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Outros lançamentos de interesse

Introdução ao pensamento epistemológico


Hilton F. Japiassu

Linguagem, realidade e significado


Thomas S. Moro
(em coedição com a Editora da Universidade de S. Paulo)
Glossário de Derrida
Silviano Santiago (coordenador)

GllLES DELEUZE

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íI
-3
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© Presses Universitaires de France, 1971


Título original: La philosophie critique de Kant
(Doctrine des facultés)
Tradução: Sonia Dantas Pinto Guimarães
Capa: AG Comunicação Visual, Arquitetura Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

FICHA CATALOGRÁFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI)

A Ferdinand ALQUIÉ,
Deleuze, Gilles.
D39p Para ler Kant; tradução de Sonia Dantas testemunho de reconhecimento profundo.
Pinto Guimarães. Rio de Janeiro, F. Alves,
1976.

100p. 21cm (Série Para Ler)


Do original em francês: La philosophie
critique de Kant (doctrine des facultés)
Bibliografia.

1. Criticismo (Filosofia) 2. Filosofia


alemã 3. Kant, Immanuel, 1724-1804
r. Título lI. Série
CDD - 142.3
193
CDU - 165.65
76-0390 19Kant

1976

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à


Livraria Francisco Alves Editora S.A.
Rua Barão de Lucena, 43
Botafogo ZC-02
20.000 Rio de Janeiro, RJ
Sumário _

Introdução
O método transcendental 9
A Razão segundo Kant 11
Primeiro sentido da
.palavra faculdade 13
Faculdade de conhecer superior 14
Faculdade de desejar superior 16
Segundo sentido da
palavra faculdade 18
Relação entre os dois sentidos
da palavra faculdade 19

Capítulo 1
Relação das faculdades na
crítica da razão pura 23
A priori e transcendental 25
A revolução copernicana 27
A síntese e o entendimento
legislador 28
Papel da imaginação 31
Papel da razão 32
Problema da relação entre as
faculdades: o senso comum 35
Uso legítimo, uso ilegítimo 38
Capítulo 2
Relação das faculdades na
crítica da razão prática 43
A razão legisladora 45
Problema da liberdade 46
Papel do entendimento 50
O senso comum moral e
os usos ilegítimos 52
Problema da realização 55
Condições da realização 58
Interesse prático e
interesse especulativo 60
Introdução .....
Capítulo, 3
Relação das faculdades na crítica
do juízo 63 o método transcendental
Há uma forma superior
do sentimento? 65
Senso comum estético 67
Relação das faculdades
n6 Sublime 69
Ponto de vista da gênese 71
O simbolismo na Natureza 73
O simbolismo na arte,
ou o gênio 75
O juízo é uma faculdade? 77
Da estética à teleologia 80

Conclusão
Os fins da razão 87
Doutrina das faculdades 89
Teoria dos fins 90
A história ou a realização 94

Bibliografia sumária 98
A RAZÃO SEGUNDO KANT

Kant define a filosofia como "a ciência da relação de todos


os conhecimentos com os fins essenciais da razão humana"; ou
como "o amor que o ser racional experimenta pelos fins supre-
mos da razão humana"1. Os fins supremos da razão formam o
,1/ sistema da Cultura. Nessas definições, percebe-se já um duplo
combate: contra o empirismo e contra o racionalismo dogmático.
Para o empirismo, a razão não é, propriamente falando,
faculdade dos fins. Estes reenviam a uma afetividade primeira,
a uma "natureza" capaz de colocá-Ios. A originalidade da razão
consiste, antes, em um certo modo de realizar fins comuns ao
homem e ao animal. A razão é a faculdade de agenciar meios
indiretos, oblíquos; a cultura é astúcia, cálculo, desvio. Os meios
originais reage.m, sem dúvida, sobre os fins e os transformam;
mas, em última instância, os fins são sempre os da natureza.
Contra o empirismo, Kant afirma que há fins da cultura,
fins que são próprios da razão. E mais ainda, que só os fins
culturais da razão podem ser considerados absolutamente últi-
mos. "O fim último é um fim tal, que a natureza não pode
ser suficiente para efetuá-Io e realizá-Io em conformidade com
a idéia, pois esse fim é absoluto."2

1. Critica da razão pura (CRP), e Opus postumum.


lt 2. Crítica do juizo (Cl), § 84.

11
Os argumentos de Kant, neste sentido, são de três tipos. veis nem pela experiência nem por outras instâncias que per-
Argumento de valor: se a razão servisse apenas para realizar maneceriam exteriores ou superiores à razão. Kant recusa, de
os fins da natureza, seria difícil ver em que ela teria um valor antemão, as decisões empíricas e os tribunais teológicos. "To-
superior à simples animalidade (sem dúvida ela deve ter, uma dos os conceitos, mesmo todas as questões que a razão pura
vez que existe, uma utilidade e um uso naturais; mas ela só nos propõe, residem, não na experiência, mas na razão [... ].
existe em relação com uma utilidade mais elevada de onde É a razão que, sozinha, engendrou essas idéias em seu seio;
retira seu valor). Argumento por absurdo: se a Natureza ti- cabe, pois, a ela, justificar o seu valor ou a sua inanidade4•
vesse querido... (Se a natureza tivesse querido realizar seus Uma Crítica imanente, a razão como juiz da razão, eis o prin-
próprios fins em um ser dotado de razão, teria errado em cípio essencial do método chamado transcendental. Esse mé-
confiar no que há nele de racional, teria feito melhor con- todo propõe-se determinar: 1 - A verdadeira natureza dos
fiando no instinto tanto em relação aos meios como em relação interesses ou fins da razão; 2 - Os meios de realizar esses
aos fins). Argumento de conflito: se a razão fosse apenas uma interesses.
faculdade dos meios, é difícil ver como duas espécies de fins
poderiam se opor no homem, como espécie animal e como
espécie moral (por exemplo, deixo de ser uma criança, sob o
ponto de vista da natureza, quando me torno capaz de ter PRIMEIROSENTIDO DA PALAVRA
filhos; mas sou ainda uma criança, do ponto de vista da cul-
tura, não tendo ainda uma profissão, tendo muito que aprender).
FACULDADE
O racionalismo, por sua vez, reconhece que o ser racional
',f
busca fins propriamente racionais. Mas, no racionalismo, o que
a razão apreende como fim é ainda alguma coisa de exterior Toda representação está em relação com alguma outra coi-
e de superior: um Ser, um Bem, um Valor, tomados como I sa, objeto e sujeito. Distinguimos tantas faculdades do espírito,
regra da vontade. Assim sendo, há menos diferença entre o quantos são os tipos de relações. Em primeiro lugar, uma repre-
racionalismo e o empirismo do que se poderia acreditar. Um sentação pode referir-se ao objeto sob o ponto de vista do acor-
fim é uma representação que determina a vontade. Na medi- do ou da conformidade: esse caso, o mais simples, define a
da em que a representação é qualquer coisa de exterior à von- faculdade de conhecer. Mas, em segundo lugar, a representação
tade, pouco importa que ela seja sensível ou puramente racio- pode entrar em uma relação de causalidade com o seu objeto.
nal; de qualquer modo, ela só determina o querer pela satis- Tal é o caso da faculdade de desejar: "faculdade de ser por suas
fação ligada ao "objeto" que representa. Quer se considere representações, causa da realidade dos objetos dessas represen-
uma representação sensível ou racional, "o sentimento de pra- tações". (Poder-se-·á objetar que há desejos impossíveis; mas,
zer pelo qual elas formam o princípio determinante da von- nesse exempld, uma relação causal está ainda implicada na re-
tade [... ] é de uma só e mesma espécie, não apenas enquan-
presentação como tal, embora se choque com uma outra cau-
to ele só pode ser conhecido empiricamente, mas também
salidade que vem contradizê-Ia. A superstição mostra suficien-
enquanto afeta uma só e mesma força vital"3.
Contra o racionalismo, Kant argumenta que os fins supre- temente que mesmo a consciência de nossa impotência "não
mos não são somente fins da razão, mas que a razão, ao co- pode frear nossos esforços"5. Enfim, a representação está em
locá-Ios, só se coloca a si mesma. Nos fins da razão, é a razão relação com o sujeito, enquanto tem sobre ele um efeito, en-
que se toma a si mesma como fim. Há, pois, interesses da quanto o afeta, intensificando ou entravando sua força vital.
razão, mas, além disso, a razão é o único juiz dos seus pró-
prios interesses. Os fins ou interesses da razão não são ajuizá- 4. CRP, Metodologia, "da impossibilidade em que fica a razão em
desacordo consigo mesma de encontrar a paz no ceticismo".
5. Cl, Introdução, § 3.
3. Crítica da razão prática (CRPr), Analítica, escólio I do teorema 2. ,d ~

12 13
Essa terceira relação define, como faculdade, o sentimento de rÍsticas do a priori são o universal e o necessário. Mas a de-
prazer e de dor. finição do a priori é: independente da experiência. Pode acon-
Talvez não haja prazer sem desejo, desejo sem prazer, tecer que o a priori se aplique à experiência e, em certos casos,
prazer e desejo sem conhecimento ... , etc. Mas a questão não f~ I aplique-se somente a ela; mas dela não deriva. Por definição,
é essa. Não se trata de saber quais são as combinações de fato. não há experiência que cOlTesponda às palavras "todos", "sem-
Trata-se de saber se cada uma dessas faculdades, tal como é pre", "necessariamente". " O mais curto não é- um compara-
definida de direito, é capaz de uma forma superior. Diz-se que
tivo ou o resultado de uma indução, mas uma regra a priori,
uma faculdade tem uma forma superior quando encontra em
si mesma a lei do seu próprio exercício (mesmo se dessa lei pela qual produzo uma linha como linha reta. Causa tampouco
decorre uma relação necessária com uma das outras faculda- é o produto de uma indução, mas um conceito a priori, pelo
des). Sob sua forma superior, uma faculdade é, pois, autônoma. qual reconheço na experiência alguma coisa que acontece.
A Crítica da razão pura começa por perguntar: há uma facul- Enquanto a síntese é empÍrica, a faculdade de conhecer
dade de conhecer superior? A Crítica da razão prática: há uma aparece sob sua forma inferior; ela encontra sua lei na expe-
faculdade de desejar superior? A Crítica do juízo: há uma for- riência e não em si mesma. Mas a síntese a priori define uma
ma superior do prazer e da dor? (Por muito tempo, Kant não faculdade de conhecer superior. Esta, com efeito, não se regula
acreditou nessa última possibilidade.)
mais por objetos capazes de lhe prescrever uma lei; ao contrá-
rio, é a síntese a priori que atribui ao objeto uma propriedade
que não estava contida na representação. É necessário, pois,
que o próprio objeto seja submetido à síntese de representação,
FACULDADE DE CONHECER SUPERIOR que se regule, ele próprio, pela nossa faculdade de conhecer
e não o inverso. Quando a faculdade de conhecer encontra em
si mesma sua própria lei, é ela então que legisla sobre os obje-
Uma representação não basta, por si mesma, para formar tos de conhecimento.
um conhecimento. Para conhecer alguma coisa, é necessário É por isso que a determinação de uma forma superior da
não só que tenhamos uma representação, mas que saiamos faculdade de conhecer é, ao mesmo tempo, a determinação de
dela "para reconhecer uma outra como lhe estando ligada". um interesse da Razão: "Conhecimento racional e conhecimen-
O conhecimento é, pois, síntese de representações. "Pen- to a priori são coisas idênticas", ou os próprios juÍzos sintéti-
samos encontrar fora do conceito A um predicado B que é cos a priori são princípios daquilo que se deve chamar "as
estranho a esse conceito, mas que acreditamos dever unir a
ciências teoré!icas da razão"6. Um interesse da razão se define
esse mesmo conceito"; afirmamos sobre o objeto de uma re-
por aquilo pelo que a razão se interessa em função do estado
presentação alguma coisa que não está contida nessa represen-
tação. Ora, uma tal síntese se apresenta de dois modos: a pos- 5uperior de uma faculdade. A Razão experimenta naturalmente
teriori, quando ela depende da experiência. Se eu digo "esta um interesse especulativo; e ela o experimenta pelos objetos
linha reta é branca", trata-se de um encontro entre duas de- que são necessariamente submetidos à faculdade de conhecer
terminações indiferentes: toda linha reta não é branca e aquela sob sua forma superior.
que o é, não o é necessariamente. !
Se perguntamos agora: quais são esses objetos? Vemos,
Ao contrário, quando digo: ~ linha reta é o caminho I imediatamente, que seria contraditório responder "as coisas em
mais curto", "tudo o que muda tem uma causa", opero uma si". Como uma coisa, tal como é em si, poderia estar subme-
síntese a priori: afirmo B de A como lhe estando necessária
e universalmente ligado. (B é pois, ele próprio, uma represen-
tação a priori; quanto a A, pode sê-Io ou não.) As caracte- li 6. CRPr, Prefácio; CRP, Introdução, 5.
H(
14 15
li
lt,
.u.
tida à nossa faculdade de conhecer e também regulá-Ia? Só o ! dela mesma, em uma matéria ou em um objeto, mas em si
podem, em princípio, os objetos tais como aparecem, isto é, mesma: ela é considerada autônomas.
os "fenômenos". (Assim, na Crítica da razão pura, a síntese
!~
d,1

Na lei moral, é a razão por si mesma (sem a mediação


a priori é independente da experiência, mas só se aplica aos I de um sentimento de prazer ou de dor) que determina a von-
objetos da experiência.) Vê-se, pois, que o interesse especula- tade. Há, pois, um interesse da razão, correspondente à facul-
tivo da razão dirige-se naturalmente aos fenômenos, e só a I dade de desejar superior; interesse prático, que não se con-
eles. Não se deve pensar que Kant tenha necessitado de longas funde nem com um interesse empírico, nem com o interesse
demonstrações para chegar a esse resultado: é um ponto de
partida da Crítica; o verdadeiro problema da Crítica da razão especulativo. Kant não se cansa de lembrar que a Razão prá-
pura começa para além disso. Se só houvesse o interesse espe- tica é profundamente "interessada". Pressentimos, a partir dis-
culativo, seria muito duvidoso que a razão se envolvesse, em so, que a Crítica da razão prática vai-se desenvolver paralela-
qualquer momento, em considerações sobre as coisas em si. mente à Crítica da razão pura: trata-se de saber, primeira-
mente, qual é a natureza desse interesse e qual é seu objeto.
Ou seja: a faculdade de desejar, encontrando em si mesma sua
própria lei, qual o objeto dessa legislação? Quais são os seres
ou os objetos que se encontram submetidos à síntese prática?
FACULDADE DE DESEJAR SUPERIOR Não se exclui entretanto que, apesar do paralelismo das ques-
tões, a resposta seja aqui muito mais complexa que no caso
precedente. Que nos permitam pois, deixar para mais tarde o
A faculdade de desejar supõe uma representação que de- exame dessa resposta. (Mais ainda: permitam-nos, provisoria-
termina a vontade. Mas, neste caso, será suficiente invocar a mente, não examinar a questão de uma forma superior do
existência de representações a priori para que a síntese da prazer e da dor, porque o próprio sentido desta questão supõe
as duas outras Críticas.)
vontade e da representação seja, ela própria, a priori? Na ver-
dade, o problema coloca-se de modo bem diferente. Mesmo Basta-nos reter o princípio de uma tese essencial da Crí-
quando uma representação é a priori, ela determina a vontade tica em geral: há interesses da razão que diferem em natureza.
por meio de um prazer ligado ao objeto que ela representa: Esses interesses formam um sistema orgânico e hierarquizado,
a síntese permanece, pois, empírica ou a posteriori; a vontade, que é o dos fins do ser racional. Ocorre que os racionalistas
determinada de modo "patológico"; a faculdade de desejar, em só atentam para o interesse especulativo: os interesses práti-
um estado inferior. Para que ela atinja a sua forma superior, cos parecem apenas decorrer do interesse especulativo. Mas
é preciso que a representação deixe de ser uma representação essa inflação do interesse especulativo tem duas conseqüências
de objeto, mesmo a priori. É preciso que ela seja a represen- funestas: gera, enganos sobre os verdadeiros fins da especula-
tação de uma pura forma. "Se de uma lei se retira por abstra- ção, mas, sobretudo, restringe a razão a um só dos seus inte-
ção toda matéria, isto é, todo objeto da vontade como prin- resses. Sob o pretexto de desenvolver o interesse especulativo,
cípio determinante, nada mais resta que a simples forma de mutila-se a razão em seus interesses mais profundos. A idéia
uma legislação universal."7 de uma pluralidade (e de uma hierarquia) sistemática dos inte-
A faculdade de desejar é, pois, superior e a síntese práti- resses, conforme o primeiro sentido da palavra "faculdade",
ca que lhe corresponde é a priori quando a vontade não é domina o método kantiano. Essa idéia é um verdadeiro prin-
cípio, princípio de um sistema dos fins.
mais determinada pelo prazer, mas pela simples forma da lei.
Então, a faculdade de desejar não encontra mais sua lei fora
8. Quanto à Critica da razão prática, ver a introdução de Alquié, na
fi edição da Presses Universitaires de France, e o livro de Vialatoux,
7. CRPr, Analítica, teorema 3. , na coleção "SUP - Iniciação filosófica".
'I

16 17
SEGUNDO SENTIDO DA PALAVRA
r
~,
prefixo: re-presentação implica uma retomada ativa do que se
FACULDADE
,
I, apresenta, logo uma atividade e uma unidade que se distin-
guem da passividade e da diversidade próprias à sensibilidade
como tal. Sob esse ponto de vista, não necessitamos mais de-
finir o conhecimento como uma síntese de representações. É
J

Em um primeiro sentido, faculdade remete às diversas j,

relações de uma representação em geral. Mas em um segundo a própria re-presentação que se define como conhecimento,
sentido, designa uma fonte específica de representações. Dis- isto é, como a síntese do que se apresenta.
tinguir-se-ão, pois, tantas faculdades quantas espécies houver Devemos distinguir, por um lado, a sensibilidade intuitiva
de representações. O quadro mais simples, do ponto de vista do como faculdade de recepção e, por outro lado, as faculdades
conhecimento, é o seguinte: 1 - Intuição (representação sin- ativas como fontes de verdadeiras representações. Tomada em
gular que se refere, imediatamente, li um objeto da experiência sua atividade, a síntese remete à imaginação,' em sua unidade,
e que tem a sua fonte na sensibilidade); 2 -- Conceito (re- ao entendimento; em sua totalidade, à razão. Temos, pois, três
presentação que se refere mediatamente a um objeto da expe- faculdades ativas que intervêm na síntese, mas que são também
riência, por intermédio de outras representações, e que tem a fontes de representações específicas, quando se considera cada
sua fonte no entendÍinento); 3 - Idéia (conceito que ultra- uma delas em relação à outra: a imaginação, o entendimento,
passa ele próprio a possibilidade da experiência e que tem a a razão. Nossa constituição é tal que temos uma faculdade re-
sua fonte na razão )9. ceptiva e três faculdades ativas. (Podemos supor outros seres,
Todavia, a noção de representação, tal como até agora diferentemente constituídos; por exemplo, um ser divino cujo
a empregamos, permanece vaga. De um modo mais preciso, entendimento fosse intuitivo e produzisse o diverso. Mas então,
devemos distinguir a representação e o que se apresenta. O todas as suas faculdades se reuniriam em uma unidade eminen-
que se apresenta a nós é primeiro o objeto tal como aparece. te. A idéia de tal Ser como limite pode inspirar nossa razão,
A palavra "objeto" é ainda demais no caso. O que se nos mas não exprime nossa razão nem a sua situação em relação
apresenta ou o que aparece na intuição, é primeiro o fenôme- às nossas outras faculdades.)
no enquanto diversidade sensível empírica (a posteriori). Vê-
se que em Kant fenômeno não quer dizer aparência, mas apa-
rição1o• O fenômeno aparece no espaço e no tempo: o espaço
e o tempo são para nós formas de toda aparição possível, as
formas puras da nossa intuição ou da nossa sensibilidade. En- RELAÇÃO ENTRE OS DOIS SENTIDOS
quanto tais são, por sua vez, presentações: nesse caso, pre- DA PALAVRA FACULDADE
sentações a priori. O que se apresenta não é, pois, somente a
diversidade fenomenal empírica no espaço e no tempo, mas
a diversidade pura a priori do espaço e do tempo enquanto
Consideremos uma faculdade no primeiro sentido; sob sua
tais. A intuição pura (o espaço e o tempo) é a única coisa
forma superior, ela é autônoma e legislativa; ela legisla sobre
que a sensibilidade apresenta a priori. objetos que lhe são submetidos; corresponde-Ihe um interesse
A falar propriamente, não se dirá que a própria intuição
da razão. A primeira questão da Crítica em geral era, pois;
a priori seja uma representação, nem que a sensibilidade seja
quais são essas formas superiores, quais são esses interesses
uma fonte de representações. O que conta na representação é o
e a que se referem? Mas sobrevém uma segunda questão; como
se realiza um interesse da razão? Isto é: o que assegura a sub-
9. CRP, Dlalética, "sobre as idéias em geral". missão dos objetos, como são eles s~bmetidos? Que é que ver-
10. CRP, Estética, § 8 ("Eu não digo que os corpos aparentam apenas dadeiramente legisla na faculdade considerada? Será a imagi-
existir fora de mim ... Eu erraria se visse apenas uma pura apa-
rência, naquilo que deveria olhar como um fenômeno.") nação, será o entendimento ou a razão? Vê-se que se uma
faculdade é definida no seu primeiro sentido, de tal modo que
18 19
""

lhe corresponda um interesse da razão, devemos ainda procurar der uma determinada relação entre faculdades no segundo sen-
uma faculdade no segundo sentido, capaz de realizar esse inte- tido da palavra (imaginação, entendimento, razão). É assim
resse ou assegurar a tarefa legisladora. Em outros termos, nada que a doutrina das faculdades forma uma verdadeira rede
nos garante que a própria razão se encarregue de realizar o constitutiva do método transcendental.
seu próprio interesse.
Tome-se o exemplo da Crítica da razão pura. Esta co-
meça por descobrir a faculdade de conhecer superior, logo o
interesse especulativo da razão. Esse interesse refere-se aos fe-
nômenos; de fato, não sendo coisas em si, os fenômenos po-
dem ser submetidos à faculdade de conhecer; e devem sê-Ia
para que o conhecimento seja possível. Mas perguntamos, por
outro lado, qual é a faculdade, como fonte de representações,
que assegura essa submissão e realiza esse interesse. Qual é a
faculdade (no segundo sentido) que legisla na faculdade de
conhecer enquanto tal? A célebre resposta de Kant é que só
o entendimento legisla na faculdade de conhecer ou no inte-
resse especulativo da razão. Não é, pois, a razão que cuida
aqui do seu próprio interesse: "A razão pura abandona tudo
ao entendimento"ll.
Devemos prever que a resposta não será idêntica para
cada Crítica: assim, na faculdade de desejar superior, portanto
no interesse prático da razão, é a própria razão que legisla,
não deixando a ninguém mais o cuidado de realizar seu pró-
prio interesse.
A segunda questão da Crítica em geral comporta ainda
um outro aspecto. Uma faculdade legisladora, enquanto fonte
de representações, não suprime todo emprego das outras facul-
dades. Quando o entendimento legisla no interesse de conhe-
cer, a imaginação e a razão não deixam de ter um papel intei-
ramente original, mas conforme a tarefas determinadas pelo
entendimento. Quando a própria razão legisla no interesse prá-
tico, é o entendimento, por sua vez, que deve desempenhar
um papel original, em uma perspectiva determinada pela ra-
zão ... , etc. Segundo as várias Críticas, são diversas as rela-
ções entre entendimento, razão e imaginação, sob a presidência
de uma dessas faculdades. Há, pois, variações sistemáticas na
relação entre faculdades, conforme consideremos um ou outro
interesse da razão. Em resumo: à determinada faculdade no
primeiro sentido da palavra (faculdade de conhecer, faculdade
-de desejar, sentimento de prazer ou de dor), deve -correspon-

11. CRP, Dialética, "das idéias transcendentais". ,


20 21

1'1

1.
Capítulo 1 _
Relação das faculdades
na crítica da razão pura
A PRIORI E TRANSCENDENTAL

Os critérios do a priori são o necessário e o universal.


O a priori define-se como independente da experiência, mas
precisamente porque a experiência jamais nos "dá" algo que
seja universal e necessário. As palavras "todos", "sempre", "ne-
; cessariamente" ou mesmo "amanhã", não remetem a alguma
coisa da experiência: não derivam desta, mesmo quando a ela
se aplicam. Ora, quando nós conhecemos, empregamos essas
palavras: dizemos mais do que aquilo que nos é dado, ultra-
passamos os dados da experiência. - Falou-se muito da in-
fluência de Hume sobre Kant. Hume, de fato, foi o primeiro
a definir o conhecimento por uma tal ultrapassagem. Eu co-
nheço não quando constato "vi mil vezes o sol nascer", mas
quando enuncio "o sol nascerá amanhã", "todas as vezes que
a água atinge 100°, ela entra necessariamente em ebulição" ...
Kant pergunta primeiro: qual é o fato do conhecimento
(quid facti)? O fato do conhecimento é que temos representa-
ções a priori, (graças às quais formulamos juízos). Sejam sim-
ples "presentações": o espaço e o tempo, formas a priori da
intuição, intuições por sua vez a priori, que se distinguem das
presentações empíricas ou dos conteúdos a posteriori (por
exemplo, a cor vermelha). Sejam, propriamente, "representa-
ções": a substância, a causa, etc., conceitos a priori que se
distinguem dos conceitos empíricos (por exemplo, o conceito
de leão). A questão Quid facti? é o objeto da metafísica. Que
) o espaço e o tempo sejam presentações ou intuições a priori,
I
25
tal é o objeto do que Kant chama "a exposição metafísica" significa dizer que a subjetividade dos princípios não é uma
elo espaço e do tempo. Que o entendimento disponha de C011- subjetividade empírica ou psicológica, mas uma subjetividade
"transcendental" .
ceitos a priori (categorias) que se deduzem das formas do
juízo, tal é o objeto do que Kant chama "a dedução metafísi- Por esse motivo, à questão de fato sucede uma questão
ca" dos conceitos. mais elevada: questão de direito, quid juris? Não basta cons-
Se ultrapassamos o que nos é dado na experiência, é em tatar que, de fato, temos representações a priori. Ê necessário
virtude de princípios que são 110SS0S, princípios necessariamen- ainda que expliquemos por que e como essas representações
te subjetivos. O dado não pode fundar a operação pela qual se aplicam, necessariamente, à experiência, embora não deri-
ultrapassamos o dado. Não é suficiente, entretanto, que tenha- vem dela. Por que e como o dado que nos é apresentado na
mos princípios; é necessário ainda que tenhamos a ocasião experiência é necessariamente submetido aos mesmos princípios
de exercê-Ias. Eu digo "o sol nascerá amanhã", mas amanhã que os que regulam a priori nossas representações (submetidos,
não se torna presente sem que o sol efetivamente nasça. Per- portanto, às nossas próprias representações a priori)? Essa é a
deríamos logo a ocasião de exercer nossos princípios, se a pró- questão de direito. - A priori designa representações que não
pria experiência não viesse confirmar e preencher nossas ultra- derivam da experiência. Transcendental designa o princípio em
passagens. Ê preciso, pois, que o próprio dado da experiência virtude do qual a experiência é necessariamente submetida às
seja submeticlo a princípios do mesmo gênero que os princípios nossas representações a priori. Ê por isso que, à exposição me-
subjetivos que regulam nossas démarches. Se o sol ora nasces- tafísica do espaço e do tempo, sucede uma exposição trans-
cendental. E à dedução metafísica das categorias, uma dedu-
se, ora não nascesse; "se o cinabre fosse ora vermelho, ora
ção transcendental. "Transcendental" qualifica o princípio de
negro, ora leve, ora pesado; se um homem se transformasse
uma submissão necessária dos dados da experiência a nossas
ora em um animal, ora em outro; se, em um longo dia, a
representações a priori e, correlativamente, de uma aplicação
terra ora estivesse coberta de frutos, ora de gelo e neve, minha
necessária das representações (( priori à experiência.
imaginação empírica não teria oportunidade de receber no pen-
samento o pesado cinabre com a representação da cor verme-
lha ... "; "nossa imaginação empírica jamais teria algo a fazer
que estivesse conforme às suas possibilidades e, por conseguin-
te, permaneceria mergulhada no fundo do espírito, como uma A REVOLUÇÃO COPERNICANA
faculdade morta e desconhecida por nós mesmos"12.
Percebe-se em que ponto se dá a ruptura de Kant com
Hume. Hume vira perfeitamente que o conhecimento impli- No racionalismo dogmático, a teoria do conhecimento
cava princípios subjetivos, pelos quais ultrapassávamos o dado. fundava-se sàbre a idéia de uma correspondência entre o su-
Mas esses princípios lhe pareciam somente princípios da natu- jeito e o objeto, de um acordo entre a ordem das idéias e a
reza humana, prinCÍpios psicológicos de associação concernen- ordem das coisas. Esse acordo apresentava dois aspectos: im-
tes às nossas próprias representações. Kant transforma o pro- plicava em si mesmo uma finalidade e exigia um princípio
blema: o que nos é apresentado de modo a formar uma Na- teológico como fonte e garantia dessa harmonia, dessa finali-
tureza deve obedecer necessariamente a princípios do mesmo dade. Mas é curioso ver que, numa perspectiva totalmente di-
gênero (e mais: aos mesmos princípios) que os que regulam ferente, o empirismo de Hume tinha uma saída semelhante:
o curso de nossas representações. São os mesmos princípios para explicar que os princípios da Natureza estivessem de acor-
que devem explicar nossas démarches subjetivas e também o do com os da natureza humana, Hume foi forçado a invocar
fato de que o dado se submeta às nossas démarches. O que 0xplicitamente uma harmonia preestabelecida.
A idéia fundamental do que Kant chama a sua "revolu-
12. CRP, Analítica, 1~ 00., "da síntese da reprodução na imaginação". ção copernicana" consiste no seguinte: substituir a idéia de

26 27
uma harmonia entre o sujeito e o objeto (acordo final) pelo o diverso como. ocupando um certo espaço e um certo tempo,
princípio de uma submissão necessária do objeto ao sujeito. A pela qual "produzimos" partes no espaço e no tempo; a repro-
descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora dução, pela qual reproduzimos as partes precedentes, à medida
ou, mais precisamente, que há alguma coisa de legislador na fa- que chegamos às seguintes. A síntese assim definida não se
culdade de conhecer. (Assim como qualquer coisa de legislador refere somente à diversidade, tal como aparece no espaço e
na faculdade de desejar.) Dessa forma, o ser racional desco- no tempo, mas à diversidade do próprio espaço e do próprio
bre em si novas potências. A primeira coisa que a revolução tempo. Sem ela, com efeito, o espaço e o tempo não seriam
copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos. "representado.s" .
Há aí uma reviravolta na concepção antiga de Sabedoria: o Esta síntese, quer como apreensão, quer como reprodu-
sábio se definia, ora por suas próprias submissões, ora por seu ção, é sempre definida por Kant como um ato da imaginação13•
acordo "final" com a Natureza. Kant opõe a imagem crítica Mas, a questão é: será inteiramente correto dizer, como fize-
à sabedoria: nós, os legisladores da Natureza. Quando um fi- mos antes, que a síntese é suficiente para constituir o. conheci-
lósofo, aparentemente estranho ao kantismo, anuncia a substi- mento? Na verdade, o conhecimento implica duas coisas que
tuição de Jubere por Parere, deve mais a Kant do que poderia ultrapassam a própria síntese: implica a consciência ou, mais
supor. precisamente, o pertencer das representações a uma mesma
Poderia parecer que o problema da submissão do objeto consciência na qual elas devem estar ligadas. Ora, a síntese
pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idea- da imaginação, tomada em si mesma, não é, em absoluto, cons-
lismo subjetivo. Mas seria uma solução muito distante do kan- ciência de sj14.Por outro lado, o. conhecimento implica uma
tismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia críti- relação necessária com um objeto. O que constitui o conheci-
ca. Os fenômenos não são aparências, mas tampouco são pro- mento não é, simplesmente, o ato pelo qual se faz a síntese do
dutos de nossa atividade. Eles nos afetam enquanto somo.s su- diverso, mas o ato pelo qual se relaciona a um objeto o di-
jeitos passivos e receptivos. Podem nos ser submetidos, preci- verso representado (recognição: é uma mesa, é uma maçã, é
samente porque não são coisas em si. Mas como o são, se não tal ou tal objeto ... ).
são produzidos por nós? Como um sujeito passivo pode ter, Essas duas determinações do conhecimento têm uma pro-
por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as afec- funda relação. As minhas representações são minhas, na me-
ções que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a dida em que estão ligadas na unidade de uma consciência, de
essa faculdade? Em Kant, o problema da relação entre o su- tal modo que o "Eu penso" as acompanhe. Ora, as represen-
jeito e o objeto tende pois a se interiorizar: torna-se o proble- tações não se unem assim em uma consciência, sem que o
ma de uma relação entre faculdades subjetivas que diferem em diverso que elas sintetizam se relacione, por isso mesmo, a um
natureza (sensibilidade receptiva e entendimento ativo). objeto qualquer. Não há dúvida de que só conhecemos objetos
qualificados (qualificados como tal ou tal por uma diversida-
de). Mas nunca o diverso se relacionaria a um objeto se não
dispuséssemos da objetividade como de uma forma em geral
A SíNTESE E O ENTENDIMENTO
("objeto qualquer", "objeto = x"). De onde vem essa forma?
O objeto qualquer é o correlato do Eu penso ou da unidade
LEGISLADOR da consciência, é a expressão do Cogito, sua objetivação for-

13. CRP, Analítica, passim (cf. 1~ed., "da relação do entendimento


Representação quer dizer síntese do. que se apresenta. A com os objetos em geral": "Há uma faculdade ativa que opera
a síntese dos elementos diversos: nós a chamamos de imaginação;
síntese consiste, portanto, no seguinte: uma diversidade é repre- e eu chamo de apreensão sua ação que se exerce imediatamente
sentada, isto é, posta como encerrada em uma representação. nas percepções".)
A síntese tem dois aspectos: a apreensão, pela qual colocamos 14. CRP, Analítica, § 10.

28 29
mal. Do mesmo modo, a verdadeira fórmula (sintética) do não de uma dedução; e sua exposição transcendental, compa-
Cogito é: eu me penso e, ao me pensar, penso o objeto qual- rada a uma exposição metafísica, não suscita qualquer dificul-
quer ao qual relaciono uma diversidade representada. dade particular. Não se pode, pois, dizer que os fenômenos
A forma do objeto não remete à imaginação, mas ao sejam "submetidos" ao espaço e ao tempo; não só porque a
entendimento: "Afirmo que o conceito de um objeto em geral, sensibilidade é passiva, mas sobretudo porque ela é imediata;
que não se poderia encontrar na mais clara consciência da a idéia de submissão implica, ao contrário, a intervenção de
intuição, pertence ao entendimento como a uma faculdade par- um mediador, isto é, de uma síntese que relaciona os fenôme-
ticular"15. Todo o uso do entendimento desenvolve-se, com nos a uma faculdade ativa capaz de ser legisladora.
efeito, a partir do Eu penso; além disso, a unidade do Eu pen- A imaginação não é, pois, faculdade legisladora. A imagi-
so "é o próprio entenclimento"16. O entendimento dispõe de nação encarna precisamente a mediação, opera a síntese que re-
conceitos a priori chamados categorias; se perguntamos como laciona os fenômenos ao entendimento C01110 à única faculdade
as categorias são definidas, vemos que elas são, ao mesmo que legisla no interesse de conhecer. Por isso é que Kant escre-
tempo, representações da unidade da consciência e, corno tais, veu: "A razão pura abandona tudo ao entendimento, e este
predicados de um objeto qualquer. Por exemplo, todo objeto sc aplica imediatamente aos objetos da intuição, ou melhor, à
não é vermelho e, o que o é, não o é necessariamente; mas síntese desses objetos na imaginação"18. Os fenômenos não são
não há objeto que não seja necessariamente substância, causa submetidos à síntese da imaginação, são submetidos, por esta
e efeito de outra coisa, que não esteja, em relação recíproca síntese, ao entendimento legislador. Ao contrário do espaço e
com outra coisa. A categoria dá, pois, à síntese da imaginação do tempo, as categorias como conceitos do entendimento cons-
urna unidade sem a qual esta não nos proporcionaria um co- tituem o objeto de uma dedução transcendental, que coloca e
nhecimento propriamente dito. Em resumo, podemos dizer o resolve o problema particular de uma submissão dos fenômenos.
que se aplica ao entendimento: não é a própria síntese, é antes Eis como, em suas linhas gerais, este problema é resolvi-
a unidade da síntese e as expressões dessa unidade. do: 19 - Todos os fenômenos se dão no espaço e no tempo;
A tese kantiana é: os fenômenos são necessariamente sub- 29 - A síntese a priori da imaginação refere-se a priori ao
metidos às categorias, de tal modo que, pelas categorias, somos espaço e ao tempo; 39 - Os fenômenos são, pois, necessa-
os verdadeiros legisladores da Natureza. Mas a questão, de riamente submetidos à unidade transcendental desta síntese e
início, é: por que é precisamente o entendimento (~ não a às categorias que a representam a priori. É neste sentido que
imaginação) que é legislador? Por que é o entendimento que o entendimento é legislador: não nos diz, certamente, a que
legisla na faculdade de conhecer? - Para encontrar a respos- leis estes ou aqueles fenômenos obedecem do ponto de vista
ta dessa pergunta talvez baste comentar os seus termos. É evi- de sua matéria, mas constitui as leis a que todos os fenômenos
dente que não poderíamos perguntar: por que os fenômenos se snbmetem do ponto de vista de sua forma, de tal modo que
são submetidos ao espaço e ao tempo? Os fenômenos são aqui- "formam" umq. Natureza sensível em ger<l1.
lo que aparece, c aparecer é estar imediatamente no espaço
e no tempo. "Como é unicamente por meio dessas formas puras
da sensibilidade que uma coisa pode nos aparecer, isto é, tor-
nar-se um objeto da intuição empÍrica, o espaço e o tempo PAPEL DA IMAGINAÇÃO
são puras intuições que contêm a priori a condição da possi-
bilidade dos objetos como fenômenos."17 É por isso que o es-
paço e o tempo constituem o objeto de uma "exposição" e
Pergunta-se agora o que faz o entendimento legislador
com seus conceitos ou suas unidades de síntese. Ele julga: "O
15. Carta a Herz, 26 de maio de 1789.
16. CRP, Analítica, § 16.
17. CRP, Analítica, § 13. 18. CRP, Dialética, "das idéias transcendentais".

30 31
I

entendimento não pode fazer desses conceitos outro uso que de maneira silogística: sendo dado um conceito do entendi-
o de julgar por seu intermédio"19. Pergunta-se ainda: que faz a mento, a razão busca um meio-termo, isto é, um outro con-
1
imaginação com as suas sínteses? Segundo a célebre resposta I( ceito que, tomado em toda sua extensão, condiciona a atri-
de Kant, a imaginação esquematiza. Não se deve confundir, buição do primeiro conceito a um objeto (assim, homem con-
pois, na imaginação, a síntese e o esquema. O esquema supõe III diciona a atribuição de "mortal" a Caio). Deste ponto de vista,
a síntese. A síntese é a determinação de um certo espaço e de é portanto em relação aos conceitos do entendimento que a
1'\1
um certo tempo, pela qual a diversidade é relacionada ao obje- li;!
razão exerce seu gênio próprio: "A razão chega a um conheci-
to em geral, conforme às categorias. Mas o esquema é uma mento por meio de atos do entendimento que constituem uma
determinação espaço-temporal correspondente ela própria à ca- série de condições"2o. Mas, precisamente, a existência de con-
tegoria, em qualquer tempo e em qualquer lugar: o esquema ceitos a priori do entendimento (categorias) coloca um pro-
não consiste em uma imagem, mas em relações espaço-tempo-
blema particular. As categorias se aplicam a todos os objetos
rais, que encarnam ou realizam relações propriamente concei- da experiência possível; para encontrar um meio-termo que
tu ais. O esquema da imaginação é a condição sob a qual o
fundamente a atribuição do conceito a priori para todos os
entendimento legislador formula juízos com os seus conceitos,
objetos, a razão não pode mais dirigir-se a um outro conceito
juízos que servirão de princípios a todo conhecimento do diver- (mesmo a priori), mas deve formar Idéias que ultrapassem a
so. Ele não responde à pergunta: como os fenômenos são sub-
metidos ao entendimento? mas a esta outra: como o entendi- possibilidade da experiência. Ê assim que a razão é induzi da,
mento se aplica aos fenômenos que lhe são submetidos? de certa forma, a partir de seu prQprio interesse especulativo,
Que relações espaço-temporais possam ser adequadas a a formar Idéias transcendentais. Estas representam a totalidade
relações conceituais (apesar de sua diferença de natureza) con- das condições sob as quais atribui-se uma categoria de relação
aos objetos da experiência possível; elas representam, portanto,
siste, segundo Kant, em um profundo mistério e uma arte ocul-
ta. Mas não se deve pensar, a partir dessas palavras, que o
esquematismo seja o ato mais profundo da imaginação ou a .1
I algo de incondiciona[21. Assim, o sujeito absoluto (Alma) em
relação à categoria de substância, a série completa (Mundo) I

sua arte mais espontânea. O esquematismo é um ato original em relação à categoria de causalidade, o todo da realidade
da imaginação: só ela esquematiza. Mas ela só esquematiza (Deus como ens realissimum) em relação à comunidade.
I
quando o entendimento preside ou tem o poder legislador. Ela Aí ainda vê-se que a razão desempenha um papel que
só esquematiza por um interesse especulativo. Quando o enten- só ela é capaz de realizar; mas pode-se dizer que ela está I

dimento se encarrega do interesse especulativo, quando se tor- determinada a desempenhar esse papel. "A razão só tem pro-
na, portanto, determinante, então e só então a imaginação priamente por objeto o entendimento e seu emprego em con-
é determinada a esquematizar. Veremos mais adiante as con- formidade com seu fim."22 Subjetivamente, as Idéias da razão I11

seqüências dessa situação. se referem aos' conceitos do entendimento para lhes conferir I

ao mesmo tempo um máximo de unidade e de extensão siste-


máticas. Sem a razão, o entendimento não reuniria em um todo
PAPEL DA RAZÃO o conjunto de suas démarches relativas a um objeto. Ê por
isso que a razão, no momento mesmo em que abandona ao
entendimento o poder legislador no interesse do conhecimento,
O entendimento julga, mas a razão raciocina. Ora, de acor- ainda conserva um papel, ou melhor recebe de volta, do pró-
do com a doutrina de Aristóteles, Kant concebe o raciocínio
'li

I 20. CRP, Dialética, "das idéias transcendentais".


19. CRP, Analítica, "do uso lógico do entendimento em geral".
A questão de saber se o juízo implica ou forma uma faculdade 21. CRP, ibid.
particular será examinada no capítulo IH. 22. CRP, Dialética, apêndice, "do uso regulador das idéias".
~
32 ~:,

~,
i;

33
J~
prio entendimento, uma função original: constituir focos ideais Kant; ela tem um valor objetivo, possui um objeto; mas este
fora da experiência, em direção aos quais possam convergir objeto é ele próprio "indeterminado", "problemático". lnde-
os conceitos do entendimento (máximo de unidade); formar
terminada em seu objeto, determinável por analogia com os
horizontes superiores que reflitam e abranjam os conceitos do objetos da experiência, apresentando o ideal de uma determi~
entendimento (máximo de extensão )23. "A razão pura aban~ nação infinita em relação aos conceitos do entendimento: são
dona tudo ao entendimento, que se aplica imediatamente aos
esses os três aspectos da Idéia. A razão não se contenta, pois,
objetos da intuição, ou melhor, à síntese desses objetos na ima- em raciocinar em relação aos conceitos do entendimento, ela
ginação. Ela se reserva somente à absoluta totalidade no uso "simboliza" em relação à matéria dos fenômenos26.
dos conceitos do entendimento, e procura estender a Unidade
sintética concebida na categoria até o incondicional absoluto."24
Objetivamente também, a razão tem um papel. Pois o
entendimento só pode legislar sobre os fenômenos do ponto de
vista da forma. Ora, suponhamos que os fenômenos sejam PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE AS
formalmente submetidos à unidade da síntese, mas que eles FACULDADES: O SENSO COMUM
apresentem, do ponto de vista de sua matéria, uma diversidade
radical: o entendlmento, nesse caso, não teria ocasião de exer~ I
cer seu poder (desta vez: a ocasião material). "Não haveria I
As três faculdades ativas (imaginação, entendimento, ra-
mesmo mais conceito de gênero, ou conceito geral, e, conse- zão) entram assim em uma certa relação, que é função do
qüentemente, entendimento."25 É preciso, portanto, que não so~ ! interesse especulativo. É o entendimento que legisla e que julga;
mente os fenômenos do ponto de vista da forma sejam subme~ mas, sob o entendimento, a imaginação sintetiza e esquema ti-
tidos às categorias, mas que os fenômenos do ponto de vista da za, a razão raciocina e simboliza, de maneira a que o conheci-
matéria simbolizem ou correspondam às Idéias da razão. Uma 11
mento alcance um máximo de unidade sistemática. Ora, todo
harmonia e uma finalidade são reintroduzidas neste nível. Mas
acordo entre as faculdades define o que se pode chamar de
vê-se que aqui a harmonia é simplesmente postulada entre a '\I senso comum.
matéria dos fenômenos e as Idéias da razão. Não se trata de
"Senso comum" é uma expressão perigosa, bastante mar~
dizer que a razão legisla sobre a matéria dos fenômenos. Ela cada pelo empirismo. Também não se deve defini-Ia como nm
deve supor uma unidade sistemática da Natureza, deve colocar
essa unidade como problema ou como limite, e regular todas "senso" particular (uma faculdade particular empírica). Desig-
as suas démarches sobre a idéia deste limite até o infinito. A na, ao contrário, um acordo a priori das faculdades ou, mais
precisamente, o "resultado" de tal acordo27. A partir desse pon-
razão é, pois, a faculdade que diz: tudo se passa como se...
Ela não afirma em absoluto que a totalidade e a unidade das to de vista, o senso comum aparece, não como um dado psi-
cológico, mas €omo a condição subjetiva de toda "comunica~
condições sejam dadas no objeto, mas somente que os objetos
bilidade". O conhecimento implica um senso comum, sem o
nos permitem tender para essa unidade sistemática como para qual ele não 'seria comunicável e não poderia pretender a uni-
o mais elevado grau de nosso conhecimento. Assim, os fenô-
versalidade. - Jamais, nesta acepção, Kant renunciará ao prin-
menos em sua matéria correspondem às Idéias, e as Idéias à
cípio subjetivo de um senso comum, isto é, à Idéia de uma
matéria dos fenômenos; mas, em lugar de uma submissão ne-
cessária e determinada, temos aqui apenas uma correspondên- boa natureza das faculdades, de uma natureza sadia e justa
que permita às faculdades entrar em acordo umas com as
cia, um acordo indeterminado. A Idéia não é uma ficção, diz
26.
A teoria do simbolismo só aparecerá na Crítica do juizo. Mas "a
23. 'CRP, ibid. analogia", tal como é descrita no "apêndice à Dialética" da Crítica
24. CRP, Dialética, "das idéias transcendentais". da razão pura, é o primeiro esboço dessa teoria.
25. CRP, Dialética, apêndice, "do uso regulador das idéias". 27. CI, § 40.

34
35
outras e formar proporções harmoniosas. "A mais alta filoso- um senso comum como resultado desse acordo; a Crítica em
fia, em relação aos fins essenciais da natureza humana, não geral exige um princípio do acordo como uma gênese do senso
pode levar mais longe do que a direção apontada pelo senso comum. (Este problema de uma harmonia das faculdades é tão
comum." Mesmo a razão, do ponto de vista especulativo, goza importante que Kant tem tendência a reinterpretar a história
de uma boa natureza que lhe permite estar em acordo com as da filosofia a partir dessa perspectiva: "Estou persuadido de
outras faculdades: as Idéias "nos são dadas pela natureza de que Leibniz, com sua harmonia preestabelecida que ele esten-
nossa razão, e é impossível que esse tribunal supremo de todos dia a tudo, não pensava na harmonia entre dois seres distintos,
os direitos e de todas as pretensões de nossa especulação encer- o ser sensível e o ser inteligível, mas numa harmonia entre
re em si mesmo ilusões e influências originais"28. duas faculdades de um só e único ser no qual sensibilidade e
Procuremos, em princípio, as implicações desta teoria do entendimento estão de acordo para um conhecimento de expe-
senso comum, mesmo que elas suscitem um problema comple- riência"29. Mas esta reinterpretação é, ela própria, ambígua:
xo. Um dos pontos mais originais do kantismo é a idéia de parece indicar que Kant invoca um princípio supremo finalista
uma diferença de natureza entre nossas faculdades. Esta dife- e teológico, da mesma maneira que seus antecessores. "Se nós
rença de natureza não aparece somente entre a faculdade de quisermos pensar sobre a origem dessas faculdades, embora tal
conhecer, a faculdade de desejar e o sentimento de prazer e pesquisa esteja completamente fora dos limites da razão hu-
de dor, mas também entre as faculdades como fontes de re- mana, não podemos indicar outro fundamento senão nosso di-
presentações. Sensibilidade e entendimento diferem em natu- vino criador."30)
reza, uma como faculdade de intuição, a outra, como facul- Entretanto. consideremos mais atentamente o senso co-
dade de conceitos. Aqui ainda, Kant se opõe ao mesmo tempo mum sob sua forma especulativa (sensus communis IOf!icus).
ao dogmatismo e ao empirismo que, cada um a sua maneira, Ele exprime a harmonia das faculilHoes no interesse esnecula-
afirmavam uma simples dIferença de grau (seja diferença de tivo da razão, isto é, sob a presidência do entendimento. O
clareza, a partir do entendimento; seja diferença de vivacida- acordo entre as faculdades é aqui determinado nelo entendi-
de, a partir da sensibilidade). Mas nesse caso, para explicar mento ou, o que vem a dar no mesmo, faz-se sob os conceitos
como a sensibilidade passiva entra em acordo com o entendi- determinados do entendimento. Devemos prever aue. do ponto
mento ativo, Kant invoca a síntese e o esquematismo da ima- de vista de um outro interesse da razão. as facnldadesentram
ginação que se aplica a priori às formas da sensibilidade em em uma outra relacão, sob a determinação de uma outra fa-
conformidade com os conceitos. Mas assim, o problema está culdade, de maneira a formar um outro senso comum: por
apenas deslocado: pois a imaginação e o entendimento dife- exemplo, um senso comum moral, sob a presidência da própria
rem eles mesmos em natureza, e o acordo entre essas duas razão. Por isso Kant diz ser o acordo entre as faculdades capaz
faculdades ativas não é menos "misterioso". (Da mesma for- de várias proporções (segundo seja tal ou tal faculdade que
ma, o acordo entendimento-razão.) determine a relação) 31. Mas, cada vez que nos colocamos
Parece que Kant está diante de uma dificuldade perigosa. assim, do ponto de vista de uma relação ou de um acordo
Vimos que ele recusava a idéia de uma harmonia preestabele- já determinado, já especificado, é fatal que o senso comum
cida entre o sujeito e o objeto: ele a substituía pelo princípio nos pareça uma espécie de fato a priori, além do qual não
de uma submissão necessária do objeto ao próprio sujeito. Mas podemos ir.
não reencontraria a idéia de harmonia, simplesmente transpos- Pode-se perfeitamente dizer que as duas primeiras Críticas
ta para o nível das faculdades do sujeito que diferem em na- não podem resolver o problema originário da relação entre
tureza? Sem dúvida, essa transposição é original. Mas não é
suficiente invocar um acordo harmonioso das faculdades, ou
29. Carta a Herz, 26 de maio de 1789.
30. Carta a Herz, 26 de maio de 1789.
28. CRP, Dialética, apêndice, "do objetivo final da dialética". 31. Cl, § 21.

36 37
as faculdades, mas somente indicá-l o, e nos remeter a esse pro- lembrada por Kant a tese de que há ilusões internas e usos
blema como a uma tarefa última. Todo acordo determinado ilegítimos das faculdades. Acontece à imaginação sonhar, em
supõe com efeito que as faculdades, mais profundamente, sejam lugar de esquematizar. Mais do que isso, em lugar de se apli-
capazes de um acordo livre e indeterminad032• É somente ao car exclusivamente aos fenômenos ("uso experimental"), o
nível desse acordo livre e indeterminado (sensus communis entendimento pretende às vezes aplicar seus conceitos às coisas
aestheticus) que poderá ser colocado o problema de um fun- tais como são em si ("uso transcendental"). E isso ainda não
damento do acordo ou de uma gênese do senso comum. Eis é o mais grave. Em lugar de se aplicar aos conceitos do enten-
: ;[ porque não devemos esperar da Crítica da razão pura ou da dimento ("uso imanente ou regulador"), há ocasiões em que
Crítica da razão prática resposta a uma questão que só assu- a razão quer aplicar-se diretamente a objetos e legislar no
I i'
mirá seu verdadeiro sentido na Crítica do juízo. No que diz domínio do conhecimento ("uso transcendente ou constituti-
respeito a um fundamento para a harmonia das faculdades, as vo"). Por que isto é o mais grave? O uso transcendental do
duas primeiras Críticas só encontram sua conclusão na última. entendimento supõe apenas que este se abstraia de sua relação
I
com a imaginação. Ora, esta abstração s6 teria efeitos nega-
tivos. se o entendimento não fosse conduzido pela razão que
lhe dá a ilusão de um domínio positivo a ser conquistado fora
USO LEGíTIMO, USO ILEGíTIMO da experiência. Como diz Kant, o uso transcendental do enten-
dimento aparece somente porque este nef?lif?enciaseus pr6prios
limites, enquanto que o uso transcendente da razão nos impõe
ultrapassar os limites do entendiment033•
1Q - Somente os fenômenos podem ser submetidos à Neste sentido. o título Crítica da razão pura encontra
faculdade de conhecer (seria contradit6rio que as coisas em si sua justificativa: Kant denuncia as ilusões especulativas da
o fossem). O interesse especulativo refere-se naturalmente aos
fenômenos; as coisas em si não são obieto de um interesse Razão, os falsos-problemas a que nos conduz, sobre a alma,
especulativo natural. 2Q - Como exatamente os fenômenos o mundo e Deus. Ao conceito tradicional de erro (o erro como
são submetidos à faculdade de conhecer e a que, nessa facul- produto, no espírito, de um determinismo externo). Kant subs-
dade? Eles são submetidos, pela síntese da imaginacão, ao en- titui pelo de falsos-problemas e ilusões internas. Essas ilusões
são consideradas inevitáveis. e até mesmo resultam da natureza
tendimento e a seus conceitos. É portanto o entendimento que
legisla na faculdade de conhecer. Se a razão é assim levada a da razã034• Tudo o que a Crítica pode fazer é coniurar os efei-
abandonar ao entendimento o cuidado com seu próprio inte- tos da ilusão sobre o pr6nrio conhecimento. mas não pode,
resse especulativo, é porque ela pr6pria não se an]ica aos fe- em absoluto, impedir sua formação na faculdade de conhecer.
nômenos e forma Idéias que ultrapassam a possibilidade da Tocamos agora num problema que diz respeito diretamen-
experiência. 3Q - O entendimento legisla sobre os fenôme- te à Crítica da razão pura. Como conciliar a idéia das ilusões
nos do ponto de vista de sua forma. Como tal. ele se anlica internas da razão ou do uso ilegítimo das faculdades, com esta
e deve aplicar-se exclusivamente àquilo que está submetido a outra idéia, não menos essencial ao kantismo: que nossas fa-
ele: ele não nos dá qualquer conhecimento sobre as coisas tais culdades (inclusive a razão) são dotadas de uma boa natureza
como são em si. (; estão de acordo umas com as outras no interesse especulati-
Esta explicação não dá conta de um dos temas funda- vo? De um lado, sabemos que o interesse especulativo da ra-
mentais da Crítica da razão pura. A títulos diversos, o enten- zão refere-se natural e exclusivamente aos fenômenos; de outro
dimento e a razão são profundamente atormentados pela ambi-
ção de nos fazer conhecer as coisas em si. É constantemente
33. CRP, Dialética, "Cla aparência transcendental".
34, CRP, Dialética, "dos raciocínios dialéticos da razão pura" e
32. Ibid. "apêndice",

38 39
lado, que não se pode impedir que a razão sonhe com um no estado civil perfeit037• A Crítica é precisamente a instaura-
conhecimento das coisas em si, e que se "interesse" por elas ção desse estado civil: como o contrato dos juristas, ela impli-
do ponto de vista especulativo. ca uma renúncia da razão, do ponto de vista especulativo.
Examinemos mais rigorosamente os dois principais usos Mas, quando a razão renuncia, o interesse especulativo não
ilegítimos. O uso transcendental consiste em que o entendimen- deixa de ser seu pr6prio interesse, e ela realiza plenamente a
to pretende conhecer algo em geral (portanto, independente- lei de sua própria natureza.
mente das condições da sensibilidade). Conseqüentemente, este No entanto, esta resposta não é suficiente. Não basta re-
algo só pode ser a coisa tal como é em si; e só pode ser lacionar as ilusões ou perversões ao estado da natureza, e a
pensado como supra-sensível (noumeno). Mas, na verdade, é sadia constituição ao estado civil ou mesmo à lei natural. Pois
impossível que um tal noumeno seja um objeto positivo para as ilusões subsistem sob a lei natural, no estado civil e crítico
nosso entendimento. Nosso entendimento tem bem por corre- da razão (mesmo quando elas não têm mais o poder de nos
lato a forma de um objeto qualquer ou o objeto em geral; enganar). Uma única saída se abre então: é que a razão. por
mas, precisamente, este não é objeto do conhecimento senão outro lado, experimenta um interesse propriamente legítimo e
enquanto qualificado por uma diversidade que lhe atribuímos natural em relacão às coisas em si, mas um interesse que não
sob as condições da sensibilidade. Um conhecimento do objeto é esoeculativo. Como os interesses da razão não permanecem
em geral, que não estaria restringido às condições de nossa indiferentes uns aos outros, mas formam um sistema hierarqui-
sensibilidade, é simplesmente um "conhecimento sem objeto". zado, é inevitável que a sombra do interesse mais elevado se
"O uso puramente transcendental das categorias não é de fato proiete sobre o outro. Nesse caso, mesmo a ilusão toma um
[ :

um uso, e não tem um objeto determinado e nem mesmo um sentido positivo e bem fundado, a partir do momento em que
objeto determinável quanto à forma."85 ela deixa de nos enganar: exprime a seu modo a subordinação
do interesse especulativo em um sistema de fins. Jamais a
O uso transcendente consiste em que a r~'lão nretende por
razão especulativa se interessaria pelas coisas em si se elas não
ela mesma conhecer alfw de determinado. (Ela determina um
fossem verdadeiramente o objeto de um outro interesse da r~-
obieto como correspondendo à Idéia.) Para ter uma formula- zã038• Devemos pois perguntar: Qual é este interesse mais ele-
ção aparentemente inversa do uso transcendental do entendi- vado? (E é precisamente porque o interesse especulativo não
mento, o uso transcendente da razão chega ao mesmo resul- é o mais elevado, que a razão pode recorrer ao entendimento
tado: só podemos determinar o obieto de uma Idéia sunondo na legislação da faculdade de conhecer.)
que ele existe em si em conformidade com as catel!oriass6•
Além disso, é esta suposicão que conduz o prónrio entendi-
mento a seu uso transcendental ilegítimo, inspirando-lhe a ilu-
são de um conhecimento do objeto.
Por melhor que seja sua natureza, é penoso para a razão
ter que se desobrigar do cuidado com seu prónrio interesse
especulativo e confiar ao entendimento o poder lel!Íslador. Mas,
neste sentido, observa-se que as ilusões da razão triunfam, so-
bretudo enquanto esta permanece no estado de natureza. Ora,
não se deve confundir o estado de natureza da razão com seu
estado civil, nem mesmo cOm sua lei natural que se realiza

35. CRP, Analítica, "do princípio da distinção de todos os objetos em 37. CRP, Metodologia, "disciplina da razão pura com relação a seu
geral em fenômenos e noumenos". uso polêmico".
36. CRP, Dialética, "do objetivo final da dialética natural". 38. CRP, Metodologia, "do objetivo final do uso puro de nossa razão".

40 41
I,'
A RAZÃO LEGISLADORA

Vimo~ que a faculdade de desejar era capaz de uma forma


superior: uma vez que era determinada não por representações

I de objetos (sensíveis ou intelectuais), não por um sentimento


de prazer ou de dor que ligaria representações desse gênero
à vontade, mas pela representação de uma pura forma. Esta
forma pura é a de uma legislação universal. A lei moral não
se apresenta como um universal comparativo e psicológico (por
exemplo: não faça a outro, etc). A lei moral nos ordena
pensar a máxima de nossa vontade como "princípio de uma
legislação universal". Pelo menos é conforme à moral uma
ação que resiste a esta prova lógica, isto é, uma ação cuja
máxima pode ser pensada sem contradição como lei universal.
O universal, neste sentido, é um absoluto lógico.
A forma de uma legislação universal pertence à Razão.
O próprio entendimento, com efeito, rrada pensa de determi-
nado se suas representações não são aquelas de objetos restri-
tos às condições da sensibilidade. Uma representação não so-
mente independente de qualquer sentimento, mas de qualquer
matéria e de qualquer condição sensível, é necessariamente
racional. Mas aqui, a razão não raciocina: a consciência da

I lei moral é um fato, "não um fato empírico, mas o fato único


da razão pura que se anuncia então como originariamente le-

45
gisladora"39. A Iazão é, pois, esta faculdade que legisla ime- temos um fio condutor: apenas os seres livres podem ser sub-
diatamente na faculdade de desejar. Sob este aspecto, ela se metidos à razão prática. Esta legisla sobre seres livres ou, mais
chama "razão pura prática". E a faculdade de desejar, encon- exatamente, sobre a causalidade desses seres (operação pela
trando sua determinação em si mesma (não em uma matéria qual um ser livre é causa de alguma coisa). Consideramos
ou em um objeto), chama-se, propriamente falando, vontade, agora não mais o conceito de liberdade por si mesmo, mas
"vontade autônoma". o que representa tal conceito.
Em que consiste a síntese prática a priori? As fórmulas Enquanto consideramos os fenômenos, tais como eles apa-
de Kant variam a este respeito. Mas, quando se pergunta qual Iecem sob as condições do espaço e do tempo, não encontra-
(5 a natureza de uma vontade suficientemente determinada pela mos coisa alguma que se pareça com a liberdade: os fenôme-
simples forma da lei (portanto independentemente de qualquer nos são estritamente submetidos à lei de uma causalidade na-
condição sensível ou de uma lei natural dos fenômenos), de- tural (como categoria do cntendimento) segundo a qual cada
vemos responder: é uma vontade livre. E quando se pergunta um é o efeito de um outro até o infinito, cada causa se ligan-
qual é a lei capaz de determinar uma vontade livre enquanto do a uma causa anterior. A liberdade, ao contrário, define-se
tal, devemos responder: a lei moral (como pura forma de por um poder "de começar de si mesma um estado, cuja cau-
uma legislação universal). A implicação recíproca é tal que salidade não entra por sua vez (como na lei natural) sob uma
talvez razão prática e liberdade sejam a mesma coisa. Entre- outra causa que a determina no tempo"40. Neste sentido, o
tanto, a questão não é essa. Do ponto de vista de nossas re- conceito de liberdade não pode representar um fenômeno, mas
presentações, é o conceito da razão prática que nos remete ao somente uma coisa em si que não é dada na intuição. Três
conceito de liberdade, como a alguma coisa que está necessa- elementos nos levam a essa conclusão.
riamente ligada a este primeiro conceito, que lhe pertence, e 19 - Referindo-se exclusivamente aos fenômenos, o co-
que portanto não "reside" nele. Com efeito, o conceito de li- nhecimento é forçado em seu próprio interesse a colocar a
berdade não reside na lei moral, sendo ele mesmo uma Idéia existência das coisas em si como não podendo ser conhecidas,
da razão especulativa. Mas esta idéia permaneceria puramente mas devendo ser pensadas para servir de fundamento aos pró-
problemática, limitativa e indeterminada, se a lei moral não prios fenômenos sensíveis. As coisas em si são pois pensadas
110S ensinasse que somos livres. É pela lei moral, unicamente,
como "noumenos", coisas inteligíveis ou supra-sensíveis que
que nos sabemos livres, ou que nosso conceito de liberdade marcam os limites do conhecimento e o remetem às condições
adquire uma realidade objetiva, positiva e determinada. Na da sensibilidade41• 29 - Em pelo menos um caso, a liberda-
autonomia da vontade encontramos, pois, uma síntese a priori de é atribuída à coisa em si, e o noumeno deve ser pensado
que dá ao conceito de liberdade uma realidade objetiva deter- como livre: quando o fenômeno, ao qual ele corresponde, des-
minada, unindo-o necessariamente ao da razão prática. fnlta de faculdades ativas e espontâneas que não se reduzem
à simples sensibilidade. Temos um entendimento e sobretudo
uma razão; nós somos inteligência42• Enquanto inteligências ou
PROBLEMA DA LIBERDADE seres racionais, devemos pensar em nós mesmos como mem-
bros de um mundo inteligível ou supra-sensível, dotados de
uma causalidade livre. 39 - Este conceito de liberdade,
como o de noumeno, permaneceria puramente problemático e
A questão fundamental é: sobre o que atua a legislação indeterminado (ainda que necessário), se a razão não tivesse
da razão prática? Que seres ou objetos são submetidos à sín-
tese prática? Esta questão não é mais a de uma "exposição"
do princípio da razão prática, mas de uma "dedução". Ora, 40. CRP, Dia1ética, "solução das idéias cosmo1ógicas da totalidade da
derivação ... ".
41. CRP, Analftica, "do princípio da distinção fenômenos-lloumenos ... "
39. CRPr, Analítica, escólio da "lei fundamental". 42. CRP, Dia1ética, "esclarecimento da idéia cosmo1ógica de liberdade".

46 47
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das como noumenos, enquanto formam uma natureza supra-


outro interesse que não seu interesse especulativo. Vimos que sensível. Isto é o que Kant chama de "abismo imenso" entre
somente a razão prática era capaz de determinar o conceito os dois domÍnios46.
de liberdade dando-lhe uma realidade objetiva. Com efeito, Os seres em si, em sua causalidade livre, estão portanto
quando a lei moral é a lei da vontade, esta se encontra intei- submetidos à razão prática. Mas, em que sentido se deve com-
ramente independente das condições naturais da sensibilidade preender "submetidos"? Na medida em que o entendimento
que ligam toda causa a uma causa anterior: "Nada é anterior se exerce sobre os fenômenos no interesse especulativo, legisla
a esta determinação da vontade"43. Ê por isso que o conceito sobre outra coisa que não ele mesmo. Mas, quando a razão
de liberdade, como Idéia da razão, desfruta de um privilégio legisla no interesse prático, legisla sobre seres racionais e livres,
eminente sobre todas as outras Idéias: porque ele pode ser sobre sua existência inteligível independente de qualquer con-
determinado praticamente, é o único conceito (a única Idéia dição sensível. Ê pois o ser racional que se dá a ele mesmo
da razão) que dá às coisas em si o sentido ou a garantia de uma lei através de sua razão. Contrariamente ao que acontece
um "fato" e que nos faz penetrar efetivamente no mundo com os fenômenos, o noumeno apresenta ao pensamento a
inteligível44. identidade do legislador e do sujeito. "Não é enquanto subme-
Parece portanto que a razã~ prática, dando ao conceito tida à lei moral que a pessoa possui sublimidade, mas enquan-
de liberdade uma realidade objetiva, legisla precisamente sobre to, em relação a essa mesma lei, ela é ao mesmo tempo legis-
o objeto deste conceito. A razão prática legisla sobre a coisa ladora, e só por isso está subordinada a ela."47 Eis portanto
em si, sobre o ser livre enquanto coisa em si, sobre a causa- o que significa "submetidos" no caso da razão prática: os
lidade noumenal e inteligível de um tal ser, sobre o mundo mesmos seres são sujeitos e legisladores, se bem que, no caso,
supra-sensível formado por tais seres. "A natureza supra-sen- o legislador faça parte da natureza sobre a qual legisla. Per-
sível, enquanto dela podemos fazer um conceito, é apenas uma tencemos a uma natureza supra-sensível, mas a título de mem-
natureza sob a autonomia da razão prática; mas a lei dessa bros legisladores.
autonomia é a lei moral, que é, assim, a lei fundamental de Se a lei moral é a lei de nossa existência inteligível, é
uma natureza supra-sensível. .. "; "a lei moral é uma lei da no sentido de que ela é a forma sob a qual os seres inteligí-
causalIdade por llOen.1ade, portanto uma lei da pOSSibilidade veis constituem uma natureza supra-sensível. Com efeito, ela
de uma natureza supra-sensivel"4~. A lei moral é a lei de nossa encerra um mesmo princípio determinante para todos os seres
eXistênCiamtel1gível, isto é, da espontaneidade e da causalidade racionais, daí sua união sistemática48. Compreende-se, desde
do SUjeito como COisa em Si. E por esta razão que Kant dis- então, a possibilidade do mal. Kant sustentará sempre que o
tingue duas tegislaçóes e dois domínzos correspondentes: "a mal mantém uma certa relação com a sensibilidade. Mas nem
legiSlação por conceitos naturais" é aquela onde o entendimen- por isso está menos baseado em nosso caráter inteligível. Uma
to, determmando esses conceitos, legisla na faculdade de co- mentira ou um' crime são efeitos sensíveis, mas nem por isso
nhecer ou no interesse especulativo da razão; seu domínio é o deixam de ter uma causa inteligível fora do tempo. Ê por esta
dos fenômenos como objetos de toda experiência possível, en- razão que não devemos identificar razão prática e liberdade:
quanto formam uma natureza sensível. "A legislação pelo con- há sempre na liberdade uma zona de livre-arbítrio pela qual
ceito de liberdade" é aquela onde a razão, determinando esse podemos optar contra a lei moral. Quando optamos contra a
conceito, legisla na faculdade de desejar, isto é, em seu pró- lei, não deixamos de ter uma existência inteligível, perdemos
prio interesse prático; seu domínio é o das coisas em si pensa- apenas a condição sob a qual essa existência faz parte de uma

43. CRPr, Analítica, "exame crítico". 46. CJ, Introdução, §§ 2 e 9.


47. Fundamentos da Metafísica dos Costumes (FMC), lI.
44. CJ, § 91; CRPr, Prefácio.
48. lbid.
45. CRPr, Analítica, "da dedução dos princípios da razão pura prá-
tica".
49
48
natureza e compõe com as outras um todo sistemático. Deixa- tal lei). Neste sentido, "a natureza do mundo sensível" apa-
mos de ser sujeitos, mas porque deixamos de ser legisladores rece como "tipo de uma natureza inteligÍvel"51.
(com efeito, extraímos da sensibilidade a lei que nos determina). É evidente que o entendimento desempenha aqui o papel
essencial. Da natureza sensível, com efeito, não retemos coisa
alguma que se refira à intuição ou à imaginação. Retemos
unicamente "a forma da conformidade à lei" tal como é encon-
trada no entendimento legislador. Mas nos servimos precisa-
PAPEL DO ENTENDIMENTO mente dessa forma, e do próprio entendimento, segundo um
interesse e dentro de um domínio onde este não é mais legis-
lador. Pois não é a comparação da máxima com a forma de
É pois em dois sentidos muito diferentes que o sensível uma lei teórica da natureza sensível que constitui o princípio
o o supra-sensível formam cada um deles uma natureza. Entre determinante de nossa vontade52. A comparação é apenas um
as duas Naturezas, há somente uma "analogia" (existência sob meio pejo qual investigamos se uma máxima "se adapta" à
leis). Em virtude de seu caráter paradoxal, a natureza supra- razão prática, se uma ação é um caso que cai sob a regra, isto
sensível jamais é realizada completamente, já que nada garan- é, sob o princípio de uma razão agora única legisladora.
te a um ser racional que seus semelhantes comporão suas exis- Encontramos agora uma nova forma de harmonia, uma
tências com a dele e formarão esta "natureza" que só é pos- nova proporção na harmonia das faculdades. Segundo o inte-
sível através da lei moral. É por esta razão que não é sufi- resse especulativo da razão, o entendimento legisla, a razão ra-
ciente dizer que a relação entre as duas naturezas é de analo- ciocina e simboliza (ela determina o objeto de sua Idéia "por
gia; é preciso acrescentar que o supra-sensível só pode ser analogia" com os objetos da experiência). Segundo o interesse
pensado como natureza por analogia com a natureza sensÍve149• prático da razão, é a própria razão que legisla; o entendimento
Constata-se isto na prova lógica da razão prática, onde se julga ou mesmo raciocina (ainda que este racioCÍnio seja muito
procura saber se a máxima de uma vontade pode tomar a simples e consista numa simples comparação), e ele simboliza
forma prática de uma lei universal. Questiona-se, em princípio, (extrai da lei natural sensível um tipo para a natureza supra-
se a máxima pode ser erigida em lei teórica universal de uma sensível). Ora, nesta nova figura, devemos manter sempre o
natureza sensível. Por exemplo, se todo o mundo mentisse, as mesmo princípio: a faculdade que não é legisladora desempe-
promessas se destruiriam por si mesmas, já que seria contradi- nha um papel insubstituível, que somente ela é capaz de ocupar,
tório que alguém acreditasse nelas: a mentira não pode pois mas para o qual é determinada pela faculdade legisladora.
ter o valor de uma lei da natureza (sensível). Conclui-se que, Como é que o entendimento pode desempenhar por si
se a máxima de nossa vontade fosse uma lei teórica da natu- mesmo um papel de acordo com uma razão prática legislado-
reza sensível, "cada um seria obrigado a dizer a verdade"50. ra? Consideremos o conceito de causalidade: está implicado na
Donde: a máxima de uma vontade mentirosa não pode, sem definição da faculdade de desejar (relação da representação
contradição, servir de lei prática pura aos seres racionais, de com um objeto que ela tende a produzir)53. Está pois implica-
modo a que eles componham uma natureza supra-sensível. É do no uso prático da razão referente a esta faculdade. Mas,
por analogia com a forma das leis teóricas de uma natureza quando a razão persegue seu interesse especulativo, com rela-
sensível que investigamos se uma máxima pode ser pensada ção à faculdade de conhecer, ela "abandona tudo ao entendi-
como lei prática de uma natureza supra-sensível (isto é, se
uma natureza supra-sensível ou inteligível é possível sob uma 51. CRPr, Analítica, "do típico do juízo puro prático".
52. CRPr, ibid.
49. lbid. 53. CRPr, Analítica, "do direito da razão pura a uma extensão no uso
50. CRPr, Analítica, "da dedução dos princípios da razão pura prá- prático ... ": "no conceito de uma vontade já está contido o da
tica". causalidade".

50 51
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11
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1
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mento": a causalidade é atribuída como categoria ao entendi- à maneira empirista, encarando-o como um senso particular,
mento, não sob a forma de uma causa produtora originária um sentimento ou uma intuição: não haveria pior confusão no
(já que os fenômenos não são produzidos por nós), mas sob que diz respeito à própria lei moral56. Mas, definimos um
a forma de uma causalidade natural ou de uma conexão que senso comum como um acordo a priori das faculdades, acordo
liga os fenômenos sensíveis ao infinito. Quando a razão, ao esse determinado por uma dentre elas, enquanto faculdade le-
contrário, persegue seu interesse prático, retoma do entendi~ gisladora. O senso comum moral é o acordo do entendimento
mento aquilo que ela só lhe emprestara na perspectiva de um com a razão, sob a legislação da própria razão. Retomamos
outro interesse. Determinando a faculdade de desejar sob sua aqui à idéia de uma boa natureza das faculdades e de uma
forma superior, ela "une o conceito de causalidade ao de liber- harmonia determinada conforme tal interesse da razão.
dade", isto é, dá à categoria de causalidade um objeto supra- Mas, não menos que na Crítica da razão pura, Kant de-
'i
sensível (o ser livre como causa produtora originária)54. Per- nuncia os exercícios ou usos ilegítimos. Se a reflexão filosó-
I I
guntar-se-á como a razão pode retomar o que abandonou ao fica é necessária, é porque as faculdades, apesar de sua boa
Ii
:1
entendimento e alienou na natureza sensível. Precisamente, se natureza, engendram ilusões nas quais não podem deixar de
é verdade que as categorias não nos fazem conhecer outros cair. Em lugar de "simbolizar" (isto é, de se servir da forma
11

objetos além dos da experiência possível, se é verdade que da lei natural como de um "tipo" para a lei moral), há oca-
I' elas não formam um conhecimento do objeto independente- siões em que o entendimento procura um "esquema" que re-
mente das condições da sensibilidade, nem por isso deixam d~ lacione a lei com uma intuiçã057. Mais do que isso: em vez
f " guardar um sentido puramente lógico em relação aos objetos de comandar, sem estabelecer em princípio qualquer acordo
não sensíveis, podendo mesmo ser aplicadas a eles sob a con- com as inclinações sensíveis ou com os interesses empíricos,
dição de que esses objetos sejam determinados de outra parte ocorre à razão acomodar o dever aos nossos desejos: "Disto
e de um outro ponto de vista que não o do conheciment055. resulta uma dialética natural"58. É preciso pois perguntar, ain-
Assim, a razão determina praticamente um objeto supra-sensí- da, como se conciliam os dois temas kantianos, o da harmonia
vel da causalidade, e determina a própria causalidade como natural (senso comum) e o dos exercícios discordantes (não-
uma causalidade livre, apta a formar uma natureza por analogia. senso).
Kant insiste sobre a diferença entre a Crítica da razão
pura especulativa e a Crítica da razão prática: esta última não
é uma crítica da Razão "pura" prática. Com efeito, a própria
o SENSO COMlJM MORAL E razão não pode legislar (cuidar de seu próprio interesse) no
interesse especulativo: é pois a razão pura que é fonte de ilu-
OS USOS ILEGíTIMOS sões internas, visto que pretende preencher um papel legisla-
dor. No intere.sse prático, ao contrário, não delega a ninguém
o cuidado de legislar. "No momento em que se mostrou que
Kant lembra freqüentemente que a lei moral não requer ela existe, ela não tem pois necessidade de crítica."59 O que tem
jamais raciocínios sutis, mas repousa no uso mais ordinário necessidade de uma crítica, o que é fonte de ilusões, não é a
ou mais comum da razão. Mesmo o exercício do entendimento razão pura prática, mas sim a impureza que a ela se mistura
não supõe qualquer instrução prévia, "nem ciência nem filo- na medida em que os interesses empíricos se refletem nela.
sofia". Devemos pois falar de um senso comum moral. Sem À crítica da razão pura especulativa corresponde pois uma crí-
dúvida, o perigo é sempre o de compreender "senso comum"
56. CRPr, Analítica, escólio 2 do teorema IV.
54. CRPr, Prefácio. 57. CRPr, Analítica, "do típico do juizo puro prático".
55. CRPr, Analítica, "do direito da razão pura a uma extensão no uso 58. FMC, I (fim).
prático .. :' 59. CRPr, Introdução.

52 53
tica da razão prática impura. Contudo, alguma coisa de comum prazer negativo com um sentimento sensível positivo, ou mes-
subsiste entre as duas: o método dito transcendental é sempre mo com um móvel da vontade. Confundimos este contenta-
a determinação de um uso imanente da razão, em confórmi- mento intelectual ativo com alguma coisa de sentido, experi-
dade com um de seus interesses. A Crítica da razão pura mentado. (É desta maneira que o acordo das faculdades ativas
denuncia, pois, o uso transcendente de uma razão especulativa parece ter para o empirista um sentido especial.) Há aí urna
que pretende legislar por si mesma; a Crítica da razão prática ilusão interna que a própria razão pura prática não pode evi-
denuncia o uso transcendente de uma razão prática que, em tal': "Há sempre aí ocasião de se cometer o erro chamado
lugar de legislar por si mesma, deixa-se condicionar empiri- vitium subreptionis, e de certa maneira de se ter uma ilusão
camente60. de ótica na consciência daquilo que se faz, à diferença daquilo
Entretanto, o leitor tem direito de se perguntar se esse que se sente, ilusão que mesmo o homem mais experimentado
célebre paralelo que Kant estabelece entre as duas Críticas não pode evitar completamente". 39 - A antinomia reside
responde suficientemente à questão levantada. O próprio Kant pois no contentamento imanente da razão prática, na confusão
não fala de uma única "dialética" da razão prática, mas em- inevitável desse contentamento com a felicidade. Acreditamos
prega o termo em dois sentidos bastante diferentes. Ele mos- então ora que a pr6pria felicidade é causa e m6vel da virtu-
tra, na verdade, que a razão prática não pode deixar de esta- de, ora que a virtude por si mesma é causa da felicidade.
belecer uma ligação necessária entre a felicidade e a virtude, Se é verdade, de acordo com o primeiro sentido da pa-
mas cai assim em uma antinomia. A antinomia consiste em lavra "dialética", que os interesses ou os desejos empíricos se
que a felicidade não pode ser causa da virtude (já que a lei projetam na razão e a tornam impura, nem por isso esta pro-
moral é o único princípio determinante da vontade boa), e que jeção deixa de ter um princípio interior mais profundo, na
a virtude tampouco parece poder ser causa da felicidade (já pr6pria razão prática pura, conforme o segundo sentido da pa-
que as leis do mundo sensível não se regulam em absoluto lavra dialética. A confusão do contentamento negativo e inte-
pelas intenções de uma boa vontade). Sem dúvida, a idéia de lectual com a felicidade é uma ilusão interna que jamais pode
felicidade implica a satisfação completa de nossos desejos e ser inteiramente dissipada, mas cujo efeito s6 pode ser conju-
inclinações. Hesitar-se-á, no entanto, em ver nesta antinomia rado pela reflexão filos6fica. Resta concluir que a ilusão, neste
(e sobretudo em seu segundo membro) o efeito de uma sim- sentido, é apenas aparentemente contrária à idéia de uma boa
ples projeção dos interesses empíricos: a razão pura prática natureza das faculdades: a própria antinomia prepara uma to-
reclama, ela própria, uma ligação entre virtude e felicidade. talização que, sem dúvida, ela é incapaz de operar, mas que
A antinomia da razão prática exprime sem dúvida uma "dia- nos força a procurar, do ponto de vista da reflexão, como sua
lética" mais profunda do que a precedente; implica uma ilusão solução própria ou a chave de seu labirinto. "A antinomia da
interna da razão pura. razão pura, que se torna manifesta em sua dialética, é de fato
A explicação desta ilusão interna pode ser assim recons- o erro mais benéfico em que a razão humana já incorreu."62
tituída61: 19 - A razão pura prática exclui todo prazer ou toda
satisfação como princípio determinante da faculdade de dese-
jar. Mas, quando a lei a determina, a faculdade de desejar
experimenta por isso mesmo uma satisfação, uma espécie de PROBLEMA DA REALIZAÇÃO
prazer negativo que exprime nossa independência em relação
às inclinações sensíveis, um contentamento puramente intelec-
tual que exprime imediatamente o acordo formal de nosso en- A sensibilidade e a imaginação não têm até agora qual-
tendimento com nossa razão. 29 - Ora, confundimos este t,
quer papel no senso comum moral. Isto não deve causar estra-

60. lbid. 62. CRPr, Dialética, "de uma dialética da razão pura prática em
61. CRPr, Dialética, "solução crítica da antinomia". geral".

54 55
nheza, já que a lei moral, em seu princípio como em sua apli- segundo o qual ele é necessário, mas que, de outro lado, com
cação típica, é independente de qualquer esquema ou de qual- suas causas, remete a si mesmo a uma Causa livre da qual ele
quer condição da sensibilidade; já que os seres e a causalidade é o sinal ou a expressão. Uma causa livre jamais tem seu efeito
livres não são objeto de uma intuição; e já que a Natureza em si mesma, já que nela nada acontece ou começa; a livre
supra-sensível e a natureza sensível estão separadas por um causalidade não tem outro efeito senão sensível. Conseqüen-
abismo. Há certamente uma acão da lei moral sobre a sensi- temente, a razão prática, como lei da causalidade livre, deve
bilidade. Mas a sensibilidade é considerada aqui como senti- ela própria "ter causalidade em relação aos fenômeno s"66. E
mento, não como intuição; e o próprio efeito da lei é um a natureza supra-sensível, que os seres livres formam sob a lei
sentimento muito mais negativo do que positivo, mais próximo da razão, deve ser realizada no mundo sensível. É neste sen-
da dor do que do prazer. Tal é o sentimento de respeito à lei, tido que se pode falar de uma ajuda ou de uma oposição entre
determinável a priori como o único "móvel" moral, mas redu- a natureza e a liberdade, segundo os efeitos sensíveis da liber-
" I zindo a sensibilidade ao lhe negar um papel na relação das dade na natureza estejam ou não em conformidade com a lei
faculdades. (Vê-se que o móvel moral não pode ser fornecido moral. "Oposição ou ajuda só existem entre a natureza como
pelo contentamento intelectual de que falávamos há pouco; este fenômeno e os efeitos da liberdade como fenômenos no mun-
não éem absoluto um sentimento, mas somente um "análogo" do sensível."67 Sabemos que há duas legislações, portanto dois
de sentimento. Somente o respeito à lei fornece um tal móvel; domínios, que correspondem à natureza e à liberdade, à natu-
ele apresenta a própria moralidade como móvel.) 63 reza sensível e à natureza supra-sensível. Mas há somente um
Mas, com isso, o problema da relação entre a razão prá- território, o da experiência.
tica e a sensibilidade não é resolvido ou suprimido. O respeito Kant apresenta assim o que ele chama "o paradoxo do
serve, de preferência, como regra preliminar a uma tarefa que método numa Crítica da razão prática": jamais uma represen-
deve ser preenchida positivamente. Um único contra-senso é tação de objeto pode determinar a vontade livre ou preceder
perigoso no que se refere ao conjunto da Razão prática: crer a lei moral; mas, determinando imediatamente a vontade, a lei
que a moral kantiana permanece indiferente à sua própria rea- moral determina também objetos como em conformidade com
lização. Na verdade, o abismo entre o mundo sensível e o essa vontade livre68. Mais precisamente, quando a razão legisla
mundo supra-sensível só existe para ser suprimido: se o supra- na faculdade de desejar, a própria faculdade de desejar legis-
sensível escapa ao conhecimento, se não há uso especulativo la sobre objetos. Esses objetos da razão prática formam o que
da razão que nos faça passar do sensível ao supra-sensível, em se chama de Bem moral (é com relação à representação do
compensação "este deve ter uma influência sobre aquele, e o bem que experimentamos o contentamento intelectual). Ora,
conceito de liberdade deve realizar no mundo sensível o fim "o bem moral é, quanto ao objeto, alguma coisa de supra-
imposto por suas leis"64. Eis que o mundo supra-sensível é sensível". Mas ele representa esse objeto como a ser realizado
arquétipo e o mundo sensível "éctipo, porque contém o efeito no mundo sensÍVel, isto é, "como um efeito possível através
possível da idéia do primeiro"65. Uma causa livre é puramente da liberdade"69. Eis porque, em sua definição mais geral, o
inteligível; mas devemos considerar que é o mesmo ser que interesse prático se apresenta como uma relação da razão com
é fenômeno e coisa em si, submetido à necessidade natural objetos, não para conhecê-los, mas para realizá-los70•
como fenômeno, fonte de causalidade livre como coisa em si. A lei moral é inteiramente independente da intuição e
Mais ainda: é a mesma ação, o mesmo efeito sensível que das condições da sensibilidade; a Natureza supra-sensível é
remete, de um lado, a um encadeamento de causas sensíveis,
66. CRP, Dialética.
63. CRPr, Analítica, "dos móveis da razão pura prática". (Sem dúvida, 67. CI, Introdução, § 9.
o respeito é positivo, mas apenas "por sua causa intelectual".) 68. CRPr, Analítica, "do conceito de um objeto da razão pura prática".
64. CI, Introdução, § 2. 69. CRPr, ibid.
65. CRPr, Analítica, "da dedução dos princípios da razão pura prática". 70. CRPr, Analítica, "exame crítico".

56 57
independente da Natureza sensível. Os próprios bens são inde- xima da virtude seja causa da felicidade, já que a lei moral
pendentes de nosso poder físico de realizá-los, e são somente não legisla sobre o mundo sensível e este é regido por suas
determinados (conforme a prova lógica) pela possibilidade mo- próprias leis que permanecem indiferentes às intenções morais
ral de querer a ação que os realiza. Conclui-se que a lei moral da vontade.
não é nada, separada de suas conseqüências sensíveis; nem a Entretanto, esta segunda direção deixa aberta uma solu-
liberdade, separada de seus efeitos sensíveis. Conseqüentemen- ção: que a conexão entre a felicidade e a virtude não seja
te, seria suficiente apresentar a lei como legislando sobre a imediata, mas que se faça na perspectiva de um progresso até
causalidade de seres em si, sobre uma pura natureza supra- o infinito (alma imortal) e por intermédio de um autor inte-
sensível? Sem dúvida, seria absurdo dizer que os fenômenos ligível da natureza sensível ou de uma "causa moral do mun-
são submetidos à lei moral como princípio da razão prática. do" (Deus). Assim, as Idéias de alma e de Deus são as con-
A Natureza sensível não tem a moralidade por lei; mesmo os dições necessárias sob as quais o próprio objeto da razão prá-
efeitos da liberdade não podem prejudicar o mecanismo como tica é colocado como possível e realizáveF2.
lei da Natureza sensível, visto que eles se encadeiam necessa- Já vimos que a liberdade (como Idéia cosmológica de
riamente uns aos outros, de maneira a formar "um único fe- um mundo supra-sensível) recebia uma realidade objetiva da
nômeno" que exprime a causa livre. A liberdade jamais produz lei moral. Eis que, por sua vez, a Idéia psicológica da alma
um milagre no mundo sensível. Mas, se é verdade que a razão e a Idéia teológica do ser supremo recebem, sob essa mesma
prática legisla apenas sobre o mundo supra-sensível e sobre a lei moral, uma realidade objetiva. De forma que as três gran-
causalidade livre dos seres que o compõem, não é menos ver- des Idéias da razão especulativa podem ser colocadas no mes-
dade que toda essa legislação faz deste mundo supra-sensível mo plano, tendo em comum o fato de serem problemáticas e
alguma coisa que deve ser "realizada" no sensível e, desta cau- indeterminadas do ponto de vista da especulação, mas recebe-
salidade livre, alguma coisa que deve ter efeitos sensíveis que rem da lei moral uma determinação prática: neste sentido e
exprimem a lei moral. na medida em que são determinadas praticamente, elas são
chamadas "postulados da razão prática": são objeto de uma
"crença pura prática"73. No entanto, mais precisamente, vere-
mos que a determinação prática não é exercida da mesma ma-
neira sobre as três Idéias. Somente a Idéia de liberdade é
CONDIÇÕES DA REALIZAÇÃO imediatamente determinada pela lei moral: conseqüentemente,
a liberdade é mais uma "matéria de fato" ou o objeto de uma
proposição categórica do que um postulado. As duas outras
Todavia é preciso que tal realização seja possível. Se ela idéias, como "postulados", são apenas condições do objeto ne-
não o fosse, a lei moral se aniquilaria por si mesma71. Ora, a cessário de uma vontade livre: "Vale dizer que sua possibili-
realização do bem moral supõe um acordo da natureza sen- dade é provada pelo fato de que a liberdade é real"74.
sível (segundo suas leis) com a natureza supra-sensível (se- Mas serão os postulados as únicas condições de uma rea-
gundo sua lei). Este acordo apresenta-se na idéia de uma pro- lização do supra-sensível no sensível? Também são necessárias
porção entre a felicidade e a moralidade, isto é, na idéia do condições imanentes à própria Natureza sensível, que devem
Soberano Bem como "totalidade do objeto da razão pura prá- fundar nesta sua capacidade de exprimir ou de simbolizar algu-
tica". Mas, se perguntamos como o Soberano Bem por sua ma coisa de supra-sensível. Elas se apresentam sob três aspec-
vez é possível, portanto realizável, nos chocamos com a anti-
nomia: está excluída a idéia de que o desejo de felicidade seja
72. CRPr, Dialética, "sobre os postulados da razão pura prática".
móvel da virtude; mas também parece excluída a de que a má-
73. CRPr, Dialética, "do consentimento proveniente de uma necessidade
da razão pura".
71. CRPr, Dialética, "a antinomia da razão prática". 74. CRPr, Introdução; C/, § 91.

58 59
tos: a finalidade natural na matéria dos fenômenos; a forma tiva que, se bem que simplesmente prática, não é menos indu-
da finalidade da natureza nos objetos belos; o sublime no infor- bitável."76 Na realidade, nós não conhecemos a natureza de um
me da natureza, pelo qual a própria natureza sensível teste- ser livre mais do que antes; não temos qualquer intuição que
munha a existência de uma finalidade mais elevada. Ora, nes- possa se referir a ele. Sabemos apenas, pela lei moral, que
ses dois últimos casos, vemos a imaginação ter um papel fun- tal ser existe e possui uma causalidade livre. O interesse prá-
damental: quer se exerça livremente, sem estar sob a depen- tico é tal, que a relação da representação com um objeto não
dência de um conceito determinado do entendimento; quer forma um conhecimento, mas designa alguma coisa a ser rea-
ultrapasse seus próprios limites e se sinta ilimitada, reportan- lizada. Tampouco a alma e Deus, como Idéias especulativas,
do-se ela própria às Idéias da razão. Assim, a consciência da recebem de sua determinação prática uma extensão do ponto
moralidade, isto é, o senso comum moral, não comporta ape- de vista do conheciment077.
nas crenças, mas os atos de uma imaginação através dos quais Mas, os dois interesses não são simplesmente coordenados.
a Natureza sensível aparece como apta a receber o efeito do É evidente que o interesse especulativo é subordinado ao inte-
supra-sensível. A própria imaginação faz parte, na realidade, resse prático. O mundo sensível não apresentaria interesse espe-
do senso comum moral. culativo se, do ponto de vista de um interesse mais elevado,
não revelasse a possibilidade de realizar o supra-sensível. Eis
porque as Idéias da própria razão especulativa não têm outra
jNTERESSE PRÁTICO E determinação direta senão prática. Isto pode ser constatado no
que Kant chama de "crença". Uma crença é uma proposição
INTERESSE ESPECULATIVO especul ativa, mas que só se torna assertória pela determinação
que recebe da lei moral. Deste modo, a crença não remete a
uma faculdade particular, mas exprime a síntese do interesse
Pode-se atribuir a cada poder do espírito um interesse, especulativo e do interesse prático, ao mesmo tempo que a
isto é, um princípio que contenha a condição sob a qual esse subordinação do primeiro ao segundo. Donde a superioridade
poder é colocado em exerCÍci075. "Os interesses da razão se da prova moral da existência de Deus sobre todas as provas
distinguem dos interesses empÍricos, pelo fato de que se refe- especulativas. Pois enquanto objeto de conhecimento, Deus não
rem aos objetos, mas só enquanto estes estão submetidos à é determinável senão indireta e analogicamente (como aquele
forma superior de uma faculdade." Assim, o interesse especula- do qual os fenômenos extraem um máximo de unidade siste-
tivo refere-se aos fenômenos enquanto formam uma natureza mática); mas, enquanto objeto de crença, ele adquire uma de-
sensível. O interesse prático refere-se aos seres racionais como terminação e uma realidade exclusivamente práticas (autor mo-
coisas em si, enquanto formam uma natureza supra-sensível a ral do mundo) 78.
ser realizada. Um inter€sse em geral implica um conceito de fim. Ora,
Os dois interesses diferem em natureza, de modo que a se é verdade que a razão em seu uso especulativo não renuncia
razão não faz progresso especulativo quando entra no domínio a descobrir fins na natureza sensível que ela observa, esses fins
materiais jamais representam um objetivo final, assim como
que lhe é aberto por seu interesse prático. A liberdade como
esta observação da natureza. "O fato de ser conhecido não
Idéia especulativa é problemática em si, mesma indeterminada;
pode conferir ao mundo qualquer valor; é preciso supor para
quando ela recebe da lei moral uma determinação prática ime-
ele um objetivo final que dê algum valor a essa própria obser-
diata, a razão especulativa nada ganha em extensão. "Ela ganha
somente no que diz respeito à garantia de seu problemático
conceito de liberdade, ao qual se dá aqui uma realidade obje- 76. CRPr, Analítica, "da dedução dos princípios da razão pura prática".
77. CRPr, Dialética, "sobre os postulados da razão pura prática em
geral".
75. CRPr, Dialética, "da supremacia da razão pura prática". 78. CI, §§ 87 e 88.

60 61
vação do mundo."79 Objetivo final significa, na verdade, duas
coisas: ele se aplica a seres que devem ser considerados como
fins em si e que, por outro lado, devem dar à natureza sen-
sível um fim último a realizar. O objetivo final é pois, neces-
sariamente, o conceito da razão prática ou da faculdade de
desejar sob sua forma superior: apenas a lei moral determina
o ser racional como fim em si, visto que ela constitui um obje-
tivo final no uso da liberdade mas, ao mesmo tempo, deter-
mina-o como fim último da natureza sensível, já que ela nos
ordena realizar o supra-sensível unindo a felicidade universal
it moralidade. "Se a criação tem um fim último, nós não po-
demos concebê-Ia de outra forma senão em harmonia com o
fim moral, que torna possível o conceito de fim... A razão
prática não indica somente o objetivo final, mas determina
também este conceito em relação às condições sob as quais
Capítulo 3
lUn objetivo final da criação pode ser concebido por nós."so
O interesse especulativo só encontra fins na natureza sensível
porque, mais profundamente, o interesse prático implica o ser Relação das faculdades
racional como fim em si e também como fim último dessa na crítica do juízo
natureza sensível. Neste sentido, é preciso dizer que "todo inte- '[
resse é prático e o próprio interesse da razão especulativa só
pode ser condicionado e só é completo no uso prático"sl. I

79. Cl, § 86.


80. Cl, § 88.
81. CRPr, Dialética, "da supre.macia da razão pura prática". (Cf. FMC,
111: "Um interesse é aquilo por que a razão se torna prática ...
O interesse lógico da razão, que é de desenvolver seus conhecimentos,
jamais é imediato, mas supõe fins aos quais o uso dessa facul·
dade se refere",)

62
-:',. -~ ~ ""-_.""-

HÁ UMA FORMA SUPERIOR


DO SENTIMENTO?

a que significa perguntar: haverá representações que de-


terminem a priori um estado do sujeito como prazer ou dor?
Uma sensação não está incluída nesse caso: o prazer ou a dor
que ela produz (sentimento) só podem ser conhecidos empiri-
camente. Acontece o mesmo quando a representação do objeto
é a priori. Invocar-se-á a lei moral como representação de uma
pura forma? (a respeito como efeito da lei seria o estado su-
perior da dor, o contentamento intelectual, o estado superior
do prazer.) A resposta de Kant é negativa82• Pois o contenta-
mento não é um efeito sensível ou um sentimento particular,
mas um "análogo" intelectual do sentimento. E o próprio res-
peito só é um efeito na medida em que é um sentimento ne-
gativo; em sua positividade, ele antes se confunde com a lei
como móvel do que dela deriva. Como regra geral, é impos-
sível que a faculdade de sentir alcance sua forma superior,
quando elà própria encontra sua lei na forma inferior ou supe-
rior da faculdade de desejar.
a que seria então um prazer superior? Ele não deveria
estar ligado a nenhum atrativo sensível (interesse empírico pela
existência do objeto de uma sensação), nem a qualquer incli-
nação intelectual (interesse prático puro pela existência de um

82. Cl, § 12.

65
objeto da vontade). A faculdade de sentir só pode ser superior particular, do tipo "esta rosa é bela" (a proposição "as rosas
na medida em que é desinteressada em seu princípio. O que são belas em geral" implica uma comparação e um juízo lógi-
conta não é a existência do objeto representado, mas o simples COS)85, mas sobretudo não legisla sequer sobre seu objeto sin-
efeito de uma representação sobre mim. O mesmo é dizer que gular, já que permanece inteiramente indiferente à sua existên-
um prazer superior é a expressão sensível de um juízo puro, de cia. Kant não admite, portanto, o emprego do termo "autono-
uma pura operação de julgar83• Esta operação apresenta-se, de mia" para a faculdade de sentir sob sua forma superior: impo-
início, no juízo estético do tipo "é belo". tente para legislar sobre objetos, o juízo só pode ser eautouno-
Mas qual é a representação que, no juízo estético, pode mo, isto é, legisla sobre si86• A faculdade de sentir não tem
ter como efeito este prazer superior? Já que a existência ma- domínio (nem fenômenos nem coisas em si); ela não exprime
terial do objeto permanece indiferente, trata-se ainda da repre- condições a que um gênero de objetos deve ser submetido,
sentação de uma pura forma. Mas, desta vez, é uma forma de mas unicamente condições subjetivas para o exercício das
objeto. E essa forma não pode ser simplesmente a da intuição, faculdades.
que nos remete a objetos exteriores que existem materialmente.
N a verdade, "forma" significa agora o seguinte: reflexão de
um objeto singular na imaginação. A forma é o que a imagi-
nação reflete de um objeto, em oposição ao elemento material
das sensações que esse objeto provoca enquanto existe e age SENSO COMUM ESTÉTICO
sobre nós. Kant então pergunta: uma cor, um som podem ser
chamados belos por si mesmos? Talvez o fossem se, em lugar
de apreender materialmente seu efeito qualitativo sobre nossos
sentidos, fôssemos capazes, por nossa imaginação, de refletir Quando dizemos "é belo", não queremos dizer simples-
as vibrações das quais eles se compõem. Mas a cor e o som mente "é agradável": pretendemos uma certa objetividade, uma
são demasiadamente materiais, estão por demais entranhados certa necessidade, uma certa universalidade. Mas, a pura re-
em nossos sentidos para se refletir assim na imaginação: são presentação do objeto belo é particular: a objetividade do
mais auxiliares do que propriamente elementos da beleza. O juízo estético não tem conceito ou (o que dá no mesmo) sua
essencial é o desenho, a composição, que são precisamente ma- necessidade e sua universalidade são subjetivas. Cada vez que
nifestações da reflexão formal84• intervém um conceito determinado (figuras geométricas, espé-
A representação refletida da forma é causa, no juízo esté- cies biológicas, idéias racionais), o juízo estético deixa de ser
tico, do prazer superior do belo. Devemos então constatar que puro, ao mesmo tempo em que a beleza deixa de ser livre87•
o estado superior da faculdade de sentir apresenta dois carac- A faculdade de sentir, sob sua forma superior, não pode de-
teres paradoxais, intimamente ligados um ao outro. De um pender mais do -interesse especulativo do que do interesse prá-
lado, contrariamente ao que acontecia no caso das outras fa- tico. Eis porque apenas o prazer pode ser considerado univer-
culdades, a forma superior não define aqui qualquer interesse sal e necessário no juízo estético. Supomos que nosso prazer
da razão: o prazer estético é tão independente do interesse
é de direito comunicável e válido para todos, presumimos que
especulativo quanto do interesse prático e define-se ele próprio
como inteiramente desinteressado. De outro lado, a faculdade cada um deve experimentá-Io. Esta presunção, esta suposição
nem mesmo é um "postulado", visto que exclui todo conceito
de sentir sob sua forma superior não é legisladora; toda legis- ,I determinad088•
lação implica objetos sobre os quais se exerça e que lhe este-
jam submetidos. Ora, não somente o juízo estético é sempre
85. C/, § 8.
86. C/. Introdução, §§ 4 e 5.
83. C/. § 9. \, 87. C/, § 16 (pulchritudo vaga).
84. C/. § 14. 88. C/, § 8.

66
67
\~-

No entanto, esta suposição seria impossível se o entendi- tico não representa um acordo objetivo das faculdades (isto é,
mento não interviesse de algum modo. Vimos qual era o papel uma submissão de objetos a uma faculdade dominante, que
da imaginação: ela reflete um objeto singular do ponto de vista determinaria ao mesmo tempo o papel das outras faculdades
da forma. Ao fazê-Io, não se relaciona com um conceito de- em relação a esses objetos), mas uma pura harmonia subje-
terminado do entendimento. Mas, se relaciona com o próprio tiva onde a imaginação e o entendimento se exercem esponta-
entendimento como sendo a faculdade dos conceitos em geral; neamente, cada um por sua conta. Conseqüentemente, o senso
relaciona-se com um conceito indeterminado do entendimento. comum estético não completa os dois outros; ele os funda ou
"

'"

ri'
Isto é: a imaginação em sua liberdade pura entra em acordo os torna possíveis. Jamais uma faculdade assumiria um papel
com o entendimento em sua legalidade não especificada. Po- legislador e determinante se todas as faculdades em conjunto
der-se-ia dizer com rigor que a imaginação, aqui, "esquematiza não fossem capazes dessa livre harmonia subjetiva.
",
sem conceito"89. Mas o esquematismo é sempre o ato de uma Mas então, nós nos encontramos diante de um problema
", imaginação que não é mais livre, que se encontra determinada particularmente difícil. Explicamos a universalidade do prazer
", a agir conforme um conceito do entendimento. Na verdade, a estético ou a comunicabilidade do sentimento superior pelo
imaginação faz algo além de esquematizar: ela manifesta sua livre acordo das faculdades. Mas será suficiente presumir ou
liberdade mais profunda refletindo a forma do objeto, "ela se supor tal acordo a priori? Não deve ele, ao contrário, ser pro-
,
exerce de alguma forma na contemplação da figura", torna-se duzido em nós? Em outras palavras, o senso comum estético
""
111'
imaginação produtiva e espontânea "como causa de formas não deve ser objeto de uma gênese, gênese propriamente trans-
arbitrárias de intuições possíveis"üo. Eis aí um acordo entre a cendental? Este problema domina a primeira parte da Crítica
imaginação como livre e o entendimento como indeterminado. do juízo; sua própria solução compreende vários momentos
Eis aí um acordo ele próprio livre e indeterminado entre fa- complexos.
culdades. Devemos dizer deste acordo que ele define um senso
comum propriamente estético (o gosto). Com efeito, o prazer
que supomos comunicável e válido para todos, nada mais é
do que o resultado desse acordo. Não se realizando sob um
conceito determinado, o livre jogo da imaginação e do enten- RELAÇÃO DAS FACULDADES NO SUBLIME
dimento não pode ser intelectualmente conhecido, mas apenas
sentidoü1. Nossa suposição de uma "comunicabilidade do sen-
timento" (sem a intervenção de um conceito) funda-se pois Enquanto nos limitamos ao juízo estético do tipo "é belo",
sobre a idéia de um acordo subjetivo das faculdades, na me- a razão não parece ter qualquer papel: apenas o entendimento
dida em que esse acordo forma, ele próprio, um senso comum92. e a imaginação intervêm. Além disso, uma forma superior do
Poder-se-ia crer que o senso comum estético completa os prazer é encontl"ada, não uma forma superior da dor. Mas, o
dois precedentes: no senso comum lógico e no senso comum juízo "é belo" é apenas um tipo de juízo estético. Devemos
moral ora o entendimento ora a razão legislam e determinam
considerar o outro tipo, "é sublime". No Sublime, a imagina-
a função das outras faculdades; agora seria a vez da imagina- ção entrega-se a uma atividade diferente da reflexão formal.
ção. Mas não pode ser assim. A faculdade de sentir não legisla O sentimento do sublime é experimentado diante do informe
sobre objetos; não há pois nela uma faculdade (no segundo ou do disforme (imensidão ou potência). Tudo se passa então
sentido da palavra) que seja legisladora. O senso comum esté- como se a imaginação estivesse em confronto com seu próprio
limite, forçada a atingir seu máximo, sofrendo uma violência
89. CJ, § 35. capaz de conduzi-Ia a um poder extremo. Sem dúvida, a ima-
90. CJ, § 16 e "observação geral sobre a primeira seção da analítica". ginação não tem limite quando se trata de apreender (apreen-
91. Cl, § 9. são sucessiva das partes). J\1as, enquanto deve reproduzir as
92. Cl, §§ 39 e 40. i
11
partes precedentes à medida que alcança as seguintes, ela adqui-

68 69

~
re um máximo em matéria de compreensão simultânea. Diante que corresponde ao sentimento do sublime, não se separa de
do imenso, a imaginação experimenta a insuficiência desse má- uma "cultura", como movimento de sua gênese95. E é nessa
ximo, "ela busca ampliá-lo e recai sobre ela mesma"93. À pri- gênese que aprendemos o essencial no que se refere a nosso
meira vista, atribuímos ao objeto natural, isto é, à Natureza destino. Com efeito, as Idéias da razão são especulativamente
sensível, essa imensidão que reduz nossa imaginação à impo- indeterminadas, praticamente determinadas. Este é já o princí-
tência. Mas, na verdade, nada além da razão nos força a reunir pio da diferença entre o Sublime matemático do imenso e o
em um todo a imensidão do mundo sensível. Este todo é a Sublime dinâmico da potência (um coloca em jogo a razão do
Idéia do Sensível, na medida em que este tem por substrato ponto de vista da faculdade de conhecer, o outro, do ponto
alguma coisa de inteligível ou de supra-sensível. A imaginação de vista da faculdade de desejar) 96.De modo que, no sublime
aprende pois que é a razão que a impulsiona até o limite de dinâmico, o destino supra-sensível de nossas faculdades apa-
seu poder, forçando-a a declarar que toda sua potência não rece como o predestinado de um ser moral. O sentido do su-
é nada frente a uma Idéia. blime é engendrado em nós de tal maneira que prepara uma
O Sublime coloca-nos portanto em presença de uma rela- finalidade mais elevada, e nos prepara a nÓs mesmos para o
ção subjetiva direta entre a imaginação e a razão. No entanto, advento da lei moral.
mais do que um acordo, essa relação é, em primeiro lugar,
um desacordo, uma contradição que existe entre a exigência
da razão e a potência da imaginação. Eis porque a imagina-
ção parece perder sua liberdade, e o sentimento do sublime PONTO DE VISTA DA O:f,NESE
ser mais uma dor do que um prazer. Mas no fundo do desa-
cordo o acordo aparece; a dor torna possível um prazer. No
momento em que a imaginação é colocada em presença de seu
limite por alguma coisa que a ultrapasse completamente, ela O difícil é encontrar o princípio de uma gênese análoga
mesma ultrapassa o seu próprio limite; de maneira negativa, para o sentido do belo. Pois no sublime, tudo é subjetivo, re-
é verdade, representando a inacessibilidade da Idéia racional, lação subjetiva entre faculdades; o sublime só se refere à na-
e fazendo dessa própria inacessibilidade algo de presente na tureza por projeção, e essa projeção efetua-se sobre o que há
natureza sensível. "A imaginação, que fora do sensível não tem de informe ou de disforme na natureza. Também no belo,
onde se sustentar, sente-se entretanto ilimitada graças ao de- encontramo-nos diante de um acordo subjetivo; mas este se
saparecimento de seus limites; e esta abstração é uma apre- realiza quando se apresentam formas objetivas, de modo que
sentação do infinito que, por esta razão, só pode ser negativo, se coloca a propósito do belo um problema de dedução que
mas que, entretanto, alarga a alma."94 Tal é o acordo - dis- não se colocava para o sublime97. A análise do sublime nos
cordante da imaginação e da razão: não somente a razão tem forneceu indicações a esse respeito, visto que ela apresentava
um "destino supra-sensível", mas também a imaginação. Nesse um senso comum que não era apenas presumido, mas engen-
acordo, a alma é sentida como a unidade supra-sensível inde- drado. Mas uma gênese do sentido do belo coloca um proble-
terminada de todas as faculdades; nós mesmos somos relacio- ma mais difícil ao reclamar um princípio cujo alcance seja
nados a um foco, como a um "ponto de concentração" no su- objetiv098•
pra-sensível. Sabemos que o prazer estético é inteiramente desinteres-
Podemos observar então que o acordo imaginação-razão sado, já que ele não implica em absoluto a existência de um
não é simplesmente presumido: ele é verdadeiramente engen-
drado, engendrado no desacordo. Eis porque o senso comum,
95. Cl, § 29.
96. Cl, § 24.
93. Cl, § 26. 97. Cl, § 30.
94. CI, § 29, "observação geral". 98. Donde o lugar da análise do Sublime na Crítica do juízo.

70 71
objeto. O belo não é objeto de um interesse da razão. Subsiste Toda a questão é: de que espécie é esse interesse? Defi-
a hipótese de que ele pode estar ligado sinteticamente a um nimos até agora os interesses da razão por um gênero de obje-
interesse racional. Suponhamos que seja assim: o prazer do tos que se encontravam necessariamente submetidos a uma fa-
belo que não deixa de ser desinteressado, mas o interesse ao culdade superior. Mas não há objetos que sejam submetidos à
qual ele está ligado pode servir de princípio para uma gênese faculdade de sentir. A forma superior da faculdade de sentir
da "comunicabilidade" ou da universalidade desse prazer; o designa somente a harmonia subjetiva e espontânea de nossas
belo não deixa de ser desinteressado, mas o interesse ao qual faculdades ativas, sem que uma dessas faculdades legisle sobre
ele está ligado sinteticamente pode servir de regra para uma objetos. Quando consideramos a aptidão material da natureza
gênese do senso do belo como senso comum. para produzir belas formas, não podemos concluir daí a sub-
Se esta é a tese kantiana, devemos procurar saber que missão necessária dessa natureza a uma de nossas faculdades,
interesse está ligado ao belo. Pensar-se-á de início em um inte- mas somente seu acordo contingente com todas as nossas fa-
resse social empírico, tão freqüentem ente ligado aos obietos culdades em conjunto103. E mais do que isso: procurar-se-ia
belos e capaz de engendrar uma espécie de gosto ou de comu- em vão um fim da Natureza quando ela produz o belo; a pre-
nicabil;dade do prazer. Mas, é claro que o bf"lo pstá li!mdo a cipitação da matéria fluida explica-se de maneira puramente
tal interesse apenas a posteriori e não a priori99• Somente um mecânica. A aptidão da natureza apresenta-se pois como um
interesse da razão pode corresponder às exigências preceélpntes. poder sem finalidade, apropriado por acaso ao exercício har-
Mas em que pode consistir aqui um interesse racional? Ele monioso de nossas faculdades104. O prazer deste exercício é ele
não pode ter como obieto o próprio belo. Ele refere-se exclu- próprio desinteressado; conclui-se que nós experimentamos um
sivamente à aptidão que a natureza possui de produzir belas interesse racional pelo acordo contingente das produções da
natureza com nosso prazer desinteressad0105• Este é o terceiro
formas, isto é, formas capazes de se refletirem na imaginação.
(E a natureza apresenta essa aptidão ml',smo onde o olho lm- interesse da razão: ele se define, não por uma submissão ne-
mano penetra muito rarllmente para refleti-Ias: por exemplo, cessária, mas por um acordo contingente da Natureza com
nossas faculdades.
no fundo dos oceanos.) 100O interesse ligado ao belo não se
refere à forma bela enquanto tal. mas à matéria emuregada pela
natureza para produzir obietos canazes de se refletirem formal-
mente. Não devemos ficar surpresos pelo fato de que Kant,
tendo dito de início que as cores e os sons não eram em si o SIMBOLISMO NA NATUREZA
prónrios belos. acresC'pnte em seguida que eles são objeto de
11m "interesse do belo"101. Mais do que isso, se proCllramos
pela matéria primeira que intervém na formação natural do
belo. vemos que se trata de uma matéria fluida (o mais antigo Como se apresenta a gênese do senso do belo? Parece que
estado da matéria). da qual uma parte se separa ou se evapora, as matérias livres da natureza, as cores, os sons não se rela-
e cuio resto se solidifica bruscamente (cf. formação dos cris- cionam simplesmente com conceitos determinados do entendi-
tais)102. Significa dizer que o interesse do belo não é parte inte- mento. Elas ultrapassam o entendimento, "levam a pensar"
grante do belo ou do senso do belo, mas diz respeito a uma muito mais do que aquilo que está contido no conceito. Por
produção do belo na natureza, e pode, sob este título, servir exemplo, nós não relacionamos a cor somente com um con-
em nós de princípio para uma gênese do próprio senso do belo. ceito do entendimento que se aplicaria diretamente a ela, nós
a relacionamos ainda com um outro conceito, que por si não
99. CI, § 41.
100. CI, § 30. 103. CI, Introdução, § 7.
101. CI, § 42. 104. CI, § 58.
102. CI, § 58. 105. CI, § 42.

72 73
diz respeito a um objeto de intuição, mas que se assemelha ao implica uma disposição ao ser normaF07. Como diz Kant o
conceito do entendimento porque coloca seu objeto em analo- próprio belo é símbolo do bem (ele quer dizer que o senso
gia com o objeto da intuição. Este outro conceito é uma Idéia do belo não é uma percepção confusa do bem, que não há
da razão, que se assemelha ao primeiro apenas do ponto de qualquer relação analítica entre o bem e o belo, mas uma re-
vista da reflexão. Assim, o lírio branco não é simplesmente lação sintética segundo a qual o interesse do belo nos dispõe
relacionado com os conceitos de cor e de flor, mas desperta ao ser moral, nos destina à moralidade) 108.Assim, a unidade
a Idéia de pura inocência, cujo objeto é apenas um análogo indeterminada e o acordo livre das faculdades não constituem
(reflexivo) do branco na flor de liS106.Eis que as Idéias são somente o mais profundo da alma, mas preparam o advento
objeto de uma apresentação indireta nas matérias livres da na- do mais elevado, isto é, a supremacia da faculdade de desejar,
tureza. Essa apresentação indireta chama-se simbolismo, e tem e tornam possível a passagem da faculdade de conhecer a essa
por regra o interesse do belo. faculdade de desejar.
Duas conseqüências se seguem: o próprio entendimento vê
seus conceitos amp)iados de maneira ilimitada; a imaginação
encontra-se liberada da coação do entendimento que ela sofria
ainda no esquematismo; torna-se capaz de refletir a forma livre-
mente. O acordo da imaginação como livre e do entendimento
o SIMBOLISMO NA ARTE, OU O GÊNIO
como indeterminado já não é simplesmente presumido: ele é
de alguma forma animado, vivificado, engendrado pelo interesse
do belo. As matérias livres da natureza sensível simbolizam as É verdade que tudo o que precede (o interesse do belo,
Idéias da razão; assim, elas permitem ao entendimento ampliar- a gênese do senso do belo, a relação do belo e do bem) só
se, à imaginação liberar-se. O interesse do belo testemunha uma diz respeito à beleza da natureza. Tudo repousa com efeito
unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades, como um sobre o pensamento de que a natureza produziu a beleza109. É
"ponto de concentração no supra-sensível", de onde decorre por isso que o belo na arte parece não ter relação com o bem,
seu livre acordo formal ou sua harmonia subjetiva. e o senso do belo na arte, não poder ser engendrado a partir
A unidade supra-sensível indeterminada de todas as facul- de um princípio que nos destine à moralidade. Donde a pa-
dades, e o acordo livre que dela deriva, são o mais profundo lavra de Kant: respeitável aquele que sai de um museu a fim
da alma. Com efeito, quando o acordo das faculdades se encon- de voltar-se para as belezas da natureza ...
tra determinado por uma delas (o entendimento no interesse A menos que também a arte não se revele ajuizável, à
especulativo, a razão no interesse prático), supomos que as fa- sua maneira, segundo uma matéria e uma regra forneci das pela
culdades são em princípio capazes de uma livre harmonia (a natureza. Mas a natureza, aqui. só pode proceder por uma
partir do interesse do belo), sem a qual nenhuma dessas de- disposição inatà no suieito. O Gênio é precisamente essa dis-
terminações seria possível. Mas, por outro lado, o acordo livre posição inata pela qual a natureza dá à arte uma regra sinté-
das faculdades deve já fazer aparecer a razão como chamada tica e uma rica matéria. Kant define o gênio como a facul-
a desempenhar o papel detenninante no interesse prático ou no dade das ldéias estéticasllO• À primeira vista, uma Idéia esté-
domínio moral. É neste sentido que a destinação supra-sensível tica é o contrário de uma Idéia racional. Esta é um conceito
de todas as nossas faculdades é a pré-destinação de um ser ao qual nenhuma intuição é adequada; aquela, uma intuição à
moral; ou que a idéia do supra-sensível como unidade indeter- qual nenhum conceito é adequado. Mas perguntar-se-á se esta
minada das faculdades prepara a idéia do supra-sensível de tal
maneira que ela é praticamente determinada pela razão (como
107. Cl, § 42.
princípio dos fins da liberdade); ou que o interesse do belo 108. Cl, § 59.
109. Cl, § 42.
106. Cl, §§ 42 e 59. 110. Cl, § 57, observação r.

74 75
relação inversa é suficiente para descrever a Idéia estética. A natureza que é símbolo do bem; é ainda o belo na arte, sob
Idéia da razão ultrapassa a experiência, seja porque ela não tem a regra sintética e genética do próprio gênio115•
objeto que lhe corresponda na natureza (por exemplo, seres À estética formal do gosto, Kant acrescenta pois uma
invisíveis); seja porque ela faz de um simples fenômeno da na- meta-estética material, cujos dois principais capítulos são o
tureza um acontecimento do espírito (a morte, o amor ... ). A interesse do belo e o gênio, e que revela um romantismo kan-
Idéia da razão contém, pois, algo de inexprimível. Mas a idéia tiano. Notadamente, à estética da linha e da composição, por-
estética ultrapassa todo conceito, porque ela cria a intuição de tanto da forma, Kant acrescenta uma meta-estática das maté-
uma natureza diferente da que nos é dada: outra natureza, cujos rias, das cores e dos sons. Na Crítica do juízo, o classicismo
fenômenos seriam verdadeiros acontecimentos espirituais, e os acabado e o romantismo nascente encontram um equilíbrio
acontecimentos do espírito, determinações naturais imediatas111• complexo.
Ela "leva a pensar", ela força a pensar. A idéia estética é a Não se deve confundir as diversas maneiras pelas quais,
mesma coisa que a Idéia racional: ela exprime o que há nesta segundo Kant, as Idéias da razão são suscetíveis de uma apre-
de inexprimível. Eis porque ela aparece como uma representa- sentação da natureza sensível. No sublime, a apresentação é
ção "secundária", uma expressão segunda. Por isso mesmo, ela direta mas negativa, e se faz por projeção; no simbolismo na-
está bastante próxima do simbolismo (o gênio também procede tural ou no interesse do belo, a apresentação é positiva, mas
por ampliação do entendimento e liberação da imaginação) 112.
indireta, e se faz por reflexão; no gênio ou no simbolismo
I

I Mas, em lugar de apresentar indiretamente a Idéia na natureza,


artístico, a apresentação é positiva, mas secundária, e se faz
I,
ela a exprime secundariamente, na criação imaginativa de uma
outra natureza. pela criação de uma outra natureza. Veremos, mais adiante,
que a Idéia é suscetível de um quarto modo de apresentação,
O gênio não é o gosto, mas ele anima o gosto na arte,
dando-lhe uma alma ou uma matéria. Há obras que são per- o mais perfeito, na natureza concebida como sistema de fins.
feitas do ponto de vista do gosto, mas que são sem alma,
isto é, sem gênio113• f: que o gosto é somente o acordo formal
de uma imaginação livre e de um entendimento ampliado. Ele
permanece morno e morto, e somente presumido, se não reme- o JUIZO Ê UMA FACULDADE?
te a uma instância mais elevada, como a uma matéria capaz
precisamente de ampliar o entendimento e de liberar a imagi-
nação. O acordo da imaginação e do entendimento, nas artes, O juízo é sempre uma operação complexa que consiste
só é vivific~do pelo gênio. e sem ele permaneceria incomuni- em subsumir o particular ao geral. O homem do juízo é sem-
cável. O gênio é um apelo lançado a um outro gênio: mas, pre um homem da arte: um expert, um médico, um jurista.
entre os dois, o gosto torna--se uma espécie de intermediário; O juízo implica um verdadeiro dom, um fa1'0116• Kant foi o
e ele permite esperar, quando o outro gênio ainda não nas- primeiro que soube colocar o problema do juízo ao nível de
ceu114• O gênio exprime a unidade supra-sensível de todas as sua tecnicidade ou de sua originalidade própria. Em textos cé-
faculdades, e a exprime como viva. Fornece pois a regra sob lebres, Kant distingue dois casos: ou bem o geral é já dado,
a qual as conclusões do belo na natureza podem ser extendidas conhecido e basta aplicá-Io, isto é, determinar o particular ao
ao belo na arte. Do mesmo modo não é somente o belo na qual se aplica ("uso apodítico da razão", "juízo determinante");
ou bem o geral é problemático, e deve ele mesmo ser encon-
111. CI, § 49.
112. lbid. 115. Contrariamente ao § 42, o § 59 ("da beleza, símbolo da morali-
113. lbid. dade") vale tanto para a arte como para a natureza.
114. lbid. 116. CRP, Analítica, "do juízo transcenctental em geral".

76 77
trado ("uso hipotético da razão", "juízo reflexivo")1l7. Entretan- terminado, que uma das faculdades exerce uma função deter-
to, esta distinção é muito mais complicada do que parece: ela minante ou legisladora.
deve ser interpretada, tanto do ponto de vista dos exemplos :Ê pois importante fixar os exemplos correspondentes aos
como da significação. dois tipos de juízo, o "determinante" e o "reflexivo". Vejamos,
Um primeiro erro seria o de acreditar que apenas o juízo por exemplo, um médico que sabe o que é a tifóide (conceito),
reflexivo implica uma invenção. Mesmo quando o geral é dado, mas não a reconhece em um caso particular (juízo ou diag-
é preciso o juízo para realizar a subsunção. Sem dúvida, a nóstico). Teríamos tendência a ver no diagnóstico (que impli-
lógica transcendental distingue-se da lógica formal, porque con- ca um dom e uma arte) um exemplo de juízo detenninante,
tém regras que indicam a condição sob a qual se aplica um visto que o conceito é supostamente conhecido. Mas, em rela-
conceito dado1l8. Mas, essas regras não se reduzem ao próprio ção a um caso particular dado, o próprio conceito não é dado;
conceito: para aplicar um conceito do entendimento, é preciso ele é problemático ou completamente indeterminado. De fato,
o esquema, que é um ato inventivo da imaginação capaz de o diagnóstico é um exemplo de juízo reflexivo. Se procuramos
indicar a condição sob a qual casos particulares são subsumi- na medicina um exemplo de juízo determinante, devemos antes
dos ao conceito. Também o esquematismo é já uma "arte", e o pensar numa decisão terapêutica: nesse caso, o conceito é efe-
tivamente dado em relação ao caso particular, mas o difícil é
esquema, um esquema dos "casos compreendidos pela lei".
Seria portanto errôneo crer que o entendimento julga por si aplicá-Io (contra-indicações em função do doente, etc.).
mesmo: o entendimento não pode fazer de seus conceitos outro Não se pode dizer exatamente que haja menos arte ou
invenção no juízo reflexivo. Mas apenas que essa arte é aí
uso senão o de julgar, mas esse uso implica um ato original
da imaginação e também um ato original da razão (este é o distribuída de outra forma. No juízo determinante, a arte está
como que "oculta": o conceito é dado, seja conceito do enten-
motivo pelo qual o juízo determinante aparece, na Crítica da
dimento, seja lei da razão; há pois uma faculdade legisladora
razão pura, como um certo exercício da razão). Cada vez que
que dirige ou determina o contributo original das outras facul-
Kant fala do juízo como de uma faculdade, é para marcar a
dades, de maneira que fica difícil avaliar esse contributo. Mas,
originalidade de seu ato, a especificidade de seu produto. Mas,
no juízo reflexivo, nada é dado do ponto de vista das faculda-
o juízo implica sempre várias faculdades e exprime o acordo des ativas: apenas uma matéria bruta se apresenta sem ser,
entre elas. O juízo é chamado determinante, quando exprime propriamente falando, "representada". Todas as faculdades ati-
o acordo das faculdades sob uma faculdade ela própria de- vas se exercem, portanto, livremente em relação a ela. O juízo
terminante, isto é, quando determina um objeto em conformi- reflexivo exprimirá um acordo livre e indeterminado entre
dade com uma faculdade estabelecida em princípio como legis- todas as faculdades. A arte, que permanecia oculta e como
ladora. Assim, o juízo teórico exprime o acordo das faculda- que subordinada no juízo determinante, torna-se manifesta e
des que detennina um objeto em conformidade com o enten- exerce-se livremente no juízo reflexivo. Sem dúvida, podemos
dimento legislador. Da mesma forma, há um juízo prático, que por "reflexão" descobrir um conceito que já existe; mas o juízo
determina se uma ação possível é um caso submetido à lei reflexivo será tanto mais puro quanto não houver em absoluto
moral: ele exprime o acordo do entendimento e da razão, sob conceito para a coisa sobre a qual ele reflete livremente ou
a presidência da razão. No juízo teórico, a imaginação fornece quanto o conceito for (de uma certa maneira) ampliado, ilimi-
um esquema em conformidade com o conceito do entendimen- tado, indeterminado.
to; no juízo prático, o entendimento fornece um tipo em con- Na verdade, juízo detenninal1te e juízo reflexivo não são
formidade com a lei da razão. Significa o mesmo dizer que o como duas espécies de um mesmo gênero. O juízo reflexivo
juízo determina um objeto, que o acordo das faculdades é de- manifesta e libera um fundo que permanecia oculto no outro.
Mas, o outro, só era juízo por conta desse fundo vivo. Não
se compreenderia, caso contrário, por que a Crítica do juízo
117. CRP, Dialética, Apêndice, "do uso regulador das Idéias".
pode intitular-se assim, ainda que só trate do juízo reflexivo.
118. CRP, Analítica, "do juízo transcendental em geral",

79
78
Ê que todo acordo determinado das faculdades, sob uma facul- dade sistemática. Elas não deixam de ter um valor objetivo,
dade determinante e legisladora, supõe a existência e a possi- ainda que "ihdeterm,inado"; pois não podem conferir uma uni-
bilidade de um acordo livre indeterminado. É nesse acordo livre dade sistemática aos conceitos sem emprestar uma unidade
que o juízo não somente é original (o que já acontecia no caso semelhante aos fenômenos considerados em sua matéria ou em
do juízo determinante), como manifesta o princípio de sua ori- sua particularidade. Esta unidade, admitida como inerente aos
ginalidade. Segundo esse princípio, nossas faculdades diferem fenômenos, é uma unidade final das coisas (máximo de uni-
em natureza, mas não deixam de experimentar um acordo livre dadena maior variedade possível, sem que se possa dizer até
e espontâneo que torna possível seu exercício sob a presidência onde vai essa unidade). Esta unidade final só pode ser conce-
de uma dentre elas, segundo uma lei dos interesses da razão. bida segundo um conceito de fim natural; com efeito, a unidade
Sempre o juízo é irredutível ou original; razão pela qual ele do diverso exige uma relação da diversidade com um fim de-
pode ser chamado de "uma" faculdade (dom ou arte específi- terminado, segundo os objetos que são relacionados a essa uni-
ca). Jamais consiste numa única faculdade, mas cm seu acordo, dade. Neste conceito de fim natural, a unidade é sempre apenas
seja em um acordo já determinado por uma dentre elas, que presumida ou suposta, como conciliável com a diversidade das
exerce um papel legislador, seja mais profundamente num livre leis empíricas particulares12o• Também não exprime um ato pelo
acordo indeterminado, que constitui o objeto último de uma qual a razão seria legisladora. O entendimento tampouco legis-
"crítica do juízo" em geral. la. O el1tendimento legisla sobre os fenômenos, mas somente
enquanto são considerados na forma de sua intuição; seus atos
legisladores (categorias) constituem pois as leis gerais, e se
exercem sobre a natureza como objeto de experiência possível
DA ESTÉTICA À TELEOLOGIA (toda mudança tem uma causa ... , etc.). Mas o entendimento
jamais determina a priori a matéria dos fenômenos, o detalhe
da experiência real ou as leis particulares deste ou daquele
objeto. Estas leis só são conhecidas empiricamente e permane-
Quando a faculdade de conhecer é apreendida sob sua cem contingentes em relação a nosso entendimento.
forma superior, o entendimento legisla nesta faculdade; quando Toda lei pressupõe necessidade. Mas a unidade das leis
a faculdade de desejar é apreendida sob sua forma superior, a empíricas, do ponto de vista de sua particularidade, deve ser
razão legisla nesta faculdade. Quando a faculdade de sentir é
pensada como uma unidade tal que somente um entendimento
apreendida sob sua forma superior, é o juízo que legisla nesta que não seja o nosso poderia torná-Ia necessariamente presente
faculdade1l9• Ainda este caso é muito diferente dos dois outros:
aos fenômenos. Um "fim" define-se precisamente pela repre-
o juízo estético é reflexivo; ele não legisla sobre objetos, mas sentação do efeito como motivo ou fundamento da causa; a
somente sobre si mesmo; não exprime uma determinação de unidade final d()s fenômenos remete a um entendimento capaz
objeto sob uma faculdade determinante, mas um acordo livre
de lhe servir de princípio ou substrato, no qual a representação
de todas as faculdades a propósito de um objeto refletido. - do todo seria causa do próprio todo enquanto efeito (entendi-
Devemos perguntar se não há um outro tipo de juízo reflexivo, mento-arquétipo, intuitivo, definido como causa suprema inte-
ou se um livre acordo das faculdades subjetivas se manifesta ligente e intencional). Mas seria um erro pensar que um tal
de outra forma, fora do juízo estético. entendimento existe na realidade, ou que os fenômenos sejam
Sabemos que a razão, em seu interesse especulativo, forma efetivamente produzidos dessa maneira: o entendimento-arqué-
Idéias cujo sentido é somente regulador. Isto é: elas não têm tipo exprime um caráter próprio de nosso entendimento, isto
objeto determinado do ponto de vista do conhecimento, mas é, nossa própria impotência em determinar o particular, nossa
conferem aos conceitos do entendimento um máximo de uni- impotência em conceber a unidade final dos fenômenos segun-

119. Cl, Introdução, §§ 3 e 9. 120. CI, Introdução, § 5 (d. CRP, Dialética, Apêndice).

80 81
do um outro princípio que não o da causalidade intencional em que os próprios objetos da experiência apresentam essa
de uma causa supremal21. :e neste sentido que Kant introduz unidade final natural, em relação a qual o objeto da Idéia deve
uma transformação profunda na noção dogmática de entendi- servir de princípio ou substrato. Também é o conceito de uni-
mento infinito: o entendimento-arquétipo só exprime ao infi;. dade final ou de fim natural que nos obriga a determinar Deus
nito o limite próprio de nosso entendimento, o ponto onde este como causa suprema intencional agindo ao modo de um enten-
deixa de ser legislador em relação a nosso próprio interesse dimento. Nesse sentido, Kant insiste muito sobre a necessidade
especulativo e em relação aos fenômenos. "Segundo a consti- de se ir de uma teleologia natural à teologia física. O caminho
tuição particular de minhas faculdades de conhecer, eu não inverso seria um mau caminho, manifestando uma "Razão
posso, no que se refere à possibilidade da natureza e de sua transtornada" (a Idéia teria então um papel constitutivo e não
produção, julgar de outra forma senão imaginando uma causa mais regulador, o juízo teleológico seria tomado como deter-
que age por intenção."122 minante). Não encontramos na natureza fins divinos intencio-
A finalidade da natureza está portanto ligada a um duplo nais; ao contrário, partimos de fins que são os da natureza,
movimento. De um lado, o conceito de fim natural deriva das acrescentando a eles a Idéia de uma causa divina intencional
Idéias da razão (enquanto exprime uma unidade final dos fe- como condição de sua compreensão. Não impomos fins à na-
nômenos): "Ele subsume a natureza a uma causalidade con- tureza "violenta e ditatorialmente"; ao contrário, refletimos
cebível somente pela razão"123. Conclui-se que ele não se con- sobre a unidade final natural, empiricamente conhecida na di-
funde com uma Idéia racional, pois o efeito conforme a essa versidade, para nos elevarmos até a Idéia de uma causa su-
causalidade encontra-se efetivamente dado na natureza: "Nesse prema determinada por analogia125. - O conjunto desses
ponto, o conceito de fim natural distingue-se de todas as outras dois movimentos define um novo modo de apresentação da
idéias"124. Diferentemente de uma Idéia da razão, o conceito Idéia, último modo que se distingue daqueles que analisamos
de fim natural tem um objeto dado; diferentemente de um anteriormente.
11
,

conceito do entendimento, ele não determina seu objeto. De Qual a diferença entre os dois tipos de juízo, o teleológi-
fato, ele intervém para permitir à imaginação "refletir" sobre co e o estético? Devemos considerar que o juízo estético já
o objeto de maneira indeterminada, de tal forma que o enten- manifesta uma verdadeira finalidade. Mas trata-se de uma fina-
dimento "adquira" conceitos em conformidade com as Idéias lidade subjetiva, formal excluindo todo fim (objetivo ou sub-
da própria razão. O conceito de fim natural é um conceito de jetivo). Essa finalidade estética é subjetiva, visto que consiste
reflexão que deriva das Idéias reguladoras: nele, todas as nos- no livre acordo entre as faculdades126. Sem dúvida, ela coloca
sas faculdades se harmonizam, e entram em um livre acordo, em jogo a forma do objeto, mas a forma é precisamente aquilo
graças ao qual refletimos sobre a Natureza do ponto de vista que a imaginação reflete do próprio objeto. Trata-se pois,
de suas leis empíricas. O juízo teleológico é pois um segundo objetivamente, de uma pura forma subjetiva da finalidade, ex-
tipo de juízo reflexivo. cluindo todo fim material determinado (a beleza de um objeto
Inversamente, a partir do conceito de fim natural deter- não é avaliada por seu uso, por sua perfeição interna, ou por
minamos um objeto da Idéia racional. Sem dúvida, a Idéia não sua relação com um interesse prático qualquer) 127.Contrapor-
tem nela própria um objeto determinado; mas seu objeto é se-á que a natureza intervém, como vimos, por sua aptidão
determinável por analogia com os objetos da experiência. Ora, material para produzir a beleza; neste sentido, já devemos falar
essa determinação indireta e analógica (perfeitamente conciliá- a propósito do belo, de um acordo contingente da Natureza
vel com a função reguladora da Idéia) só é possível na medida com nossas faculdades. Essa aptidão material é mesmo para

121. Cl, § 77. 125. CRP, Dialética, Apêndice, "do objetivo final da dialética natural".
122. Cl, § 75. - Cl, §§ 68, 75 e 85.
123. Cl, § 74. 126. Donde Cl, § 34, a expressão "finalidade subjetiva recíproca".
124. Cl, § 77. 127. C~ §§ 11 e 15.

82 83
l1óSobjeto de um "interesse" particular. Mas esse interesse não natureza em relação a nós)130.A diferença entre os dois juízos
faz. parte do próprio senso do belo, ainda que nos forneça um consiste no seguinte: o juízo teleológico não remete a princí-
princípio a partir do qual esse senso possa ser engendrado. pios particulares (salvo em seu uso ou em sua aplicação). Ele
Aqui, o acordo contingente da Natureza e .de nossas faculda- implica sem dúvida o acordo da razão, da imaginação e do
des permanece de alguma maneira exterior ao livre acordo entre entendimento, sem que este legisle; mas esse ponto, onde o
as faculdades: a natureza nos dá somente a ocasião exterior
entendimento abandona suas pretensões legisladoras, é parte
"de aprender a finalidade interna da relação de nossas faculda- integrante do interesse especulativo e permanece compreendido
des subjetivas"128. A aptidão material da Natureza não cons- no domínio da faculdade de conhecer. f: por isso que o fim
titui um fim natural (que viria contradizer a idéia de uma fi- natural é o objeto de uma "representação lógica". Sem dúvida,
1I
nalidade sem fim): "Somos nós que recebemos a naturezafa- há um prazer da reflexão no próprio juízo teleológico; não
voravelmente, enquanto que ela mesma não nos faz qualquer experimentamos prazer na medida em que a Natureza é neces-
favor"129. sariamente submetida a faculdade de conhecer, mas o experi-
A finalidade, sob esses diferentes aspectos, é o objeto de mentamos na medida em que a Natureza entra em acordo de
uma "representação estética". Ora, vemos que nessa represen- maneira contingente com nossas faculdades subjetivas. Mas, aí
tação o juízo reflexivo faz apelo a princípios particulares de ainda, esse prazer teleológico confunde-se com o conhecimen-
várias maneiras: de um lado, o acordo livre das faculdades to: não define um estado superior da faculdade de sentir to-
como fundamento desse juízo (causa formal); de outro lado, mada em si mesma, mas antes um efeito da faculdade de co-
a faculdade de sentir como matéria ou causa material, em re- nhecer sobre a faculdade de sentir131.
lação a qual o juízo define um prazer particular como estado Que o juízo teleológico não remete a um princípio a priori
superior; de outra parte, a forma da finalidade sem fim como particular, explica-se facilmente. É que ele é preparado pelo
causa final; finalmente, o interesse especial pelo belo, como juízo estético, e permaneceria incompreensível sem essa prepa-
causa fiendi segundo a qual é engendrado o senso do belo que ração132. A finalidade formal estética nos "prepara" para for-
se exprime de direito no juízo estético. mar um conceito de fim que se acrescenta ao princípio de fi-
Quando consideramos o juízo teleológico, nós nos encon- nalidade, completa-o e aplica-o à natureza; é a reflexão sem
tramos diante de uma bem diversa representação da finalidade. conceito que nos prepara para formar um conceito de reflexão.
Trata-se agora de uma finalidade objetiva, material, implican- De fato, não há problema de gênese, à propósito de um senso
do fins. O que domina é a existência de um conceito de fim comum teleológico; este é admitido ou presumido no interesse
natural, que exprime empiricamente a unidade final das coisas especulativo, faz pa~te do senso comum lógico, mas encontra-
em função de sua diversidade. A "reflexão" muda pois de sen- se de alguma forma atraído pelo senso comum estético.
tido: não mais reflexão formal do objeto sem conceito, mas Se consideramos os interesses da razão que correspondem
conceito de reflexão pelo qual se reflete sobre a matéria do às duas formas de juízo reflexivo, reencontramos o tema de
uma "preparação", mas em um outro sentido. A estética ma-
objeto. Nesse conceito, nossas faculdades se exercem livre e
harmoniosamente. Mas aqui o acordo livre das faculdades per- nifesta um acordo livre das faculdades que se liga, de uma
manece compreendido no acordo contingente da Natureza e certa maneira, a um interesse especial pelo belo; ora, esse
das próprias faculdades. De modo que, no juízo teleológico, interesse nos predestina ao ser moral, portanto prepara o
advento da lei moral ou a supremacia do interesse prático
devemos considerar que a Natureza nos faz realmente um favor puro. A teleologia, por seu lado, manifesta um acordo livre
(e quando, da teleologia, retomamos à estética, consideramos
das faculdades, desta vez no próprio interesse especulativo:
que a produção natural das coisas belas era já um favor da
130. Cl, § 67.
128. CI, § 58. 131. el, Introdução, li 6.
129. Ibid.
132. Cl, Intr<>dução, § 8.

84
85
"sob" a relação das faculdades, tal como é determinada pelo
entendimento legislador, descobrimos uma livre harmonia de
todas as faculdades entre si, de onde o conhecimento extrai
uma vida própria (vimos que o juízo determinante, no próprio
conhecimento, implicava um fundo vivo que se revela somente
à "reflexão"). É preciso pois pensar que o juízo reflexivo em
geral torna possível a passagem da faculdade de conhecer à
faculdade de desejar, do interesse especulativo ao interesse prá-
tico, e prepara a subordinação do primeiro ao segundo, ao
mesmo tempo em que a finalidade torna possível a passagem
da natureza à liberdade ou prepara a realização da liberdade
na natureza133• .

Conclusão -------

Os fins da razão

r
j
133. CJ, Introdução, §§ 3 e 9.

86

1
DOUTRINA DAS FACULDADES

As três Críticas apresentam um verdadeiro sistema de per-


mutações. Em primeiro lugar, as faculdades são definidas se-
gundo as relações da representação em geral (conhecer, dese-
jar, sentir). Em segundo lugar, como fontes de representações
(imaginação, entendimento, razão). Segundo se considere tal ou
tal faculdade no primeiro sentido, tal faculdade no segundo
sentido é chamada a legislar sobre objetos, e a distribuir às
outras faculdades sua tarefa específica: assim o entendimento
na faculdade de conhecer, a razão na faculdade de desejar.
:Ê verdade que, na Crítica do juízo, a imaginação não alcança
por sua própria conta uma função legisladora. Mas ela se libe-
ra, de modo que todas as faculdades juntas entram em um
livre acordo. As duas primeiras Críticas expõem pois uma re-
lação das faculdades determinada por uma dentre elas; a últi-
ma Crítica descobre mais profundamente um acordo livre e
indeterminado das faculdades, como condição de possibilidade
de toda relação determinada.
Este acordo livre aparece de duas maneiras: na faculdade
de conhecer, como um fundo suposto pelo entendimento legis-
lador; e por si mesmo, como um germe que nos destina à razão
legisladora ou à faculdade de desejar. Também é ele o mais
profundo da alma, mas não o mais elevado. O mais elevado
é o interesse prático da razão, aquele que corresponde à facul-
dade de desejar e que subordina a faculdade de conhecer ou
o próprio ihteresse especulativo.

89
A originalidade da doutrina das faculdades em Kant con- Também deve ser preparado pelo juízo estético, e o conceito
siste no seguinte: que sua forma superior jamais as abstrai de de fim natural supõe de início a pura forma da finalidade sem
sua finitude humana, assim como não suprime sua diferença fim. Mas, em compensação, quando chegamos ao conceito de
de natureza. :E: enquanto específicas e finitas que as faculdades fim natural, coloca-se para o juízo teleol6gico um problema
no primeiro sentido da palavra alcançam uma forma superior, que não se colocava para o juízo estético: o estético deixava
e que as faculdades no segundo sentido alcançam o papel ao gosto o encargo de decidir qual objeto devia ser julgado
legislador. belo, a teleologia, ao contrário, exige regras que indiquem as
O dogmatismo afirmava uma harmonia entre o sujeito e o condições sob as quais julga":se uma coisa segundo o conceito
objeto, e invocava Deus (desfrutando de faculdades infinitas) de fim naturaJl35. A ordem de dedução é portanto a seguinte:
para garantir essa harmonia. As duas primeiras Críticas subs- da forma da finalidade ao conceito de fim natural (exprimin-
tituem, nesse ponto, a idéia de uma submissão necessária do do a unidade final dos objetos do ponto de vista de sua ma-
objeto ao sujeito "finito": nós, os legisladores, em nossa pr6- téria ou de suas leis particulares); e do conceito de fim natu-
pria finitude (mesmo a lei moral é a ação de uma razão fi- ral à sua aplicação na natureza (exprimindo para a reflexão
nita). Tal é a revolução copernicanal34. Mas, deste T>0ntode que objetos devem ser julgados a partir desse conceito).
vista, a Crítica do juízo parece levantar uma dificuldade par- Esta aplicação é dupla: ou bem aplicamos o conceito de
ticular: no momento em que Kant descobre um livre acordo fim natural a dois objetos, dos quais um é causa e o outro
sob a relação determinada das faculdades, não reintroduz sim- efeito, de tal maneira que se introduza a idéia do efeito na
plesmente a idéia de harmonia e de finalidade? E isto de duas causalidade da causa (exemplo, a areia como meio em relação
maneiras: no acordo dito "final" entre as faculdades (finali- às florestas de pinheiros). Ou bem o aplicamos a uma mesma
dade subjetiva), e no acordo dito "contingente" da natureza coisa como causa e efeito dela mesma, isto é, a uma coisa
e das próprias faculdades (finalidade objetiva). cujas partes se produzem reciprocamente em sua forma e em
Entretanto, o essencial não está aí. O essencial é que a sua ligação (seres organizados, organizando-se eles mesmos):
Crítica do juizo fornece uma nova teoria da finalidade, que desta maneira, introduzimos a idéia do todo, não enquanto
corresponde ao ponto de vista transcendental e se concilia per- causa da existência da coisa ("pois seria então um produto da
feitamente com a idéia de legislação. Esta tarefa é preenchida arte"), mas enquanto fundamento de sua possibilidade como
na medida em que a finalidade não tern mais um princípio produto da natureza do ponto de vista da reflexão. No primei-
teológico, mas é antes a teologia que tem um fundamento ro caso, a finalidade é externa; no segundo, interna136. Ora,
"final" humano. Donde a importância das duas teses da Crí- essas duas finalidades têm relações complexas.
tica do juízo: o acordo final das faculdades é o objeto de uma De um lado, a finalidade externa por si mesma é pura-
gênese particular; a relação final da Natureza e do homem mente relativa e hipotética. Para que ela deixasse de sê-Ia,
é o resultado de uma atividade prática propriamente humana. seria necessário que fôssemos capazes de determinar um fim
último; o que é impossível pela observação da natureza. Nós
observamos apenas meios que são já fins em relação à sua
causa, fins que são ainda meios em relação a outra coisa. So-
TEORIA DOS FINS mos portanto forçados a subordinar a finalidade externa à fi-
nalidade interna, isto é, a considerar que uma coisa só é um
meio na medida em que o fim ao qual ela serve é ele próprio
ajuízo teleológico não remete, como o juízo estético, a um ser organizado137.
um princípio que sirva de fundamento a priori à sua reflexão.
135. C/, Introdução, § 8.
134. Cf. os comentários de Vuillemin sobre a "finitude constituinte", 136. C/, §§ 63-65.
in L'héritage kantien et Ta révoTution copernicienne. 137. C/, § 82.

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1

Mas, por outro lado, é duvidoso que a finalidade interna esse fim não seria nada, se a existência daquele que conhece
não remeta, por sua vez, a uma espécie de finalidade externa, :1

não fosse já objetivo finaP42. Conhecendo, formamos apenas


e não levante a questão (que parece insolúvel) de um fim ')
um conceito de fim natural do ponto de vista da reflexão, não
último. Com efeito, quando aplicamos o conceito de fim natu- uma idéia de objetivo final. Sem dúvida, com a ajuda deste
ral aos seres organizados, somos conduzidos à idéia de que a conceito, somos capazes de determinar indireta e ana10gica-
natureza inteira é um sistema que segue a regra dos fins13s. mente o objeto da Idéia especu1ativa (Deus como autor inte-
A partir dos seres organizados, somos remetidos às relações ligente da Natureza). Mas "por que Deus criou a Natureza?"
exteriores entre esses seres, relações que deveriam cobrir o con- subsiste como uma questão completamente inacessível a essa
junto do universo139. Mas, precisamente, a Natureza só poderia determinação. n neste sentido que Kant lembra, constantemen-
formar um tal sistema (em lugar de um simples agregado) em te, a insuficiência da te1eo10gia natural como fundamento de
função de um fim último. Ora, é claro que nenhum ser orga- uma teologia: a determinação da Idéia de Deus a qual chega-
nizado pode constituir tal fim: sobretudo o homem enquanto mos por esta via nos dá apenas uma opinião, não uma cren-
espécie animal. n que um fim último implica a existência de
ça143.Enfim, a te1eologia natural justifica o conceito de uma
alguma coisa como fim; mas, a finalidade interna. nos seres causa criadora inteligente, mas apenas sob o ponto de vista da
organizados diz respeito somente à sua possibilidade sem con-
siderar se sua existência é ela própria um fim. A finalidade possibilidade das coisas existentes. A questão de um objetivo
interna coloca unicamente a questão: por que certas coisas final no ato de criar (para que serve a existência do mundo
existentes têm esta ou aquela forma? Mas deixa subsistir essa e do próprio homem?) ultrapassa toda te1eoJogia natural e não
outra questão: por que coisas desta forma existem? Só pode pode mesmo ser concebida por ela144.
ser considerado "fim último" um ser tal que o fim de sua exis- "Um obietivo final é apenas um conceito de nossa razão
tência esteja nele mesmo; a idéia de fim último implica por- prática.,,145A lei moral, com efeito, prescreve um fim sem con-
tanto a de objetivo final, que excede todas as nossas possibi- dicão. Nesse fim, é a própria razão que se toma como fim, a
lidades de observação na natureza sensível, como todos os re- liberdade que se dá necessariamente um conteúdo como fim
cursos de nossa reflexão140. supremo determinado pela lei. À questão "o que é objetivo
Um fim natural é um fundamento de possibilidade; um final?", devemos responder: o homem, mas o homem como
fim último é uma razão de existência; um objetivo final é um noumeno e existência supra-sensível, o homem como ser moral.
ser que possui em si a razão de existência. Mas o que é obje- "Em relação ao homem considerado como ser moral, não se
tivo final? Só pode ser aquele que pode se fazer um conceito pode mais perguntar por aue ele existe; sua existência contém
de fins; só o homem enquanto ser racional pode encontrar em em si o fim suoremo ... "146Esse fim supremo é a organizacão
si mesmo o fim de sua existência. Trata-se do homem enquan- dos seres racionais sob a lei moral, ou a liberdade como razão
to procura a felicidade? Não, pois a felicidade como fim deixa de existência contida em si no ser racional. Surge aqui a uni-
subsistir a questão: por que o homem existe (sob uma "forma" dade absoluta de uma finalidade prática e de uma le!?Íslação
tal, que ele se esforça por tornar sua existência feHz)l41?Trata- incondicionada. Essa unidade forma a "teleologia moral", en-
se do homem na medida em que ele conhece? Sem dúvida, o quanto a finalidade prática é determinada a priori em nós mes-
interesse especulativo constitui o conhecimento como fim; mas, mos com sua Iej147.

138. C/, § 67. (Ê inexato crer que, segundo Kant, a finalidade exter- 142. lbid.
na se subordina absolutamente à finalidade interna. O inverso é 143. C/, §§ 85, 91 e "observação geral sobre a teleologia".
verdadeiro de um outro ponto de vista.) 144. C/, § 85.
139. C/, § 82. 145. C/, § 88.
140. C/, §§ 82 e 84. 146. C/, § 84.
141. C/, § 86. 147. C/, § 87.

92 93
o objetivo final é portanto detenninável e determinado sível: a canceito de liberdade deve realizar na mundO' sensível
praticamente. Ora, nós sabemos como, conforme a segunda a fim imposta par sua lei. Esta realização é possível sob duas
Crítica, essa determinação conduz por sua vez a uma deter- espécies de condiçoes:condições divinas (a determinação prá-
minação prática da Idéia de Deus (como autor maral), sem tica das Idéias da razão, que torna possível um Soberano bem
a qual o objetivo final não poderia nem mesmo ser pensado como acordo entre o mundo sensível e o mundo supra-sensível,
como realizável. De qualquer maneira, a teologia funda-se sem- entre a felicidade ea moralidade); e condições terrestres (a
pre sobre uma teleologia (e não o inverso). Mas, ainda há fínalidade na estética e na teleologia, como tornando possível
pouco, nos elevamos de uma teleologia natural (conceito de uma realização do próprio Soberano bem, isto é, uma confor-
reflexão) a uma teologia física (determinação especulativa da midade do sensível a uma finalidade mais elevada). A reali-
Idéia reguladora, Deus como autor inteligente); se essa deter- zação da liberdade é pois, também, a efetuação do soberano
minação especulativa se conciliava com a simples regulação, bem: "União do maior bem-estar das criaturas racionais no
é precisamente na medida em que ela era completamente insu- mundo com a mais elevada condição do Bem moral em si"150.
ficiente, permanecendo condicionada empiricamente e nada nos Neste sentido, o objetivo final incondicional é fim último da
dizendo sobre um objetivo final da criação divina148. Agora, natureza sensível, sob as candições que o colocam como ne-
ao contrário, partimos a priari de uma teleologia prática (con- cessariamente realizável e devendo ser realizado nessa natureza.
ceito praticamente determinante do objetivo final) para uma Na medida em que o fim último não é outra coisa senão
teologia moral (determinação prática suficiente da Idéia de um o objetivo final, ele é objeto de um paradoxo fundamental:
Deus moral como objeto de crença). Não se deve pensar que o fim último da natureza sensível é um fim que ela própria
a teleologia natural seja inútil: é ela que nos impulsiona a não basta para realizar151. Não é a natureza que realiza a
buscar uma teologia, mas é incapaz de fornecê-Ia verdadeira- liberdade, mas o conceito de liberdade que se realiza ou se
mente. Não se deve pensar tampouco que a teologia moral efetua na natureza. A efetuação da liberdade e do Soberano
"completa" a teologia física, ou que a determinação prática bem no mundo sensível implica portanto uma atividade sinté-
das Idéias completa a determinação especulativa analógÍCa. De tica original do homem: a Hist6ria é essa efetuação; por isso
fato, ela a substitui segundo um autra interesse da razãa149• 'É não se deve confundi-Ia com um simples desenvolvimento da
do ponto de vista desse outro interesse que determinamos o natureza. A idéia de fim último implica certamente uma rela-
homem como objetivo final, e objetivo final para o conjunto ção final da natureza e do homem; mas essa relação é apenas
da criação divina. tornada possível pela finalidade natural. Nela mesma e formal-
mente, é independente da natureza sensível e deve ser estabe-
lecida, instaurada pelo homem152. A instauração da relação fi-
nal é a formação de uma constituição civil perfeita: esta é o
objeto mais elevado da Cultura, o fim da história ou o Sobe-
A HISTÓRIA OU A REALIZAÇÃO rano bem propriamente terrestre153.
I Este paradoxo pode ser facilmente explicado. A natureza
sensível enquanto fenômeno tem por substrato o supra-sensível.
A última questão é: como o objetivo final é também fim É somente nesse substrato que se conciliam o mecanismo e a
último da natureza? Isto é: como o homem, que só é objetivo finalidade da natureza sensível, um, referente ao que é neces-
final em sua existência supra-sensível e como naumena, pode sário nela como objeto dos sentidos, o outro, ao que é con-
ser fim último da natureza sensível? Sabemos que o mundo
supra-sensível, de uma certa maneira, deve estar unido ao sen-
150. Cl, § 88.
151. Cl, § 84.
148. CJ, § 88. 152. Cl, § 83.
149. CJ, "observação geral sobre a teleologia". 153. lbid. - E ldée d'une histoire universelle (IHU), próp. 5-8.

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tingente nela como objeto da razão154. É portanto um ardil da
Natureza supra-sensível que a natureza sensível não seja sufi- da razão pessoaJl58. Há, portanto, um segundo ardil da Natu-
ciente para realizar o que é, no entanto, "seu" fim último; reza, que não devemos confundir com o primeiro (ambos cons-
pois esse fim é o próprio supra-sensível, na medida em que tituem a história). De acordo com esse segundo ardil, a N a-
deve ser efetuado (isto é, ter um efeito no sensível). "A Na- tureza supra-sensível quis que, mesmo no homem, o sensível
tureza quis que o homem retirasse de si mesmo tudo o que procedesse segundo suas próprias leis para ser capaz de rece-
ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal, e ber finalmente o efeito do supra-sensível.
não participa de nenhuma outra felicidade ou perfeição senão
da que ele próprio cria, independentemente do instinto, por sua
própria razão. "155Assim, o que há de contingente no acordo
da natureza sensível com as faculdades do homem é uma su-
prema aparência transcendental, que esconde um ardil do su-
pra-sensível. - Mas, quando falamos do efeito do supra~sen-
sível no sensível, ou da realização do conceito de liberdade,
jamais devemos acreditar que a natureza sensível como fenô-
meno seja submetida à lei da liberdade ou da razão. Uma tal
concepção da história implicaria que os acontecimentos fossem
determinados pela razão, e pela razão tal como existe indivi-
dualmente no homem enquanto noumeno; os acontecimentos
manifestariam então um "desígnio racional pessoal" dos pró-
prios homens156. Mas a história, tal como aparece na natureza
sensível, mostra exatamente o contrário: puras relações de for-
ças, antagonismos de tendências que formam um tecido de lou-
curas assim como de vaidade pueril. É que a natureza sensível
permanece sempre submetida às leis que lhe são próprias. Mas,
se ela é incapaz de realizar seu fim último, nem por isso deixa,
de acordo com suas próprias leis, de tomar possível a realiza-
ção desse fim. É pelo mecanismo das forcas e pelo conflito
das tendências (cf. "a insociável sociabilidade") que a natureza
sensível, no próprio homem, preside o estabelecimento de uma
Sociedade. único meio no qual o fim último pode ser histori-
camente realizado157. Assim, o que parece sem sentido do pon-
to de vista dos desígnios de uma razão pessoal a priori pode
ser um "desígnio da Natureza", para assegurar empiricamente
o desenvolvimento da razão no quadro da espécie humana.
A história deve ser julgada do ponto de vista da espécie e não

154. Cl, § 77.


155. lHU, prop. 3.
156. lHU, introd.
157. lHU, prop. 4.
158. lHU, prop. 2.
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97
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

(Indicamos com um asterisco as obras que se apresentam


particularmente como introduções à leitura de Kant)

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BOUTROUX, *La philosophie de Kant (curso), Vrin. LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A
DAVAL, La métaphysique de Kant, Presses Universitaires de France.
VLEESCHAUWER, La déduction transcendentale dans l'oeuvre de Kant, Rua Barão de Lucena, 43 ZC-02
Allvers-Paris.
20.000 Rio de Janeiro, RJ
VUILLEMIN, Physique et métaphysique kantiennes, Presses Universi-
taires de France.
FILOSOFIA PRATICA
ALQUIÉ, *Introdução, edição Presses Universitaires de France, da Crí.
tica da razão prática.
- *La morale de Kant (curso), C.D.U.
DELBOS, La philosophie pratique de Kant, Alcan.
VIALATOUX, *La morale de Kant, Presses Universitaires de France.
FILOSOFIA DO JUIZO
M. SOURIAU, Le jugement réfléchissant dans Ia philosophie critique
de Kant, Alcan.
FILOSOFIA DA HISTORIA
DELBOS, ibid.
LACROIX, Histoire et mystere, Castermall.
Coletânea de artigos (E. Weil, Ruyssen, Hassner, Poliu ... ), La philo-
sophie politique de Kant, Presses Universitaires de France.

OS PROBLEMAS KANTIANOS NO PÓS-KANTISMO


DELBOS, De Kant aux postkantiens, Aubier.
GUÉROULT, L'évolution et la structure de Ia Doctrine de Ia Science ,
chez Fichte, Les Belles-Lettres.
\
VUILLEMIN, L'héritage kantien et la révolution copemicienne, Presses
Universitaires de France. .-..._.._- .. --.._.

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