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Uma conversa com o historiador Roger Chartier é como um encontro com a própria erudição. Nascido em
Lyon, na França, ele conta com simplicidade como o gosto pelos textos literários, pelas leituras dos
clássicos franceses e espanhóis, ainda na juventude despertou seu interesse pela História. Sua trajetória
intelectual, então, tratou de unir as duas paixões: a história do livro e das práticas de leitura na época
moderna.
Diretor de estudos e investigações históricas da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Chartier
leciona desde 2006 no tradicional Collège de France, onde neste mês de outubro inaugura uma cadeira
intitulada “Escrita e cultura na Europa Moderna”. A criação desse espaço de reflexão é resultado da atenção
que os historiadores têm dedicado ao tema nos últimos anos. E isso inclui os estudos feitos no Brasil.
Entre sorrisos e gestos simpáticos, Chartier fala sobre seu contato com as instituições e os intelectuais
brasileiros e sobre a ausência de imprensa no Brasil colonial. Mas, especialmente, sobre a reconstrução
fascinante das formas de se produzir os livros, do impacto provocado pela presença do impresso dentro da
sociedade. A emoção de uma história da leitura que abrange aquele espaço de privacidade que se cria entre
os olhos do leitor e as letras impressas nas páginas de um livro, de papel ou virtual. Participou desta
entrevista Andréa Daher, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
REVISTA DE HISTÓRIA - Como se deu a sua opção pela História e a sua preferência pelos estudos
de história cultural?
ROGER CHARTIER - Há um perigo em responder a esta pergunta, que é o de cair na idéia de uma
trajetória absolutamente necessária, enquanto a vida intelectual está cheia de passagens, encontros,
oportunidades. Não sei exatamente por que a História sempre me interessou, desde a escola primária. Mais
tarde, quando entrei no liceu, meu interesse se voltou ao mesmo tempo para os textos literários. Lia muitos
livros clássicos franceses, e quando comecei a aprender castelhano, também os clássicos espanhóis.
Quando comecei a fazer trabalhos acadêmicos, no final dos anos 1960, na França, a História utilizava as
técnicas estatísticas para a quantificação dos fenômenos culturais e, no fim das contas, a literatura não
desempenhava um papel particularmente importante nessa perspectiva. A história da cultura mobilizava as
mesmas técnicas, as mesmas fontes que a história demográfica, social e econômica, baseada em dados
objetivos. Ela não permitia, necessariamente, responder a perguntas importantes.
RC - Por exemplo, era possível, embora difícil para os historiadores dos anos 1960 e 70, reconstruir a
produção tipográfica de uma cidade durante um certo período, reconstruir o conteúdo das bibliotecas
privadas, a partir das fontes cartoriais, a partir dos catálogos impressos. Mas o que essas análises diziam
sobre a leitura? O que diziam sobre a relação entre o leitor e os textos que foram lidos? Evidentemente,
muitos liam textos que não possuíam e, como nós, possuíam livros que nunca leram. E, dentro dessa
perspectiva, tratava-se de construir um projeto compartilhado de uma história da leitura e dos leitores,
entendendo leitura como apropriação do texto, ou seja, o texto incorporado, transformado pelos indivíduos
em algo que dava sentido à sua relação com o mundo.
RC A palavra “moderna”, pelo menos em francês, tem um sentido ambivalente, porque para muitos significa
o tempo contemporâneo. Há os que pensam que saímos da modernidade, que há uma pós-modernidade.
Mas para os historiadores, como se sabe, a época moderna vai do século XVI ao XVIII, o que se classificou
também de Antigo Regime em francês, a partir do momento em que se pensava a Revolução como um novo
regime. Na tradição francesa, os historiadores que líamos, e que têm uma força de escrita ou de invenção
intelectual ou conceitual, trabalhavam, em sua grande maioria, sobre a época moderna. Lucien Febvre,
fundador dos Annales com Marc Bloch, era um historiador do século XVI. Braudel era um historiador
modernista.
RC É verdade que se pode ter uma relação com um país, com uma cultura, sem nunca ter estado
efetivamente presente nele. Na França, fazíamos muitas leituras sobre o Brasil. Por exemplo, Michel de
Certeau ficou fascinado com o texto de Jean de Léry. Isto é mais um Brasil, sem dúvida, textual, imaginado,
conhecido por intermédio de obras e de historiadores. Depois, em 1993, tive o primeiro convite para vir ao
Rio de Janeiro, no aniversário do CPDOC, na Fundação Getulio Vargas. Começaram, então, relações
regulares com diversas instituições, colegas, comunidades intelectuais e científicas. E isso foi possível, me
parece, porque no Brasil havia também interesses paralelos, principalmente em torno da história das
práticas de leitura.
RC No Brasil, a convergência das ciências sociais, como a sociologia e a antropologia, a dimensão histórica
e a importância central do tema para a educação criaram este interesse pela história das práticas de leitura.
O deslocamento que foi feito da história do livro para a história das práticas de leitura, questionando suas
possibilidades, os tipos de fontes, o método de investigação, tem encontrado interesse por parte deste
mundo intelectual que se dedica à mesma perspectiva. A cada dia, produzem-se novos textos importantes e
interessantes no Brasil sobre esses temas.
RC Nosso grande risco é o de projetar no passado nossas maneiras de ler, pensar, sentir. E sempre
devemos pensar na diferença: reconstruir um mundo, que é um mundo diferente, por meio da postura
antropológica que deve ter o historiador. Hoje em dia, de modo geral se lê com os olhos, silenciosamente. É
como se tivéssemos estabelecido um espaço de privacidade entre o leitor e o que ele lê. Aliás, ler no ônibus
ou na biblioteca pode ser definido como um espaço abstrato, imaginário, espaço em que o texto encontra os
olhos. A prática de leitura em voz alta tem se mantido apenas em circunstâncias institucionais: lê-se em voz
alta na igreja, nas aulas da universidade para ditar conferências, no tribunal para pronunciar sentenças, na
escola em situação de aprendizagem, entre outras. No entanto, na época moderna, a leitura em voz alta era
muito mais presente dentro da sociedade.
RC Muitas formas regulares de sociabilidade, como o salão e as sociedades literárias, estavam fundadas
sobre uma leitura compartilhada que podia, depois, alimentar a conversação e o intercâmbio. Desta
maneira, há uma leitura em voz alta para os outros, dentro dos meios particularmente alfabetizados, em que
cada um podia ler por sua própria conta, mas que é uma forma de compartilhar o texto e, a partir daí, iniciar
uma conversação, uma reflexão coletiva. E isto podia acontecer também em lugares menos regulares, por
exemplo, como a leitura em voz alta durante uma viagem. Pensava-se, assim, que o texto tinha uma força
maior quando era lido por uma voz que o retirava da inércia. Esta é uma primeira diferença entre a era
moderna e a nossa: a onipresença da leitura em voz alta como forma da sociabilidade. Há uma segunda
diferença que vemos somente hoje em dia, quando se fala de um analfabetismo funcional, quer dizer, de
pessoas que podem ler, mas apenas certos tipos de textos, e que para entender o texto devem ouvi-lo, em
certo sentido, pronunciando-o ao mesmo tempo. E este tipo de capacidade, que é uma capacidade
particular de leitura, certamente era muito mais difundida e caracterizava uma população maior nas
sociedades modernas do que hoje, quando se transformou em um dos critérios do analfabetismo.
RH E como pensar em lugares marcados pela ausência da imprensa, como o Brasil colonial?
RC Não havia imprensa, mas circulavam panfletos, libelos, sermões e pasquins em forma manuscrita. Esses
materiais desempenharam um papel importante em diversos momentos históricos do Brasil antes da
imprensa. Não se deve confundir nunca a circulação da produção escrita com a presença de imprensa numa
determinada situação histórica e geográfica. Evidentemente, ao contrário, quando há oficinas de imprensa, a
circulação ou a produção dos livros pode se transformar, assim como a produção de textos impressos que
não são livros, como os panfletos e os libelos. Todo um mundo de impressos que se relacionam com a
atividade comercial, com a atividade administrativa ou religiosa implicava também um uso mais freqüente da
escrita manuscrita. Afinal, muitos desses textos impressos tinham espaços em branco que esperavam uma
assinatura, um nome de pessoa, uma menção manuscrita. O paradoxo é este: talvez a invenção de
Gutenberg tenha transformado a circulação dos livros, mas transformou ainda mais a cultura manuscrita.
RH Qual seria o foco de interesse de uma história da cultura escrita no Brasil colonial?
RC Se faltava a imprensa, talvez se devesse medir, no Brasil, como era esse papel do escrito dentro dessas
relações comerciais, administrativas e religiosas. Não se deve focar somente na cultura livresca. Talvez se
devesse pensar que muitos textos impressos não são livros, e que muitos textos impressos que não são
livros implicam o uso da escrita manuscrita. Significa pensar que a originalidade de uma situação histórica
em que não existia a imprensa estivesse mais vinculada à ausência de documentos impressos no cotidiano
do que à ausência dos livros. Afinal, como sabemos, havia muitos livros no Brasil, inclusive os que a
Inquisição queria proibir e destruir. Esta seria uma maneira de esboçar o tema dentro da perspectiva de uma
história da cultura escrita, e não somente na dimensão da cultura dos livros impressos.
RC Creio que a História da Vida Privada no Brasil. O projeto francês foi dirigido por Georges Duby e Philippe
Ariès, e depois da morte de Ariès, pediram-me para dirigir um volume intitulado Do Renascimento às Luzes.
Tratava-se, é claro, da vida privada no mundo ocidental europeu. Eu não li todos os volumes da história da
vida privada no Brasil, mas no primeiro tomo, o que me chamou atenção foi, em termos de comparação, que
nos países europeus, o modelo político supõe a existência de uma autoridade estatal que se impõe em um
território mais ou menos estável e mais ou menos controlado. Há um vínculo entre o exercício de poder,
configurações sociais e estruturas psicológicas. Evidentemente, quando se lê o primeiro volume da história
da vida privada no Brasil, fica-se diante um mundo totalmente diferente, pois uma reflexão sobre a dimensão
territorial e a dimensão política brasileiras pode encontrar figuras totalmente diferentes, em que há
imbricações transculturais que criam formas de relação do indivíduo com as diversas definições de privado:
a solidão, a família ou os grupos de sociabilidade. Ainda que utilizando os mesmos conceitos, haverá
sentidos totalmente diferentes em relação à Europa no que diz respeito às estruturas familiares, às formas
de experiência da privacidade, à relação entre a existência cotidiana e as crenças mais profundas, como,
por exemplo, as religiosas.
RH A sua entrada no Collège de France, em 2007, acontece justamente com a criação da cátedra
“Escrita e Cultura na Europa Moderna”. O que significa a criação de uma cátedra como esta?
RC É necessário definir o que é o Collège de France, porque é uma instituição tão rara que não tem
equivalentes fora da França. Foi fundada em 1530 por Francisco I para ditar matérias que não eram
ensinadas na universidade. E as primeiras cátedras foram as de Hebraico, de Grego e de Matemática,
enquanto que a Universidade de Paris ditava a formação do Latim e, como se sabe, a Teologia, a Medicina
e o Direito. E a tradição se manteve, mais ou menos, através da época moderna. Um segundo momento de
importância do Collège de France foi o século XIX, quando o exercício das cátedras era utilizado como uma
forma de oposição ao Segundo Império (1852-1870). Ao longo do século XX, foi uma instituição que
reconheceu para as ciências exatas uma forma de excelência. No caso das Humanidades ou das Ciências
Sociais, se podem encontrar nos corredores do Collège de France fantasmas impressionantes, como
Braudel, Foucault e Bourdieu, entre outros. A cátedra que ocuparei a partir deste ano se refere,
especificamente, ao tema das múltiplas formas do escrito, da cultura escrita – não somente a impressa –
nas sociedades, do século XVI ao século XVIII, e sua importância para as diversas formas culturais. Este
espaço só foi possível, me parece, porque nas últimas décadas foram construídos os saberes necessários
para fundamentar uma cátedra como essa.
RH Como se pode pensar hoje as relações entre a história científica e o grande público?
RC Isto me parece estar relacionado com uma questão essencial, que é a capacidade, hoje em dia, de
representação do passado. A história como disciplina, com seus próprios métodos, critérios de validação e
exigências críticas, tal como se entende pelo menos a partir do século XIX, como uma disciplina que produz
conhecimento o mais adequado possível ao seu objeto, está capacitada para representar o passado, tendo
ao seu lado a literatura. Isto não é uma novidade. Há, ainda, diversas formas de memória, seja a memória
de um grupo, de indivíduos, comunidades, ou a memória mais institucionalizada do Estado, das
comemorações e dos lugares de memória, dos museus, dos monumentos, que consistem também numa
capacidade de representar o passado. E a história como disciplina não é necessariamente a mais poderosa
nesse domínio, pois a força de atração do romance histórico, se for bem escrito ou se for escrito segundo os
padrões que permitam encontrar um público amplo, é maior.
RC De modo geral, as obras de Shakespeare têm mais força que os relatos dos cronistas. Assim acontece
com as formas de representação ficcionais da história, que são os filmes ou as telenovelas. O romance
histórico tem como princípio tornar a história presente – algumas vezes, até o ponto de uma imitação das
técnicas e da prova histórica, como é o caso das biografias imaginárias ou dos romances que são escritos
como se fossem relatos históricos, até mesmo documentados. Há escritores que jogaram com isso, como é
o caso de Borges, que se apropriou das técnicas mais evidentes da prova histórica para produzir uma
ficção.
VERBETES
Segundo Império
Regime monárquico instituído na França por Napoleão III, de 1852 a 1870. Neste período, Paris foi o centro
de grandes exposições que refletiam o desenvolvimento econômico francês e o progresso cultural e
industrial europeu.
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Penso que esse tipo de relato só tem sentido quando podemos relacionar
um detalhe, algo que seria puramente anedótico, com o mundo social ou
acadêmico em que se vive. Pierre Nora lançou a idéia de “ego-história”
numa coletânea de ensaios onde estão reunidas oito autobiografias:
George Duby, Jacques Le Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autores
conhecidos falando sobre sua trajetória pessoal ou relacionando-a com a
escolha de determinado período ou campo histórico. Mas pessoalmente
considero muito difícil evitar o anedótico ou o demasiado pessoal nesse
tipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu próprio
destino social? Acho que é preciso primeiro situar-se dentro do mundo
social e daí fazer um esforço de dissociação da personagem: a
personagem que fala e a personagem sobre a qual se fala, que é o
mesmo indivíduo.
Isto posto, podemos entrar, com uma certa cautela, na resposta à sua
pergunta. Nasci em Lyon e pertenço a um estrato social fora do mundo
dos dominantes, sem tradição no meio acadêmico. Minha trajetória
escolar e universitária foi conseqüência desta origem. Na França, o traço
dominante era a reprodução: o sistema escolar e universitário levava a
que os filhos reproduzissem as mesmas posições sociais dos pais. Pierre
Bordieu e Jean Claude Passeron trataram desse tema em dois livros. O
primeiro, publicado em 1964, chamava-se “Os herdeiros” e o segundo, de
1970, “A reprodução”.
Naturalmente que há espaço para que as pessoas que vêm de outro
horizonte social possam driblar essa tendência. A minha própria trajetória
pertence a esta exceção. Para entendê-la é preciso um certo
conhecimento da realidade social do pós-guerra na França, entre os anos
1950 e 60, quando predominava o sistema de reprodução, mas onde
havia também alguma possibilidade de ascensão para gente de outra
origem social. Acho, no entanto, que quando há este tipo de tensão entre
uma forma dominante de escola e uma individualidade de origem
diferente que consegue furar este sistema sempre se mantém algo dessa
tensão, dessa dificuldade.
Hoggart queria mostrar que havia uma relação muito mais complexa,
ambivalente, entre crer e não crer, aceitar a ficção e, ao mesmo tempo,
ter a consciência de que se trata de um mundo irreal, um mundo de
fábula, de ficção. A oposição entre nós e os outros era um elemento
muito claro no livro de Hoggart, e a maneira como estabelece a relação
entre história pessoal e discussão sociológica me parece muito justa e
adequada.
A mídia também mudou muito. Recordo que nos anos 1960 havia somente
uma rede de televisão que saía do ar às oito e meia da noite e onde se lia
Corneille. Apresentar numa rede pública, com uma programação única
para todos, às oito e meia, um texto clássico, é algo impensável hoje.
Salvo nos canais particulares destinados a um certo público.
Para isto não tenho resposta, mas me parece que há duas posições que
se deve evitar. Uma é a que considera que essa presença da literatura na
realidade cotidiana pertence a um mundo definitivamente desaparecido.
Não me parece um diagnóstico adequado, pois há, na atualidade, um
esforço dentro da escola e fora da escola para preservar a cultura
literária. O que torna difícil identificar esse esforço é que, se antes ele
era evidente e se concentrava em algumas atividades, hoje ele se
diversifica através, por exemplo, dos novos e variados meios de
comunicação.
A outra posição é a dos que pensam que não há nada de proveitoso, útil
ou fundamental nesse novo mundo. Postura que me parece muito
inadequada quando pensamos nas possibilidades educativas criadas pelas
novas tecnologias, nas diversas experiências para a alfabetização, para a
transmissão do saber à distância.
Alguns historiadores decidiram então que não valia à pena lutar contra
algo inevitável e passaram a utilizar-se dos recursos mais persuasivos da
narrativa a serviço de uma demonstração histórica. Adotaram formas de
narrativa que permitiam assegurar, digamos assim, a mise-en-scène da
prova. Historiadores como Carlo Ginzburg utilizam técnicas de narração
que são até mesmo mais cinematográficas do que propriamente
novelescas. Outros entrecruzam diversas histórias de vida.
Por um lado é muito bom pensar que o historiador não deve permanecer
em sua torre de marfim, que assim está fazendo algo útil ao fornecer um
instrumento crítico ao público para pensar seu passado coletivo e seu
mundo contemporâneo. Mas isto se torna perigoso quando a busca pelo
êxito afasta o historiador dos objetos ou critérios próprios da prática
científica.
O importante é estabelecer formas de mediação. Atualmente, junto com
Michèlle Perrot e Jacques Le Goff, ocupo-me de um programa de rádio em
Paris, “Les matins de France culture”, onde discutimos livros que
dificilmente podem encontrar um grande público. Mas, se há a mediação,
o público pode ter idéia do progresso do saber. Isso é um exemplo do que
considero uma forma mediatizada de conhecimento.
Isto está em oposição à idéia de Geertz que parece querer ver todas as
práticas do mundo social como se fossem textos decifráveis. O mais
complicado para o historiador é que essas práticas não-textuais, em
geral, se encontram através de textos. O desafio fundamental para o
historiador é entender a relação entre os textos disponíveis e as práticas
que estes textos proíbem, prescrevem, condenam, representam,
designam, criticam etc. O essencial é pensar a irredutibilidade entre a
lógica da prática e a lógica do discurso que, tal como dizia Bourdieu, não
se podem confundir.
Então qualquer documento que não seja escrito, que não seja
texto, coloca para o historiador esse tipo de problema. Tal é o caso
dos que trabalham com imagens -objeto que não é possível
enfrentar através de métodos ou regras muito esquemáticos, não
lhe parece?
Creio que fazer rir era a idéia de Darnton em “O grande massacre dos
gatos”, ao divulgar o texto sobre aqueles artesãos para os quais era
muito divertido matar gatos. Em todas essas obras verificamos que
estamos diante de uma descontinuidade. Os dispositivos, os temas, as
formas, os gêneros que, em um dado momento, provocam o riso ou o
sorriso são historicamente definidos.
Ao mesmo tempo, se podemos entender porque esse fato fazia rir à gente
do Renascimento é porque há continuidade suficiente para que os outros
aspectos sejam percebidos, entendidos e compreendidos. E o que mais
temos discutido com o pós-modernismo é sobre a necessidade de
reconhecer as descontinuidades históricas sem cair no relativismo que
estabelece que não há relação possível através de uma distância profunda
e que assim é impossível qualquer compreensão do outro.
Lope de Vega, por exemplo, em pleno século 16, se queixava que outros
dramaturgos utilizavam seu nome para vender comédias muito ruins que
ele nunca havia escrito. Para se proteger, ele divulgou uma lista com
todas as suas obras, que eram muitas, cerca de 450, pois ele era muito
prolífico.
Um tema que vem sendo discutido nos EUA é a forma de impedir que o
texto seja transformado, copiado ou impresso. Trata-se de uma questão
complicada porque a única maneira de solucioná-la é fechando os textos.
E isto é um paradoxo, pois a invenção da internet deu-se justamente para
facilitar o acesso aos textos.
Este foi o problema dos e-books, um texto pelo qual se pagava, mas que
não se podia alterar, copiar ou imprimir. Protegia os direitos do editor ou
do autor, mas não fez sucesso porque o que torna essa nova tecnologia
textual tão atraente é justamente a liberdade, a mobilidade. Todas as
invenções que vêm no sentido de constranger essa liberdade são
consideradas violências contra as novas tecnologias.
Uma vez que todos os gêneros de textos, desde os mais íntimos aos mais
públicos, se dão a ler de uma forma quase idêntica sobre o mesmo
aparato, há uma ruptura muito grande na maneira de entrar ou de
conceber ou de manejar o mundo dos textos. Para o melhor ou para o
pior.
Para divulgar esses trabalhos que têm uma força metodológica ou teórica
inspiradora, seria preciso fazer com que editoras norte-americanas
traduzissem obras latino-americanas para o público que não lê em
espanhol. Pode-se perceber nas referências bibliográficas de trabalhos
realizados na Europa e nos EUA que muitas obras latino-americanas não
estão em inglês, salvo trabalhos de autores americanos e ingleses sobre
o Brasil.
Isabel Lustosa
É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de
Janeiro, e autora de "Insultos Impressos – A Guerra dos Jornalistas na
Independência" (Companhia das Letras, 2000).