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Eduardo Biacchi Gomes

Tarcisio Hardman Reis

A Integração Regional
no Direito Internacional
O futuro do Mercosul e da União Européia

São Paulo
2006
Copyright © 2006
Coordenadora: Yone Silva Pontes
Assessoria gráfica: Linotec
Ilustração de capa: Ana Carolina Sá
Revisão: J. Franzin
Impressão e acabamento: Graphic Express

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gomes, Eduardo Biacchi


A Integração Regional no Direito Internacional :
o futuro do Mercosul e da União Européia / Eduardo
Biacchi Gomes, Tarcisio Hardman Reis. -- São Paulo :
Lex Editora, 2006.

Vários colaboradores.
ISBN 85-87364-95-2

1. Comércio exterior 2. Integração econômica


internacional 3. Mercosul 4. União Européia
I. Reis, Tarcisio Hardman. II. Título.

06-7595 CDU-341:339.923

Índices para catálogo sistemático:


1. Integração regional : Direito internacional
341:339.923

2006
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SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................. 5

Prefácio .......................................................................................... 9

Mercosul – Vontade Política e Problemas Jurídicos

1. Questões sobre a Natureza Jurídica do Direito do Mercosul ... 15


Larissa de Santis Basso
2. A História do Presidencialismo nos Países do Mercosul ....... 51
Luis Alexandre Carta Winter
3. Asimetrías Constitucionales en el Mercosur .......................... 101
Jorge Fontoura
4. Direito do Trabalho no Mercosul e nas Constituições dos
Estados-Partes ......................................................................... 111
Marco Antônio Villatore
5. A Livre Circulação de Mão-de-Obra no Mercosul................. 139
Eduardo Biacchi Gomes
6. O Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul e as Opiniões
Consultivas: Análise dos Laudos Arbitrais, sua Ligação com
a Common Law e algumas Idéias para o Futuro ..................... 147
Nádia de Araújo

União Européia – Os Limites da Integração

7. Dizer Não É Dizer Sim? O Futuro da União Européia após o


Referendo na França ............................................................... 173
Tarcísio Hardman Reis
4 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

8. A Questão da Kompetenz/Kompetenz no Processo de Integração


Européia .................................................................................. 189
Fernanda Fernández Jankov
9. Perspectivas sobre o Processo Legislativo na União Européia
com a Futura Constituição ...................................................... 213
Adriana Cláudia Melo Lorentz

A Integração através de Situações Específicas

10. Livre Circulação de Pessoas: Uma Experiência da Cidadania


Comunitária na Fronteira Uruguai – Brasil ............................ 229
Leonardo Araújo
11. Régimen de los Pueblos Indígenas en Brasil y Colômbia ...... 251
José del Carmen Ortega
APRESENTAÇÃO

A divulgação através de análises técnicas e pontuais de ques-


tões cotidianas de direito internacional é o principal objetivo desse livro.
A idéia é fazer com que haja uma maior compreensão dos fenômenos
internacionais que diretamente ou indiretamente envolvem o nosso país.
Nesse sentido, este livro serve como uma espécie de complementação às
informações da parte de notícias internacionais dos jornais e revistas.
Assim sendo, acreditamos que a divulgação de informações de-
talhadas e análises mais técnicas do que as obtidas pelos meios de comu-
nicação permitirão um debate mais aprofundado sobre os fenômenos
internacionais que estão presentes em nosso dia-a-dia.
O interesse desse tipo de publicação é permitir que o cidadão
bem informado saiba o que está por detrás de uma decisão russa de sus-
pender as importações de carne brasileira ou entender de que formas o
governo brasileiro poderá reagir em relação a nacionalização das com-
panhias de petróleo na Bolívia.
Logicamente, seria difícil para dois especialistas em Direito In-
ternacional poderem conhecer e avaliar de um modo aprofundado, mas
ao mesmo tempo dinâmico, todos os temas do Direito Internacional
atuais. Sendo assim, contamos com a participação de especialistas em
diversos temas desse assunto para podermos tratar de um mesmo tema a
partir de diferentes abordagens.
Com esse intuito organizamos a coletânea Globalização e o
Comércio Internacional no Direito da Integração (Aduaneiras, 2005)
que foi muito bem recebida pelos profissionais e pelo meio acadêmico.
A participação de autores como Paulo Roberto de Almeida, Alejandro
Daniel Perotti, Valério Mazzuoli, Alejandro Estoup, Welber Barral, dentre
6 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

outros, foi essencial para o sucesso da edição. O livro virou uma referên-
cia obrigatória nas bibliotecas de Direito Internacional no Brasil, tendo
sido encomendado até mesmo por bibliotecas de Portugal.
O sucesso do primeiro livro permitiu que o atual livro A Inte-
gração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul e da
União Européia tenha igualmente contado com a presença de ilustres
colegas como Luis Alexandre Carta Winter, Jorge Fontoura e Nádia de
Araújo, que contribuíram para traçar em um livro um panorama atuali-
zado e técnico dos desafios da integração no cenário internacional con-
temporâneo.
A primeira parte da obra retrata o Mercosul de maneira como
raramente aparece nas análises do bloco. Por isso, os textos mostram
o bloco de uma maneira objetiva e técnica através do ponto de vista do
direito internacional. Nesse sentido, o Mercosul aparece como um bloco
econômico único, cuja natureza jurídica é analisada por Larissa de Santis
Basso.
Já Luis Alexandre de Carta Winter e Jorge Fontoura exprimem
todas as particularidades do Mercosul por meio de dois estudos que ex-
põem as diferenças entre os países do Mercosul. Assim, podemos ver
que o presidencialismo no Mercosul exerce uma influência fundamen-
tal sobre o bloco. Jorge Fontoura, escrevendo na outra língua oficial do
Mercosul, tem o mérito de nos fazer pensar nas diferenças, ao invés de acen-
tuar as semelhanças com os nossos vizinhos.
Os textos de Marco Antônio Villatore e de Eduardo Biacchi
Gomes dão ênfase à mão-de-obra e à livre circulação de trabalhadores
no Mercosul, algo que afirma a vocação econômica da integração do
Cone Sul.
Finalmente, o texto da professora Nadia do Araújo é um estudo
das opiniões consultativas do Tribunal Permanente de Revisão do
Mercosul, que mostra que por detrás da integração econômica o Mercosul
há uma estrutura organizacional relativamente desenvolvida e adaptada
às necessidades regionais.
A segunda parte do texto trata de um tema pouco estudado no
Brasil que é a União Européia. É impossível estudar integração regional
Apresentação 7

sem mencionar a etapa de integração européia. Ao analisar o referendo


da Constituição Européia, o artigo de Tarcísio Hardman Reis questiona
os limites da integração regional.
De um modo mais sutil, o texto da Fernanda Fernández Jankov
também fala de integração através da análise de uma delicada questão
jurídica na União Européia, a Kompetenz/kompetenz.
Ao falar sobre as perspectivas das mudanças do projeto legisla-
tivo no projeto de Constituição Europeu, Adriana Lorentz também trata,
mesmo que de forma indireta, dos problemas da integração européia.
Após a análise ‘sombria’ dos limites da integração por meio da
experiência européia, é importante relativizar os desafios através do cons-
tato de que a integração regional é irreversível e necessária.
Uma expressão da irreversibilidade do processo de integração
regional aparece no trabalho de Leonardo Araújo em relação à circula-
ção de pessoas na fronteira Brasil – Uruguai.
Finalmente, o professor colombiano José del Carmem Ortega,
uma autoridade em questões indígenas no Direito Constitucional, nos
fez uma preciosa contribuição através de um artigo que demonstra a
necessidade de uma melhor integração em relação a temas específicos.
Assim, espero que este livro seja de muita utilidade e que con-
tribua para estabelecer um diálogo maior entre alunos, professores e espe-
cialistas sobre o Direito da Integração e os blocos econômicos.

Eduardo Biacchi Gomes e Tarcisio Hardman Reis


PREFÁCIO

Uma das dificuldades em escrever sobre temas de ciências


sociais é que o autor precisa buscar delimitar certa distância em relação
ao objeto analisado. Se esta distância for frustrada, a obra será mais uma
manifestação dos desejos do analista – declarados ou não, compreendi-
dos ou recônditos – do que um modelo de análise aplicável à realidade.
Esta dificuldade é bastante visível, muitas vezes, entre aqueles
que escrevem sobre Direito da Integração. São, em geral, pessoas com
uma visão cosmopolita do mundo, que não raramente participam também
como protagonistas, e não apenas como expectadores dos muitos esfor-
ços de fazer soçobrar fronteiras físicas e culturais. O perigo, ao inserir-se
no próprio objeto de análise, é perder a objetividade em favor do discurso
do dever-ser. O perigo oposto também existe: é contaminar-se de pessi-
mismo diante da primeira adversidade ou de ver a catástrofe na não-
efetivação de suas previsões.
A presente obra, que este prefaciador examinou com muita
curiosidade, consegue o prodígio de equilibrar-se entre esses perigos.
Os artigos aqui reunidos conseguem o foco necessário no atual momen-
to histórico: são otimistas sem pieguice, são realistas sem cinismo, são
detalhados sem exorbitâncias.
Essas qualidades se tornam ainda mais relevantes quando se
considera a crise que – sobretudo neste ano de 2006 – afeta os processos
de integração em geral, e, como conseqüência, os estudos jurídicos que
decorrem deste fenômeno político-econômico. Os mais otimistas dirão
que a crise pode ser construtiva, se permitir a elaboração de um aprendi-
zado para experiências futuras. Mas este aprendizado somente se efetiva
com muita reflexão, que é muitas vezes entenebrecida pela opacidade
dos discursos politiqueiros e pela mesquinhez dos interesses econômicos
imediatistas.
10 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

Para o cientista social, a primeira tarefa – devidamente cumpri-


da pelos autores reunidos nesta obra – é, ao analisar as causas de uma
crise, separar o episódico do recorrente; separar o estrutural do conjun-
tural. Caso contrário, o cientista terá suas idéias redemoinhadas pelo que
é tão-somente fortuito. Reler esta última frase faz pensar em como fato-
res de crise podem ser agrupados em um determinado processo de inte-
gração regional. Afinal, há o conjuntural, que se pode denominar de
momento político, e que depende de fatores imediatos, como as perso-
nalidades dos líderes. Há ainda um momento mais largo, que envolverá
no mínimo duas gerações, em que as questões conjunturais se agrupam
em tendências mais estáveis (este é o momento que escapa à miopia dos
políticos, mas não à visão dos estadistas). E há, finalmente, um conjunto
de fatores estruturais, profundamente afetados pela geografia e pela his-
tória, cuja mutabilidade é mínima, e que têm de ser considerados no
cômputo dos fatores para minorar as crises. Está, entre estes fatores, a
proximidade geográfica entre países que iniciam um processo de inte-
gração regional; ou as coincidências históricas que lhes permitiram ter
culturas aparentadas. Claro, também estarão neste grupo os ressentimentos
históricos que dificultam a integração, desde os que derivam de guerras
sesquicentenárias ou das aquisições duvidosas de fronteiras.
O cientista social que pensa nas crises contemporâneas dos pro-
cessos de integração regional muito têm a refletir quanto ao verdadeiro
alcance dessas crises, quanto a suas origens e permanência futura, quanto
a seu caráter temporal. Diz-se “crises” porque há evidentes traços distin-
tivos entre os processos de integração, não apenas no que se refere a suas
origens e evolução, mas também no que se refere a seus obstáculos. Certo,
há coincidências momentâneas de causas – como é o esgotamento do
intervencionismo estatal sem a eficácia esperada dos mercados, nesta
época de pós-neoliberalismo – mas estas quiçá não são as mais impor-
tantes para compreender os tropeços de cada processo de integração.
Exemplos desses traços distintivos entre processos de integra-
ção podem ser encontrados nas experiências escolhidas por este livro,
entre a União Européia e o Mercosul. Alguns já disseram que a atual
crise européia não se compara, em termos de gravidade, a outros mo-
mentos cismarentos durante a guerra fria, quando se tentava consolidar
institucionalmente a integração. Naqueles anos de bipolarismo, a cisão
da opinião européia, a indecisão quanto a alianças estratégicas e a divi-
são partidária foram inclusive mais violentas.
Prefácio 11

A atual crise européia também tem uma origem próxima numa


decisão quanto à segurança internacional, derivada das diferentes posi-
ções quanto à invasão do Iraque. As escolhas antagônicas entre líderes
europeus enfraqueceram, e postergaram por algum tempo, a unicidade
na unificação da segurança européia. De outro lado (ou antes, paralela-
mente), a resistência à aprovação da constituição européia externou que
a opinião pública não necessariamente vê apenas aspectos positivos da
integração,1 ao mesmo tempo em que ressurge a crítica ao déficit demo-
crático e à incerteza da situação econômica.
Apesar da crise, não se ouvem discursos agourentos quanto à
morte da experiência européia. Opinião geral – seja entre pragmáticos
que avaliam os impactos econômicos, seja entre idealistas que ressaltam
as conquistas obtidas até agora – é quanto à irreversibilidade do processo,
ainda que momentos trôpegos possam existir aqui e acolá, como fato
inerente à vida internacional.2 Afinal, mesmo uma experiência já
sexagenária e menos serelepe, como é a européia, tem que encarar per-
plexidades e indecisões, como as que se referem à plena aceitação do
Euro e ao interminável processo de participação efetiva da Turquia na
integração européia.
Essa constatação serve para, comparativamente, suscitar espe-
ranças de aprendizado em outro momento de crise: aquele atualmente
enfrentado pelo Mercosul. Seguramente, o intento de integração no Cone
Sul enfrenta de maneira depressiva a sua crise de puberdade. São dispu-
tas ambientais que escondem ressentimentos econômicos, ameaças de
nacionalizações impulsionadas pelo populismo ressuscitado, intimida-
ções baseadas em acordos de livre comércio com terceiros países. Crises
regadas a miopia política e ao imobilismo das lideranças.
Corvídeos ciscam em seminários acadêmicos, palrando sobre o
atestado de óbito para a integração regional. Quanto ao estado cadavérico,
talvez estejam se apressando. Mas é verdade que, mantida a imobilidade
atual, talvez permaneça o Mercosul em coma induzido, por tempo inde-
terminado. Sair do imobilismo, por sua vez, depende não apenas de von-

1 Neste livro, Adriana Lorentz aborda com propriedade os problemas da Constituição


européia e as mudanças propostas em seu projeto legislativo.
2 Os problemas da integração são muito bem analisados, nas páginas seguintes, por au-
tores como Tarcísio Hardman Reis e Fernanda Jankov.
12 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

tade política, mas também de compreender as causas da crise. E, nesse


sentido, mesmo com algum atrevimento, pode-se dizer que situação no
Cone Sul é até mais complexa que a da crise européia.
Afinal, o Mercosul tem que lidar com a instabilidade institucio-
nal típica das democracias recentes, como são as dos países que o com-
põem. Mais ainda, são democracias em que o poder acachapante dos
presidentes faz tudo depender desta forma republicana de governo (con-
forme demonstrado magistralmente neste livro por Alexandre Carta
Winter). Neste cenário, mudanças entre as personalidades envolvidas, e
mesmo o estilo pessoal de resolver crises com vizinhos, pode ter efeitos
desproporcionalmente deletérios para a institucionalização do bloco eco-
nômico. E mais ainda num momento histórico em que grassa o populismo.
A este caráter particular da conformação política dos países do
Cone Sul se agrega, para o mal, a persistência de problemas jurídicos
inconclusos. Seja a tardança na ratificação das regras regionais, seja o
descompromisso com sua eficácia no plano interno, seja a imperícia em
alocar recursos humanos e esforços intelectuais em modelos jurídicos
que enfrentem os novos desafios de uma integração regional que deve
ser compatível com uma profusão de regras multilaterais.
Neste último ponto, aliás, é que se torna visível a importância
da presente obra. Vários textos aqui reunidos atualizam problemas re-
correntes da integração regional, trazendo visões diferenciadas sobre
como enfrentá-los. Neste intuito, não se furtam os autores aos temas
difíceis, como a natureza jurídica do Mercosul (Larissa Basso), a livre
circulação (Marco Antônio Villatore e Eduardo Biacchi Gomes), as di-
ferenças regionais (Jorge Fontoura), e a novíssima questão sobre o papel
das opiniões consultivas (Nádia de Araújo).
Ao não fugir à refrega intelectual, esses autores preenchem e
atualizam a literatura disponível no Brasil sobre os problemas da integra-
ção regional. Mais que isto, cumprem o papel de dedicar-se à reflexão,
algo necessário, conforme já se disse há pouco, para que os erros passados
não sejam somente uma turbulência que se quer esquecer, mas compo-
nentes de um processo de aprendizagem sobre como ser, a um só tempo,
analista e ator da História.

Welber Barral
Florianópolis, setembro de 2006.
MERCOSUL
VONTADE POLÍTICA E
PROBLEMAS JURÍDICOS
1
QUESTÕES SOBRE A NATUREZA
JURÍDICA DO DIREITO DO MERCOSUL

Larissa de Santis Basso1

Introdução
Os processos de integração regional sofreram grande prolifera-
ção no século XX, a partir da experiência européia. Além da cooperação
econômica, uma de suas características é a formação de um conjunto de
regras próprias para reger a integração, que, quando estão subordinadas
à supranacionalidade e ao efeito direito, dão origem ao chamado Direito
Comunitário, diverso do Direito Internacional Público clássico.
O processo de integração do Cone Sul tem velocidade e carac-
terísticas próprias, e tal também se dá em relação às suas normas. Além
disso, a ausência de uniformidade do tratamento da questão pelas legis-
lações nacionais e os diferentes posicionamentos da doutrina nos quatro
países tornam complexa a classificação de seu ordenamento. No presente
trabalho, analisaremos os diferentes aspectos pertinentes ao tema e pre-
tendendo, ao final, conseguir tecer algumas considerações sobre a natu-
reza jurídica do Direito do Mercosul.

O Direito Internacional Público


As origens do Direito Internacional estão no nosso passado re-
moto. Já na Idade Antiga podem ser encontradas manifestações de Direi-
to Internacional, como as regras sobre a guerra da Grécia Antiga e o ius
gentium romano. Mas é com o surgimento do Estado Moderno, na Europa
do século XIV, que centralizou o uso da força, tornando-a seu monopólio,
e criou a força militar permanente e a burocracia eficiente, é que pode-
mos localizar as verdadeiras raízes das relações organizadas entre nações,
visando firmar um diálogo pacífico e amigável, estabelecendo-se em

1 Advogada, mestranda em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e pro-


fessora de Direito Internacional Público e Privado – lsbasso@usp.br
16 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

regras que também foram chamadas de Direito Internacional.2 Então,


por necessidade metodológica, as regras que tratavam das relações entre
os Estados e as que diziam sobre os particulares (o antigo ius gentium,
que, na verdade, são regras nacionais), ambas denominadas Direito Inter-
nacional, foram separadas em dois grandes grupos: o Direito Internacio-
nal Público e o Direito Internacional Privado.
O Direito Internacional Público é “o conjunto de regras e de
instituições jurídicas que regem a sociedade internacional e que visam
estabelecer a paz e a justiça e promover o desenvolvimento”.3 O Tratado
de Westphalia (1648), que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, estabelece
os elementos e determina as regras para as relações entre os Estados,
criando o conceito de sociedade internacional: cada Estado tem soberania,
o que significa que é livre para conduzir a vida dentro de suas fronteiras,
através de normas a que ele mesmo dá origem; deve conduzir suas rela-
ções com os demais Estados de acordo com o princípio da não-intervenção
e buscar de soluções pacíficas para os conflitos, assumindo e respeitando
as obrigações internacionais com base no pacta sunt servanda (sacrali-
dade dos tratados assinados).
O sistema jurídico internacional apresenta características seme-
lhantes ao direito interno, pois (i) é uma ordem normativa; (ii) dotada de
sanção; e (iii) que identifica o ato ilícito como violação de uma norma.4
No entanto, ele difere dos sistemas nacionais porque não há uma auto-
ridade suprema, um poder superior aos Estados, que lhes possa impor as
regras internacionais: trata-se de um sistema legal horizontal. Os Esta-
dos negociam e assinam tratados de acordo com seus interesses, que
nem sempre são consoantes uns com os outros, por isso as normas inter-
nacionais têm um caráter neutral e politicamente desorientado (ao con-
trário das normas internas, que seguem os preceitos ditados pela lei maior
do país, a Constituição). Trata-se de um sistema baseado na cooperação
e auto-ajuda entre os Estados,5 em que o peso da política é decisivo na
definição das regras e imposição das sanções ao seu descumprimento.

2 SPRUYT, H., apud H. M. JO, Introdução ao Direito Internacional. 2. ed. São Paulo: LTr,
2004, p. 44.
3 TOUSCOZ, J., apud C. D. A. MELLO, Curso de Direito Internacional Público, v. 1.
15. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 77.
4 Ibid., p. 83.
5 H. M. JO, op. cit., p. 44-50.
Questões sobre a Natureza Jurídica do Direito do Mercosul 17

As fontes do Direito Internacional Público são plurais, e podem


ser classificadas de diversas formas. Entre as mais importantes, pode-
mos citar os tratados internacionais, o costume internacional, os princí-
pios gerais de direito, as decisões de cortes internacionais e a doutrina,
além da analogia e eqüidade, meio supletivo que visa ao preenchimento
de lacunas do direito positivo.6
O Direito Comunitário
Na segunda metade do século XX tem origem, na Europa, um
movimento de cooperação econômica, iniciado com a formação do
Benelux, união aduaneira entre Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que
mais tarde se amplia para outros países do continente, formando um
Mercado Comum entre eles, e por fim evolui para uma União Econômica
e Monetária, a chamada União Européia.7

6 G. E. do NASCIMENTO E SILVA e H. ACCIOLY. Manual de Direito Internacional Públi-


co. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 19. Os autores afirmam que toda relação jurídica deve ser
concebida sob dois aspectos, o fundamental (racional ou objetivo), que configuraria a fonte real
da relação, e o positivo, que origina as fontes formais ou positivas. Para eles, os princípios gerais
de direito constituiriam a fonte fundamental do direito internacional público, enquanto o costume
e os tratados seriam as fontes positivas. Também há a classificação tradicional, que divide as
fontes em convencionais (os tratados), as extraconvencionais (costumes, princípios gerais de
direito, atos das organizações internacionais e atos unilaterais dos Estados) e complementares
(doutrina, jurisprudência, analogia e eqüidade).
7 A cooperação econômica é utilizada desde a antigüidade como maneira de aproveitar as van-
tagens comparativas dos países para aumentar a produção e o comércio mundial. È baseada na
diminuição de barreiras, principalmente alfandegárias, ao comércio entre os países, com o objetivo
de garantir maior oferta de produtos a um preço mais acessível aos consumidores, aumentando o
fluxo comercial entre eles. O sistema multilateral é o grande expoente desse sistema, mas as dificul-
dades de rápida implementação do multilateralismo completo, em razão das diferentes característi-
cas e estágios de desenvolvimento encontrados no mundo, faz com que o regionalismo seja aceito
nesse sistema, como a “segunda melhor opção” e passo anterior ao multilateralismo. De acordo
com essa teoria, os blocos podem ser encontrados em diferentes estágios de integração: (i) Área de
Livre Comércio (ou Zona de Livre Comércio), quando caem por terra as tarifas aduaneiras entre os
países do bloco, estabelecendo-se a livre circulação de bens, mas permanecem as regras nacionais
para tratar o comércio com terceiros países; (ii) União Aduaneira, momento em que além da elimi-
nação de tarifas intrabloco há também o estabelecimento de uma tarifa comum do bloco para co-
mércio com terceiros países – a Tarifa Externa Comum; (iii) Mercado Comum, que além dos ele-
mentos já citados em (i) e (ii) tem como característica a livre circulação dos fatores de produção
(capital, trabalho, serviços e tecnologia); (iv) União Econômica e Monetária, caracterizada por uma
moeda única e definição comunitária das políticas macroeconômicas; e (v) União Política, momen-
to em que as competências políticas e administrativas também seriam transferidas à esfera comuni-
tária e haveria a formação de um novo Estado. A teoria defende que a tendência é que os blocos
sempre procurem avançar na integração, buscando um nível mas completo do que o anterior. Hoje
há muitos exemplos de Áreas de Livre Comércio e Uniões Aduaneiras, alguns Mercados Comuns e
apenas uma União Econômica e Monetária, a União Européia. Ainda não temos exemplo de União
Política surgida de acordo com este modelo.
18 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

O surgimento dos blocos econômicos está fundado no Direito


Internacional Público, pois é através dos tratados que os países acordam
o início da integração econômica. Através do princípio do pacta sunt
servanda, os países firmam o compromisso de integração entre si e com-
prometem-se a cumpri-lo, harmonizando sua legislação interna aos
preceitos estabelecidos em conjunto. Neste início, tudo é feito da maneira
tradicional de internalização das regras internacionais: os tratados assi-
nados pelos países passam pelo Poder Legislativo nacional, onde são
aprovados e tornam-se lei nacional, passando a ter validade interna. Esse
processo respeita o princípio da soberania dos Estados e a divisão interna
dos poderes, mas pode ser um pouco lento, já que depende do processo
legislativo interno de cada país, o que pode trazer prejuízo para o bloco,
conforme a determinação conjunta demore para entrar em vigor. Além
disso, a possibilidade de que a medida não seja aprovada internamente,
ou de que seja modificada pelos Parlamentos, gera insegurança entre os
membros do bloco, o põe em xeque os próprios fundamentos do processo
de integração.
Por essa razão, há a necessidade de criar regras que, uma vez
acordadas em âmbito comunitário, valham de imediato para todos os
países, e tal só é possível se os Estados abrirem mão de sua autonomia
completa em relação uns aos outros, delegando parte de suas competên-
cias para a Comunidade. Essas competências são dirigidas a instituições
comunitárias, responsáveis por tratar dos temas de interesse comunitá-
rio, que são independentes dos Estados e legitimadas pela competência
que lhe foi transferida pelos primeiros.8 Temos aqui o surgimento do
Direito Comunitário.
O Direito Comunitário é, na sua origem e formação, ponto de
intercessão entre (i) normas de direito nacional (intra-estatal); (ii) normas
fundadas no Direito Internacional Público (como os tratados); e (iii)
normas de Direito Internacional Privado comuns, não-estatais, mas

8 Alguns autores não estão de acordo com a teoria tradicional, que fala da cessão parcial
da soberania para a Comunidade como origem e legitimação das competências dos órgãos
comunitários, pois acreditam que formar-se-ia uma instituição firmada na soberania com-
partilhada, o que seria um contra-senso (ver trabalho do professor José Souto Maior Borges).
Apesar de saber da relevância do tema, não entraremos nessa discussão no presente livro, para
não o alongar em demasiado.
Questões sobre a Natureza Jurídica do Direito do Mercosul 19

convencionais.9 Teve início através de tratados internacionais, pactuados


entre os Estados europeus, que buscavam assim coordenar ações para a obten-
ção de objetivos comuns, com o objetivo de regular não só as relações entre
Estados mas também entre os particulares, na medida em que passou a fazer
parte do ordenamento interno de cada Estado-Membro da comunidade.10
Atualmente define-se o Direito Comunitário como um conjunto
de regras nascidas no âmbito de um processo de integração regional,
originadas dos órgãos comunitários, cuja legitimidade é dada pela ces-
são de competências dos Estados-Membros, responsáveis por reger os
temas que, em razão da integração e para que ela seja realmente eficaz,
saem da esfera nacional dos países e ganham um caráter comunitário.
Tais regras devem receber a mesma interpretação e a mesma implemen-
tação em todos os Países-Membros do bloco.
Mas quando podemos dizer que um processo de integração conta
com a existência de um verdadeiro Direito Comunitário, ou quando não
há ainda a presença dessas regras, estruturando-se o bloco apenas em
regras de Direito Internacional Público clássico? A doutrina identifica
alguns requisitos, dos quais passaremos a tratar.

Pressupostos do Direito Comunitário


Somente podemos falar em existência de um Direito Comuni-
tário quando estamos diante de uma verdadeira Comunidade. Para que
seja possível existir uma Comunidade, há, primeiramente, um pressu-
posto político, a democracia nos Países-Membros, pois não há integração
se não houver a livre e espontânea vontade do Estado em integrar-se aos
demais. Como o poder e a legitimidade do Estado provêm do povo, sem
a democracia no governo das partes não haverá Comunidade: pode haver
associação, fusão, união ou federação, mas jamais integração.11

9 BORGES, J. S. M. Curso de Direito Comunitário – Instituições de Direito Comunitá-


rio comparado: União Européia e Mercosul. São Paulo: Saraiva, 2005, p. XXXII.
10 PINTO DE ALMEIDA, E. ACCIOLY. O Ordenamento Jurídico da União Européia e do
Mercosul. In: O. S. de CARAMUTI (Coord.), El Mercosul en la Nueva Orden Mundial, Bue-
nos Aires: Ed. Ciudad Argentina, 1996, p. 257-258.
11 DROMI, R.; EKMEKDJIAN, M. A.; e RIVERA, J. C. Derecho Comunitario – Sistemas de
Integración, Regimén del Mercosur. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1995, p. 49.
20 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

Em segundo lugar, um pressuposto econômico, a intenção de in-


tegração, que pressupõe a vontade das partes em constituir esse processo
de integração. Somente há direito da integração quando as partes estão
envolvidas em processos integracionistas, pois somente nesses casos bus-
cam o objetivo maior, que é a formação de uma unidade comunitária.
Por fim, como pressuposto institucional, temos a formação de
uma organização, uma estrutura que coordene esse processo, pois não há
como ceder poderes sem destinatário definido.12
Além dos pressupostos, o Direito Comunitário também tem prin-
cípios que norteiam a sua criação e aplicação. São axiomas próprios do
sistema jurídico comunitário, pois dão sentido às regras comunitárias, e
sua aplicação é inevitável no caso de lacuna legal, da mesma forma que
os princípios gerais de direito.

Princípios Gerais do Direito Comunitário

2.2.1. Supremacia, Primazia ou Supranacionalidade


Princípio de construção pretoriana,13 a primazia prega que as
normas comunitárias devem prevalecer sobre as internas, e as primeiras
devem ser sempre aplicadas automaticamente pelo juiz nacional na solu-
ção de casos concretos quando entrarem em conflito ou contradição com
as últimas. Nesse sentido o Direito Comunitário prevalece sobre o orde-
namento jurídico interno.14

2.2.2. Operatividade
Significa que as normas ditadas pelos organismos comuns são
operativas per se internamente nos Estados, em decorrência da compe-
tência legislativa reconhecida às autoridades comunitárias. A operati-
vidade se desdobra em três subprincípios:

12 Ibid., p. 50-51.
13 O princípio da supremacia não está expresso nos atos que instituíram as Comunidades
Européias: foi reconhecido a partir de jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunida-
des Européias – J. S. M. BORGES, op. cit., p. 84.
14 Ibid., p. 162-163.
Questões sobre a Natureza Jurídica do Direito do Mercosul 21

(i) a aplicação imediata, que determina que não é necessário


nenhum procedimento de incorporação ou nacionalização
do Direito Comunitário para que as normas passem a fazer
parte do ordenamento jurídico interno dos países, pois a in-
corporação é feita automaticamente quando da edição da
norma em âmbito comunitário – ou seja, a norma é válida
automaticamente no âmbito interno dos Estados logo após
sua adoção comunitária;15
(ii) a aplicação direta ou efeito direto, que expõe que as normas
comunitárias têm capacidade para gerar direitos e obriga-
ções aos Estados-Membros e também aos cidadãos desses
Estados – ou seja, a norma é eficaz imediatamente;16 e
(iii) a aplicação pelos juízes nacionais, que significa que além
de suas competências originárias, o Tribunal de Justiça da
Comunidade é um Tribunal de Alçada para todos os juízes
nacionais, exercendo o controle final e unificando a juris-
prudência interpretativa das normas comunitárias por meio
de distintos recursos e ações.17

2.2.3. Subsidiariedade
Este princípio prescreve uma divisão de competências e cooperação
entre as diversas esferas de ação nacional e comunitária. Assim, o ordena-
mento comunitário tem âmbito específico de implementação, mas pode
ser aplicado, subsidiária e limitadamente, para resolver questões que, ainda
que consistam matéria de competência dos Estados, somente com sua apli-
cação podem promover o alcance dos objetivos do tratado de integração.18

2.2.4. Razoabilidade
A razoabilidade prega que as ações das autoridades da Comuni-
dade não excederão ao necessário para alcançar os objetivos propostos, ou

15 ESTRELLA FARIA, J. A. O Mercosul: Princípios, Finalidade e Alcance do Tratado


de Assunção. Brasília, Ministério das Relações Exteriores – Subsecretaria-geral de assuntos
de integração, econômicos e de comércio exterior, 1993, p. 69.
16 ESTRELLA FARIA, J. A., op. cit., p. 69.
17 DROMI, R. et al., op. cit., p. 164-167.
18 Ibid., p. 167-168.
22 A Integração Regional no Direito Internacional – O Futuro do Mercosul ...

seja, suas ações jamais terão caráter arbitrário. Um exemplo de sua aplica-
ção seria o caso em que haja várias alternativas para resolver um problema,
e então será escolhida sempre a opção que menos onerar as partes.19
2.2.5. Igualdade
Impõe o tratamento igual de todos os nacionais, reafirmando a
não-discriminação entre os povos. Todos são iguais perante o Direito
Comunitário, devendo assim ser tratados.20
2.2.6. Liberdade
Está estreitamente ligado ao princípio da igualdade. Garante
que os Estados-Membros se associam livremente, e de mútua vontade,
concordam em garantir a livre circulação de bens, serviços, pessoas e
capitais dentro do espaço formado pela Comunidade.21
2.2.7. Eficácia
A Comunidade e os Estados-Membros devem intentar seus me-
lhores esforços para que a ação comunitária seja implementada. Para
tanto, devem as normas comunitárias ser aplicadas como normas inte-
grantes dos ordenamentos internos, possibilitando o alcance dos objeti-
vos estabelecidos nos tratados.22
2.2.8. Equivalência ou Uniformidade
O princípio da equivalência prega que as ações tomadas por cada
Estado, e mesmo pela Comunidade, para implementar os objetivos do tratado,
sejam correspondentes. Em verdade, tal não se refere apenas às ações postas
em prática, mas também que as normas comunitárias devem ter o mesmo
sentido nos diversos Estados-Membros da comunidade, ainda que seja neces-
sário pronúncia oficial dos órgãos comunitários sobre o sentido que deve ser
observado em sua aplicação.23 De fato, “la aplicación directa y la primacía
son los prolongamientos necesarios de esta necesidad de uniformidad del
derecho comunitario, en los cuales ellos com la condición de su realización”.24

20 Ibid., p. 169.
21 Ibid., p. 170.
22 Ibid., p. 170-171.
23 Ibid., p. 171-172.
24 Tradução livre: “a aplicação direta e primazia são os prolongamentos necessários des-
ta necessidade de uniformidade do direito comunitário, pois são a condição de sua realiza-
ção” (J. PÉREZ OTERMIN, “Principios esenciales de un ordenamiento juridico comunita-
rio”, in Boletim de Integração Latino-Americana (Bila), nº 8, janeiro-março de 1992).

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