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ARTIGO ARTICLE 1421

Sexualidade e gravidez na adolescência


entre jovens de camadas médias
do Rio de Janeiro, Brasil

Middle-class teenage sexuality


and pregnancy in Rio de Janeiro, Brazil

Elaine Reis Brandão 1,2,3


Maria Luiza Heilborn 1

Abstract Introdução

1 Instituto de Medicina The subject of this paper is teenage pregnancy Analisa-se o fenômeno da gravidez na adoles-
Social, Universidade do
among middle-class youth, a topic not suffi- cência nos segmentos médios cariocas, vincu-
Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil. ciently studied in Brazil. The paper is based on lando-o ao processo de individualização juve-
2 Faculdade de Medicina, a qualitative, socio-anthropological study of 14 nil, entendido como o modo de construção so-
Universidade Federal
middle-class families in Rio de Janeiro, Brazil, cial do jovem. Presume-se que a gravidez na
do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil. whose children have remained single, living adolescência possa ser tomada como um fato
3 Núcleo de Estudos de Saúde with their parents after the child’s birth. A total social revelador dos paradoxos e tensões ine-
Coletiva, Universidade
of 25 in-depth interviews were conducted with 6 rentes à socialização adolescente, na qual se
Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil. young men and 7 young women, ages 18 to 24, forja um delicado e tênue equilíbrio entre a
and their parents (11 mothers, one father), to aquisição gradativa da autonomia juvenil (sem-
Correspondência
E. R. Brandão
examine the event in retrospect and its impact pre relativa) e a afirmação da heteronomia
Centro Latino-Americano on these young people and their families. Three consoante à função educativa parental.
em Sexualidade e Direitos aspects are analyzed: difficulties young people Nas últimas décadas, o percurso entre a in-
Humanos, Instituto
de Medicina Social,
face in internalizing contraception as a norm; fância e a idade adulta foi profundamente alte-
Universidade do Estado late discovery of pregnancy; and how the deci- rado nas sociedades ocidentais modernas. As
do Rio de Janeiro. sion to either have an abortion or give birth is mudanças no estatuto infantil, o redimensio-
Rua São Francisco Xavier
524, bloco E, 6 o andar, made by young people and their parents. This namento da autoridade parental, as novas nor-
sala 6015, Rio de Janeiro, RJ research allows seeing teenage pregnancy as an mas educativas, as transformações nas rela-
20550-013, Brasil.
event that hinges on the process of constructing ções de gênero e entre gerações compõem no-
elainebrandao@ims.uerj.br
a young person’s autonomy, in which sexuality vo cenário social e familiar. A extensão da es-
plays a prominent role. Concluding, the phe- colarização e dificuldades de inserção e per-
nomenon should be analyzed in a specific his- manência no mercado de trabalho acentuam a
torical and cultural context, with changes over dependência dos jovens em relação aos pais.
the decades in the rules underlying the process Certos autores designam esse adiamento das
of individualization among young people. condições de emancipação juvenil como “pro-
longamento da juventude” 1,2, tornando a esta-
Pregnancy in Adolescence; Sexuality; Gender da no domicílio parental mais longa que outro-
Identity ra. No entanto, o alongamento da dependência
familiar não se torna impeditiva ao exercício
da autonomia nessa fase da vida, na qual a se-

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xualidade tem grande relevância. Compreen- tuição de uma prole numerosa, a esterilização
der as regras sociais que organizam o processo precoce, o abandono escolar, a precária inser-
de construção da autonomia juvenil na atuali- ção no mercado de trabalho etc. 8,9,10,11. Tais
dade pode engendrar novo olhar aos “proble- estudos centram-se no debate sobre os riscos à
mas sociais” da juventude. Uma premissa fun- saúde e à inserção social de tais jovens, sem se
damental é a distinção entre duas dimensões deter nas transformações ocorridas no proces-
constitutivas do processo de individualização, so de transição à vida adulta.
comumente tomadas como equivalentes: a au- Considera-se a gravidez na adolescência
tonomia, compreendida como autodetermina- sob nova perspectiva, a partir das mudanças
ção pessoal e a independência, concebida co- instauradas nas relações intergeracionais, no
mo auto-suficiência econômica 3,4,5. Para as contexto familiar e na sexualidade. Ao invés de
gerações jovens atuais, a conquista da inde- associá-la à reprodução de padrões tradicio-
pendência se coloca cada vez mais tardia, o nais de inserção à vida adulta, ela é considera-
que não impede que a autonomia seja uma as- da um evento contingente ao processo de au-
piração cada vez mais precoce. Nas gerações tonomização juvenil. Isso significa que o pro-
passadas, tal autonomia estava fortemente con- cesso de aprendizado e construção da autono-
dicionada pela emancipação financeira e resi- mia pessoal nessa fase da vida pode implicar
dencial dos pais. Hoje, os termos dependência certos desdobramentos imprevistos, como a
e autonomia podem se conjugar no percurso gravidez, que redundam em reordenamento da
biográfico adolescente. Tal paradoxo forja a trajetória juvenil e familiar.
construção social da adolescência e juventude Problematizar tal experiência à luz do pro-
na contemporaneidade, tornando as relações cesso de individualização juvenil permite fugir
intergeracionais na família bem mais complexas. do círculo vicioso que domina o debate públi-
Mesmo considerando a diversidade social co do tema. Relativizar o argumento da desin-
das condições de existência juvenil no Brasil, formação e valorizar o papel fundamental que
há um novo cenário cultural que permeia a a vivência da sexualidade exerce na construção
transição à vida adulta: difusão de novas tec- social do jovem permite captar regras sócio-
nologias de informação, hábitos de consumo, culturais que condicionam o fenômeno. É par-
valores hedonistas, violência urbana, desagre- ticularmente na esfera da sexualidade que os
gação dos laços sociais etc. Há trabalhos pro- jovens ensaiam formas de autonomização em
duzidos no país sobre a juventude 6,7 sob pers- relação aos pais. O exercício da sexualidade na
pectivas diversas: educação, mercado de traba- adolescência torna-se uma via privilegiada pa-
lho, violência, participação política, que aju- ra aquisição gradativa de liberdade e autono-
dam a contextualizar essa fase de vida, na qual mia, mesmo sob o teto parental.
a sexualidade e reprodução se inserem. O conceito de sexualidade adotado é deri-
A gravidez na adolescência tem sido apon- vado das ciências sociais, expresso em um con-
tada como um “problema social”. Parir antes junto de regras sócio-culturais que modelam a
dos 19 anos, décadas atrás, não se constituía experiência íntima dos sujeitos no ocidente
em assunto de ordem pública. As alterações no moderno 12,13. Sua articulação com o conceito
padrão de fecundidade da população feminina de gênero é essencial, visto ser um sistema de
brasileira, as redefinições na posição social da classificação social que organiza contrastiva-
mulher, gerando novas expectativas para as jo- mente os atributos masculinos e femininos em
vens, no tocante à escolarização e profissiona- diferentes sociedades. Assim, as experiências
lização e o fato da maioria destes nascimentos particulares de homens e mulheres no tocante
ocorrer fora de uma relação conjugal desper- à sexualidade e à reprodução só podem ser
tam atenção para o fato. consideradas à luz das diferenças de gênero
Os argumentos correntes na literatura so- que conformam as representações e práticas
bre o tema, baseados majoritariamente em in- masculinas e femininas em cada cultura.
vestigações junto às camadas populares, enfa-
tizam a desinformação juvenil, dificuldades de
acesso aos métodos contraceptivos, a pobreza, Método
as situações de marginalidade social que cir-
cundam tais eventos. A gravidez na adolescên- Em investigação qualitativa sócio-antropológi-
cia é apresentada como uma perturbação à tra- ca foram realizadas 25 entrevistas em profun-
jetória juvenil, inserida em um discurso alar- didade em 2000 e 2001 com 13 jovens de cama-
mista, moralizante, normativo. Em geral, os es- das médias do Rio de Janeiro, Brasil, sendo seis
tudos apontam o incremento das famílias mo- homens e sete mulheres de 18 a 24 anos, com
noparentais, chefiadas por mulheres, a consti- experiência de paternidade ou maternidade na

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adolescência, ou seja, até os vinte anos incom- contatos informais em diferentes redes de so-
pletos, segundo parâmetros da Organização ciabilidade.
Mundial da Saúde e com 12 pais (11 mães e 1 Um breve perfil sócio-familiar dos entrevis-
pai) 14. A perspectiva metodológica privilegia o tados: a maioria possuía escolaridade superior:
discurso dos entrevistados como via de acesso dez pais, entre os jovens, dois estavam forma-
primordial ao universo social e simbólico que dos, oito cursando faculdade e três concluindo
organiza a experiência subjetiva dos informan- 2o grau; seis jovens trabalhavam (três moças e
tes, suas representações e práticas cotidianas. três rapazes), dois deles em estágios remunera-
Na avaliação retrospectiva da gravidez na dos; a idade dos pais girava entre 43 e 52 anos,
adolescência, abordaram-se integrantes das exercendo ocupações como assessora de im-
duas gerações – a juvenil e a parental, tendo prensa, professora (ensino fundamental e uni-
em vista ser um evento familiar. Para explorar a versitária), socióloga, engenheiro civil, enge-
possibilidade do exercício da autonomia juve- nheira de telecomunicações, antropóloga, ca-
nil em contexto de dependência parental, prio- beleireira; das 14 famílias, dez possuíam renda
rizou-se entrevistar jovens solteiros residindo familiar até R$5.000 e quatro entre R$10.000 e
com os pais, após o nascimento das crianças. R$15.000; quanto à composição familiar, seis
As entrevistas foram individuais e privativas, permaneciam casados, seis eram monoparen-
com roteiro previamente elaborado, conforme tais (viuvez ou separações) e dois recasaram;
temas de investigação para cada geração. Para residiam em bairros da zona sul e norte da ci-
os jovens: contexto sócio-familiar, condições dade, de diferentes orientações religiosas ou
de moradia, religião, trajetória escolar, profis- não adeptos à religião. As entrevistas ocorre-
sional, afetivo-sexual, gravidez e seus impactos ram no período posterior ao nascimento dos
na família e no relacionamento com parceiro, bebês, cujas idades variavam de um mês a sete
além das repercussões da parentalidade na ju- anos. Dois deles – um rapaz e uma moça – ti-
ventude. Para os pais: escolaridade, trajetória nham tido uma gravidez anterior e um aborto.
ocupacional, situação conjugal, religião, renda, A pesquisa objetivou problematizar a expe-
adolescência e namoro do(a) filho(a), impacto riência da gravidez e parentalidade na adoles-
da notícia da gravidez, decisões posteriores, cência, abordando o impacto na trajetória ju-
organização da família para acolher o neto, venil e respectivos contextos familiares. A aná-
conflitos e dilemas na família, vida do(a) fi- lise dos dados privilegiou o contraste entre ge-
lho(a) antes e após gravidez, relacionamento rações (pais e filhos jovens), gêneros (rapazes e
atual com filho(a), ocorrência de discrimina- moças) e relações de parentesco (consangüíneo
ção/constrangimento na exposição pública do ou por afinidade). Os temas centrais da análise
fato, avaliação da juventude na atualidade, foram: iniciação afetivo-sexual, gravidez e seus
convivência entre três gerações na família. As desdobramentos familiares, mudanças na inte-
entrevistas duraram em média duas horas e ração e funcionamento domésticos e aprecia-
meia a três horas, tendo sido gravadas e trans- ções juvenis e parentais sobre o fenômeno.
critas. Em geral, ocorreram na residência dos Essa investigação integra uma pesquisa mais
informantes, havendo também a observação ampla designada Gravidez na Adolescência: Es-
do ambiente familiar durante as entrevistas, o tudo Multicêntrico sobre Jovens, Sexualidade e
que permitiu captar a dinâmica do relaciona- Reprodução no Brasil (Pesquisa GRAVAD) 15,16
mento intergeracional, a distribuição da famí- tendo cumprido com as exigências éticas das
lia no espaço doméstico, a presença do(a) ne- pesquisas envolvendo seres humanos.
to(a). As entrevistas dos jovens tinham prece-
dência, solicitando-se sua autorização para
contatar os pais. O sigilo é uma premissa ética Discussão dos resultados
entre pesquisador e informante, sendo manti-
do entre todos, principalmente entre integran- Iniciação sexual e gravidez
tes da mesma família. Outras decisões metodo- na adolescência
lógicas: recusou-se o acesso aos jovens por via
institucional, fosse um serviço de saúde públi- As regras do relacionamento afetivo-sexual en-
co ou privado, consultório médico, escola. Em tre jovens se alteraram muito nas últimas déca-
geral, tais instituições e seus profissionais têm das. Atualmente, o adolescente possui uma vi-
posições bastante demarcadas sobre a gravidez da sexual, nem sempre à revelia dos pais. Os re-
na adolescência, com ênfase no discurso nor- lacionamentos juvenis guardam uma esfera
mativo vigente, podendo interferir negativa- própria de autonomia do casal, mas também
mente na relação pesquisador-entrevistado. se constituem em estreita interdependência
Assim, os jovens foram localizados através de com os ditames parentais de ambos os jovens.

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A sexualidade propicia o aprendizado da Três aspectos do estudo serão discutidos: as


autonomia, fomentando o processo de cons- dificuldades de adesão à norma contraceptiva,
trução de si na adolescência e juventude 12,13. a descoberta tardia da gravidez e a tomada de
Compreendida como mediadora de relações decisão – aborto ou reprodução – pelos jovens
sociais, ela condensa possibilidades de exercí- e seus pais.
cio da autonomia pessoal, tendo em vista que
os contatos afetivo-sexuais juvenis encontram- Internalização da norma contraceptiva
se menos atrelados ao casamento e mais volta-
dos ao desenvolvimento pessoal e interação Em pesquisa francesa sobre gravidezes não
com o outro. previstas, Bajos et al. 18 discutem aspectos que
Estrutura-se um território próprio, íntimo, engendram a “norma contraceptiva” vigente
que permite ao adolescente afirmar uma iden- nas sociedades ocidentais modernas. O surgi-
tidade de gênero, mediada pelo aprendizado mento da contracepção médica (pílula, DIU), a
da sexualidade com o parceiro. Construir um liberação do aborto, a medicalização da sexua-
vínculo afetivo-sexual, diferente da amizade, lidade e da reprodução difundiram um conjun-
constitui-se em forte via de individualização to de prescrições às mulheres, sugerindo deter-
juvenil. Nessa fase, a dedicação aos estudos é minado comportamento reprodutivo. Contu-
uma exigência familiar e condensa expectati- do, as mulheres enfrentam constrangimentos
vas mútuas quanto à definição futura da car- para cumprirem essas normas, advindos da per-
reira profissional. Em geral, o desempenho es- manência da hierarquia de gênero. Se o exercí-
colar encontra-se sob forte tutela parental. A cio da sexualidade e a decisão reprodutiva po-
“liberdade” experimentada na socialização afe- dem ser compartilhados por homens e mulhe-
tivo-sexual pode funcionar como contraparti- res, a gestão da contracepção continua a ser
da à heteronomia nos estudos 17. encargo feminino, ainda bastante submetido à
Esse aprendizado relacional, no qual a lógi- capacidade de autodeterminação e de negocia-
ca de gênero tem papel decisivo, requer o do- ção com o parceiro. Analisando as falhas, es-
mínio das regras da negociação a dois, seja em quecimentos ou não uso de métodos contra-
uma relação estabelecida ou parceria ocasio- ceptivos pelas mulheres, elas argumentam que
nal. A gravidez pode integrar esse percurso, tais injunções só podem ser compreendidas
porque a interiorização das normas de contra- como “momentos de vulnerabilidade” em um
cepção e seu subseqüente controle são ainda contexto social e relacional específico. Vários
incipientes. aspectos são analisados nas trajetórias femini-
Segundo os jovens abordados, a iniciação nas: a relação médico-paciente que condiciona
sexual não se restringe à primeira relação. Tra- a prescrição e uso do método, a compatibilida-
ta-se de um longo percurso que eles atraves- de do método indicado com o contexto da vida
sam, permeado por carícias íntimas, desvela- afetivo-sexual feminina, as representações so-
mento gradativo do próprio corpo e do corpo bre a sexualidade (sexo como algo espontâneo,
do parceiro, conversas, dúvidas e medos, des- lógica emocional feminina, primado do prazer
coberta de sensações e sentimentos novos. Faz- masculino), a vulnerabilidade à dominação
se contínua no aprendizado que se instaura masculina, a ambivalência do desejo de ter fi-
doravante, pautado pela experimentação das lhos. Assim, o recurso e a gestão da contracep-
dimensões lúdica e erótica da sexualidade e ção estão subordinados a tais elementos. Se-
pela interiorização dos constrangimentos pa- gundo as autoras, uma gravidez não prevista
rentais e sociais, em especial os de gênero. traduz as dificuldades das mulheres para aca-
Em nove famílias, os pais tinham conheci- tar totalmente os constrangimentos impostos
mento da atividade sexual do(a) filho(a), en- pela norma contraceptiva.
quanto três moças e dois rapazes mantinham A consulta ginecológica na adolescência é
sua atividade sexual escondida, para se preser- um dispositivo que integra a norma contracep-
var de eventual aumento do controle parental tiva. Trata-se de hábito difundido nos segmen-
ou por interdição dos pais (uma moça). A maio- tos médios, uma iniciativa reveladora de pos-
ria dos entrevistados iniciou-se sexualmente turas contrastantes no que tange à tensão en-
com o(a) namorado(a), exceto duas moças e tre respeito à autonomia e afirmação da hete-
um rapaz com parceiros ocasionais. Cinco ra- ronomia na socialização juvenil. Das entrevis-
pazes e duas moças iniciaram-se com parcei- tadas, quatro já haviam freqüentado o gineco-
ros virgens. O tempo de relacionamento do ca- logista com anuência dos pais. Se há o reco-
sal anterior à gravidez varia entre seis meses a nhecimento da experiência sexual da filha, a
dois anos, exceto um rapaz que ficava ocasio- presença da mãe no consultório médico é evi-
nalmente com a mãe de seu filho. tada, para preservar a privacidade da relação

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médico-paciente. Tal acompanhamento se res- cessariamente não predispõe à mudança de


tringe à sala de espera, conforme relato de uma comportamento. Há intensa difusão de infor-
entrevistada, que buscou a consulta para deci- mações a esse respeito pela mídia, escolas, ser-
dir o método contraceptivo antes da primeira viços de saúde, ONGs. Espera-se que a incor-
relação sexual. Por sua vez, outra jovem que poração juvenil da postura contraceptiva seja
mantinha relações sexuais com o namorado automática, principalmente entre jovens esco-
sem conhecimento da família era submetida larizados. Pressupõe-se que o acesso à infor-
ao exame ginecológico, ao lado da mãe, impos- mação transforme de imediato as práticas se-
sibilitando um contato estreito entre médico- xuais juvenis, instaurando uma conduta de au-
paciente. to-proteção que eliminaria possíveis riscos. O
Os jovens investigados atestam sem exce- manejo e a introdução dos métodos são lentos,
ção o conhecimento dos métodos contracepti- exigem discussão entre os parceiros, autocon-
vos e terem sido advertidos pelos pais a respei- fiança, apoio social. Tal determinação e disci-
to, embora os diálogos sobre sexo nas famílias plina dificilmente são compatíveis com o do-
abordadas nem sempre fossem explícitos. Seis mínio dos “primeiros passos” sexuais.
rapazes e seis moças utilizavam método con- Esse aprendizado gradual das regras sociais
traceptivo (camisinha, pílula, diafragma, coito que organizam o relacionamento afetivo-se-
interrompido e tabelinha) na ocasião da gravi- xual entre homens e mulheres, das quais a con-
dez, de modo regular em cinco casos e irregu- tracepção e a proteção às DSTs são partes inte-
lar nos demais. grantes, contrasta-se com uma acepção muito
O aprendizado e domínio da contracepção difundida da sexualidade como algo “natural”,
na adolescência é gradual como a iniciação se- “espontâneo”, não racional ou passível de con-
xual. Não se trata de uma experiência linear, trole. Tal percepção foi encontrada entre os jo-
racional, incondicional. Conforme os depoi- vens e na geração parental. Uma moça expres-
mentos juvenis, o uso de contraceptivos está sa: “porque ele ficou insistindo, sabe... a gente
submetido a determinadas condições: no caso não é de ferro [rindo], a gente pensa, raciocina,
do preservativo, disposição pessoal para utili- mas não é de ferro”. Uma mãe ao comentar so-
zá-lo naquele momento e tê-lo consigo, deter- bre o namoro da filha, que redundou na gravi-
minação/resistência no jogo que se instala en- dez, exprime: “não foi uma coisa provocada.
tre parceiros para o convencimento à relação Talvez não tenha sido programada, nem inten-
(des)protegida etc. Os jovens estão mais vigi- cional. (...) Aconteceu”.
lantes às primeiras relações sexuais, pela ex- Ao contar sobre a relação sexual que oca-
pectativa que geram, do que à continuidade sionou a gravidez, duas jovens e um rapaz ex-
dos intercursos sexuais. Resultados da Pesqui- plicitam situações que denotam descuido: ha-
sa GRAVAD 16 demonstram que 70% dos entre- via camisinha no quarto mas não a usaram;
vistados adotaram contraceptivo na primeira usaram-na na primeira relação sexual daquele
relação sexual. Dos jovens aqui citados, nove encontro mas não nas subseqüentes; não a usa-
utilizaram proteção. As medidas contracepti- ram naquela ocasião, embora uso de preserva-
vas ou de proteção às DSTs também variam se tivo fosse uma regra do casal. A descrição dos
os contatos sexuais se dão no âmbito de rela- envolvimentos afetivo-sexuais juvenis aponta
cionamento amoroso ou ocasional. Os jovens dificuldades na questão contraceptiva, capta-
tendem a ser menos vigilantes quando estão das em dez (quatro moças e seis rapazes) de-
em relacionamentos duradouros. Luker 9 dis- poimentos que revelam a adoção de métodos
corda que o não uso do método seja falta de pouco seguros como coito interrompido e ta-
“responsabilidade”. Para ela isso pode repre- belinha, o uso descontínuo da camisinha ou
sentar, na verdade, uma certa negociação entre pílula, alegações de rompimento do preserva-
parceiros sobre o significado da relação, deno- tivo, esquecimento de ingestão da pílula, falta
tando “compromisso” e “prova de afeto”. Na de proteção em intervalo para troca de pílula.
mesma direção, Bajos et al. 18 afirmam que “cor- Um rapaz narra que houve atraso menstrual
rer o risco” pode fazer sentido e trazer cumpli- prévio à gravidez, que deixou o casal temeroso,
cidade à relação, ou seja, é um ato que pode ser sendo realizado exame, com resultado negati-
“relacionalmente racional”. vo. No entanto, tais “sustos” não foram sufi-
O domínio da contracepção inscreve-se em cientes para reverter a conduta contraceptiva
um processo de aprendizado e de tomada de deste casal, que engravidou posteriormente.
decisões no qual o conhecimento dos métodos Dois rapazes e uma moça atestaram o uso
não é decisivo. Em pesquisa sobre comporta- regular de contraceptivos nas relações sexuais
mento sexual da população brasileira, Berquó (camisinha, pílula e diafragma). No entanto, os
19 reafirma a tese de que o conhecimento ne- esquecimentos ou falhas contraceptivas tam-

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bém ocorrem. As justificativas apontadas por A descoberta tardia da gravidez


eles para a gravidez são: rompimento da cami-
sinha; falha na cobertura do diafragma, que A percepção feminina dos primeiros sinais de
não apresenta 100% de proteção; esquecimen- uma gravidez requer certo tempo. Não é uma
to da pílula, embora a namorada afirme ao en- dedução imediata da relação sexual desprote-
trevistado não ter esquecido. Nesses casos, a gida ou do esquecimento da pílula. Se fosse, a
tensão entre exercício sexual, contracepção e utilização da pílula do dia seguinte seria um re-
ocorrência da gravidez é atenuada em função curso muito mais difundido entre nós. Uma jo-
de postura responsável que os jovens reivindi- vem e as namoradas de três rapazes entrevista-
cam para si, comprovada pelo uso contínuo de dos só descobriram ou confirmaram a gravidez
contraceptivos que, no entanto, falharam – no após o primeiro trimestre. Tal percepção en-
caso da camisinha e diafragma. Quanto à pílu- contra-se condicionada a certos aspectos, con-
la, não há como avaliar se houve esquecimento forme os depoimentos analisados: não exercí-
ou falha na cobertura. cio regular da sexualidade, com relações espo-
Distintas representações sociais sobre a pí- rádicas quando não se tem parceiro fixo; ade-
lula foram encontradas, considerando-se as são periódica às dietas alimentares para ema-
duas gerações de mulheres. Nas mais jovens, a grecimento, freqüentes entre adolescentes, acar-
pílula não é revestida do espírito de contestação retando alternância de peso e, por vezes, inges-
e liberdade, próprios ao contexto dos anos 60 e tão de medicamentos; sangramentos confun-
70, no qual ela emergiu. Três delas associam-na didos com ciclos menstruais, que podem ser ir-
a algo que faz mal à saúde, engorda ou deforma regulares nessa idade (14/15 anos). Há relatos
o corpo, com posições contrárias à ingestão de de jovens que passam alguns meses sem mens-
hormônios, influenciadas por pressupostos eco- truar. Todos estes aspectos dificultam a per-
lógicos/naturalistas, estéticos ou científicos. Por cepção das mudanças corporais, interferindo
sua vez, uma mãe, cuja nora interrompeu o uso diretamente na descoberta tardia da gravidez.
da pílula por estar engordando expressa: “...nun- Explicitar tal desconfiança ao namorado e/ou
ca deixei de tomar pílula. Sou da geração pílula, aos pais é outra etapa lenta, que também pos-
a gente não deixava de tomar pílula. Ninguém sui uma temporalidade própria, contribuindo
dizia que fazia um mal terrível. Àquela época, a para a revelação tardia da gravidez ou de sua
pílula era o máximo...”. Decerto essa rejeição suspeita na família.
que a pílula desperta, também notada no con- O exercício sexual, a contracepção, a per-
texto francês 18, somada aos imperativos estéti- cepção e o enfrentamento da gravidez são mo-
cos de um corpo perfeito podem comprometer mentos inscritos em um processo subjetivo e
a utilização do método entre as jovens. peculiar de individualização, de crescimento e
Aderir a uma postura contraceptiva tam- aprendizado da responsabilidade e da autono-
bém está relacionada ao fato do exercício se- mia. São adolescentes em processo de constru-
xual juvenil ser ou não do conhecimento da fa- ção de si, aprendendo na relação com os pais,
mília. Nos nove casos em que os pais/mães es- pares e parceiros afetivo-sexuais a se tornarem
tão a par da vida sexual dos filhos, dúvidas, pessoas adultas. Esse processo é passível de
agendamento de consultas médicas e realiza- avanços e recuos, hesitações, deslocamentos
ção de exames diversos são prontamente resol- entre posições mais firmes, indicadoras de au-
vidos. Quando a prática sexual dos filhos não é tonomia, e mais vulneráveis.
discutida na família, o gerenciamento da con- Inscrito na dinâmica de autonomização pes-
tracepção à revelia dos pais torna-se mais difí- soal na adolescência, o fenômeno da gravidez
cil, conforme narram cinco entrevistados. No na adolescência perde seu caráter de exceção.
entanto, o fato dos pais estarem cientes e reco- Embora inesperado, ele pode integrar o per-
mendarem a utilização de contraceptivos não curso biográfico adolescente, que congrega um
significa que isso seja feito. As mães de três ra- aprendizado gradual das regras sociais que es-
pazes e uma moça declararam-se surpresas truturam as relações entre gêneros e entre as
com a gravidez, pois supunham que os filhos gerações, as quais incidem diretamente em sua
estivessem usando pílula ou camisinha. socialização sexual, na qual o domínio da con-
O controle da contracepção é uma expe- tracepção se situa.
riência subjetiva, que se aprende e se adquire
com o tempo, no decurso dos relacionamentos Aborto ou reprodução
afetivo-sexuais, permeados pelas assimetrias
de gênero. Raramente se instaura a priori, pois A tomada de decisão que uma gravidez inespe-
não se reveste de decisões unilaterais, embora rada na adolescência impõe exemplifica a ten-
freqüentemente tomadas pelas mulheres. são entre autonomia e heteronomia referida.

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Ao considerar as deliberações entre jovens e que seja a opção – tende a ser estruturante pa-
seus pais para decidir a solução diante da gra- ra os jovens e lhes possibilita uma referência
videz – aborto ou levá-la a termo – os dilemas neste momento conturbado. O enfrentamento
vivenciados pelas duas gerações ficam paten- do processo de decisão integra a experiência
tes. Os jovens sabem que têm poucas chances de amadurecimento/crescimento pessoal, em-
de viabilizá-las sem apoio dos pais. Os pais, por bora o jovem casal ainda não tenha plena cons-
sua vez, ao vislumbrarem o futuro dos filhos ciência de todos os desdobramentos subse-
imiscuído a uma gravidez precoce, se deparam qüentes à decisão tomada.
com a necessidade de respeitarem as posições Quando surgem discordâncias entre o de-
e decisões dos filhos, ainda muito jovens e seus sejo dos jovens e o de seus pais, os conflitos se
dependentes. Nem sempre as posturas de fi- agravam. Qualquer que seja a escolha do jovem
lhos e pais são concordantes ou chegam a ser dificilmente ele terá condições de viabilizá-la
resolvidas a um bom termo. sem ajuda da família. Para os pais, esse é um
A discussão sobre levar ou não a gestação a momento de dúvidas e dilemas em relação ao
termo nem existiu em muitos casos, por razões futuro dos filhos. Em uma família, a manifesta-
distintas. Diante da gravidez, cinco moças e três ção feminina da vontade de ter o filho, com-
rapazes decidiram ter os filhos, nem cogitando partilhada com o parceiro, não foi suficiente
o aborto. Dentre seus respectivos parceiros, para que prevalecesse a decisão. Alguns jovens
dois rapazes mencionaram a opção do aborto, ficam muito indecisos e temerosos, tornando-
mas isso não foi motivo de conflito entre o ca- se vulneráveis às opiniões de familiares e mé-
sal. Elas tinham uma posição contrária e eles a dicos, convocados a opinar. O recurso a espe-
respeitaram. O restante posicionava-se tam- cialistas da medicina pode ser acionado pelos
bém contrários ao aborto. Os pais destas cinco pais para auxílio no convencimento aos filhos,
moças tinham a mesma opinião, ao passo que nas duas direções: para manter a gravidez e pa-
no caso dos familiares dos rapazes, eles termi- ra o aborto. Adotando a solução que conside-
nam por acatar uma decisão gestada pela mo- ram ser a melhor para os filhos, alguns pais
ça e seus pais. No extremo oposto, ao tomarem conseguem convencê-los a fazer um aborto, si-
conhecimento da gravidez, dois jovens (um ra- tuação encontrada em um caso analisado. Essa
paz e uma moça) mostraram-se favoráveis ao entrevistada fez um aborto a conselho dos pais,
aborto desde o primeiro momento. Essa alterna- sofrendo pressão do namorado, contrário à de-
tiva foi compartilhada com os respectivos pais cisão da família dela, e terminou engravidando
e parceiros. Posteriormente, essa escolha foi três meses depois. Ela estava ciente de que a al-
descartada pelo tempo avançado de gestação. ternativa de interrupção não poderia ser nova-
Quando as primeiras manifestações dos fi- mente acionada, em razão das restrições médi-
lhos coincidem com a posição dos pais não há cas de um segundo aborto em curto intervalo
o que discutir. O debate se desloca para outras de tempo. Em dois outros casos, a alternativa
decisões relativas ao futuro. Ambas as gerações do aborto foi imposta, sem êxito. Esses dois ra-
concordam numa decisão central, atenuando pazes relatam ter sentido alívio pela impossibi-
os conflitos. lidade do aborto, pelo tempo gestacional avan-
Quando os jovens não possuem uma posi- çado. Em um caso, a imposição adveio da mãe
ção prévia, decerto a decisão será tomada em do rapaz, em outro da mãe da gestante.
família, mediante discussões entre o jovem ca- Essa situação-limite ilustra o cerne da ten-
sal e seus pais. A alternativa do aborto foi cogi- são que perpassa o processo de socialização ju-
tada pela geração parental em quatro casos venil. Os filhos podem ter decisões próprias ou
(uma moça e três rapazes), sem imposição aos acordadas com os parceiros, mas dificilmente
filhos ou parceiros. Alguns pais respeitaram a terão condições de efetivá-las sem os pais. Es-
decisão juvenil, embora contrários à opção da tes, por sua vez, podem avaliar que uma solu-
gravidez a termo. Os jovens relatam se senti- ção é preferível à outra, mas é cada vez mais di-
rem mais seguros com o apoio parental. fícil impô-la aos filhos. Por todas as injunções
Em duas famílias, o aborto foi avaliado pe- presentes nas relações intergeracionais na con-
los pais e discutido com os jovens e especialis- temporaneidade, o respeito à privacidade e au-
tas, especialmente seus riscos no segundo tri- tonomia dos filhos tende a ser uma norma im-
mestre da gestação. Em outra, a ponderação do perante nesses segmentos sociais. Se há discor-
aborto adveio do fato da jovem ser muito nova dância entre as gerações no tocante à resolu-
(14 anos) e desejar ter a criança, apesar de sua ção da gravidez, as estratégias parentais de
idade. Sua escolha foi respeitada pelos adultos. convencimento dos filhos precisam ser cada
A tomada de decisão da gestante ou do ca- vez mais sutis. Isso não se constitui tarefa fácil
sal, com o apoio de suas famílias – qualquer em se tratando de tudo que está em jogo para a

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trajetória juvenil e para o grupo familiar que, flexão significativa nas trajetórias juvenis ana-
na hipótese do nascimento do neto, precisará lisadas. Apesar das dificuldades, o apoio paren-
se reorganizar do ponto de vista financeiro, do- tal busca preservar o projeto de individualiza-
méstico e espacial para acolhê-lo. ção dos filhos.
Por mais difícil que seja uma gravidez na Comparar a experiência da gravidez na ado-
adolescência, presume-se que ambas as deci- lescência em diferentes classes sociais 11 per-
sões – aborto ou reprodução – podem ser in- mite compreender tal argumento. Em geral,
corporadas ao processo de construção da iden- nos segmentos populares, a gravidez promove
tidade juvenil, quando vividas como alternati- mudanças no estatuto social dos jovens pais.
vas escolhidas e assumidas por eles e não im- Eles passam a ocupar outras posições sociais
postas por terceiros. decorrentes da parentalidade e da mudança do
estatuto conjugal, o que lhes atribui maior
prestígio e reconhecimento social nas suas co-
A gravidez no cenário familiar munidades. Comumente, a parentalidade na
adolescência nos estratos populares engendra
Não há dúvida de que a parentalidade na ado- um deslocamento de posição dos jovens em re-
lescência agrava sobremaneira a dependência lação às famílias de origem, pois eles aspiram
familiar dos jovens, em todos os sentidos. O constituir suas famílias de procriação. Estabe-
apoio financeiro, doméstico e afetivo permite lecem um terceiro núcleo doméstico próximo
que eles superem muitos obstáculos e enfren- ou residem junto à família de um deles, rece-
tem os desafios da carreira escolar e profissio- bendo ajuda dos familiares. Simbolicamente,
nal, da convivência com o parceiro e familiares há nesse contexto uma certa ruptura a partir
dele. As diferenças de gênero, após o nascimen- do evento da gravidez que inaugura novo pe-
to dos filhos, tendem a se tornar mais expressi- ríodo de vida, com assunção moral mas não
vas, provocando inúmeras desavenças entre os material de novas responsabilidades relativas à
jovens casais. A sobrecarga feminina no exercí- prole.
cio da maternidade demonstra a persistência Nas camadas médias, a parentalidade na
de hierarquias de gênero, mesmo entre gera- adolescência não acelera o curso da vida, nem
ções mais jovens. Certamente, essa situação se constitui em rito de passagem à posição so-
agrava as cobranças na relação intergeracional, cial de adulto. O estatuto social dos jovens não
tornando-a mais conturbada. Novas negocia- foi alterado, nem as posições que ocupavam
ções devem ser efetivadas entre jovens e seus nas famílias de origem. Os entrevistados privi-
pais para viabilizar em conjunto os cuidados legiam a via do “crescimento pessoal”, poster-
do recém-nascido. Ocorrem inúmeros confli- gando para o futuro a efetivação dos projetos
tos na família, decorrentes do descumprimen- profissionais e conjugais. O nascimento do fi-
to das tarefas domésticas estipuladas para as lho, embora dificulte e torne bem mais proble-
jovens, da convivência do neto com outras mática tal transição, sobretudo para as mulhe-
crianças da casa, da presença cotidiana do(a) res, que não conseguem dividir os encargos re-
parceiro(a) da(o) filha(o) no ambiente familiar, ferentes aos filhos eqüitativamente com os res-
de interdições aos parceiros mal quistos. Uma pectivos parceiros, não impõe reformulações
nova gestão doméstica é instalada no ajuste que coloquem em xeque tais expectativas.
das obrigações e direitos de cada um. No en- Embora esses jovens se deparem com difi-
tanto, a despeito das desavenças, na maioria culdades e hesitações agravadas pela ilegitimi-
das famílias prevalece a decisão parental de dade social da parentalidade em tais circuns-
que o nascimento da criança não deve impedir tâncias – fomentada pelos estereótipos sociais
o curso previsto para a trajetória juvenil. Em sobre a “irresponsabilidade” adolescente – a
geral, a condição de dependência juvenil não possibilidade de torná-la um evento que con-
se torna impeditiva do exercício da autonomia, tribui para a afirmação da identidade pessoal
acepção compartilhada pelos jovens e seus pais. juvenil não pode ser desprezada.
São promovidas adaptações, reajustes frente à
chegada do neto, mas há um compromisso
fundamental entre pais e filhos no sentido da Conclusão
manutenção do projeto de individualização ju-
venil, tal qual ele vinha sendo delineado antes A discussão sobre sexualidade e reprodução na
da gravidez. Embora a gravidez na adolescên- juventude não pode ocorrer isolada do contex-
cia seja um evento que acarrete profundas al- to sócio-cultural que modela as relações so-
terações na vida dos envolvidos, em distintos ciais nas quais os jovens estão inseridos. Sem
segmentos sociais, não há uma ruptura ou in- considerar as relações intergeracionais que têm

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SEXUALIDADE E GRAVIDEZ EM JOVENS DE CAMADAS MÉDIAS 1429

na família expressão particular e as relações na-se a chave para uma leitura mais acurada
com os pares, nas quais a iniciação afetivo-se- do fenômeno da gravidez na adolescência.
xual ocorre, as análises tendem a revelar aspec- Decorre daí a complexidade da proposta de
tos parciais. Compreender a dinâmica que rege uma política de prevenção à gravidez na ado-
a construção social de adolescentes e jovens na lescência, tendo em vista que ela não pode es-
contemporaneidade é uma via fundamental tar apenas ancorada na transmissão de infor-
para se discutir as trajetórias sexuais e repro- mações relativas à contracepção e proteção às
dutivas juvenis em diferentes segmentos so- DSTs/AIDS. Ela deve incorporar a lógica que
ciais. O lugar que a sexualidade ocupa no pro- orienta a experimentação sexual com o parcei-
cesso de autonomização juvenil, ainda hoje ro como via principal para a construção grada-
muito marcado pela hierarquia de gênero, tor- tiva da autonomia pessoal, mesmo em contex-
tos de dependência parental.

Resumo Colaboradores

Aborda-se a gravidez na adolescência entre jovens de E. R. Brandão conduziu a investigação e redigiu o ar-
camadas médias, prisma pouco estudado no Brasil. tigo. M. L. Heilborn orientou a pesquisa, fazendo a re-
Realizou-se um estudo qualitativo sócio-antropológi- visão final do texto.
co com 14 famílias do Rio de Janeiro, Brasil, cujos fi-
lhos permaneciam solteiros e residindo com os pais,
após o nascimento da criança. Foram realizadas 25
entrevistas em profundidade com 6 rapazes e 7 moças Agradecimentos
entre 18 e 24 anos e seus pais (11 mães e 1 pai), para
avaliação retrospectiva da gravidez e de seus impactos A investigação Gravidez na Adolescência: Estudo Mul-
na trajetória juvenil e familiar. Três aspectos são ana- ticêntrico sobre Jovens, Sexualidade e Reprodução no
lisados: as dificuldades de internalização da norma Brasil (Pesquisa GRAVAD) foi elaborada por Maria
contraceptiva; a descoberta tardia da gravidez e a to- Luiza Heilborn (Instituto de Medicina Social, Univer-
mada de decisão – aborto ou reprodução – pelos jovens sidade do Estado do Rio de Janeiro – IMS/UERJ), Mi-
e seus pais. O estudo permitiu configurar a gravidez chel Bozon (Institute National d'Études Démogra-
na adolescência como um evento contingente ao pro- phiques – INED, França), Estela M. L. Aquino (Progra-
cesso de construção da autonomia pessoal em curso ma Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em
nessa fase da vida, no qual a sexualidade tem grande Gênero e Saúde/Universidade Federal da Bahia –
relevância. Conclui-se que o fenômeno precisa ser MUSA/UFBA) e Daniela Knauth (Núcleo de Antropo-
compreendido em um contexto histórico e cultural es- logia do Corpo e Saúde/Universidade Federal do Rio
pecífico, distinto de sua ocorrência décadas atrás, pois Grande do Sul – NUPACS/UFRGS). O estudo foi reali-
está marcado pelas regras que organizam o processo zado por três centros: Programa em Gênero, Sexuali-
de individualização juvenil na contemporaneidade. dade e Saúde (IMS/UERJ), MUSA/UFBA e NUPACS/
UFRGS. Os principais resultados do inquérito encon-
Sexualidade; Gravidez na Adolescência; Identidade de tram-se publicados no livro O Aprendizado da Sexua-
Gênero lidade: Reprodução e Trajetórias Sociais de Jovens Bra-
sileiros (Rio de Janeiro: Garamond; 2006), onde po-
dem ser obtidas informações sobre a composição de-
talhada da equipe de pesquisadores. Agradecemos
também à Fundação Ford, ao programa de bolsas do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico e à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior.

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(7):1421-1430, jul, 2006

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