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História
Fernanda Corrêa Coutinho
Gisele Pereira Dias
Mário Cesar do Nascimento Bevilaqua
Em seu livro mais importante, A origem das espécies (1859), Charles Darwin13 expõe sua ideia ino-
vadora de que as características físicas e comportamentais de um organismo podem ser conside-
radas adaptativas – sendo, assim, selecionadas – quando aumentam a probabilidade de sobrevi-
vência e reprodução. Tal princípio, nomeado seleção natural, foi um legado sem precedentes pa-
ra a neurobiologia contemporânea. Anos mais tarde, em A expressão das emoções nos homens e
nos animais (1872), Darwin14 aplica o princípio de seleção natural aos traços emocionais. Segun-
do ele, se hoje, como espécie, exibimos um determinado padrão de respostas emocionais, como
as observadas em contextos de medo e ansiedade, devemos isso ao fato de estas provavelmen-
te terem constituído importantes características que favoreceram a sobrevivência de nossos an-
cestrais. Foram, por esse motivo, selecionadas e mantidas ao longo dos milhares de anos de evo-
lução da espécie humana.
O processo evolutivo, entretanto, não está concluído, e jamais estará enquanto existirmos. Ba-
sicamente, nossos circuitos neurais são os mesmos dos nossos ancestrais caçadores-coletores.
Todavia, a sociedade humana tem passado por transformações contextuais sem precedentes e
em velocidade cada vez maior. Essa constatação, defendida pela psicologia evolucionista15 – ra-
mo da psicologia que entende os fatores comportamentais e psicológicos sob a ótica darwinista
–, leva-nos a pensar que, se alguns de nossos traços de ansiedade foram adaptativos para nossos
ancestrais, hoje podem ser considerados um transtorno. Além disso, a ansiedade pode – e, pro-
vavelmente, sempre pôde – desencadear respostas psicológicas e comportamentais amplamen-
te disfuncionais se ativadas com frequência ou na ausência de estímulos de fato ameaçadores.
Atualmente, a teoria evolucionista de Darwin é o princípio hegemônico da ciência contemporâ-
nea, norteando, assim, a forma como a psiquiatria ocidental concebe os transtornos psicopatoló-
gicos. Nesse sentido, a ansiedade é vista como um conjunto de respostas comportamentais, en-
dócrinas e fisiológicas, como alerta e esquiva, que foram selecionadas ao longo de nossa história
evolutiva por sua função adaptativa de nos preparar e proteger contra estímulos potencialmen-
te ameaçadores.16 Assim, opondo-se ao dualismo cartesiano corpo versus mente, a teoria darwi-
nista concebe os traços psicológicos como orgânicos e fisiológicos, sendo, dessa forma, sujei-
tos às mesmas leis de adaptabilidade que regem a seleção natural de todas as demais caracterís-
ticas do organismo.
Nesse contexto, os ataques de pânico poderiam ser vistos como uma tentativa extrema de alarme
do organismo diante de alguma ameaça percebida, via ativação das respostas simpáticas de luta e
fuga do indivíduo. No entanto, não se deve conceber os princípios evolucionistas de forma super-
ficial: a ideia de ataques de pânico como tendo, em última instância, função protetora para o orga-
nismo, como a maioria das respostas de ansiedade, pode não se sustentar. De fato, a prevalência
de ataques de pânico espontâneos ou de ataques decorrentes da associação exagerada a estímu-
los não necessariamente ameaçadores, como túneis e pontes, pode nos fazer levantar a hipóte-
se de essas crises serem, na verdade, apenas um dos muitos traços de ansiedade distribuídos na
população humana. É interessante destacar que a teoria evolucionista de Darwin prevê a variabili-
dade como um de seus princípios. O potencial adaptativo de determinada característica é, assim,
função do contexto sócio-histórico. Dessa maneira, por sua natureza disfuncional em nossa socie-
dade contemporânea, os ataques de pânico tornam-se sintoma, em vez de apenas idiossincrasia.
Figura 1.1
Charles Darwin e seu princípio de que a evolução da espécie humana é regida pelas mesmas leis –
de adaptação e seleção natural – a que as outras espécies animais estão submetidas.
ções e combinações,3 sendo que hoje tais os “loucos”. Suas primeiras edições tinham
sintomas são agrupados para melhor clas- como base a psicose.7 Em 1942, várias neu-
sificação e diagnóstico. roses foram incluídas, e os estados de ansie-
dade foram categorizados. A primeira edi-
ção do DSM foi lançada em 1952, com ba-
CLASSIFICAÇÃO DOS se nesses dados estatísticos, e desenvolvida
TRANSTORNOS DE ANSIEDADE por Adolf Meyer e outros psiquiatras que
NOS MANUAIS DIAGNÓSTICOS E participaram ativamente como médicos na
II Guerra Mundial. Entre eles, destacam-se
ESTATÍSTICOS DOS TRANSTORNOS William e Karl Menninger.17
MENTAIS: UMA VISÃO HISTÓRICA
A primeira classificação oficial dos transtor- DSM-I18
nos mentais, o Statistical Manual for the Use
of Institutions for the Insane, foi criada pelos No primeiro DSM, as consequências neu-
precursores da APA, em 1918, por um dese- robiológicas das doenças do cérebro fo-
jo do censo norte-americano de quantificar ram reconhecidas como “transtornos cau-
Antiguidade Clássica: relatos apontam para Início do século XVII: o termo “ansiedade”
a presença de ataques de pânico, como começa a ser usado na literatura médica
destacado na mitologia grega do deus Pã sobre doenças mentais
Figura 1.2
História do conceito de ansiedade: importantes eventos que contribuíram para a concepção mo-
derna dos transtornos de ansiedade, com enfoque para o transtorno de pânico, ao longo da his-
tória da humanidade.
quer abordagem teórica específica. Os es- consenso profissional simples, como ocor-
tudos farmacológicos ajudaram a redefinir reu anteriormente.
algumas categorias dos transtornos de an- No DSM-IV, passaram a fazer parte
siedade, que passaram a incluir o transtor- da nomenclatura formal 12 categorias de
no de pânico, o transtorno de ansiedade transtornos de ansiedade. São elas: trans-
generalizada, o transtorno obsessivo-com- torno de pânico, transtorno de pânico com
pulsivo e o transtorno de estresse pós-trau- agorafobia, agorafobia sem história de
mático. Os critérios eram muito mais explí- transtorno de pânico, fobia social, fobia
citos, e os transtornos foram subdivididos específica, transtorno de ansiedade gene-
em categorias específicas. Por exemplo, o ralizada, transtorno obsessivo-compulsi-
transtorno fóbico passou a incluir agora- vo, transtorno de estresse pós-traumático,
fobia com ataques de pânico, agorafobia transtorno de estresse agudo, transtorno
sem ataques de pânico, fobia social e fo- de ansiedade devido a uma condição mé-
bia simples.11 dica geral, transtorno de ansiedade indu-
A maior conscientização sobre a im- zido por substância e transtorno de ansie-
portância do desenvolvimento de critérios dade não especificado.22
bem definidos para cada transtorno men- O transtorno de pânico manteve pra-
tal acelerou o refinamento e a revisão des- ticamente a mesma definição. Entretanto,
se manual, culminando com a produção os ataques de pânico passaram a ser defi-
de sua versão revisada, o DSM-III-R, em nidos de forma a permitir sua ocorrência
1987. isolada ou associada a outros diagnósti-
cos, sem preencher os critérios para trans-
torno de pânico propriamente. Além dis-
DSM-III-R21 so, distinguiram-se os ataques de pânico
espontâneos, os situacionais (ligados a
Nessa edição, a agorafobia passou a ser agorafobia) e aqueles provocados por um
vista como consequência do transtorno estímulo fóbico (mais ligados a fobia es-
de pânico, deixando de ser uma categoria pecífica).
apartada, e incluiu os termos transtorno
de pânico com e sem agorafobia. Houve
nítida simplificação dos critérios diagnós- DSM-IV-TR23
ticos para transtorno de pânico, aproxi-
mando-se da clínica. Assim, após um ata- No DSM-IV-TR, os critérios diagnósticos
que de pânico com repercussões fóbicas para os transtornos mentais não foram al-
por um mês, obtia-se um diagnóstico afir- terados, mas a descrição de cada transtor-
mativo. Em suma, foram ressaltadas as no foi atualizada a fim de refletir os avan-
consequências fóbicas do ataque de pâni- ços atuais do conhecimento.11
co, e não apenas seus sintomas físicos. Os critérios diagnósticos do transtor-
no de pânico no DSM-IV-TR são descritos
no Quadro 1.2.
DSM-IV22
O DSM-IV representa a mais importante CONCLUSÃO
revisão do DSM até o momento.11 Foi fei-
to, de forma mais elaborada, a partir de A abordagem fenomenológica implemen-
pesquisas longitudinais, em vez de usar o tada no DSM-III representou um esforço
consciente para orientar de forma clara os 3. Berrios GE. Anxiety disorders: a conceptual his-
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debates teóricos com relação à etiologia
da ansiedade. Contudo, hoje em dia, com 4. Stone MH. History of anxiety disorders. In:
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como o medo ou a preocupação, e exa- 6. Berrios GE, Link C. Anxiety disorders. In: Ber-
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decisivos nas categorias de diagnóstico, o 7. Antony MM, Pickren W, Koerner N. Historical
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