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CORPOS MARGINADOS NA ARTE MEDIEVAL

Joana Antunes*
CEAACP - Centro de Estudos em Arqueologia,
Artes e Ciências do Património

RESUMO
As margens da arte medieval, no limite possível da sua elasticidade cronológica e tipológica, têm sido
lidas à luz de uma transgressividade ora espontânea, ora premeditada, que encontra na representação
do corpo humano, da sua aparência, da sua gestualidade, da sua frequente desumanização, o indicador
aparente de uma separação estável entre centro e margem.
Reconhecendo o corpo e a sua representação como recipientes de tensões visualmente codificadas,
procurar-se-á apresentar a marginação enquanto processo que torna intrinsecamente marginal e dota de
alteridade uma imagem sem que ela sofra um radical processo de separação do entorno físico que lhe
confere sentido. Partindo do manuscrito iluminado, suporte cuja natureza mais cedo propiciou uma clara
articulação entre centro e margens, texto e imagem, objectiva-se a reflexão em torno do lugar da margem
na arte medieval para um entendimento da sua polissemia, do seu potencial semântico e simbólico, através
da forma como o homem medieval se representou a si próprio em situação de liminaridade.

Palavras-chave: Corporeidade - Marginação – Transgressão

ABSTRACT
The margins of medieval art, at its extreme of cronological and typological length, have been
perceived as places of transgression. This transgressive nature, whether spontaneous or premeditated, is
frequently reinforced by the depiction of the human body which, in its uncomely gestures and frequent
dehumanization, seems to underline a stable separation between centre and margin.
Accepting the body and its depiction as recipiente of visually codified tensions, I will try to present the
concept of margination as a process that imbues an image with marginality and alterity without forcing its
physical segregation from the space and meaningful context to which it belongs. Departing from the analysis
of illuminated manuscripts - whose nature prompted an early and clear articulation between centre and
margins, text and image - , and the way medieval man depicted himself at liminal situations, this paper aims
at the reflexion on the place of margins in medieval art and the recognition of its polissemy, and its symbolical
and semantic potential.

Keywords: Corporeity – Margination - Transgression

*joana.filipa.antunes@gmail.com

87 digitAR, nº2, 2015, pp. 87-121


Joana Antunes

Ao abordar a marginação do corpo operativa, de trilhar os caminhos de uma


humano na arte medieval, a opção arte medieval geográfica, cronológica
por uma amostragem heterogénea, e tipologicamente orientada mas
esparsa no tempo e no espaço, assume não delimitada. Uma arte medieval
o risco deliberado de uma aproximação concretizada, maioritária mas não
generalista e, eventualmente, exclusivamente, no suporte do códice
desarticuladamente fragmentária. Em iluminado; disseminada, tendencial mas
movimento amplamente transgressivo – e não univocamente, pelos circuitos artísticos
com a fluidez que a noção de transgressio e culturais ingleses, franceses e flamengos;
transporta consigo no universo conceptual e desenvolvida, genérica mas não
medieval1 –, optaremos, apesar de absolutamente, ao longo dos séculos XII a
todos os risco, por volatilizar a segurança XV.
ontológica oferecida por um núcleo
iconográfico coeso, coerentemente datado
e contextualizado, em favor de uma leitura I. O CORPO COMO ESPELHO DE
transversal e, na medida do possível, MARGINAÇÃO
atemporal, ainda que inevitavelmente O empenhado interesse com que os
dentro da temporalidade historiográfica estudos medievais têm abordado a
de uma medievalidade datada. Longe margem, o marginal e o fenómeno da
da pretensão ao alcance atmosférico liminaridade na cultura medieval, apesar de
de um zeitgeist medieval, o objectivo é sistemático desde, pelo menos, a década
tão-somente responder à condição algo de 60 do século XX,3 não implicou ainda
metamórfica do próprio objecto de estudo: uma reflexão aturada sobre a terminologia
o corpo marginado, entidade ampla que que os vários investigadores que vão
transporta consigo pressupostos bem mais passando pela margem acabam por
complexos do que a simples pertença física utilizar, ora em uníssono, ora sem qualquer
ao espaço da margem, nomeadamente solução de consonância. A recusa,
uma fisicalidade que transparece fractura e claramente pós-moderna – e, em grande
alteridade, repulsa e exclusão, autocrítica e medida, saudável –, de uma normalização
exorcismo, mas também (inevitavelmente) previsivelmente asfixiante e porventura
fascínio e comprazimento.2 inibidora de contributos de maior cunho
idiossincrático, é tão mais evidente quanto
Se a margem é o espaço de todas as a aparente geração espontânea de um
possibilidades, a marginação implica o termo tão corrente (e de utilização tão
transporte dessas mesmas possibilidades intuitiva) quanto “marginalia”. Útil pela sua
para aquém da margem, para a elasticidade, que oferece ao investigador a
proximidade imediata com o centro fluidez necessária ao estudo de um universo
emanador de ordem e exemplaridade: o multímodo e imprevisível, esta descontração
corpo marginado transporta a margem formal não deixa de apresentar as suas
para o centro. Decidir como abordar a desvantagens, à medida que os vários
prolixidade da marginação do corpo estudos das margens da arte medieval
humano é, portanto, uma tarefa árdua se vão amontoando, em jeito de edifício
que frequentemente conduz à redução babélico, sem escadas que permitam uma
da análise a um caso de estudo ou, comunicação eficiente.
inversamente, à recolha de amostras
dispersas por entre os vários domínios Das múltiplas possibilidades que os
e cronologias da arte medieval. Sendo vocábulos latinos margo (gen. marginis) e
que nenhuma das hipóteses responde limes (gen. limitis) nos deixaram em aberto,
por completo à amplitude do fenómeno a historiografia artística (de língua românica,
e que ambas oferecem vantagens anglo-saxónica ou até germânica) tem
específicas ao investigador, aquela que recorrido a todas para transmitir, de acordo
nos propomos seguir nas próximas páginas com a força expressiva da respectiva língua
é, precisamente, a que nos oferece matriz, a variabilidade de soluções formais,
a possibilidade, circunstancialmente temáticas e interpretativas oferecidas pelas

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margens dos manuscritos, dos edifícios, do do carrasco, iconograficamente formulado


objecto artístico medieval em sentido lato. para causar antipatia e repulsa, - e exemplo
Neste sentido, marginação e marginado ao qual regressaremos ao longo deste
são apenas mais duas possibilidades que, estudo – movimenta-se de forma excessiva
recentemente, têm marcado presença no e violenta, cobre-se de roupas rasgadas,
discurso científico em torno da margem. listadas ou demasiado garridas6 e, muitas
vezes, vê a sua negatividade reforçada
De forma eloquentemente simples, por um tom de pele incomum (cinzento ou
Fernando Gutiérrez Baños assume: “El azul, por exemplo), pelo aspecto hirsuto
concepto de marginado varía según dos cabelos ou pela ausência deles, e
quién se ocupe del tema y es, además, ainda pelo rosto – frequentemente dotado
dinámico”.4 E é, de facto, à historiografia de feições exageradas, como um nariz
artística espanhola que devemos a demasiado adunco ou demasiado largo
introdução dos conceitos de marginado – contorcido em esgares de raiva ou de
e marginação nos domínios do estudo da prazer sádico.7
arte medieval e, muito particularmente,
das suas margens, com um inferido sentido As conotações valorativas e as associações
sociológico de exclusão, inferioridade simbólicas do carrasco e da Virgem são,
e afastamento5 que o léxico português de forma evidente e, independentemente
frequentemente confina aos termos da sua situação no espaço físico do fólio,
marginal, marginalizado e marginalização. respectivamente negativas e positivas, e
A variabilidade e o dinamismo apontados nem a presença da Virgem na margem a
por Gutiérrez Baños são, no entanto, negativiza, nem o transporte do carrasco
vertidos num relativo desconforto aquando para o interior de uma inicial ou de uma
da articulação do marginado e da miniatura neutraliza a sua alteridade, ou
marginação com o espaço, concreto anula a intencionalidade da sua exclusão,
ou simbólico, da margem do objecto ou ainda a marginalidade (semântica
artístico, momento em que grande parte e valorativa) que lhe é intrínseca.8
dos autores aplica estes termos de forma Não sendo já marginal, porque não
descomprometida e algo aleatória. Sem vinculado à margem do fólio, o carrasco
olharmos, por ora, para outras opções denuncia, através do seu aspecto, da sua
historiográficas que não as ibéricas – numa gestualidade, da sua expressividade, um
exclusividade sancionada pelo empréstimo claro processo de marginação: por ser
do termo marginado no contexto do o perpetrador de um castigo injusto, por
presente trabalho – façamos do corpo ser um instrumento de violência extrema,
humano, ou da sua representação, objecto por infligir sofrimento, por ser a antítese do
de um exercício simples. mártir e, no fundo, por ser um dispositivo
indispensável à activação da piedade
Consideremos a representação dos do observador. Por tudo isto, o carrasco é
carrascos de Cristo ou dos santos mártires marginado porque tem (em si) a margem,
na margem de um fólio decorado e, transportando-a consigo, enquanto
alternativamente, no interior moldurado estigma, para onde quer que se desloque.9
de uma miniatura. E coloquemos depois
a imagem da Virgem Maria, por exemplo, Partindo, assim, do potencial significativo do
em idêntica situação: uma vez na margem, termo marginado em ambos os contextos
ambos são, do ponto de vista codicológico lexicais (espanhol e português)10, podemos
e meramente descritivo, figuras marginais. assumi-lo, no contexto específico da
No entanto, a leitura imediata da sua representação do corpo na arte medieval,
corporeidade, dos seus gestos, das suas como aquele que simultaneamente
expressões faciais, do seu vestuário e dos está à margem, porque excluído, e
objectos (simbólicos ou não) que lhes estão transporta consigo a própria margem.
associados, revela a fractura imediata Esta lógica de transporte, que não
que entre os dois se estabelecerá no deve ser lida literalmente, não implica a
momento da sua interpretação. O corpo precedência da margem sobre o centro na

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apresentação da imagem do marginado mediada pela visão do outro (grandemente


– que nos conduziria, na linha do exemplo veiculada pela arte), pela observação
evocado, ao raciocínio ilógico de que as do outro (estabelecida a nível quotidiano
representações de carrascos começaram e ocasionalmente vertida, também, em
a acontecer na margem para só depois suporte artístico). A alternativa a este
passarem às iniciais historiadas e às jogo de alteridade é o potencial reflexivo
miniaturas. O transporte da margem para o do espelho, do qual o homem medieval
centro a que nos referimos implica, apenas não deixará de tirar partido, enquanto
(e não sem constituir matéria de discussão), instrumento de visão, enquanto dispositivo
que a ocorrência do corpo marginado literário,12 enquanto metáfora e símbolo
na margem é exponencialmente maior de enorme poder visual. Alicercado
do que a sua presença nos espaços de na veiculação de comportamentos
representação centrais e oficiais. Esta exemplares, os specula de conteúdo
aparente recorrência não deve passar moral13 forneciam os bons exemplos que a
sem uma reflexão, por breve que seja, vida do leitor deveria reflectir, mas também
sobre a projecção de determinados os maus exemplos que ele devia evitar.
comportamentos e características Mas, aquilo que promete ser um reflexo
corporais em contextos expositivos como imediato, por exemplo, do bom príncipe,
a margem e o centro, e a noção que o nunca o é verdadeiramente, uma vez que
homem medieval foi tendo da sua própria os modelos de perfeição nele aprisionados
corporalidade. Esta noção, profundamente são sempre ideais e pressupõem uma
marcada pelo exercício de alteridade – ou conquista progressiva: o speculum não
de auto-reconhecimento (visual) através espelha um leitor perfeito, espelha a
da observação do outro – exigido pela perfeição que o leitor deve alcançar.
impossibilidade de confronto imediato com Aparentemente óbvia, a relação entre o
a imagem de si próprio, seria resultado speculum e o seu leitor é, na verdade a
de um complexo jogo simultaneamente de um complexo compromisso e de um
projectivo e reflexivo: “the act of looking constante mise en abyme. O indivíduo não
at one’s own reflection triggers a chain of se vê reflectido na obra, mas vê na obra
mental events that heighten consciousness o reflexo de si próprio num tempo ideal e
of relations between body, self, and other, futuro; ou seja, o speculum é um objecto (a
and the profound strangeness of the self to metáfora de um objecto) que não reflecte
the self”.11 mas emite uma imagem14 que permite
ao leitor/contemplador perspectivar
Sem mecanismos de captação e projecção assim o momento em que as emissões se
de imagem vagamente semelhantes transformarão, finalmente, em reflexos e
à fotografia ou ao vídeo, a visão que o que, ao olhar para a obra, o leitor se veja
homem medieval tinha de si próprio não nela espelhado.
podia ser senão maioritariamente mediada:

Fig.1 - Breviário (Breviary of Queen Isabella of Castille), c. 1497, Bruges,


British Library, Add MS 18851, fls. 270r, 477v.

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Mas, mesmo em frente ao espelho, ele medieval espelhou-se multiplamente: no


(re)conhece-se melhor através do outro selvagem que, incapaz de controlar as
e talvez não seja exagerado supor que pulsões sexuais, rapta (com o acto de
a recorrência do speculum na cultura violação implícito) mulheres indefesas
medieval foi mais literária e metafórica ou que, pelo contrário, se deixa domar,
do que real e quotidiana, ainda que, em domesticar e humilhar por elas na
ambos os casos, essencialmente elitista. De perspectiva da almejada gratificação
resto, o espelho não é um dispositivo neutro física; e no cavaleiro que mata o selvagem,
e isento de implicações morais e metafísicas aniquilando assim a sua natureza mais
e se, tanto a arte como a literatura, primitiva, impulsiva, irracional e sempre
sublinham a sua utilidade enquanto excessiva.18 Marginado pela ausência dos
superfície de reflexão, introspecção e habituais caracteres de domesticação
exemplo, não deixam de ressaltar também do corpo – vestuário, higiene, cultivo de
os artifícios de ilusão e inversão da realidade um corpo alvo e glabro19 – o homem
que o espelho implica. Frequentemente selvagem, hirsuto e desgrenhado, impulsivo
vertida nas margens, povoadas de sereias e irracional, move-se com relativa facilidade
que têm no pequeno espelho circular um entre os domínios do inóspito e do
atributo fundamental – com sucedâneos habitável, do intratável e do domesticável,
tão interessantes quanto o macaco que aproximando-se progressivamente do
mimetiza o comportamento humano mundo urbano e dos espaços centrais
auscultando a sua imagem espelhada, da arte nele produzida, até alcançar o
ou ainda a bela jovem melusínica que lugar do anjo e do santo,20 demonstrando
observa o reflexo do seu rosto, indiferente de forma exemplar que é precisamente
à repugnância reptilínea do seu corpo na relação dinâmica entre o centro e a
tomado pela vaidade15 – esta conotação margem, que o corpo actua como espelho
perigosa do espelho não deixa de trazer eficaz da irreverência desta (e da sua
associada a necessidade de espelhar no própria irreverência) face ao nosso olhar
outro aquilo que se não quer ver em si. (sempre) tendencialmente classificador.

Fig.2 - Livro de Horas (The Taymouth Hours), c. 1325-1350, British Library,


Yates Thompson 13, fls. 62-63.

Este mecanismo de projecção exorcizante II. MARGINAR A TRANSGRESSÃO


tem na figura do homem selvagem um dos Não é a ordem instituída pela Igreja ou
seus melhores exemplos.16 Simultaneamente pelo poder temporal que a marginalia, o
marginal e marginado, o “salvage bruto”17 marginal e o marginado desafiam. Nem tão
que foi também um topos literário, assumiu pouco a transgressão que a historiografia
frequentemente os comportamentos contemporânea insiste em atribuir-lhes
menos confessáveis do homem civilizado. como objectivo e produto (tanto em
Nas margens de manuscritos, nas faces de potência como em intenção) assumiu esse
pequenos cofres decorados e em tantas valor sistemático no tempo histórico da
outras peças de uso privado, o homem Idade Média. Fruto do fosso epistemológico

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que nos separa, a transgressão acontece Uma das imagens de transgressão mais
quando uma imagem (visual, literária ou significativas para o mundo medieval é,
mental) transpõe os limites estabelecidos precisamente, a que implica a perda da
pelo (neo)medievalismo para o próprio beatitude genesíaca e o exílio para lá
pensamento medieval. dos limites do Jardim do Éden. A confissão
de Adão a Dante, já evocada por outros
Sem a pretensão, a vários títulos inoperativa, autores no início de outras reflexões sobre
de inviabilizar o potencial transgressivo a relação entre o centro, a margem e as
das imagens medievais ou invalidar os fronteiras estabelecidas pelas e para as
contributos historiográficos que em torno imagens medievais,22 resume de forma
dele se foram (e se vão) construindo,21 precisa a condição do marginado: Or,
não podemos, contudo, deixar de figliuol mio, non il gustar del legno fu per sé
defender uma posição de demarcação la cagion di tanto essilio, ma solamente il
da visão essencialista de uma Idade Média trapassar del segno.23
paradoxal, em que qualquer imagem de
interpretação ou catalogação menos O trespasse, a transposição, a transgressão,
confortável se assuma, antes de mais, o atropelamento de um marco, de um
como transgressiva. A transgressão existe, é sinal ordenador, são, todos eles, processos
claro, no seio da cultura medieval e serve frequentemente envolvidos na marginação
de tema e fundamento a muitas das suas do corpo na arte medieval, e Adão e
imagens – negá-lo seria ingénuo. É, no Eva, habitantes primeiros e últimos de
entanto, necessário ter noção da distância um mundo genesíaco, são, na verdade,
que separa imagens de transgressão de os primeiros protagonistas (estritamente
imagens transgressivas e, sobretudo, do humanos) de uma longa história de corpos
caminho que é necessário percorrer para marginados. Eles que, por transporem o
afirmar a intenção claramente transgressiva “signo” último da obediência incondicional,
de uma imagem. Se as segundas são raras perdem a dignidade da nudez inocente
e devem ser avaliadas com particular e a imunidade do modo de vida edénico,
atenção, as primeiras são bastante são simultaneamente marginalizados e
mais frequentes e estabelecem com a marginados, perdendo o contacto com
marginação do corpo uma relação de o espaço da beatitude, da ordem e da
estreita dependência. harmonia eterna – que será doravante o
centro utópico que, cada homem por si,

Fig.3 - Bíblia moralizada, c. 1455-1460 Koninklijke Bibliotheek, KB, 76 E 7, fl.


1 ; George Chastellain, Miroir de mort, 1470, Bibliothèque municipale de
Carpentras, ms. 410, fl. 9.

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e a Cristandade em conjunto esperam O segundo exemplo, mais interessante do


conseguir recuperar – e carregando sobre ponto de vista da concepção de efeitos
o seu corpo os sinais desse afastamento da visuais verdadeiramente impressivos,
ordem e da virtude, através do vestuário, mostra diferentes níveis de demonização
do trabalho, da dor e da morte,24 que nas figuras que se precipitam em direcção
deixarão, para sempre, nos corpos dos ao solo, sendo a mais expressiva a figura
seus descendentes a marca ígnea de um central que é fixada no momento em que o
desacordo entre as necessidades do corpo seu rosto, ainda humano e belo, começa a
e as exigências da alma. acusar a transformação pelo aparecimento
de uma orelha canina, uma asa de ave
Sem se conformar verdadeiramente com convive com uma de morcego e o corpo
a perda do Paraíso, o mundo medieval, vestido dá lugar à nudez grotesca e pilosa
consciente de ser a sua versão corrompida típica dos seres demoníacos. Ao perderem
e degradada25 vai criar para si uma série a sua humanidade, adquirindo o aspecto
de mecanismos de restabelecimento da abjecto de um ser que é corporalmente
ordem, da harmonia e da estabilidade indefinido e múltiplo, aglomerando formas
interrompidos pelo Pecado Original, essa humanas e animais, os demónios desta
transgressão que ecoa, também, uma outra horda de transgressores abrem, de facto,
transposição de limites: a de Lucifer e dos um precedente que os primeiros homens
anjos rebeldes que inauguram, de forma vão repetir e todos os homens depois deles.
definitiva e extrema, a marginação do
corpo humano.26 Se a consequência da primeira transgressão
humana se concretiza num movimento
Processo metamórfico verticalmente centrífugo, numa expulsão do centro e
negativizado, a queda destes anjos é muitas numa remissão para a margem, onde
vezes alvo de representação pictórica ao corpo será ciclicamente infligida a
destacada no espaço da miniatura que, dor, o cansaço e a morte, já a primeira
centrada e moldurada, direcciona o transgressão angélica se consubstancia
olhar imediato do observador para uma num movimento descendente e na perda
cena de movimento vertiginoso, em que da perfeição corporal (humana) dos seres
o céu se enche de criaturas que vão angelicais. Do centro para a margem e do
perdendo o aspecto humanizado do anjo alto para o baixo: assim se estabelecem,
à medida que se dirigem ao solo, poluto aparentemente, as coordenadas da
e ardente. Dois exemplos particularmente marginação do corpo na arte medieval.
eloquentes deste “tragique destin vertical”27
encontram-se numa Bíblia moralizada
de Bruges (c. 1455-1460) e no Espelho da III. MODELO E ANTI-MODELO
Morte de George Chastellain (1470).28 Na Para um entendimento amplo das leituras
primeira, a demonização e marginação possíveis destas mesmas coordenadas, a
física dos anjos rebeldes é denunciada pela convocação dos conceitos de “modelo
perda do referente imediato do vestuário: e anti-modelo”, propositadamente
os (agora) demónios que se encontram decalcados de Image on the Edge,29
mais perto do céu são já criaturas negras, pretende apelar a um entendimento não
de rosto grotesco, orelhas pontiagudas e unívoco das dinâmicas opositivas em que
chifres, com garras em vez de pés e mãos e supostamente se articula a cultura e o
asas membranosas em vez de plumáceas, pensamento medievais. Partindo, mais uma
mas mantêm ainda as vestes brancas vez, do jogo de espelhos que se estabelece
da sua condição angélica. Os que se entre o modelo, oficial o ideal – jogo este
encontram mais próximos do solo, por outro implícito nas propostas de autores como
lado, assumem um aspecto plenamente Maria Corti e o próprio Michael Camille30
demonizado ao verem associada à nudez, –, pretendemos apontar as múltiplas
um hibridismo reforçado pela adição de possibilidades de leitura de um modelo que
características animais, seios femininos e não só gera um seu oposto, como se define
rostos desdobrados na região abdominal. e reitera através dele, e de um anti-modelo

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que não só se opõe como permite, por sim a sua secundarização (ou pura e simples
reflexo, a definição do modelo, assumindo negação) no processo de identificação
um insuspeito protagonismo em todo o com o observador. No exemplar
processo. confronto entre a Humildade e a Soberba,
personificadas numa miniatura do Speculum
Na verdade, tal como o inferior depende virginum atribuído a Conrad von Hirsau (c.
do superior e a margem depende 1025-1075),36 a marginação da segunda
do centro,31 pressupondo-se ambos constrói-se por antítese à primeira:37 o
mutuamente, também o corpo marginado desequilíbrio, a agitação, a exasperação
depende de um outro corpo que, no patentes na expressão facial, o desalinho
extremo oposto de uma escala valorativa, dos cabelos, a gesticulação exagerada
lhe sirva de referente funcional. Sem grande são o oposto da virtude encarnada pela
hesitação, poderíamos assumir que este figura vitoriosa, que é estável e segura, e
corpo ideal, automaticamente instituído que se movimenta com precisão e sem
como modelo e positivamente ancorado excessos, mantendo a expressão serena
no centro (e no alto) da representação e a compostura. Os mesmos formulários,
medieval é, de facto, o corpo sagrado, vertidos na marginação de figuras de
santo e virtuoso, por excelência. É o corpo uma gestualidade colérica, violenta e
aptum,32 que obedece à tríade estética arrebatada, de uma expressividade facial
de São Tomás de Aquino33 e ao conceito grotesca, com o efeito impressivo da boca
ciceroniano de decorum, devidamente escancarada, da língua estirada e dos
adaptado ao contexto (também olhos rigidamente abertos frequentemente
estético) do mundo medieval.34 É o corpo reforçado pelos cabelos hirsutos ou
proporcional e recto, sereno e regrado flamígeros, servem de contraponto a
na sua gestualidade, comedido na sua figuras de uma corporalidade virtuosa,
expressividade facial, agradável na sua serena, contida e harmónica em suportes
aparência e compleição, saudável e sem escultóricos como capitéis e relevos
mácula.35 Mesmo em situações de maior de fachada. Referências imediatas, as
sobressalto, este corpo ideal mantém as personificações dos Vícios e das Virtudes –
suas características de harmonia serena, ao em oposição directa, como, por exemplo,
invés do corpo que, na intenção clara de na catedral de Amiens, ou em versões
incorporar e transmitir determinada carga pontuais e seleccionadas, como em Saint
negativa, sofre um processo de marginação Pierre de Moissac38 – estabelecem modelos
que, apesar de tudo, não implica uma essenciais deste corpo perfeito, vencedor
importância menor na dinâmica visual e inquestionável de uma Psychomachia
simbólica estabelecida pela imagem, mas subliminarmente omnipresente na arte

Fig.4 - Conrad von Hirsau (atr.), Speculum virginum, Alemanha, 2º ou 3º


quartel do século XI, British Library, Arundel 44, fl. 34v; Avareza e Luxúria,
portal sul da igreja de Saint Pierre de Moissac, c. 1120-1125.

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Fig.5 - Diagrama dos Quatro Ventos, Áustria, c. 1300, Dr. Jörn Günther
Rare Books, Hamburgo; Rotschild Canticles (séc. XIV, Flandres ou Renânia,
Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Yale University, Beinecke MS.
404, fl. 64r; Breviari d’Amor catalão (Catalunha, c. 1375-1400, British Library,
Yates Thompson 31, fl. 40v.

figurativa medieval.39 projecção visual de ideias tão totalizantes


quanto o sagrado,42 o tempo,43 a história da
Um corpo assim equivale – porque é dela humanidade no percurso para a salvação,44
um reflexo – a uma alma sem pecado a natureza.45
nem defeito e merece, portanto, o
protagonismo do espaço central, espaço Outras imagens há que reflectem
de convergência, de harmonia, de início. claramente a relação dinâmica entre o
“Primeiro, encontro o ponto central”, assim corpo humano, o centro e a margem, o
se inicia a reportatio da Arca Mística de alto e o baixo, deixando transparecer a
Hugo de São Victor,40 na sugestão de um sua (des)valorização de acordo com a
gesto criativo simultaneamente simbólico, proximidade de uns ou de outros. Num
estético e matemático, que faz do centro livro de horas inglês (c. 1325-1350),46 a
o espaço do corpo perfeito, em situação lógica centrífuga e descensional da
de perfeito decorum. Particularmente Queda dos Anjos Rebeldes – desta feita,
evidente quando vertida na articulação cronologicamente anterior aos exemplos
orgânica entre o corpo humano e o círculo, supracitados, mas iconograficamente
forma centralizada por excelência e mais densa – é essencializada de forma
epítome de perfeição e de infinitude, esta visualmente eficaz: o centro do fólio
espacialização valorativa do corpo perfeito é ocupado por uma representação
foi instrumental na projecção gráfica dos concêntrica do universo, com a terra
mecanismos de apreensão do mundo convenientemente colocada em posição
que também a Idade Média (e toda ela) central relativamente às restantes esferas
procurou fazer, através dos seus schemata celestes; acima desta, a corte angelical
pedagógicos, de forma racionalizada, desfila, harmoniosamente distribuída por
geometrizada e, afinal, inevitavelmente um espaço arquitectónico – elemento
antropocêntrica. Inscritas numa lógica claramente ordenador – que se abre
central-ascencional, são múltiplas as em galeria e apresenta, ao centro, Deus
imagens e os contextos em que o corpo como radiância excêntrica, ou emanação
humano, assumido microcosmos,41 serve suprema de luz; no nível inferior, o Inferno e
de enquadramento, suporte e medida à os seus habituais protagonistas espremem-se

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num espaço exíguo e caótico, recebendo alcançamos a manifestação, porventura


as criaturas grotescas – anjos caídos, mais extrema, da marginação do corpo
mais uma vez – que se precipitam do humano por via do hibridismo grotesco
alto, atravessando desamparadamente dos demónios – exponencialmente
o perfeito sistema das esferas celestes. reforçado pelo facto de provir da perda
Neste nível inferior, tudo é negativo e nem de um estado de perfeição original.
a inclusão de referências arquitectónicas, Ainda que este não seja o momento de
excepcional na representação de cenários reconstituir a diacronia dos mecanismos
infernais, pode ser lida com outro sentido dessa marginação, não podemos deixar
que não o de uma solução de espelho de evocar a interessantíssima – porque
negativo dos muros da Jerusalém Celeste, subtil – estratégia de marginação posta em
sublinhando o confinamento de uma prática pelo pintor da Vida de Guthlac,
cerca muralhada, cidadela imensa e uma narrativa desenvolvida em dezoito
inexpugnável onde o próprio demónio cenas, inscritas em molduras circulares, ao
jaz, imóvel e esmagado sob o peso do longo de um rolo de cerca de três metros
mundo perfeitamente ordenado pela de pergaminho.48 Na cena 6, Guthlac é
lei divina. Os valores da corporeidade atacado por uma horda de demónios
são, nesta imagem, muito explícitos: no que, com a ajuda de um látego que lhe é
alto estão os corpos perfeitos de seres oferecido por São Bartolomeu na cena 7,
supra-humanos, ordenados, serenos e acaba por conseguir dominar e expulsar
monocromaticamente luminosos; em baixo do espaço sagrado da capela, na cena
estão os corpos grotescos, bestializados e seguinte. Nesta oitava moldura circular, os
hibridizados de seres cuja sub-humanidade demónios alados, grotescos e altamente
se epitomiza na figura de Satanás, o hibridizados dos episódios anteriores
primeiro a perder a perfeição corporal passam a ser nada mais do que estranhos
da sua condição de anjo e o único a animais cuja demonização e consequente
demonstrar uma hiper-negativização pelo marginação se estabelecem a um nível
excesso (contra-natura) de caracteres mais subtil. Numa hibridação sugerida
humanos.47 pelo bipedismo, o animal (con)funde-se
com o humano a partir do momento em
Partindo, assim, do protagonismo que assume uma posição que lhe não é
marginante do híbrido, rapidamente natural. Ainda que o sentido de domínio e

Fig.6 - Livro de Horas (‘Neville of Hornby Hours’), Inglaterra, 2º quartel do


século XIV, British Library, Egerton 2781, fl. 1v; Vida de Guthlac (‘Guthlac
Roll’), Inglaterra, último quartel do século XII ou 1º quartel do século XIII,
British Library, Harley Roll Y.6.

96
Joana Antunes

domesticação implícito nesta cena possa irresistível na usurpação da centralidade


explicar o recurso a uma menor hibridação do seu correspondente, sempre mais
na composição destes demónios – ao definido e sempre mais previsível, o anti-
ponto de os identificarmos claramente com modelo materializado no marginado leva
animais familiares como o macaco, o cão, ainda mais longe a estranheza do seu
o burro, o boi ou a águia – o autor destas protagonismo, vilanizando-o pela subversão
imagens não foi indiferente ao potencial e/ou inversão (mais do que ausência) dos
de desconforto da mistura subtil de duas valores do modelo. Convulsa a sua relação,
naturezas aparentemente incompatíveis. a distância entre centro e margem não
A partir daí, e sobretudo por via da pode já ser percorrida em linha recta.
estranheza, torna-se fácil transformar o que
até aqui seria um animal relativamente
comum numa figura negativa, repulsiva, IV. A MARGEM E OS SEUS LUGARES COMUNS
desconcertante, cujo lugar na própria Dentro dos limites fundamentais da
composição circular é marginal: nos ordem divina, mas sempre na iminência
interstícios que ficam para lá do espaço da da sua transposição, inaugura-se então
capela de Guthlac, ocupante natural do a separação definitiva entre o bem e o
espaço central da moldura. mal, o bom e o mau, a virtude e o vício,
a salvação e a perdição, que a Idade
Embora devamos evitar sucumbir à facílima Média irá verter em oposições como belo
tentação de essencializar o comportamento e feio, proporcional e disforme, centro e
e o pensamento medievais, polarizando margem. Anjos e demónios, em eterna
aquilo de que se gostou e aquilo que se disputa, reclamarão para si a alma do
abominou durante os longos séculos de homem medieval. E este, para alcançar a
uma Idade Média múltipla e diferenciada, salvação da alma e do corpo (que dela se
talvez não estejamos longe de uma não separa verdadeiramente),53 guardará
generalização válida e assertiva, se os melhores espaços dos seus edifícios,
dissermos que a importância da tríade de dos seus livros, do seu mobiliário e dos seus
São Tomás evidencia a desconfiança e o objectos para representar o bem, lançando
desconforto provocados pelo seu oposto: nas margens as tentações do mal e os seus
o que é híbrido, confuso e misturado, o exemplos mais consequentes.
que é desproporcional e agitado e, por
consequência, o que foge à apreensão, Luxúria, obscenidade e todo o tipo de
compreensão e racionalização por parte pulsões sexuais. Gula, embriaguês e
do observador.49 A Idade Média não hesitou desbragamento. Jogo, fraude e violência.
em tirar partido do potencial reactivo da Pecado elevado a todos os seus possíveis
imagem híbrida para criar os seus anti- expoentes. São estes os temas que, em
modelos e se, na Psychomachia, Prudêncio jeito de exorcismo e de catarse, o homem
esboça o combate entre Virtudes e Vícios medieval (teórico, artista, comitente) verte
em moldes de completa humanidade, já nas margens das obras que dedica a Deus
o Liber Vitae Meritorum de Hildegard von e coloca sob a sua protecção e sob o seu
Bingen (inspirado na obra de Prudêncio poder. A margem é, assim, um espaço de
e escrito entre 1150-1163), faz dos Vícios purga e, simultaneamente, um espaço de
figuras abjectas e híbridas, mistura de exemplar moralização, pois é necessário
partes humanas e animais, incapazes de representar o pecado para explicar os seus
comunicar num registo que não seja o da perigos. Por tudo isto – e também pela sua
linguagem rude e vulgar.50 Apesar de tudo, dependência em relação a um centro
nesta como em tantas outras obras literárias ordenador e dominador que lhe confere
e visuais, a definição do modelo acontece um carácter estanque54 – a margem
pela sua resposta ao anti-modelo, arvorado é um espaço de figuração, fixação e
em verdadeiro protagonista e alvo único neutralização de tudo o que é negativo. Por
de uma cuidada construção iconográfica.51 consequência, o corpo que aí se representa
Antecipando, em certa medida, o poder é um corpo pantagruélico e quase sempre
paradoxalmente sedutor de um anti-herói,52 negativizado: marginal e marginalizado.

97
Joana Antunes

Fig.7 - Saltério (Ormesby Psalter), East-Anglia, c. 1300, Bodleian Library, MS


Douce366, fl. 131.

aquela com que nos presenteia o hiper-


É esta, de alguma forma, a visão citado Saltério de Ormesby (c. 1300)55: num
que perpassa muito do que se diz e fólio de cercadura plena, a inicial “D” que
escreve acerca da margem na arte e inicia o salmo “Domine exaudi orationem
no pensamento medieval. E é esta a meam” serve de palco a uma cena de
concepção geral do comportamento do particular intensidade mística, onde David
corpo na margem. São estes, em suma, é representado em adoração a Cristo,
os equívocos fundamentais que a análise cuja aparição permite o estabelecimento
do fenómeno da marginação do corpo de um discurso directo, denunciado pelo
humano na arte medieval pode ajudar filactério onde se inscrevem, precisamente,
a clarificar, começando, desde logo, por as primeiras palavras da oração. Na
relembrar a uma pós-modernidade pouco margem, e em discurso paralelo, encena-
disposta a abdicar do flirt com a margem se todo um jogo semântico em torno da
e com o seu potencial transgressivo, luxúria, da tensão sexual e dos instintos
que a margem, enquanto entidade ou terrenos, codificado, no bas-de-page,
espaço autónomo, não existe. E que um através da figura híbrida cuja cabeça toma
dos pressupostos para a sua existência é o o lugar do sexo, do casal envolvido numa
contacto, fluido e contínuo, com o centro. metafórica caça do falcão ao esquilo e
da articulação entre a sugestão fálica da
Concordando em discordar, autores espada embainhada e o anel, do gato
como Gil Bartholeyns, Pierre-Olivier Dittmar que persegue o rato semi-oculto na sua
e Vincent Jolivet, cujo estudo sobre a toca, e ainda das duas figuras híbridas que,
transgressão na arte medieval temos vindo já na margem de cabeceira, sancionam
a citar, propõem que a viabilidade da negativamente o comportamento do casal.
relação tão explicitamente tensa entre
centro e margem se justifica pela sua Composições como esta permitem-nos,
radical separação formal. De acordo com portanto, suportar o pressuposto de que a
esta formulação, a organização do espaço criação de planos paralelos isola os vários
da figuração na arte medieval – sempre níveis hierárquicos da obra, neutralizando
mais claramente exemplificado pelo fólio assim a carga negativa associada à figura
iluminado – obedece a um sentido de clara marginal e marginada: e isto tanto para
divisão entre margem e centro, sagrado o fólio iluminado, como para o cadeiral,
e profano. Na verdade, esta divisão é tão cujas misericórdias se sujeitam à censura
claramente definida que explica e justifica a colectiva e à humilhação do apoio do
convivência de imagens tão absolutamente corpo dos seus ocupantes, como ainda
díspares (no conteúdo e na forma) quanto para o edifício, onde o capitel, o modilhão

98
Joana Antunes

Fig.8 - Saltério e Livro de Horas (Howard Psalter and Hours), Inglaterra, c.


1310-1320, British Library, Arundel 83, fl. 47.

ou a gárgula aprisionam as formas corporais ergue o seu rosto e uma das suas mãos
mais perigosas. Sagrado e profano humanas em direcção à caixa de texto, tal
convivem porque não se tocam nem se como o carneiro que, em posição oposta,
misturam: mantém os joelhos em terra e ergue uma
das mãos. A explicação para este tipo
Mises sur le même plan, les associations les de imagens procura-se muitas vezes – e
plus délicates perturberaient l’organisation muitas vezes se encontra – no texto que
symbolique et morale du monde, alors que lhe é imediatamente próximo, sendo
hierarchisées, elles travaillent pour la loi.56 que determinada palavra ou expressão
é frequentemente glosada, ou mesmo
A ideia de uma recorrente descontextualizada, através de uma
instrumentalização da margem pelo imagem aparentemente deslocada do
centro na arte medieval, enquanto contexto geral da página.59
dispositivo estratégico de um discurso
de validação e reiteração dos valores Neste caso, contudo, a função destes
(espirituais e temporais) instituídos é uma híbridos não é parodiar determinada
das soluções mais frequentes, e porventura palavra, mas sim glosar e, num sentido
mais eficazes, para a natureza tantas hipertextual, prolongar e completar a
vezes insólita e epistemologicamente mensagem do Salmo contido na página e
indefinida das imagens marginais. Contudo, ilustrado na inicial. “Salva-me, ó Deus, pois a
o reconhecimento de uma profunda água já me chega ao pescoço”, é o apelo
hierarquização não responde a todos os desesperado que se ilustra na inicial S, em
casos de marginação. E casos há, de facto, que o pecador, quase completamente
em que a relação formal e semântica imerso, dirige as suas preces ao Salvador.
entre ambos (centro e margem) é directa Que sentido fazem, então, estes híbridos,
e imediatamente evidente, como no caso tão distantes até de uma previsível
de um fólio de um Saltério e Livro de Horas metáfora aquática? O Salmo continua:
inglês (c. 1310-1320),57 em que o rei David “Ó Deus, Tu conheces a minha ignorância,
dirige, a partir da inicial, toda um grupo de os meus crimes não são ocultos para ti”,
instrumentistas imediatamente hibridizados “a confusão cobre o meu rosto”, “tornei-
pela margem. me estrangeiro para os meus irmãos, um
estranho para os filhos de minha mãe”.60
No bas-de-page de um outro fólio do Transformados, por via da bestialização
mesmo manuscrito,58 um híbrido leonino do corpo, em símbolos da regressão da

99
Joana Antunes

condição humana em consequência do poderíamos supor, como o recurso


pecado, é este o apelo que os híbridos constante ao corpo humano enquanto
humanos anunciam: “Aproxima-te de mim, signo preferencial para a transmissão
resgata-me!”. Na sua evidente relação de ideias e para o estabelecimento
com o centro – hierarquizada, certamente, de discursos implica a activação de
mas não estanque – o hibridismo assim mecanismos de marginação vários,
exposto não só actua como mecanismo muitas vezes transversais à margem e ao
de marginação como implica já a sua centro. Por outro lado, o transporte não
reconversão, ao deixar implícita a hipótese é unívoco, e também a margem acolhe
de salvação do ser marginado, ou do que corporeidades positivas, transformando-se
com ele se identifica. num espaço de encenação de privilégio,
eleição e excepção. Senão, vejamos as
inúmeras representações de comitentes
V – A MARGINAÇÃO DO CENTRO E A que, ao longo dos muitos séculos da
DESMARGINAÇÃO DA MARGEM arte medieval (e para além dela),
Se a relação entre o centro e margem encontraram na margem e no interstício
não pode já ser lida a partir da aplicação uma liminaridade inclusiva e privilegiada.61
sistemática de lógicas absolutas de Nas várias cópias iluminadas da obra de
transgressão (pressupondo que centro Hildegard von Bingen, as suas visões são
e margem contactam para que a frequentemente dispostas no centro do
segunda subverta os valores da primeira) fólio e a sua presença física remetida para
ou de ordenação (pressupondo que a a margem ou o interstício: na já referida
transgressão não existe por não existir visão do Homo Universalis, por exemplo,
contacto e que a ausência de contacto o único corpo marginal é o da própria
reforça a mensagem oficial e central), vidente, que encontra na margem não um
também as leituras valorativas da espaço de marginalização, entendido por
margem como negativa, transgressiva e exclusão ou negativização, mas um espaço

Fig.9 - Hildegard von Bingen, Liber Divinorum Operum, c. 1210-1230,


Biblioteca Statale di Luca, Ms. 1942, fl. 9.

marginalizante e do centro como positivo, de participação privilegiada no mistério


exemplar e dignificante não podem já da criação e da organização divina do
assumir-se como soluções interpretativas mundo.62
de operatividade inquestionável. Não só
as relações entre centro e margem são Se a margem é ocasionalmente
mais circunstanciais e, portanto, menos desmarginalizada, permitindo-nos um
convencionalizadas do que à partida maior entendimento do seu potencial

100
Joana Antunes

inclusivo e múltiplo, também o centro se de um dos episódios porventura mais


convulsiona perante a presença, acessória perturbadores e comovedores dos escritos
ou protagonista, de figuras marginadas, evangélicos, o Massacre dos Inocentes.63
com ou sem prolongamento para a (e Herodes, que assume o protagonismo da
pela) margem. Recuperando a questão composição e da acção é, precisamente,
do potencial marginante do hibridismo a figura mais nitidamente marginada –
podemos evocar o caso flagrante dos mais até do que os soldados que levam
seres compósitos, ou grylli, das margens a cabo o infanticídio.64 Neste caso, não
do Saltério de Maria de Inglaterra (c. são a expressão, a fisionomia ou o gesto
1310-1320). A marginalia deste códice que denunciam a coincidência entre a
é, ao longo dos primeiros fólios, visual bestialidade dos grylli que investem um
e semanticamente inócua, composta contra o outro na margem e a figura de
sobretudo por breves composições com Herodes: é, sobretudo, a articulação destes
animais, cenas de interacção entre um elementos com a presença insidiosa do

Fig.10 - Saltério (Queen Mary Psalter), 1310-1320, British Library, Royal 2 B VII,
fl. 132; igreja de Santo Domingo de Soria, segunda metade do século XII.

humano e um animal (um urso ou um demónio que domina o ânimo do rei e o


leão, por exemplo) ou, no máximo, o leva a desembainhar a espada contra os
confronto entre dois cavaleiros numa Inocentes.
justa. Acontece que uma miniatura em
concreto parece desencadear um surto Este poder persuasivo dos demónios, que faz
de figuras híbridas, com torsos, membros deles verdadeiras extensões do corpo dos
superiores e cabeças humanas e membros pecadores, bestializando-os e minando o
inferiores animais, dotados de rostos ancoramento positivo da sua centralidade,
extremamente expressivos embutidos na teve uma cristalização longa e transversal
zona genital (apontamento eloquente a toda a Idade Média. Encontramo-lo
quanto à ausência de refreamento dos novamente noutra representação do
instintos mais básicos destes seres) e em Massacre, desta feita esculpida numa das
situação de violento confronto físico. arquivoltas do portal principal da igreja de
Esta irrupção de violência monstruosa e Santo Domingo de Soria, (segunda metade
repulsiva é nada mais do que uma resposta do século XII)65: também aqui, não são os
e, simultaneamente, um complemento soldados o alvo de marginação evidente,
discursivo e emocional, à representação mas sim Herodes que, acossado por um

101
Joana Antunes

demónio que mantém como único sinal de do fólio em questão a possibilidade de


antropomorfismo o caminhar erecto, puxa um duplo jogo de espelhos, desdobrando
a barba em sinal de inquietude, desespero simultaneamente a cauda e o carrasco,
e raiva. cuja expressividade excessiva é prolongada
na figura do ajudante que, fora da inicial,
Nem sempre, porém (ou até muito aviva o fogo do sacrifício, e pelo demónio
raramente, como vimos já) os carrascos, que, acima deste, mimetiza (por excesso) a
responsáveis últimos pelo sofrimento gestualidade do interior da inicial.
e sacrifício de inocentes, mártires ou
do próprio Cristo, vêm as suas culpas No já citado livro de horas da família Neville
transferidas para a corporalidade de outro of Hornby, provavelmente criado para
indivíduo. A marginação do indivíduo um público restrito, privado e feminino,68
que tortura e, geralmente com grande os marginados são frequentemente
prazer, martiriza a vítima virtuosa, efectiva- destacados por marcadores iconográficos
se frequentemente no centro pela muito claros: uma expressividade
necessidade de interacção directa com o exagerada (bocas exageradamente
protagonista da acção, cuja importância distendidas, sobrancelhas carregadas, olhos
enquanto modelo positivo exige um muito abertos); nanismo; cabelos e barbas
enquadramento central. Mas, por vezes, compridos ou em completo desalinho, por
marginado e marginal articulam-se de vezes coloridos de azul; roupas garridas
forma tão estreita (e por razões tão diversas) e, muito frequentemente, listadas de
que os limites entre centro e margem vermelhão e azul. Desde o episódio da
inevitavelmente se diluem: na inicial “Q” traição de Cristo por Judas, passando pela
do salmo “Quid gloriaris”66 de um Saltério Flagelação e pela Humilhação de Cristo, os
holandês do terceiro quartel do século XIII67 soldados e guardas do Sinédrio são assim
representou-se, de forma sintética, São destacados e identificados, alcançando
Lourenço a ser martirizado, erguendo as o culminar da marginação na miniatura
mãos a Deus (cuja presença se anuncia da Crucificação onde duas figuras de
pela mão que desce de uma nuvem), carrascos munidos de maças surgem do
enquanto um industrioso algoz se encarrega espaço além moldura (um da margem
de o manter preso à grelha ardente. A e outro do interior da própria miniatura),
necessidade formal de dotar a letra de transgredindo claramente os seus limites
uma cauda descendente, prolongando-a e ameaçando transgredir também o
pela margem, propiciou ao iluminador limite de violência gráfica suportado
pelo observador, que automaticamente
projecta o momento seguinte, em que
as pernas do Bom e do Mau Ladrão (este
igualmente marginado por meio de uma
expressão atormentada, cabelos e barba
azul) sofrerão o sonoro embate das pesadas
maças de madeira.

Num outro códice inglês, desta feita um
Saltério do primeiro quartel do século XIII,69 a
marginação dos carrascos repousa não só
na expressão violenta e excessiva dos rostos
e na movimentação repetitiva e cruel do
corpo (que irrompe pelos limites da própria
moldura), como também num certo grau
de desumanização, patente na coloração
Fig.10 - Saltério, Holanda, c. 1250-1275, British Library, simbolicamente sombria da sua pele.70
Burney 345, fl. 69. Cristo, ao centro, sofre dignamente o seu
castigo, ocultando o rosto e, portanto, o seu
sofrimento.

102
Joana Antunes

Fig.11 - Livro de Horas (Neville of Hornby Hours),


Inglaterra, 2º quartel do século XIV, British Library, Egerton
2781, fl. 138, 151v, 161v.

do suicídio.71 De forma claramente


No registo superior, o arrependimento premeditada, invertem-se neste registo
de Judas desenrola-se num continuum os mecanismos de marginação e de
narrativo, com dois episódios graficamente transgressão positiva activados no anterior,
demarcados pela árvore do enforcamento: já que agora são os discípulos que vão
no primeiro, Judas, tal como Cristo, receber o tom de pele dos carrascos
oculta o rosto, não por dignidade mas de Cristo, enquanto Judas mimetiza a
pela vergonha infligida pelos restantes gestualidade do Salvador, num processo
discípulos que, sentados ao lado dos trinta que, ao forçar a identificação, sublinha
dinheiros, lhe dirigem olhares de censura a traição e a indignidade, levada ainda
e lhe apontam o dedo, signo exemplar mais longe pela transformação dos futuros
e reprovador; no segundo, concretiza- apóstolos nos carrascos de Judas, zeladores
se a insuportabilidade da culpa através e protectores da equidade e da justiça.

Fig.12 - Saltério, Oxford, c. 1200-1225, British Library,


Arundel 157, fl. 10; Golden Munich Psalter, Gloucester, c.
1200-1225, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 835, fl. 10.

103
Joana Antunes

Mas se na iconografia medieval a condenados. A propósito do portal dos


corporalidade dos carrascos é alvo príncipes da catedral de Bamberg, por
tendencial de marginação, mesmo no exemplo, Jean-Claude Schmidt fala-nos
centro da representação, também a dos de um rei condenado “acompanhado
sacrificados passará, em determinadas por um usurário igualmente hilário”, cujo
situações, pelo mesmo processo. O riso o autor pondera como “um último
corpo santo ou martirizado apresenta-se, desafio à Verdade”.74 Basta um esforço
claro, calmo e íntegro, sem os exageros mínimo de distanciamento e algum
de expressividade denunciados nos trabalho comparativo com outras fontes
textos teológicos, as regras monásticas, de semelhante conteúdo, para perceber
os espelhos dos príncipes e outras obras que há muito pouco de hilário neste tipo
moralizadoras (e civilizadoras), que de expressões: há, isso sim, desespero e
aconselhavam a moderação até na tensão. Da mesma forma, a bonomia e o
transparência do sofrimento.72 Já o corpo humor de muitas das figuras marginais da
do homem comum, pecador por inerência, arte medieval são, na verdade, leituras
não resiste às penas infligidas durante o contemporâneas sobre tentativas de impôr
seu encontro com os piores dos algozes: uma ferocidade expressiva cujo poder
os demónios. As cenas de tormento perturbador se perdeu.75
dos pecadores em vida ou das almas
condenadas, após a morte, são das mais Outra situação em que a gestualidade,
intensas em termos de expressão corporal. a postura e o movimento corporal
Ao prazer sádico dos demónios, visível no potenciam a marginação da figura
contentamento das suas expressões faciais humana – estabelecendo uma ponte
amplamente bestializadas, corresponde recorrente entre o centro e a margem – é
o esgar de dor, o choro convulsivo, a da representação da dança profana,
o desespero, o grito sufocado dos estreitamente ligada à acrobacia. A dança
condenados.73 agitada, a exibição do corpo e da sua
elasticidade, a inversão da natural posição
Interessante do ponto de vista das erecta do homem – que o diferencia
implicações da leitura anacrónica dos outros animais – são geralmente
de uma iconografia do gesto – afinal, indício negativos de um carácter viciado,
tão distante do aparato visual e dos bestializado, vulnerável à tentação
esquemas perceptivos contemporâneos sexual.76 E esta vulnerabilidade não tardaria
–, é a aparente coincidência entre o a encontrar o seu lugar de exposição
sorriso sardónico e cruel dos demónios preferencial na margem.77
e as expressões de sofrimento dos

Fig.13 - Ermida de Santiago de Agüero (Huesca), portal,


meados do século XII; cadeiral de coro da Catedral
de Colónia, de c. 1308-1311; Livro de Horas (Maastricht
Hours), Liège, séc. XIV, British Library, Stowe 17, fl. 38.

104
Joana Antunes

Fig.14 - Golden Munich Psalter, Gloucester, c. 1200-1225,


Bayerische Staatsbibliothek, Clm 835, fl. 66; Saltério, 1200-
125, Oxford, British Library, Arundel 157, fl. 7.

Seria de esperar que o carácter verificação), a cristalização de um modelo


perigosamente sedutor deste tipo de dança iconográfico para o contorcionismo
e de movimento corporal se transportasse exibicionista da figura da bailarina detecta-
da margem, seu lugar natural, para o se na sua partilha entre centro e margem.
centro. Não é impossível, contudo, que Numa das iluminuras do Saltério Dourado
o processo tenha sido precisamente o de Munique (c. 1200-1225),78 representou-
contrário, uma vez que é no centro que se, em dois registos, a dança de Salomé
se especifica a profunda marginação da e a sua consequência: no registo superior,
dança, ao surgir associada à figura de Salomé impressiona Herodes e os seus
Salomé. Independentemente do sentido de convidados ao ponto de lhes conseguir
causalidade que procuremos estabelecer que lhe seja prometida (a pedido de
(e até da validade questionável da sua Herodias, sua mãe) a cabeça de João

Fig.15 - Livro de Horas, Taymouth Hours, Inglaterra, c.


1325-1350; British Library, Yates Thompson 13, fls. 106 e
107.

105
Joana Antunes

dois fólios diferentes e com a respectiva


legenda: “Cy la fille du roy demau[n]da a
sun pere la teste seint johan” e “Cy est seint
johan decollee”, cena desconcertante em
que a marginação do carrasco de pele
cinzenta e expressão colérica, prestes a
desferir um segundo golpe de espada sobre
o pescoço ensanguentado do Baptista, se
equipara à elegância simultaneamente
passiva e violenta de uma Salomé que
aguarda que tudo termine para recolher na
sua taça o ansiado troféu.

Praticamente contemporânea, a famosa
Fig.16 - Bíblia (Bible Porta), França, séc. XIII, Bibliothèque Bíblia Porta81 apresenta, no prolongamento
cantonale et universitaire de Lausanne, U 964, fl.
de uma inicial “V” um músico e uma
343v.107.
dançarina idêntica, na pose e até mesmo
Baptista;79 no registo inferior, concretiza- na repetição da vibrante túnica azul, à
se a morte deste e reitera-se, por meio Salomé dos exemplos anteriores.
de um desdobramento gráfico, a perfídia
das duas mulheres. Num outro saltério, Se a articulação música-dança em questão
provavelmente provindo da mesma oficina neste espaço marginal se mantém, por falta
do anterior, uma maior economia de meios de indicadores mais claros, ao abrigo da
faz suceder, na mesma cena, a degolação dúvida, podendo inferir-se como negativa
de João Baptista, a dança de Salomé, pela referência profana da joculatrix82 ou
e a entrega da cabeça do Baptista a como positiva, sob o princípio de que há
Herodias – sem sentido narrativo coerente, um tempo certo para cada coisa “Tempo
esta organização não faz senão sublinhar o para chorar e tempo para rir. Tempo
efeito nocivo da gestualidade excepcional, para lamentar e tempo para dançar”,83
sedutora e por isso extremamente perigosa, já a dança de Salomé é a indubitável
de Salomé enquanto causa última (central) tipificação da “má dança”:
de uma morte infame, quase gratuita, que
o observador não tem como não lamentar. Si certaines sont condamnés parce
qu’associés à l’idolâtrie (le modèle en est la
Nos vibrantes bas-de-page das Taymouth danse des Hébreux devant le Veau d’or) ou
Hours (c. 1225-1250)80 representaram-se os aux seuls plaisirs du corps (selon l’exemple
episódios da dança e a da degolação em fâcheux, dans le Nouveau Testament, de

Fig.17 - The Golden Haggadah, Catalunha, c. 1325-1350,


British Library, Additional 27210, fl. 15; Bible Historiale, Paris,
c. 1320-1330, Bibliothèque Nationale de France, Français
8, fl. 138.

106
Joana Antunes

Salomé, dont la danse est à l’origine du variedade, pelos mirabilia, pelo exotismo
martyre de saint Jean-Baptiste).84 e pela inventividade. O argumento, a que
já tivemos oportunidade de aludir mas
Se tivermos em conta que nas que não cabe aqui desenvolver, pode
representações da “boa dança” de Miriam ser, no entanto, rapidamente esboçado
ou de David,85 o movimento corporal, se colocarmos em articulação os híbridos
muito mais contido, é frequentemente multiformes e marginais de uma obra
quase que apenas sugerido pela indicação sobejamente conhecida, como o Saltério
da performance musical, rapidamente de Luttrell, com os híbridos marginados no
percebemos quão longe vai a marginação interior das miniaturas do livro de orações
do modelo iconográfico de Salomé e, por de Joseph Kara,86 à luz de críticas como
extensão, o da dançarina contorcionista as de Bernardo de Claraval ou o autor do
latu sensu. Pictor in Carmine. A sedução, a distracção,
o comprazimento quase involuntário na
observação destas figuras monstruosas,
VI – PULCHRA DEFORMITAS: A VERTIGEM DA destes híbridos proteiformes,87 são respostas
MARGINAÇÃO claramente denunciadas pelas palavras de
Mas o papel do corpo marginado nem censura de quem não percebe (ou diz não
sempre é despoletado, explicado ou perceber) o fascínio.
contextualizado pelo centro ou pela
globalidade do espaço em que se Se estas figuras assumem quase sempre
encontra ou da função que deverá a liminaridade da sua condição física
cumprir. Muitos dos corpos que, na margem no espaço da margem e do interstício,
ou na proximidade imediata do centro, não é raro acontecer que assumam o
são alvo de uma intensa marginação total protagonismo em determinadas
– sobretudo por via de um hibridismo obras: habitantes das margens da Terra,
acentuado – são-no apenas por uma híbridos categorizados como centauros
razão: por recreação de todos quantos, e sereias, assumem uma centralidade
de uma forma ou de outra, intervêm explícita por serem, precisamente,
sobre o espaço em questão. O assombro criaturas catalogas, descritas, dotadas
e a surpresa provocados pela presença de nome e caracterização regular.88 Mas,
repentina e agitada de uma figura mesmo quando este corpo é explicado
estranha e bizarra, mesmo que repelente pela tradição literária e pelos escritos
e assustadora na sua corporeidade, enciclopédicos, é sempre possível marginá-
são mecanismos de divertimento que lo um pouco mais, retirando-o do seu
perpassam grande parte da marginalia contexto original. É o que acontece,
medieval, produto do fascínio pela por exemplo, no caso dos Saltérios de

Fig.18 - Saltério de Luttrell (séc. XIV, British Library, Add.


MS 42130); Joseph Kara, Livro de orações para as Festas
Shavuot e Sukkot, c. 1322, Alemanha, British Library,
Additional 22413, fl. 106.

107
Joana Antunes

Fig.19 - Saltério de Teodoro, 1066, Constantinopla, British


Library, Add. Ms. 19352, fl. 23; Saltério de Spiridon, Kiev,
1397, Biblioteca Pública de Leninegrado, MS F 6, fl. 28.

Khludov (c. 850), Teodoro (1066) e Spiridon do saltério é ainda mais claro quanto a esta
(1397)89 que, embora distanciados por negativização, uma vez que transforma o
vários séculos, utilizam a mesma referência cinocéfalo na materialização dos versos:
iconográfica e o mesmo princípio “Estou rodeado por matilhas de cães,
significante, ao complementar visualmente envolvido por um bando de malfeitores;
o salmo 22. trespassaram as minhas mãos e os meus
pés” e “Livra a minha alma da espada, e,
Na margem que, nestes saltérios, é o lugar das garras dos cães, a minha vida”.94 No
natural da imagem,90 representou-se Cristo caso do Saltério de Teodoro, a associação
rodeado de um grupo de cinocéfalos é definitivamente esclarecida por meio de
vestidos de soldados. Criaturas com corpo uma inscrição marginal que, em jeito de
humano e cabeça canina, os cinocéfalos legenda à imagem, informa “os hebreus
são, pese embora o seu inusitado hibridismo, são cães”. Por via de uma corporalidade
das raças monstruosas dos confins da híbrida, embora classificada, marginam-se
terra91 menos desconsideradas pela cultura simultaneamente os judeus, visualmente
medieval, que chegou mesmo a fazer associados aos cães ameaçadores do
de um dos seus santos – São Cristóvão, salmo e à violência dos cinocéfalos, e os
o Cananeu92 – um cinocéfalo. Na arte próprios cinocéfalos, assim aproximados
medieval, o espaço de representação dos judeus que, como cães, ladraram a
do cinocéfalo é específico, circunscrito e Cristo como se fosse um estranho, ao invés
contextualizado: em galerias (delimitadas, de o reconhecerem como salvador e o
organizadas e categorizadas) de raças dos receberem entre si.95
extremos do mundo conhecido, como no
primeiro portal da igreja de La Madeleine No processo de marginação do corpo
em Vézelay; ou, com maior frequência, na humano, o híbrido pode ser, então, um
ilustração de livros, desde obra de autores mecanismo, operativo e instrumental,
clássicos, a relatos de viagem e narrativas de manipulação da imagem e do seu
épicas.93 O facto de surgirem fora do seu sentido. Mas não é o hibridismo, por si só,
contexto oficial e em estreita articulação que verdadeiramente inquieta o homem
com a figura de Cristo é, desde logo, um medieval – é a qualidade do híbrido
indício de marginação e, portanto, um indefinido, que fractura a inteligibilidade
acréscimo de negatividade à sua natureza e a apreensão do mundo e que escapa
intrinsecamente marginal. Mas o (com)texto à definição imediata, que lhe provoca

108
Joana Antunes

maior ansiedade. Mas é também esse o um país estranho e relativamente distante,


híbrido que maior fascínio exerce sobre então também todos nós, académicos ou
esse outro medieval no qual, afinal, nos não, transportamos, através dos livros que
revemos continuamente. A combinação lemos, dos filmes a que assistimos, das séries
de várias formas numa só, se bem que que consumimos, – tantos deles, aliás, tão
por um lado confirma o a aversão à medievalizados – o homem do passado
mistura que Michel Pastoureau tão para o centro da nossa atenção, para
vívidamente enuncia,96 por outro, reitera melhor marginarmos a sua imagem e o seu
uma atracção (mais ou menos velada) e corpo.
um comprazimento no monstruoso que a
época moderna não deixará de manter,
digerido e transformado no seu vocabulário, CONSIDERAÇÕES FINAIS
mas essencialmente prolongado nos seus No estudo da arte medieval, como no de
mecanismos de hibridação do corpo e qualquer outra cultura artística, não existem
na sua clara marginação. Evoquemos, tal fórmulas unívocas, apriorísticas e infalíveis,
como outrora Francisco de Holanda, o eco para a descodificação das imagens, dos
dos Diálogos em Roma, desta feita entre o espaços, dos mecanismos complexos
espanhol Diogo Zapata e Miguel Ângelo. de imaginação (no sentido estrito de
Perguntando, então, o primeiro: criação de imagens) e de transmissão de
ideias e mensagens. À parte os elementos
porque se costuma às vezes pintar, como de significação (formais ou simbólicos)
se vê em muitas partes desta cidade, mil imediatamente extraíveis da própria
monstros e alimárias, delas com rosto de imagem, o contexto – da sua concepção
mulheres e com pernas e com rabos de e da nossa leitura – é determinante para
peixes, e outras com braços de tigres e asas, estabelecer o rumo adequado à análise de
outras com rostos de homens, pintando cada obra.
finalmente aquilo de que se mais deleita o
pintor e que nunca se no mundo viu?97 Mas, mesmo na impossibilidade de um
conhecimento profundo dessa mesma
Responde o segundo: obra – sem dados claros acerca dos
artistas envolvidos na sua produção, do
melhor se decora a razão quando se mete perfil do seu comitente, do ambiente
na pintura alguma monstruosidade (para cultural e intelectual da sua ideação,
a variação e relaxamento dos sentidos e dos constrangimentos de ordem material
cuidado dos olhos mortais, que às vezes impostos sobre a sua execução, do
desejam de ver aquilo que nunca ainda formato e condições do seu usufruto – há
viram, nem lhes parece que pode ser) alguns indicadores que nos permitem
mais que não a acostumada figura (posto compreender o funcionamento da
que mui admirável) dos homens, nem das margem, do centro ou de ambos. E o corpo
alimárias…98 humano, como temos vindo a sugerir, é
simultaneamente objecto e veículo de uma
Este comprazimento no outro, no série destes indicadores.
estranho, na bizarria da forma e do
comportamento diferente, comum à Objecto de mecanismos de marginação
medievalidade e à modernidade, não vários, o corpo é marginado (na margem
é alheio à contemporaneidade. Hoje, e no centro) através de sinais como:
muitas das formas mediadas de contacto a nudez, total ou parcial; o hibridismo,
com o outro (Antropologia, Etnologia, a distorção, o desdobramento de
Literatura, Turismo, etc.) transportam caracteres corporais; a gestualidade e
consigo, enquanto motivação ou a expressividade; a companhia de um
consequência, o fascínio pelos hábitos, demónio (espécie de desdobramento de
pelas expressões culturais e corporais de um corpo humano poluto); a articulação
povos distantes. E se acreditarmos que, com atributos simbólicos; a dimensão do
de facto, o passado não é mais do que corpo, exagerada por defeito ou excesso.

109
Joana Antunes

Estes e outros indicadores de marginação monstro e do monstruoso na cultura medieval


necessitam ainda de ser devidamente sublinham esta mesma relação entre a repulsa
analisados, quantitativa e qualitativamente, e a atracção: “Scandalized, even horrified,
e cartografados nos espaços (central e the observer (or reader) still cannot look
marginal) de domínios artísticos que, nesta away”. Verner, L. (2005). The Epistemology of
breve reflexão, ficaram reduzidos a uma the Monstrous in the Middle Ages. New York &
amostragem delimitada – a dos manuscritos London: Routledge, p. 1. Ver também: Bildhauer,
– e, portanto, sujeitos a resultados que não B., & Mills, R. (2003). The Monstrous Middle Ages.
podem ser senão parciais e meramente Toronto & Buffalo: University of Toronto Press, p.
indicativos. Num estudo menos abrangente 15-23.
e mais circunstanciado sobre a marginação (3) No domínio específico da História da Arte,
do corpo humano na arte medieval, a os manuscritos iluminados foram os principais
contextualização histórica, fundeada dispositivos de problematização sistemática da
numa clara delimitação cronológica que margem. Alguns dos trabalhos que, de forma
aqui evitámos desde o início, terá de mais preponderante, foram marcando este
ser convocada e colocada ao serviço percurso historiográfico em torno da margem
de estudos de caso que permitam ir na arte medieval são: Sandler, L. (1957). Formal
além das inferências genéricas de um Principles of Marginal illustration in English Psalters
brainstorming. No entanto, e porque a of the Thirteenth Century. (MA Thesis, Columbia,
complexidade do tema o justifica, cremos Columbia University); Randall, L. (1955). Gothic
que a discussão, a formulação de propostas Marginal Illustrations: Iconography, Style, and
metodológicas para o estudo do fenómeno Regional Schools in England, North France, and
da marginação e a sua aplicação a casos Belgium 1250-1350 A. D. (Doctoral Dissertation,
concretos, não devem substituir a reflexão Cambridge, Radcliffe College); Randall, L. (1966).
prévia, tão informada quanto possível mas Images in the Margins of Gothic Manuscripts.
tão livre de constrangimentos tipológicos e Berkeley: University of California Press; Gombrich,
cronológicos quanto o desejável. A escolha E. (1979). The Sense of Order: A Study in the
das obras e dos temas convocados para Psychology of Decorative Art. Ithaca: Cornell
esta reflexão em particular, ainda que University Press; Camille, M. (1992). Image on the
orgânica, está longe de ser fortuita; ela Edge: the Margins of Medieval Art. Cambridge:
obedece, pelo contrário, à necessidade e Harvard University Press. Para uma análise crítica
à possibilidade de, através deles, implodir dos estudos mais recentes, ver: Wirth, J. (2003).
toda uma delimitação entre margem e Les marges à drôleries des manuscrits gothiques:
centro, norma e transgressão que, embora problèmes de method. In Bolving, A., & Lindley,
importante (porque operativa) não pode Philip (Eds.), History and Images: Towards a New
continuar a conformar a nossa visão sobre Iconology. Turnhout: Brepols, p. 277-300.
a arte medieval em moldes de dicotomia, (4) Gutiérrez Baños, F. (2009). Los marginados
binómio e paradoxo. en la pintura española de estilo gótico lineal:
un discurso iconográfico para la afirmación de
valores estabelecidos. In Monteira Arias, I., Muñoz
Notas Martínez, A. B., Villseñor Sebastián, Fernando
(1) Para uma reflexão informada sobre o (Eds.), Relegados al Margen: Marginalidad y
potencial multímodo (físico e simbólico, corporal Espacios Marginales en la Cultura Medieval.
e moral, positivo e negativo) do conceito de Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
transgressio durante a Idade Média, e em Científicas, p. 185.
particular associação à sua cultura visual, ver: (5) Ver: Gómez Gómez, A. (1997). El protagonismo
Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V. (2008). de los otros: la imagen de los marginados en
Image et Transgression au Moyen Âge. Paris: el arte românico. [s.l.]: Centro de Estudios de
Presses Universitaires de France, p. 64-74. Historia del Arte Medieval. O 18º volume da
(2) Ecoando a denúncia subliminar do revista Medievalismo é dedicado ao tema “Los
comprazimento na imagem grotesca aparente Marginados en la Edad Media”: Alcaraz, J., &
em obras como a Apologia de Bernardo de Francisc, J. (Eds.). (2008). Medievalismo: Revista
Claraval ou o anónimo Pictor in Carmine, os de la Sociedad Española de Estudios Medievales,
mais recentes estudos sobre o fenómeno do 18. Madrid: Sociedad Española de Estudios

110
Joana Antunes

Medievales. No volume Relegados al Margen. Língua Portuguesa, 7ª ed., Porto, Porto Editora. p.
Marginalidad y espacios marginales en la cultura 1162.
medieval, são vários os autores que recorrem ao (11) Sand, A. (2011). The Fairest of Them All:
termo marginado e marginação, frequentemente Reflections on some Fourteenth-Century Mirrors.
como referência a grupos sociais, culturais e/ In Blick, S., & Gelfand, L. D. (Eds.), Push Me, Pull
ou religiosos excluídos e sobretudo enquanto You: Imaginative, Emotional, Physical, and Spacial
processo de negativização: Lange, C. (2009). ‘La Interaction in Late Medieval and Renaissance Art,
clave anti-islámica’ - Ideas sobre marginación I. Leiden: Brill, p. 535-536.
icónica y semántica, p. 115-127; Gutiérrez Baños, (12) Enquanto género literário, o Speculum, foi um
F. (2009). Los marginados en la pintura española dos recursos mais versáteis e bem-sucedidos na
de estilo gótico lineal: un discurso iconográfico longa espessura cronológica da Idade Média. No
para la afirmación de valores establecidos, p. início do seu estudo sobre espelhos trecentistas,
185-197; Lahoz, L. (2009). Marginados y proscritos Alexa Sand apresenta uma lista de bibliografia
en la escultura gótica. Textos y contextos, p. 213- fundamenta sobre os specula enquanto recurso
226. Lahoz, L. (2012). La imagen del marginado literário e iconográfico: Sand, A. (2011), The Fairest
en el arte medieval, Clio & Crimen, 9. Durango: of Them All: Reflections on some Fourteenth-
Centro de Historia del Crimen de Durango, p. Century Mirrors, p. 529-530.
37-84. (13) Entre as várias possibilidades dos Specula, de
(6) Sobre a conotação negativa do listado na livros descritivos sobre o mundo natural, a ciência,
arte medieval, ver: Pastoureau, M. (1991). L’étoffe a história, a sociedade, a autênticos livros
du diable: une histoire des rayures et des tissus práticos, de instruções para o bom desempenho
rayés. Paris : Éditions du Seuil ; Pastoureau, M. de determinados ofícios, destacamos aqui os
(2004). Une histoire symbolique du Moyen Âge espelhos morais (Espelhos de Príncipes, Espelhos
Occidental. Paris : Éditions du Seuil, p. 176-177. de Meditação, Espelhos de Perfeição, Espelhos
(7) Sobre o papel transgressor do carrasco da Salvação Humana).
na iconografia medieval, ver: Bartholeyns, (14) A ideia de um espelho emissor de imagens
G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V. (2008). Image não poderá deixar de se relacionar, na sua
et Transgression au Moyen Âge. Paris: Presses leitura simbólica, com o desenvolvimento das
Universitaires de France, p. 39-41. teorias aristotélicas da visão, com a modalidade
(8) Mesmo quando a sua presença se desdobra, da intromissão a ganhar terreno sobre a
dentro e fora do espaço central, como na inicial da extromissão. Cf. Summers, D. (1987). The
“O” de um saltério holandês (British Library, Burney Judgement of Sense: Renaissance Naturalism and
345, fl. 69) do século XIII. the Rise of Aesthetics. Cambridge: Cambridge
(9) O conceito de marginado que aqui propomos University Press, p. 116-117; Camille, M. (2000).
e aplicamos não se identifica com os casos de Before the Gaze: the Internal Senses and Late-
“transgressão positiva” em que figuras dotadas Medieval Visuality. In Nelson, R. S. (Ed.), Visuality
de características de alteridade (hibridismo, Before and Beyond the Renaissance. Cambridge:
distorções corporais, transgressão física da Cambridge University Press, p. 197-223; Carruthers,
moldura, etc.) permanecem positivamente M. (1998). The Craft of Thought. Meditation,
conotadas, como no caso dos Evangelistas Rhetoric, and the Making of Images, 400-1200.
zoomórficos ou da própria figura de Cristo. Cf. “La Cambridge: Cambridge University Press, p. 188-
transgression positive” em Bartholeyns, G., Dittmar, 192.
P.-O., & Jolivet, V. (2008). Image et Transgression (15) Os exemplos citados encontram-se no
au Moyen Âge. Paris: Presses Universitaires de Breviário de Isabel de Castela (The Breviary
France, p. 64-74 ; Mills, R. (2003), Jesus as Monster. of Queen Isabella of Castille, c. 1497,Bruges,
In Bildhauer, B., & Mills, R. (Eds.), The Monstrous British Library, Add MS 18851, fls. 270r, 477v).
Middle Ages. Toronto & Buffalo: University of Cf. Backhouse, J. (1993). The Isabella Breviary.
Toronto Press, p. 28-54. London: British Library.
(10) marginal, adj. 2 gén. da margem; que diz (16) Richard Bernheimer, na abertura da
respeito à margem; que segue ao longo da fenomenologia às margens do imaginário
margem; s. 2 gén. indivíduo que vive fora da lei, medieval (e aos seus marginados), resumiu a
à margem da sociedade; vadio, delinquente. sua visão do papel fundamental do homem
marginado, adj. que tem margem. marginação, selvagem:“It happens that the notion of the wild
s. f. acto ou efeito de marginar. Dicionário da man must respond and be due to a persistent

111
Joana Antunes

psychological urge. We may define this urge (20) Cf. Husband, T. (1980). The Wild Man, p.
as the need to give external expression and 1-17, Craveiro, M. L. (2012). O Anjo Moderno.
symbolically valid form to the impulses of reckless In Graça, M. S. (Ed.), Angelorum: Anjos em
physical self-assertion which are hidden in all of us, Portugal. Guimarães: Museu de Alberto Sampaio,
but are normally kept under control.” Bernheimer, p. 59-60; Antunes, J. (2014). The Late Medieval
R. (1952). Wild Men in the Middle Ages: a study Mary Magdalene: Sacredness, Otherness, and
in art, sentiment, and demonology. Cambridge: Wildness. In Loewen, P., & Waugh, R., (Eds.), Mary
Harvard University Press, p. 3. Bernheimer Magdalene in Medieval Culture: Conflicted Roles,
estabeleceu ainda, de forma definitiva, a visão New York & London: Routledge, p. 116-139.
Freudiana do homem selvagem enquanto (21) Cf. Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet,
receptáculo das ansiedades sexuais do homem V. (2008). Image et Transgression au Moyen Âge.
que o idealizou, que seria posteriormente Paris: Presses Universitaires de France. A mais
revisitada e desenvolvida por autores como recente e mais completa reflexão em torno
Jeffrey Cohen. Cf. Cohen, J. J. (1999). Of Giants: da questão da transgressão na arte medieval,
Sex, Monsters, and the Middle Ages. Minneapolis: fundamental para a discussão em torno do
University of Minnesota Press. potencial transgressivo da imagem medieval e
(17) Vicente, G. (1586). Triunfo do Inverno. In dos mecanismos de transgressão potencialmente
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente a activados através da sua organização.
qual se reparte em cinco liuros. Lisboa: Andres (22) Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V.
Lobato, fl. 203. (2008). Image et Transgression au Moyen Âge.
(18) A bestialização do homem submisso é Paris: Presses Universitaires de France, p. 8, 21-22.
frequente na arte medieval, tendo na cena de (23) Dante Alighieri, Divina Commedia, Paradiso,
Aristóteles, ajaezado e cavalgado por Fílis, um XXVI, v. 115-117.
exemplo tão recorrente quanto eloquente. Nas (24) Seidel, L. (2012). Nudity as Natural Garment :
margens do livro de horas conhecido como Seeing Through Adam and Eve’s Skin. In Lindquist,
“Taymouth Hours” (c. 1325-1350, British Library, S. (Ed.), The Meanings of Nudity in Medieval Art.
Yates Thompson 13, fls. 60v-63v) desenrola-se, ao Farnham: Ashgate, p. 207-230.
longo de sete fólios, a sequência do assédio e (25) Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V.
rapto de uma dama por parte de um homem (2008). Image et Transgression au Moyen Âge.
selvagem e a respectiva punição.A caça Paris: Presses Universitaires de France, p. 17.
ao homem selvagem, retratada enquanto (26) Sobre as representações da queda dos anjos
divertimento de corte, pode encontrar-se, por rebeldes e dos demónios na arte medieval,
exemplo no designado Queen Mary Psalter, ver : Strickland, D. H. (2003). Saracens, Demons,
1310-1320, British Library, Royal 2 B VII, fl. 172v- & Jews: Making Monsters in Medieval Art. New
173. Para outros exemplos de cenas de assédio, Jersey: Princeton University Press, p. 61-73; Smith, K.
punição e domesticação do homem selvagem, A. (2003). Art, Identity and Devotion in Fourteenth-
ver: Husband, T. (1980). The Wild Man: Medieval century England: Three Women and their Books of
Myth and Symbolism. New York: The Metropolitan Hours. London: The British Library, p. 120-123; Fall of
Museum of Art, p. 67-76, 85-91. Sobre o the Rebel Angels. (1996). Ross, L. (ed.), Medieval
desenvolvimento literário da oposição cavaleiro/ Art: A Topical Dictionary. Westport : Greenwood
selvagem, ver: Schwam-Baird, S. (2002). Terror and Press, p. 85.
Laughter in the Images of the Wild Man: The Case (27) Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V.
of the 1489 Valentin et Orson. In DuBruck, E. (Ed.), (2008). Image et Transgression au Moyen Âge.
Violence in Fifteenth-century Text and Image, 27. Paris: Presses Universitaires de France, p. 24.
New York & Suffolk: Boydell & Brewer, p. 238-256. (28) Bible moralisée, c. 1455-1460 Koninklijke
(19) Cf. Ariès, P., & Duby, G. (1985). Histoire de Bibliotheek, KB, 76 E 7, fl. 1 ; George Chastellain,
la Vie Privée, 2. Paris: Seuil, p. 361-362, 366 ; Miroir de mort, 1470, Bibliothèque municipale de
Mattoso, J. (2010). O corpo, a saúde, a doença. Carpentras, ms. 410, fl. 9.
In Mattoso, J. (Dir.), História da Vida Privada em (29) Camille, M. (1992). Image on the Edge.
Portugal: A Idade Média, I. Lisboa: Círculo de London: Reaktion Books, p. 26.
Leitores, p. 348-349; Jolly, P. H. (2012). Pubics (30) Cf. Camille, M. (1992), Image on the Edge.
and Privates: Body Hair in Late Medieval Art. p. 26-31; Corti, M. (1977). Models and Antimodels
In Lindquist, S. (Ed.), The Meanings of Nudity in in Medieval Culture. New Literary History, 10, 2.
Medieval Art, Farnham: Ashgate, p. 183-206. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, p.

112
Joana Antunes

339-366. Bychkov, O. (2010). Aesthetic Revelation: Reading


(31) Sendo ambas as dinâmicas frequentemente Ancient and Medieval Texts after Hand Urs von
contempladas na teologia medieval de influência Balthasar. Washington DC: The Catholic University
neoplatónica em solução hierárquica mas não of America Press, p. 204-206; Carruthers, M. (2013).
dicotómica, desde Santo Agostinho e Pseudo- The Experience of Beauty in the Middle Ages.
Dionísio Aeropagita a Pedro Lombardo e Tomás Oxford: Oxford University Press, p. 118; Lipsmeyer,
de Aquino. Cf. Armstrong, A.H. (1967). Augustine E. (1995). Devotion and Decorum: Intention and
and Christian Platonism. Villanova: Villanova Quality in Medieval German Sculpture. Gesta, 34,
University Press; Guay, M., Halary, M.-P., & Moran, 1. Chicago: The University of Chicago Press, p.
P. (Dir.). (2013). Intus et Foris. Une catégorie de 20-27; p. 24. Umberto Eco faz equivaler o conceito
la pensée médiévale?. Paris : PUPS, sobretudo de decorum ao de pulchrum, fazendo de ambos
o artigo de Raffray, M., Le Monde et Dieu: sinónimos de beleza: Eco, U. (2002). Art and
Relations Ad Intra et Ad Extra Chez les Théologiens Beauty in the Middle Ages, p. 15.
Médiévaux, p. 19-29. (35) Cf. Mattoso, J. (2010). O corpo, a saúde, a
(32) “what is beautiful relative to something else doença, p. 348-354.
– a formulation inherited from Classical Antiquity, (36) Conrad von Hirsau (atr.), Speculum virginum,
passing from Cicero through St. Augustine to Alemanha, 2º ou 3º quartel do século XI, British
Scholasticism in general”. Umberto Eco aprofunda Library, Arundel 44, fl. 34v.
um pouco esta qualidade de aptum em: Eco, (37) O epítome deste processo de antítese é
U. (2002), Art and Beauty in the Middle Ages. a oposição entre Cristo e o Demónio: “artists
Yale: Yale Nota Bene, p. 15; Rockmore, T. (2013). have manipulated color, line, size, and relative
Art and Truth after Plato, Chicago, University of positioning in order to achieve the starkest
Chicago Press, p. 71-104. possible contrast between the Son of God and
(33) Na sua Summa Theologica (quest. 9, art. the Old Enemy”. Strickland, D. H. (2003). Saracens,
8), Tomás de Aquino indica como requisitos Demons, & Jews: Making Monsters in Medieval Art,
para a manifestação do belo a integridade p. 74-77.
ou perfeição, harmonia ou devida proporção (38) Para uma abordagem articulada de algumas
e claridade ou esplendor da forma: “Ad destas representações no contexto específico
pulchritudinem tria requiruntur: integritas, da nudez e dos seus potenciais catárticos no
consonantia, claritas”. Cf. Eco, U. (1988). The contexto da arte românica, ver: Dale, T. (2010).
Aesthetics of Thomas Aquinas. Cambridge & The Nude at Moissac: Vision, Phantasia, and the
Massachusetts: Harvard University Press. Experience of Romanesque Sculpture. In Maxwell,
(34) Ao transitar do mundo greco-romano para o R., & Ambrose, K. (Eds.), Current Directions in
pensamento medieval, o conceito de decorum Eleventh- and Twelfth-Century Sculpture Studies.
parece afastar-se subtilmente da noção genérica Turnhout: Brepols, p. 61-76. Outros exemplos,
de decoro (recato, modéstia, postura) para paradigmáticos pelo seu protagonismo
identificar-se sobretudo com o sentido literário historiográfico, são: a personificação da ira num
de adequabilidade e congruência: assim, um dos capitéis de La Madeleine de Vézelay (c.
bom discurso mal proferido é desprovido de 1130); as Virtudes e Vícios dos capitéis de Saint
decoro, tal como uma imagem religiosa fora Lazare de Autun (c. 1130) ou da fachada de
do seu contexto o é; por inversão, um discurso Norte-Dame de Paris (c. 1210).
de conteúdo desprezível está de acordo com o (39) A Psychomachia de Prudêncio (c. 348-
princípio de decorum se a sua performance se 410), descrição da batalha alegórica entre
adaptar ao seu sentido, tal como a imagem de virtudes e vícios pela posse da alma humana,
um ser monstruoso se se adequar ao espaço a à época, respectivamente conotados com
que pertence. A aplicação, directa ou indirecta, os comportamentos cristãos e pagãos, foi
do princípio às artes visuais foi longamente considerada como texto canónico durante os
considerada desde a mais alta Idade Média e períodos otoniano e carolíngio. O potencial,
para lá dos alvores da modernidade, por autores visualmente muito sugestivo, do seu discurso
como Alcuíno e Francisco de Holanda. Ver, a alegórico tornou-a um alvo apetecível de
este título: Holanda, F. [ed. 1984]. Diálogos em comentário, tanto através de imagens como
Roma. Lisboa: Livros Horizonte, p. 57-59; Bruyne, de glosas, pelo que a sua utilização como fonte
E. (1998), Etudes d’esthétique médiévale, 1. iconográfica foi transversal a toda a Idade
Bruges: Éditions De Tempel [reimp. 1946], p. 223; Média. Cf. O’Sullivan, S. (2004). Early Medieval

113
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Glosses on Prudentius’ Psychomachia: The Weitz Renânia, Beinecke Rare Book and Manuscript
Tradition. Leiden: Brill; Thomson, H. J. (trans.). Library, Yale University, Beinecke MS. 404, fl. 64r) é
(1949). Prudentius. London: William Hienemann, p. rico em composições simbólicas construídas em
274-343. torno do círculo, da centralidade geométrica e
(40) “First, I find the center point on the surface do corpo humano. Uma das mais conhecidas e
where I wish to depict the Ark, and there – the mais significativas, também pelo protagonismo
point having been fixed – I draw a small square do corpo feminino, é a representação da Virgem
centered on it in the likeness of that cubit in Maria enquanto Mulier amicta sole (Revelação
which the Ark was brought to completion.” 12:1).
A Arca Mística, cujas primeiras linhas aqui (43) Rico em representações diagramáticas, o
transcrevemos, na tradução de Conrad Rudolph, Breviari d’Amor catalão (Catalunha, c. 1375-
será porventura uma das obras que melhor ilustra 1400, British Library, Yates Thompson 31, fl. 40v,
a complexidade da conceptualização da arte 77), apresenta, em iconografias ascendentes e
medieval e o elevado nível de teorização em concêntricas conceitos como as seis Idades do
que se fundou a criação de muitas das suas Mundo, ou a hierarquia dos coros angelicais.
imagens. Escrito em torno dos anos de 1125 e (44) A pintura da Arca Mística de Hugo de São
1130, o texto justifica-se pela sua articulação Victor serve, uma vez mais, como referência.
com uma pintura homónima, concebida por Embora a tentativa de reconstituição levada a
Hugo de São Victor para a escola da sua cabo por Conrad Rudolph não seja conclusiva,
abadia. A instrumentalização da imagem ao servindo sobretudo como exercício de
serviço do conhecimento, neste caso, dos inteligibilidade gráfica do texto que expõe, o
estudos da nova teologia, explicita-se no facto sentido de (a)temporalidade tropológica e
de a obra escrita utilizar uma imagem como escatológica de toda a composição é evidente,
referência e de, ambas, cumprirem a função sobretudo na relação totalizante do corpo de
de orientadores de discussão e reflexão em Cristo e o cosmos. No capítulo 7 do livro I do De
contexto escolar: docem verbo et exemplo. Arca Morali, explica-se: “Because this ark signifies
Hoje, a versão escrita da Arca Mística, na sua the Church and the Church is the body of Christ,
missão de substituto da imagem desaparecida, in order to make the exemplar clearer to you, I
deixa-nos antever uma estreitíssima relação entre have depicted the entire person of Christ – that
a organização geometricamente centralizada is, the head with the members – in visible form so
de todo o esquema compositivo e a referência that, when you have seen the whole [exemplar],
antropomorfizante do corpo de Cristo que, de you should be able to understand more easily
acordo com as instruções do autor, deveria ser what is to be said afterwards concerning the
representado a abraçar todo o cosmos. Para parts.”, Rudolph, C. (2004). “First, I Find the Center
uma análise da obra, sobretudo na sua condição Point”. Reading the Text of Hugh of Saint Victor’s,
de reportatio (reprodução do discurso ou texto p. 43; Squire, Aelred (intr). (1962). Hugh of Saint-
original de Hugo de São Victor por um dos seus Victor. Selected Spiritual Writings. New York &
alunos e consequente edição acrítica para Evanston: Harper & Row, p.52. Representado com
comercialização), ver: Rudolph, C. (2004). “First, I a cabeça for a do ciclo do Zodíaco e os pés fora
Find the Center Point”. Reading the Text of Hugh do limite circular do ciclo dos Meses, o corpo de
of Saint Victor’s The Mystic Ark. Philadelphia: Cristo contém em si (no seu centro) o céu, a terra
American Philosophical Society. e o tempo, para além do qual se estende. Cf.
(41) O Homo Universalis da segunda visão Rudolph, C. (2004). “First, I Find the Center Point”.
de Hildegard von Bingen, representado Reading the Text of Hugh of Saint Victor’s, p. 40.
na única cópia iluminada (conhecida) do (45) Diagrama dos Quatro Ventos, Áustria, c.
seu Liber Divinorum Operum (c. 1210-1230, 1300, Dr. Jörn Günther Rare Books, Hamburgo. Cf.
Biblioteca Statale di Lucca, Ms. 1942, fl. 9) surge Holcomb, M. (2009). Pen and Parchment: Drawing
precisamente como medida e referência de in the Middle Ages. New York: The Metropolitan
todo um esquema cosmológico construído sobre Museum of Art, p. 118-119.
sucessão rítmica de formas concêntricas e a (46) Livro de Horas (‘Neville of Hornby Hours’),
repetição, sempre modular e centralizada, do Inglaterra, 2º quartel do século XIV, British Library,
corpo humano. Egerton 2781, fl. 1v. Cf. Smith, K. A. (2003). Art,
(42) O livro de mão comummente conhecido Identity and Devotion in Fourteenth-century
por Rotschild Canticles (séc. XIV, Flandres ou England: Three Women and their Books of Hours.

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Joana Antunes

London: The British Library. Ages, p. 10; Mattoso, J. (2010). O corpo, a saúde,
(47) A multiplicação de rostos humanos, mais a doença, p. 358-362.
ou menos grotescos, nas representações (54) Cf. Camille, M. (1992). Image on the Edge, p.
de demónio é um processo comum na arte 31-36 ; Hamburger, J. F. (1993). Image on the Edge
medieval. Cf. Strickland, D. H. (2003). Saracens, : The Margins of Medieval Art [Review]. The Art
Demons, & Jews, p. 61-63. Bulletin, 75, 2, p. 319-320; Bartholeyns, G., Dittmar,
(48) Vida de Guthlac (‘Guthlac Roll’), Inglaterra, P.-O., & Jolivet, V. (2008). Image et Transgression
último quartel do século XII ou 1º quartel do au Moyen Âge, p. 47-98.
século XIII, British Library, Harley Roll Y.6. O rolo é (55) Ormesby Psalter, East-Anglia, c. 1300,
proveniente da abadia beneditina de Crowland, Bodleian Library, MS Douce366, fl. 131.
em Lincolnshire e o seu formato peculiar tem (56) Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V.
sido associado ora à tradição Anglo-Saxónica, (2008). Image et Transgression au Moyen Âge, p.
ora à possibilidade de se tratar originalmente de 82.
um projecto para a elaboração de vitrais. Cf. (57) Howard Psalter and Hours, Inglaterra, c. 1310-
Holcomb, M. (2009). Pen and Parchment: Drawing 1320, British Library, Arundel 83, fl. 55v.
in the Middle Ages, p.138-139; Strickland, D. H. (58) Howard Psalter and Hours, Inglaterra, c. 1310-
(2003). Saracens, Demons, & Jews, p. 66-68. 1320, British Library, Arundel 83, fl. 47.
(49) CAMILLE, Michael, Image on the Edge: The (59) Michael Camille oferece alguns exemplos
Margins of Medieval Art, p. 65-75, Bartholeyns, deste tipo de jogo entre texto e imagem
G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V. (2008). Image marginal, embora algumas das suas propostas
et Transgression au Moyen Âge. Paris: Presses partam de equívocos, tal como apontado por
Universitaires de France, p. 21-22; Pastoureau, M. Jeffrey Hamburger, e devam, portanto, ser lidas
(2004), Une histoire symbolique du Moyen Âge com precaução. Cf. Camille, M. (1992). Image
Occidental, p. 198-202. on the Edge, p. 11-12, 20-26, 36-47; Hamburger,
(50) Cf. Gössman, E. (1989). Hildegard of Bingen. J. (1993). Image on the Edge: The Margins of
In Waithe, M. E. (Ed.), A History of Women Medieval Art [Review], p. 319-327. Para uma
Philosophers. Medieval Renaissance and abordagem crítica ao “círculo hermenêutico
Enlightenment Women Philosophers, 500-1600, 2. imagem-palavra”, ver: Emmerson, R. K. (2012). On
Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, p. 40-46. the threshold of the Last Days: negotiating image
(51) Um dos mais exemplares discursos opositivos and word in the Apocalypse of Jean de Berry. In
da arte medieval encontra-se no entorno Gertsman, E., & Stevenson, J. (Eds.), Thresholds
do portal ocidental da Catedral de Amiens, of Medieval Visual Culture: Liminal Spaces.
onde se esculpiram doze Vícios, devidamente Woodbridge: The Boydell Press, p. 11-43.
identificados por atributos, acções e expressões (60) Salmos 69: 1-18. O texto contido no fólio
faciais específicas, interacção entre personagens, é o seguinte: “Salvum me fac Deus: quoniam
etc., em oposição a doze Virtudes, figuras intrauerunt aquae usque ad animam meam.
femininas e masculinas de traços genéricos, todas Infixus sum in limo profundi: et non est substantia.
elas sentadas e segurando um escudo com a Veni in altitudinem maris: et tempestas demersit
indicação pseudo-heráldica da sua identidade. me. Laboraui clamans, raucae factae sunt fauces
(52) Cf. Brombert, V. (1999). In Praise of Antiheroes: meae: defecerunt oculi mei, dum spero in Deum
Figures and Themes in Modern European Literature meum. Multiplicati sunt super capillos capitis mei,
1830-1980. Chicago: The University of Chicago qui oderunt me gratis. […] Quoniam propter te
Press. Embora focada na literatura europeia sustinui opprobirum : operuit confusio faciem
dos séculos XIX e XX, partindo da formulação meam. Extraneus factus sum fratribus meis, et
de Dostoevsky, a obra de Victor Brombert peregrinus filiis matris meae.” Cf. Benedictines of
permite colocar em perspectiva o potencial Solesmes (Eds.). (1961). Liber Usualis. Tournai &
dos personagens anti-heróicos de contextos tão New York: Desclee Company, p. 626-628.
distantes como o dos textos homéricos. Para uma (61) Schleif, C. (2012). Kneeling on the Threshold:
aplicação do conceito à literatura medieval, ver: Donors Negotiating Realms Betwixt and Between.
Cartlidge, N. (Ed.). (2012). Heroes and Anti-Heroes In Gertsman, E., & Stevenson, J. (Eds.), Thresholds
in Medieval Romance. Cambridge: D. S. Brewer. of Medieval Visual Culture: Liminal Spaces.
(53) Cf. Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V. Woodbridge: The Boydell Press, p. 195-216.
(2008). Image et Transgression au Moyen Âge, p. (62) Hildegard von Bingen, Liber Divinorum
41-45 ; Eco, U. (2002). Art and Beauty in the Middle Operum, c. 1210-1230, Biblioteca Statale di Luca,

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Joana Antunes

Ms. 1942, fl. 9. tardia, as obras de Gail Ashton e Esther Cohen


(63) Cf. Oosterwijk, S. (2003). ‘Long lullynge haue I oferecem dados relevantes quanto aos modelos
lorn!’: the Massacre of the Innocents in word and de moderação, modéstia e autocontrolo perante
image. Medieval English Theatre, 25. Lancaster: a dor e o extremo sofrimento físico impostos pela
Lancaster University, p. 3-53. hagiografia e pelos discursos (textuais e visuais)
(64) Queen Mary Psalter, 1310-1320, British Library, nela inspirados: Ashton, G. (2000). The Generation
Royal 2 B VII, fl. 132. of Identity in Late Medieval Hagiography:
(65) Cf. Sáinz Magaña, E. (1983). Estudio Speaking the Saint. London & New York:
iconológico y simbólico de la fachada de Santo Routledge, p. 103-122, 137-157; Cohen, E. (2009).
Domingo (Soria). Celtiberia, 66. Soria: Centro The Modulated Scream: Pain in Late Medieval
de Estudos Sorianos, p. 363-372; (2001). El Arte Culture. Chicago & London: The University of
románico en la ciudad de Soria. Aguilar de Chicago Press, p. 25-32, 198-255.
Campoo: Fundación de Santa María la Real, (73) Embora fosse possível evocar centenas
p. 66-91; Lozano López, E. (2003). La portada de exemplos para esta correspondência,
de Santo Domingo de Soria. Estudio formal apontaremos o caso específico de dois
e iconográfico, [tesis doctoral]. Tarragona: manuscritos. No dito Saltério Dourado de
Universitat Rovira i Virgili. Munique, o fólio correspondente às penas
(66) Salmo 51, “Quid gloriaris in malicia, qui potens infernais apresenta-nos um quadro de doze
es in iniquitate?”. Não é despiciendo assumir cenas de tortura, adaptadas aos diversos tipos
a intertextualidade que se desenvolve nesta de pecados e pecadores. Cf : Golden Munich
inicial: através das figuras dos dois carrascos Psalter, Gloucester, c. 1200-1225, Bayerische
e do demónio estes dois primeiros versos são Staatsbibliothek, Clm 835, fl. 30v; Graham, Henry
contidos e enquadrados, sendo impossível não B. (1975). “The Munich Psalter”, p. 301-312. Já o
notar a relação óbvia entre o esgar malicioso Livre de la Vigne Nostre Seigneur, apresenta-se
do demónio e a palavra “malicia” que a ele se como um autêntico catálogo de torturas pós-
encosta. apocalípticas, reforçando “les horribles tormens”
(67) Saltério, Holanda, c. 1250-1275, British Library, dos pecadores. Cf: Livre de la Vigne Nostre
Burney 345, fl. 69. Cf. Carlvant, K. (Ed.). (2012). Seigneur, França, 1450-1470, Bodleian Library, MS.
Manuscript Painting in the Thirteenth-Century Douce 134, fl. 81v-122r; Kren, T. (1992). Margaret
Flanders. Bruges, Ghent and the Circle of the of York, Simon Marmion, and the Visions of Tondal.
Counts. Turnhout: Brepols, p. 247-248. Malibu: The J. Paul Getty Museum, p. 130-134,
(68) Livro de Horas (‘Neville of Hornby Hours’), 142-148.
Inglaterra, 2º quartel do século XIV, British Library, (74) Schmitt, J.-C. (1990). La Raison des Gestes
Egerton 2781, fl. 138, 146v, 151v, 161v, 162v. Cf. dans l’Occident Médiéval. Paris : Gallimard, Pl.
Smith, K. A. (2003), Art, Identity and Devotion in XXIII.
Fourteenth-century England: Three Women and (75) Cf. Antunes, J. (2011). Uma Epopeia entre
their Books of Hours. o Sagrado e o Profano: o cadeiral de coro
(69) Saltério, Oxford, c. 1200-1225, British Library, do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, 1
Arundel 157, fl. 10. Cf. Graham, H. B. (1975). The (Dissertação de Mestrado, Coimbra, FLUC), p. 153.
Munich Psalter. The Year 1200: A Symposium. New (76) Cf. Schmitt, J.-C. (1990). La Raison des Gestes
York: Metropolitan Museum of Art, p. 301-312. dans l’Occident Médiéval, p. 261-272 ; Camille,
(70) Strickland, D. H. (2003). Saracens, Demons, M. (1992). Image on the Edge, p. 56-61 ; ver
and Jews, p. 82-85, 110-111, 249. particularmente o capítulo intitulado « ‘Ioculator
(71) Ambas as cenas se repetem, em fólios et Saltator’ S. Bernard et l’Image du Jongleur dans
separados e com ligeiras diferenças formais, les Manuscrits » em Leclercq, J. (1992), Recueil
no Saltério Dourado de Munique, com o qual d’études sur saint Bernard et ses écrits, 5. Roma:
partilha pelo menos um dos iluminadores. Cf. Edizioni di Storia e Letteratura, p. 363-390.
Golden Munich Psalter, Gloucester, c. 1200-1225, (77) Entre os variadíssimos exemplos que
Bayerische Staatsbibliothek, Clm 835, fls. 26 e 68; poderíamos evocar, destacamos: a série de
Graham, H. B. (1975). The Munich Psalter, p. 301- modilhões da igreja de Saint-Hérie de Matha
312. (Charente-Maritime), do início do século XII,
(72) Cf. Mattoso, J. (2010). O corpo, a saúde, a com os seus músicos e dançarinos em poses
doença, p. 348-354. Apesar de particularmente contorcidas; os capitéis do portal axial da ermida
dedicadas à realidade de uma Idade Média de Santiago de Agüero (Huesca), de meados

116
Joana Antunes

do século XII, com músicos e dançarinas; as Joculatrix é o nome atribuído a uma das alegorias
misericórdias do cadeiral de coro da catedral dos Vícios, encarnando o amor pelo prazer, ou o
de Colónia, de c. 1308-1311, por várias vezes puro hedonismo, ao qual se opõe a vergonha, ou
dotadas de figuras de dançarinas que interagem sentido de recato, sob o nome de Verecundia.
com a consola da misericórdia (e, por extensão, Cf. Gössman, E. (1989). Hildegard of Bingen, p. 40.
com o corpo do seu ocupante); a marginalia (83) Eclesiastes 3:4. Cf. Schmitt, J.-C., La Raison
das Horas de Maastricht (Liège, séc. XIV, British des Gestes dans l’Occident Médiéval, p. 87.
Library, Stowe 17, fl. 38) onde se representou (84) Schmitt, J.-C. (1990), La Raison des Gestes
uma freira, de hábito erguido até aos joelhos, dans l’Occident Médiéval, p. 88.
a dançar ao som de um fole (na margem, (85) Cf. Schmitt, J.-C. (1990), La Raison des
sempre sexualmente conotado) e de um fuso, Gestes dans l’Occident Médiéval, p. 88-89. A
habilmente tocados por um frade, ou do Ms. Lat dança do rei David perante a Arca da Aliança
33 de Genève (séc. XV, Bibliothèque de Genève, é frequentemente mais expressiva do que a de
Ms. Lat. 33, fl. 79v), em cuja cercadura floreada Miriam. Ainda assim, os exemplos são eloquentes
se exibe um contorcionista com uma mulher nua quanto à ausência de circularidade, exagero,
sobre o ventre. contorcionismo ou inversão nestes episódios de
(78) Golden Munich Psalter, Gloucester, c. 1200- dança. Para a dança de David, ver, por exemplo:
1225, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 835, fl. 66. The Morgan Bible, Paris, 1240s, The Morgan
(79) Ainda que só a partir de Flávio Josefo Library, MS. M 638, fl. 39r; The Queen Mary Psalter,
(Antiguidades dos Judeus, c. 94 d.C.) a Inglaterra, c. 1310-1320, British Library, Royal 2
dançarina, filha de Herodias, seja identificada B VII, fl. 56v; Bible Historiale, Paris, c. 1320-1330,
como Salomé, o episódio é descrito em Mateus Bibliothèque Nationale de France, Français 8, fl.
14:1-12 e Marcos 6:16-29. Para uma referência 138;. Para a dança de Miriam, ver, por exemplo:
sumária sobre as repercussões do tema na arte Haggadah Hispano-Mourisco, c. 1275-1325, British
ocidental, ver: Rodney, N. (1953). Salome. The Library, Oriental 2737, fl. 86v; The Sister Haggadah,
Metropolitan Museum of Art Bulletin. New York: Catalunha, c. 1325-1375, British Library, Oriental
The Metropolitan Museum of Art, p. 190-200. 2884, fl. 16v; The Golden Haggadah, Catalunha,
(80) Taymouth Hours, Inglaterra, c. 1325-1350; c. 1325-1350, British Library, Additional 27210, fl. 15.
British Library, Yates Thompson 13, fls. 106 e 107. (86) Saltério de Luttrell (séc. XIV, British Library,
Cf. Brantley, J. (2002). Images of the Vernacular Add. MS 42130); Joseph Kara, Livro de orações
in the Taymouth Hours. In Edwards, A. S. G. (Ed.), para as Festas Shavuot e Sukkot, c. 1322,
Decoration and Illustration in Medieval English Alemanha, British Library, Additional 22413, fl. 106,
Manuscripts, 10. London: The British Library, p. 83- 131.
113; Smith, K. (2012). The Taymouth Hours: Stories (87) Cf. Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet,
and the Construction of Self in Late Medieval V. (2008). Image et Transgression au Moyen Âge,
England. London & Toronto: British Library & p.26-27
University of Toronto Press. (88) Sobre o carácter catalogado, categorizado
(81) Bible Porta, França, séc. XIII, Bibliothèque e, por isso, natural (e não monstruoso) de seres
cantonale et universitaire de Lausanne, U 964, fl. como a sereia, ver: Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O.,
343v. & Jolivet, V. (2008). Image et Transgression au
(82) Apoiada na documentação reunida para Moyen Âge, p.26-27. Sobre o seu oposto, ou seja,
o estudo do cancioneiro medieval português, seres híbridos dificilmente categorizáveis, ver, por
Carolina Michaëlis aponta a identificação exemplo: Mittman, A. S. (2003). The Other Close
comum, sobretudo em âmbito provençal, entre at Hand: Gerald of Wales and the ‘Marvels of the
a soldadeira e jogralesa – soldataria e joculatrix West’. In The Monstrous Middle Ages, 97-112.
– evocando, a esse título, uma interessante (89) Saltério de Khludov, c. 850, Constantinopla,
passagem dos decretos de palácio de Jaime I de Museu Histórico Estatal de Moscovo, Khlud.
Aragão: “Item statuimus quod nos nec aliquis alius 129-d, fl. 19v; Saltério de Teodoro, 1066,
homo nec domina demus aliquid alicui joculatori Constantinopla, British Library, Add. Ms. 19352,
vel joculatrici sive solidatariae sive militi salvatje”. fl. 23; Saltério de Spiridon, Kiev, 1397, Biblioteca
Cf. Vasconcelos, C. M. (2004), Glosas marginais Pública de Leninegrado, MS F 6, fl. 28. Sobre
ao cancioneiro medieval português. Coimbra: Por estes manuscritos, ver: Anderson, J. (1988). On
Ordem da Universidade, p. 224-225. No já citado the Nature of the Theodore Psalter. Art Bulletin,
Liber Vitae Meritorum de Hildegard von Bingen, 70. New York: The Metropolitan Museum, p.

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Joana Antunes

550-568; Evans, H. C., & Wixom, W. D. (1997). (96) Chegando mesmo a enunciá-la como “Le
The Glory of Byzantium. Art and Culture of the tabou des mélanges” : Pastoureau, M. (2004). Une
Middle Byzantine Era A.D. 843-1261. New York: The histoire symbolique du Moyen Âge Occidental,
Metropolitan Museum of Art, p. 97. p. 198-202. Cf. Camille, M. (1992). Image on the
(90) Os três exemplos evocados fazem parte do Edge: The Margins of Medieval Art, p. 65-75;
grupo restrito a que a historiografia convencionou Bartholeyns, G., Dittmar, P.-O., & Jolivet, V. (2008).
chamar de “saltérios marginais”, ou ilustrados na Image et Transgression au Moyen Âge, p. 22.
margem, obras de origem ou influência bizantina (97) Holanda, F. [1984 ed.]. Diálogos em Roma, p.
cujo layout pressupõe um contacto fluido entre a 57-58.
mancha de texto, não delimitada, e as ilustrações (98) Holanda, F. [ed. 1984]. Diálogos em Roma, p.
do seu conteúdo, que surgem livremente na 58.
margem, sem qualquer tipo de enquadramento.
Cf. Anderson, J. C. (2004). The State of the
Walters’ Marginal Psalter and Its Implications for Bibliografia
Art History. The Journal of the Walters Art Museum,
62. Baltimore: The Walters Art Museum, p. 35-44. Alcaraz, Jimenez, J. (Eds.). (2008). Medievalismo:
Revista de la Sociedad Española de Estudios
(91) Líbia, segundo um fragmento do Catálogo
Medievales, 18. Madrid: Sociedad Española
de Mulheres de Hesíodo, Etiópia segundo a de Estudios Medievales.
História Natural de Plínio, o amplo Oriente
segundo Isidoro de Sevilha. Para a origem, Anderson, J. C. (1988). On the Nature of the
localização e características dos cinocéfalos, Theodore Psalter. Art Bulletin, 70. New York: The
Metropolitan Museum, 1988, p. 550-568.
ver, por exemplo: Friedman, J. B. (2000). The
Monstrous Races in Medieval Art and Thought. Anderson, J. C. (2004). The State of the Walters’
New York: Syracuse University Press, p. 15; Steel, Marginal Psalter and Its Implications for Art
K. (2013). Centaurs, Satyrs, and Cynocephali: History. The Journal of the Walters Art Museum,
Medieval Scholarly Teratology and the Question 62. Baltimore: The Walters Art Museum, p. 35-
44.
of the Human. In Mittman, A. S., & Dendle, P. J.
(Eds.), The Ashgate Research Companion to Antunes, J. (2014). The Late Medieval Mary
Monsters and the Monstrous. Farnham: Ashgate, Magdalene: Sacredness, Otherness, and
p. 257-274; Cohen, J. J. (2009). Of Giants: Sex, Wildness. In Loewen, Peter, & Waugh, Robin
Monsters, and the Middle Ages, p. 131-141. (Eds.), Mary Magdalene in Medieval Culture:
Conflicted Roles. New York & London:
(92) O apreço da Alta Idade Média pelas
Routledge, p. 116-139.
palavras, pela sua (des)construção e pelos
valores relacionais e simbólicos da etimologia, Antunes, J. (2011). Uma Epopeia entre o Sagrado
tornou fácil a associação entre cananeus e o Profano: o cadeiral de coro do Mosteiro
e canineus, proporcionando a formulação de Santa Cruz de Coimbra (Dissertação de
Mestrado, Coimbra, FLUC).
iconográfica do santo com cabeça de cão. A
representação mais conhecida de São Cristóvão Ariès, P. & Duby, G. (1985). Histoire de la Vie
Cinocéfalo encontra-se no Museu Bizantino de Privée, vol. 2. Paris : Seuil.
Atenas.
(93) Cf. Friedman, J. B. (2000). The Monstrous Armstrong, A.H. (1967). Augustine and Christian
Platonism, Villanova: Villanova University Press.
Races in Medieval Art and Thought, p. 131-
162; Steel, K. (2013). Centaurs, Satyrs, and Ashton, G. (2000). The Generation of Identity in
Cynocephali: Medieval Scholarly Teratology and Late Medieval Hagiography: Speaking the
the Question of the Human, p. 257-274.; Cohen, J. Saint. London & New York: Routledge.
J. (2009). Of Giants: Sex, Monsters, and the Middle
Backhouse, J. (1993). The Isabella Breviary.
Ages, p. 131-141.
London: British Library.
(94) Salmos 22 : 17, 21.
(95) É esta a natureza da relação alegórica Bartholeyns, G, Dittmar, P. O. & Jolivet, V. (2008).
estabelecida por Cassiodoro e depois repetida Image et Transgression au Moyen Âge. Paris :
e reformulada por outros autores, ao longo da Presses Universitaires de France.
Alta Idade Média. Cf. Friedman, J. B. (2000). The
Benedictines of Solesmes (1961). Liber Usualis.
Monstrous Races in Medieval Art and Thought, p. Tournai & New York, Desclee Company.
61.

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