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História
Fernanda Corrêa Coutinho
Gisele Pereira Dias
Mário Cesar do Nascimento Bevilaqua

INTRODUÇÃO vores e sofrimento àqueles que cruzavam


as matas. As trevas e a solidão das traves-
A ansiedade faz parte da condição humana sias induziam os que as realizavam a pa-
e pode ser analisada ao longo da história vores súbitos, desprovidos de qualquer
a partir de diferentes perspectivas.1 Estu- causa aparente, como um “ataque de pâ-
dos sob as mais diversas abordagens, como nico”. Daí a origem da palavra pânico.2
antropológica, filosófica, religiosa, médi- Na Grécia Antiga, apesar de não
ca e psicológica, mostram o quanto essa existir uma palavra para descrever a an-
sensação intriga e motiva os pesquisado- siedade, já se usavam termos como ma-
res a buscar constantemente novos enten- nia, melancolia, histeria e paranoia pa-
dimentos a respeito desse sentimento que ra definir sentimentos pouco conhecidos,
faz parte da história da humanidade. porém vividos em sua plenitude. Relatos
Este capítulo apresenta um panora- bíblicos apontam que os sintomas de me-
ma da história da ansiedade e detalha o do excessivo já apareciam naquela época
momento no qual o termo passou a fazer e eram atribuídos ao relacionamento com
parte da história da medicina, bem como Deus3 e ao distanciamento deste.
traz um recorte dos transtornos de ansie- No início do século XVII, o termo
dade ao destacar desde a elaboração até ansiedade começou a ser usado na escri-
o desenvolvimento do conceito de trans- ta médica sobre doenças mentais.4 Não se
torno de pânico e sua influência na clínica falava em “psiquiatria”, já que essa pala-
médica contemporânea. vra não se enquadrava na linguagem mé-
Relatos da Antiguidade apontam a dica até Johann Reil criá-la, em 1808. O
ansiedade como uma característica pre- uso do termo ansiedade também signifi-
sente no cotidiano dos homens na Grécia cava o início de uma distinção entre os
Antiga. Na mitologia desse país, por exem- níveis normais vividos pela população
plo, Pã, o deus dos bosques, dos campos, em geral depois de desapontamentos no
dos rebanhos e dos pastores, era temido amor, preocupações financeiras e proble-
por aqueles que necessitavam atravessar mas de saúde e os níveis excessivos apre-
as florestas à noite. Com sua aparência as- sentados por pessoas que reagiam de for-
sustadora, metade homem e metade car- ma mais intensa a eventos similares. Em
neiro, causava sustos, gritos, medos, pa- acréscimo, o que hoje consideramos sín-

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dromes de ansiedade grave era, naque- tino e cérebro. A ansiedade continuava a


le período, vinculado a quadros depressi- ser vista e tratada como uma questão físi-
vos.5 ca – no sentido de ser um distúrbio do ór-
Já no século XVIII, os médicos no gão sintomático, como evidenciam os li-
campo da doença mental concentraram-se vros de medicina desse período, nos quais
nos pacientes com delírios ou outros sinto- é possível encontrar as principais fontes
mas de transtornos que requeriam cuidado de estudos históricos dos transtornos de
institucional. A ansiedade era vista estrita- ansiedade.3
mente sob o enfoque biológico, passando a No que se refere aos sintomas de an-
ser considerada por seus aspectos físicos e siedade, começou-se a esboçar uma pro-
destacando-se os sintomas corporais a ela gressiva mudança a partir de 1850. As
relacionados. Segundo o médico escocês causas somáticas, que até então eram
William Cullen (1710-1790), nesse perío- plenamente aceitas, passaram a dividir
do era comum associar a ansiedade a al- a atenção com possíveis causas psicoló-
gum tipo de “doença do nervo”, uma vez gicas.5 De fato, o tratamento e o estudo
que o sistema nervoso era claramente acio- da ansiedade só foram designados à seção
nado, o que deu origem ao termo neurose.4 psiquiátrica no final do século XIX.7
Os primeiros anos do século XIX tes- Nessa fase, a classificação diagnósti-
temunharam uma mudança parcial do fo- ca não era considerada essencial para o
co no campo da saúde mental. Apesar de trabalho clínico, embora alguns sistemas
não ser uma hegemonia mundial, passou- de classificação já existissem. Entre es-
-se a cogitar a possibilidade de as causas tes, o de Emil Kraepelin (1856-1926) era
das doenças mentais serem psicológicas, o único que apresentava um sistema de
e não físicas. Nessa época, já se tentava classificação dos transtornos mentais com
entender o medo de falar em público, a utilidade clínica. Ele procurava entender
aversão a animais, a agitação excessiva, a os transtornos psiquiátricos por meio da
angústia e a dificuldade para dormir, con- observação de seus desfechos, dividindo-
ferindo-se explicações psicossomáticas a -os em 13 grupos baseados em seu curso
tais sintomas.6 Considerava-se que ansie- e resultado. Como exemplo, separou a de-
dade intensa e tristeza poderiam levar a mência de outros transtornos.7
condições orgânicas. Kraepelin teve destacada influência
Contudo, na França do início do sé- na criação da primeira nomenclatura ofi-
culo XIX, os ataques de pânico eram enten- cial para os transtornos mentais, publica-
didos como crises agudas de angústia, sen- da em 1918, com a ideia de ser a clas-
do definidos pelo médico Landré-Beauvais sificação utilizada em hospitais e de pos-
como “um certo mal-estar, inquietude, agi- sibilitar uma melhor comunicação entre
tação excessiva”. Sintomas como tontura, clínicos e cientistas. Esse sistema, porém,
taquicardia e inquietude ainda eram vistos nunca foi popularizado. Ao fim dos anos
como parte da doença neurocirculatória. O de 1940, houve crescente reconhecimento
termo neurose fazia referência a distúrbios internacional da necessidade de consenso
orgânicos e somáticos, não estando rela- científico sobre a terminologia das doen-
cionado a transtornos mentais.5 ças mentais, o que levou, em 1946, à cria-
Ainda em meados do século XIX, os ção do National Institute of Mental Heal-
sintomas de ansiedade eram encontrados th (NIMH), culminando com um projeto
em nosologias médicas espalhadas pelas para desenvolver um sistema de diagnós-
seções dedicadas a coração, orelha, intes- tico mais abrangente.7 Dois anos depois,

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Transtorno de pânico 19
a Organização Mundial da Saúde (OMS) entre os ataques de pânico e a agorafo-
publicou a sexta edição da Classificação bia, hoje consolidada, já aparecia nos tex-
internacional de doenças (CID-6), que, pe- tos de Freud.5
la primeira vez, incluiu uma seção para O conceito diagnóstico de “neurose
transtornos mentais. de angústia” impactou a literatura médi-
Na segunda metade do século XIX, ca e teve grande aceitação pelos psiquia-
começou-se a estudar a ansiedade por tras por muitas décadas. É possível com-
meio da mente humana. Nesse período, parar a introdução de Freud sobre a “neu-
o termo pânico foi descrito pela primeira rose de angústia” com a introdução dos
vez na psiquiatria. O termo utilizado por conceitos de transtorno de ansiedade ge-
um dos pioneiros da psiquiatria inglesa, neralizada (TAG) e transtorno de pânico
Henry Maudsley (1835-1918), em 1879, da terceira edição do Manual diagnóstico
foi “pânico melancólico”. Sua obra Body e estatístico de transtornos mentais (DSM-
and Mind foi, inclusive, uma das referên- -III): ambos apresentaram um novo para-
cias para o trabalho de Charles Darwin digma que foi rapidamente aceito pela co-
(1809-1882) (Quadro 1.1). munidade científica e gerou uma vasta li-
Só no fim do século XIX os sintomas teratura sobre o tema.11
de ansiedade foram reunidos em um no- No início do século XX, a crença na
vo conceito nosológico e passaram ao cui- hereditariedade das emoções e uma con-
dado da psiquiatria, com base nos tra- tínua ênfase nos aspectos biológicos da
balhos de psiquiatras franceses e de Sig- ansiedade influenciaram a compreensão
mund Freud. acadêmica e médica dos transtornos de
Freud, na década de 1890, publi- ansiedade. Ribot, um estudioso da épo-
cou um trabalho teórico bastante difun- ca que contribuiu muito para o conceito
dido naquele período. O manuscrito cita- de ansiedade, identificou diferentes tipos
va a “neurose de angústia” e definia seus de transtornos de ansiedade, tais como o
sintomas: irritabilidade geral, expectativa TAG e as fobias específicas.4
ansiosa e ataques de ansiedade, entre ou- No que se refere aos transtornos de
tros. Os sintomas resultavam de um pro- ansiedade, o foco deixou de ser somente
blema hereditário ou de uma excitação o biológico para ser uma busca da com-
somática oriunda de um mau funciona- preensão do ambiente como fator de in-
mento do sistema nervoso e poderiam es- fluência. Por exemplo, em 1938, B.F. Skin-
tar associados de diversas formas. ner definiu a ansiedade como um conjun-
Freud entendia a “neurose de angús- to de respostas condicionadas a eventos
tia” como uma forma de “neurose atual”, aversivos, ou seja, a ansiedade era vista
resultado de uma condição reativa com como manifestações de respostas apren-
origem em eventos da infância.3,8-10 Para didas. Naquele momento, o behaviorismo
ele, existiam duas formas clínicas funda- desempenhou papel importante ao enfa-
mentais de manifestação da angústia: por tizar que o ambiente contribui para de-
meio de crise de ansiedade ou do “esta- sencadear esses transtornos.11 Essa nova
do crônico”.5 Associada à neurose de an- forma de entender a ansiedade forneceu
gústia estava a agorafobia – considera- subsídios para uma renovada abordagem
da um esforço do paciente para evitar os de tratamento. A terapia comportamental
“ataques de angústia” em situações nas utiliza técnicas de exposição que, até ho-
quais não era possível pedir ajuda. É in- je, têm-se mostrado eficazes para comba-
teressante pontuar que a estreita relação ter os sintomas de ansiedade.17

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QUADRO 1.1 A concepção darwinista da ansiedade:


contribuições para a psiquiatria contemporânea

Em seu livro mais importante, A origem das espécies (1859), Charles Darwin13 expõe sua ideia ino-
vadora de que as características físicas e comportamentais de um organismo podem ser conside-
radas adaptativas – sendo, assim, selecionadas – quando aumentam a probabilidade de sobrevi-
vência e reprodução. Tal princípio, nomeado seleção natural, foi um legado sem precedentes pa-
ra a neurobiologia contemporânea. Anos mais tarde, em A expressão das emoções nos homens e
nos animais (1872), Darwin14 aplica o princípio de seleção natural aos traços emocionais. Segun-
do ele, se hoje, como espécie, exibimos um determinado padrão de respostas emocionais, como
as observadas em contextos de medo e ansiedade, devemos isso ao fato de estas provavelmen-
te terem constituído importantes características que favoreceram a sobrevivência de nossos an-
cestrais. Foram, por esse motivo, selecionadas e mantidas ao longo dos milhares de anos de evo-
lução da espécie humana.
O processo evolutivo, entretanto, não está concluído, e jamais estará enquanto existirmos. Ba-
sicamente, nossos circuitos neurais são os mesmos dos nossos ancestrais caçadores-coletores.
Todavia, a sociedade humana tem passado por transformações contextuais sem precedentes e
em velocidade cada vez maior. Essa constatação, defendida pela psicologia evolucionista15 – ra-
mo da psicologia que entende os fatores comportamentais e psicológicos sob a ótica darwinista
–, leva-nos a pensar que, se alguns de nossos traços de ansiedade foram adaptativos para nossos
ancestrais, hoje podem ser considerados um transtorno. Além disso, a ansiedade pode – e, pro-
vavelmente, sempre pôde – desencadear respostas psicológicas e comportamentais amplamen-
te disfuncionais se ativadas com frequência ou na ausência de estímulos de fato ameaçadores.
Atualmente, a teoria evolucionista de Darwin é o princípio hegemônico da ciência contemporâ-
nea, norteando, assim, a forma como a psiquiatria ocidental concebe os transtornos psicopatoló-
gicos. Nesse sentido, a ansiedade é vista como um conjunto de respostas comportamentais, en-
dócrinas e fisiológicas, como alerta e esquiva, que foram selecionadas ao longo de nossa história
evolutiva por sua função adaptativa de nos preparar e proteger contra estímulos potencialmen-
te ameaçadores.16 Assim, opondo-se ao dualismo cartesiano corpo versus mente, a teoria darwi-
nista concebe os traços psicológicos como orgânicos e fisiológicos, sendo, dessa forma, sujei-
tos às mesmas leis de adaptabilidade que regem a seleção natural de todas as demais caracterís-
ticas do organismo.
Nesse contexto, os ataques de pânico poderiam ser vistos como uma tentativa extrema de alarme
do organismo diante de alguma ameaça percebida, via ativação das respostas simpáticas de luta e
fuga do indivíduo. No entanto, não se deve conceber os princípios evolucionistas de forma super-
ficial: a ideia de ataques de pânico como tendo, em última instância, função protetora para o orga-
nismo, como a maioria das respostas de ansiedade, pode não se sustentar. De fato, a prevalência
de ataques de pânico espontâneos ou de ataques decorrentes da associação exagerada a estímu-
los não necessariamente ameaçadores, como túneis e pontes, pode nos fazer levantar a hipóte-
se de essas crises serem, na verdade, apenas um dos muitos traços de ansiedade distribuídos na
população humana. É interessante destacar que a teoria evolucionista de Darwin prevê a variabili-
dade como um de seus princípios. O potencial adaptativo de determinada característica é, assim,
função do contexto sócio-histórico. Dessa maneira, por sua natureza disfuncional em nossa socie-
dade contemporânea, os ataques de pânico tornam-se sintoma, em vez de apenas idiossincrasia.

No século XX, a clínica psiquiátrica Na medicina, a ansiedade vem sen-


passou por um momento histórico impor- do estudada ao longo dos séculos (Fig.
tante quando o conceito de ansiedade te- 1.1). Contudo, nenhum dos sintomas atu-
ve sua classificação incluída no DSM, or- almente inclusos nos manuais de transtor-
ganizado pela American Psychiatric Asso- nos mentais são novos para a humanida-
ciation (APA). de. Mudaram o valor relativo, as permuta-

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Transtorno de pânico 21

Figura 1.1
Charles Darwin e seu princípio de que a evolução da espécie humana é regida pelas mesmas leis –
de adaptação e seleção natural – a que as outras espécies animais estão submetidas.

ções e combinações,3 sendo que hoje tais os “loucos”. Suas primeiras edições tinham
sintomas são agrupados para melhor clas- como base a psicose.7 Em 1942, várias neu-
sificação e diagnóstico. roses foram incluídas, e os estados de ansie-
dade foram categorizados. A primeira edi-
ção do DSM foi lançada em 1952, com ba-
CLASSIFICAÇÃO DOS se nesses dados estatísticos, e desenvolvida
TRANSTORNOS DE ANSIEDADE por Adolf Meyer e outros psiquiatras que
NOS MANUAIS DIAGNÓSTICOS E participaram ativamente como médicos na
II Guerra Mundial. Entre eles, destacam-se
ESTATÍSTICOS DOS TRANSTORNOS William e Karl Menninger.17
MENTAIS: UMA VISÃO HISTÓRICA
A primeira classificação oficial dos transtor- DSM-I18
nos mentais, o Statistical Manual for the Use
of Institutions for the Insane, foi criada pelos No primeiro DSM, as consequências neu-
precursores da APA, em 1918, por um dese- robiológicas das doenças do cérebro fo-
jo do censo norte-americano de quantificar ram reconhecidas como “transtornos cau-

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2000: publicação da versão revisada do


DSM-IV (DSM-IV-TR)
1994: publicação da quarta edição do DSM

Anos de 1990: década do


cérebro 1987: publicação da versão revisada do
DSM-III (DSM-III-R)

1980: publicação da terceira edição do DSM 1968: publicação da segunda edição


1952: publicação da primeira edição do DSM, do DSM-II
pela APA 1948: primeira inclusão de seção para
1946: sob influência do reconhecimento à im- transtornos mentais na sexta edição da CID
portância de sistemas classificatórios para a
terminologia em saúde mental, é criado o Na-
tional Institute of Mental Health 1938: B.F. Skinner definiu a
ansiedade como um conjunto
de respostas condicionadas
a eventos aversivos
1918: publicação da primeira
nomenclatura oficial para os
transtornos mentais, do médico
Linha do Tempo
Início do século XX: Ribot identifica diferentes
germânico Emil Kraepelin tipos de transtornos de ansiedade, tais como
o transtorno de ansiedade generalizada e as
fobias específicas

Década de 1890: Sigmund


Freud cunha o termo 1879: primeiro emprego
“neurose de angústia” técnico do termo “pânico”
em psiquiatrias, pelo psiquiatra
britânico Henry Maudsley

Final do século XIX: tratamento


e estudo da ansiedade desig-
nados à seção psiquiátrica
1872: publicação de
A expressão das emoções
Início do século XIX: primeiras nos homens e nos animais
concepções psicossomáticas dos transtornos de Charles Darwin
mentais; na França, ataques de pânico enten-
didos como crises agudas de angústia 1859: publicação de
A origem das espécies,
de Charles Darwin
Século XVIII: ansiedade vista
como distúrbio do órgão sinto- 1710-1790: destaque para o médico
mático (p. ex., taquicardia co- escocês William Cullen; origem do termo
mo disfunção do coração) “neurose”

Antiguidade Clássica: relatos apontam para Início do século XVII: o termo “ansiedade”
a presença de ataques de pânico, como começa a ser usado na literatura médica
destacado na mitologia grega do deus Pã sobre doenças mentais

Figura 1.2
História do conceito de ansiedade: importantes eventos que contribuíram para a concepção mo-
derna dos transtornos de ansiedade, com enfoque para o transtorno de pânico, ao longo da his-
tória da humanidade.

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Transtorno de pânico 23
sados por ou associados com enfraque- estresse, que é atualmente denominado
cimento da função do tecido cerebral”, “pós-traumático”.
como, por exemplo, intoxicação, infecção,
trauma neurológico e doença congênita.
Os transtornos de ansiedade alinhavam- DSM-II19
-se sob o título de “transtornos de origem
psicogenética ou sem uma causa física Em 1968, na tentativa de satisfazer às ne-
claramente definida ou mudança estru- cessidades de psiquiatras de diferentes
tural no cérebro”.18 Eles foram considera- orientações teóricas, a APA, utilizando o
dos exemplos de transtornos psiconeuró- DSM,19 enfatizou a necessidade de se tor-
ticos e deram origem ao conceito atual. nar universal, aproximando-se da OMS a
Os transtornos foram classificados da se- partir da CID. Durante o processo de de-
guinte forma: senvolvimento do DSM-II, a comunicação
entre psiquiatras e especialistas incenti-
1. Reação de ansiedade à Esse trans- vou a APA a destacar a função comunica-
torno foi referido como “difuso e não tiva do sistema de classificação e, assim,
restrito a situações ou objetos defini- de certa forma, negligenciou as questões
dos”.18 de confiabilidade e validade dos constru-
2. Reação fóbica à Esse transtorno ocor- tos nosológicos.
re quando a ansiedade “torna-se des- Os transtornos mentais continuaram
tacada a partir de uma ideia, objeto a ser descritos usando a teoria psicanalíti-
ou situação na vida diária e é substi- ca, e, nesse contexto, o transtorno psico-
tuída por uma ideia simbólica ou si- neurótico foi substituído pelo termo neu-
tuação sob a forma de um medo neu- rose. Nessa edição, há três categorias de
rótico específico [...] O paciente ten- transtornos de ansiedade, incluindo neu-
ta controlar a sua ansiedade evitando rose de angústia, neurose obsessivo-com-
os objetos fóbicos ou situações fóbi- pulsiva e neurose fóbica. A neurose de an-
cas”.18 gústia refere-se ao indivíduo “ansioso so-
3. Reação obsessivo-compulsiva à Es- bre a preocupação prolongada e o entrar
sa condição foi descrita como an- em pânico, frequentemente associada a
siedade “associada com a persistên- sintomas somáticos [...] não restrita a si-
cia de ideias indesejadas e repetiti- tuações específicas e objetos”;19 já a neu-
vas de impulso para a prática de atos rose fóbica era “geralmente atribuí­da aos
que podem ser considerados mórbi- temores deslocados para o objeto fóbico
dos pelo paciente. O próprio pacien- ou uma situação de algum outro objeto do
te pode considerar suas ideias e com- qual o paciente está inconsciente”.19
portamentos como sem sentido, mas Outros sintomas de ansiedade des-
mesmo assim se sente obrigado a rea­ critos no DSM-II incluíam as síndromes
lizar seus rituais”.18 depressiva, dissociativa, histérica, fóbica
e neurastênica, a despersonalização e os
Além desses transtornos relaciona- transtornos hipocondríacos.
dos à ansiedade, o DSM apontava outras
síndromes que faziam parte do espectro
de “transtornos psiconeuróticos”, as quais DSM-III20
incluíam reação dissociativa, reação de
conversão e reação depressiva. Também Diferentemente do DSM-I e do DSM-II, os
fez uma breve referência ao transtorno de conceitos do DSM-III não seguiram qual-

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quer abordagem teórica específica. Os es- consenso profissional simples, como ocor-
tudos farmacológicos ajudaram a redefinir reu anteriormente.
algumas categorias dos transtornos de an- No DSM-IV, passaram a fazer parte
siedade, que passaram a incluir o transtor- da nomenclatura formal 12 categorias de
no de pânico, o transtorno de ansiedade transtornos de ansiedade. São elas: trans-
generalizada, o transtorno obsessivo-com- torno de pânico, transtorno de pânico com
pulsivo e o transtorno de estresse pós-trau- agorafobia, agorafobia sem história de
mático. Os critérios eram muito mais explí- transtorno de pânico, fobia social, fobia
citos, e os transtornos foram subdivididos específica, transtorno de ansiedade gene-
em categorias específicas. Por exemplo, o ralizada, transtorno obsessivo-compulsi-
transtorno fóbico passou a incluir agora- vo, transtorno de estresse pós-traumático,
fobia com ataques de pânico, agorafobia transtorno de estresse agudo, transtorno
sem ataques de pânico, fobia social e fo- de ansiedade devido a uma condição mé-
bia simples.11 dica geral, transtorno de ansiedade indu-
A maior conscientização sobre a im- zido por substância e transtorno de ansie-
portância do desenvolvimento de critérios dade não especificado.22
bem definidos para cada transtorno men- O transtorno de pânico manteve pra-
tal acelerou o refinamento e a revisão des- ticamente a mesma definição. Entretanto,
se manual, culminando com a produção os ataques de pânico passaram a ser defi-
de sua versão revisada, o DSM-III-R, em nidos de forma a permitir sua ocorrência
1987. isolada ou associada a outros diagnósti-
cos, sem preencher os critérios para trans-
torno de pânico propriamente. Além dis-
DSM-III-R21 so, distinguiram-se os ataques de pânico
espontâneos, os situacionais (ligados a
Nessa edição, a agorafobia passou a ser agorafobia) e aqueles provocados por um
vista como consequência do transtorno estímulo fóbico (mais ligados a fobia es-
de pânico, deixando de ser uma categoria pecífica).
apartada, e incluiu os termos transtorno
de pânico com e sem agorafobia. Houve
nítida simplificação dos critérios diagnós- DSM-IV-TR23
ticos para transtorno de pânico, aproxi-
mando-se da clínica. Assim, após um ata- No DSM-IV-TR, os critérios diagnósticos
que de pânico com repercussões fóbicas para os transtornos mentais não foram al-
por um mês, obtia-se um diagnóstico afir- terados, mas a descrição de cada transtor-
mativo. Em suma, foram ressaltadas as no foi atualizada a fim de refletir os avan-
consequências fóbicas do ataque de pâni- ços atuais do conhecimento.11
co, e não apenas seus sintomas físicos. Os critérios diagnósticos do transtor-
no de pânico no DSM-IV-TR são descritos
no Quadro 1.2.
DSM-IV22
O DSM-IV representa a mais importante CONCLUSÃO
revisão do DSM até o momento.11 Foi fei-
to, de forma mais elaborada, a partir de A abordagem fenomenológica implemen-
pesquisas longitudinais, em vez de usar o tada no DSM-III representou um esforço

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Transtorno de pânico 25

QUADRO 1.2 Critérios diagnósticos para o transtorno de pânico


segundo o DSM-IV-TR21

A. Tanto (1) como (2):


(1) ataques de pânico recorrentes e inesperados.
(2) pelo menos um dos ataques foi seguido pelo período mínimo de 1 mês com uma (ou
mais) das seguintes características:
a) preocupação persistente acerca de ter ataques adicionais
b) preocupação acerca das implicações do ataque ou suas consequências (p. ex., perder
o controle, ter um ataque cardíaco, enlouquecer)
c) uma alteração comportamental significativa relacionada aos ataques
B) Ausência/presença de agorafobia
C) Os ataques de pânico não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex.,
abuso de droga, medicamento) ou de uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo).
D) Os ataques de pânico não são mais bem explicados por outro transtorno mental, como fobia
social (p. ex., ocorrendo quando da exposição a situações sociais temidas), fobia específica
(p. ex., quando da exposição a uma situação fóbica específica), transtorno obsessivo-compul-
sivo (p. ex., quando da exposição à sujeira, em alguém com uma obsessão de contaminação),
transtorno de estresse pós-traumático (p. ex., em resposta a estímulos associados a um es-
tressor grave) ou transtorno de ansiedade de separação (p. ex., em resposta a estar afastado
do lar ou de entes queridos).

Fonte: American Psychiatric Association.23

consciente para orientar de forma clara os 3. Berrios GE. Anxiety disorders: a conceptual his-
tory. J Affect Disord. 1999;56(2-3):83-94.
debates teóricos com relação à etiologia
da ansiedade. Contudo, hoje em dia, com 4. Stone MH. History of anxiety disorders. In:
Stein DJ, Hollander E, Rothbaum BO. Textbook
os esforços da neurociência para entender of anxiety disorders. 2. ed. Virgínia: American
as bases biológicas da ansiedade, tornou- Psychiatric Publishing; 2009.
-se possível, por exemplo, selecionar um 5. Nardi AE. A história dos ataques de pânico. Ci-
sintoma de um transtorno de ansiedade, ência Hoje. 2004;34(202):71-3.
como o medo ou a preocupação, e exa- 6. Berrios GE, Link C. Anxiety disorders. In: Ber-
minar sua neuroanatomia e neuroquími- rius GE, Porter RA, editors. History of clini-
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ca.24 Como esses sintomas costumam ser Press; 1995.
decisivos nas categorias de diagnóstico, o 7. Antony MM, Pickren W, Koerner N. Historical
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2006;55(2):154-60. don: The Hogarth Press; 1894.

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