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Origem da 'Vida religiosa"

no cristianismo
EDUARDO HOORNAERT
Instituto de Teologia de Recife
ORIGIN OF "RELIGIOUS LIFE" IN CHRISTIANISM.
Many priests and bishops are religious in our times,
and so are many women who dedicate their lives to the
service of the Church. People know how to ãistinguish
them: they live in monasteries, in religious houses, in
communities; they are not married; they do not have
their own goods, because everything belongs to the group;
they obey a superior. Some time ago it was still easier to
recognize them: before Vatican II the cowl made the
monk.
Which is the origin of this way of living and what is
its relationship to christianism? Can we say that Jesus
Christ was a monk? If not, why do we have to be monks
in order to imitate Christ? Were there such people
before Christ? Are there such people among the non-
christians? What distinguishes the pagan "religious" from
the cristian "religious"?
The answers to these questions are only partial in this
article. We will try to comment around three significant
points:
The origin of "religious life" in Christianism.
The virtues of "religious life" in regard to the
gospel.
"Religious life" in the christian and not-christian
world.

Nos nossos dias muitos ho- sado; não possui bens em par-
mens de Igreja, sacerdotes ticular, pois a propriedade de
ou bispos, são religiosos. Mui- seus bens é do grupo ou da con-
tas mulheres que dedicam sua gregação; obedece a um supe-
vida ao serviço da Igreja são rior. Alguns anos atrás era
religiosas. O pravo sabe distin- mais fácil ainda indicar o reli-
guir quem é religioso: êle mora gioso: o hábito — antes do Con-
num convento, ou casa religio- cilio Vaticano II — "fazia o
sa, em comunidade; não é ca- monge".

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Pergunta-se: qual é a origem raízam na própria natureza hu-
histórica desta maneira de viver mana. No Brasil, p>or exemplo,
e qual a sua relação com o os agrupamentos de "filhas de
cristianismo? Podemos dizer santo" do Candomblé baiano
que Jesus de Nazaré era um lembram estranhamente certas
"religioso"? Se não, por que tradições dos conventos católi-
ser religioso para imitar a cos. Podemos dizer que a "vida
Cristo? No tempo anterior a religiosa" tem suas origens ha
Cristo, havia pessoas que ob- própria essência da pessoa hu-
servavam essa forma de vida mana, embora que as expres-
religiosa? Existem religiosos no sões culturais desta "vida reli-
mundo pagão? O que distingue giosa" possam ser as mais di-
então o "religioso" pagão do versas.
"religioso" cristão? O cristianismo, pelo contrá-
A resposta a tais questões — rio, não pode ser entendido co-
dentro dos limites deste traba- mo uma nova religião ou uma
lho — só pode ser fragmentá- nova forma de vida religiosa.
ria. Procuraremos tecer algu- Houve tentativas de aproximar
mas considerações em torno a comunidade cristã dos grupos
dos três temas seguintes: de essênios de Qumran, mas
—- Origem histórica da "vida sem resultado objetivo. Decidi-
religiosa" e do cristianismo. damente, Jesus de Nazaré não
— As virtudes da "vida re- era o fundador de uma nova re-
ligiosa" em relação ao evange- ligião nem um monge, conse-
lho. lheiro espiritual de seu povo. O
— "Vida religiosa" no pa- ambiente judeu apresentava
ganismo e no cristianismo. naquele tempo quatro tendên-
cias religiosas: a dos saduceus,
1. Origem da "Vida Religio- fariseus, zelotas e essênios. Na
sa" e do cristianismo. interpretação da vida de Jesus,
alguns o consideram um zelota
A vida religiosa ou monacal (a imagem de Jesus revolucio-
e o cristianismo têm origens nário, revoltada diante da
muito diversas. Nas civilizações opressão de seu povo pelo im-
mais diversas, na índia, Ásia pério romano) enquanto outros
Central, China, provavelmente descobrem nêle influências dos
na América pré-colombiana en- essênios (a imagem de Jesus
contramos formas de monacato religioso, retraído e ascético).
organizado. As características Essas imagens são criações sub-
do monacato: ascese, solidão, jetivas, a partir de determina-
celibato, pobreza, contempla- das situações. A vida histórica
ção, vida comunitária, perten- de Jesus nos mostra — pelo
cem ao gênio religioso de todas contrário — que o valor dêle
as grandes civilizações que a não deve ser procurado no ní-
humanidade já conheceu. Es- vel de religião mas no nível de
sas características ultrapassam um sentido inteiramente novo,
os limites de uma determinada atribuído a toda a vida huma-
religião organizada: clãs se en- na, em todos os seus aspectos.

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Os primeiros cristãos enunciam alguém as pratique por moti-
isso em fórmulas breves e sim- vos estranhos ao evangelho ou
ples: "Jesus é o Messias" (Mc mesmo contrários à revelação
8, 29); "Deus suscitou Jesus divina por Jesus Cristo. Assim,
dos mortos" (Rom 10, 9). Estes alguém pode viver na virginda-
primeiros cristãos continuam de porque tem um horror da
praticando a religião judia em vida conjugai ou considera as
toda simplicidade: vão ao tem- relações sexuais como essencial-
plo para rezar, assistem às mente pecaminosas; um outro
leituras nas sinagogas, se- pode escolher uma vida de po-
guem as leis do jejum e par- breza e privações porque acha
ticipam das crenças judias. To- que toda a riqueza é demoníaca
davia, êles concentram todas e que o gozo dos bens desta
as escrituras e todas as profe- terra é proibida por Deus; um
cias na pessoa de Jesus de Na- outro ainda pode seguir cega-
zaré. A novidade do cristianis- mente as ordens de um supe-
mo não está na religião nem rior porque acha que o supe-
nas práticas culturais ou ascé- rior sempre fala em nome de
ticas, mas na fé em Jesus Cris- Deus.
to, salvador do mundo. Isso Há uma maneira evangélica
significa que o Cristianismo dá de viver as virtudes da vida re-
um novo sentido à religião ju- ligiosa. Durante a História da
dia: o batismo em água, se Igreja, a vivência evangélica da
transforma em sinal da aliança religião sempre foi antes um
eterna entre Deus e os homens. ideal, uma utopia, objeto das
Da mesma forma, o cristia- aspirações da comunidade do
nismo transforma a tradicional que realidade, conquista tran-
vida religiosa! As virtudes tra- qüila e estabelecida. Só alguns
dicionais da vida religiosa, membros da comunidade con-
como a virgindade, a pobreza, seguiram viver as virtudes da
a contemplação, a obediência, o vida religiosa de maneira ver-
isolamento, o louvor, a vida co- dadeiramente evangélica. Os
munitária, são transformados outros não compreenderam que
pela nova fé em Jesus Cristo a vida cristã nasce da fé e pro-
que rompeu definitivamente o curaram atingir a perfeição
fatalismo das religiões pagas por esforços ascéticos e por mé-
pelo anúncio do Reino de Deus todos puramente humanos.
que vem dar novo sentido à vi- Consideremos isso mais de
da humana. perto.
A virgindade crista. —
2. As virtudes da vida reli- Nãoa) é uma
giosa em relação ao evan- temunho deascese,
Cristo.
mas um tes-
Num texto
gelho de segundo século, o Pastor de
As virtudes clássicas da vida Hermas, as virgens são classi-
religiosa são três: virgindade, ficadas ao lado dos mártires
pobreza, obediência. Em si, elas como "cristóphoroi": elas são
não são um sinal evidente do um sinal vivo de Cristo aos
evangelho pois é possível que olhos do mundo. Hermas com-

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preende a virgindade a partir necessidade de sobrevivência da
do martírio. Os mártires levam própria prole. Foi assim que
a nova mensagem de Cristo ao Clemente de Alexandria inter-
mundo que às mais das vezes pretou a virgindade de Cristo
não a aceita e persegue violen- (veja: Daniélou-Marrou, Nova
tamente essas testemunhas. História da Igreja I, p. 139).
Assim o martírio significa fre- Foi nesta mesma visão que
qüentemente a morte violenta Hermas viu as virgens e os
na prisão, nas torturas, nos so- mártires como ponto de apoio
frimentos. Um dos "martírios" para os fiéis: a fé do povo fiel,
ou sinais de Cristo no meio do na realidade, é fortalecida pelo
mundo é a virgindade por cau- sinal da virgindade em nome
sa de Deus (Reino) (Mt 19,12), de Cristo, assumida por causa
porque a recusa da vida con- do Reino de Deus. Assim, a vir-
gindade não é um valor em si,
jugai e familial lembra aos ho- pelo contrário ela é uma redu-
mens que a vida humana não ção anti-natural
se restringe à mulher e aos fi- da vida hu-
lhos. Um celibatário tem uma mana. Mas em vista de Cristo
e da mensagem dêle, a virgin-
outra "esposa", pela qual êle se dade ou a continência podem
esforça, a comunidade cristã; ter muito
êle tem outros filhos que tem livrou dos valor. São Paulo se
que alimentar, os fiéis. En- para pregarlaços o
matrimoniais
evangelho com
quanto as pessoas casadas têm mais liberdade (1). E,ssa conti-
que sujeitar-se às estruturas nência, todavia, era praticada
vigentes e a ordem estabelecida em toda liberdade: não havia
para ganhar o pão quotidiano,
o celibatário está mais livre obrigação nenhuma de obser-
diante das estruturas que do- o evangelho. A para
var a continência pregar
continência
minam c mundo de hoje e po- cristã sempre é assumida com
de com maior facilidade contes- liberdade, nunca é objeto de
tar os dominadores atuais em legislação, porque ela é conse-
vista do mundo futuro, no qual
não haveria dominação nem qüência da fé que supõe um
compromisso livre e indepen-
injustiça. dente.
Jesus não era celibatário
porque desprezava o casamen- Infelizmente, a história da
to ou a sexualidade, mas por- Igreja não nos apresenta a vir-
que êle libertou a vida huma- gindade em sua pureza evan-
na do fatalismo que pesa fre- gélica. Elementos de filosofias
qüentemente sobre a vida das pagas e de religiões naturais
pessoas casadas: o fatalismo da dominam de tal sorte a prática
conformidade com a situação da virgindade através dos sé-
vigente, da sujeição ao poder culos e seu sentido evangélico
da mentira e da opressão por fica obnubilado.
(1) A respeito de São Paulo, uns dizem "agámols") outros ainda que êle se-
que êle era celibatário (apoiados no parou-se da mulher para dedloar-se
cap, 7 da I Cor), outros que êle era ao evangelho (opinião de Clemente
viúvo (porque neste mesmo capítulo de Alexandria). Veja: Bevue Théolo-
êle não fala de "Parthénol" mas de glque de Louvam, 1, 1970, 323.

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Teremos de tratar disso monacato vigente na época. As-
adiante. sim sendo, a mensagem do san-
b) A pobreza cristã — Não to foi prontamente clericaliza-
é um valor em si, como se o da e monacalizada! Já na épo-
cristão desprezasse os bens ter- ca de Boaventura, a mensagem
restres, mas um sinal da pre- de Francisco se encontra pro-
sença de Deus no meio dos po- fundamente alterada.
bres. Francisco de Assis enten- Quem é Francisco de Assis?
deu e viveu essa verdade de Um "irmão menor", isto é, um
maneira admirável. Êle sentiu homem entre os homens co-
que os monges da congregação muns de Assis (2). Diríamos
poderosa de Cluny — embora hoje: um leigo no meio dos lei-
fizessem voto de pobreza — não gos. O leigo não entende as coi-
estavam mais vivendo a po- sas do clero, êle "é leigo na ma-
breza evangélica. Cada monge téria". Francisco era filho de
podia ser pobre, individual- rico comerciante e hesitara na
mente, mas o mosteiro era rico sua juventude entre o ideal feu-
e dominava a região. O povo dal da cavalaria e o ideal mona-
bem sabia que os monges na cal dos beneditinos. Finalmente
realidade eram ricos, não só em decidiu tomar um rumo inteira-
bens materiais mas também mente novo: tinha descoberto
em cultura. A pregação dos o sentido cristão da pobreza.
monges de Cluny e das nume- Este sentido consistiu em ser
rosas ramificações desta ordem pobre com os pobres para evan-
não atingiu a mentalidade e a gelizá-los. O grande erro de
cultura do povo, porque os perspectiva em relação a Fran-
monges não viviam no mesmo cisco de Assis, ontem como ho-
je, consiste em considerá-lo co-
ambiente espiritual com a po- mo "homem da Igreja", isto é,
pulação. Essa falta de comuni- clérigo com penetração popu-
cação com o povo, que caracte- lar. Essa maneira de ver pro-
rizou toda a reforma gregoria- vém da formação clerical. A
na praticada no século XI e verdade é que Francisco tinha
cujas conseqüências se prote- uma alma de leigo, assimilada
lam até hoje, constitui o maior à vida popular. Êle libertou-se
defeito do monacato cristão no de seu pai e da sua carreira pa-
ocidente. O monge ocidental, ra criar um "cristianismo po-
até hoje, tem mentalidade aris- pular " (seignobos), uma re-
tocrática: falta-lhe a sensibili- interpretação do cristianismo
dade pelo povo. Êle faz voto de em função do povo analfabeto.
pobreza por motivos ascéticos Não podemos dizer que a pa-
ou espirituais, mas falta-lhe trística, e mais tarde a escolás-
compreender o sentido cristão tica, interpretaram o cristia-
da pobreza. Êle não penetrou nismo para anunciá-lo às clas-
na mensagem que São Fran- ses pobres. O diálogo da pa-
cisco de Assis lhe dirigiu. Real- trística foi com o estoicismo, o
mente só se entende bem a vida neo-platonismo, o gnosticismo,
deste santo em dialética com o correntes filosóficas e espiri-

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tuais que atinjam as classes ção na transmissão do evange-
privilegiadas. O povo, às mais lho. A reação enérgica do santo
das vezes não entende muita diante da cultura livresca de
coisa do dogma cristão e da seu tempo (5), que êle condena
pregação, pois os homens que radicalmente, deve ser enten-
falam do evangelho andam dida dialèticamente: Francis-
com livros na mão. Francisco co sabe que os livros não são
quer uma pregação do evange- escritos em função da evange-
lho que não é tirada dos livros, lização mas, freqüentemente,
dos comentários eruditos e de em função de discussões aca-
doutores e teólogos, mas da vi- dêmicas. Até hoje o problema
vência da pobreza: "Vocês têm do livro e do estudo acadêmico
que se apresentar diante dos em relação à pregação do evan-
homens como irmãos menores gelho é um problema aberto.
e, desta forma, serão chamados Muitos estudantes de teologia
conservadores do evangelho" dizem que o estudo não prepa-
(3). O livro cria distância en- para para a tarefa missionária.
tre os homens e sobretudo en- O grande erro que a estrutura
tre o clero e o povo. A vida, pe- eclesial cometeu neste particu-
lo contrário, faz a união entre lar não foi só de considerar o
clero e povo que é necessária professor superior ao pastor
para a transmissão da mensa- (Quodlibetana de S. Tomás, I,
gem cristã: "Ninguém me mos- art. 14) mas de considerá-lo
trou o que eu devia fazer, só o capaz de formar o pastor.
Senhor me revelou na sua bon- Ora, é evidente que o profes-
dade que devia seguir o evan- sor às mais das vezes não exer-
gelho ao pé da letra, sem co- cita bastante a virtude da po-
mentário" (4). breza evangélica que o faz re-
Vivendo desta maneira a po- nunciar
preciso
à própria cultura, se
fôr, para levar a boa
breza evangélica, Francisco de nova aos irmãos pobres.
Assis conseguiu sintonizar com
a cultura popular de todas as Em tudo isso Francisco teve
épocas e criar imagens que até o grande mérito de colocar o
hoje levam a mensagem evan- problema e daí engajar a sua
gélica para inúmeras pessoas: vida no caminho da pobreza e
a imagem do menino Jesus dei- da simplicidade, não para sal-
tado num presépio, a imagem var a sua alma nem para exer-
de Jesus crucificado que subs- cer a sua vontade, mas para
tituiu, a partir de século XV, atingir a maioria dos homens
as imagens triunfais de Cristo- que vivem na pobreza.
Juiz ou Cristo-Dominador na O religioso que quiser enten-
devoção ocidental, em suma: o der o sentido de pobreza segun-
gosto pelo quadro vivo, pela do o evangelho terá em Fran-
dramatização e pela imagina- cisco de Assis um guia seguro.
(2) Os- pobres de Assis eram chamados Verlag, München, 1953, p. 20.
"os menores". (4) Testamento, edição das Vozes, 1943,
(3) Citação do famoso "Speculum perfec- p. 152.
tlonls" segundo a edição alemã: Der (5) Veja: Speculum perfectlonls, edição
Splegel der Vollkommenhelt, Kõsel- Citada, pp. 19, 22, 34, 124, etc.

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c) A obediência cristã — que êle tinha de Deus como o
não significa obediência aos defensor da liberdade do ho-
homens, mas a Deus (At 4,19). mem. Para Gregório VII, a
Desde o início da sua história, Igreja só tinha que obedecer a
o cristianismo implica uma Deus e- a mais ninguém. Para
certa desobedência aos homens. realizar isso, Gregório VII se
Por isso deve-se afirmar que a propôs reformar a estrutura
perseguição da Igreja em nome eclesial por dentro (lei do ce-
de diversas "obediências hu- libato, luta contra a simonia,
manas" pertence à essência centralização) e por fora (dia-
mesma: do cristianismo. A obe- lética Igreja-Estado). Na nos-
diência cristã é uma libertação sa tradição cristã a memória
da obediência humana. Pode- dêle se conserva como de um
mos ilustrar isso pela evocação homem que soube observar a
de dois cristãos que operaram obediência cristã.
uma revolução na Igreja em Verifica-se, do outro lado
nome de uma obediência su- que nenhuma revolução é de-
perior. Pode parecer inusitado finitiva. A revolução romana
mencioná-los numa exposição de Gregório VII além de mui-
sobre a obediência, mas é pre- tos benefícios entre os quais
ciso fazê-lo para que possamos temos que mencionar o movi-
tomar consciência da distinção mento da libertação popular
que há entre obediência cristã chamado "paz de Deus" (Tré-
e obediência religiosa. Os dois gua Dei) trouxe também efeitos
nomes são Gregório VII e Mar- negativos, sobretudo a clerica-
tinho Lutero . lização da Igreja, isto é, a con-
Gregório VII é conhecido na centração de todos os poderes
história da Igreja como o papa eclesiásticos nas mãos do clero.
que se opôs ao imperador Hen- Dentro da Igreja o clero foi as-
rique IV em Canossa (1077). sumindo a posição que a no-
Aos olhos dos senhores feudais breza assumira fora dela: a po-
êle era decerto considerado um sição do domínio sobre o povo.
grande desobediente, pois a Essa dominação religiosa criou
atitude dêle era realmente re- as imagens de Deus como Juiz,
volucionária. Desde séculos, o Majestade, Rei, Senhor e Todo
cesaropapismo vigorava no Poderoso que tanto amedron-
ocidente e os bispos e abades tavam a Martinho Lutero na
tinham que conformar-se com sua juventude. Como verdadei-
as leis impostas pelo sistema ro cristão, Lutero não podia
feudal. De repente, Gregório admitir essas imagens amea-
VII desobedeceu a todas as leis çadoras de Deus e lutou inte-
e a todos os costumes e pro- riormente pela sua própria li-
mulgou a liberdade e indepen- bertação. Pela leitura do opús-
dência da Igreja diante dos ho- culo: "da liberdade do homem
mens e a sua única obediência cristão" (Von der Freiheit ei-
a Deus. Ficamos admirados nes christenmenschen, 1520)
diante da coragem do papa pode-se verificar que o proble-
e, sobretudo, diante da visão ma que angustiava o coração

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de Lutero era o da obediência rodeada por culturas perfeita-
e desobediência. Para obedecer mente pagas. Essa imagem é
a Deus era preciso desobedecer expressão da visão típica que a
aos homens, mesmo aos ho- Idade Média tinha dos homens
mens da Igreja. Para obedecer e do mundo. Pelo modernos
a Deus era preciso desobedecer meios de comunicação e infor-
ao papa que encarnava na prá- mação sabemos hoje que a rea-
tica um sistema dominador. lidade cultural é complexa:
Lutero não tinha problemas de aos nossos olhos não existe
"obediência" no sentido disci- mais cristianismo puro no ní-
plinar da palavra: o problema vel das sociedades. Tudo é
dêle era muito mais profundo fruto da dialética entre pa-
e atingiu o nível da fé. Era o ganismo e cristianismo, mes-
problema da sua relação pes- mo dentro das congregações
soal com Deus. Como encarar religiosas. No que se refere
a Deus? Como obedecer a à vida religiosa e às virtu-
Deus? Como vencer a domina- des de virgindade, pobreza e
ção pela liberdade? É claro que obediência, muitas tradições e
não podemos propor a atitude observâncias consideradas cris-
de Martinho Lutero como tãs são, na realidade, expres-
exemplo para os religiosos, sões da religiosidade pagã. Co-
mas parece-nos que a atitude mo devemos entender isso?
extrema que êle assumiu ilus-
tra bem a problemática da obe- a) A virgindade, que cons-
diência cristã. Para os homens titui um sinal de Jesus Cristo
da Igreja, êle era um grande e do seu evangelho na comu-
desobediente. Mas é preciso re- nidade dos homens segundo a
conhecer que êle praticou essa doutrina cristã, sofreu desde o
desobediência em nome duma início da história do cristia-
obediência superior. nismo deformações provenien-
tes do ambiente pagão. A par-
tir do século II houve uma ver-
3. "Vida Religiosa" no paga- dadeira propaganda ascética
nismo e no cristianismo no seio das comunidades cris-
Enquanto a humanidade es- tãs que cumulou nas prescri-
tiver caminhando na história, ções do papa Damásio (366-
não existe uma vivência per- 384) impondo a continência aos
feita do evangelho. O próprio clérigos de ordens maiores (6).
cristianismo vive continua- A motivação desta nova disci-
mente em dialética com o pa- plina eclesiástica, segundo os
ganismo, de sorte que encon- documentos da época, não pro-
tramos no nível da pesquisa vém do cristianismo mas de
histórica, formas mais ou me- um princípio pagão de pureza
nos cristianizadas do paganis- ritual, como bem demonstrou
mo, ao longo da história da R. Gryson num estudo recente.
Igreja. Durante a Idade Mé- A mentalidade religiosa da épo-
dia criou-se a imagem de uma (6) R. Gryson, Les orlgenes du cellbat
cultura prefeitamente cristã eccléslastlque, Gembloux, Duculot.
1970.

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ca e as filosofias pagas como o de. Nesta procura, infelizmen-
estoicismo, o pitagorismo e o te, a própria patrística não se-
neoplatonismo de tal modo in- rá de grande utilidade pois ela
fluenciaram os cristãos, que faz pouca referência ao valor
estes iniciaram a nova disci- evangélico da continência cris-
plina da lei do celibato, que tã: por exemplo, o texto de S.
contrasta com a liberdade dos Mateus 19, 12 a respeito da
tempos apostólicos, por causa continência "por causa do Rei-
de um "tabu sexual". Para es- no dos céus" não é lembrado
tóicos, neo-platônicos, mani- nenhuma vez durante toda re-
queus e pitagóricos, a relação flexão patrística; a referência
sexual é suja e obcena. O es- à vida celibataria de Jesus é
toicismo exalta tudo que é or- raríssima (o texto mais impor-
denado, "lógico", inteligente e tante é de Clemente de Alexan-
estruturado. Ora, a paixão se- dria); o argumento da dispo-
xual não conhece a "lógica" (é nibilidade criada pelo celibato
"a-logon", como dizem os es- não é valorizado (7). Hoje, o
tóicos), é princípio de desor- religioso que procura dar sen-
dem, sofrimento e desarticula- tido à vida celibataria não tem
ção da sociedade. O maniqueís- mais a facilidade de antes pa-
mo, por sua vez adota um dua- ra justificar a sua maneira de
lismo pessimista na interpre- viver por motivos "pagãos".
tação da vida humana. O mun- b) A pobreza é um sinal
do está perdido, tudo está er- essencial da Igreja de Cristo.
rado. Só os perfeitos, que não A Igreja nasceu entre os po-
seguem as tentações do mun- bres, analfabetos e marginali-
do, podem salvar-se. O neo-pla- zados. Mas desde muito cedo
tonismo segue o esquema pla- ela esqueceu a primitiva inter-
tônico segundo o qual a vida pretação da pobreza para dei-
corporal é inferior à espiritual. xar-se influenciar pelas idéias
Durante séculos, a virginda- pagas do mundo. Começou a
de cristã foi vivida no meio de usar os mesmos métodos de po-
uma cultura que alimentava derio, autoridade e prestígio
forte agressividade contra a se- que vogam no mundo pagão.
xualidade humana. Muitos re- Os mosteiros medievais, os pa-
ligiosos e muitas religiosas vi- lácios episcopais e papais, os
viam na continência por mo- imensos territórios são uma
tivos bastante pagãos, como prova bastante clara da rique-
que sustentados pelo ambien- za desta Igreja. Num contexto
te. A humanidade, hoje, está de riqueza e dominação, a vir-
valorizando sempre mais o tude de pobreza se tornou as-
amor conjugai, a sexualida- cética. A pobreza era uma rea-
de, c corpo em geral. Isso lidade para muitos monges e
significa que os cristãos terão clérigos, individualmente, não
que procurar com mais interes- para a estrutura para a qual
se do que antes o sentido pro- estes homens estavam engaja-
priamente cristão da virginda- (7) R. Gryson, op. clt.

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dos. Homens pobres a serviço "obediência" dos pobres deixa
de uma estrutura rica. Não po- o mundo como está, sem pre-
dendo reformar a estrutura, os tender vencer o peso de malí-^
homens fizeram da pobreza cia e injustiça que oprime a
uma virtude "para uso priva- humanidade pobre.
do". A pobreza praticada por Para o cristão, a obediência
muitos monges e clérigos he- transforma o mundo. Foi por
róicos não tinha mais relação obediência a Deus que Gregó-
nenhuma com a verdadeira po- rio VII livrou a Igreja das
breza do povo fora do convento mãos dos poderosos e que Mar-
ou da estrutura eclesiástica. A tinho Lutero libertou a cons-
pobreza deixou de ser um sinal ciência do homem moderno do
para o mundo e tornou-se um domínio clerical. Segundo a ex-
exemplo interno para edificar periência dos primeiros apósto-
os irmãos da mesma comuni- los e do próprio Cristo, obede-
dade conventual. cer a Deus significa, freqüen-
A pobreza evangélica não temente, desobedecer aos ho-
significa que existem homens mens. O impulso para a trans-
ascèticamente pobres numa formação do mundo provém
estrutura rica, mas que o de uma obediência ao Deus do
evangelho é vivido entre os futuro, da aliança e da espe-
pobres, que os "pobres são rança.
evangelizados", que toda a Acontece que a visão pagã da
Igreja toma partido pelos po- obediência se infiltrou na in-
bres e oprimidos. No cristia- terpretação desta virtude, fei-
nismo, a pobreza é sinal de ta por monges, clérigos e reli-
Deus que caminha com os po- gioscs. Em muitas regras e
bres para a sua libertação de- constituições de congregações
finitiva; no paganismo, ela é religiosas, podemos indicar um
uma forma de ascetismo ape- novo legalismo e uma nova
nas. conformidade com a ordem es-
c) A obediência é uma das tabelecida. A obediência, como
virtudes essenciais das religiões a virgindade e a pobreza, se
pagas. Como essas religiões são torna ascese, exercício espiri-
marcadas pelo fatalismo inelu- tual para a própria santifica-
tável do poder divino, elas têm ção e não um sinal de trans-
que criar nos homens as dispo- formação do mundo. Como es-
sições necessárias para subme- creve um autor moderno: "O
terem-se com prontidão e satis- cristianismo ascético achou
fação ao poder fatal. Essas reli- que o mundo estava errado e
giões ensinam a obediência no o abandonou. A humanidade
sentido de conformidade, pas- espera um cristianismo revo-
sividade, inércia e paciência. É lucionário que acha que o
impressionante ver como a vi- mundo está errado e o trans-
são fatalista da vida se alastra forme" (8).
pelo mundo inteiro, sobretudo (8) Rauschenbusch, W., Chrlstlanlty and
entre as populações pobres. A Social Crlsls, New York, 1964.

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* * * religiosa", tal qual ela é pra-
o religioso cristão sabe que ticada na realidade. O esforço
a vivência atual do evangelho contínuo dêle vai no sentido de
é imperfeita e que muitos ele- purificar a sua própria vida re-
mentos "pagãos" entram na ligiosa deste paganismo pelo
própria constituição da "vida contato com o evangelho.

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