Você está na página 1de 7

N e l s o n Ro d ri gu e s

OS IDIOTAS
CONFESSOS
Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum
ser tão sem mistério e repito: – tão cristalino. O
sujeito o identificava, a olho nu, no meio de
milhões. E mais: – o primeiro a identificar-se
como tal era o próprio idiota. Não sei se me
entendem.
No passado, o marido era o último a saber.
Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os
conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era
obtusamente cego para o óbvio ululante. Sim, o
traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar
a infiel: – “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo
passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é
o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a
verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia
endereço, hora, dia, etc. etc.
Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota.
Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais
fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de
uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando
rútilas patadas: – “Eu sou um quadrúpede!”.
Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: –
“Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara
beber para essa extroversão triunfal. Era um

1
límpido, translúcido idiota.
E o imbecil como tal se comportava. Nascia
numa família também de imbecis. Nem os avós,
nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores.
E, como todos eram idiotas, ninguém pensava.
Tinha-se como certo que só uma pequena e
seletíssima elite podia pensar. A vida política
estava reservada aos “melhores”. Só os
“melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o
gesto político, o ato político, o pensamento político,
a decisão política, o crime político. Por saber-se
idiota, o sujeito babava na gravata de humildade.
Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado
da própria inépcia e da própria burrice. Não
passava do quarto ano primário. E quando cruzava
com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as
botas como uma cadelinha amestrada. Nunca,
nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além
de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a
desgraçada.
Vejam bem: – o imbecil não se
envergonhava de o ser. Havia plena acomodação
entre ele e sua insignificância. E admitia que só os
“melhores” podem pensar, agir, decidir.

2
Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia.
Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista
aposentada me dizia: – “Eu não tenho o intelectual
muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma
constatação. Santa senhora! Foi talvez a última
idiota confessa do nosso tempo. De repente, os
idiotas descobriram que são em maior número.
Sempre foram em maior número e não percebiam
o óbvio ululante. E mais descobriram: – a
vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”.
Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3
milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota
resolveu testar o poder numérico: – trepou num
caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma
multidão. O orador teve a solidariedade fulminante
dos outros idiotas. A multidão crescia como num
pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma
massa de meio milhão. Se o orador fosse Cristo, ou
Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-
lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um
de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um
pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia
para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia
para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para

3
se ter emprego, salários, atuação, influência,
amantes, carros, jóias etc. etc.
Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam
os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que
tinha, em todos os seus escritos, uma pose
profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E,
de fato, eles explodem por toda parte: – são
professores, sociólogos, poetas, magistrados,
cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência,
as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas
mãos dos patetas. E, então, os valores da vida
começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo
nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias
vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos.
E nem precisamos ampliar muito a nossa
visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A
Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal
hierarquia precisa ser preservada ou a própria
Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em
que um coroinha começar a questionar o papa, ou
Jesus, ou a Virgem Maria, será exatamente o fim.
É o que está acontecendo. Nem se pense que a
“invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse
uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia

4
resmungar: – “Subdesenvolvimento” – e estaria
encerrada a questão. Mas é uma realidade
mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e
paisagem, nada mais parecido com um idiota do
que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns
aqui, outros em Cingapura.
Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja.
Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos
jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É
pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz
católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a
Igreja não foi senão uma lacaia das classes
dominantes, uma lacaia dos privilégios mais
hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo,
a própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria
Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).
Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do
teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma
cultura, um homem de bem e de fé. De mais a
mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de
Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a
Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele
o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e
confiscar-lhe as pratas.

5
Cabe então a pergunta: – “O dr. Alceu pensa
assim?”. Não. Em outra época, foi um dos
“melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas,
conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio
se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou
simplesmente homem de bem. Os idiotas não os
toleram. E as freiras põem short, maiô e posam
para Manchete como se fossem do teatro rebolado.
Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco,
tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e
Jesus fazendo passista de Carlos Machado.
Tem mais: – o papa visitará a América
Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja
agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A
imprensa dá a notícia com a maior naturalidade,
sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação.
São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

[19 de agosto de 1968]

APEDEUTEKA GUINEFORT 2014

Você também pode gostar