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clínica médica

Diarreia aguda
Antônio Carlos Moraes
Gastroenterologista. Membro da Federação Brasileira de Gastroenterologia. Chefe do Serviço de
Clínica Médica do Hospital Copa D’Or — Rio de Janeiro.

Fernando M. M. Castro
Membro do Serviço de Clínica Médica do Hospital Copa D’Or.

Resumo Summary
Diarreia aguda é a passagem de quanti- Acute diarrhea is the passage of above
dade acima do normal de fezes amolecidas normal quantities of soft faeces also associa-
associada ao aumento do número de evacua- ted with increased bowel movements. Diffe-
ções. No diagnóstico diferencial das diarreias rential diagnosis of acute diarrhea should be
agudas devem ser enfocados as infecções, as focused on infections, food allergies, food
alergias alimentares, a intoxicação alimentar, poisoning, use of medications and the ini-
o uso de medicações e a apresentação inicial tial presentation of chronic diarrhea. Among
de diarreia crônica. Dentre estas possíveis these possible etiologies, given the envi-
etiologias, especialmente em nosso meio, as ronment we live in, infectious causes should
causas infecciosas devem sempre vir à mente always be taken into account and be one of
e constituir uma das primeiras opções na in- the first options in diagnostic investigation.
vestigação diagnóstica. As infecções intesti- Intestinal infections associated with diarrheal
nais associadas a quadros diarreicos são a se- frames are the second leading cause of in-
gunda causa de mortes de origem infecciosa fectious deaths worldwide, with an estimated
em todo o mundo, com prevalência estimada to 3-5 billion cases/per year. In this review,
de 3 a 5 bilhões de casos/ano. Os autores the authors intend to review the new fea-
atualizam as novidades e peculiaridades a tures and aspects concerning diagnosis and
respeito do diagnóstico e dos tratamentos — treatment — general and/or specific — of the
geral e/ou específico — dos diferentes agen- different agents associated with acute infec-
tes associados à diarreia aguda infecciosa. tious diarrhea.

Introdução no intestino, causando diarreia aquosa. Esses Unitermos: Diarreia;


Segundo a Organização Mundial de Gas- microrganismos levam à diarreia através de etiologia; abordagem
troenterologia (WGO), diarreia aguda é a interações variadas com a mucosa intestinal. diagnóstica; terapêutica
passagem de uma quantidade maior do que Por exemplo, a E. coli enterotóxica e o Vibrio geral; terapêutica
o normal de fezes amolecidas, além do au- cholerae não se disseminam além da mucosa específica.
mento do número de evacuações, que durem intestinal e causam o quadro sem qualquer
menos de 14 dias (1). Pode ser interpretada invasão do epitélio intestinal, através da Keywords: Diarrhea;
como um aumento na quantidade de água produção de enterotoxinas, que induzem à etiology; diagnostic
e eletrólitos nas fezes, levando à produção secreção de fluidos. Apesar de menos co- approach; treatment
frequente de fezes malformadas. É esse com- muns, alguns casos são por microrganismos generally; specific therapy.
prometimento no equilíbrio entre reabsorção invasivos. Estes penetram o epitélio intesti-
e secreção pela mucosa intestinal que leva à nal, resultando em distúrbio inflamatório. O
liquidificação das fezes. melhor exemplo é o da infecção por Shigella.
As causas da diarreia aguda podem ser Segundo a mais recente edição do
agrupadas em quatro categorias princi- livro-texto Sleisenger and Fordtran’s gastroin-
pais: bacterianas, virais, parasitárias e não testinal and liver disease (2), o diagnóstico
infecciosas. Frequentemente, nos quadros diferencial nos casos de diarreia aguda deve
infecciosos, estão envolvidos microrganismos ter como enfoque cinco fatores principais
não invasivos, que são especialmente ativos (Quadro 1): infecções (Quadro 2), alergias

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Diarreia aguda

QUADRO 1: Diagnóstico QUADRO 2: Infecções que causam QUADRO 3: Medicamentos e toxinas


diferencial da diarreia diarreia associadas à diarreia
aguda Bacterianas Redutores da secreção ácida (p. ex.:
Infecção Aeromonas spp. antagonistas H2, IBPs)
Bactérias Campylobacter spp.
Clostridium difficile Antiácidos
Parasitas
Escherichia coli (êntero-hemorrágica,
Protozoários Antiarrítmicos
enterotoxigênica, êntero-invasiva)
Viroses Plesiomonas spp. Antibióticos
Salmonella spp.
Alergia alimentar Shigella spp. Anti-inflamatórios (AINEs)
Intoxicação alimentar Virais Anti-hipertensivos
Adenovírus
Medicamentos Norovírus Antineoplásicos
Rotavírus
Quadro inicial de diarreia crônica Antirretrovirais
Parasitas ou protozoários Colchicina
Fonte: Sleisenger and Fordtran’s
gastrointestinal and liver disease. 9. ed.,
Criptosporidia
p. 217. Cyclospora Metais pesados
Entamoeba histolytica
Giardia lamblia Análogos da prostaglandina (p. ex.:
Microsporidia misoprostol)

Fonte: Sleisenger and Fordtran’s gastrointestinal and Suplementos vitamínicos e minerais


liver disease. 9. ed., p. 217.
Fonte: Sleisenger and Fordtran’s gastrointestinal and
liver disease. 9. ed., p. 217.

alimentares, intoxicação alimentar, uso de clássicas entre veículo de contaminação e


medicações (Quadro 3) e apresentação inicial patógeno estão dispostas no Quadro 4 (1).
de diarreia crônica.
Diarreias agudas infecciosas
Fatores de risco para diarreias Nos últimos anos, estudos, pesquisas e
Conforme exposto, as gastroenterites revisões — especialmente na área de Gas-
apresentam grande gama de etiologias troenterologia — têm sido direcionados
possíveis. No contexto das gastroenterites para doenças neoplásicas e autoimunes.
infecciosas, determinados comportamentos Com isso, as doenças infecciosas estão rece-
e/ou circunstâncias às quais os pacientes se bendo menor investimento. Há autores que
expõem, bem como algumas comorbidades chegam a afirmar que vivemos uma “ver-
que apresentam, são considerados fatores dadeira epidemia de doenças neoplásicas
de risco para a doença. São eles: viagem e imunológicas”. Tal afirmação é baseada
recente (especialmente para países em de- na simples observação de que, nos rounds
senvolvimento — áreas tropicais); alimentos e discussões de casos clínicos, nas esco-
ou circunstâncias alimentares incomuns (fru- las de Medicina, é frequente a dificuldade
Pontos-chave: tos do mar, especialmente crus; refeições em dos estudantes em pensar em causas infec-
restaurantes ou lanchonetes); homossexuali- ciosas, em detrimento das mais diversas e
> As gastroenterites apresentam dade, atividade sexual remunerada, uso de raras doenças inflamatórias, neoplásicas e
grande gama de etiologias drogas intravenosas (pessoas em risco de até genéticas, como possíveis diagnósticos
possíveis; infecção por HIV e de desenvolvimento de diferenciais. Contudo, em virtude de sua im-
SIDA); uso recente de antibióticos. portância e prevalência, especialmente em
> Comportamentos e/ou
circunstâncias são considerados Convém ressaltar também que diversos nosso meio, as causas infecciosas devem
fatores de risco para a doença; dados epidemiológicos contribuem para sempre vir à mente e figurar como uma das
o raciocínio diagnóstico. Tendo em vista a primeiras opções dentre os possíveis diag-
> Dados epidemiológicos epidemiologia de cada caso, é possível iden- nósticos diferenciais.
também contribuem para o tificar maior suspeição sobre determinados Segundo dados da Organização Mundial
raciocínio diagnóstico. agentes etiológicos. As associações mais da Saúde, as infecções intestinais associadas

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Diarreia aguda

QUADRO 4

Veículo Patógeno clássico

Água Vibrio cholerae, agente Norwalk, Giardia sp. e Cryptosporidium sp.

Alimentos
Aves domésticas Salmonella, Campylobacter e Shigella sp.
Carne bovina E. coli êntero-hemorrágica, Taenia saginata
Carne suína Tênia
Frutos do mar Vibrio cholerae, Vibrio parahaemolyticus e Vibrio vulnificus; Salmonella sp.; tênia e anisaquíase
Queijo Listeria sp.
Ovos Salmonella sp.
Alimentos contendo maionese Intoxicações alimentares por Staphylococcus e Clostridium; Salmonella
Tortas Salmonella, Campylobacter, Cryptosporidium e Giardia sp.

Zoonoses (animais de estimação e gado) Maioria das bactérias, vírus e parasitas entéricos

Interpessoal (incluindo contato sexual)


Creches Shigella, Campylobacter, Cryptosporidium e Giardia sp.; vírus; Clostridium difficile
Hospital, antibióticos ou quimioterapia Clostridium difficile
Piscina Giardia e Cryptosporidium sp.
Viagem internacional E. coli de vários tipos; Salmonella, Shigella, Campylobacter, Giardia e Cryptosporidium sp.;
Entamoeba histolytica

Fonte: WGO practice guidelines — Diarreia aguda em adultos, p. 3.

a quadros diarreicos são a segunda causa gastroenterites agudas nos desabrigados,


de morte de origem infecciosa em todo o rapidamente acometendo profissionais de
mundo (3). A prevalência estimada é de 3 a saúde, policiais, bombeiros e equipes de res-
5 bilhões de casos por ano. Nos países em gate, que tinham contato direto com estes
desenvolvimento estima-se a ocorrência de pacientes (6).
quatro a 10 episódios por habitante/ano.
Agentes etiológicos
Diarreia aguda de etiologia viral A maioria dos casos de gastroenterite
A gastroenterite viral é muito frequente, é causada por vírus, como observado em
com distribuição mundial. Estudos epidemio- estudos que avaliaram coproculturas de pa-
lógicos mostram que é a segunda doença cientes com diarreia aguda. Apenas 1,5% a
mais frequente entre as famílias norte-ame- 5,6% das coproculturas foram positivas (7).
ricanas (4). Afeta as diversas faixas etárias em No entanto, os casos mais graves em adultos
todos os períodos do ano, embora eventual- geralmente se devem a agentes bacterianos.
mente apresente picos sazonais. Há quatro agentes virais causadores de
A gastroenterite viral causa um signi- gastroenterite aguda: norovírus, rotavírus,
ficativo número de mortes nos países em adenovírus entérico e astrovírus. Pontos-chave:
desenvolvimento. Estima-se que apenas o Mais de 90% dos surtos de gastroenteri-
rotavírus seja responsável pela morte de te viral nos EUA são causados por norovírus. > A maioria dos casos de
aproximadamente 500 mil indivíduos/ano (5). Os cenários são os mais variados possíveis, gastroenterite é causada por
Nos EUA ocorrem algumas centenas de mor- tais como cruzeiros, asilos e quartéis. Den- vírus;
tes por gastroenterite, especialmente devido tre os métodos diagnósticos, a microscopia
> Os casos mais graves em
ao rotavírus e ao norovírus. No entanto, o eletrônica é considerada o padrão ouro, po-
adultos geralmente se devem
número de hospitalizações causadas por rém é um exame caro, sendo mais indicado
a agentes bacterianos;
rotavirose e norovirose é significativo, ultra- para pesquisa. Outro exame caro, apesar de
passando a marca de 65 mil/ano. sua boa sensibilidade e especificidade, é a > Os métodos imunológicos
Durante o furacão Katrina, o norovírus análise por PCR. Assim sendo, os métodos de diagnóstico são os mais
foi responsável por um grande número de imunológicos de diagnóstico são os mais valorizados na prática clínica.

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Diarreia aguda

valorizados na prática clínica. São capazes no ambiente e são extremamente resisten-


A diarreia é o principal de diagnosticar infecções pelos três princi- tes, inclusive à higienização com álcool gel. O
problema de saúde pais agentes com sensibilidade entre 80% e controle ambiental deve ser feito com solução
durante viagens, 90% e especificidade de 98% (8). Em publi- de hipoclorito. Um novo ribotipo foi detec-
afetando 10% a 50% dos cação recente (9), um novo teste de PCR com tado no Canadá e nos EUA a partir de 2003,
viajantes. Anualmente, transcriptase reversa — o Seeplex Diarrhea-V o Clostridium dif­ficile ribotipo-PCR 027 (10).
um número estimado de ACE (Seeplex DV) — demonstrou resultados Em diversos estudos, conduzidos entre 2001
10 milhões de pessoas promissores no diagnóstico de cinco agen- e 2009, não foi evidenciada a presença des-
— 20% a 50% dos tes virais comumente causadores de diarreia: te sorotipo em países da América do Sul (11).
viajantes internacionais — adenovírus, rotavírus, norovírus genogrupos I Contudo, em pesquisa conduzida entre junho
desenvolve a doença. (GI) e II (GII) e astrovírus. e novembro de 2011, em um hospital chileno,
foram rea­lizadas as primeiras identificações
Diarreia aguda de etiologia deste agente em um país sul-americano
bacteriana (12). Está associado a uma produção 16 ve-
As gastroenterites bacterianas apresentam zes maior de toxina A e 23 vezes maior de
prevalência de aproximadamente 2 bi­lhões de toxina B, gerando com isso maior risco de
casos/ano e são a segunda causa de morte complicações, como o megacólon tóxico. O
em menores de cinco anos (3). O diagnóstico diagnóstico para esta infecção é geralmente
laboratorial é feito através de coprocultura, feito através da pesquisa das toxinas. Apesar
nos casos em que este exame está indicado de ter sensibilidade variável, este é o teste
(ver adiante). Uma vez solicitado, é importan- mais usado, por ser mais rápido e mais dispo-
te que a coleta do material seja apropriada, nível do que a cultura.
bem como a entrega, que deve ser feita em Ainda no contexto das diarreias hos-
até duas horas, para análise. Além disso, é de pitalares, cabe ressaltar que estudos
grande valia o conhecimento de uma possí- recentes (13) vêm demonstrando uma
vel deficiência do método, mesmo que sejam etiologia polimicrobiana para estes casos.
respeitadas todas as medidas i­deais de cole- Em reanálises de amostras fecais pelo mé-
ta. Os germes pesquisados va­­riam entre os todo de SYBR-Green-based real-time PCR
diferentes laboratórios e, em muitos casos, o comprovou-se maior prevalência de infec-
Campylobacter jejuni e a E. coli O157 H7 não ções polimicrobianas nos casos de diarreia
são pesquisados. em Kolkata, Índia. Aguardemos novos estu-
O Campylobacter jejuni apresenta fre- dos que corroborem ou não esta informação.
quência duas e sete vezes maior do que a Dados epidemiológicos do CDC, de ju-
Salmonella sp. e a Shigella sp., respectiva- nho deste ano, revelam um surto recente de
mente, como agente etiológico de diarreia diarreia por Escherichia coli O145 produtora
aguda. A apresentação clínica pode cursar da toxina de Shiga, nos EUA (14). Esta é a
com diarreia sanguinolenta, associada ou não E. coli produtora de toxina de Shiga (soro-
a dores intensas do tipo cólica. Geralmente o grupo STEC) mais prevalente naquele país.
quadro é autolimitado, com duração de três a Em abril e maio de 2012 foram diagnostica-
sete dias, apesar de o agente continuar sendo das 14 pessoas com gastroenterite por esse
eliminado por até um mês. Uma importante agente. Os casos ocorreram em seis estados:
complicação desta infecção é o desenvol- Alabama (dois), Georgia (cinco), Louisiana
vimento da síndrome de Guillain-Barré. Um (quatro), Califórnia, Flórida e Tennessee (um
em cada mil pacientes irá desenvolver esta em cada). O intervalo entre a contaminação e
síndrome uma a três semanas após o quadro o início dos sintomas foi, em média, de duas
diarreico inicial. a três semanas. A gravidade variou, ocorren-
Em relação às diarreias nosocomiais e ins- do uma morte e três hospitalizações.
titucionais, o Clostridium difficile é o agente
bacteriano que merece maior destaque. A
transmissão deste bacilo Gram-positivo é fei- Diarreia dos viajantes
ta por mãos contaminadas, e a infecção está A diarreia é o principal problema de saú-
fortemente relacionada ao uso de antibióticos. de durante viagens, afetando 10% a 50% dos
Os esporos sobrevivem por longos períodos viajantes. Anualmente, um número estima-

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Diarreia aguda

do de 10 milhões de pessoas — 20% a 50% O risco de infecção pode ser significativa-


dos viajantes internacionais — desenvolve a mente reduzido com a adoção sistemática de
doença (15). O termo “diarreia dos viajantes” medidas de proteção contra doenças trans-
define um grupo de doenças resultante da mitidas por água e alimentos. A seleção de
ingestão de água e alimentos contaminados alimentos seguros e o consumo de água
por agentes infecciosos e que tem a diarreia tratada são essenciais, ainda que não sejam
como manifestação principal. O início dos sin- tarefas simples, por envolverem mudanças in-
tomas se dá, geralmente, na primeira semana dividuais de percepção de riscos, atitudes e
de viagem. Contudo, eles podem surgir em hábitos (16).
qualquer momento, e até após o retorno.
O maior fator de risco para o desenvol- Diarreia aguda de etiologia
vimento da patologia é o local de destino. parasitária
Os países da América Latina, da África, do As diversas formas de infecções parasitá-
Oriente Médio e da Ásia são destinos com rias são responsáveis por grande parte dos
maior risco associado. Dentre os fatores casos de diarreia aguda, especialmente em re-
de risco populacionais específicos, adultos giões com más condições higiênico-sanitárias.
jovens, pessoas imunocomprometidas, por- Devido à imensa diversidade epidemiológica
tadores de doenças inflamatórias intestinais, e aos diferentes ciclos de vida apresentados
pelos parasitas intestinais, o principal enfoque
diabetes e indivíduos em uso de inibidores
do presente texto será em medidas diagnósti-
da bomba de prótons e/ou antiácidos repre-
cas, bem como nas suas características.
sentam grupos de maior risco (15). O exame parasitológico de fezes (EPF) é
As bactérias são responsáveis por cerca de um bom método para o diagnóstico destes
80% dos casos. Dentre elas, o agente causal agentes causais. Contudo, é importante o
mais isolado tem sido a Escherichia coli en- conhecimento não só de algumas de suas li-
terotoxigênica (ETEC). Esta cepa chega a ser mitações, mas também da forma correta de
responsável por 25%-50% dos casos, segui- coleta. O exame deve ser feito com múltiplas
da em frequência por espécies de Shigella, coletas, para que haja boa sensibilidade e,
Salmonella e Campylobacter. Os vírus (adeno- com isso, maior valor diagnóstico. Idealmen-
vírus, astrovírus, rotavírus e calicivírus) podem te, devem ser colhidas três a seis amostras,
ser causa significativa de diarreia em viajantes, consecutivas ou não, em até 10 dias (17).
e surtos em navios causados pelo norovírus De acordo com a OMS (3), anualmente
(um dos calicivírus) são relativamente comuns. ocorrem 50 milhões de casos e 10 mil mor-
Os parasitas intestinais (Giardia lamblia, Enta- tes por conta da amebíase. O EPF não é mais
moeba histolytica, Cryptosporidium parvum considerado o teste de primeira escolha para
e Cyclospora cayetanensis) geralmente são o diagnóstico desta enfermidade. Apesar de
os responsáveis pelas diarreias mais pro- mais caros, os métodos de PCR (sensibilidade
longadas, com duração superior 14 dias. As entre 98% e 100% e especificidade de 100%)
e os testes imunológicos de pesquisa de an- Pontos-chave:
principais causas de intoxicações alimentares
tígenos fecais (sensibilidade de 95% a 100%
são as enterotoxinas produzidas por Staphylo- > Infecções parasitárias são
e especificidade de 100%) têm maior valor, já
coccus aureus e Bacillus cereus (toxina emética responsáveis por grande parte
que são capazes de fazer a diferenciação entre
e toxina diarreica), bactérias que podem con- dos casos de diarreia aguda;
a E. histolytica e a E. dispar. Outra disenteria
taminar os alimentos antes, durante ou depois causada por protozoários é a giardíase. Para > O exame parasitológico de
da preparação. A influência do consumo de seu diagnóstico por EPF geralmente são ne- fezes (EPF) é um bom método
bebidas alcoólicas, do estresse e da mudança cessárias cinco a seis amostras. Existem dois para o diagnóstico destes
na dieta como causas de diarreia ainda não fatores associados a essa dificuldade: são ex- agentes causais;
está claramente definida e, provavelmente, pelidos nas fezes em ciclos e são organismos
estes fatores são responsáveis por uma parce- aderidos à mucosa através do “disco suga- > É importante o conhecimento
la dos casos leves que evoluem sem febre ou dor”. O diagnóstico com testes imunológicos não só de algumas de suas
comprometimento significativo da saúde do é mais simples, rápido e menos dependente limitações, mas também da
viajante (16). do observador. Apresenta sensibilidade en- forma correta de coleta.

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Diarreia aguda

QUADRO 5: Terapia antimicrobiana em adultos (via oral)

Causa Terapia

Shigelose grave Ciprofloxacino 500mg 2x/d, 3 dias


S. (para)typhi Ciprofloxacino 500mg 2x/d, 10 dias (primeira escolha); amoxicilina 750mg 4dd, 14 dias (alternativa 1);
cotrimoxazol 960mg 2x/d, 14 dias (alternativa 2)

Outras salmoneloses Ciprofloxacino 500mg 2x/d, 10 dias (primeira escolha); amoxicilina 750mg 4dd, 14 dias (alternativa 1);
cotrimoxazol 960mg 2x/d, 14 dias (alternativa 2)

Campylobacter (queixas Eritromicina 250mg 4x/d, 5 dias; claritromicina 250mg 4x/d, 5 dias
graves e persistentes)

Yersinia Doxiciclina 200mg no primeiro dia, depois 100mg 1x/d, 4 dias; cotrimoxazol 960mg 2x/d, 5 dias
(alternativa 1); ciprofloxacino 500mg 2x/d, 5 dias (alternativa 2)

Disenteria amebiana Tinidazol 2g 1x/d, 3 dias (primeira escolha); metronidazol 750mg 3dd, 5 dias (alternativa 1) (seguida de
furoato de diloxanida 500mg 3x/d, 10 dias)

Vibrio cholerae Ciprofloxacino 1g dose única; doxiciclina 300mg dose única

Giardia lamblia Tinidazol 2g dose única

Schistosoma spp. Praziquantel 40mg/kg dose única

Strongyloides stercoralis Albendazol 400mg 1x/d, 3 dias; ivermectina 150-200mcg/kg dose única; tiabendazol 25mg/kg 2x/d, 2 dias
(máximo 1.500mg por dose)

Trichuris trichiura Mebendazol 100mg 2x/d, 3 dias

Criptosporidiose; recuperação Paromomicina 500-1.000mg 3x/d, 14 dias; azitromicina 500 mg 1x/d, 3 dias
espontânea em imunocompetentes;
se imunocomprometido com
diarreia persistente

Cyclospora Sulfametoxazol + trimetoprima 960mg 3x/d, 14 dias

Isospora belli Sulfametoxazol + trimetoprima 960mg 3x/d, 14 dias

Clostridium difficile — geralmente Metronidazol 500mg 3x/d, 7-10 dias (se necessário);
há recuperação espontânea após vancomicina 125mg 4x/d, 7-10 dias (alternativa)
suspensão dos antibióticos

Fonte: WGO practice guidelines — diarreia aguda em adultos, p. 6.

tre 95% e 100% e especificidade de 98%. calização preferencial deste nemátode no


Convém ressaltar que, nos casos de elevada trato gastrointestinal é no duodeno e jejuno
suspeição, pode ser necessário mais de um proximal. Isto confere enorme importância à
teste para a confirmação diagnóstica (17). doença, quer pela multiplicidade de sinto-
A estrongiloidíase também merece des- mas, quer pela dificuldade no diagnóstico
taque. Esta parasitose intestinal é causada diferencial. Com relação ao diagnóstico, so-
pelo nemátode Strongyloides stercoralis. Ao licitar o método de Baermann-Moraes é
contrário de outros parasitas, estes nemáto- fundamental. Idealmente, deve-se solicitar,
des podem viver indefinidamente no solo pelo menos, três amostras (18).
como formas livres e, com isso, apresentam
alta prevalência de infecção. Segundo a OMS • Abordagem diagnóstica
(3), existem cerca de 100 milhões de pes­soas Na abordagem do paciente com qua-
infectadas em todo o mundo. O contágio se dro de diarreia aguda, a anamnese e o
dá pela penetração das larvas na pele. A lo- exame físico são fundamentais. Não só

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Diarreia aguda

pela contribuição para a suspeição quanto • Abordagem terapêutica


a determinados agentes etiológicos, mas Na abordagem terapêutica, a principal Na abordagem do
também na orientação das próximas me- medida a ser instituída é a terapia de reidra- paciente com quadro
didas diagnósticas a serem instituídas. A tação. Independentemente de sua etiologia e de diarreia aguda, a
solicitação de exames laboratoriais não é forma de apresentação clínica, as medidas de anamnese e o exame
custo-efetiva; assim, a maioria dos pacientes suporte são fundamentais para o manejo ade- físico são fundamentais. 
não necessita dos mesmos (19). A presença quado da doença. De acordo com orientação A solicitação de exames
de pelo menos um dos “sinais de alarme” da OMS, a terapia de reidratação deve ser por laboratoriais não é
expostos a seguir justifica a solicitação de via oral, sempre que possível. custo-efetiva; assim, a
exames laboratoriais: Convém ressaltar que é de fundamen- maioria dos pacientes não
tal importância que os antidiarreicos (por necessita dos mesmos.
11. Desidratação grave e/ou repercussões exemplo, a loperamida) não sejam admi-
sistêmicas (taquicardia, hipotensão or- nistrados nos casos de diarreia com sangue
tostática, redução da diurese, letargia). ou na suspeita de infecção por E. coli, sob
12. Idade maior ou igual a 70 anos. risco de desenvolvimento de complicações,
13. Diarreia por mais de três ou sete dias como o megacólon tóxico e a síndrome
(apesar de adequadamente tratada). hemolítico-urêmica. Além da loperamida,
14. Sangue/muco nas fezes. outro antidiarreico que pode ser utiliza-
15. Imunossupressão (por droga/HIV). do atualmente é o racecadotril. Este é um
16. Dor abdominal em paciente com mais fármaco que age como inibidor da encefa-
de 50 anos. linase e se mostrou eficaz na redução do
17. Temperatura axilar maior ou igual a tempo da terapia de reposição hídrica em
38,5°C. adultos e crianças com diarreia aguda (21).
18. Mais de seis a 10 evacuações/dia. Estudos posteriores (22) demonstraram que
19. Diarreia do viajante (se cursar com disen- ele apresenta ação tão efetiva quanto a da
teria). loperamida na resolução da diarreia aguda,
10. Diarreias nosocomiais e/ou institucionais. mas proporciona maior redução da dor e
distensão abdominais.
Uma vez que a solicitação de exames é Os probióticos têm sido cada vez mais
necessária, devem ser priorizadas as pesqui- valorizados em diversas áreas da Gastroen-
sas de coprocultura, pesquisa de leucócitos terologia, mas nos casos de diarreia aguda
fecais, testes imunológicos (ELISA) e a pes- sua indicação permanece controversa. Em
quisa de sangue oculto nas fezes. Conforme revisão sistemática publicada em 2010 (23),
previamente exposto, a solicitação de co- o S. boulardii foi fortemente recomendado
procultura de rotina não se justifica, já que para prevenção dos casos de diarreia asso-
apresentaria diversos fatores negativos, ciada ao uso de antibiótico e diarreia dos
como positividade menor do que 10%. Vale viajantes.
ressaltar também que, de acordo com dados Além das medidas de suporte, pode
norte-americanos (20), em relação a valores ou não haver necessidade de antibioti-
financeiros o custo do exame de rotina fica- coterapia. Em média, apenas 1% a 5%
ria entre 950 e 1.200 dólares (1.920 e 2.420 dos casos necessitarão de antibióticos. A
reais) por caso positivo. imensa maioria dos pacientes responde à
A solicitação do exame parasitológico terapia de reposição hidro-eletrolítica ade-
de fezes também não deve ser feita rotinei- quada em três a sete dias, com melhora
ramente, sendo sua indicação reservada a evidente nas primeiras 48 horas. Com isso,
casos especiais, como diarreia persistente os antibióticos devem ser indicados para
ou diarreia do viajante (Giardia, Cryptospo- pacientes que cursem com: seis a 10 eva-
ridium, Entamoeba histolytica, Cyclospora); cuações diárias; diarreia com sangue, muco
cuidadores de crianças em escolas ou creches ou pus; pesquisa de polimorfonucleares
(Giardia, Cryptosporidium); surto diarreico positiva nas fezes; presença de dor abdo-
associado à água contaminada; diarreia he- minal significativa; repercussões sistêmicas
morrágica com pouco ou nenhum leucócito e/ou instabilidade hemodinâmica; sintomas
nas fezes (amebíase). há mais de 48 horas; diarreia dos viajantes

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Diarreia aguda

em casos moderados a graves; presença O Quadro 5 relaciona alguns dos prin-


de focos metastáticos extraintestinais; ne- cipais agentes etiológicos e a orientação
cessidade de internação hospitalar e/ou terapêutica específica.
pacientes imunocomprometidos.
Para a maioria dos pacientes com 18 • Terapia com nitazoxanida
anos ou mais está indicada a terapia com Atualmente não é possível falar em terapia
ciprofloxacino (500mg, de 12/12h) ou azi- para casos de diarreia sem considerar a nitazo-
tromicina (500mg, de 24/24h), por três a xanida (NTZ). Este fármaco, da classe de drogas
cinco dias. O esquema com sulfametoxazol das tiazolidas (nitro-drug family), possui amplo
800mg-trimetoprima 160mg a cada 12h espectro de ação documentado contra para-
não deve ser recomendado empiricamen- sitas (especialmente protozoários e helmintos)
te, principalmente nos casos graves, em e bactérias aeróbicas (25). Diferentemente da
função da crescente resistência bacteriana. maioria das drogas de sua classe (26-28), a NTZ
Convém ressaltar que nos últimos anos o é metabolicamente estável e não é reduzida
padrão de resistência às fluoroquinolonas como parte do mecanismo de ação (MoA) (29,
vem aumentando e, por isso, é importante 30). Assim, este fármaco representa um avanço
observar o padrão local antes de decidir a significativo no tratamento das infecções para-
medicação a ser prescrita. sitárias intestinais em todo o mundo (31).

Referências 17. GUERRANT, R.L.; VAN GILDER, T. et al. — Practice guide­lines


11. WGO Practice Guidelines — Diarreia aguda em adultos. for the management of infectious diarrhea. Clin. Infect.
12. FELDMAN — Sleisenger and Fordtran’s gastrointestinal and Dis., 32(3): 331, 2001.
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Endereço para
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Antônio Carlos Moraes
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sala A-29 — Botafogo sociated with rotavirus disease among children in 2004. Clin. Microbiol., 49(9): 3154-62, 2011.
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Rio de Janeiro-RJ, 16. CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION :2009:0228:FIN:PT:PDF.
— Norovirus outbreak among evacuees from hurricane
ancamoraes@uol.com.br
Katrina — Houston, Texas, September 2005. MMWR Obs.: As 21 referências restantes que compõem este artigo se
Morb. Mortal. Wkly. Rep., 54(40): 1016, 2005. encontram na Redação à disposição dos interessados.

28 JBM  MARÇO/ABRIL, 2014  VOL. 102  No 2

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