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La Belle Dejour - Comentário

La Belle Dejour é hoje considerado um clássico do cinema por várias razões.


O filme, dirigido em 1967 por Luis Buñuel é um dos seus filmes mais bem-
sucedidos e famosos e seu maior sucesso de bilheteria.
Baseado em um romance do autor Joseph Kessel, que também fez muito
sucesso (embora também muito escândalo) nos anos 1928, o título do filme (e
do filme) é um trocadilho com o termo francês "belle de nuit" ("dama da noite",
isto é, uma prostituta).
Conta-se que Buñuel não gostou do romance de Kessel, considerando-o "um
pouco de novela", mas aceitou o desafio dos produtores porque:" Achei
interessante tentar transformar algo que eu não gostei em algo que fiz". Assim,
ele e foi entrevistar mulheres nos bordéis de Madri para aprender sobre suas
fantasias sexuais.
Tem obviamente um caráter transgressor e constestador, abordando temas
que são ainda hoje tabus como a prostituição e a hipocrisia que tantas vezes
caracteriza a vida burguesa.

O filme é enigmático, não se propondo a responder todas as perguntas que


levanta, assim como também se utiliza em diversos momentos dos enigmas
cifrados dos sonhos. Este elemento, o onírico, é também uma outra marca de
Buñuel. Aliás, Buñuel manteve durante muito tempo relação de amizade
bastante instável com figuras como o pintor Salvador Dalí e o poeta e
dramaturgo Federico García Lorca, figuras importantes do surrealismo,
movimento artístico do qual também participou durante muito tempo e deixou
marcas em toda a sua obra.

Saber deste elemento talvez nos faça um alerta: embora o filme possa ser
compreendido como uma história regular, ele possui camadas que dizem muito
mais do que parece à primeira vista. (Pensar, por exemplo, no simbolismo da
cor vermelha).

O surrealismo, muito influenciado pelas descobertas de Sigmund Freud acerca


do inconsciente e do papel central que a sexualidade tem nele, explora muito a
dimensão do sonho.
O sonho, compreendido aqui como um fenômeno psíquico que se produz
durante o sono, predominantemente constituído por imagens e representações
cujo aparecimento e ordenação escapam ao controle consciente do sonhador,
é para Freud a principal via de acesso para o inconsciente. O “momento” em
que os desejos aparecem quase que despidos, embora o trabalho psíquico da
vigília o desfigure progressivamente
Freud foi o primeiro a conceber um método de interpretação dos sonhos
baseado não em referências estranhas ao sonhador, mas nas livres
associações que este pode fazer, uma vez desperto, a partir do relato de seu
sonho.

Não é à toa que os sonhos e sua linguagem tenham papel tão importante na
narrativa de Le Belle Dejour. É tendo acesso a eles que podemos tentar de
alguma forma dar sentido ao que move a jovem e bela Séverine.

Séverine, a quem Catherine Deneuve empresta seu rosto e sua beleza fria,
distante e misteriosa, parece ter tudo o que uma mulher burguesa do nossos
dias poderia querer aspirar: juventude, beleza, elegância, belas roupas, um
marido rico que a ama, é educado e compreensivo (o cirurgião Dr. Pierre). No
entanto, de alguma forma ela sente que há algo de errado com este lugar. É
uma mulher perdida (como ela mesma diz em certo momento) e que não
consegue ter uma vida íntima com o marido.

Talvez mais importante que isso, Séverine não consegue encontrar um lugar
em seu próprio corpo e sua própria sexualidade, temendo-a, praticamente
ilustrando a postura que a sociedade, quanto mais pudica, assume diante dos
instintos sexuais, suprimindo-os.

É irônico e curioso que o lugar em que a protagonista se encontre seja


justamente neste que é, historicamente, o da marginalidade sexual: o
prostíbulo, o lugar em que se esconde, como que para debaixo do tapete,
aquilo que do desejo parece ameaçar o civilizado e o controle.

No entanto, embora o lugar em que Severine esconde a si e à sua sexualidade


seja o convencional para que se faça isto, há nela ainda algo de subversivo.
Primeiro porque ela, diferente das suas colegas de profissão, não trabalha por
dinheiro. É o prazer de submeter-se à vontade (sádica, muitas vezes) de um
outro que a leva ali. Mas “a bela da tarde” é não somente o nome do filme, mas
também a marca de uma outra inversão a que Séverine se submete: não é a
noite que a acolhe, e sim o dia.

A vida dupla de Séverine escapa do campo dos sonhos e invade a sua


realidade a ponto de podermos nos perguntar: o que para ela era a vida real e
o que era o devaneio e o sonho? O que era nela desejo e o que era vontade?
Buñuel não parece fazer questão de diferenciar uma coisa da outra. Aliás, o
quanto podemos fazê-lo em nossas próprias experiências cotidianas?

A realidade de Severine, como Buñuel faz transparecer a partir de uma luz


tranquila e cálida, é monótona. Os momentos em que o filme prende a atenção
são justamente os momentos do devaneio sensual, violento e sujo. Momentos
que, na experiência de Severine, transbordam da fantasia para a realidade, e é
justamente o abismo que separa estes dois lugares que evoca um tom sinistro
e talvez até mesmo doentio.

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