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DOI: 10.1590/1413-81232018237.

09042018 2291

Sentidos das Doenças Negligenciadas na agenda

ARTIGO ARTICLE
da Saúde Global: o lugar de populações e territórios

Meanings of Neglected Diseases in the Global Health agenda:


the place of populations and territories

Roberta Gondim de Oliveira 1

Abstract The global health agenda has made sig- Resumo A agenda da saúde global tem apresen-
nificant strides in neglected diseases. In a dynamic tado avanços significativos no campo das doenças
movement, throughout the past two decades, it negligenciadas. Num movimento dinâmico, as-
has assumed different priorities, strategies and sume prioridades, estratégias e sentidos diversos
meanings. Nevertheless, important challenges ao longo das duas últimas décadas. Entretanto,
persist in terms of geopolitical, economic, episte- permanecem desafios importantes em termos geo-
mological and social development. The designa- político, econômico, epistemológico e do desenvol-
tion and location of neglected diseases in certain vimento social. A designação e localização das do-
territorial spaces and populations is historically enças negligenciadas em determinados territórios
related to some dynamics such as those of a co- e populações guarda relação, historicamente, com
lonial and capitalistic nature. They reveal conti- algumas dinâmicas como as de natureza colonial e
nuities in the rationality of policies and actions, capitalista. Informam linhas de continuidades na
pervading asymmetries between peoples, institu- racionalidade de políticas e ações, operadas na as-
tions and nations. Although it has positively in- simetria entre povos, instituições e nações. Ainda
cluded the debate on neglected diseases, it can be que tendo incluído positivamente o debate sobre
argued the global agenda of public health has yet negligência de doenças, argumenta-se a favor de
to assume and evoke the dimension of neglected uma agenda da saúde global que assuma e evoque,
bodies and populations with more theoretical and com mais vigor teórico e metodológico, a dimen-
methodological vigor, by intensifying the dialogue são da negligência de corpos e populações, apro-
between biomedical and political-economic fields. fundando o debate com as matrizes biomédica e
It means reinforcing the critical understanding of político-econômica. Significa reforçar o entendi-
the historical vulnerabilities of individuals in the mento crítico sobre a histórica vulnerabilização de
production of knowledge, as well as giving promi- sujeitos na produção de conhecimento, bem como
nence and taking into account their ways of lead- dar protagonismo e levar em consideração seus
1
Departamento de ing their lives in conjunmction with local public modos de andar a vida em diálogo com priorida-
Administração e health priorities and practices. des e práticas de saúde situadas.
Planejamento em Saúde, Key words Neglected diseases, Global health, Co- Palavras-chave Doenças negligenciadas, Saúde
Escola Nacional de Saúde
Pública, Fiocruz. Av. Brasil loniality, Vulnerability global, Colonialidade, Vulnerabilidade
4365, Manguinhos.
21040-360 Rio de Janeiro
RJ Brasil. robertagondim@
ensp.fiocruz.br
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Gondim de Oliveira R

Introdução da ciência ocidental moderna, Lock and Nguyen7


problematizam a excessiva autonomia dos dis-
A conformação de agendas globais revela ca- positivos biomédicos, per se, pondo-os em refe-
pacidades de atração de recursos e poderes e rência a outras dimensões, como as econômicas
espelham diretrizes e tendências nos modos de e sociais (...) including culturally informed values
produção de conhecimento. São agendas que and constraints, specific local and global objectives,
comportam desenhos de políticas voltadas para economic disparities, and inconsistent or non-exis-
territórios e populações. Significativo conjunto tent regulations.
de autores tem se dedicado ao debate de políticas Tratar de políticas globais, seus objetivos e
globais, suas dinâmicas, contornos e prioridades, bases epistêmicas significa reconhecer, à partida,
em especial no que se refere à problematização de a existência de algo denominado de ‘global’? O
projetos de produção de conhecimento e inter- que seriam processos globais, que geram legiti-
venções, e repercussões na vida e saúde de popu- midade a determinadas agendas transnacionais?
lações vulnerabilizadas. Estas relações têm sido Num cenário onde há forte presença de doenças
postas em análises em diálogo com os contextos bem conhecidas da humanidade, que acometem
de diferentes realidades de países1-5. populações de países com considerável índice de
Põe-se em debate tensões presentes na pro- pobreza, notadamente dos continentes africano e
dução de conhecimento e suas repercussões no sul-americano, propõe-se discutir sobre algumas
campo da saúde, nos registros de políticas globais dinâmicas e noções que conformam o campo,
e das práticas de saúde. Problematiza-se modos seus agentes, alinhamentos políticos e estratégias
de operar da saúde em vidas concretas de sujeitos de ação, bem como os possíveis diálogos entre sa-
e populações, a partir da noção de doenças ne- beres – globais e situados. No sentido proposto
gligenciadas, consensuadas nas agendas da saúde por Haraway12, o conhecimento válido deve ser
global como aquelas que acometem mais forte- aquele situado, entendido como um processo
mente populações historicamente vulnerabili- corporificado e localizável, e, portanto, respon-
zadas, e que atraem recursos escassos de países sável na medida de sua capacidade de prestar
e empresas6. contas. Essa noção é importante para estudos so-
A despeito do avanço científico, há a persis- ciais da ciência não apenas analiticamente, mas
tência de doenças negligenciadas devido a dife- também em termos da produção de saberes so-
rentes falhas: falha de ciência – conhecimento cialmente relevantes, de caráter emancipatório,
insuficiente; falha de mercado – alto custo dos ainda que com frequência subalternizados.
medicamentos e vacinas existentes; e falha de
saúde pública – planejamento deficiente impac- Sentidos da agenda global em debate
tando negativamente no acesso a medicamentos
de baixo custo ou gratuitos6. Reconhecer a existência de uma agenda glo-
A produção de conhecimento (pesquisa, de- bal implica em enfrentar a discussão sobre o
senvolvimento, inovação, protocolos clínicos, en- fenômeno da globalização. Santos13 aponta a in-
tre outros) não está imune a interesses de varia- tensificação de diferentes relações transnacionais
das ordens, não podendo ser generalizável a todo que operam novos fenômenos, como a interna-
e qualquer contexto e nem pressuposto de uma cionalização dos sistemas de produção e a redefi-
neutralidade epistêmica7. Em especial no contex- nição de fronteiras dos Estados nacionais para a
to latino-americano, debates do campo da saúde atuação do mercado de capitais, um marco sobre
coletiva empreendem análises a partir de uma o qual recaíram diversas designações, como ‘pro-
leitura crítica da relação entre produção de co- cesso global’ e globalização’. Para o autor trata-se
nhecimentos, políticas e práticas de saúde, anco- de um fenômeno complexo de múltiplas dimen-
rados num projeto transformador das condições sões interligadas: econômicas, sociais, políticas,
sociais. Essa noção deriva do entendimento de culturais, religiosas e jurídicas.
que o conjunto de ideias, instituições e práticas Em um sentido próximo, o enfoque proposto
de saúde constituem um campo fundamental- por Milton Santos14 abdica tratar as dimensões
mente coletivo, de múltiplos atores, interdiscipli- global e local enquanto dualidade, reforçando a
nar e que envolve a sociedade na sua amplitude e ideia de complexidade relacional, enquanto dinâ-
diversidade8-11. mica em constante movimento performativo. Ao
Alinhados ao entendimento crítico sobre a problematizar a noção de ‘lugar’, o autor propõe
geração de conhecimento em saúde, em contra- a superação de abordagens ‘globalistas’ ou ‘loca-
posição à uma concepção unívoca e hegemônica listas’, pois “o mundo se encontra em toda parte”,
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implicando numa compreensão mais dialógica ceitual, político, estratégico e epistemológico, é
sobre o global/local, universal/particular, geral/ apropriado de maneira diversificada por diferen-
específico. Ressalta o movimento de globaliza- tes agentes. Autores como Koplan et al.19 proble-
ção como um esforço hegemônico, que advoga a matizam a polissemia da noção de ‘saúde global’
favor do entendimento de fenômenos como glo- e empreendem esforços na estabilização con-
bais que produz agendas nesse registro. ceitual do campo. Defendem que a ausência de
Ao referir a globalização como um fenômeno definições obscurece diferenças importantes de
de diferentes dimensões, Santos13 aponta não se concepções, com consequências em estratégias
tratar de algo consensual, pois comporta tensões e prioridades evocadas por diferentes agentes. O
de variadas naturezas e interesses, tanto hegemô- esforço de estabilização vincula-se à necessidade
nicos como subalternos/contra-hegemônicos. de estabelecer acordos sobre objetivos comuns da
Entretanto, reconhece a potência de forças hege- saúde global: abordagens, prioridades e formas
mônicas na construção de consensos e que con- de utilização dos recursos. A intencionalidade
formam as faces da globalização, conferindo-lhe desse acordo conceitual seria, em última instân-
as suas características dominantes, assim como cia, a de promover um alinhamento na agenda
legitimando-as como as mais adequadas. internacional da saúde.
Fundamentada na matriz de acumulação de Saúde global pode ser entendida como uma
capital transnacional, a globalização assume di- área de estudos, pesquisas, políticas e práticas,
versas faces, tendo nas desigualdades sociais e de que objetiva a equidade em saúde para todos e
saúde um de seus mais perversos matizes. Saúde e em todo o mundo. Envolve corpos disciplinares
desenvolvimento são historicamente imbricados, não apenas das ciências da saúde, promovendo
desde que concebidos como política, econômica a colaboração interdisciplinar19. A ideia de com-
e socialmente produzidos15. Em torno de 90% da partilhamento e solidariedade entre países, nesta
carga de doenças no mundo está concentrada em noção embutida, não necessariamente leva em
países pobres, que dispõem de não mais que 10% consideração interesses e tramas próprias da assi-
dos recursos globais de saúde – o ‘gap 10/90’16. metria do capital globalizado. Ainda que os auto-
Em torno de 1/5 da população mundial não tem res reconheçam que o ‘mundo desenvolvido’ não
acesso a sistemas e serviços de saúde, incluindo tem o monopólio das ‘boas ideias’ e que deve-se
medicamentos essenciais. A cobertura mundial buscar em diferentes culturas melhores formas
de serviços básicos de saneamento é de 64%, co- para o manuseio de doenças e ambientes, ques-
brindo por volta de um terço da população mun- tões próprias da economia política permanecem
dial, ou seja, em torno de 2.500 milhões de seres subsumidas em suas considerações.
humanos destituídos dos mais básicos serviços A assimetria na distribuição de recursos e
em pleno Século XXI17. poderes, com predomínio de algumas formas de
De outra forma, os países da Organização conhecimento, confere inúmeros privilégios de
para a Cooperação e Desenvolvimento Econô- natureza política, econômica, social e epistemo-
mico – OCDE, que detêm 18% da população lógica a uma dada noção de global. Formas de
mundial, são responsáveis por 86% da despesa globalização respondem a imperativos transna-
de saúde no mundo, com um gasto per capta em cionais, onde “as condições locais são desintegra-
torno de US$ 2.900 por ano. Ainda que o gasto das, desestruturadas e, eventualmente, reestrutu-
per capita permaneça insuficiente e não explicite radas sob a forma de inclusão subalterna”13.
as desigualdades internas de países como no caso Biehl20 problematiza a chamada saúde global
do Brasil, ao longo da última década, países da afirmando que um entendimento sobre seus con-
América do Sul operaram esforços no aumento tornos deve levar em consideração os interesses
dos investimentos em saúde (Figura 1). dos ‘doadores’, que predominam nas operações
Em países do continente africano há o mais das organizações internacionais, não sendo estes
baixo percentual de gasto em saúde, sendo que necessariamente alinhados aos interesses dos ‘re-
considerável parte das ações é financiada por ceptores’. Tendem a reforçar assimetrias nas re-
doadores externos, que pautam diretrizes e prio- lações de poder já existentes. Iniciativas do tipo
ridades, conformando as agendas nacionais (Fi- ‘bala-mágica’ são amplamente criticadas por um
gura 2)18. conjunto de atores do campo. O contraponto a
O movimento da globalização contemporâ- esse modelo seria a produção de estratégias mais
nea é significativa na área da saúde ordenado em voltadas para os sujeitos em seus territórios, e
torno da noção de Saúde Global. Constituindo- não apenas sobre agentes etiológicos, isolada-
se como um campo de múltiplos sentidos – con- mente, pois que atuam no pressuposto de corpos
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≤ 25
26 - 50
51 - 100
101 - 300
301 - 1000
1001 - 5000
> 5000
Dado não disponível
Não se aplica *
Com base em dados atualizados em 13 de fevereiro de 2017
Os limites e nomes apresentados e as designações usadas neste mapa não implicam a expressão de qualquer opinião por parte da
Organização Mundial da Saúde sobre a situação legal de qualquer país, território, cidade ou área ou de suas autoridades, ou sobre a
delimitação de suas fronteiras e limites. Linhas pontilhadas e tracejadas em mapas representam limites aproximados para os quais © OMS 2017
Todos os direitos reservados
talvez ainda não haja total acordo.

Figura 1. Gasto per capita em saúde, por países (US$), 2014.

Fonte de dados: Observatório de Saúde Global, OMS18. Produção de mapas: Informação Evidências e Pesquisa (IER)

≤ 1.0
1.0 - 5.0
5.1 - 15.0
15.1 - 30.0
30.1 - 50.0
> 50.0
Dado não disponível
Não se aplica *
Com base em dados atualizados em 13 de fevereiro de 2017
Os limites e nomes apresentados e as designações usadas neste mapa não implicam a expressão de qualquer opinião por parte da
Organização Mundial da Saúde sobre a situação legal de qualquer país, território, cidade ou área ou de suas autoridades, ou sobre a
delimitação de suas fronteiras e limites. Linhas pontilhadas e tracejadas em mapas representam limites aproximados para os quais © OMS 2017
talvez ainda não haja total acordo. Todos os direitos reservados

Figura 2. Recursos de fontes externas em relação aos gastos totais em saúde, por países (%), 2014.

Fonte de dados: Observatório de Saúde Global, OMS18. Produção de mapas: Informação Evidências e Pesquisa (IER)
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destituídos de subjetividades, nas palavras do au- ridades de doenças, formas de controle, pesquisa,
tor: “É hora de atribuir às pessoas que estudamos desenvolvimento e ações de saúde. Há diversi-
e descrevemos os tipos de complexidades que ficado entendimento em torno do conceito de
reconhecemos em nós mesmos, e de trazer essas doenças emergentes, re-emergentes e negligen-
complexidades ao cenário da saúde global”20. A ciadas, surgidas a partir de alguns debates como
noção de ‘globalismo antiretroviral’ proposta por da teoria da transição epidemiológica e suas limi-
Nguyen5, também problematiza esse entendi- tações, notadamente em face da insuficiência de
mento como quando do surgimento da AIDS em seu poder explicativo quando da emergência da
que as ações tinham como aposta a focalização AIDS. A teoria da transição epidemiológica pres-
do acesso, não necessariamente universal, a um supõe um movimento linear e evolutivo da mu-
restrito rol de medicamentos. dança no quadro de morbimortalidade de po-
Nos trabalhos desenvolvidos com doenças pulações – da superação de doenças infecciosas/
infecciosas no Haiti, Farmer2 propõe a noção de transmissíveis, para as crônico-degenerativas/
structural constraints and personal agency, advo- não transmissíveis. Ancora-se no pressuposto da
gando a favor da potência de iniciativas que aliam, melhoria das condições de vida e da transição
de forma integrada, ações de assistência em saúde demográfica – aumento da expectativa de vida
com estratégias de acompanhamento mais longi- e queda da natalidade, presentes nos países com
tudinal da vida do paciente. Uma aposta tanto de melhores índices de desenvolvimento humano22.
enfretamento dos constrangimentos estruturais, O quadro epidemiológico de países da Amé-
como no protagonismo ancorado na agência dos rica Latina é desafiador ao paradigma da transi-
sujeitos em seus modos de andar a vida21. ção epidemiológica. Os modelos propostos não
Nos anos recentes a saúde global tem sido se aplicam às diferentes realidades, dada a con-
chamada a consubstanciar políticas e práticas vivência de padrões, presumivelmente, díspares
de saúde. Lock e Nguyen7 identificam uma certa nos modos de adoecimento. Brasil e México são
continuidade de elementos entre a saúde inter- exemplares: as doenças infecto-parasitárias e as
nacional e a saúde global, tendo por substrato o doenças crônico-degenerativas dividem espa-
papel dos doadores e a preponderância dos apor- ço com graus de importância equivalentes sob
tes da biomedicina, que já conformavam as cha- o ponto de vista epidemiológico. Há também o
madas medicina tropical e medicina colonial. Os ressurgimento e/ou recrudescimento de doenças
espaços coloniais serviam de ‘ensaio’ de práticas como Dengue e Cólera, e mais recentemente da
biomédicas, e o sucesso destas fundamentaram Febre Amarela, Zika e Chikungunya23.
o princípio da ‘comensurabilidade biológica’. As- Em sentido próximo, o surgimento da AIDS
sim, essas práticas puderam retornar à metrópo- e o recrudescimento da tuberculose alteraram as
le, para o continente europeu, então estabilizadas bases desse modelo explicativo, pavimentando o
como práticas sociais, consubstanciando algo caminho para a conformação de um novo pres-
chamado de ‘global’ em termos médicos. Entre- suposto: o de doenças emergentes e reemergen-
tanto, a concepção de ‘comensurabilidade bioló- tes. O surgimento de novas doenças e o recrudes-
gica’ localizada nos corpos humanos, implicou cimento de antigas, numa complexa convivência
na busca de novas racionalidades que pudessem em virtude de questões territoriais, econômicas e
manter como válido o princípio da diferença – sociais impuseram novos desafios22.
próprio da medicina colonial. Opera-se então a O caso da tuberculose é paradigmático. Na
localização da diferença no registro da ‘cultura’1,7. última metade dos anos 1990 a Organização
Ponderações dessa natureza propõem recolocar Mundial da Saúde – OMS anuncia que a tuber-
as análises sobre a conformação e os modos de culose foi responsável pela morte de milhões de
operar da saúde global em outras bases, pois que pessoas, passando a ser considerada como uma
ancoradas nas condições situadas dos diversos doença reemergente. O retorno da tuberculose a
sujeitos e territórios, sob a noção de biologias patamares elevados é tratado por Farmer24 como
locais4,7. uma ‘vingança’, posto que o entendimento de ‘re-
torno’ da doença obscurece a permanência de sua
Doenças emergentes, re-emergentes elevada incidência em diversas partes do mundo.
e negligenciadas - taxonomias e agendas Essa ‘surpresa’ por parte de agências internacio-
da saúde global nais situa-se no silenciamento da situação da tu-
berculose, como questão social, econômica e de
A agenda da saúde global é multidimensional, saúde sobre populações pobres do mundo – com
polissêmica e atravessada por debates como prio- altas taxas de incidência e de mortes. Ambas pre-
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veníveis, sob o ponto de vista biomédico, desde a Tipo I – atingem grande contingente populacio-
década de 1950, já tendo sido relativamente bem nal tanto em países ricos como pobres. Para es-
resolvida nos países mais ricos24. tas, o mercado resolve todo o espectro produtivo
Desafios atuais em face desse novo quadro (pesquisa, produção de medicamentos e vacinas,
são de várias ordens, como, por exemplo, a defi- e sua distribuição); Doenças Tipo II – ainda que
nição de prioridade. Esta não é unívoca. Critérios presentes nos países ricos são mais prevalentes
de prioridade são discutíveis, a depender do lugar nos países pobres e os recursos para pesquisa são
que os agentes ocupam social e economicamen- menos abundantes; Doenças Tipo III – quase que
te15. exclusivamente presente nos países pobres. Os re-
Em 2006 o Brasil definiu doenças negligen- cursos para pesquisa são baixos e os medicamen-
ciadas como sendo aquelas que não só preva- tos, ainda que em alguns casos sejam conhecidos,
lecem em condições de pobreza, mas também não são plenamente acessíveis. Segundo a OMS,
contribuem para a manutenção do quadro de as doenças negligenciadas encontram-se nesse
desigualdade, já que representam forte entrave ao grupo e são assim concebidas por formarem um
desenvolvimento. Foram formuladas pautas de grupo fortemente associado à pobreza. Muitas
enfrentamento que incluem pesquisa, desenvol- já desapareceram de grande parte do mundo na
vimento, ampliação do acesso aos medicamen- medida da melhoria das condições de vida17.
tos, entre outras6,16. A agenda nacional demonstra As Doenças Negligenciadas ainda que im-
sintonia com a internacional. O Relatório sobre pactem fortemente nas condições de saúde, re-
a ‘Saúde do Mundo para 2004’ da OMS25 define ceberam historicamente insuficiente atenção das
a pesquisa em saúde como prioridade, reconhe- agendas internacionais e de países. Exerceram
cendo-a como dinamizador de saúde. Entendida pouca atração na indústria, por serem mais cir-
como insuficiente para um amplo conjunto de cunscritas às populações com baixa capacidade
doenças, são discutidos aspectos da pesquisa: de pagamento. Proliferam em condições ambien-
crença na tríade saúde, ciência e tecnologia como tais e habitacionais precárias. Muitas são letais ou
requisito para o desenvolvimento econômico e tem consequências incapacitantes, o que acarre-
social; reconhecimento do “gap 10/90”; relevân- ta no comprometimento da dinâmica familiar e
cia do setor privado; discreta presença dos países social; oneram os sistemas de saúde dos países
menos desenvolvidos; legislação internacional já economicamente desfavorecidos, e impactam
de proteção de patentes que dificulta o acesso a na capacidade produtiva de sua população, for-
diagnósticos, vacinas e medicamentos de popu- mando um ciclo vicioso de elevada repercussão
lações menos favorecidas; e a necessidade dos no desenvolvimento humano. Por serem doenças
sistemas de pesquisa em saúde de gerarem inter- mais circunscritas a populações já desfavoreci-
venções públicas. das, agudizam a exclusão social, reforçam estig-
Já a designação “doenças negligenciadas” foi mas historicamente tramados e diminuem as
originalmente proposta na década de 1970, no perspectivas futuras de gerações6.
âmbito da Fundação Rockefeller, titulando um A entrada das Doenças Negligenciadas na
programa denominado The Great Neglected Di- agenda global repercute um protagonismo da
seases6. O termo é posteriormente sistematizado OMS. Em 2007 há ações concertadas entre múl-
no documento Fatal Imbalance pela organização tiplos agentes globais. O Global Plan to Combat
Médicos sem Fronteiras que propõe uma agen- Neglected Tropical Diseases 2008-201528, represen-
da internacional em torno do desenvolvimento ta um esforço de conformação de agenda global,
e disponibilização de medicamentos e traz a se- que contempla a definição de prioridades, dire-
guinte taxonomia de doenças: Globais – aquelas trizes, estratégias e metas para a reversão para
que ocorrem em todo o mundo; Negligenciadas – um conjunto de doenças. A expectativa do plano
mais prevalentes nos países em desenvolvimento; global é o controle, a eliminação e a erradicação
e Mais Negligenciadas – exclusivas dos países em das doenças, definindo intervenções como a am-
desenvolvimento. Na sequência há a criação de pliação do acesso a medicamentos terapêuticos e
grupo de trabalho denominado Drugs for Neglec- profiláticos. Nele é definido um elenco de dezes-
ted Diseases Working Group (DND), fomentando sete doenças negligenciadas alvo de ações trans-
o envolvimento de países em ações sistemáticas e nacionais: Doença de Chagas, Dengue, Úlcera de
sustentáveis26. Buruli, Cisticercose, Dracunculíase, Equinoco-
O Relatório da Comissão sobre Macroeco- coscência, Fasciolíase, Tripanossomose humana
nomia e Saúde da OMS27, propõe outra sistema- africana, Leishmaniose, Hanseníase, Filariose
tização de doenças em três categorias: Doenças linfática, Oncocercose, Raiva, Esquistossomose,
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Helmintíase, Trachoma e Bouba. Mais recente- lonial como pode ser visto no exemplo da Han-
mente foi incluída a Chikungunhya28. seníase (Figura 3).
As principais ações previstas envolvem: qui- O Relatório de 201532 também enfatiza a
mioterapia preventiva e controle de transmissão; vinculação da pobreza às doenças negligencia-
controle de vetores; fornecimento de água potá- das e traz inflexões importantes ao questionar a
vel e ações de saneamento; controle de zoonoses; diretriz de ações específicas e focalizadas, assim
e intensificação na gestão de casos17. como a mudança no discurso sobre a erradicação
Nos Relatórios Working to Overcome the Glo- da pobreza versus compartilhamento da prospe-
bal Impact of Neglected Tropical Diseases29,30; Sus- ridade, com foco no desenvolvimento sustentá-
taining the Rive to overcome the global impact of vel. Esse enfoque representou uma ampliação da
neglected tropical diseases31; Investing to Overcome visão sobre o campo das doenças negligenciadas,
the Global Impact of Neglected Tropical Diseases32; apontando para além da questão da saúde, desa-
e Integrating Neglected Tropical Diseases in Glo- fios em termos de desenvolvimento. Análises so-
bal Health and Development33, a OMS apresenta bre sucessos da política global destacam elemen-
um conjunto de resultados das políticas globais tos como a adesão por parte de agentes e países;
ao longo dos últimos anos, apontando avanços a melhoria das condições de vida; e as ‘generosas’
obtidos e desafios que persistem. São reiteradas doações de parceiros globais33.
questões como a vinculação das doenças a ques- Contudo, permanecem importantes con-
tão da pobreza – o ciclo vicioso das doenças que tradições na agenda global. As diretrizes para o
vitimiza os mais pobres, e a delimitação geográfi- controle das doenças tropicais negligenciadas
ca com foco nas zonas tropicais. ainda assentam e restringem-se majoritariamen-
Quando uma taxonomia de doenças é posta te no acesso ao tratamento, a quimioprofilaxia
em relação a uma dada cartografia, assim como e o uso de pesticidas para o controle de vetores.
inclui e associa outras delimitações em registros Reconhece-se que há proposições de ampliação
a ‘cultura’, social e econômica, depreende-se uma da capacidade dos sistemas de saúde dos países,
conformação de modos de operação de políticas, especialmente os do continente africano, sendo
ratificando pressupostos a nível de uma retórica considerável parte de orientações voltadas às par-
global. Esses deslizamentos podem compor nar- cerias entre os governos, as organizações interna-
rativas políticas e epistemológicas que subalter- cionais e a indústria farmacêutica30-33.
nizam as relações entre instituições e países. Em Ações macroestruturais – redução da pobre-
uma ancoragem histórica, problematiza-se regis- za, saneamento e educação, assim como atuações
tros de cariz colonial na delimitação de espaços intersetoriais, ainda que estejam presentes no
e populações. O antigo projeto da colonização conjunto dos documentos, padecem de diretrizes
assume na contemporaneidade uma roupagem mais programáticas. Ações como estas imporiam
atualizada, nos termos da colonialidade, pois que políticas macroeconômicas de envergadura, que
preserva e carrega os elementos coloniais classifi- implicariam numa revisão da geopolítica global
catórios do mundo, atualizando-os na dinâmica absolutamente não enfrentada, dentre outros
histórica34-36. motivos, por não fazer parte da agenda do ca-
Quando um conjunto significativo de atores pitalismo liberal. O investimento global na me-
internacionais consensua e designa um grupo de lhoria das condições de vida e de saúde dessas
doenças como “tropicais negligenciadas” 26,28, ra- populações, assim como a construção de bases
tifica não somente a questão da negligência, mas de fomento à autonomia produtiva dos sistemas
também a demarcação territorial para a atuação de saúde e do complexo industrial da saúde des-
de uma ciência voltada para os trópicos. O uso tes países, em suas diversas dimensões, possuem
do termo ‘tropical’, por sua vez, não faz referência uma inserção mais tênue e diferenciada nas agen-
apenas a uma delimitação geográfica e de fron- das, quando postas em relação às demais políticas
teiras, sendo coincidente com outra delimitação: aqui discutidas.
a dos espaços coloniais – territórios vivos que Os anos 2000 assistem a uma certa inflexão
comportam povos, culturas, saberes, políticas, na forma em que a comunidade internacional
conhecimentos e fenômenos de saúde. passa a conceber a relevância de determinadas
Em termos geopolíticos o mapa das ‘doenças doenças, com base nas más condições de vida e
tropicais negligenciadas’ reforça algumas delimi- de saúde das populações de consideráveis partes
tações, tais como: Norte/Sul; Zonas Tropicais; e do mundo. Importante marco é sua inclusão em
a geolocalização da pobreza e da desigualdade, agendas como os Objetivos de Desenvolvimento
numa colagem com a cartografia do mundo co- do Milênio (ODM) e os Objetivos de Desenvolvi-
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Taxa de detecção de casos novos (por 100.000 habitantes)


> 10 não informado
1.0 - 10.0 não se aplica
<1
casos informados

Os limites e nomes apresentados e as designações usadas neste mapa não implicam a expressão de qualquer opinião por
parte da Organização Mundial da Saúde sobre a situação legal de qualquer país, território, cidade ou área ou de suas
autoridades, ou sobre a delimitação de suas fronteiras e limites. Linhas pontilhadas e tracejadas em mapas representam
limites aproximados para os quais talvez ainda não haja total acordo. © OMS 2017 - Todos os direitos reservados

Figura 3. Distribuição global da hanseníase segundo taxa de detecção de casos novos, 2016.

Fonte: WHO, 2017, Global Health Observatory. Map Gallery18.

mento Sustentável (ODS). Esse último realinha- Como os países acometidos são, majorita-
mento da agenda global – a ‘Agenda 2030 para riamente, de baixo desenvolvimento econômico
o Desenvolvimento Sustentável’, contemplou as está dado o círculo vicioso. São necessários além
Doenças negligenciadas, assim proposto: “acabar do enfretamento das desigualdades e do desen-
com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária volvimento, o investimento em pesquisas, desen-
e doenças tropicais negligenciadas, e combater a volvimento e inovação, assim como novos méto-
hepatite, as doenças transmitidas pela água, e ou- dos de controle de vetores. No caso das doenças
tras doenças transmissíveis”32. negligenciadas, embora exista financiamento
Iniciativas da saúde global denominadas de para pesquisas, o conhecimento produzido não
Global Health Iniciatives – GHIs, envolveram pro- necessariamente tem sido suficiente para alguns
gramas de cooperação entre países, em especial avanços – produção de novos fármacos, métodos
entre aqueles com baixo índice de desenvolvi- diagnósticos e vacinas. Morel6 destaca importan-
mento humano (IDH) e os países desenvolvidos. tes iniciativas voltadas para a produção e o acesso
Os investimentos e os resultados de projetos de a medicamentos. Dentre elas pode-se citar: Drugs
cooperação trouxeram implicações importantes for Neglected Diseases Initiatives – DNDi, Global
na formulação de estratégias, em especial as re- Alliance for TB Drug Development e UNITAID –
lacionadas à indústria farmacêutica37. Apesar de Laboratory for Innovative Financing for Develop-
esforços de países com relevantes quadros endê- ment.
micos de doenças infecciosas, há um importante Ainda que reconhecendo a importância das
gap ainda não superado – o atraso em pesquisas e iniciativas e a positiva inflexão que representa no
inovações na área. Atraso devido a fatores como cenário ‘global’, percebe-se que o fato das ações
a baixa atratividade sobre a indústria farmacêu- serem focalizadas ao campo da produção e acesso
tica dada a insuficiente capacidade de pagamento aos fármacos, há o predomínio de soluções pau-
e fragilidade dos sistemas nacionais de pesquisa tadas majoritariamente na matriz biotecnológi-
e inovação. É extremamente relevante a ausência ca. Contudo, destaca-se que no Brasil, em virtude
de recursos próprios de governos de muitos paí- do adensamento do SUS há avanços não apenas
ses para os investimentos necessários38. restritos ao acesso aos fármacos, mas também
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na pesquisa e desenvolvimento, que passaram a ciência (pesquisa, desenvolvimento e inovação)
constituir-se em agenda prioritária39. e as ações de atenção e promoção da saúde em
Considerável parte dos casos relatados em torno dessas doenças. Ações sinérgicas implicam
estudos37 destacam que iniciativas de cooperação em multiplicidade de linguagens e participação,
receberam financiamento específico para deter- e, em consequência, em mudança de práticas,
minadas doenças, com ações previamente pla- que são simultaneamente sociais, políticas e eco-
nejadas pelos doadores e com baixa intensidade nômicas.
sistêmica. Intervenções das GHI – Global Health Os espaços concretos, onde se manifestam
Initiatives ampliaram o acesso a ações de saúde e os ‘modos de andar a vida’21 e as maneiras pelas
medicamentos para alguns agravos, porém, dada quais os sujeitos necessitam, sentem, interpre-
a fragilidade dos sistemas nacionais de saúde e tam, traduzem e concebem saúde e doença, não
sua baixa capacidade de resposta sob o ponto de tem sido necessariamente o cenário para o esta-
vista organizativo, há o comprometimento dos belecimento de prioridades e práticas de saúde
serviços em termos sistêmicos. A focalização das situadas.
ações voltadas para algumas doenças, alvo de fi- Ao surgimento de uma especialidade do cam-
nanciamentos externos assistemáticos, desorga- po do conhecimento médico, voltado não apenas
nizou os já frágeis sistemas de saúde, na medida para as doenças infecciosas, mas para um tipo
em que ocorrem fenômenos como a atração e “específico” dessas doenças denominado de tro-
a concentração de profissionais exclusivamen- picais40, se somam outras referências que estão
te para algumas regiões e ações, sem que haja a para além das evidências médicas, mas que, en-
necessária integração com as demais políticas de tretanto, informam suas práticas. Anderson41, em
saúde5,37. seu estudo sobre a ocupação militar norte-ame-
Estudos sobre os impactos das estratégias ricana nas Filipinas, discute a efetivação de uma
internacionais incluem, residualmente, análises ciência médica voltada, aprioristicamente, para
relativas às especificidades das populações afeta- a comprovação de diferenças existentes entre as
das em seus modos de viver. Nos estudos sobre ‘raças’ e seus ‘corpos’. Esse autor busca entender
a efetividade das GHI, a participação da popu- a construção de hipóteses e concepções do adoe-
lação afetada no processo decisório aparece ti- cimento nos trópicos, que partiam, inicialmente
midamente. Entretanto, na intencionalidade do de elementos próprios do meio ambiente como
desenho das intervenções há orientações de in- o clima. Com o surgimento da microbiologia, há
clusão dessa população, além de governos e or- a passagem do enfoque para os corpos dos co-
ganizações não governamentais. A dimensão da lonizados, hospedeiros dos microorganismos,
participação cidadã na definição das políticas é enquanto eles mesmos componentes de um ‘es-
vista como insuficiente e de baixa expressividade. paço’ a ser domesticado. A diferenciação dos cor-
A diretriz da descentralização prevista nas orien- pos e do padrão do adoecimento entre brancos
tações está mais restrita aos atores da gestão re- colonizadores e ‘nativos’ enfatizou as diferenças
gional e local de governos, não necessariamente raciais, consubstanciando políticas discriminató-
da população afetada. Os estudos não abordam rias. Domesticar a doença e o ambiente significa
a questão de fóruns participativos, que coloquem vigiar e domesticar os corpos ‘nativos’, controlar
em debate as diretrizes propostas pelas agências, o território e as formas de viver41. A designação
com protagonismo e a partir do conhecimento ‘doença tropical’, carrega elementos de colonia-
situado dos agentes locais37. lidade, pois que indica linhas de continuidade de
práticas coloniais.
Ainda que a dimensão do controle e vigilân-
Considerações finais cia, próprias do paradigma da saúde pública, se
mantenha nos países centrais, a noção de contro-
Inegáveis avanços vêm sendo obtidos nas últimas le válida na esfera da tradicional medicina tropi-
décadas no enfrentamento das doenças negligen- cal (colonial) e os seus desdobramentos são de
ciadas no mundo. Dados relativos à ampliação do natureza diversa. Um dado manejo de pessoas
acesso à prevenção e ao tratamento do conjunto e ambientes, forjado não dialogicamente, assu-
destas doenças, a partir de prioridades epidemio- me protagonismo enquanto modo de operação,
lógicas, têm sido consistentemente monitorados, sendo incompatível com o princípio da autono-
avaliados e disponibilizados. Entretanto, as ini- mia de indivíduos, coletivos ou mesmo de nação.
ciativas de políticas globais demonstram uma Essa assimetria geopolítica nos remete às bases
ainda insuficiente sinergia entre os fóruns da do pensamento abissal, no qual para a metrópole
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Gondim de Oliveira R

(Norte global) o conceito de vigilância se insere


no paradigma autonomia/regulação, enquanto
que para a periferia do sistema-mundo42 – as zo-
nas tropicais endêmicas (Sul global), o que pode
estar em questão é o binômio apropriação/vio-
lência – de culturas, conhecimentos e da auto-
nomia dos sujeitos43. Portanto, atentar para cola-
gens discursivas entre termos como ‘negligência’
e ‘doenças tropicais’, fornece meios para pensar
criticamente sobre iniciativas globais e suas tra-
duções em políticas nacionais e suas repercussões
em vidas humanas.
A noção de negligência tem que ser assu-
mida, não apenas em termos de doenças, mas
também de pessoas e seus corpos. São doenças
negligenciadas, pois que de pessoas negligencia-
das. Reconhecer a verdadeira dimensão da negli-
gência deve pressupor questionar criticamente
racionalidades que informam modos de operar
políticas que, a despeito de indiscutíveis avan-
ços em termos de saúde pública, mantêm regras
e contornos nos marcos da subalternidade e da
dependência.
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Artigo apresentado em 30/01/2018


Aprovado em 12/03/2018
Versão final apresentada em 04/04/2018

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

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