,” diz. “Gosto muito do tom
contudo, menos da actriz do que
do próprio realizador, igualmente do cinema global. 17h15) acompanha vaqueiros e ro-
deios pelo sertão nordestino. Bruna
Ochôa e João Dumans. Ninguém o
diria: num dos espaços de
feminino desse filme, e nos serviu
muito de base tanto para o
autor do argumento. “Não sei
muito bem onde fui buscar Há razões para temer Laboissière filma no discreto docu-
mentário Fabiana (Ideal, quinta 2 às
Locarno usados para a sua
academia de jovens críticos e
argumento como para a rodagem.
Mas tem muito também de John
Juliana, e não sei se tem tanto da
Grace em termos de que a recente 22h30, sábado 4 às 18h30) a última
viagem de uma camionista. A cidade
cineastas, em Agosto de 2018,
Novais Oliveira e Macêdo Correia
Cassavetes — como na cena da
cozinha, que tem uma influência
personalidade... Foi uma
personagem que foi surgindo da suspensão mineira de Contagem serve como
pano de fundo para três realizadores
parecem turistas, não
profissionais.
grande do Tempo de Amar, da
personagem da Gena Rowlands...”
observação de outras mulheres
fortes” — como a própria mãe do dos financiamentos diferentes: André Novais Oliveira (no
comovente retrato de mulher que é
Temporada, a segunda longa de
André Novais Oliveira depois do
Inevitavelmente, isso vem
também da presença de Grace
realizador, que filmou emEla
Volta na Quinta (e que faleceu possa ser um Temporada: São Jorge, segunda 6 às
21h45, e Ideal, quarta 8 às 20h30), a
excelente Ela Volta na Quinta (a
concurso no Indie 2015), teve
Passô, que transporta o filme aos
ombros com uma performance de
durante a montagem de
Temporada). primeiro obstáculo dupla Gabriel Martins e Maurílio Mar-
tins (no propulsivo mas derivativo No
estreia mundial na competição
Cineastas do Presente do festival
extraordinária delicadeza. E,
ironicamente, Temporada não
Essa capacidade de observar é
um bom exemplo do lugar de ao prosseguimento Coração do Mundo: São Jorge, terça 7
às 18h45, e Ideal, domingo 12 às 18h),
suíço, e está agora na competição
do IndieLisboa (e também no
tinha sido pensado para uma
actriz: Passô impôs-se-lhe durante
André Novais Oliveira na actual
cena brasileira: onde outros dessa vitalidade, Affonso Uchôa (no arrasador Sete
Anos em Maio: Culturgest, domingo
programa de homenagem Brasil
em Transe). Entusiasmados por
estarem no festival, “coisa meio
as rodagens de um outro filme que
Novais Oliveira produziu. “O
guião de Temporada tinha
realizadores partem para o
experimentalismo ou forçam
fronteiras de género, ele prefere a
repondo tudo a zero 5 e terça 7, às 19h15).
A par desta dimensão regional, este
é também um cinema que insiste em
de criança, não só pela questão de originalmente sido pensado para simplicidade. “Isso vem muito do dar voz aos que de outro modo não a
exibir um filme mas sobretudo de uma personagem masculina,” meu contacto com o teriam e que, antes da democratiza-
curtir o festival como cinéfilo”, confessa o cineasta. “Estávamos documentário. As pessoas ção dos financiamentos, não a conse-
realizador e produtor falam de produzindo No Coração do associam o cinema que fazemos guiam ter, os habitantes de um
Alice Rohrwacher, Spike Lee, Mundo, que foi filmado antes, e foi na Filmes de Plástico, de uma enorme Brasil que as elites brancas
cineastas que admiram muito forte ver a Grace no filme — forma meio estranha, a um urbanas deixaram de lado: os pobres,
profundamente. Mas Temporada, logo no primeiro ensaio ela nem documentário, como se fosse mais as minorias, os favelados, as mulhe-
retrato delicado e atento de uma tinha lido bem o texto e foi fácil de fazer que uma ficção. E res, as comunidades LGBTQ. Em
mulher em mudança, tem mais a impressionante. E isso mudou a não é. Quis fazer um filme que suma, os que vivem num Brasil cada
ver com o cinema americano dos ficha. A gente disse, ‘tem de ser fosse o mais ficção possível, uma vez menos “país do futuro” e cada vez
anos 1970, quer no tom solar da ela’, e mudou o sexo da coisa clássica, muito escrita.” mais uma sociedade a duas velocida-
fotografia de Wilssa Esser, quer no protagonista.” O retrato de J.M. em Locarno des, em dois patamares: objectos de
um cinema que convida o espectador
a sentar-se (e a sentir-se) no lugar do
outro num país cada vez mais divi-
dido entre “uns” e “os outros”.
O melhor exemplo disso é o mais
poderoso dos filmes desta retrospec-
tiva: Sete Anos em Maio desenha em
40 minutos e meia-dúzia de planos
um relato do desempoderamento
das minorias, do abuso de poder, da
raiva, da injustiça, da violência, num
filme que faz um encontro imprová-
vel mas certeiro entre Adirley Quei-
rós e Wang Bing. Uchôa assina sozi-
nho Sete Anos em Maio, mas João
Dumans, que com ele dirigiu Arábia,
é presença importante na criação
desta média que se desenha como
“negativo” daquele: um testemunho
Temporada nocturno que (se) pergunta se o Bra-
é o retrato sil está a condenado a repetir ad infi-
delicado nitum o século XX mas que trans-
e atento de uma cende a mera boa intenção ou o
mulher em panfleto político, para reduzir tudo
mudança à dimensão humana.
20 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
Sete Anos em Maio é um dos poucos pintar um Brasil utópico futuro entre também de criar uma persona pe- Kiarostami. Em anos anteriores, casos, o ambiente ganha à narrativa,
filmes abertamente políticos deste o laicismo tecnocrata e a fé corpora- rante o espectador), o retratado do Affonso Uchôa e João Dumans reivin- mas a vantagem vai para Os Jovens
Brasil em Transe. Há também o do- tizada, ancorado num moralismo novo filme, Marcelo Diorio, está longe dicavam o cinema americano dos Baumann, que integra na sua pró-
cumentário-ensaio de Petra Costa retrógrado disfarçado de ópio do de ter o carisma de Julia Katharine, e anos 1970, Kleber Mendonça Filho pria narrativa a dimensão “artesa-
sobre o impeachment de Dilma Rous- povo. Mas aquilo que terá querido acaba por limitar o filme a um gueto evocava John Carpenter, e Anita Ro- nal” da sua produção.
seff (Democracia em Vertigem, produ- ser uma sátira religiosa muito seven- LGBTQ do qual Lembro Mais dos Cor- cha da Silveira, Marco Dutra e Juliana Do que em nenhum momento se
zido pelo Netflix: São Jorge, terça 7 ties cruzada de retrato de mulher em vos escapara. Rojas assumiram o cinema de género. duvida é da urgência e da efervescên-
às 21h45), ou Vigília, curta documen- crise de fé parece ter-se perdido du- O olhar de Bruna Laboissière sobre Este ano, Ramon Porto Mota, em A cia de uma cena que, hoje, é das mais
tal de Rafael Urban sobre a vigília rante o percurso, desbaratando uma a camionista à beira da reforma, Fa- Noite Amarela (São Jorge, segunda 6 vivas e produtivas do cinema global.
frente à cela onde Lula está detido. série de boas ideias num filme cu- biana, propõe o mesmo tipo de mer- às 16h15 e quarta 8 às 16h), e Bruna Há razões para temer que a recente
Mas — à excepção de Tragam-me a rioso mas com uma forte sensação gulho imersivo na realidade que Ju- Carvalho Almeida, em Os Jovens Bau- suspensão dos financiamentos possa
Cabeça de Carmen M., de Felipe Bra- de incompletude. liana Antunes explorara em Baronesa; mann (Ideal, sábado 4 às 20h30, sexta ser um primeiro obstáculo ao pros-
gança e Catarina Wallenstein, cuja Não é caso único numa selecção e No Coração do Mundo seria uma es- 10 às 23h30), utilizam o teen movie e seguimento dessa vitalidade, re-
rodagem coincidiu com (e reflecte) a que, mesmo quando não desce abaixo pécie de remake mineira do Som ao o cinema de terror para retratar a in- pondo tudo a zero. Mas, também por
campanha presidencial de 2018 — to- do interessante, define os limites de Redor —filme-mosaico fazendo esta- segurança sobre o futuro. essa efervescência, continua a haver
dos estes filmes são pratica ou criati- algumas das direcções criativas desta feta entre personagens inter-relacio- O primeiro é uma variação atmos- espaço para a sobrevivência deste
vamente anteriores à eleição de Jair geração. Por exemplo: A Rosa Azul de nadas que acaba por ceder à lógica do férica, quântica e exangue, sobre o cinema, destes cineastas que tanto
Bolsonaro. E todos eles vêem e fil- Novalis de Gustavo Vinagre e Rodrigo melodrama de favela cristalizado na slasher, com um grupo de adoles- nos dizem sobre o Brasil de hoje. Que
mam o Brasil por prismas que nunca Carneiro (São Jorge, quinta 9 às 18h45 Cidade de Deus de Fernando Meirelles centes em viagem de fim de ano a insistem em dizer-nos que nem tudo
escamoteiam que mesmo o que não e sexta 10 às 17h) poderia ser o se- e Kátia Lund, e esgotando-se numa verem-se indefesos perante o pesa- vai bem, que, como cantava Chico,
é político acaba por o ser. gundo numa série de retratos de figu- espécie de package vistoso à medida delo que os espera; o segundo en- “a coisa aqui tá preta / Muita careta
Exemplo disso será aquele que é ras transgressivas na sequência do das expectativas internacionais. cena uma fantasmagoria melancó- pra engolir a transação / E a gente tá
(sessão única, São Jorge, sábado 11 às anterior filme de Vinagre, Lembro Nada disto invalida a fortíssima ins- lica sobre o desaparecimento dos engolindo cada sapo no caminho”.
19h) o mais aguardado dos filmes da Mais dos Corvos. Mas, embora nave- piração de toda esta geração: nas en- herdeiros de uma fazenda mineira, Mas que “a gente vai se amando que,
selecção — Divino Amor de Gabriel gue nas mesmas águas (trata-se de trevistas aqui ao lado, André Novais metáfora de um Brasil condenado também, sem um carinho / Ninguém
Mascaro pega na importância dos filmar alguém que expõe a sua dife- Oliveira evoca Kelly Reichardt e John ao desaparecimento sem deixar segura esse rojão”. O transe segue
evangélicos no Brasil actual para rença como modo de se revelar mas Cassavetes, Helvécio Marins Jr. fala de rasto nem saudades. Em ambos os dentro de momentos.
IndieLisboa

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IndieLisboa
16.º Festival Internacional de Cinema

2 a 12 de maio
Cinema São Jorge
Culturgest
Cinema Ideal
Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema

PARCEIRO DE PATROCINADOR
ORGANIZAÇÃO APOIOS INSTITUCIONAIS CO-PRODUÇÃO PROGRAMAÇÃO PRINCIPAL PATROCINADORES PARCERIAS MEDIA
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ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 21


U
COMPAGNIE MAGUY MARIN
ma série de secretárias envi- tos e ideias dos quais se possa apro- precisamente, moldados por um sis-
draçadas, cubículos quase priar, sem ter de obedecer a guiões tema empresarial extensível a todos
sem espaço — apenas o sufi- rígidos, mas que possam desencadear os domínios da vida, tornando cida-
ciente para que homens e um processo criativo ancorado em dãos em seres “funcionais, operacio-
mulheres se sentem e cum- noções e pistas muito concretas. nais, concorrenciais e rentáveis”. E
pram com o seu dever fun- Tudo é depois devolvido na direcção a forma como esse espaço de resis-
cional. Os gestos são feitos de auto- do público de acordo com uma lin- tência tenta ser repetidamente esma-
matismos, extirpados de qualquer guagem filtrada pela poesia e pela gado é exemplificável, diz, com o
emoção. E ao longo de toda a dura- subjectividade. Esse processo de mas- caso recente da campanha televisiva
ção de Ligne de Crête, coreografia de tigação e transformação de ideias em em França que insta “toda a gente
Maguy Marin que foi “espectáculo- movimentos, descreve a criadora, — até mesmo o tipo que ganha o sa-
choque” da última edição da Bienal equivale a “dar a ver imagens como lário mínimo — a doar 10 euros para
da Dança de Lyon, os intérpretes an- num sonho, como quando sonhamos a restauração da Notre Dame”.
dam num corrupio, entrando e à noite e nem sempre compreende- “Esta gente goza connosco!”, solta
saindo de palco, voltando sempre mos aquilo que se passa, embora sem mascarar a irritação com “aquilo
com mais objectos que depositam muitas vezes tenhamos a sensação de que se está a passar com as verbas
num espaço cada vez mais saturado que há uma ligação a algo que se pas- angariadas para a Notre Dame”. “Há
e claustrofóbico. Trazem detergen- sou e nos estimula essas imagens”. milionários franceses a oferecerem
tes, embalagens de papel higiénico, Mesmo se Maguy Marin entende 100 milhões. Mas porque não foram
garrafas de sumo, mochilas, bonecas, que o seu ofício passa por transfor- capazes de doar esse dinheiro para
quadros, fraldas, tudo aquilo que mar esse discurso em algo que, não que o Estado francês pudesse aco-
possa ser adquirido com um cartão carendo de explicações, possa ter um lher as pessoas que são deixadas a
bancário. Os percursos, individuais, mínimo de qualidade narrativa que morrer no Mediterrâneo a toda a
pouco se cruzam, mal se dão conta permita ser descrito e possa encon- hora? Não é possível, vivemos num
de haver outros em seu redor e cum- trar no receptor alguém com sonhos mundo de loucos!”
prem-se sem interrupções, num cres- semelhantes, talvez nunca antes a sua A aceitação e a normalidade desta
cendo de angústia e mal-estar, sem proposta coreográfica tenha sido tão situação, acredita, é mais um sin-
qualquer vislumbre de saída. directa e clara como em Ligne de toma e consequência dos “caminhos
Escreve Maguy Marin que quis co- Crête. “Acho que no ano anterior que nos são impostos pelo exterior,
locar os seus intépretes a “caminhar ainda tentei ser mais directa numa mesmo que nos façam crer que so-
sobre uma linha limite entre duas peça chamada Deux Mille Dix-Sept mos nós que os escolhemos”. E re-
margens perigosas — a violência das [criada a partir de textos de Frédéric lembra o “There is no alternative” de
instituições disfuncionais e a violên- Lordon ou Walter Benjamin, numa Margaret Thatcher, transportando
cia das paixões dos homens”, entre tentativa de resposta ao questiona- essa ideia para este espectáculo em
aquilo que existe e aquilo que devia mento sobre “o que nos obriga a agir, que — mesmo havendo exemplos de
existir. E, por isso, aquilo que vemos no sentido literal e no figurado”]. resistência — se mostra o quanto “a
diante de nós é um pequeno batalhão Desde há três ou quatro anos que maioria da sociedade mudou na di-
de seis seres anestesiados, conforma- sinto nos espectáculos que faço uma recção dessa coisa fria, gélida e me-
dos com o seu papel de peões na so- ligação mais directa à política e àquilo cânica” ligada a uma submissão total
ciedade de consumo, acumulando que se passa no mundo”. às decisões tomadas em seu nome.
bens e sem qualquer energia que lhes Os tempos que vivemos, admite, “No meu trabalho”, reforça a coreó-

Maguy Marin,
permita romper um ciclo imparável. obrigam-na a esconder-se menos grafa, “tento sempre devolver a ima-
Foi a partir da descoberta de uma atrás da poesia. Em simultâneo, há gem de uma realidade que se torna
ideia de restabelecimento de um “re- “uma urgência”, imposta por um insuportável. E é exactamente isso
gime do desejo”, extraída por Marin “planeta cada vez mais doente e mais que está em curso.”

a grande
do livro Capitalisme, Désir et Servi- pobre” que a encosta à parede, sem O espaço opressivo e sufocante de
tude, do filósofo e economista Frédé- lhe deixar espaço para as subtilezas. Ligne de Crête é disso espelho, de uma
ric Lordon, que a coreógrafa desco- “Neste momento temos os Coletes ausência de espaço para pensar, na-
briu “a peça que tinha vontade de Amarelos em França e há outros pe- quilo que entende ser uma estratégia

sabotadora
fazer”. “Lordon é alguém que recla- quenos movimentos de esperança e do neoliberalismo para matar o de-
mou a palavra há alguns anos em sinais de pessoas que entendem que sejo individual. E lembra o quanto o
França e que me parece muito esti- as coisas não podem continuar assim. capitalismo sabe estetizar a resistên-
mulante”, justifica ao Ípsilon. Tenho vontade de me juntar a eles, cia, como se permitisse o embeleza-
“Já há muito tempo que me influen- de fazer um trabalho que ajude a co- mento da imagem da dinamite ao
cio e inspiro em textos de pessoas que locar em marcha esse movimento.” mesmo tempo que lhe apaga o rasti-
Criadora essencial da dança trabalham com conceitos”, diz-nos lho. Daí que Maguy Marin recuse in-
contemporânea, a coreógrafa dias antes de apresentar Ligne de Sem esperança jectar esperança nas suas criações.
Crête em estreia nacional no Teatro Acreditando em cada indivíduo “Essa esperança dá alguma confiança
francesa regressa a Almada com Municipal Joaquim Benite, em Al-
mada, a 4 de Maio — palco a que re-
como um “espaço de resistência”,
Maguy Marin aponta sem hesitação
de que as coisas se possam resolver e
isso é perigoso porque a situação está
Ligne de Crête, peça dura e gressa depois de, em 2016, ter trazido para a política da educação dos últi- mais bloqueada do que se crê.” Por
sufocante, em que humanos quase ao Festival de Almada a muito
beckettiana May B.
mos 30 ou 40 anos como algo que foi
transformado numa câmara de “pre-
isso, fala da violência das paixões dos
homens. Em vez da esperança, são
autómatos limitam cada vez mais o “Encontro nessa matéria a liber-
dade para depois lhe dar uma forma.”
paração para entrarmos neste
mundo capitalista”. Os seis intérpre-
estas paixões que a criadora quer al-
finetar. Para tentar sabotar o adorme-
seu espaço de acção. A coreógrafa fareja, portanto, concei- tes que vemos em Ligne de Crête são, cimento colectivo.

Gonçalo Frota

22 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019


Há muito que um
romance
humorístico não
ganhava o
Pulitzer.
Aconteceu em
2018, com Less.
Nele, Andrew
Sean Greer criou
uma personagem
cuja maior
sedução é a sua
quase banalidade.
Chama-se Arthur
Less, é um escritor
frustrado, gay,
quase 50 anos,
sozinho e a fugir
do convite de
casamento do
ex-amante. Less

S
e Less fosse um cliché seria “Uma vez, quando ele estava na
está a chegar à talvez assim: “Um homem a
vaguear por São Francisco,
casa dos vinte, uma poetisa com
quem tinha estado a falar apagou o
edição portuguesa e pelo seu passado, retor- cigarro numa planta envasada e disse-
nando a casa após uma série lhe: ‘És uma pessoa sem pele.’ Uma
e o seu autor diz de reveses e desilusões”, o poetisa tinha dito aquilo. Alguém que
que tudo “romance melancólico e pungente
acerca da vida difícil de um homem.
ganhava a vida a autoflagelar-se em
público tinha dito que ele, o alto, jo-
começou por ser Da meia-idade falida e gay.” Mas Less
não é isso. Entre aspas está a descri-
vem e promissor Arthur Less, era uma
pessoa sem pele. Mas era verdade.
autobiográÄco até Less ção de outro livro, o último de Arthur ‘Precisas de ganhar dureza’, dizia-lhe
Andrew Sean Less, protagonista do romance ven- constantemente o velho rival Carlos,
se tornar cómico. Greer cedor do Pulitzer de 2018, criatura em tempos idos, sem que Less com-
(Trad. Vasco com pouco de sedutor além da sua preendesse o que isso queria dizer.

Isabel Lucas, Teles de


Menezes)
Quetzal
desconcertante falta de cinismo num
mundo que se move a dinheiro,
grande capacidade de representa-
Ser maldoso? Não, queria dizer estar
protegido, blindado em relação ao
mundo, mas será possível ‘ganhar’

em Nova mmmmm
ção, insinuações, ou resistência à
perda. Seja de um amor ou da ilusão
de voltar a sentir uma paixão. Arthur
dureza, da mesma forma que será
possível ‘ganhar’ sentido de humor?
Ou será que se finge, tal como um em-

Iorque Less é um escritor frustrado que se


escuda numa viagem à volta do
mundo para evitar ir ao casamento
presário sem graça memoriza piadas
e é considerado ‘um pândego’, aban-
donando as festas antes de esgotar o
do seu ex-amante. material?” e
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 23
ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES
Este é, em síntese, Arthur Less,
“artista menor”, criação de Andrew “Eu sou gay mas
Sean Greer (n.1970, Washington D.
C.), uma personagem com muito de também sou muitas
auto-biográfico que ajudou o escritor
de 49 anos a fazer história no mundo outras coisas.
literário que aqui satiriza. Na ficção,
o livro de Less chamava-se Swift e não Sou um progressista
consegue edição. No mundo real, o
romance de Greer chama-se Less e de esquerda, e
ganhou o Pulitzer em 2018, tirando
o autor de uma espécie de desespero, posso sair à rua com
o de achar que a sua carreira de es-
critor tinha terminado. Com cinco cartazes a defender
livros, era quase invisível depois de
um sucesso inicial. Quase como direitos das minorias,
Arthur Less que conhecera algum
sucesso com uma adaptação para o a fazer propaganda
universo gay do episódio de Calipso,
da Odisseia. aos meus ideais,
Narrado na terceira pessoa, Less é
uma espécie de meta-ficção sem pre- mas na literatura
tensões experimentais, com estru-
tura clássica, linguagem depurada e não. Um romance
um humor fino para narrar deambu-
lação interior, sofrida — “peripaté- não serve para fazer
tica” por vezes — de um homem que
se sente o primeiro gay a envelhecer, propaganda.
ou demasiado jovem para entrar na
etapa final da vida. A literatura não pode
No início do livro, Arthur Less estar ao serviço
está prestes a entrevistar um
escritor em público e da política nem
interroga-se: “O que se pode
perguntar sequer a um autor
excepto: ‘Como?’ E a resposta,
de nada”
conforme Less bem sabe, é
óbvia: ‘Sei lá!’.” Devolvo a
pergunta: como é que Less
aconteceu?
Sei lá! [Risos] Não era para ter sido ciais seja para o que for a não ser num
assim. Quedo tenho de entrevistar circuito fechado onde só eles se dão
um escritor faço-me muitas vezes muita ou alguma importância.
essa pergunta, acerca do que é mais E Less é um sátira ao mundo
interessante perguntar. literário, o mesmo que o
E o que é? distinguiu com um dos prémios
Também sou escritor e estou sempre mais prestigiados. Uma ironia
numa posição meio dupla. Os escri- feliz?
tores gostam de ler entrevistas onde Pois é. Achava essa hipótese tão
os outros escritores falam de ques- remota que nem a considerava hipó-
tões de linguagem, opções estilísti- tese e brinquei com isso no livro. E
cas, de como tomam certas decisões, usei o Pulitzer no romance por achar
coisas que interessam pouco aos lei- que é o grande prémio e o mais ina-
tores. Mas gosto de ler sobre isso. cessível. Tinha escrito quatro roman-
Acho importante falar do lado cria- ces e um livro de contos e nunca
tivo, da ilusão de achar que nos consegui grande atenção por parte
podemos aproximar do que está por dos media. Nem muitos leitores.
trás de um livro, entrar na cabeça do Quando comecei a escrever Less,
escritor entender melhor o seu tra- pensava que estava acabado como
balho. E se me perguntar sobre isso escritor e quando terminei achei que
também não sei dizer muito bem. Ou ninguém o iria publicar, que iria ser
seja, não sei muito bem como fun- rejeitado por toda a gente. Aceitaria
ciona a minha cabeça. Vou escreven- isso com sofrimento e seguiria a
do e tentado chegar a uma solução, minha vida não sei bem como; talvez
a um corpo que há-de ter a forma de a escrever para jornais e revistas
livro, um sentido. como já ia fazendo, a dirigir uma
Ao perguntar-me isso a minha res- O Pulitzer em 2018 a Less tirou residência de escritores como Santa
posta não pode passar ao lado de Andrew Sean Greer de uma Magdalena [na Toscânia] onde tra-
uma realidade: os escritores na Amé- espécie de desespero, o de balhei até ao ano passado
rica não são vistos como pessoas achar que a sua carreira de Isso mudou. Ganhou o Pulitzer e
muito importantes, as respostas escritor tinha terminado. Como agora?
deles não são olhadas como essen- a personagem de Arthur Less... Posso finalmente estar só a escrever,

24 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019


pelo menos por uns tempos. É o que ricanos lêem escritores americanos de estilista, um magnífico criador, o que é que seria mesmo humilhante Um romance não serve para fazer
o escritor deve fazer: escrever. Demi- e quase esquecem o resto. Claro que inventivo e tem um enorme sentido para mim? E depois punha-o numa propaganda. Aí é outra coisa. A lite-
ti-me de todas as outras coisas que estou a generalizar, mas não muito. de humor. Leio muito Roth como leio situação dessas. E Less levava-me ratura não pode estar ao serviço da
fazia e escrevo. Isso representa uma Só que o mundo veio ter connosco, John Updike e Saul Bellow e sei que também a limpar o livro de excessos. política nem de nada. A literatura
grande mudança na minha vida: não os americanos, à América, e trouxe isso não está na moda. De linguagem, de descrições, ir ao existe por si e essa independência e
ter de estar a pensar em dinheiro, os medos universais, o seu terrível Como não está na moda essencial nesse processo de humilha- compromisso apenas consigo mes-
nas contas. Tenho de aproveitar. Sei absurdo; já não era possível manter- escrever na terceira pessoa. Foi ção e de descid para depois o poder ma é o seu grande papel.
que a tarefa do escritor é escrever mo-nos à margem do que acontecia óbvio para si que seria assim? iluminar um pouco no final. É uma Escreve: “Less é o primeiro
mas muitas vezes embarco na onda a nível quase global e a olhar para Nunca escrevi de outra maneira. espécie de recompensa depois de homossexual de sempre a
de lamentos, de que isto é muito dentro. Isso contaminou tudo, Gosto do romance vitoriano, do nar- tanto castigo. envelhecer.” Ele era sempre o
sofrimento, que não temos a atenção incluindo a literatura. Acho que não rador que me permite saber tudo Um final luminoso numa mais novo e viu o medo de uma
que merecemos, que ninguém fala teria conseguido manter o tom do acerca de todos e ir por várias direc- história de um escritor sem geração, o medo da Sida.
de nós, que não há críticas, etc. Mas romance se tivesse continuado a ções e perspectivas. E gosto do muito sucesso e gay não se pode Era o terror. Vivi isso, testemunhei e
nunca me senti um génio e continuo escrevê-lo depois de Novembro de romance tradicional. Não significa dizer que é comum. não podia falar de Less sem referir a
a saber que não sou. Nisso o Pulitzer 2016. O sentimento que então tomou que rejeite os mais experimentais, Pois não e queria fugir ao comum. Sida, como, sendo ele escritor, teria
não mudou nada. conta de mim não tinha nada a ver mas são os outros que me inspiram Toda a gente escreve histórias dra- de falar de frustrações criativas e de
Arthur Less, o protagonista, tem com o humor ou a ironia. Trump mais e que leio com mais prazer. máticas sobre gays. É o que se espe- expectativa. Envelhecer, para ele, é
essa mesma percepção, a de que ganhou as eleições e eu tinha o livro Ler Philip Roth ajudou? ra, como se a literatura não supor- olhar todos esses fantasmas. Mas a
não é um génio mas não tem feito. Foi a minha sorte. Muito. tasse um final luminoso para um Sida não é o tema, é uma componen-
necessaria. Embora por vezes Foi sorte manter o humanismo Em quê? amor gay, por exemplo. Eu não ia te da vida e entra na indagação pes-
duvide se esta segunda elogiado pelo júri quando lhe Uma certa ambição minha de contá- escrever mais uma coisa dessas. Isso soal de Less sobre outro fantasma, o
condição não será mesmo a atribuiu o prémio? A gio. E, como já pouca gente o lê, pos- já foi tudo escrito. de entrar nos 50. Não são temas leves,
dele. Ele está à beira de fazer 50 justificação foi a de que Less é so copiar-lhe o estilo aqui ou ali que E ironiza sobre esse amor. Numa mas são comuns a tanta gente, a rejei-
anos, é gay, vive em S. “um livro generoso, musical na ninguém irá notar [risos]. Conheci-o entrevista, a propósito da não ção, o medo de envelhecer de deixar
Francisco, está a viver uma crise prosa, amplo na estrutura e no e ele conseguia ser mesmo muito muito boa recepção que o livro de ser desejado. E pode-se rir ao falar
de meia idade, tem dúvidas, alcance, sobre o que é desagradável. teve junto da comunidade gay, de tudo isto ou retornar isto risível.
vários livros publicados, envelhecer e acerca da natureza Quando foi isso? disse que é impossível Está em vésperas de uma
nenhum prémio. Como chegou essencial do amor”. Em 2001, num encontro com jovens corresponder ao mito que um viagem para a Austrália por
a Arthur Less? [Risos] Eu sei que quis fazer um escritores. Ele não mostrou prazer grupo constrói acerca de si causa do romance, foi traduzido
A partir de elementos muito biográ- livro bom. Há sempre um desfasa- nenhum em estar connosco, nenhum mesmo. para muitas línguas, mas diz
ficos, coisas da minha vida, preocu- mento entre a vontade do escritor interesse ou curiosidade. Não gosta- Sim, e o escritor não deve deixar-se que pouco mudou na sua vida.
pações, angústias, relações. Como e o resultado e neste achei que uma ria nada de voltar a repetir a expe- limitar por isso. Tem de pensar se Além da liberdade para escrever,
achava que o livro nunca iria ser coisa estava próxima da outra. Ou riência. Mas era um grande escritor. escreve para agradar à avó. Ou pouco. Mantenho as rotinas, as de
publicado, aprofundei aspectos mui- seja, o meu objectivo estava perto Ele tinha um alter-ego, Nathan escreve ou agrada à avó e essa ques- escrita, por exemplo. Todos os dias
to pessoais, permiti-me ser bastante do livro que tinha feito. A leitura que Zuckerman. Arthur Less pode tão deve estar resolvida na sua cabe- às sete da manhã vou nadar para a
honesto, expor-me; afinal nunca nin- o júri do Pulitzer fez é muito simpá- funcionar da mesma forma ça. Se eu pertencer a uma comuni- baía de S. Francisco com o meu
guém me iria ler. E no início era tudo tica e terá a ver com o carácter de para si? dade afro-americana, ou judia ou melhor amigo. Chama-se Daniel
um pouco pesado, negro. Mas à [Arthur] Less. Ele é uma boa pessoa, Acho que não. Zuckerman foi uma homossexual ou católica, é espera- Handler, é a ele que dedico o livro. A
medida que [Arthur] Less se foi liber- acho, na sua quase banalidade, na grande invenção e permitiu a Roth do de mim, dentro dessa comunida- água é muito fria e é uma espécie de
tando de mim o livro ganhou outro sua falta de cinismo, de dureza. Isso dizer coisas muito inconvenientes, de, uma espécie de fidelidade ao acordar para o trabalho. Depois
tom. Ou talvez tenha sido o contrá- tudo parece tão pouco compatível incomodar. mito construído à volta dela. Talvez vamos para um café ali perto e sen-
rio: quando decidi que queria escre- com a realidade que foi preciso uma Arthur Less não desempenha o meu livro não corresponda a isso, tamo-nos a escrever durante três
ver uma comédia a fantasia começou boa dose de humor para o tornar esse papel? Não lhe permite talvez ponha em causa o mito. A horas. Não tenho desculpas. Ele está
a ganhar protagonismo e Arthur Less verosímil. Um escritor quer que a dizer inconveniências sobre o minha única preocupação foi a de ali à minha frente, escreve muito
foi-se afastando do que sou. sua personagem pareça realmente mundo literário que de outra ser fiel a mim e à minha ideia de lite- depressa e eu sou levado por aquele
Nessa altura já achava possível possível. Less pode existir, acho que forma não diria? ratura, trazer alguma novidade, ritmo. Não tenho a tentação de me
que o livro pudesse ser aceite? tem muita coisa de mim, muitas das Eu quase não frequentava esse mun- alguma originalidade e honestidade ligar à internet, não me disperso. Se
Não. Menos ainda. Uma comédia minhas dúvidas, das minhas princi- do antes de ter vencido o Pulitzer. intelectual. Eu sou gay mas também viesse para casa arranjaria mil des-
sobre um escritor branco gay?! pais qualidades e dos meus princi- Mas agora frequenta. Um sou muitas outras coisas. Sou um culpas para adiar a escrita.
O que o fez continuar? pais defeitos. Mas ele é mais do que mundo que descreve como progressista de esquerda, por exem- E já está a escrever?
Desespero, acho. Desespero. eu. Eu não tenho tanto interesse. É submetido ao dinheiro, com plo, e posso sair à rua com cartazes Sim.
Terminou o livro, foi publicado ele que dá essas notas e essa ampli- muita gente pouco interessante, a defender direitos das minorias, a Pode adiantar alguma coisa?
e venceu o Pulitzer numa altura tude que o livro terá. conversas vazias, prémios pedir mais igualdade, equidade e Posso sempre dizer que é uma jorna-
de grande domínio de romances É verdade que leu muito Philip literariamente questionáveis. justiça social, fazer propaganda aos da através da América. As pessoas
centrados no eu ou em questões Roth enquanto escrevia este É. Confirmei o que suspeitava. meus ideais, mas na literatura não. acham maravilhoso. Mas não é.
como a imigração, o medo, o romance? [Risos] Mas nada é branco e preto.
colapso de sistemas sociais e É. Por mais surpreendente que pos- Há gente muito boa e o Pulitzer per-
políticos. sa parecer. Ele é o grande escritor mitiu-me ter contacto com muitos.
Sim, é verdade, mas terminei o livro americano. Desde a sua morte que Só que de facto muitas vezes tudo
antes da pessoa impensável que ago- quase não é lido na América. Ele parece, no fim, resumir-se a dinhei-
ra nos governa ter vencido as elei- escreve sobre o homem branco num ro. Os escritores ganham muito pou-
ções. Antes disso a América não vivia mundo de privilégio e isso não é mui- co e sem dinheiro não podem escre-
nesse registo, ou a literatura ameri- to bem visto agora. Como o facto de ver e então frequentam o meio para
cana. O mundo sim, mas a América, ser misógino. Acho que os seus livros conseguirem fazer parte de uma
como sempre, distrai-se consigo pró- têm essa característica. Nunca con- engrenagem. Less passa por ela e
pria, é auto-centrada, e a sua litera- seguiu criar uma personagem femi- simpatizamos com ele por ele nunca
tura não é excepção. Por razões pro- nina literariamente interessante, à ceder no cinismo e se calhar também
fissionais saio muito do país, lido excepção talvez de A Pastoral Ameri- por ele não ser um génio.
com autores de todo o mundo e pude cana [as figuras de Dawn e Meredith Por ser pouco [less]?
perceber como as minhas leituras e mulher e filha do ‘Sueco’ Levov]. Os Sim. Quis sublinhar isso. Carregar
as leituras da grande maioria dos seus livros são conotados politica- nesse apelido e servir-me dele para
meus colegas americanos eram inci- mente como pouco correctas aos apoucar a personagem, rebaixá-la.
pientes. Ou seja, os escritores ame- olhos deste presente, mas é um gran- O meu raciocínio muitas vezes era:

ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 25


MIGUEL MANSO

Livros
Lourenço avança para a sintaxe,
continua a excelente (prática) de
não abandonar nunca a literatura
para todas as ilustrações do que se
encontre a expor. Apenas a título
de exemplo, quando descreve as
orações finais, o autor ilustra a sua
explicação com um trecho lapidar
de Cícero (objecto de diversas
reflexões e louvores de Lourenço
ao longo da sua gramáatica): “por
este motivo todos somos escravos
das leis, para que possamos ser
livres” (p.327). Ao estudar a
evolução fonética da língua
(“Noções de fonética histórica do
latim”), Frederico Lourenço lança
mão de três tipos de analogia que
merecem referência. Camões, a
pronúncia do português do Brasil
e a da área de Lisboa, mas também
a forma de enunciar o nome de
algumas localidades inglesas. São
formas de tornar a sua exposição
mais dinâmica, facilmente
compreensível — e um modo
expedito de aproximar o mundo
Frederico Lourenço apresenta as matérias que compõem a sua gramática com um equilíbrio notável clássico do actual. Outro aspecto
entre rigor e limpidez expressiva que beneficiou da atenção cuidada
do autor foi a métrica, que
Frederico Lourenço expõe do
esclarecimentos são a cada passo labor de tradução da Vulgata. A ponto de vista da poesia, mas
Ensaio acompanhados de intervenções estes se juntam a poesia do período também da prosa, na qual o
que apresentam contextos de ouro da literatura latina e a estudioso distingue “o desenho
Latim: o apelo históricos, recuam e avançam na
cronologia, exemplificam com os
notável “revolução” de um
Satyricon. São, por conseguinte, os
métrico proporcionado pelo ritmo
final das frases” (p.407).
da fonte mais consumados momentos da longos séculos da literatura latina, Nova Gramática do Latim faz jus
literatura latina. Motivo pelo qual a nas suas diversas e aliciantes fases, ao seu título. Na sua metodologia,
Um livro que é, exposição se faz sempre — que aqui se representam. na clareza elegante com que se
elegante, sóbria e claramente — Esta Nova Gramática do Latim de apresenta, no carácter
simultaneamente, uma com o recurso a trechos de poetas, Frederico cumpre plenamente um profundamente arreigado nos
gramática para o estudo do prosadores e dramaturgos que dos propósitos enunciados logo no textos e na fruição literária,
latim, um guia prático e um compõem o vasto panteão da seu Preambulum, e que é o de constitui, realmente, um objecto
recurso inestimável para literatura latina. Para citar apenas “sistematizar de forma novo. Frederico Lourenço
um exemplo, no capítulo desempoeirada os tópicos apresenta as matérias que
(re)visitar a cultura e a “Introdução aos casos”, o caso esenciais para a leitura de textos compõem a sua gramática com um
literatura latinas. Hugo Pinto nominativo é exemplificado com latinos em prosa e em verso”. É, de equilíbrio notável entre rigor e
dos Santos uma citação das Metamorfoses de resto, nesta mesma secção da sua limpidez expressiva. A organização
Ovídio, mas também com palavras gramática que o autor nos chama a dos conteúdos é distinta e
Nova Gramática do Latim extraídas de um grafito de atenção para um aspecto em que logicamente formada, os
Pompeios; o vocativo é servido por seria difícil discordar: uma das encadeamentos são proveitosos, e
Frederico Lourenço
Quetzal nada menos do que excertos de peculiaridades mais interessantes as relações que se estabelecem
Vergílio, Marcial e Catulo. César, desta obra consiste num entre momentos da obra
mmmmm Horácio, Propércio e Plauto, por “Vocabulário essencial da língua enriquecem o aproveitamento do
exemplo, farão as honras dos latina”. São mais de 30 páginas de leitor.
Não há escassez restantes casos. Esta prática, que se vocábulos que, por exemplo, no
de motivos que mantém ao longo da Nova caso das preposições, incluem a
distingam a Nova Gramática do Latim — e que se indicação dos casos regidos por Ficção
Gramática do amplia, com trechos mais longos —, cada uma delas — o acusativo para
Latim de vê-se reforçada com a inclusão de “ad”, ou o ablativo para “cum”.
Frederico uma “Antologia de textos” que Quando se trata de verbos Um romance
Lourenço das
suas
conclui o volume. Trata-se de um
elenco aparentemente breve,
irregulares, estes são enunciados
de acordo com o modelo seguido
sobre nós
predecessoras. composto de vinte e quatro por Frederico Lourenço, ou seja,
Desde logo, convém relembrar que espécimes; contudo, cada um dos “a norma anglo-saxónica” (p.134): Virginie Despentes
não é exactamente habitual que se excertos é antecedido de uma “1.ª pessoa do singular do presente apresenta-nos um anti-herói
publique entre nós um livro desta introdução individual, e todos eles do indicativo (amô); infinitivo melancólico e desiludido —
natureza. A progressiva rarefacção são comentados em pormenor, do presente activo (amâre); 1.ª pessoa em jeito de uma ousada e
do estudo do Latim nas escolas ponto de vista vocabular, do singular do perfeito do
(para nada dizer do Grego) poderá morfológico sintáctico e histórico — indicativo activo (amâuî)”; supino sofisticada radiografia da
explicar esse facto — mas talvez não além de serem alvo de análises (amâtum).” (id.) Todas as palavras “comédia humana” dos
o justifique exclusivamente. comparativas. Por outro lado, o são traduzidas, como se de um nossos dias. José Riço
Acresce que este é tanto um arco compreendido nesta antologia pequeno dicionário se tratasse, e Direitinho
compêndio da língua latina quanto estende-se do século III a.C., com há ao longo de todo o conjunto
uma abordagem fundamental da uma passagem retirada de uma constantes remissões para vários Vernon Subutex 1
sua cultura e literatura. Assim, este comédia de Plauto, ao século VIII d. momentos da gramática. Essa é,
Virginie Despentes
livro nunca deixa de ser uma C, através de um excerto do aliás, uma técnica que marca,
(Trad. de Pedro M. Fernandes
descrição exacta, clara e Venerável Beda. De César e Salústio muito positivamente, esta obra — a
Ventura)
consumada das regras e dos a Santo Agostinho e São Jerónimo, comunicação entre as suas Elsinore
meandros mais intricados da passando por Tito Lívio, Vergílio, diferentes secções revela-se um
“floresta antiga” (p.39) de que Propércio e Petrónio, estamos instrumento de grande utilidade. mmmmq
falam uns versos de Vergílio citados perante alguns dos mais ilustres Tal como fizera ao apresentar
por Frederico Lourenço; e, no exemplos da historiografia latina, todas as incidências da Vernon Subutex 1 — o primeiro
entanto, as explicações e os mas também da patrística e do morfologia, quando Frederico volume de uma trilogia já
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publicada em pedir-lhes, nos dias que correm, dinheiro não era problema. E assim
França — da que considerem isso doentio?” vive alguns meses. Para Alex,
cineasta e Vernon, a personagem principal Vernon servia para dar algum valor
escritora que titula o livro, é um inesquecível real ao seu dinheiro. Mas chegou o
francesa Virginie anti-herói melancólico e dia em que Alex adormeceu numa
Despentes (n. desiludido. Desde os 20 anos de banheira e morreu afogado, uma
1969), é um idade que mantinha uma loja de co-produção de “champanhe e
romance audaz e venda de discos, e em 2006, com pastilhas”, e “vá-se lá saber que
modernamente cerca de 40 anos, a loja teve de caralho fazia sozinho numa
pícaro, escrito numa prosa vívida fechar e ele viu-se sem emprego. banheira, num hotel, em plena
e fluída que, numa prova de risco Solteiro e sem filhos foi tarde.” Vernon é despejado. Foi
e ousadia, deixaria o senhor sobrevivendo durante uns anos de assim que tudo começou.
Houellebecq lá para trás. Este pequenos expedientes e vendendo Esta brilhante narrativa de
livro várias vezes premiado — e a sua colecção de discos de vinil (e Virginie Despentes vai decorrendo
finalista do International Man de outros objectos que em ritmo acelerado: Vernon
Booker Prize 2018 — é uma épica coleccionara ao longo dos anos) no digere a morte do amigo enquanto
sátira social, um quadro realista eBay; depois escreveu uns artigos bate a outras portas, entre várias a
da França do século XXI, mas sobre rock e também compilou de Emilie, antiga amante do amigo
também um retrato dos nossos imagens para um livro sobre o morto, que entretanto se tornara
dias atarefados, do nosso cantor Johnny Hallyday. Seguiu-se “gorda e invisível”. As várias
egoísmo, das injustiças a que a inscrição no “rendimento personagens vão formando uma
quase nos tornámos indiferentes. mínimo”. “Viu as coisas espécie de teia em que os nós que
Vernon Subutex 1 é um romance desmoronarem-se em câmara lenta ligam os vários fios são os seus
lúcido, com uma clara intenção e afundarem-se de forma passados partilhados. Aos poucos,
política, e que ao descrever as acelerada. Mas Vernon não cedeu, Vernon apercebe-se que já tem
consequências de um modo de nem quanto à indiferença, nem poucos vínculos de amizade:
vida no cenário de uma cidade quanto à elegância.” De seguida muitos dos amigos já tinham
(Paris, mas podia ser qualquer vieram as desgraças em série. morrido, e outros já não viviam
outra capital europeia) não deixa Terminada (por uma decisão em Paris, deixaram a cidade por
de radiografar as causas: “as burocrática) a atribuição do causa dos preços. Ele é uma
pessoas desta geração foram “rendimento mínimo”, Vernon espécie de última testemunha de
criadas ao ritmo da Voz da casa vê-se sem dinheiro para pagar a um “mundo perdido”. Mas Vernon
do Big Brother: um mundo em renda da casa que habita. Hesita não se separa dos mortos, fica na
que o telefone pode tocar a em pedir dinheiro durante dois sua companhia deixando-os no
qualquer momento para ordenar meses, mas na proximidade de ser seu tempo. Ao olhar uma foto
a expulsão de metade dos seus despejado, socorre-se de um amigo antiga, vê: “Quatro rapazes no
colegas. Eliminar o próximo é a de há muitos anos, Alex Bleach, nevoeiro, mas magros, com muito
regra de ouro dos jogos que lhes uma estrela rock, bonito e cabelo, os olhos vivos e o sorriso
meteram no biberão. Como atormentado, para quem o desprovido de amargura”, e que
JEAN-FRANÇOIS PAGA
ignoravam como estavam na parte
boa do que a vida lhes reservava.
Com um talento impiedoso, e
num registo quase sempre áspero
e cru, Virginie Despentes vai
tecendo observações satíricas (à
mistura com um impressionante
conhecimento musical dos anos
das décadas de 1980 e 1990) que
compõem uma “comédia humana”
que se desenrola pela topografia
social de uma Paris hostil — quase
uma versão século XXI das
narrativas da França de Balzac no
século XIX. No meio de todo o
caótico frenesim narrativo,
atravessado por apartes cáusticos
e muita ironia, Despentes vai
controlando a escrita do romance
de maneira impressionante, numa
“desarrumação” disciplinada e
coesa. Não sendo um romance
polifónico (no sentido teórico do
termo), é-o pelos vários pontos de
vista dos muitos olhares que o
enchem. A mestria com que a
autora orquestra as energias
necessárias para captar e
descrever os males do nosso
tempo, parece desdobrar-se numa
cortina de melancolia que não
abandona Vernon, o homem
cercado pelos fantasmas dos
amigos mortos.
No meio da trama descrita, há
um pormenor (ou muito mais do
que isso) que faz do romance
também um thriller: Vernon tem
em seu poder três cassetes de
vídeos que Alex fez antes de
morrer; uma frase deixada sem
cuidado num comentário no
Facebook anunciou-o. Sem saber,
Um talento impiedoso, um registo áspero e cru: Virginie Despentes tem no seu encalço uma multidão
de produtores, estrelas porno e fãs.
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 27
Discos
Pop
O venturoso
Anderson .Paak
Não é que a diferença seja da
água para o vinho, mas o
certo é que Ventura, disco
produzido no mesmo
período de Oxnard (editado
no ano passado), é bem claro
na demarcação do terreno
onde a voz e o groove do
californiano melhor se
movimentam.
Francisco Noronha
Ventura
Anderson .Paak
Aftermath

mmmmq
Venice, Malibu,
Oxnard: qual a
próxima Um digníssimo sucessor dos grandes nomes da soul americana
paragem de
Anderson .Paak?
— era a pergunta rappado do que cantado, com great fighters, once every ten years: faz sentir em Ventura: a
que aqui fazíamos em Dezembro tónica nas cadências hip-hop, . Rocky Marciano, Sugar Ray instrumentação orgânica, a
sem imaginar que o Paak volta à soul mais clássica de Robinson, Joe Lewis. Sometimes you sofisticação dos arranjos, o
esclarecimento chegaria escassos Malibu (e a isso não será alheia a get ‘em all at once. Me? I had my classicismo (que só
quatro meses depois. A resposta é, maior liberdade de movimentos three when I was sixteen”. A voz de equivocadamente poderá passar
então, Ventura — ou, baralhando que afirmou ter beneficiado por Chazz Palminteri — enxertada de A por simplismo a ouvidos menos
para voltar a dar, Malibu. Ou parte de Dr. Dre., produtor Bronx Tale (1960, filme realizado e rodados) da orquestração, com
ainda… Venice. Dito de outra executivo aqui como em Oxnard), contracenado por Robert De Niro) destaque para as secções de
forma: depois de um disco mais um dos pontos altos — senão o — condensa bem, no início de sopros (sax, trompetes, as flautas
mais alto — do ano discográfico de Winners Circle, a toada global de que fecham Come Home) e,
2016. E volta com muito acerto, Ventura: os amores e desamores, sobretudo, de cordas (os baixos
pois que, sem prejuízo da sua encontros e desencontros (“Now gordíssimos, sim, mas, acima de
impressionante transversalidade, we’re strangers in the night”, o tudo, os soberbos violinos de
é, de facto, nos campos mais célebre verso de Sinatra de pernas Make It Better, Reachin’ 2 Much ou
lânguidos, cantados, esparsos, para o ar), o sempiterno boy Chosen One) — algo que também
que a sua voz, o grão do seu (un)meets girl de que “Make It leva o disco para aquela soul
espantoso timbre, o swing da sua Better” fala (mas que .Paak nos faz festiva, requintadamente tocada,
atitude plenamente se revelam — é ouvir, com um certo travo a muito seventies (Kool & The Gang,
nesses campos, enfim, que se doo-wop, como se fosse a primeira Ohio Players, Earth, Wind & Fire,
afirma, de pleno direito, como um vez — a isto se chama, meus por aí). Pelo caminho, claro, a
digníssimo sucessor dos grandes senhores, um “clássico”). E, claro, vibração funk, o pulsar disco que
nomes da soul americana como, a ideia do amor como luta, fazem igualmente do álbum um
por exemplo, Smokey Robinson, procura, resistência, enfim, generoso, irresistível, convite
colaborador na composição de “sangue, suor e lágrimas” (e será para a pista ao ritmo das já
Make It Better, single — belíssimo que não está já tudo perdido mencionadas Reachin’ 2 Much
na sua (aparente) simplicidade quando se diz à amada “Let’s (que encerra com uma guitarra
(idem para o videoclip) — que please make some new wah e .Paak a trautear em registo
pré-anunciou o álbum (para o qual memories”?...). Esta ideia de “abossado”, reiterado nos apitos
contribuíram, é certo, inúmeros struggling, hustling mesmo, no de King James), Winners Circle
nomes de primeira água, mas algo amor é também, contudo, (preenchida por muito scat,
que só a ficha técnica melhor política, e ela é aqui, como vem recurso algo esquecido na música
elucida, tamanho o brilho que . sendo hábito na verve de .Paak., negra mais recente) ou “Jet Black”
Paak guarda para si da primeira à um dos seus maiores trunfos: a (onde, já com um pé no house, .
última malha). Ventura — o forma como, nas suas canções Paak repesca Brandy, esquecida
primeiro trabalho em que (nas letras e no modo como as voz do R&B dos noventas, se bem
DDD − Festival Dias da Dança abandona o padrão de collage pop trabalha e declina vocalmente), o que numa aparição quase tão
na capa, agora substituído por amor e o olhar sobre a sociedade discreta como a do ex-The

Skid + Autodance uma enternecedora fotografia do


músico com o filho — não deixa
naturalmente, porém, de absorver
americana, a coolness e o humor
mas também as dificuldades e as
superações no dia-a-dia dos
Miracles em Make It Better). A
forma aparentemente fácil, sem
esforço, com que o californiano
GöteborgsOperans Danskompani o R&B de Venice (e, até, o verniz afro-americanos (King James é nos oferece, cheio de charme,
Estreia Nacional
pop do trabalho de .Paak dedicada ao basquetebolista e mais um belo trabalho (What Can
enquanto Breezy Lovejoy, filantropo LeBron James) se We Do?, com a colaboração
04.05.2019 pseudónimo anterior) e o rap (e entrelaçam com a maior das “póstuma” de Nate Dogg, é o
22:00 que groove estratosférico confere naturalidades (vaivém que o único momento banal, menos
ele a Chosen One…!) de Oxnard — a remete, novamente, para o inspirado) só o consolida, se
obra de .Paak é não só uma das panteão das vozes negras, de Nina dúvidas existissem, como um dos
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lifetime… They come along like the agora, o que mais intensamente se natureza.
28 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
Father of the Bride tem uma hora
O-bla-di-obla- e dezoito canções, mas nunca soa
excessivo. Há tiros ao lado, como a
da, a vida supracitada We were married in a
continua gold rush, espécie de country,
versão yatch-rock, que se esforça
demasiado por ser standard FM,
Num álbum duplo de 18 mas ouvimo-los como pormenores
canções, os Vampire que não fragilizam o todo.
Weekend dedicam-se a Compêndio de composição, do
encontro em abraço caloroso entre
procurar a universalidade
Va Morrison, Paul Simon e David
num muito peculiar Byrne que é This life, à folky
classicismo. Mário Lopes ranchera da belíssima Sympathy — “I
think I take myself too serious / It’s not
Father of the Bride that serious”, introduz-se —, Father
of the Bride é um álbum caloroso e
Vampire Weekend
Columbia; distri. Sony Music questionador, clássico sem ser
classicista, um álbum em que os
mmmmm Vampire Weekend, já não sendo
aqueles conhecemos lá atrás no
A guitarra Os Vampire Weekend passam a ser a visão de Ezra Koenig, com Christopher Tomson e Chris Baio como tempo, continuam a deixar vincada
acústica é figurantes empenhados uma marca: está nas letras e na voz
dedilhada, a voz de Ezra Koenig, está, exemplo entre
segue-lhe os muitos, na agilidade com que, numa
voltejos. Entra a imaculado álbum homónimo de inteiro e esquissos que as canção, aquele refrão que serve de canção como How long, põem
pianada e as 2008, o de A-Punk ou Mansard roof, complementam, “Father of the mote a tudo o resto: “I don’t wanna feedbacks de guitarra em convívio
congas, entra a pandeireta e hão-de para esse Contra (2010) em que, Bride” explora aquilo que somos live like this, but I don’t wanna die” — com electrónica flutuante, bateria
chegar os coros quase beatíficos a mantendo a invenção musical no uns perante os outros. A natureza a música pode ser solar, mas as processada e pizzicato de violino.
dobrar o órgão e o ritmo sintético centro do coração pop, assomava das nossas relações, portanto. Não letras vivem noutra ambiguidade: “Things have never been stranger
de veraneio, coisa barata mas de como retratista social surpreende, desse ponto de vista, “When I was young I was told, I found / things gonna keep strange”,
apelo global. E estamos nisto, e isto particularmente inspirada, chegou que o álbum seja pontuado por / that every one rich man in ten had a canta-se no balanço de Stranger,
é simples e directo, feliz de uma a Modern Vampires in the City e alguns duetos Koening-Haim que satisfied mind / well, I’m the one”, algures entre a the Band e os
forma desassombrada. É então que aquele que era o seu álbum de replicam, à século XXI, aqueles de ouvimos em Rich man, uma balada Grateful Dead. Things change,
se ouve o homem que canta dar-nos negrume e desencanto que a história da country é fértil — com guitarra roufenha, gravada sentencia-se enquanto o piano
o mote: “I don’t wanna live like this, encaminhou-os para a luz — luz incluindo piscar de olho à Jackson como se fosse a de Robert Johnson comanda a dança, enquanto os
but I don’t wanna die”. Isto que intensa e extenuante, a luz de um de Johnny Cash e June Carter em nas míticas sessões num hotel metais a incitam. As coisas
temos pode não ser perfeito, pode estrelato maior do que julgavam Married in a Gold Rush. texano, e de orquestração de dança mudam, realmente. Ficam as
até ter o seu quê de angustiante, possível, com direito a entronização Álbum luminoso, arranca com de salão (um delicioso anacronismo canções. Como estas: 18 delas
mas que fazer para além de entre a socialite Grammys e tudo. folk celestial vertida em country de que a manipulação electrónica do sobre o que fica quando tudo vai
continuar? “I don’t wanna live like Cansados, incertos do que deveriam pedal-steel e chega, à segunda som potencia). mudando à nossa volta.
this, but I don’t wanna die”, continua ser quando já estava tão longe a
ele, e já há guitarra country & inocência dos primeiros tempos,

4
western a colorir o cenário e sem certezas do que deveria ser e
pianada blues à Nicky Hopkins. que relevância teriam ainda,
Continuemos, então. actualmente, as bandas de guitarras
Aquela é Harmony hall, a segunda (expressão deles), foram viver a vida
canção do quarto álbum dos
Vampire Weekend, o primeiro da
segunda vida da banda
longe. Até que…
Até que Ezra Koenig começou a
compor canções. Canções umas
mai21h30
nova-iorquina. Chega depois desse atrás das outras, canções que
Modern Vampires of the City que era dariam, diz ele, para editar um par
todo ele sobre o crepúsculo da de álbuns com 25 temas. Não foi tão
imortalidade juvenil e o medo longe. Ficou-se pelo álbum duplo,
perante as sombras ameaçadoras 18 canções, em que, sem a presença
no horizonte. Isso já foi há muito, já constante e a influência directa de
foi há uma vida. De 2013 para cá, Batmanglij, os Vampire Weekend
citemos uma evidência, o mundo passam a ser a visão de Ezra Koenig,
enlouqueceu mais ainda. Daí para com o baterista Christopher
cá, o teclista Rostam Batmanglij,
primeiro cúmplice do vocalista/
Tomson e o baixista Chris Baio
como figurantes empenhados, e
Bélgica Itália
guitarrista Ezra Koenig na definição uma mão cheia de colaboradores monolog event it moves me
Samuel Lefeuvre Aristide
do som dos Vampire Weekend, externos — pelo álbum passa a voz
abandonou a banda — divórcio de Danielle Haim, das Haim, o
amigável, Batmanglij até co-compôs
algumas canções do novo álbum.
Quanto a Koening, trocou Nova
guitarrista Steve Lacy, dos The
Internet, ou David Longstreth, dos
Dirty Projectors. Pois bem, que é
Florencia Demestri Rontini
Iorque por Los Angeles, colaborou então Ezra Koenig hoje? Continua
com Kanye West, criou uma série de um compositor de lírica inspirada e
anime para a Netflix (Neo Yokio), um vocalista capaz de carregar uma
ª

reconciliou-se com música que melodia de forma admirável: a


abominava há uma década (o
country mais popular de Nashville,
quebra no final da frase, no
pré-refrão de Unbearably white, é
www.encontrosdodevir.com rua frei lourenço sta maria nº4 Faro
as canções feitas jams dos Grateful daquelas maravilhas capaz de nos
le terrier Bélgica
11
Dead), foi pai. tocar emocionalmente de uma
Entre tudo aquilo, os Vampire forma inexplicável. Deixada para
Weekend foram ficando para trás.
Tinha sido demasiado, tem
trás aquela concisa amálgama que
fazia a sua música (Talking Heads,
Samuel Lefeuvre
explicado Koenig à imprensa
americana. A banda que irrompeu
Beatles, ska, música de câmara,
Paul Simon, synth-pop), os Vampire
Florencia Demestri mai
no cenário indie com pop literata de Weekend dedicam-se a procurar a cine-teatro Louletano 21h30
brilho juvenil e ginga saltitona — universalidade num muito peculiar co-produção estrutura financiada parceiros co-financiadores

incluir referência às “guitarras classicismo.


africanas” —; a banda que passou do Dividido entre canções de corpo actividades culturais centro de artes performativas do algarve

ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 29


Cinema
familiar e pelo exílio forçado que sempre que julgou necessário.
foi o destino de tantos judeus na Quando trabalha sobre as
Europa durante o período nazi, memórias da infância e as
entre 1933 e 1945, a arte surgiu-lhe memórias da família, por exemplo,
como o oxigénio de que utiliza com frequência a
necessitava para, composição em bandas, como se
simultaneamente, se conhecer e se se tratasse de um livro de horas
reconstruir. medieval (ou de uma banda
A história de Charlotte Salomon desenhada moderna). Do mesmo
é muito mais complexa do que este modo, não hesita em alternar
breve resumo deixa intuir. Nascida entre um traço bem definido e
numa família burguesa e laica de contornado, num auto-retrato
Berlim — o pai era médico —, tinha quase clássico, e as pinceladas
um historial dramático de suicídios rápidas e esquemáticas com que
sucessivos no lado materno que só fixa sobre a folha de papel os
muito tarde, em 1939, lhe foi momentos mais dramáticos da sua
contado. A mãe, a avó e uma tia, da vida. Os rostos, os corpos, as poses
qual herdara o nome, tinham repetem-se como num story-board
morrido dessa forma. É depois de cinema, essa arte que Charlotte
dessa revelação, entre 1940 e 1941, considerava como pertencente ao
que Charlotte, já em fuga no sul de futuro. Como não pensar no
França, entre Nice e ensaio que Walter Benjamin
Villefranche-sur-Mer, decide dar escrevia exactamente o mesmo
início àquele que seria o projecto assunto, pela mesma altura, não
de uma vida: a criação de um muito longe de Charlotte?
libreto que era simultaneamente De guache para guache, a
um livro ilustrado e um relato conjunção entre a palavra e a
comovente da sua vida. A este deu imagem são permanentes. Não há
o nome que agora vemos nesta desenho sem escrita, como não
exposição: Vida? Ou Teatro? houve, desde o início, desenho
As relações com as artes do sem música. A própria pintora
palco, tanto a música como o explicou o seu processo criativo,
teatro, são de facto evidentes. Não que incluía a rememoração de
apenas a obra está composta trechos musicais durante o tempo
como uma Singspiel, ou opereta, de duração de cada composição, e
Última oferenda cultural de uma judia alemã: Charlotte Salomon dividida em três tempos, o do a presença da voz, sempre através
prelúdio, o da “secção principal”, da memória, a solo, em dueto ou
e o do epílogo. Cada um deles mesmo em coro. Como sucede no
Expos
correspondem a tempos precisos, processo da escrita de uma peça de
A vida renascida a saber, a infância, a vida em teatro, como numa partitura
Berlim e os dois curtos anos no sul musical ou na coreografia de um
de Charlotte de França. A ficção surge na bailado, são dadas indicações
Salomon atribuição de pseudónimos às
diferentes personagens, seja a
sobre as relações entre as diversas
personagens que surgem no
própria artista, o pai, a madrasta enredo. Com frequência, a artista
Um espólio de 1300 guaches (uma cantora lírica famosa na sobrepõe folhas de papel
deixadas a uma amiga altura), os avós e, sobretudo, transparente onde especifica o que
poucos dias antes da sua Amadeus Daberlohn, o nome se passa, esclarecendo sempre e
escolhido para Alfred Wolfshon, mais detalhadamente o que possa
deportação para Auschwitz é professor de canto que será a suscitar dúvidas. Plasticamente,
hoje tudo o que resta da obra grande paixão da vida de Vida? Ou Teatro? é notável. Mas há
de Charlotte Salomon. Charlotte. Paixão, e não só: mais; há nesta obra um impulso
Luísa Soares de Oliveira Daberlohn é aquele que vital, visceral que transcende a
desencadeia a vontade e a tentativa de fundir todas as artes
Vida? Ou Teatro? confiança de criar na artista uma numa obra de arte total
vontade catártica que se opõe ao nietzschiana. Detectamos aqui,
Charlotte Salomon
destino de morte a que todas as com efeito, a urgência documental
mmmmm mulheres da família parecem estar de registar um impulso que foi de
condenadas. É a partir das morte agora feito impulso de vida.
LISBOA. Museu Colecção Berardo. Todos os conversas e do convívio que Houve quem comparasse a obra
dias, das 10h às 19h. Até 11 de Agosto.
mantém com ele que chegará à de Charlotte Salomon com a de
A obra de Charlotte Salomon conclusão que perpassa sobre Anne Frank. Mas Anne Frank era
(1917-1943), que o Museu Colecção todo o seu trabalho: é preciso uma adolescente que nunca pôde
Berardo agora apresenta com isolar-se, morrer um pouco, ter a experiência de vida que a
curadoria de Eric Corme, é distanciar-se de si para conseguir pintora possuía no momento da
absolutamente singular no renascer e criar algo. sua morte. A sua obra, na
contexto da primeira metade do A exposição apresenta uma autenticidade e no impulso vital
século XX. Este adjectivo não se selecção dos guaches originais que a funda, aparenta-se mais, se
refere só às suas características divididos nos três momentos em tal é possível, com a de Etty
estilísticas, que seguem, embora que Charlotte compõe a sua obra. Hillesum, outra judia morta em
ultrapassando-as, os preceitos Charlotte Salomon não era uma Auschwitz que nos deixou um
simultaneamente modernos, auto-didacta como, por exemplo, diário admirável. Ambas
expressivos e figurativos da época Frida Khalo, que redigiu um diário descobrem uma espiritualidade
no norte da Europa, nem sequer ao de imagens. Tinha frequentado dentro de si que desconheciam à
tipo de obra — um relato uma academia em Berlim, pelo partida. Se a de Hillesum é de
desenhado, que oscila entre a menos enquanto as leis cariz religioso e místico, a de
autobiografia e a biografia antissemitas, que mais não Salomon revela-se finalmente
ficcional, mas sim aos objectivos traduziam do que a construção de numa alegria de viver que passa
que a autora a si própria se deu uma identidade social alemã sobre pela arte e pelos mestres que
quando resolveu dar início à a exclusão de um mitificado admirava para se transformar em
produção desta obra. De facto, estrangeiro, o permitiram. Essa dom. Eric Corne não se engana
com uma curta vida (foi aprendizagem permite à artista quando afirma que esta obra é
assassinada aos 26 anos em adaptar o estilo e ultrapassar “um grito”, “uma última oferenda
Auschwitz) marcada pela tragédia regras académicas instituídas cultural de uma judia alemã”.
30 | ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019
AS ESTRELAS Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
DO PÚBLICO

Anoitecer mmmmm mmmmm mmmmm


Até Que o Porno nos Separe – mmmmm mmmmm
O Dia a Seguir mmmmm mmmmm –
Diamantino mmmmm mmmmm mmmmm
Dumbo – – mmmmm
Greta mmmmm mmmmm mmmmm
Kursk mmmmm mmmmm mmmmm
A Land Imagined mmmmm – mmmmm
Não me Toques mmmmm a –
Quero-te Tanto mmmmm – mmmmm
Ruben Brandt, Coleccionador mmmmm – –
The Sea of Trees – mmmmm mmmmm
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

impressionante. Tal como


Estreiam impressionantes são os primeiros
vinte minutos onde, com um
O museu da arte mínimo de diálogo e um máximo
de agilidade, se constrói uma
moderna perseguição louca pelas ruas de
Paris que não ficaria a dever nada a Uma sexagenária, católica, conservadora, descobre que o filho é uma vedeta da pornografia gay...
O roubo como performance Paul Greengrass. Essa perseguição
abre a porta para uma história de
artística multidisciplinar já polícias e ladrões, um heist movie através do realismo da imagem, articulada. Não faz mal: a ideia do ou pelo menos conhecer, aquele
ganha este filme curioso, onde os grandes quadros da Krsti prefere visualizar a roubo como performance artística mundo.
inventivo, invulgar. Jorge história da arte andam a ser impossibilidade com um multidisciplinar já ganha este filme É um documentário “de
Mourinha roubados de acordo com os surrealismo lúdico, curioso, inventivo, invulgar. personagem”, que frequentemente
pesadelos de um psicanalista. Só deliberadamente artesanal, nos deixa a sós com a senhora e as
Ruben Brandt, Coleccionador que tudo em animação — e o que ancorado nas escolas artísticas do suas reflexões em voz alta, por
Krsti faz é ideal daquilo que a século XX e cheio de piscadelas de vezes assumindo uma forma quase
Ruben Brandt, a Gyüjtö
De Milorad Krstic
animação permite, ou seja, criar olho ao cinema de género (os cubos O meu Älho “epistolar” quando lê as
Animação algo que não é possível em imagem
real. A dimensão onírica, surreal,
de gelo na forma de Hitchcock, os
clichés do detective privado com a
é uma estrela mensagens, realmente enviadas ou
apenas pensadas, com que
mmmmm constantemente distorcida do sua assistente). No seu melhor, do porno comunica com o filho. São os
mundo de Ruben Brandt, Ruben Brandt, Coleccionador melhores momentos dos filme,
Monet, Renoir, Van Gogh, Coleccionador não seria possível propõe uma expansiva liberdade aqueles em que Jorge Pelicano mais
Um filme simpático, que
Botticelli, Velázquez, Goya, De com actores, nem mesmo com criativa e formal, a fuga à força e melhor persegue uma estrutura
Chirico, Warhol, Picasso... A lista animação fotorrealista. gravitacional da realidade que só a parece traduzir um genuíno que fuja aos trâmites importados
de citações que o artista visual A história do filme é prima animação permite, e é essa interesse na história que tem de um modelo de reportagem
esloveno radicado na Hungria afastada da Origem de Christopher liberdade que compensa as para contar, evitando o televisiva, pecha maior dos seus
Milorad Krsti alinha nesta sua Nolan, mas onde aquele apostava pontuais fraquezas narrativas, a sensacionalismo e os filmes anteriores, e em que este
primeira longa-metragem é em tornar o impossível credível ligeireza com que a sua história é incorre menos. Menos, mas não
julgamentos apressados. completamente, porque à medida
Luís Miguel Oliveira que o filme se vai aproximando do
Até que o Porno nos Separe fim vai perdendo esse centro
definido para se tornar também um
De Jorge Pelicano
Documentário filme sobre o filho, e de certa forma
também um filme sobre a indústria
mmmmm da pornografia (que, no princípio,
aparecia duma forma quase
Até que o Porno nos Separe é um “fantasmática”, como um temor da
filme sobre um confronto de imaginação da senhora). É também
mundos e de mentalidades, onde uma história de “conversão”, e de
a pornografia, mais do que se como a mãe do rapaz, que começa
tornar “tema”, cumpre o filme em repugnância, se
essencialmente a função transforma no final em activista dos
simbólica de assinalar a barreira, direitos LGBT, participando em
a priori intransponível, que separa manifestações no centro do Porto —
esses mundos e essas mas falta ao filme a força, digamos
mentalidades. Resumidamente, “dramática”, para dar essa
conta a história de uma senhora, conversão com outra
sexagenária, católica, profundidade, ou que pelo menos
conservadora, que descobre que o releve mais o “atrito” que toda a
filho, emigrante na Alemanha, é conversão precisa, em primeiro
uma vedeta, à escala europeia, da lugar de vencer. Ainda assim, é um
pornografia gay. A repulsa que a filme simpático, mesmo no seu
descoberta, feita pela internet didactismo porventura demasiado
(dada aqui como “chave-mestra” linear, ou precisamente por causa
para abrir todos os segredos do disso, visto que parece traduzir
mundo), inicialmente lhe suscita uma forma de franqueza e um
colide, no entanto, com o amor de genuíno interesse na história que
mãe, e a senhora, enchendo-se de tem para contar, evitando o
Ruben Brandt, Coleccionador: a fuga à força gravitacional da realidade que só a animação permite coragem, contraria a aversão para sensacionalismo e os julgamentos
se aproximar do filho e perceber, apressados.
ípsilon | Sexta-feira 3 Maio 2019 | 31
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