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O Brasileiro e o ZERO

Carlos A P de Carvalho
João Carlos Kozak
Roberto Boulos
André Grigonis
Paulo Nobre

“Óia nóis aqui de novo”, 40 anos depois, sentados em uma mesa redonda, redonda
como o zero, discutindo o Brasil. Sim, o Brasil ou o Brazil. Pátria amada, país do
futuro, gente que não gosta de violência mas cheio de balas perdidas ou encontradas,
país onde existe o mais informatizado e sofisticado sistema financeiro e trabalhador com
um dos menores salários do mundo, país com terras agriculturáveis e com o povo
morrendo de fome, povo que é chamado de preguiçoso mas que levanta as 4 horas da
manhã, começa trabalhar aos 14 anos, 12 horas por dia e é criticado por querer se
aposentar antes dos 60 e tem a expectativa de vida de 63 anos.

Será que esse programa “fome zero” vai dar certo? Essa foi a pergunta inicial. Nada
contra a idéia de nutrir as pessoas. É nobre essa preocupação. Mas, será que este não é
um outro mega programa assistencialista? Em uma visão simplista quem está lucrando
com essas doações de comida são os super-mercados. Nós, como milhares de pessoas já
compramos não-perecíveis e os levamos aos postos de recebimento de doações. Será
que não seria mais fácil e auto-sustentável criar situações de trabalho? Abrir fossa, por
exemplo. Abrir canaletas para o saneamento básico, pequenas hortas, esqueçam
mecanização. Tudo isso com a supervisão de pessoal técnico especializado e trabalho
cooperativo. Mas o trabalho como elemento principal para saciar a fome. Antes de tudo
o trabalho. Faça alguma coisa. Vale até estudar mas não vale estender a mão e ficar
esperando a comida. Caso contrário alguém vai pagar essa conta do “fome zero”. Você
consegue imaginar quem é esse alguém? Vamos incentivar o trabalho trabalho cem e
não o sem trabalho.

Por que temos tantas dúvidas sobre os programas lançados pelo governo? Essas
dúvidas, entre tantas outras, resultaram essa conversa sobre o zero. Não pretendemos
ter a precisão dos fatos que os economistas têm quando falam sobre o futuro, e nem a
unicidade de interpretação dos advogados nas situações de conflito. Assim esse ensaio
reflete a visão do simples contribuinte. Aquele que ouve e paga. Observa a hipocrisia
dos nossos representantes no congresso e está assustado com a situação.

Lembram-se do “ouro para o Brasil”? Década de 60. Pois é. Nossos pais foram doar
seus anéis e pulseiras. Foi lembrado que um grande agricultor doou um “enxada de
ouro” para o programa e esta recentemente apareceu como parte de um espólio de uma
tradicional familia. Isto pode ser lenda. Mas vale qualquer coisa para enriquecer a
discussão. Esse ouro era para dar lastro a moeda brasileira. Moeda forte. Inflação zero.

O ouro foi pouco e a previsão era que as aposentadorias seriam curtas. O aposentado iria
passar fome. Nomes, nos anos 60 e 70, que tinham alguma coisa que combinasse ou
rimasse com militar eram isentas de suspeita. E assim, criaram os famosos planos de
aposentadorias complementares. Foi lembrado que uma pessoa pagou religiosamente os
“carnets” e quando acabou de pagar o plano foi receber a aposentadoria zero. Conhece
você contos similares? Quem ficou com o dinheiro? Precisamos fazer um bolo para
depois dividir. Essa era a palavra de ordem. Fizeram o bolo e deixaram os nossos pais
sem ouro, sem aposentadorias e lambendo os beiços.

Aluguel zero. BNH, lembram-se? Todos teriam moradia própria. No início o brasileiro
estava limitado a uma prestação em torno de um terço da renda. Lembram-se como
terminou esse programa ou como anda hoje esse programa? A prestação zerou o salário
do mutuário e o brasileiro ficou com a residência zero. Quem pagou ou está pagando o
rombo no sistema financeiro de habitação? Adivinhe? Acertou. Eu, você, êle, nós.
Quem ganhou? A turma do risco zero.

Capitalizar as empresas foi então a palavra de ordem. Bolsa de valores. Fundo 157 no
contribuinte. Coitado do contribuinte. Só entendia de caderneta de poupança da Caixa
Econômica Federal e o governo enfiou goela abaixo uma coisa complexa dentro de uma
declaração de renda, mais complexa, que parecia um sistema contábil. Só faltam as
colunas de “ativo x passivo” e “receita x despesa”. O dinheiro foi para a Fundo 157 e
dai para as empresas e dai para onde? Certamento para o fundo. Afundou com a bolsa.
Como dinheiro aplicado estava associado a um CPF, e a receita federal está super
informatizada e o sistema bancário brasileiro é sofisticadissimo, perguntamos: Será que
não poderiam mandar um aviso ao contribuinte. Você tem tantos reais a disposição no
tal banco. Que maravilha! Primeiro Mundo. Por que não fazem isso? Para quê? Ë mais
interessante criar empresas especializadas para rastrearem essas aplicações e daí
mediante uma pequena remuneração pelos serviços prestados o contribuinte receberá o
dinheiro. Programa com retorno zero ou muito próximo do zero.

Aumentar a arrecadação. Essa frase paira na cabeça do contribuinte por décadas. O


governo precisa de dinheiro. Solução criativa: impostos. Lembramos do famoso imposto
compulsório sobre combustíveis. Talvez em um momento de fraqueza estabeleceram
que este imposto teria que ser devolvido. É claro, deixaram dúvidas de como deveria ser
devolvido. Afinal, se o contribuinte bobeasse... o dinheiro desapareceria. Foi devolvido?
Foi preciso criarem empresas especializadas na restituição, que baseados em critérios
malucos estabeleceram valores a serem restituídos. Mas entre o retorno zero e alguma
coisa, que venha o “alguma coisa”. É claro, tudo isso com uma pequena remuneração
pelos serviços prestados. E assim o contribuinte entendeu corretamente o significado da
palavra precatório. Como aprendemos nos cursos de Economia, o dinheiro ou está meu
bolso ou em outro lugar. Como não está no meu... onde estará?

Essa moda de imposto pegou. E pegou forte. Era imposto sobre passagens, sobre
compra de carros, sobre o câmbio, sobre importação de produtos mais elementares,
sobre livros, equipamentos para pesquisa, e até o famoso xuxu pagou imposto e pagou o
pato da inflação. Claro que essas restrições eram acompanhadas de escapes. Se você ou
sua empresa preenche determinadas condições está isento do imposto. Complexo
demais para ser fiscalizado. Aprendemos que quanto mais simples o sistema de
impostos mais fácil e barato será a sua fiscalização e talvez até aumente a arrecadação.
Mas também aprendemos que “se podemos complicar”, “por que simplificar”. E como o
contribuinte só preenche a condição de contribuir: contribuiu, pagou e continua
pagando.

Congelamento de preços e serviços. Que período turbulento. Lembram-se? Mas o que


realmente pegou foi o congelamento dos salários. Até hoje vem sendo aperfeiçoado. Os
produtos desapareciam e apareciam transmodificados no mercado paralelo e tudo isso

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com a ajuda dos famosos “fiscais do Sarney” tentanto pegar os “bois gordos” nos
pastos. Apareceram as “famosas tablitas” criadas pelos criativos economistas de
plantão. Não se faziam mais negócios. Só negociatas. Inventaram tantas maluquices e
regras que esse modo de viver passou a fazer parte da cultura. Com nota ou sem nota?
Cheque pré-datado. Cheque nominal. Quem perdeu neste processo? Adivinhou. Nós,
contribuintes.

Neste processo de resolver o simples problema de qualidade de vida do brasileiro


apareceu outra panacéia. E assim o brasileiro começou a entender o significado de mais
uma palavra. Essa é devastadora. Reforma. Somente com reforma o país vai crescer.
Esse é o lema. E nada mais nobre do que começar com a reforma das reformas:
constituição. Como disse um dos nossos parlamentares recentemente “uma constituição
tem que ser modificada para se adaptar a modernidade dos tempos e facilitar o
desenvolvimento”. Um artigo aqui, outro ali, e de acordo com uma declaração recente
de um ministro da justiça, tivemos mais de um artigo introduzido na constituição sem a
respectiva votação. Mas isso não é importante, pois o que os nossos representantes no
congresso mais gostam de fazer é alterar a constituição. Pois somente com reformas o
Brasil irá progredir. Só não sabemos quantas reformas serão necessárias. De PEC em
PEC vamos TOP TOP. Até PEC Paralela estão inventando. Por que os presidentes no
dia da posse juram cumprir a constituição e a primeira coisa que fazem é propor
alterações na constituição? Talvez pelo “respeito aos direitos do cidadão zero”.

Depois desta primeira reforma os ataques aos brasileiros ficaram sofisticados.


Entendam. Sofisticados, mas não dificeis. Maquiavélicos. Era uma vez uma ministra
que queria ver o “povo sem dinheiro” e criou um golpe que deixou todos os brasileiros
com “50 dinheiros – quase no zero”. É claro que rapidamente foram criadas exceções
para permitirem que os amigos do imperador sacassem sobre os depósitos bloqueados.
E o povão que só preenchia a condição de contribuinte ficou com zero de dinheiro.
Parado. Esperneando. E, ai, ele aprendeu que deveria a tratar o seu cãozinho como
humano, pois era o único que não o enganava, pois conforme as palavras de um certo
ministro em um programa de televisão...”o que é bom a gente fatura e o que é ruim a
gente esconde”. Entre um maquiavelismo e outro foi lembrado que a inflação de um
mês foi quase 100% e a poupancinha do contribuinte foi “zero”. Temos agora empresas
especializadas em recuperar essa diferença. É claro, com uma pequena remuneração
pelos serviços prestados. Durante todo esse tempo, no bolso de quem esse dinheiro
esteve?

Então, o mais sofisticado e orquestrado plano “estado zero” ou “estado no zero” onde o
poder econômico manda e desmanda foi participado ao brasileiro. Inclusive se acontecer
algum descuido... a escravidão será aceita. Aliás, parece que já vem sendo praticada por
algumas pessoas notáveis como experimento. Vamos vender as estatais e com esse
dinheiro pagar as dívidas e melhorar a qualidade de vida dos brasileiros. Começaram o
plano. Aprovaram as vendas e venderam. O patrimônio construído com o dinheiro do
contribuinte e que era de muitos ficou com poucos. E o povo. Ficou com a conta. Com
uma enorme conta no fim de cada mês com as tarifas indexadas em dolar e com seu
salário cada vez menor. E o brasileiro que de global só entendia das conversas comuns,
em todos os rincões do Brasil, das novelas das 8 passou a conviver com uma nova
palavra: globalização. E entendeu perfeitamente o significado da globalização.

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E os nossos representantes olharam para os hospitais e viram que a saúde do brasileiro
ia mal. Precisamos de dinheiro para melhorar a qualidade de vida do brasileiro. Que
apelo maravilhoso. E apareceu um médico corajoso e inteligente que vendeu a idéia
para a nação onde o contribuinte deveria pagar mais um imposto e que este seria
aplicado exclusivamente na saúde. O povo creditou, ficou comovido, e os congressistas
criaram a CPMF. Resultado. O governo ficou com o imposto e o povo ficou com a
saúde zero. Criaram, então, os planos de saúde privados com desconto automático no
contra-cheque, para assegurar o risco zero, e os salários ficaram menores. Quase no
zero. E o brasileiro idoso aprendeu o significado do que é um plano de saúde.

Deixar que as forças do mercado regulem as relações entre as pessoas e organizações.


Precisamos fazer mais reformas. E o contribuinte passou a conviver com mais duas
palavras: previdência e tributária. A desconhecida CIDE passou a fazer parte do
vocabulário do contribuinte. Nunca se viu tanto jogo de interesse. Cinismo. Hipocrisia.
Os nossos representantes no congresso vão na televisão e convencidos que o
contribuinte é imbecil, falam barbaridades. E o contribuinte? Só paga. É assustador.
Quem vai acabar perdendo neste processo? Adivinhe? Acertou. Eu, você, nós. Simples
trabalhadores e contribuintes. Vamos pagar, pagar, pagar. Até zerar. E ainda querem
que ele contribua para o fome zero. Acho que o contribuinte vai entrar no programa
fome zero.

Talvez a máxima de um jogador de futebol deve ser aplicada: fingir: fingir que come,
fingir que estuda, fingir que trabalha, fingir de alguma coisa. Finjir, mas ligado nas
televisões globais. A oportunidade de ver os nossos ilustres empresários aparecerem na
televisão dando entrevistas manifestando que os impostos precisam ser reduzidos e
simultaneamente os nossos congressistas insistirem que as reformas irão proporcionar o
espetáculo do crescimento serão repetidas inúmeras vezes. Para nós, eles aplicam uma
outra máxima de outro jogador de futebol. Tirar vantagem. E o contribuinte? Não
escuta mais ninguém defender os seus salários ou mesmo corrigir as faixas de
contribuição de imposto de renda ou mesmo a seu direito de viver com segurança. Só
ouve o silêncio do grito dos radicais. O trabalhador ficou sem o seu interlocutor.
Acreditou. E talvez depois vai dormir e continuar sonhando. Talvez, o sonho errado.

A nossa carroça chefe do processo indústrial. O Automóvel. Quantas pessoas vivem


em função do carro? Quando o contribuinte sai com o seu carro para o trabalho ele tem
realmente a sensação contribui. IPI, ICMS, IPVA, além do pedágio e uma legislação
de trânsito (outra reforma) fantástica que deu origem a inúmeros trabalhos sociais e
científicos. Por exemplo, foi certamente um estímulo a ornitologia pois tivemos o
aparecimento de centenas de milhares de pardais. Um avanço na medicina de primeiros
socorros pois todos os carros foram equipados de um estojo milagroso para ser
utilizado em caso de acidente. E, se em uma fiscalização estiver com o extintor de
incêndio vencido conhecerá o rigor das leis. E o mais importante. O social. Contribuiu
para a criação milhares de empregos de “olhadores de carro” e de “fiscalizadores de
boletos” de estacionamento nas vias públicas. Além disso, a mais produtiva das
indústria. Estacionamento. Um pátio, um vigia e um caixa. Que produtividade. O
contribuinte ainda faz o seguro como contrapartida da indústria que mais cresce no país:
a do roubo de carros. E ainda fica pensando que em um futuro próximo terá que pagar a
revisão (inspeção) veicular. Tudo isso sai do salário do contribuinte. Diariamente.
Semanalmente. Mensalmente. Anualmente. E ainda querem que o contribuinte seja um
consumidor. Ele está sendo zerado.

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Aparentemente os nossos jovens estão certos. A saída para o Brasil são “os aeroportos”.
São milhares de jovens, bem educados, com vontade de viver, que deixam esse país
diariamente. E isso é mais preocupante quando se vê a oficialização de uma coisa
contrabandeada --- falamos da soja transgênica: alguém financiou, alguém autorizou,
alguém plantou, alguém fiscalizou, alguém vendeu, alguém teve lucro. Na sua essência
não tem diferença de se plantar ervas interessantes ou mesmo trazer coisas da fronteira
em sacolas pretas e vender nas ruas das grandes cidades. Mas neste processo de
transgênico a situação é um pouco interessante, pois a falta de um estudo de impacto
ambiental destas agriculturas genéticamente modificadas poderá transformar,
primeiramente, o pessoal que trabalha no campo em resistente aos herbecidas e aos
tóxicos utilizados nestas variedades genéticas transformadas, e em uma segunda etapa
a formação de uma próxima geração dos brasileiros: genéricos (mais baratos) e
resistentes. Não é interessante?

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