Você está na página 1de 17

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

MARINA GARCIA, 120.340 – VESPERTINO

AURORA SANCHEZ – ECOS DA INVISIBILIDADE CIGANA


Biografia

Guarulhos
2019
INTRODUÇÃO
“Quem se lembra dos armênios?”, teria dito Hitler ao se referir ao esquecimento futuro
de sua política genocida de extermínio de seis milhões de judeus e outros na Alemanha do
Terceiro Reich e nos territórios ocupados pelos alemães durante a guerra. Felizmente Hitler
estava errado em sua previsão quanto aos judeus, não só não foi esquecido, como os lugares de
memória a este povo foram consolidados e são constantemente reafirmados, seja em Museus
em Israel, EUA, Brasil, Holanda, Polônia, entre outros; em premiação como os “Justos entre as
Nações”, dados aqueles considerados gentios que arriscaram suas vidas para salvar o povo
judeu, além de monumentos em diversos lugares do mundo; e, principalmente, a extensa
produção cinematográfica sobre o sofrimento do Holocausto aos judeus.
No entanto, será que esta máxima de Hitler estava totalmente equivocada? Afinal, quem
se lembra dos ciganos? E é por isso que este trabalho faz um esforço de biografar a vida Aurora
Sanchez, uma cigana de origem rom1 isolada forçosamente da família durante a Segunda Guerra
Mundial, criada por pais adotivos não-ciganos em Le Chambon-sur-Lignon, uma comuna
francesa próxima a cidade de Lyon, até mais ou menos seus vinte um anos quando encaminha-
se para Paris afim de tomar conhecimento sobre a família levada pela política de porajmos2,
bem como entrar em contato com outros grupos de ciganos. O interessante do caso de Aurora
são as constantes tentativas de se reaproximar de seu passado, de recuperar suas raízes. Mesmo
que ela mesma não tenha sofrido a violência do holocausto diretamente na carne, o medo e a
solidão que este período lhe causou se perpetuaram, até o momento de reivindicação política,
junto com a Association Gitan de Notre Dame, e a participação direta no I Congresso Mundial
Rom, em 1971, em Londres. Deste ponto de vista, partimos da premissa de Mary Del Priori
sobre como podemos analisar e refletir os indivíduos a partir de "[...] suas paixões,
constrangimentos e representações que pesavam sobre suas condutas”3 em sua ampla dimensão.
Trabalhar com a história cigana, mesmo com suas dificuldades de documentação e
língua – já que até pouco tempo eram ágrafos, e até hoje não houve padronização da escrita –,
é importante para conferir agenciamento a estas pessoas, e, portanto, tirá-las das sombras e dar-
lhes voz. Não tratando sua dor como um subcapítulo do genocídio judeu, ou até menos, mas
com suas próprias reivindicações e problemas. Segundo Maria Sierra Alonso:
La lucha contra el olvido no es solo una tarea académica; también es una obligación
cívica. Es importante la labor de los historiadores que han afrontado un trabajo muy
difícil, por los problemas de documentación y otros motivos. Es aún si cabe más

1
Rom, sinti, calon, entre outros, são os grupos étnicos que compreende a totalidade do povo cigano, os mesmos
preferem estas nomeações. O termo ‘cigano’ é também uma terminologia característica dos não-ciganos.
2
Termo cunhado pelo linguista Ian Hancock para se referir ao Holocausto cigano. A palavra significa literalmente
“devorar”, e, apesar de não haver unanimidade para o termo, é o mais utilizado.
3
DEL PRIORE, Mary. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi. Rio de Janeiro, v. 10, nº 19,
jul./dez., 2009, p. 9.
necessária la recuperación de las vocês perdidas de los supervivientes: sus
testimonios, en forma de memorias en algunos casos, entrevistas orales o transcritas
en otros, son la mejor vacuna contra el racismo. 4

BIOGRAFIA
Em novembro de 1942 chegava na cidade de Le Chambon-sur-Lignon um acampamento
de família cigana. Na época, a França passava por um período de uma ocupação humilhante
que começara em junho de 1940, na qual dividiu o país em dois, entre a zona ocupada pela
Alemanha nazista, que cobria grande parte do norte, e a zona livre, que cobria a região do sul.
O sul, região em que se encontra a cidade de Le Chambon-sur-Lignon, ficou conhecido como
França de Vichy pela consequente transferência da capital após a tomada de Paris, o governo
em Vichy era considerado como legítimo do Estado francês pré-guerra5. Segundo Tony Judt:
“[...]com o regime do marechal Pétain, em Vichy, atuando como uma espécie de Uriah Heep a
serviço de um Bill Sikes que personificasse a Alemanha. A despeito do que diziam em público,
os líderes e formuladores de políticas franceses com certeza sabiam o que se passava no país”.6
O que se leva em consideração dessa experiência é que, apesar dos ciganos nômades,
como esses que cito, se considerarem e manterem um estilo de vida para além dos Estados
nacionais e a guerra que se trava nos ditos campos da civilização, eles são engolidos também
pelas políticas vigentes durante a guerra. No filme Korkoro, de Tony Gatlif (2003), um dos
personagens ao ser apresentado ao contexto da guerra e suas proibições ao seu estilo de vida
tem o seguinte diálogo com o prefeito da cidade: “Há uma guerra acontecendo. É algo sério”,
diz o francês. E o cigano responde: “É a sua guerra. Nós nunca guerreamos”. Ao nos depararmos
com a carta de Aurora Sanchez em 1944 endereçada para seu irmão Alexandre Sanchez já temos
ciência minimamente de qual foi o destino de sua família, apesar de não termos certeza do
porquê da separação.
Aurora era uma criança em 1942, nascida por volta de 1929 ou 19307, ela tinha mais ou
menos treze anos quando foi separada dos pais e irmãos. Depois do ocorrido, a dor e o
sentimento de não pertencimento acompanhariam toda sua trajetória: pessoal e política. Desde
então ela passa a ser criada por um casal dono de uma venda da cidade, Maurice e Isabela,
talvez amigos da família ou pessoas que foram tocadas por uma criança sozinha no mundo.
Apesar das fontes não darem esclarecimento sobre em que medida ela, como diz, ficou
esperando, há a hipótese de que ela e o irmão estivessem fazendo oferta de serviços na cidade
– prática muito comum entre ciganos, principalmente venda de bordados, objetos importados,

4
ALONSO, Maria Sierra. Para conocer el Porrajmos: el genocidio gitano bajo el nazismo. Andalucía en la
historia, 55, 2017, p. 31.
5
JUDT, Tony. Pós-guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 65.
6
Ibidem, p. 162.
7
Datação obtida a partir de sua segunda carta, em 1950 quando afirmara ter vinte e um anos.
concerto de panelas de chumbo, entre outros – no momento em que algo aconteceu para que ela
fosse escondida ou separada do grupo. Na terceira carta, datada de 1950, Aurora comenta:
“Muitas pessoas foram libertas, quem sabe meus pais e irmãos não estejam vivos ainda?”. Esta
postura afirma conhecimento do que se tornou público logo após a derrotada da Alemanha em
6 de junho de 1944: a existência de campos de extermínio e o movimento de libertação das
vítimas do Holocausto, não apenar de judeus, mas também de ciganos, testemunhas de Jeová,
homossexuais, entre outros. A possibilidade de deportação de pessoas nestas condições durante
a ocupação nazista na França não é ignorada, muito pelo contrário, como retrata o filme de 1942
de Michael Curtz, Casablanca, mesmo o governo francês das zonas livres era um governo
colaboracionista.
Na França existiam até campos de concentração somente para ciganos, administrados
pelas próprias autoridades francesas. Não se tratava de campos de extermínio, mas
quase sempre de campos de trabalhos forçados e por serem campos em geral
pequenos, para uma centena até alguns poucos milhares de pessoas, as condições de
vida eram em geral melhores do que nos campos administrados pelos alemães.
Bernadac chama estes campos, apropriadamente, “as antecâmaras francesas de
Auschwitz”, porque principalmente no final da guerra, muitos dos 30 mil ciganos
internados nestes campos franceses foram deportados para os campos de extermínio
existentes na Alemanha e em outros países.8
É importante ressaltar a diferença do genocídio judeu, a Shoah, do genocídio cigano, o
Porjamos do ponto de vista ideológico e integrante da modernidade. Em ambos, aplicasse a
lógica de Zygmund Bauman de que este extermínio é diferente dos outros: ele é como o trabalho
de um jardineiro, em sua mecanicidade não tem um fim em si mesmo, mas tem uma visão de
sociedade melhor, há um propósito.9 Ian Hancock completa afirmando que:
[...] both Jews and Romanies did indeed share the status [...] of being targeted for
elimination because of the threat they were perceived to pose to the pristine gene pool
of the German Herrenvolk or ‘Master Race’; but while the Jews were considered a
threat on a number of other grounds as well, political, philosophical and economic,
the Romanies were only ever a ‘racial’ threat. Earlier writings on the Holocaust,
however, either did not recognize this at all, or failed to understand that the
‘criminality’ associated with our people was attributed by the Nazis to a genetically
transmitted and incurable disease, and was therefore ideologically racial; 10
Apesar de Aurora ter tido a sorte de estar no lugar certo, na hora certa e ter sido bem
recebida pelo casal da venda, nem todos os momentos foram plenos para ela. Como relata na
carta para seu irmão Alexandre – a carta que nunca foi enviada – ela não se adaptou bem as
normas de Maurice e Isabelle, como não foi totalmente aceita pela comunidade de Le Chambon-
sur-Lignon. Em primeiro lugar foram seus hábitos de dança e música, na qual ela relata que
“[eles] costumam fechar o rosto e dizem que eu não posso mais dançar daquele jeito ‘não

8
MOONEN, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. 3ªed. Recife: 2011, p. 71.
9
BAUMAN, Zygmund. Singularidade e Normalidade do Holocausto, In: “Modernidade e Holocausto”, 1989,
p. 115.
10
HANCOCK, Ian. Romanies and the Holocaust: A Re-evaluation and Overview. In: STONE, Dan (Org). The
Historiography of the Holocaust. New York: Palgrave Macmillian, 2004.
civilizado’, ou apenas falar em nossa língua, que não é coisa de moça direita. Quando o faço,
eles brigam comigo e me dão um tapa”. No entanto, o caso com Madame Cecile é um dos mais
emblemáticos. Segundo Aurora, ao fazer uma entrega para seu pai ela é acusada de roubo de
mercadoria pela cliente e é trancada nos quintais dos fundos, que escapa escalando o muro. Por
sua pele mais escura, e possivelmente outros traços físicos ou linguísticos que carrega, ela foi
identificada como cigana e possivelmente acusada instantaneamente. O escritor Máteo
Maxinoff (1917-1999), um dos primeiros e mais importantes literatos romanis reconhecidos,
diz que “J'appartiens à ce peuple mal connu que la calomnie a lié à ses beautés enfantines”11.
O resultado deste episódio é o constante medo e o enclausuramento que é submetida depois, em
que não pode frequentar escolas ou mesmo interagir com outros na missa de domingo.
Já a segunda carta, em 1950, temos a noção de que com o fim da guerra há um
afrouxamento da relação dela com as pessoas da região. Principalmente os refugiados judeus
de Le Chambon-sur-Lignon, o destinatário desta e da carta seguinte. É interessante como, em
2004, o então Presidente Jacques Chirac fez um discurso na cidade e condecorou a todos como
os Justos entre a pátria, pois ninguém foi denunciado e milhares de judeus, especialmente
crianças, foram salvas da deportação:
Ici, persécutés, déshérités, réfugiés ont trouvé asile. Ici, juifs menacés de mort ont
trouvé protection. Ici, maquisards et combattants de l'ombre ont trouvé abri.
Cette terre d'asile est l'un de ces lieux où souffle l'esprit de résistance. Ce pays, qui a
payé chèrement le prix de la liberté de conscience, a vu très tôt des femmes et des
hommes se lever pour dire non.12
No entanto, seu amigo e possível interesse romântico, Abraham, foi um dos milhares de
judeus que migraram para Israel no pós-guerra. Segundo Judt, principalmente no caso alemão,
não existia um sentimento de bem recebimento dos judeus na Europa após a guerra, assim, “a
dificuldade de ‘situar’ a população judaica europeia só foi resolvida com a criação do Estado
de Israel: entre 1948 e 1951, 332 mil judeus naturais da Europa partiram para Israel”13. Aurora,
em 1950 apresenta esses sentimentos de não pertencimento, e no caso, medo, dos judeus na
Europa após o Holocausto quando lhe escreve: “Acho que você deve ter sentido isso quando
saiu de casa... aliás, não foi por isso que você foi? Me disse que em Israel estaria seguro, pois
era sua gente.”
Mas há uma mudança de sua postura vinte anos depois, principalmente após a Guerra
dos Seis Dias em 1967. Enquanto ela perguntava coisas triviais sobre o novo país em 1950,
sobre a vida morando próximo ao mar, em 1971, ao comentar sobre seu distanciamento de
Abraham com sua amiga Laura, diz que ele convive com a morte: “Ora de sua gente, ora dos

11
MAXIMOFF, Máteo. Savina. Romainville; Wallâda, 1986.
12
CHIRAC, Jacques. Trecho retirado de seu discurso em Chambon-sur-Lignon em 8 de julho de 2004.
13
JUDT, Tony. Pós-guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 47.
palestinos”. Eric Hobsbawm fala como “O aspecto não menos importante dessa catástrofe [a
Segunda Guerra Mundial] é que a humanidade aprendeu a viver num mundo em que a matança,
a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia-a-dia que não mais notamos.”14
É nesse clima de tensão característico: por um lado, traumático para as vítimas diretas e
indiretas do Holocausto e da guerra, e por outro, de uma crescente polarização mundial
característica da Guerra Fria que Aurora começa a desejar sair de do enclausuramento que foi
submetida durante os conflitos. Neste palco ela comenta sobre o que escuta nas rádios, sobre a
bomba no Japão, sobre a URSS e seus testes: “Sinto medo de que um dia elas caiam em nossas
cabeças e não tenhamos onde nos esconder”. Hobsbawm é enfático ao dizer como entre as
superpotências existia certa certeza que nenhuma das duas apertaria o botão nuclear, eram
confiantes que nenhum dos lados queria a guerra, “Essa confiança revelou-se justificada, mas
ao custo de abalar os nervos de várias gerações.”15
Com a atitude de Aurora em desejar cursar literatura em Paris em vez de casar-se e ter
filhos na vila, como provavelmente seus pais adotivos fizeram, enxergamos uma tendência
tímida de expansão universitária e libertação feminina que teria explosão entre a década de 60
e 70. Percebemos, porém, que Aurora não conseguiu realizar seu sonho de cursar o nível
superior. Ao falar sobre um carnet anthropométrique16 compreende-se as limitações que ela
estava submetida, durante certamente, mas também após a guerra. Em uma entrevista, em 1997,
o escritor já citado Máteo Maxinoff diz como “nunca pisou um pé em uma escola”, para
aprender a ler e escrever teve que aprender sozinho. Se dificilmente os ciganos conseguiram
frequentar a escola durante a primeira metade do século XX, quem dirá ir para a universidade.
Mas não é como se Aurora tivesse desistido de todos os seus objetivos. Em 1963 ela já
está em no distrito de Quartier de la Salpêtrière, em Paris, dividindo uma pensão com mais duas
garotas, que, apesar da amizade, sentia inveja por poderem cursar o ensino superior enquanto
ela própria trabalhava em um escritório, provavelmente como secretária e/ou datilógrafa.
Outros elementos, no entanto, também saltam aos olhos neste momento: a riqueza dos anos
dourados, e a falência de instituições como a venda de seu pai Maurice, devido à explosão dos
supermercados. Segundo Judt:

14
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos - o breve século XX – 1914-91. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 58
15
Ibidem, p. 227.
16
O carnet anthropometrique d‟identité era um tipo de carteira de identidade com dados pessoais, descrições
físicas, retrato e impressões digitais. Era obrigatório ser carimbado e assinado na prefeitura de cada novo
município. Este só seria abolido em 1969. Segundo Moonen, “Como os ciganos, na opinião dos burocratas
francêses, eram um perigo para os nãociganos, foi criada, em 1949, uma Comissão Interministerial com a ‘missão
especial de procurar os meios que permitam o desenvolvimento humano dos ciganos e de fazer desaparecer, para
as populações no meio dos quais eles vivem, os inconvenientes inerentes à sua presença’. Ou seja, a intenção não
era tanto a de beneficiar os ciganos, mas antes a população não-cigana”. MOONEN, Frans. Anticiganismo: os
ciganos na Europa e no Brasil. 3ªed. Recife: 2011, p. 77.
A população passou a ter dinheiro sobressalente e começou a gastá-lo. [...] Em relação
a mercadorias mais tradicionais, o grande impacto dessa revolução do consumo se deu
através da maneira com a qual os produtos eram embalados e da escala em que eram
vendidos. Começaram a surgir os supermercados, especialmente nos anos 60, a década
em que o impacto do aumento do poder aquisitivo foi sentido de modo mais
expressivo.17
É um momento ambíguo, em que o mundo da guerra e de antes dela são engolidos por
um surto tecnológico e de consumo de massa. Se de um lado ela comenta sobre a tristeza do pai
com o fim do comércio – e a melancolia do falecimento da esposa –, de outro ela relata as
roupas novas e a máquina de escrever que comprou, e, principalmente, o televisor que planeja
adquirir junto com as colegas de casa: o aparelho de última geração, seu cinema na própria casa,
que todos, ou têm, ou terão que ter. O televisor é importante também para a compreensão da
mudança de sua postura quanto ao amigo em Israel na última carta, segundo Hobsbawm: “Pela
primeira vez na história pessoas desconhecidas que se encontravam provavelmente sabiam o
que cada uma tinha ouvido (ou, mais tarde, visto) na noite anterior: o grande jogo, o programa
humorístico favorito, o discurso de Winston Churchill, o conteúdo do noticiário.” Ou seja,
adquire-se a noção do que acontece não mais pela voz do locutor das rádios, mas dos próprios
olhos fixados na caixa da TV, e ela própria da situação de conflito em Israel e Palestina.
Ainda na carta de 1963 para Abraham, especificamente no último parágrafo, vemos
timidamente aquilo que seria consolidado com sua participação no I Congresso Mundial Rom,
em Londres em 1971: sua aproximação política e o ato de explorá-lo, como nunca antes, em
uma cidade grande e cheia de possibilidades como Paris. A cidade dos valores iluministas. A
descoberto do autor Máteo Maximoff, o escritor romani, e sua obra Les Usitory (1938), uma
narrativa baseada em fadas do folclore cigano que determinam a vida de uma criança após seus
primeiros dias de nascimento, são parte desse redescobrimento da tradição romani. Ao conhecer
o homem que viria a ser seu marido na livraria de Notre Dame, Raul, ela aproxima-se de grupos
de reivindicação por direitos ciganos. Sendo ele uma porta de entrada.
Vale destacar ainda o processo de indenização reivindicado pelas vítimas e parentes
destas neste período, parte da reivindicação de alguns grupos. Segundo Frans Moonen:
A II Guerra Mundial terminou há mais de meio século. Centenas de milhares de judeus
receberam indenizações do governo alemão, e o povo judeu recebeu uma Pátria nova
(Israel 1948). Apenas poucos ciganos foram indenizados, mas a quase totalidade
nunca recebeu nada, sob a alegação de que foram perseguidos e exterminados não por
motivos “raciais”, mas por serem associais e criminosos comuns; outros tiveram seus
pedidos de indenização negados porque não conseguiram apresentar os testemunhos
necessários.18

17
Op. cit. JUDT, Tony, 2008, p. 463.

18
Op. Cit. MOONEN, Fran. 2011, p. 71.
Ou seja, a ponta da motivação política de muitos grupos foi a recusa de indenização ou
mesmo declaração da existência de uma política racista, genocida ou colaboracionista com
esses ideais durante a guerra. Ela não cita qual foi resultado disso em sua vida pessoal, ou
mesmo no que compreende sua família, provavelmente assassinada na máquina nazista. No
meio tempo entre 1963 e 1971 ela participa da Associação Cigana de Notre Dame. Um grupo
de ciganos ativistas estritamente ligada a religiosidade evangélica e a luta por direitos ciganos.
Na edição nº18 do Monde Gitan de 1971, na qual Aurora cita em correspondência com Laura,
há três páginas de editorial explicando quem são eles, o título é Pourquoi nous luttanos?
De qui s'agit-il?
Non seulement des Gitans au sens strict et des Tsiganes, Manouches,Sinti, yéniches
composant traditionnellement le monde du Voyage, mais de tous ceux qui partagent
leur mode de vie et son affrontés aux mêmes blèmes pro- qu'eux.
Pourquoi agissons-nous?
En raison de notre foi en Jésus-Christ, qui nous les a donnés pour frères ; toi qu ils
partagent encore imparfaitement, mais à laquelle ils ont pleinement droit ; et parce
que nous reconnaissons le Seigneur dans l'homme qui chemine près de nous sur la
route.19

O editorial termina com a seguinte estratégia de agremiação política: Si vous êtes


d'accord avec ces principes: Abonné, vous devez devenir adhérent. Adhérent, vous devez
devenir militant. Nous avons besoin de vous.20 É igualmente interessante como, assim como a
reivindicação dos direitos negros no EUA por Martin Luther King – na mesma época –, existe
forte apoio e embasamento da religião em sua vertente protestante nesta Associação. Ambos
são movimentos de ativismo embasados na religiosidade e igualdade perante a Deus.
Após se casar, Aurora vai para Londres, onde relata fazer um passeio de carro, segundo
ela “[...] há diversos monumentos culturais e atividades na cidade, mas ela mesma [Londres] é
bastante cinza e quase todos os dias são nublados. Há também bastante jovens pela cidade com
seus cabelos e barbas compridas, imagino que seja algum estilo da moda que Madelaine deva
conhecer”. Desta frase dois elementos são importantes, o primeiro é a casualidade que se torna
andar de automóvel, e não mais de carroça (para áreas rurais) ou transportes públicos, como
trens e ônibus. Segundo Mark Mazower, o carro torna-se um dos elementos de consumo mais
importantes que saltou em venda entre o final da década de 40 até o fim da década de 60 21. O
segundo é a perceptível mudança entre a aparência dos jovens e seus hábitos, é o início do que
ficou conhecido como os anos rebeldes, ou, segundo Hobsbawm, revolução cultural.
Seus estilos juvenis se difundiam diretamente, ou através da amplificação de seus
sinais via a intermediária cultural Grã-Bretanha, por uma espécie de osmose informal.
Difundiam-se através dos discos e depois fitas, cujo grande veículo de promoção,
então como antes e depois, era o velho rádio. [...] Difundiam-se ainda pela força da

19
ASSOCIATION NOTRE-DAME DES GITANS. Monde Gitan. Trimestral: nº 18. 1971, p. 2.
20
Ibidem, p. 4
21
Mazower, Mark. Continente sombrio: A Europa no século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 300.
moda na sociedade de consumo que agora chegava às massas, ampliada pela pressão
dos grupos de seus pares. Passou a existir uma cultura jovem global. 22
Em casos mais próximos do que a vista de Londres sobre esta cultura jovem global, é o
que diz a amiga quando promete levar um disco dos Rolling Stones, Albúm Sticky Fingers
(1971), para sua filha, Madaleine: “Sei que você não gosta que ela escute muito essas músicas
de adolescentes rebeldes, mas acho que faz bem ela se expressar pela música... mesmo que seja
bem barulhenta”. Nesta época, há a distinção de valores entre as gerações, havia um abismo
histórico que os separava.23 Mas a própria Aurora é também resultado destes anos de revolução
cultural: em primeiro, a possibilidade de estar, como mulher, presente na reivindicação de seus
direitos, no caso sociais e raciais. Neste Congresso, primeiro de muitos outros que aconteceram
em diversos locais do mundo.
Considerado com um momento histórico da luta romani, neste encontro foi oficializado
e decido sua bandeira: a roda de uma carroça no centro, e a cor azul em cima (representando o
céu) e a cor verde em baixo (representando a terra), bem como a música Glem Glem como hino.
Criou-se também cinco subcomissões para cuidar de assuntos como educação, língua, crimes
de guerra, entre outros. A organização deste encontro foi feita pelo International Gypsy
Committee. Este momento, apesar de extremamente relevante para a causa, não deve ser
entendido como resultado final. Mas uma conquista entre uma maré de injustiças e difamações
que, até hoje, 2019, assola ao povo cigano. Como a deportação de imigrantes ciganos em 2010
e 2012 pelo governo francês24 ou a perseguição a grupos após boatos na internet de sequestros
realizados por ciganos25. Enquanto a desigualdade e injustiça revelam sua continua existência,
o ativismo continua.
Depois do ocorrido não sabemos mais sobre Aurora. Nem mesmo se continua viva. A
hipótese que faço, baseado nas fontes, é que ela voltou para Paris no fim do mês após o
lançamento do disco. Apoiou Madaleine no ingresso da universidade, como desejou para si. E
até o fim de sua vida, casada, divorciada ou viúva, escreveu – como seu escritor favorito – e
lutou para ser atendido os direitos essenciais de seu povo em escala internacional, nunca
esquecendo de onde ela veio e as dificuldades que passou: na infância e na vida adulta.

22
Op. Cit. Hobsbawm, 1997, p. 321.
23
Ibidem, p. 322.
24
JN, Portugal. França insiste na deportação de imigrantes ilegais de etnia cigana. Disponível em:
<https://www.jn.pt/mundo/interior/-franca-insiste-na-deportacao-de-imigrantes-ilegais-de-etnia-cigana-
2714058.html>. Acesso em: 10 ago. 2012.
25
GLOBO, G1. Ciganos são perseguidos na França após onda de rumores nas redes sociais. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/27/ciganos-sao-perseguidos-na-franca-apos-onda-de-rumores-nas-
redes-sociais.ghtml>. Acesso em: 27 mar. 2019.
FONTES
 SANCHEZ, Aurora. [Carta] 22 abr. 1944. Le Chambon-sur-Lignon, França [para]
SANCHEZ, Alexandre [sem destino].

 SANCHEZ, Aurora. [Carta] 04 fev. 1950. Le Chambon-sur-Lignon, França [para] LIEBER,


Abraham. [Acre, Israel]

 SANCHEZ, Aurora. [Carta] 13 set. 1963. Paris, França [para] LIEBER, Abraham. [Acre,
Israel]

 SANCHEZ, Aurora. [Carta] 10 abr. 1971. Londres, Inglaterra [para] GERARD, Laura
[Paris, França]

 ASSOCIATION NOTRE-DAME DES GITANS. Monde Gitan. Trimestral: nº 18. 1971.

FILMES
 CASABLANCA. Direção de Michael Curtiz. Produção de Hall B. Wallis. EUA: Warner
Bros., 1942. P&B.

 KORKORO (Liberté). Direção de Tony Gatlif. França: Princes Production, France 3


Cinema e Rhône-alpes Cinema, 2009. P&B.

BIBLIOGRAFIA
 ALONSO, Maria Sierra. Para conocer el Porrajmos: el genocidio gitano bajo el nazismo.
Andalucía en la historia, 55, 2017.

 AVELAR, Alexandre de Sá. A biografa como escrita da História: possibilidades, limites


e tensões. Revista Dimensões, v. 24, 2010.

 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra:
Oficinas da História, 1987.

 BAUMAN, Zygmund. Cap. 4: Singularidade e Normalidade do Holocausto, in:


“Modernidade e Holocausto”, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [1ªed. 1989] 1998.

 DEL PRIORI, Mary. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Revista Topoi,
v. 10, n. 19, jul-dez. 2009, p. 7-16.

 HANCOK, Ian. Romanies and the Holocaust: A Re-evaluation and Overview. In: STONE,
Dan (Org). The Historiography of the Holocaust. New York: Palgrave Macmillian, 2004.

 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos - o breve século XX – 1914-91. São Paulo: Cia das
Letras, 1997.
 JUDT, Tony. Pós-guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva,
2008.

 MAXIMOFF, Máteo. Savina. Romainville; Wallâda, 1986.

 MAZOWER, Mark. A. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

 MOONEN, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. 3ªed. Recife: 2011.

 ROLLEMBERG, Denise. Aos grandes homens a pátria reconhecida: os "justos" no Panteão.


In: GOMES, Angela de Castro (coord.). Direitos e Cidadania: memória, política e
cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
ANEXO

Segunda versão
CARTA I – Contexto da Segunda Guerra Mundial
De Aurora Sanchez
Le Chambon-sur-Lignon, França.
Para Alexandre Sanchez

Sábado, 22 de abril de 1944


Querido irmão,
Já faz um ano e seis meses desde que você me pediu para esperá-lo. Eu ainda espero.
Quando você e nossos irmãos virão me buscar?
Muita coisa aconteceu desde que você partiu. Monsieur Maurice e Madame Isabelle
estão sendo muito bons e atenciosos comigo, realmente são pessoas de bons corações. Eles
dividem a comida, que realmente não é muita, comigo, e ainda me ensinam coisas, como ler e
escrever. Vocês teriam orgulho de mim, dizem que sou muito inteligente e aprendo rápido!
Mas eu também gosto de os ensinar coisas, como a cantar e dançar, mas acho que eles
não gostam muito... costumam fechar o rosto e dizem que eu não posso mais dançar daquele
jeito “não civilizado”, ou apenas falar em nossa língua, que não é coisa de moça direita. Quando
o faço, eles brigam comigo e me dão um tapa. Sinto saudade de conversar e cantar com vocês
como nós fazíamos.
O que me deixa mais triste, no entanto, é não poder sair para quase nada. Nem mesmo
para ir para a escola, um lugar onde as crianças vão aprender. Uma vez fui entregar uma das
encomendas de Monsieur Maurice para Madame Cécile. Não foi uma boa experiência, ela me
chamou de suja e achou que eu havia roubado todas aquelas coisas. Me trancou na área do fundo
da casa dela. Eu fiquei com muito medo... imaginei que poderiam me levar embora... Eu me
cortei um pouco, mas consegui fugir. Desde então só posso sair aos domingos, quando Madame
Isabella passa uma espécie de pó branco em meu rosto para irmos à igreja aos domingos. Por
causa do incidente com Madame Cécile ela faz com que eu seja a primeira a voltar para casa,
não gosta que eu seja vista por aí. Não sei exatamente o que pensar, mas tenho muito medo...
Sou fraca por deixar que me protejam e não sair para procura-los. Eu não sei o que acontece,
porque me odeiam... Sinto que Madame Isabelle também não confia muito nas pessoas da vila,
na verdade, acho que ninguém confia exatamente em ninguém. É uma relação muito estranha,
entre pessoas que escondem algo e outras que procuram algo.
Enfim, eu queria realmente poder sair para encontra-los. Dói muito imaginar que fui
esquecida, e dói mais ainda imaginar o que aconteceu, imaginar se estão vivos, ou não.... Da
vez que fui até nosso acampamento uma vez não encontrei nada, apenas marcas de fogueira
apagada... Eu acredito em você, Alexandre! Sei que foram embora por algum motivo e em breve
virão me buscar!!
Em geral eu passo o dia no porão lendo os livros sobre história, literatura ou finanças de
Monsieur Maurice, ou bordando para Madame Isabelle. É um pouco tedioso, mas pelo menos
consigo escutar as conversas na venda entre os dois ou entre os clientes. Eles dizem muito sobre
a pobreza da guerra, sobre um homem chamado Hitler que causou tudo isso, mas que eles rezam
para que em breve tudo acabe. Não gosto muito de pensar nisso, mas será que este homem está
com vocês? O que me anima é pensar que isso tudo vai acabar e poderei ser livre novamente
para encontrá-los.
Gostaria de saber para onde enviar essa carta. Gostaria de saber se vocês todos estão
bem, você, nossa mãe Elena, a irmã Adelina e a irmã Leya, os gêmeos Pablo e Ramon e todos
os outros. Como sei que os encontrarei guardarei essa carta até o dia em que nos veremos
novamente, em que iremos nos abraçar, cantar e dançar, enquanto Ciro toca o violino.

Os mais sinceros beijos,


Sua irmã.
Aurora.

Segunda versão
CARTA II – Contexto da Guerra Fria
De Aurora Sanchez
Le Chambon-sur-Lignon, França.
Para Abraham Lieber
Acre, Israel.

Sábado, 4 de fevereiro de 1950


Querido Abraham,
Como está? Fez boa viagem para Israel? Sinto muita sua falta depois que você e os
outros foram embora. Como é viver perto do mar? Por favor, conte-me sobre tudo sobre sua
nova casa! Quero muito visitá-lo.
Fiquei pensando bastante sobre a conversa que tivemos antes de você partir, quando me
convidou para ir para Israel junto a ti. Como eu disse, meu lugar é onde eu possa cuidar de
Monsieur Maurice e Madame Isabelle, devo minha vida a eles. Mas mesmo assim também acho
que não posso ficar nesta cidade para sempre, e depois que você partiu me senti mais uma vez
à deriva. Sabe, já tenho 21 anos e as vezes escuto Monsieur Maurice e Madame Isabelle
cochichando pelos corredores, eles acham que eu deveria logo me casar e ter filhos, acham que
já passei da idade. Mas com quem mais eu poderia me casar se não com você? Eu gostaria
muito de ir estudar em Paris, fazer literatura, sentir novos ares para longe desta vila, a estrada
sempre faz meu coração acelerar. Não sei, no entanto, se isso seria possível, afinal nunca fui a
escola e só tenho meu carnet anthropométrique como documentação, que provavelmente de
nada mais serve.
Eu ainda tenho medo também. Acho que você deve ter sentido isso quando saiu de casa...
aliás, não foi por isso que você foi? Me disse que em Israel estaria seguro, pois era sua gente.
Eu escuto bastante o rádio agora com Monsieur Maurice, sei que a guerra já acabou, mas sinto
um embrulho as vezes. Tenho medo que possa acontecer algo a qualquer momento, contigo,
comigo, até com meus pais. As pessoas parecem cada vez mais poderosas e insanas. Há cinco
anos foram as bombas no Japão, e agora, dizem, que a URSS também tem essas bombas e faz
diversos testes. Sinto medo de que um dia elas caiam em nossas cabeças e não tenhamos onde
nos esconder.
Enfim, quero ir para Paris também para descobrir mais coisas sobre minha família.
Muitas pessoas foram libertas, quem sabe meus pais e irmãos não estejam vivos ainda? Eu sei
que você disse para eu não acreditar nisso, já que podem ser falsas esperanças e eu posso me
machucar no processo... mas, é tão difícil.
Eu não sei como funcionam os processos para entrar, tentarei me inteirar sobre os
assuntos. Se você souber de algo, por favor, me escreva. Tenho pouca esperanças, mas espero
ser aceita, de todos os jeitos possíveis, e descobrir, depois de tantos anos, quem eu sou...

Deseje-me sorte!
Estarei esperando notícias suas.

Os mais sinceros beijos,


Sua amiga,
A.S.

Segunda versão
CARTA III – Contexto da Guerra Fria
De Aurora Sanchez
Paris, França.

Para Abraham Lieber


Acre, Israel.

Sexta, 13 de setembro de 1963.


Querido Abraham,
Como vai? Estou muito feliz pela gravidez de sua irmã Susan! A pequena Adele ou o
pequeno Benjamim serão bastante amados! Por favor, quando nascer, mande-me foto do
pequeno e da Susan. Ela deve estar linda.
Queria lhe passar notícias boas assim também, mas as coisas aqui estão difíceis. A venda
de meu pai está cada vez mais fraca, a não ser os velhos e fiéis fregueses, poucos vão até ele
para comprar. Nunca imaginei que aquela cidade teria essas coisas modernas, mas um
supermercado se instalou na cidade Na Champ de Mars com a l'Église. Ele está arrasado! Desde
a morte de minha mãe Isabelle no penúltimo inverno é cada vez mais difícil animá-lo, e eu me
sinto culpada de ficar tão longe. Venha no próximo feriado para a França. Vamos visitá-lo, acho
que ele ficará muito feliz com sua presença.
Sobre mim... bem, as coisas aqui em Paris são bem mais difíceis do que pensei. Mudei
novamente de pensão, mas acredito que está será por mais tempo. Estou na Quartier de la
Salpêtrière, divido o quarto com mais duas garotas, Marie e Sophia, ambas estudam na
Sourbonne. Apesar de ser a mais velha e a última a entrar na casa, elas me tratam muito bem.
Meu emprego também não é dos piores, é cansativo passar o dia escrevendo coisas das quais
me entediam, gostaria de gastar este tempo com novas histórias, mas pelo menos recebo o
suficiente para me manter. Comprei algumas roupas novas e eu e as meninas estamos juntando
dinheiro para um televisor. Vi um na casa de minha amiga Laura na última semana, achei
totalmente incrível, sinto que tenho um cinema em casa. Temos também uma máquina de
escrever em casa, eu para meus trabalhos no escritório, as meninas para seus trabalhos
universitários... Não gosto de admitir, mas tenho um pouco de inveja.
Ah, além disso conheci um autor que me deixou muito inspirada, como uma rom nunca
me senti mais próxima de casa do que lendo os livros de Matéo Maximoff. Ele ainda tem poucos
livros publicados, mas meu preferido é Les Usitory. Ao ler seus romances sinto que todos esses
anos que fui esquecida, que fui dada como o pior do pior, ou sentido que nunca tive pais, irmãos,
e que os primeiros 13 anos da minha vida fossem uma memória inserta, existissem realmente.
Não sei se você entenderá, espero que sim, já que você é como eu. Sei que aqui em Paris existem
outros roms e sintis, pretendo entrar em contato, mas ainda não tenho certeza sobre o que dizer,
são muitos sentimentos, e dúvidas sobre o que tratar. Aliás, conheci um rapaz na livraria em
Notre Dame, Raul. Ele foi muito gentil e deu a entender que conhece muitas pessoas ciganas.
Estou animada. Estive muito tempo longe da comunidade, mas pode ser uma oportunidade de
me aproximar de minhas raízes.
Lhe escreverei as novidades em breve!
Mande um beijo para Susan e seu marido.

Com amor,
A.S.

Segunda versão
CARTA IV – Contexto de Anos Rebeldes

De Aurora Sanchez
Londres, Inglaterra.

Para Laura Gerard.


Paris, França.

Sábado, 10 de abril de 1971.


Querida, Laura,
Como está? Estou cheia de saudade suas e da jovem Madeleine. Espero que em Paris as
coisas estejam tranquilas, em quinze dias Raul e eu estaremos de volta. Inclusive com presentes
para vocês duas. As rádios comentam que dia 23 deste mês a banda que Madeleine gosta vai
lançar outro disco... The Rolling Stones, correto? Me confirme na próxima carta. Sei que você
não gosta que ela escute muito essas músicas de adolescentes rebeldes, mas acho que faz bem
ela se expressar pela música... mesmo que seja bem barulhenta.
Enfim, desculpe-me não ter retornado desde o dia que cheguei, nem mesmo feito uma
ligação. Estivemos muito ocupados com todo os preparativos para o Congresso Mundial Rom.
Nem tivemos tempo para conhecer a cidade. Raul já conhece Londres, disse que já veio para a
cidade diversas vezes para trabalho, palestra ou mesmo para resolver coisas da Associação. Pelo
que vimos nos passeios de carro há diversos monumentos culturais e atividades na cidade, mas
ela mesma é bastante cinza e quase todos os dias são nublados. Há também bastante jovens pela
cidade com seus cabelos e barbas compridas, imagino que seja algum estilo da moda que
Madelaine deva conhecer. É engraçado como alguns deles se pareçam com meu irmão
Alexandre.
Aliás, por acaso sabe se a Associação já publicou a nova edição da Monde Gitan? Se
sim, me envie uma cópia, por favor. Pago-lhe quando eu retornar. Estou muito animada, ajudei
na pesquisa e texto sobre as novelas de viagem, e o grupo também desenvolveu um tipo de
manifesto sobre a luta rom.
Você me perguntou também sobre meu amigo Abraham, bom, desde meu casamento
nos distanciamos um pouco. As vezes ele me parece distante, diz que em Israel a situação não
anda boa, que convive com a morte constantemente. Ora de sua gente, ora dos palestinos. Eu
espero que ele esteja bem, desde 67 as notícias na televisão só dizem sobre tensão. Pessoalmente
acho que ele nunca deveria ter deixado a França, mas imagino o sentimento que deve ser para
ele ter uma pátria. Todavia me incomoda que para isso haja violência entre aqueles que já
estavam lá.

Enfim, estarei de volta até fim do mês com mais novidades.


Com amor,
A.S.

Você também pode gostar