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Entendendo

a
Bíblia
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM
ENTENDENDO A BÍBLIA

Como ler
os apócrifos
do Segundo
Testamento?
C
omo ler os apócrifos? Essa é uma
boa pergunta. Como lê-los, se a
Igreja sempre ensinou que esses
textos não deveriam ser lidos?
Quando os apócrifos foram catalogados como
proibidos e enviados para a fogueira, monges
e lideranças cristãs, por exemplo, do Alto
Egito, contrariando tal decisão, conservaram
muitos deles em potes que foram enterrados
e descobertos recentemente.
Para uma melhor compreensão dos
apócrifos do Segundo Testamento (ST), de
modo a superar os entraves históricos do
rótulo: “Os apócrifos são todos fantasias
e falsas teologias”, urge primeiramente
classificá-los em três categorias, a saber:
Maria Madalena em meditação [s.d.], irmãos Le Nain

aberrantes, complementares e alternativos.


Por aberrantes entendem-se aqueles que
falsearam ou exageram na descrição dos
fatos, por exemplo, da infância de Jesus.
Os complementares são aqueles que apre-
sentam dados que complementam os textos

O OMMe N
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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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Entendendo a Bíblia
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canônicos. Nesse grupo estão, por exemplo, nossos hábitos; escutarmos todos esta mu- ensinamentos de fé dos apócrifos. O imaginário
os Evangelhos sobre Maria, a mãe de Jesus. lher?’”1 Tal exemplo mostra um testemunho popular quis que tal fé não se perdesse, mesmo
Os alternativos são os que trazem novidades, do século 2o sobre o papel da mulher no que não tivesse sido considerada a oficial. O
seja no conteúdo, seja na expressão de um cristianismo em relação aos homens. povo iletrado, de modo especial, conservou
pensamento rejeitado e condenado ao es- Além de identificar as várias formas do essa fé “inspirada” por outros caminhos,
quecimento pelo pensamento hegemônico cristianismo, não podemos deixar de consi- construindo um saber histórico perpassado de
da época. O Evangelho de Maria Madalena é derar, na leitura dos apócrifos, a forma e o geração em geração, na oralidade e na vivência
o melhor exemplo para um texto alternativo modelo de Igreja que cada um deles repre- de fé de seus valores. As tradições orais e es-
apócrifo. Não considerar essa divisão é colo- senta ou defende. A cristandade surgiu em critas, sejam apócrifas, sejam canônicas, estão
car os apócrifos em uma única categoria, a meio a várias formas de cristianismo e em permeadas de interações recíprocas. Não se
de textos falsos, mentirosos e não inspirados. uma disputa de valores e podem negar essas consta-
Ler os apócrifos é também considerar as de ideias; algumas delas se tações e devemos nos per-
disputas teológicas que marcam o contexto solidificaram como verda- Ler os apócrifos é tam- guntar sempre: em que os
histórico de cada um deles. Tais disputas des de fé e outras foram bém considerar as disputas apócrifos podem nos ajudar
teológicas aconteceram entre o cristianismo condenadas ao ostracismo, teológicas que marcam o na fé crítica, alicerçada nas
que se tornou hegemônico com grupos e por serem consideradas contexto histórico de cada bases de uma teologia que
movimentos, como os gnósticos e suas rami- heréticas. Por isso, ler um deles. Tais disputas liberta? Como nos libertar
ficações em gnósticos docetas, encratistas, os apócrifos é também de visões apócrifas não
teológicas aconteceram
fibionitas, cainitas, mas também ebionitas, considerar as questões libertadoras presentes em
marcionitas, donatistas, arianos e tantos políticas eclesiais que lhes entre o cristianismo que nosso meio? Como dialo-
outros, cujos nomes nem foram registrados são peculiares. Havia dis- se tornou hegemônico gar com esses textos de
nos anais da história. Todos defenderam puta de poder no início da com grupos e movimentos, origem sem o medo de
seus pensamentos sobre a divindade de doutrina cristã. Somente como os gnósticos e suas nos deixar contaminar
Jesus, salvação, sofrimento, ressurreição, um tipo de cristianismo ramificações em gnósti- por eles? Como eliminar o
martírio, virgindade, trindade, conheci- se tornou hegemônico, risco de querer defendê-los
cos docetas, encratistas,
mento que salva etc. Muitos desses grupos vencedor das disputas como textos inspirados? O
foram liderados por importantes cristãos, teológicas sobre Jesus. fibionitas, cainitas, mas estudo dos apócrifos não
como Ário (256-336), Nestório (386-451), Outro fator prepon- também ebionitas, marcio- pode ter como objetivo
Marcião (85-160), Pelágio (360-435), Valentino derante na leitura dos nitas, donatistas, arianos e lutar por sua canonização,
(?-269), Donato (?-362) etc. apócrifos é a questão de tantos outros, cujos nomes afirmação de sua inspi-
Ler os apócrifos exige um acurado es- gênero. As mulheres tive- nem foram registrados nos ração; estes são textos
tudo histórico da época de cada um deles. ram sua liderança ceifada, de experiência de fé, por
anais da história
O contexto histórico é muito importante no fim do século 2o, em mais exageradas que se-
para compreender o porquê da expressão favor da liderança mas- jam, mas que revelam
de fé transformada em livros apócrifos. Os culina. Esse fator nos impõe uma leitura de outro pensamento, outro cristianismo que
apócrifos marianos, por exemplo, surgiram gênero dos apócrifos, de modo que possamos se perdeu. É o que nos mostra o estudo dos
em um contexto de retomada da devoção a resgatar o papel de Madalena como apóstola apócrifos em seu contexto histórico. Outro
Maria, virgem e mãe. do cristianismo, nunca como prostituta. fator importante na compreensão dos apócri-
A história do cristianismo nos revela um Também Maria, a mãe de Jesus, é descrita fos é compreendê-los a partir da classificação
contexto de negação e afirmação de verda- nos apócrifos como mãe virgem e apóstola aberrantes, complementares e alternativos. É
des de fé sobre Jesus. Cada grupo, procu- de seu Filho. As duas mulheres foram apre- o que veremos no próximo artigo.
rando manter fidelidade aos ensinamentos sentadas, historicamente, como modelos de
de Jesus, defendeu seu ponto de vista. No cristãos: Madalena, a prostituta toda impura NOTA
Evangelho de Maria Madalena (17,9-19), que se converteu, e Maria, a santa toda pura. 1
Cf. o comentário ao Evangelho de Maria
vale citar a passagem após Madalena (3-63) Um modelo dependeu do outro para sobre- Madalena em nosso livro: As origens
apócrifas do cristianismo: comentário aos
dar seu testemunho sobre os ensinamentos viver. A leitura dos apócrifos deve também evangelhos de Maria Madalena e Tomé.
de Jesus: “André, então, tomou a palavra e nos remeter aos vários gêneros literários, a 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2004.
dirigiu-se a seus irmãos: ‘O que pensais vós partir dos quais eles foram escritos. Cada
do que ela acaba de contar?’ De minha parte, gênero possui seu contexto vital. Cada um
eu não acredito que o Mestre tenha falado deles apresenta o próprio modo de ensinar Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
assim; estes pensamentos diferem daqueles e transmitir uma visão de fé. Não podemos
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que nós conhecemos. Pedro ajuntou: ‘Será ignorá-los na leitura dos referidos textos. Escritor e mestre em
Ciências Bíblicas pelo
possível que o Mestre tenha conversado A leitura pastoral dos apócrifos é algo novo Pontifício Instituto
assim, com uma mulher, sobre segredos que que nos desafia no estudo deles. A tradição po- Bíblico de Roma
nós mesmos ignoramos? Devemos mudar pular perpetuou, na memória oral e escrita, os www.bibliaeapocrifos.com.br

O MensageirO de santO antôniO


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Entendendo a Bíblia 341
ENTENDENDO A BÍBLIA

Apócrifos
aberrantes,
complementares
e alternativos
T
oda classificação é, em princípio,
algo temeroso, já que se apresenta
como fruto de critérios estabele-
cidos anteriormente por quem a
propõe, correndo sempre o risco de ser sim-
plista ou ideológica. No caso, qual é nosso
interesse em classificar os apócrifos? Há a
necessidade de romper com o costumeiro
rótulo de falsos que lhes é atribuído. Vale
citar que uma classificação dos apócrifos
deve seguir princípios acadêmicos, herme-

Bênção de Cristo (c. 1485), Hans Memling, montagem MSA


nêuticos e históricos. E, mais do que isso,
no diálogo com o mundo acadêmico, propor
uma releitura pastoral desses textos, até
mesmo correndo outro risco, o de reduzir
a ciência à pastoral. São campos distintos
e públicos diferenciados. Por outro lado, se
todo ponto de vista é vista de ponto, tome-
mos o desafio de investigar e classificar os
apócrifos do Segundo Testamento (ST) a
partir do estudo crítico e histórico do cris-
tianismo em seus sete primeiros séculos.
Sempre com o desafio da pergunta: quais
são os pontos de vista dos cristianismos
perdidos que não se tornaram oficiais na
literatura canônica do ST?1

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O cOnteúdO Essa informação jamais poderia 3) Jesus morreu, mas, antes de
dOs apócrifOs ser inspirada, tampouco levada em ressuscitar, desceu aos infernos,
aberrantes consideração na vivência de nossa onde venceu Satanás e libertou
fé. Pode até ser lida como literatura, os mortos. O Terço, na jaculatória:
Um apócrifo é “aberrante” por- mas não como texto inspirado. “Oh, meu Jesus, perdoai-nos e li-
que exagera na descrição de fatos vrai-nos do fogo do inferno. Levai
sobre Jesus e Seus seguidores ou dis- O cOnteúdO as almas todas para o céu e socorrei
corda totalmente da narrativa canô- dOs apócrifOs principalmente as que mais pre-
nica. Por outro lado, o narrador pode cOmplementares cisarem de Vossa misericórdia”,
até mesmo considerar verdadeira a relembra essa tradição apócrifa.
informação, mas exagera ainda mais Um apócrifo “complementar” é
para mostrar quanto é importante aquele que complementa, em pri- 4) Jesus Menino, assim como adulto
aquele fato para a fé. Nessa tarefa, meiro lugar, o conteúdo do texto Jesus, também era capaz também
muitas comunidades inventaram canônico sem, na maioria das vezes, de fazer milagres, ressuscitar,
informações inverossímeis. A seguir, diminuir o caráter de texto inspirado. menos de exorcizar.
estão algumas ideias diferentes que Em segundo lugar, o apócrifo comple-
provêm desses textos: mentar reforça um posicionamento 5) São José é o pai não carnal de Je-
teológico ou eclesial do cristianismo sus, mas acolheu Maria como espo-
1) Jesus Menino usou de poderes hegemônico. Vale citar que a maioria sa, cuidou dela e do Filho de Deus.
divinos para matar adultos e dos apócrifos é complementar, embo- Ele era viúvo quando se casou com
crianças que O incomodavam nas ra tenha, ao mesmo tempo, um quê de Maria, sob orientação dos sacerdo-
brincadeiras pueris. aberrante e de alternativo. A seguir, tes do Templo de Jerusalém.
estão algumas formas de pensamento
2) Ele era um garoto mal-educado apócrifo complementar: 6) Os irmãos de Jesus, a que se refe-
e imaturo que não respeitava as rem os canônicos, são os filhos de
autoridades. Tinha poderes de 1) A história de Maria, a mãe de José com a primeira esposa. Eles
super-herói. Jesus, pouco valorizada nos são irmãos de criação de Jesus.
canônicos, é narrada nos apócri-
3) Jesus Menino não precisou es- fos de maneira piedosa e quase 7) Jesus Menino é um sábio: “Não
tudar. Ele sabia ler e ensinar, completa. Ademais, sua trajetória posso suportar o voo da sua in-
mesmo não sendo alfabetizado. situa-se na história de Israel. Je- teligência”, exclamou um de seus
sus foi morar no Templo, tendo o professores.
4) Pilatos, Herodes e todo o Império destino traçado pelos doutores da
Romano se converteram ao cris- Lei. Muitos fatos ocorridos com 8) Aos doze anos, quando o Menino
tianismo, já no primeiro século Jesus também sucederam com foi encontrado no Templo, dis-
do cristianismo. Maria. Ela é a mãe do Messias, cutindo com os doutores da Lei,
Jesus, e virgem antes, durante estes elogiam Maria, e não Jesus.
5) Jesus, o Messias, vingou-se dos e depois do parto. As expressões
judeus entregando as chaves da ci- da fé da piedade mariana católica 9) Jesus Menino viveu como as
dade de Jerusalém para o Império encontram nos apócrifos seus outras crianças em suas travessu-
Romano, de modo que este pudesse fundamentos. ras. Ao longo da vida, Ele foi-se
destruí-la com seus habitantes. descobrindo Filho de Deus. Era
2) Maria foi o primeiro ser humano, um humano que foi sendo polido
Considerando isoladamente um mortal, que ressuscitou e foi leva- para exercer Sua missão na vida
apócrifo aberrante, logo diríamos: da aos céus por Jesus. Isso alimen- adulta. Quando chegou o momen-
“Isso é um exagero! Jesus Menino ta ainda mais a certeza de nossa fé to de iniciar a vida publica, sua
matava? Não, eu não acredito nis- na ressurreição. Sua assunção se mãe O encorajou, dizendo que
so!” E não deve acreditar mesmo. tornou dogma de fé católica. Sua missão não seria fácil.

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ENTENDENDO A BÍBLIA

10) A Igreja verdadeira é aquela da ressuscitou estão enganados, pois

Maria Madalena (c. 1500), Pietro Perugino


sucessão apostólica. Pedro é o Ele primeiro ressuscitou e depois
apóstolo a quem Jesus conferiu morreu” (Evangelho de Filipe, 56).
o poder de conduzir Sua Igreja. O que vale é a vida no conhecimen-
A partir dele e dos outros após- to salvador; o corpo não importa.
tolos, há uma sucessão apostólica
ininterrupta de passagem da 6) Jesus e Madalena estiveram muito
condução do cristianismo nos próximos. Madalena foi a amada de
caminhos do Espírito Santo e de Jesus, a parte feminina d’Ele na
Jesus ressuscitado. integração com o masculino rumo
à Plenitude, onde está o princípio
11) Os apóstolos fundaram igrejas e criador, masculino e feminino.
sagraram bispos.
7) As partes masculina e feminina
12) Pilatos converteu-se ao cristianis- do ser humano devem estar inte-
mo. Ele se fez de vítima. Este fato gradas para encontrar a Salvação.
se assemelha ao texto canônico, Procurar por isso é se conhecer.
quando diz que Pilatos lavou as Conhecer é encontrar a Salvação.
mãos. Na figura do prefeito da Ju- segundo os apócrifos
deia,  está o Império Romano que alternativos, Jesus e Madalena 8) Jesus prega a libertação do ser
abraça o cristianismo. estiveram muito próximos. humano de sua condição de
Madalena foi a amada aprisionado na carne e no mundo
As muitas expressões de fé dos de Jesus, a parte feminina pelo demiurgo, que o concebeu
apócrifos complementares tornaram-se d’ele na integração com o para criar outros seres inferiores.
quase inspiradas na tradição oral. masculino rumo à Plenitude, A origem de todos nós é uma
Vale citar que formas atuais de viver, onde está o princípio criador, realidade de luz e assexuada,
por exemplo, nossa fé mariana, são um andrógino primordial. Quem
masculino e feminino
elucidadas com a leitura dos apócrifos consegue se libertar dessa condi-
sobre Maria, da qual pouco se escre- ção, pela gnose, não conhecerá a
veu na Bíblia. As comunidades sen- 2) O pecado é um fruto da natureza morte. Jesus disse: “Aquele que
tiram-se impelidas a ampliar essas adulterada, mas não nascemos com descobre as interpretações dessas
informações de modo devocional e ele. Não existe pecado original. palavras não provará a morte”
piedoso. Maria recebe todo o carinho (Evangelho de Tomé, 1).
de mãe deste escritor, age como mãe 3) A mulher é também apóstola de
e apóstola de seu filho, Jesus.2 Jesus, exercendo liderança na 9) A Salvação pregada por Jesus é a
comunidade apostólica. do conhecimento (gnose): “Jesus
O cOnteúdO dOs apócrifOs disse: ‘Aquele que bebe da minha
alternativOs 4) Jesus veio para eliminar a parte boca tornar-se-á como eu, e eu
feminina da criação, de modo mesmo me tornarei como ele, e
Um apócrifo “alternativo” é que o ser humano deixasse de ser-lhe-ão reveladas coisas ocul-
aquele que apresenta uma forma de multiplicar o negativo no mundo. tas’” (Evangelho de Tomé, 108).
cristianismo alternativo e diferente Para se salvar, a mulher deve tor- Jesus convida todos a abandonar
daquele que se tornou hegemônico. nar-se homem. Alguns gnósticos o mundo e conhecer a si mesmo
Os cristianismos alternativos passa- acreditavam que o ser humano era e a centelha do divino que está
ram por verdadeiras batalhas teoló- somente masculino. Somente ele em cada um de nós.
gicas com o hegemônico. Eles per- tinha a salvação. A mulher seria
deram o embate, e, por isso, foram a parte negativa da criação. O ju- 10) Jesus que salva é o gnóstico, não
expurgados da lista dos inspirados. A daísmo ortodoxo também seguiu Aquele da cruz redentora do pe-
seguir, estão algumas novidades do esse princípio. A mulher, com o cado e histórico.
cristianismo desses apócrifos: casamento, recebe a santificação
por meio de seu marido. 11) Jesus é a luz presente em todas as
1) Cristo veio do Pleroma e encarnou-se coisas, até mesmo em um pedaço
em Jesus de Nazaré. Para voltar à 5) Jesus, primeiro ressuscitou, de- de lenha. “Rachai a madeira, eu
realidade superior, Ele precisou se pois morreu. “Os que dizem que o estou lá dentro” (Evangelho de
libertar do corpo de Jesus. Senhor primeiro morreu e depois Tomé, 77).

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pessoa poderosa. Apanhando uma
espada em sua casa, traspassou
a parede. Queria saber se a sua
mão estava bastante resistente.
Depois matou o homem podero-
so” (Evangelho de Tomé, 98).

14) A morte e ressurreição de Jesus


são importantes, mas não ponto
de partida para a Salvação, que é
a gnose.

15) Jesus existiu antes da criação


do mundo.

16) Paulo é o verdadeiro apóstolo de


Jesus. Ele é também o arqui-ini-
migo do cristianismo.

17) O martírio não é caminho de


Salvação. Jesus não veio para
trazer o sofrimento ao mundo.
Imitar o sofrimento de Jesus não
é encontrar a Salvação.

Uma leitura atenta de cada apó-


São José carpinteiro (c. 1640), Georges de La Tour

crifo do Segundo Testamento revela


que, no próprio texto, podem-se
encontrar partes aberrantes, com-
plementares ou alternativas. No
entanto, se tomarmos o conjunto do
livro, podemos afirmar que a maioria
dos 88 apócrifos é complementar (52
deles), e o restante divide-se em
aberrantes e alternativos.

nOtas
1
FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aber-
rantes, complementares e cristianismos
alternativos – poder e heresias! Introdu-
ção crítica e histórica à Bíblia Apócrifa
do Segundo Testamento. 2. ed. Petrópo-
lis: Vozes, 2010.
2
Para compreender os apócrifos marianos,
sugiro a leitura de meu livro: História de
Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos
Evangelhos Apócrifos. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007.

12) Tiago, o irmão de Jesus, foi o 13) Jesus pregou contra o Império Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
primeiro bispo de Jerusalém. Ele Romano, convocando Seus segui-
Arquivo pessoal

defendia a ideia de um cristianis- dores, se preciso fosse, até mes- Escritor e mestre em
Ciências Bíblicas pelo
mo aguerrido e contra o Império mo a fazer uso da luta armada: Pontifício Instituto
Romano, mas com valores do “O Reino do Pai é semelhante a Bíblico de Roma
judaísmo. uma pessoa que quer matar uma www.bibliaeapocrifos.com.br

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Apócrifos
na história
e consolidação
do cristianismo
hegemônico
A
história do cristianismo
revela-nos um contexto
de negação e afirmação
de verdades de fé sobre
Jesus. Cada grupo, procurando man-
ter fidelidade aos ensinamentos
d’Ele, defendeu seu ponto de vista.
Havia disputa de poder no início do
cristianismo, na forma de liderar e
de ser testemunha da ressurreição.
Uma vasta literatura formou-se ao

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longo do processo de consolidação
do cristianismo. Uma foi considerada
inspirada, tornando-se canônica, e a
outra levou a alcunha de apócrifa. A
religiosidade popular conservou na
memória os relatos apócrifos. A lite-
ratura inspirada terminou seu ciclo já
no fim do século 1o. Já a apócrifa, no
processo de consolidação do cristia-
nismo, foi produzindo muitos modos
de pensar divergentes, complemen-
tares ou alternativos ao cristianismo
que se tornou hegemônico. Vejamos
como isso ocorreu ao longo dos sete

Santos Paulo e Pedro, Carlo Crivelli


primeiros séculos do cristianismo.
O século 1o do cristianismo teve
sua marca indelével na fé na ressur-
reição de Jesus, em meio aos confli-
tos com as comunidades judaicas. O
apóstolo Paulo (5-67) disse que em
vão seria nossa fé se Cristo não tives-
se ressuscitado. As mulheres tiveram
um papel fundamental nas primeiras
comunidades. Elas assumiram fun-
ções de liderança. Foram apóstolas,
profetisas, mestras e diaconisas.
Paulo referiu-se a muitas delas assu-
mindo esses papéis. Madalena e Ma-
ria, a mãe de Jesus, foram exemplos
de liderança feminina nesse século.
A pergunta que permanece é: por
que Madalena não foi confirmada
como apóstola? Foi ela quem viu
primeiro o ressuscitado. Paulo, que
não conheceu Cristo terreno, mas
o viu ressuscitado, foi considerado
apóstolo por causa disso. A perse-
guição romana foi tremenda para os
cristãos, considerados pelo Império
como grupo ilegal e segregado,
que rejeitava os deuses romanos,
protetores do Império, bem como
seguiam um homem condenado e
executado por ter feito magia. A caça
aos cristãos era até incentivada pelo
Império. Na outra ponta da linha, o
cristianismo rompeu com o judaísmo,
que se firmou na corrente farisaica do
rabi Akiba (50-135). Vários cristia-
nismos, vários modos de conceber
a mensagem de Jesus marcaram o
primeiro século. No fim do século
1o, a Igreja tinha consciência de
sua edificação no fundamento dos
doze apóstolos1, mas foi somente

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nos séculos seguintes que tal fator se tor- aos bispos e aos padres. A liderança exercida sacramentos, pregações e uma possível
nou preponderante para sua constituição. O pelas mulheres entre os cristãos gnósticos lista de livros inspirados. Tudo isso conferiu
cristianismo apócrifo do século 1o não foi marcionitas, carpocráticos e montanistas, autoridade ao cristianismo, que se tornaria
tão marcante em questões apologéticas, como profetisas, sacerdotisas, bispas e a religião do Império, no século posterior.
como foi o do século 2o em diante. Ele foi mestras, foi banida no cristianismo hege- No século 4o, o cristianismo apócrifo
complementar em relação às questões da su- mônico, já no final do século 2o. A partir continuou legitimando o cristianismo hege-
cessão apostólica e de rejeição ao judaísmo, daí, quem concedesse poder às mulheres mônico. O papel de Maria ganhou destaque.
e alternativo na proposta de cristianismo seria considerado herético. A tentativa de Esse século serviu também para consolidar
revolucionário em relação estabelecer um cânone a questão da sexualidade como caminho de
ao Império Romano. de livros inspirados foi salvação. Se, nos séculos anteriores, deixar
O cristianismo apó- O cristianismo vencedor uma arma utilizada pelo de casar reforçaria uma iminente parusia,
crifo do século 2o foi, com das disputas teológicas cristianismo hegemônico nesse momento, o celibato e a virgindade
toda a certeza, o mais foi aquele que firmou contra os vários grupos foram louvados e propagados como o melhor
rico de todos eles. Quan- raízes no Império Roma- heréticos. O fato de Mar- caminho para a salvação do cristão. O matri-
do tudo parecia resolvido cião (85-160) rejeitar as mônio era apenas tolerado, um grau menos
com a literatura canô- no e chegou até nós. Por cartas paulinas fez que pecaminoso que a fornicação, como dizia
nica, embora esta ainda isso, é também chamado as cartas pastorais fos- São Jerônimo (347-420). O culto a Maria, a
não pudesse ser assim de romano e católico, por sem também atribuídas Virgem mãe, foi propagado como o modelo
considerada, surgiram ter sido anunciado a todo a Paulo. O evangelho de de pureza sexual e espiritual.
nada menos que 34 ou- João, por ser usado pelos No século 5o, enquanto a Igreja se
tros livros para expressar o mundo, com base nos montanistas, quase não mostrava forte, o Império Romano parecia
ideias complementares, ensinamentos dos após- entrou no cânone. Entrou fragmentado em termos políticos, militares e
aberrantes e alternativas tolos, sobretudo Pedro porque foram atribuí- administrativos. O culto a Maria e aos santos
ao cristianismo, que se e Paulo. Nasceu, assim, das a ele três epístolas difundiu-se com força entre as comunida-
tornaria hegemônico. A consideradas inspiradas, des. Maria era o modelo de mulher virgem
curiosidade dos cristãos a cristandade, funda- tirando a possibilidade que devia ser seguido por todos. Em 451, o
sobre fatos da vida de Je- mentada no cristianismo para a heresia4. Rejei- Concílio de Calcedônia proclamou as duas
sus, que não tinham sido apostólico, que se tornou tando posicionamentos naturezas na única pessoa de Cristo. O cris-
contemplados nos quatro hegemônico extremistas, purificando-se tianismo apócrifo desse século, entre outras
evangelhos e cartas, pro- de outros, penetrando contribuições, consolidou a ideia da culpa
duziu textos, imaginou em várias camadas da impetrada aos judeus pela morte de Jesus.
episódios e, sobretudo, criou cristianis- sociedade, buscando preservar uma unidade No século 6o, o cristianismo apócrifo
mos, fundamentou outros. O cristianismo de pensamento na transmissão dos ensi- fortaleceu o cristianismo apostólico hege-
gnóstico, de origem anterior ao cristia- namentos de Jesus, o cristianismo que se mônico e a piedade mariana. Seguindo o
nismo, consolidou-se nesse período. Esse tornou hegemônico foi-se estabelecendo em pensar teológico desse século, a literatura
foi, certamente, a mais forte oposição ao uma única igreja. Erraram os gnósticos ao apócrifa, a partir do século 7o, reforçou a
cristianismo hegemônico, que usou até de negar a divindade de Jesus, sua encarnação piedade mariana e a conversão do Império
artifícios não muito salutares para diminuir e redenção. Erraram os hegemônicos quando Romano ao cristianismo, com consequente
a força e o papel evangelizador desses seus eliminaram todos aqueles que pensavam de condenação dos judeus. Tendo percorrido os
opositores. Testemunhos mostram como a modo diferente, fortalecendo-se em poder sete séculos do cristianismo, concluímos que,
doutrina e a conduta moral deles eram du- de uma instituição, a partir de discussões até o século 3o, ele conviveu com diversas
ramente atacadas2. O cristianismo gnóstico apologéticas, mesmo que a instituição seja teorias e teologias. O cristianismo apócrifo
era para poucos. Somente alguns, aqueles necessária e positiva. gnóstico, principal opositor daquele que se
que possuíam a centelha da luz, poderiam O século 3o marcou uma nova e impor- tornou hegemônico, era também multiforme;
atingir a salvação gnóstica. O gnosticismo tante fase do cristianismo hegemônico. por isso, ele se enfraqueceu e foi vencido.
era um cristianismo elitizado. Os cristia- Nessa época, as comunidades e o clero esco- No cristianismo hegemônico, a trajetória foi
nismos apócrifos gnósticos, ao negar a lheram seu bispo, que deveria ser ordenado diversa. Ele conseguiu agregar vários modos
ressurreição de Jesus, quiseram, com isso, em uma celebração litúrgica. Para legitimar de pensar teológico. Assim, no século 4o, um
negar a autoridade apostólica dos bispos, Roma como a nova sede do cristianismo, ramo do cristianismo tornou-se o oficial e
os quais fundamentavam seu poder eclesial Paulo e Pedro foram considerados os maiores hegemônico. Os outros foram subjugados a
em Pedro (1 a.C.-67 d.C.), que primeiro viu apóstolos do cristianismo, passando ter seus ele, expulsos e cunhados de heréticos, pois
e afirmou que Cristo ressuscitou. Pedro, por nomes identificados e mencionados sempre pensavam diferente do que fora estabelecido
causa disso, reivindicava para si o exercício em relação a essa cidade. Esse século marcou como verdadeiro. A história foi reescrita pelo
exclusivo da liderança sobre as igrejas3. A o início de um cristianismo hierárquico, grupo vitorioso, de modo que parecesse que
autoridade de Cristo foi repassada ao papa, de sucessão apostólica, pró-Roma, com assim já era desde os tempos apostólicos5. O

O MensageirO de santO antôniO


O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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10 Entendendo a Bíblia
abril de 2014
8) Utilizou tradições apócrifas comple-
mentares em seus dogmas de fé.
9) Determinou a lista dos livros inspirados.
10) Fundamentou, nos canônicos e na
tradição apostólica, a fé em Jesus res-
suscitado, humano, divino e trinitário.

O cristianismo hegemônico venceu vá-


rios tipos de cristianismos propostos, mas
não conseguiu eliminar todos eles. Muitas
de nossas práticas e profissões de fé cristã
têm também seus fundamentos nas origens
apócrifas do cristianismo. Na maioria das
vezes, nem temos consciência disso. Cito
apenas algumas, como: aceitação do Pri-
meiro Testamento judaico como literatura
inspirada; a humanidade e a divindade de
Jesus; posturas antijudaicas; o desprezo
pelo corpo e a visão negativa do sexo; a
luta para escapar do mundo material com
práticas ascéticas6; devoções marianas;
vivência intimista e individualizada da fé
sem a necessidade de uma estrutura ecle-
Santos Paulo e Pedro com Maria e o Menino Jesus, Giusseppe Cesari

sial e hierárquica. Mesmo tendo assimilado


pensamentos apócrifos, o cristianismo hege-
mônico condenou movimentos e pessoas e
até mesmo chegou a acusá-los de heresias.
Muitas vezes, nem todo o pensamento de
um grupo, só alguns elementos eram he-
réticos. Entre esses grupos, não podemos
esquecer os ebionitas, os marcionitas, os
montanistas e os adocionistas. Entre os
ilustres teólogos condenados, destacam-se
Tertuliano (160-220) e Orígenes (182-254).

reFerÊnCias
1
MATOS, Henrique José Cristiano. Intro-
dução à história da Igreja. 2. ed. Belo
Horizonte: Lutador, 1997. p. 40. v. 1.
2
JOHNSON, Paul. História do cristianismo.
Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 66-67
cristianismo vencedor das disputas teológi- 2) Rompeu com o judaísmo como religião. 3
PAgELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos.
cas foi aquele que firmou raízes no Império 3) Criou uma igreja e um bispo homem, São Paulo: Cultrix, 1996. p. 38.
4
JOHNSON, Paul. História do cristianismo.
Romano e chegou até nós. Por isso, é tam- eliminando o poder de direção institu- Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 71.
bém chamado de romano e católico, por ter cional das mulheres. 5
EHRMAN, Bart D. Evangelhos perdidos:
sido anunciado a todo o mundo, com base 4) Colocou um bispo romano para todas as batalhas pela escritura e o cristianis-
mo que não chegamos a conhecer. 3. ed.
nos ensinamentos dos apóstolos, sobretudo as igrejas. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 253.
Pedro e Paulo. Nasceu, assim, a cristandade, 5) Criou comunhão universal na fé 6
Ibidem, p. 363-365.
fundamentada no cristianismo apostólico, apostólica com todas as igrejas,
que se tornou hegemônico, estabelecendo, tornando-se católico.
ao longo de séculos, dez ações, como: 6) Estabeleceu um credo de fé apostólico. Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
7) Eliminou os vários outros modos de
Arquivo pessoal

1) Provou ao Império Romano a sua anti- conceber o cristianismo, sobretudo Escritor e mestre em
Ciências Bíblicas pelo
guidade a partir do judaísmo, sendo a aqueles cognominados de apócrifos Pontifício Instituto
realização das promessas do Primeiro aberrantes, complementares ou Bíblico de Roma
Testamento. alternativos. www.bibliaeapocrifos.com.br

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abril d e 2 0 1 4
Entendendo a Bíblia 57
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ENTENDENDO A BÍBLIA

Madalena
prostituta
sem nunca
Maria Madalena na caverna (1868), Hugues Merle

O OMMe n
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12 Entendendo a Bíblia
Maio
Maio de
de 2014
2014
N
os evangelhos canônicos, mosteiro, no Alto Egito, em uma lo-
Maria Madalena (3-63) é calidade chamada Nag Hammadi. A
a personagem feminina Madalena desse evangelho se parece
mais importante e contro- com a dos evangelhos canônicos,
vertida. Sem contar as repetições, ela com a diferença de que, no apócri-
aparece doze vezes nos evangelhos. fo, ela assume seu papel de mulher
Os Atos dos Apóstolos simplesmente apóstola. Jesus revela-lhe ensina-
ignoram a sua pessoa. Os traços da mentos, os quais Ele transmite aos
ação e personalidade de Madalena apóstolos. Pedro (1 a.C.-67 d.C.),
nos canônicos são: apóstola que André (?-60) e Levi (Mateus, ?-c.
acompanha Jesus desde a Galileia 72) são os interlocutores explícitos,
(cf. Lc 8,1-3); mulher possessa de e os dois primeiros reagem contra
sete demônios, os quais são expulsos a mulher Madalena, não aceitando
por Jesus (cf. Mc 16,9), capacitando sua condição de mestra e apóstola. O
-a para o serviço do Reino; mulher final do evangelho diz que, após os
que sustenta financeiramente a Je- ensinamentos de Madalena, os dis-
sus (cf. Lc 8,2); testemunha da mor- cípulos saem a anunciar o evangelho
te, enterro e ressurreição de Jesus. segundo Maria Madalena. Isso só foi
Na tradição da literatura apócri- possível porque Levi conseguiu fa-
fa (dez livros), Madalena aparece zer que Pedro, André e os apóstolos
como: companheira, esposa/consor- compreendessem que Madalena era
te, amada de Jesus; não prostituta; a preferida de Jesus e Sua após-
personificação terrena da gnose/ tola. Ela falava a verdade sobre os
sabedoria; mulher que conhecia ensinamentos de Jesus. Na palavra
o todo; apóstola e confidente de de homem, Madalena é confirmada
Jesus; mestra nos ensinamentos na sua ação. O coração deles se abre
de Jesus1. O Evangelho de Maria para ouvir Madalena e anunciar seu
Madalena é uma preciosidade de evangelho. Pistis Sophia (Fé Sabedo-
informações sobre o papel apos- ria) está estruturado em forma de
tólico exercido por Madalena, que diálogo entre Jesus ressuscitado,
infelizmente não entrou na lista dos Maria Madalena, Maria, a mãe de
livros inspirados. Escrito, possivel- Jesus, Salomé, Marta e os onze
mente, no ano 150 da Era Comum, apóstolos. O conteúdo da revelação
esse evangelho, em sua versão copta é expressamente gnóstico. Notório
(língua do Egito), foi encontrado é o destaque dado à pessoa de Ma-
em vasos enterrados perto de um dalena. É ela quem dirige a Jesus a
maioria das perguntas, comenta o
sentido das respostas e é louvada
pelo mestre por sua sabedoria e
presença do Espírito.

O M e nn ssaaggeeiirrOO ddee ssaannt tOO aannt tô ôn ni Oi O


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Maio
Entendendo a Bíblia 57
13
ENTENDENDO A BÍBLIA

O Evangelho de Tomé, nos textos e segunda metade do século III E.C., é o nome de Madalena, oferece reflexões
datados do ano 140 E.C., cita duas vezes um escrito gnóstico. Nele, assim como em torno de sua pessoa, como o mito
Maria Madalena. No primeiro (Dito 21), em Perguntas de Maria, Madalena é de pecadora arrependida.
ela pergunta a Jesus a quem se parecem apresentada como companheira de A tradição judaica, hostil a Jesus,
os discípulos e, no final do evangelho Jesus. O livro da ressurreição de Cristo também ensinou que Maria Madalena
(Dito 114), Pedro toma a palavra e pede do apóstolo Bartolomeu (?-51), escrito era adúltera. O Talmude chega a confun-
que Jesus expulse Madalena do meio dos séculos VII ao VIII E.C., ao distin- dir Maria Madalena com Maria, mãe de
deles, pois as mulheres não são dignas guir entre a multidão das mulheres Jesus. Na história da Igreja, destacam-se
da Vida, do Reino de Deus. Jesus res- que estavam no sepulcro, na manhã os testemunhos de Santo Ambrósio
ponde com ironia a Pedro e valoriza o da ressurreição, fala de Madalena como (340-397), o qual diz que Madalena
papel da mulher, do feminino, e confir- mulher que foi libertada da mão de Je- poderia ter sido pecadora. Pedro Crisó-
ma a ideia gnóstica de que o feminino sus por Satanás e não como prostituta. logo (406-450) diz que Madalena é o
era o lado ruim da criação. Salomé, sim, é denominada de “a tenta- símbolo da Igreja “Santa e Pecadora”.
O Evangelho de Nicodemos, escrito dora”. Também nesse evangelho, Jesus Quanto ao anúncio da ressurreição às
do século V E.C., apresenta o sofrimento ressuscitado aparece a Maria, mãe de mulheres, Crisólogo afirma: “Neste
de Madalena pela morte por crucifixão Jesus, e não a Madalena. Outros escritos serviço, as mulheres precedem aos
de Jesus e a sua decisão de levar ao apócrifos, como Exegese em torno da homens, elas que pelo sexo vêm depois
conhecimento do Império Romano e alma, embora não cite explicitamente dos homens, por ordem (hierárquica)
ao mundo as atrocidades cometidas por depois dos discípulos: mas não por isso
Pilatos e os ímpios judeus. O Evangelho estão a significar que os apóstolos sejam
de Filipe, datado na metade do século II mais lentos, pois elas levam ao sepulcro
do Senhor não a imagem de mulheres,
mas a figura da Igreja”. Honório de Autun
(1080-c. 1153) atribui a Maria Madalena
uma vida inclinada à libido e, por
isso diabólica, quando escreve:
“[O Senhor...] nos colocou dian-
te da bem-aventurada Maria
Madalena como exemplo de sua
clemência. Narra-se que esta era
a irmã de Lázaro, que o Senhor fez
ressuscitar do sepulcro depois de quatro
dias, e foi também irmã de Marta, que
com frequência ofereceu hospitalidade

Lamentação (c. 1609), Peter Paul Rubens

O OMMe n
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14 Entendendo a Bíblia
Maio
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2014
A penitente Santa Maria Madalena (1869), Carl Fröschl
A mulher Madalena ficava subestimada
em seu papel de liderança apostólica.
Temos uma dívida histórica com ela. Em 1969,
a Igreja Católica pronunciou-se reconhecendo
o erro histórico com Maria Madalena e pedindo
desculpas pela errônea alcunha de prostituta.
Pouco difundido na época, o documento
não teve muita repercussão

ao Senhor. Esta Maria foi enviada para mencionam que ela era prostituta. O fa- pela errônea alcunha de prostituta. Pouco
junto ao marido na cidade de Mágdala, moso texto de Lucas 7,36-50, a pecadora difundido na época, o documento não
mas, fugindo dele, foi para Jerusalém. que unge os pés de Jesus, não diz que teve muita repercussão. A personagem
Esquecendo-se de sua família, esquecida essa era Madalena. A comunidade lucana Maria Madalena foi tratada, no decorrer
da lei de Deus, tornou-se uma vulgar coloca, logo a seguir, que Jesus andava da história cristã, como mito de pecadora
meretriz; e, após se tornar prostíbulo da por cidades e povoados pregando acom- redimida. De prostituta, virou santa para
torpeza, se tornou também, por conse- panhado por mulheres, entre as quais morar no imaginário coletivo como mulher
guinte, sacrário dos demônios; de fato, estava Maria Madalena, aquela da qual forte e exemplo de vida cristã. Infelizmen-
entraram nela sete demônios todos jun- ele havia expulsado sete demônios. Caso te, esse foi um bem, que, para se firmar,
tos, e constantemente a atormentavam a prostituta fosse Madalena, por que a teve de fazer uso de inverdades como a
com desejos imundos”2. comunidade lucana omitiria seu nome? E, história de Maria Madalena, a prostituta.
Em 1050, Maria Madalena foi procla- além disso, ela aparece no texto posterior
mada padroeira de uma abadia de monjas com adjetivo de ex-possessa. Ou seria isso reFerências
beneditinas. A ideia seria mostrar que ela que levou a Igreja a identificá-la com a 1
Cf. nosso livro: O outro Pedro e a outra
se arrependeu e tornou-se eremita. Na prostituta? Se comunidade lucana sou- Madalena segundo os apócrifos: uma leitu-
França, é tida como padroeira dos perfu- besse que a prostituta que ungiu Jesus ra de gênero. Petrópolis: Vozes, 2005. p.
121-153.
mistas e cabeleireiros. Maria Madalena é era Madalena, ela não teria motivos não 2
Citado por: SEbASTIANI, Lilian. Maria Ma-
celebrada pela Igreja Católica no dia 22 dizê-lo. Situando o texto da pecadora no dalena: de personagem do Evangelho a mito
de julho. Ela é também a padroeira das início da vida pública de Jesus, a comu- de pecadora redimida. Petrópolis: Vozes,
1995. p. 97-98.
prostitutas3. nidade lucana quis mostrar que todos os 3
Cf. nosso livro: As origens apócrifas do
Na liturgia devocional da Idade Mé- pecadores, assim como os que seguem o cristianismo: comentário aos evangelhos de
dia, encontram-se Laudes e Completas mestre, devem ter lugar na comunidade4. Maria Madalena e Tomé. 2. ed. São Paulo:
Paulinas, 2004. p. 34.
dedicadas a Maria Madalena. Ela inspirou Foi um erro histórico dos padres da 4
WEg, Magda Misset-van de, Maria van Mág-
muitos pintores, os quais a retratam como Igreja a interpretação de Lucas 7,36-50, dala en de zondige vrouw. Schift, Tilburg,
mulher pecadora; penitente; bela e for- que foi seguida pela devoção popular e a n. 205, p. 6, 2003.
mosa; idosa e solitária; que unge Jesus; arte. Com certeza, essa análise alimentava
que ampara Maria, a mãe de Jesus; que o espírito machista dos primórdios do
anuncia o ressuscitado; discípula que cristianismo. A mulher Madalena ficava Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
acompanha Jesus em sua agonia. subestimada em seu papel de liderança
Arquivo pessoal

A tradição cristã fez de Maria Mada- apostólica. Temos uma dívida histórica Escritor e mestre em
Ciências Bíblicas pelo
lena uma prostituta arrependida, fato com ela. Em 1969, a Igreja Católica pro- Pontifício Instituto
que não pode ser sustentado nem mesmo nunciou-se reconhecendo o erro histórico Bíblico de Roma
pelos evangelhos canônicos, os quais não com Maria Madalena e pedindo desculpas www.bibliaeapocrifos.com.br

O MensageirO de santO antôniO


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ENTENDENDO A BÍBLIA

Madalena
e JeSUS
amor preferencial
e integrador
P
ara a relação entre Ma-
ria Madalena e Jesus, a
tradição apócrifa gnósti-
ca conservou conceitos,
no mínimo, controvertidos. A
comunidade de Filipe assim
descreve: “Eram três que acom-
panhavam sempre o Senhor:
sua mãe Maria, a irmã dela, e
Madalena, que é chamada de sua
companheira. Com efeito, era
‘Maria’ sua irmã, sua mãe e sua
consorte’1. O entendimento desse

Aparição de Cristo à Maria Madalena após


a Ressurreição, 1835, Alexander Ivanov

O OMMe n
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Junho
Junho de
de 2014
2014
texto diverge entre os traduto-
res. Alguns entendem que Maria
era o nome da irmã de Maria,
a mãe de Jesus. Outros dizem
que Maria era também o nome
de uma irmã de Jesus, tradição
anotada por Epifânio2. Também
os apócrifos sobre Maria afirmam
que Maria, a mãe de Jesus, teve
outra irmã, de nome Maria, que
se tornou a esposa de Cléofas,
informação também anotada
em João 19,25. Na verdade, três
Marias são importantes na vida
de Jesus: a Sua mãe, Sua irmã
e Sua companheira. O último
apelativo refere-se a Maria Mada-
lena. Madalena seria a esposa ou
companheira de Jesus. O termo
grego usado koinonos se refere a
coito. Assim, Madalena, além de
esposa, era mãe e irmã de Jesus.
Não estaríamos falando de uma
mesma mulher em três arquéti-
pos? Jean-Yves Leloup (1950-)
afirma: “No cristianismo, não
existem verdadeiras mulheres,
mas virgens, mães e prostitu-
tas... Se as mulheres é que fazem
os homens, poderíamos tirar a
conclusão de que também não
existem verdadeiros homens;
apenas, meninos, bons papais ou
tarados sexuais. A reabilitação da
personagem Miryam de Mágdala
ao lado de Ieschua de Nazaré
poderia contribuir para que,
hoje em dia, homens e mulheres
viessem a realizar o anthropos
em plenitude”.3
No evangelho de Maria Mada-
lena, Pedro reconhece que Jesus
amava Madalena diferentemente
das outras mulheres (MM 10,1-3).
Ele pergunta apavorado: “Será
que Ele verdadeiramente a es-
colheu e a preferiu a nós?” (MM
17,20). Levi, na defesa de Mada-
lena, e reconhecendo que ela era
a amada do Senhor, dá um puxão
de orelha em Pedro, quando lhe
diz: “Pedro, tu sempre um irascível.
Vejo-te agora te encarniçar contra a
mulher, como o fazem nossos ad-
versários. Pois bem! Se o Mestre

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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Entendendo a Bíblia 55
17
ENTENDENDO A BÍBLIA

tornou-a digna, quem és tu sexualidade, não necessariamente Esse modo de explicar o fato do
para rejeitá-la? Seguramente, genital. Para os gnósticos, a união beijo não tem o objetivo de suavizar
o Mestre a conhece muito entre o masculino e o feminino era nossa visão “puritana” e “negativa”
bem... Ele a amou mais que a vista em uma esfera espiritual de do corpo e dizer que o beijo entre
nós”4. No evangelho de Filipe, superação da divisão corpórea. Jesus eles era simbólico. Outras explicações
outra informação surpreende e Madalena eram vistos como exemplo são possíveis. O que devemos com-
os ouvidos menos avisados: dessa integração. O beijo entre eles é preender é que, nos apócrifos, Jesus
“A companheira de Cristo é a expressão desse desejo espiritual. é visto como um homem que ama
Maria Madalena. O Senhor Por isso se diz que o beijo comunicava uma mulher, como todos os homens
amava Maria Madalena mais o saber. Beijo, em hebraico nashak, de seu tempo. Onde está o erro nis-
que todos os discípulos, e a significa ‘comunicar o mesmo sopro, so? Jamais Jesus teria proibido essa
beijava na boca repetida vezes. o hálito de vida, e respirar junto’. Um relação humana e divina. Poderia até
Os discípulos lhe disseram: ‘Por se transformava no outro. Madalena ter dito que alguns, para se dedicarem
que a amas mais que a nós?’ O podia transmitir os ensinamentos do de forma integral ao Reino, optam pela
Salvador respondeu dizendo: Mestre/Amado. O texto até sugere vida sem relação sexual. Não duvido
‘Como é possível que eu não uma relação amorosa, mas não temos que isso seja possível. Por outro lado,
vos ame tanto quanto a ela?’” como afirmar isso, mesmo que nossa não podemos negar o corpo. A sexuali-
(p. 63,34-64,5)5. O apócrifo imaginação sugira tal evidência. dade está em todos nós. O Eros precisa
Perguntas de Maria6 e outros ser despertado sempre em nossas
escritos da época revelam que relações. Jesus soube fazer isso. Não
certos gnósticos admitiam que necessariamente de forma genital.
Madalena era amante, parceira Assim, acredito no amor entre Jesus
sexual ou esposa carnal de Je- e Madalena. Um amor que integra tudo
sus. Opinião considerada exage- em todos. Um amor puro e gratuito. Um
rada, a qual vem contestada em amor sublime e humano, assim como
Pistis Sophia. Esses textos nos o amor de Francisco (1182-1226) e
colocam, inevitavelmente, na Clara de Assis (1193-1253).7
discussão em torno da relação
matrimonial entre Jesus e Ma- reFerências
dalena. A discussão sobre essa 1
GENO, Pampolini. Vangelho de Filippo. La
temática tem-se ampliado nos Fatica della Storia; I vangeli apocrifi, Turim:
últimos decênios. Muitas hipó- Einaudi, 1990. p. 517.
2
Cf. Adv. Haer. 78,8. Citado por: Sebastiani,
teses têm sido levantadas. O que Lilian. Maria Madalena: de personagem do
dizer de tudo isso? Com certeza, evangelho a mito de pecadora redimida.
a dúvida vai permanecer para Petrópolis: Vozes, 1995. p. 57.
3
LELOUP, Jean-Ives. Jesus e Maria Madalena:
sempre. Dos evangelhos canôni- para os puros, tudo é puro. Petrópolis:
cos, decorrem que Jesus estava Vozes, 2007. p. 15.
muito próximo das mulheres,
4
Idem. Evangelho de Maria: Miriam de Mágda-
la. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 39. p. 18, 7-14.
desprezadas pelas correntes 5
MéNard, Jacques E. L’Évangile selon Phili-
machistas da sociedade judai- ppe: introduction, texte, traduction e
ca. Jesus foi humano com elas, commentaire. Strasbourg, 1967, p. 67.
6
PIÑErO, antonio. O outro Jesus segundo os
mostrou paixão para com Marta evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus/
e Maria, libertou Madalena da Mercuryo, 2003. p. 113.
possessão etc. Os evangelhos
7
Cf. o comentário ao Evangelho de Maria
Madalena em nosso livro: As origens apócri-
apócrifos descortinam um Jesus fas do cristianismo: comentário aos evan-
que não só está próximo das gelhos de Maria Madalena e Tomé. 2 ed. São
mulheres, mas as ama com sua Paulo: Paulinas, 2004.
Maria Madalena, 1616, Guido Reni

Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
Arquivo pessoal

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18 Entendendo a Bíblia
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Junho de
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2014
ENTENDENDO A BÍBLIA

concepção e
Joaquim e Ana acariciando Maria antes de apresentá-la no Templo, século Xi, autor desconhecido

nascimento De
maria
O OMMe n
nos apócrifos
e ns saagge ei irrOO ddee ssaannttOO aann tt ôô n i O
O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
52 Março
Março de
de 2015
2015
Entendendo a Bíblia 19
N
os evangelhos apócrifos, a Jerusalém, no tempo estabelecido
história de Maria revela-nos pela promessa, em uma vida pura,
dados de nossa piedade sem cortar os cabelos e tomar vinho
mariana popular. Segundo (cf. Nm 6,1-21).
esses evangelhos, Maria nasceu de
pai e mãe judeus. Seu nascimento AnA concebe MAriA
foi marcado pela intervenção de
Deus em sua vida e na de seus pais. Depois da oração de Ana, um
O pai de Maria chamava-se Joaquim. anjo do Senhor apareceu e lhe disse
Ele era um homem rico e muito pie- que sua oração havia sido ouvida
doso. Descendente da Tribo de Judá1, por Deus e que ela conceberia e
Joaquim casou-se com Ana, filha de daria à luz e, em toda a terra, se
Acar, também de sua tribo, quando falaria de sua descendência. O
tinha vinte anos. Passados outros mesmo anjo apareceu a Joaquim e
vinte anos, o casal teve filhos. Ana lhe disse: “Sabe que de teu sêmen
era considerada estéril. concebeu (Ana) uma filha, e tu a
No “Dia do Senhor”, era costume deixaste, ignorando-o. A criança
de os filhos de Israel apresentarem estará no Templo de Deus. Sobre
suas oferendas. Joaquim, então, foi ela repousará o Espírito Santo. Sua
ao Templo apresentar sua melhor bem-aventurança será superior à de
oferta. O sacerdote Rúben postou-se todas as mulheres santas. Ninguém
diante de Joaquim e lhe disse: “Não poderá dizer que antes dela houve
é lícito ser o primeiro a apresentar outra igual e, neste mundo, depois
tuas ofertas, porque não tens des- dela não haverá outra como ela”6.
cendência em Israel”2. O anjo, então, pediu a Joaquim
A tristeza abateu-se sobre Joa- que voltasse para sua casa. Joa-
quim. Ele retirou-se do convívio de quim, maravilhado, ofereceu um
sua mulher, Ana, e foi para o de- holocausto a Deus e retornou. Ana o
serto, “onde jejuou quarenta dias e recebeu com alegria. Após lançar-se
quarenta noites, dizendo a si mesmo: a seu pescoço, disse: “Agora sei que
‘Não descerei daqui, nem para comer o Senhor Deus me abençoou larga-
nem para beber, enquanto o Senhor mente. A viúva não é mais viúva
meu Deus não me visitar. A oração e eis que eu, a estéril, concebi em
me servirá de comida e de bebida’”3. meu seio”7. E notícia espalhou-se
Ana, por sua vez, lamentava pro- por todo o Israel.
fundamente a ausência do marido.
Sentindo-se viúva de marido vivo e A concepção e o DogMA
sem filho, ela dizia: “Chorarei minha DA iMAculADA
viuvez! Chorarei minha esterilida-
de!”4 E rezava “Senhor, Deus santíssi- Nos textos apócrifos, a concepção
mo de Israel, não me deste filho, mas de Ana é polêmica. Como vimos, os
por que me tiraste também o marido? apócrifos usam o verbo conceber
Eis que já se passaram cinco meses no pretérito e no futuro. O Protoe-
que não vejo o meu marido. Nem sei vangelho de Tiago relata que o anjo
se está morto, para que eu possa ao pediu que Joaquim retornasse, pois
menos lhe dar uma sepultura”5. No Ana havia concebido em seu seio. O
terreiro de sua casa, viu um ninho verbo no passado quer afirmar que
com filhotes de passarinhos e implo- Maria foi concebida sem intervenção
rou a Deus o dom de gerar um filho. de Joaquim e de forma miraculosa.
Ela prometeu que tal filho ou filha O verbo no futuro supõe o relaciona-
seria consagrado a Deus no Templo. mento sexual posterior de Joaquim.
A prática de consagrar um fi- Bem, mas Ana já poderia ter engra-
lho a Deus era comum naquele vidado antes mesmo da partida de
tempo. Os consagrados, chamados Joaquim, como supõe o Evangelho
de nazireus, viviam no Templo de do Pseudo-Mateus.

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
20 Entendendo a Bíblia
Março ddee 2015
Março 2015 53
ENTENDENDO A BÍBLIA

O nascimentO de maria

Depois desses fatos, Joaquim foi ao


Templo para fazer sua oferta. Ele sentiu-se
consolado por saber que Deus o havia
perdoado de todos os seus pecados.
Quando chegou o tempo de Ana dar
à luz, Maria nasceu. Alguns manus-
Santa Ana ensinando Maria a ler, c. 1335, autor desconhecido

critos falam que esse tempo equivale a


nove meses, outros, sete meses mais os
dois meses que Joaquim ficou longe de
Ana, e outro, seis meses. Tal pormenor
reforça a ideia da concepção de Ana sem
a presença de Joaquim.
Ao dar à luz, conforme Protoevange-
lho de Tiago (v.2), Ana perguntou para a
parteira: “‘A quem dei à luz?’ A parteira
respondeu: ‘Uma filha’. E Ana exclamou:
‘Hoje minha alma foi enaltecida!’ E deitou
a criança. Quando se completaram os dias
prescritos pela lei, Ana fez as purificações
pelo parto, deu o peito à criança e lhe
pôs o nome de Maria”.8
Na liturgia da Igreja Católica, o
dia do nascimento de Maria é cele-
brado em 8 de setembro. Essa festa,
celebrada primeiramente na Igreja do
Oriente, foi incorporada ao calendário
católico pelo papa Sérgio I (650-701),
no século VII.

nOtas
A piedade popular mariana conserva no muito mais que isso. É toda a maldade que
devocionário uma canção, que ser tornou está dentro de nós, transmitida de geração
1
Cf. Protoevangelho de Tiago 1,1; Evangelho
do Pseudo-Mateus 1,1, e Livro da
muito conhecida: “Oh, Maria, concebida em geração. Creio que nascemos em estado Natividade de Maria.
sem pecado original [...]”. Na verdade, essa de graça pura, sem pecado original. No de- 2
Cf. Protoevangelho de Tiago I, 2. In:
música tem ligação com a aparição de Maria correr da vida, vamos adquirindo a condição RAMOS, Lincoln. A história do Nascimento
de Maria. Petrópolis: Vozes, 1998.
a Santa Catarina de Labouré (1806-1876), de pecador, pois vamos nos dando conta que 3
Idem III, 4.
em que se diz: “Ó Maria, concebida sem pe- nossos semelhantes (origem terrena) “estão” 4
Idem, ibidem II, 1.
cado, rogai por nós que recorremos a vós”. pecadores. Assim aconteceu com Maria. Por
5
Cf. Evangelho do Pseudo-Mateus 2. In:
TILLESSE, Caetano Minette. Extracanônicos
Isto ocorreu em 1830. Em 8 de dezembro de ser escolhida, ela foi especial também até do Novo Testamento. Fortaleza: Nova
1854, o papa Pio IX (1792-1878) declarou em seu nascimento. Quando os apócrifos Jerusalém, 2003. v. 1.
o Dogma da Imaculada Conceição, que diz: sugerem que Ana concebeu sem a presença
6
Idem. ibidem.
7
Cf. Proto-Evangelho de Tiago 4,4.
“A doutrina que sustenta que a beatíssima de Joaquim, isso foi para dizer que ela era 8
A história completa de Maria nos apócrifos
Virgem Maria foi preservada imune de toda pura, sem pecado. Na vida, Maria também encontra-se em nosso livro: História de
mancha da culpa original no primeiro ins- conheceu o erro, se é que queremos chamar Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos
evangelhos apócrifos. Petrópolis: Vozes, 2006.
tante de sua concepção, por singular graça isso de pecado. Caso contrário, que mérito
e privilégio de Deus onipotente, em atenção teria? Claro que Maria é modelo de santida-
aos méritos de Cristo Jesus Salvador do de. E assim, ela viveu; caso contrário, não
gênero humano, está revelada por Deus e seria a mãe de Deus. A exaltação apócrifa e Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
deve ser, portanto, firme e constantemente poética mariana, nos textos apresentados
Arquivo pessoal

Escritor e mestre em
crida por todos os fiéis”. neste artigo, querem simplesmente reforçar Ciências Bíblicas pelo
Não podemos ligar necessariamente o a fé em Maria, que, desde a concepção, foi Pontifício Instituto
pecado original ao relacionamento sexual escolhida por Deus para revelar seu mistério Bíblico de Roma
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que nos passa o mal, ao nascermos. Ele é de encarnação, em Jesus, no meio de nós.

O MensageirO de santO antôniO


O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
54 Março de 2015
Entendendo a Bíblia 21
ENTENDENDO A BÍBLIA

O sentidO
dO milagre
na BiBlia
À
espera de um milagre foi dom, o de fazer milagres. O filme termi-
um notável filme do final na com ele na cadeira elétrica, morrendo
da década de 1990, no qual sob os olhares irados de seus acusadores
é narrado o drama de um em contraposição ao olhar misericordio-
prisioneiro negro acusado de matar duas so do chefe da prisão, que não foi capaz
crianças brancas nos idos de 1935, em de realizar o milagre de libertação de um
Louisiana (Estados Unidos).1 O chefe homem acusado injustamente.
da prisão, interpretado por Tom Hanks, À espera de um milagre ainda per-
vive um conflito moral. Ele tem de exe- manece vivo no imaginário de muitas
cutar a sentença de morte do prisioneiro pessoas. E se Jesus voltasse? E se eu
(protagonizado pelo saudoso Michael ganhasse sozinho na Megassena? Há
Duncan). Este se revela dotado de um quem deseja que um milagre aconteça

O OMMe n
e ns saagge ei irrOO ddee ssaannttOO aann tt ôô n i O
O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
54
22 Entendendo a Bíblia
Julho/agosto
Julho/agosto de
de 2014
2014
em sua vida, algo extraordinário para mo-
dificar o seu destino.
O que é isso: milagre? Ele ainda acontece
em nossos dias? Não foi somente Jesus que
realizou milagres? Que relação existe entre
o milagre e a ciência? Como Deus age em um
milagre realizado por Jesus? Qual é a relação
dos milagres realizados por Jesus com o Reino
de Deus, com a missão dos apóstolos e a nossa?
Como os contemporâneos de Jesus entendiam
o milagre? Como nós entendemos um milagre?

SigNifiCaDO DE MiLagRE

Milagre (forma literária específica que de-


monstra o lado divino e messiânico da pessoa
de Jesus no anúncio do Reino de Deus) não é
propriedade exclusiva do Segundo Testamen-
to. Ele provém do mundo helenístico, sendo
adotado pelo judaísmo e pelo cristianismo,
sobretudo. No Primeiro Testamento, por vezes
é dito que Deus age por meio de prodígios
(milagres) em favor de Seu povo. a memória
da libertação do Egito é descrita nos salmos
e profetas como um grande milagre. fatos
extraordinários e curas também não faltam
no Primeiro Testamento.

O M e nn ssaaggeeiirrOO ddee ssaannt tOO aannt tô ôn ni Oi O


O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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Julho/agosto
Entendendo a Bíblia 55
23
ENTENDENDO A BÍBLIA

No Segundo Testamento, o milagre 21) Mc 5,1-20: em Gerasa, Jesus expulsa mundo antigo, não se maravilharia diante de
ocupa o lugar das lendas proféticas do o demônio de um homem que vivia tais acontecimentos? Mas, hoje, isso ainda
Primeiro. Em Atos dos Apóstolos, são em meio a sepulcros; é possível? A ciência evoluiu tanto que ela
os discípulos que realizam milagres em 22) Lc 8,22-25: Jesus acalma a natureza, também cura, prevê mudanças no curso
nome de Jesus.2 Notório também é o fato diante de uma tempestade que caíra dos acontecimentos, explicando a origem
de os milagres de Elias serem repetidos sobre Ele e os discípulos, quando de muitos males. Levando em consideração
por Eliseu e, posteriormente, por Jesus. estavam em um barco; essas afirmações, hoje não ocorrem mais
23) Lc 8,49-56: Jesus ressuscita a filha milagres. O xis da questão, no entanto,
ExEMPLOS DE MiLagRES Na BíBLia de Jairo, chefe da sinagoga; consiste em entender qual é o significado
24) Lc 17,11-19: Jesus cura dez leprosos; do milagre para o mundo antigo e para nós,
1) Js 10,12-14: Josué intervém e pede que 25) Jo 2,1-11: Jesus in- os pós-modernos.
Deus pare o sol, em Gabaão, e a lua, no tervém na natureza, Na Antiguidade e até
Vale de Ayalon, o que, de fato, ocorre; mudando água em Os milagres realizados a Idade Média, o mundo
2) Jz 6,36-40: o pelego (ou velo) de vinho; por Jesus são sinais vi- era compreendido em
Gedeão permanece seco debaixo do 26) Jo 11,38-44: Jesus síveis da ação e da expe- três andares, a Terra era
sereno; ressuscita seu amigo riência de deus na vida apoiada por colunas e
3) 1 Sm 1: Ana, a estéril, concebe Sa- Lázaro, em Betânia; estabelecida sobre as
daqueles que estavam
muel, aquele que se tornaria profeta 27) At 5,12-16: os após- águas inferiores e abaixo
e último dos juízes; tolos curam enfer- próximos d’ele. isso é um das águas superiores.
4) 1 Rs 17,17-24: o profeta Elias ressus- mos e endemoni- milagre! O extraordinário Acima das águas supe-
cita o filho de uma viúva; nhados; é consequência e não riores, viviam os deuses
5) 2 Rs 5,1-20: o profeta Eliseu cura a 28) At 9,36-43: Pedro o mais importante. Já e seres celestes. Nas
lepra de Naamã, chefe do exército ressuscita Tabita, inferiores, viviam, por
os milagres do Primeiro
de Aram; uma discípula de- outro lado, os poderes
6) Dn 3: três jovens e devotos judeus, votada aos pobres.3 testamento e sua relação diabólicos e os mortos
após serem acusados de não adorar a com os do segundo só po- em uma mansão, cha-
estátua de ouro erigida por Nabucodo- Os exemplos de dem ser compreendidos a mada de Hades ou Xeol.4
nosor, rei da Babilônia, são jogados em milagres apresentados partir de uma diferença Os poderes bons de
uma fornalha e salvos sem se queimar; demonstram que Deus Deus e os maus espíritos
7) Mt 8,1-4: Jesus cura um leproso; intervém na natureza,
fundamental: em Jesus, sempre interferiam na
8) Mt 8,5-11: Jesus cura o servo de um mudando o seu curso deus realiza de forma vida humana. Isso era
centurião; natural: Ele para o sol, plena e definitiva a sua considerado normal por
9) Mt 8,14-15: Jesus cura a sogra de Pedro; não deixa o fogo queimar ação salvífica em favor todos. Deus e deuses
10) Mt 8,16-17: Jesus expulsa espíritos e pessoas que estão em do ser humano podiam intervir quando
cura enfermos; contato com Ele e permite julgassem necessário.
11) Mt 8,23-27: Jesus acalma a tem- que a estéril conceba. Para o israelita, essa
pestade; Jesus, por ser Enviado de Deus, também visão foi mudando. Antes de o povo de
12) Mt 8,28-34: Jesus expulsa espíritos de muda a natureza de substâncias e elementos: Israel passar a ter uma relação privile-
dois endemoninhados e os coloca em multiplica pães, transforma água em vinho, giada com Deus-Javé na sua história, a
uma manada de porcos, em Gerasa; acalma o mar bravio, bem como ressuscita relação com o sagrado se dava por meio
13) Mt 9,1-8: Jesus cura um paralítico; pessoas, cura enfermidades, expulsa demô- da natureza, a qual era vista como uma
14) Mt 9,18-26: Jesus cura uma hemorrá- nios. Os apóstolos, por serem discípulos de constante ameaça. Não alcançando o do-
gica e ressuscita a filha de um chefe; Jesus, recebem d’Ele o poder miraculoso de mínio da natureza, o ser humano via-se
15) Mt 9,27-31: Jesus cura dois cegos; curar, ressuscitar e expulsar demônios, assim no meio de uma angústia existencial.
16) Mt 9,32-34: Jesus expulsa o demônio como já haviam feito os profetas da Primeira Para se proteger, vivia seguindo os ci-
de um endemoninhado mudo; Aliança: Elias e Eliseu. clos da natureza, ora divinizando-a, ora
17) Mt 14,13-21: Jesus multiplica cinco cultuando os deuses bons, a fim de que
pães e dois peixes, modificando a DifERENça ENTRE MiLagRES eles pudessem manter a ordem e a vida
natureza dessas substâncias; PaRa OS aNTigOS E PaRa NóS humana. Nesse sentido, não somente em
18) Mc 1,23-27: Jesus expulsa um espí- Israel, surgem vários mitos da criação. O
rito mau; Para compreender a diferença na con- deus bom vence as forças caóticas e impõe
19) Mc 1,29-31: Jesus cura a sogra de cepção de milagres no mundo antigo e hoje, a ordem e o ritmo da criação.
Pedro de uma febre; retomemos a nossa definição de milagre Diante do exposto anteriormente,
20) Mc 3,1-6: Jesus cura um homem cuja (vocábulo latino miraculu), do qual provêm podemos compreender a diferença funda-
mão estava paralisada; os verbos admirar e maravilhar-se. Quem, no mental entre milagre para nós hoje e para

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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24 Julho/agosto de 2014
Entendendo a Bíblia
os antigos. Milagre na antiguidade con- acontecimento é o que caracteriza um Deus na vida daqueles que estavam
sistia na experiência do divino. “Havia milagre. Vamos compreender melhor próximos d’Ele. isso é um milagre! O
um acontecimento em que o elemento tudo isso, quando analisarmos os mila- extraordinário é consequência e não
divino se manifestava mais fortemente gres de Jesus. Ele não se dizia Deus, mas o mais importante. Já os milagres do
do que em outros, e onde os pontos de não cansava de admoestar: “ide contar Primeiro Testamento e sua relação
vista da normalidade e da excepcionali- a João o que estais vendo e ouvindo: os com os do Segundo só podem ser
dade podiam desempenhar certo papel, cegos recuperam a vista, os coxos andam, compreendidos a partir de uma di-
mas este não era o único elemento de- os leprosos são purificados, os surdos ou- ferença fundamental: em Jesus, Deus
cisivo. Para classificar algum fato como vem, os mortos ressuscitam e aos pobres realiza de forma plena e definitiva
milagre, não se tratava, em primeira é anunciado o Evangelho” (Lc 7,22); “Vai a Sua ação salvífica em favor do ser
linha, de determinar o seu caráter ex- mostrar-te ao sacerdote” (Mt 8,4b). humano. a ressurreição e glorifica-
traordinário, nem mesmo o grau exato ção de Cristo é a resposta irrevogável
do que seria possível ou impossível em OS MiLagRES DE JESUS e definitiva de Deus. a consumação
termos humanos, mas sim de sentir a do ser humano e de sua história já se
presença e a ação da divindade e de Os milagres realizados por Jesus são realizou, germinalmente, em Cristo,
seus poderes muito mais intensamente sinais visíveis da ação e da experiência de e a vitória definitiva sobre todas as
do que em outras ocasiões”.5 forças que ameaçavam a vida, vitória
Em outras palavras, o caráter excep- da qual a ação de Jesus foi sinal, já
cional e a ação de Deus constituem a evi- aconteceu.6 Desse modo, essa visão
dência de um milagre. No entanto, para do Segundo Testamento acrescenta
nós, pesa muito mais a excepcionalidade, um elemento novo ao sentido do
o extraordinário ocorrido em determina- milagre: Deus age na história e
do fato e, não necessariamente, a ação de realiza definitivamente a Salvação
Deus. Para os antigos, Deus intervir na em Jesus, já que, no mundo antigo,
natureza era normal. Para os modernos, como vimos, o milagre se pautava
toda a ação da natureza é previsível e pela ação do divino.
controlável. Para os antigos, a presença
e a manifestação da divindade em
nOtas
1
SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Prosseguir
o caminho com as comunidades judaico-
-cristãs: uma leitura do Evangelho de Mateus
feita pelo Cebi-MG. São Leopoldo: Oikos-
-Cebi, 2014. p. 54-58.
2
DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Leia a
Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola,
2007. p. 47.
3
Outros exemplos e citações de milagres na
Bíblia são: Jó 9,8; Mt 12,10-12.22-32; Mc
1,40-45; 2,1-12; 3,1-6; 5,21-43; 11,14-23;
Lc 7,11-17; 11,14-23; 13,10-17; 14,1-6; Jo
6,16-21; At 3,1-10; 4,31; 5,1-11.17-21;
9,32-43; 12,1-19; 16,26; Ap 11,11; 16.
4
Para compreender a diferença entre inferno
e infernos que decorre dessa visão do mun-
do inferior, veja nosso livro: O outro Pedro
e a outra Madalena segundo os apócrifos. 4
ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 81-87.
5
WEISER, Alfons. O que é o milagre na Bíblia:
para você entender os relatos dos Evange-
lhos. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 16-17.
6
Idem, p. 21.

Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
Arquivo pessoal

Escritor e mestre em
Ciências Bíblicas pelo
Pontifício Instituto
Bíblico de Roma
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ENTENDENDO A BÍBLIA

evangelho de Mateus

Milagres
de intervenção na natureza,
ressurreição e exorcisMo

E
m Mateus 8–10, somente um e o mar. A bonança volta a reinar.
milagre em relação à natureza Os discípulos perguntam-se sobre o
é relatado: o da tempestade poder de Jesus, uma vez que até os
acalmada (Mt 8,23-27).1 Tra- ventos e o mar Lhe obedecem.
ta-se do sétimo milagre de Jesus, O contexto é o mar, lugar de pavor
em uma sequência de dez. Ele entra e medo. Os antigos, como não tinham
em um barco com os discípulos e, en- domínio sobre o mar, pensavam que
quanto dormia, o mar ficou revolto. Os vinha dele o Leviatã, a força do mal.
discípulos, apavorados, acordam-nO e Por isso, Jesus trava uma luta de poder
Lhe imploram a salvação, pois es- com essa força representada pelo mar.
tavam perecendo. Jesus afirma que De pé, isto é, com o poder de ressus-
eles têm medo, pois são fracos na citado, Ele conjura os ventos e o mar,
fé. Então, em pé, conjura os ventos os quais Lhe obedecem. Nisso está o

O OMMe n
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26 Entendendo a Bíblia
Outubro
Outubro de
de 2014
2014
fúnebres já estavam sendo realiza-

Cristo no Mar da Galileia (1854), eugène delacroix


dos. Jesus pede que todos saiam e
afirma que a menina estava apenas
dormindo, não morta. Ele entra na
casa, toma a menina pela mão e ela
se levanta. E a notícia se espalha
por toda a região. Mais uma vez, a
fé é o fator preponderante para a
realização do milagre. Para quem
crê, a morte é apenas um sono.2
Quem adere ao projeto de Jesus não
está morto, mas sempre em pé e
caminhando.

Milagres de exorcisMo –
dois possessos de gadara e
uM endeMoninhado Mudo

Em Mateus 8,28-33 e 9,32-34,


Jesus realiza, três vezes, o exorcismo
em favor das pessoas sofridas que
eram atormentadas por espíritos
e viviam isoladas da sociedade. O
nono e o décimo milagres de Jesus
referem-se ao exorcismo ou ao mila-
gre da expulsão de demônios. Jesus
estava na cidade de Gadara, quando
vêm a Seu encontro dois endemoni-
nhados que saíam dos túmulos. Eles
reconhecem Jesus e Seu poder de
expulsar os demônios. Esses homens
diziam: “Que queres de nós, Filho de
Deus? Vieste nos atormentar antes
do tempo?” E pediram que Jesus,
caso fosse expulsá-los, os colocasse
na manada de porcos. E assim Ele
procede. Os porcos atiraram-se de
um precipício no mar e morreram
afogados. Aqueles que apascentavam
os porcos fugiram e contaram tudo
aos compatriotas. A cidade inteira
foi ao encontro de Jesus e exigiu que
milagre: Deus, que criou o mar, tem Milagre de ressurreição – Ele deixasse o território. Em outra
poder sobre ele. Jesus age como Deus Jesus ressuscita a filha de Jairo ocasião, trouxeram-Lhe um ende-
salvador, atendendo ao pedido dos dis- moninhado mudo. Jesus expulsou
cípulos. No mar da vida, encontramos Em Mateus 8,10, o único milagre o demônio e o ex-possesso voltou a
muitas dificuldades. Sem fé podemos de ressurreição é realizado em favor falar. A multidão que presenciou o
afundar, mas quem crê está salvo. de uma menina. É o oitavo milagre fato se pôs a dizer: “Nunca se viu
O barco é a comunidade, que sofre de Jesus (cf. Mt 9,18-26). Um chefe coisa semelhante em Israel”. Já os
tormentos de todos os lados, mas que da sinagoga, chamado Jairo (cf. Mc fariseus afirmaram que Ele fazia isso
precisa ter fé. Dessa comunidade, fa- 5,22), prostra-se aos pés de Jesus e por meio do príncipe dos demônios.
zem parte os discípulos que entram no Lhe pede que imponha a mão sobre a Nos dois episódios, há alguns
barco com Jesus e também os ‘homens’ filha que acabara de morrer, de modo detalhes importantes: a multidão
(v. 27) – seres humanos –, que ficam que ela pudesse voltar a viver. Jesus que não acredita e pede que Jesus
espantados com a atitude de Jesus. acompanha-o até sua casa. Os ritos saia de seu país está em contraposição

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ENTENDENDO A BÍBLIA

à multidão que reconhece que em


Israel nunca havia acontecido coisa
semelhante; dois endemoninhados que

A filha de Jairo, 1996, Daniel Bonnell


reconhecem com a Palavra que Jesus é
o Filho de Deus, e outro que era mudo.
Vale citar que Gadara ficava cerca de
nove quilômetros do Mar da Galileia;
logo, era quase impossível os porcos
fazerem uma corrida tão longa. Para
os judeus, esses animais representam
a impureza e o mar, o lugar do mal.
Assim, faz sentido os porcos terem se
precipitado no mar. Impuro procura o
lugar dos impuros. Havia também o
costume de identificar o Império Ro-
mano com os porcos, por serem ambos
impuros. Porcos morrendo no mar era
o que a resistência judaica esperava que
acontecesse com os opressores.3
Os demônios expulsos em Gadara
sabiam que eles seriam julgados no fim
dos tempos, mas reconhecem que, com
a presença do Filho de Deus na Terra,
isso iria acontecer naquele momento. O
exorcismo de Jesus anteciparia a vitória
final. Os endemoninhados viviam no
mais completo abandono da socieda-
de. Os dois de Gadara viviam entre os
túmulos, onde estão os mortos, longe
da vida. O milagre do exorcismo não
reside no extraordinário da expulsão do
espírito mau, mas no fato da reaproxi-
mação dos desprezados da sociedade,
chamados de endemoninhados, para Milagre – sinal de autoridade de expressão de Seu poder. Jesus
o convívio e a participação no reino e identidade de Jesus não fazia milagres a bel-prazer, mas
pregado por Jesus. No caso, os espíritos somente quando alguém, de fé, soli-
que estavam neles saíram e foram para Os milagres presentes no evangelho citava a Sua intervenção.
o mar, de onde nunca deveriam ter de Mateus, entendidos em seu contexto,
nOtas
saído. Desse modo, ambos voltaram a demonstram que tais acontecimentos
viver na sociedade. Já o endemoninha- não se tratam simplesmente de fatos 1
SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Prosseguir
do mudo volta a ter o direito de opinar, extraordinários, mas da ação de Deus o caminho com as comunidades judaico-
-cristãs: uma leitura do evangelho de Mateus
de poder falar. que modifica a realidade. O foco está em feita pelo Cebi-MG. São Leopoldo: Oikos;
Jesus assemelha-se com os exor- Deus, não no milagre em si. Jesus tinha Minas Gerais: Cebi, 2014. p. 58-63.
cistas de seu tempo. No entanto, Ele consciência da importância de expulsar
2
PIKAZA, Javier. A teologia de Mateus. 2. ed.
São Paulo: Paulinas, 1984. p. 59.
tinha, em relação a eles, uma diferença espíritos, de curar enfermos, de intervir 3
PAGOLA, José Antônio. Jesus: aproximação
essencial: não fazia uso de objetos, na natureza e de ressuscitar mortos. histórica. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 208.
nem de amuletos, nem invocava uma Esses milagres demonstravam Sua
4
Ibidem, p. 209-210.
divindade para expulsar os demônios. A identidade de Filho de Deus com poder
força de Sua palavra e de Sua presença recebido do Pai para anunciar o Reino,
Frei Jacir de
expulsava os maus espíritos. Jesus des- que exclui o sofrimento e a desgraça Freitas Faria, OFM
trói a identidade demoníaca da pessoa como condição de vida estabelecida, e
Arquivo pessoal

Escritor e mestre em
e reconstrói nela uma nova identidade, propõe a misericórdia como caminho Ciências Bíblicas pelo
transmitindo-lhe a força que cura.4 para a vitória final. As curas realizadas Pontifício Instituto
Nisso reside o sentido do milagre da por Jesus são sinal de misericórdia, de Bíblico de Roma
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expulsão de “demônios”. acolhimento e, não necessariamente,

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
56
28 Outubro de 2014
Entendendo a Bíblia
ENTENDENDO A BÍBLIA

EvangElhos
apócrifos
A Santíssima mãe de Deus, século VI, autor desconhecido

marianos (Parte 2)
O OMMe n
e ns saagge ei irrOO ddee ssaannttOO aann tt ôô n i O
O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
52 Janeiro/Fevereiro
Janeiro/Fevereiro de
de 2015
2015
Entendendo a Bíblia 29
A
história de Maria é contata da virgem Maria indica-nos que se no conteúdo, menciona-se que ela
em nada menos que dezes- trata, possivelmente, de uma obra concebeu do Espírito santo pela ore-
seis evangelhos apócrifos. da idade Média ou ainda, posterior, lha. Maria é considerada a nova Eva,
Dando continuidade ao quando a devoção mariana estava a nova mãe da humanidade. É Eva
artigo anterior, apresentamos os em pleno vigor. a ligação desse mesma quem dá a notícia a salomé:
outros evangelhos apócrifos que livro com o escrito da peregrina “te dou uma boa e feliz notícia: uma
mencionam Maria. Etéria, se é que, de fato ocorreu, é terna donzela acaba de trazer um
meramente patronímico. filho ao mundo sem ter conhecido
EvangElho sEcrEto varão algum” (9,3). também são
Da virgEM Maria EvangElho DE gaMaliEl relatados o nascimento de Jesus, a
visita dos magos e a reação de hero-
a história deste apócrifo está Desse evangelho temos um ma- des. Jesus menino faz travessuras. o
ligada à espanhola Etéria, que ficou nuscrito do século v. o original seria evangelho termina com um diálogo
famosa no final do século iv e início anterior a isso. sua autoria é atribuí- entre Jesus e dois soldados sobre a
do v, ao desafiar sua época, fazendo da a gamaliel (?-50), doutor da lei, sua origem e de Deus.
uma peregrinação à terra santa. Ela mestre de Paulo (5-67) e convertido
escreveu, em latim, o Itinerarium ao cristianismo. o tema tratado é a MulhErEs no túMulo
Egeriae, contendo suas impressões de Paixão, Morte e ressurreição de Jesus, E aParição a Maria
viagem. Este livro foi muito difundido com destaque para Maria, que tem
na época, mas ela acabou perdendo papel fundamental nos últimos acon- trata-se de dois fragmentos de
os originais, quando o mosteiro onde tecimentos da vida e morte d’Ele. João textos escritos em língua copta,
vivia foi destruído. alguns manus- roga a Maria, chamada de virgem, em com o caráter eminentemente litúr-
critos da obra de Etéria, que haviam favor de Pedro (1 a.c.-67 d.c.), que ha- gico, narrando a ida das mulheres
sido distribuídos em outras partes da via negado Jesus. Quando Jesus morre, ao túmulo e a aparição de Jesus
Europa, foram conservados. Em 1884, o povo chora. Pôncio Pilatos (?-37) e o ressuscitado a Maria. sua autoria é
um deles foi encontrado na itália. ou- capitão romano se entristecem. Maria difícil de ser indicada. a datação é
tro, mais recentemente no Principado chora por não poder ir ao túmulo. os provavelmente do século v ao vii.
das astúrias (Espanha). o que chama sacerdotes romanos ficam tristes com livro de são João, arcebispo de
a atenção é que Etéria teria colocado a ressurreição de Jesus. Maria encon- tessalônica, datado do ano 610:
como apêndice a sua obra original o tra-se com Jesus ressuscitado, que a ele está organizado em forma de
Evangelho apócrifo da virgem Maria, conforta e a envia para dar a notícia homilia e tem como objetivo levar
que recebeu de presente, em Belém, aos apóstolos. Ele aparece a Pilatos e aos moradores de tessalônica,
de um monge grego, companheiro de o conforta. Ele interroga os soldados. diocese do arcebispo são João, a
são Jerônimo (347-420). tal apócrifo Diante do tumulo vazio e as faixas, celebrar a festa da assunção de
teria sido citado por alguns padres pri- Pilatos converte-se ao cristianismo e Maria, sem os exageros propostos
mitivos da igreja, sem mesmo terem manda saquear as sinagogas. em outros livros. Esse livro exer-
a certeza de sua existência. o texto já ceu muita influência na devoção
estava traduzido para o latim. Etéria EvangElho áraBE Da infância mariana nos séculos subsequentes,
também duvidou da veracidade do sobretudo na idade Média.
livro, mas resolveu divulgá-lo por acre- Datado no início do século vi, esse
ditar que se trataria de uma obra de evangelho é a leitura do mundo árabe trânsito Da BEM-avEnturaDa
piedade e grande proveito espiritual. sobre Maria. além das peripécias e dos virgEM Maria, Do PsEuDo
Posteriormente, esse texto apócrifo foi milagres do Menino Jesus no Egito, a JosÉ DE ariMatEia
extraído da obra de Etéria por mon- narrativa apresenta outros elementos
ges. trata-se um livro que apresenta da vida mariana, sobretudo seu papel Esse livro, atribuído erroneamen-
a história de Maria como mãe. Ela de mediadora. Jesus afirma ser o filho te a José de arimateia, relata a morte
narra para João Evangelista (10-103) de Deus e o verbo concebido conforme e a assunção de Maria. os códices
sua história de mãe, sua relação com o o anúncio do anjo gabriel. Maria é usados para o texto são dos séculos
filho, Jesus, e sua experiência de Deus. chamada de virgem. Xiii e Xiv. trata-se de um livro
suas palavras são carregadas de poesia apócrifo bem recente. na narrativa,
e de ternura de mãe para com seu fi- EvangElho arMênio Maria chama a atenção de João por
lho, homem e Deus, expressão máxima Da infância tê-la abandonado, apesar de Jesus
do amor divino e de Maria, sua mãe, ter lhe pedido para cuidar dela. o
que d’Ele se tornou apóstola. o con- Esse apócrifo do século vi traz texto conta também a assunção de
teúdo literário do Evangelho apócrifo pormenores da concepção de Maria. Maria. Destaca-se a figura de tomé

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
30 Entendendo a Bíblia
Janeiro/Fevereiro dde
Janeiro/Fevereiro e 22015
015 53
ENTENDENDO A BÍBLIA

nome. A tradição apócrifa mariana


conservou o lado mãe de Maria, sua vir-
gindade perpétua e seu apostolado, mas
também e, infelizmente, a resignação.
Assim como Maria sofreu, as mulheres
devem suportar seu sofrimento.
Maria é a Virgem, Nossa Senhora
e Senhora mãe de Deus e de nossa
salvação, que é o Senhor Jesus Cristo.
Sendo assunta aos céus, ela foi a pri-
meira mortal que ressuscitou e, com
isso, todo cristão tem a certeza de que
também ressuscitará. Vários dogmas da
Santa Ana ensinando Maria a ler, c. 1335, autor desconhecido

Igreja Católica buscaram inspiração na


tradição apócrifa. Podemos enumerar
vários deles, como: Virgindade de Ma-
ria, Imaculada Conceição, Assunção de
Maria. É também de origem apócrifa*
a profissão de fé de que, depois de
crucificado, morto e sepultado, Cristo
desceu à mansão dos mortos. Um dog-
ma de fé para ser declarado, primeiro é
transmitido oralmente por muito tempo,
isto é, suficientemente manifestado. A
Igreja Católica simplesmente confirma a
tradição de tal devoção como “verdade
de fé revelada por Deus” e que pode ser
seguida como doutrina. O interessante
nessa questão é que a Igreja rejeitou os
apócrifos, mas fez uso de muitos de seus
(?-72), que não presenciou a morte de hegemônico fomentaram a devoção ensinamentos nos dogmas e na tradição
Maria, chegando somente no momento mariana, apresentando-a como mulher de fé. Com belíssimas narrativas literá-
da assunção, vista por ele no Monte das pura, virgem e santa. Os apócrifos são rias sobre Maria, os primeiros séculos do
Oliveiras. No sepulcro, ele, depois, desa- mais contundentes que os canônicos, cristianismo imprimiram uma devoção
fia os companheiros apóstolos, dizendo ao defenderem sua virgindade antes, a ela, que perdura em nossos dias na
que Maria não estava no sepulcro. Mais durante e depois do parto. Maria foi Igreja oficial e na religiosidade popular.
uma vez, sua incredulidade é testada. o modelo de mulher, que manteve a A devoção popular criou uma piedade
Esse apócrifo contribuiu sobremaneira virgindade durante toda a sua vida. O mariana, que foi além da orientação do
para o incremento, na Idade Média, na próprio marido, José, encarregou-se de cristianismo hegemônico.
devoção a Maria, mãe e intercessora conservar essa castidade.
junto a Jesus para a humanidade. Várias tradições populares e ca-
nOta
tequéticas sobre Maria aparecem nos
conclusão apócrifos, tais como: coroação de Maria; * Cf. nosso comentário ao apócrifo que trata
a palma de Nossa Senhora; a Assunção desse tema em: O outro Pedro e a outra
O retrato de Maria que emerge de Maria; a virgindade de Maria; a con- Madalena segundo os apócrifos: uma
leitura de gênero. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
dos evangelhos apócrifos é o de uma sagração a Maria; sua vida em Nazaré; 2004. p. 76-102.
mulher preciosa, mãe e apóstola de seu os nomes de seus pais, Joaquim e Ana;
Filho. Mulher liderança. Mulher mãe de a vara do idoso José que floriu ao ser es-
um filho especial. Mulher ternura. Mu- colhido para ser seu marido; a dormição
lher escolhida por Deus para ser a mãe e não morte de Virgem Maria; a viagem Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
de seu Filho. Mulher reconduzida pelo de Maria, José e o Menino Jesus para o
Arquivo pessoal

Escritor e mestre em
Filho à morada de Deus. Mulher pura, Egito; a presença de Maria aos pés de Ciências Bíblicas pelo
sem pecado, santa e consagrada a Deus. Jesus quando Ele morre. Daí a devoção Pontifício Instituto
Diante da postura negativa em relação a Nossa Senhora da Boa Morte, cantada Bíblico de Roma
www.bibliaeapocrifos.com.br
à mulher, o cristianismo apócrifo e o nas irmandades que levam esse mesmo

O MensageirO de santO antôniO


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54 Janeiro/Fevereiro de 2015
Entendendo a Bíblia 31
ENTENDENDO A BÍBLIA

evangelho de Mateus

Discurso Da Missão
Doze Discípulos escolhiDos e enviaDos
coMo Missionários Do reino

O
envio em missão dos doze discípulos
em Mateus 10,1-42 é sustentado pela
força dos milagres realizados por
Jesus. Missão é um substantivo ori-
ginário do latim (mittere) e significa ‘enviar’.1 Daí
missus (particípio passado de mittere), que quer
dizer ‘enviado’. Jesus escolhe e envia discípulos. “Segue-me!” (Mt 9,9), diz-lhe o Mestre. Sendo
A comunidade que tem como patrono o apóstolo questionado pelos fariseus sobre o motivo pelo
Mateus dá um destaque especial ao chamamento. qual Ele se acercava de publicanos e pecadores,
Ele, que era um pecador público, um cobrador Jesus responde que o Seu chamado é para pe-
de impostos, é visto por Jesus exercendo seu cadores e não para justos, e que Ele veio trazer
trabalho, sendo chamado por Ele ao discipulado. misericórdia e não sacrifício (cf. Mt 9,10-13).

O OMMe n
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32 Entendendo a Bíblia
novembro
novembro de
de 2014
2014
JESuS EnviA oS DozE EM c) proclamar que o Reino está apóstolos. A comunidade entende que
MiSSão E lhES Dá SuA MESMA próximo; a missão é voltada para a casa de Israel,
AutoriDADE (cf. Mt 10,1-16) d) curar os doentes; os destinatários da eleição divina. Isso
e) ressuscitar os mortos; será mudado posteriormente. Proclamar
Após os relatos dos dez milagres, a co- f) purificar os leprosos; o Reino, a paz e ser prudente e manso
munidade de Mateus enumerou os nomes g) expulsar os demônios; fazem parte da missão que parece ser
dos doze apóstolos escolhidos por Jesus h) ir de modo simples, sem ouro, sem simples, mas não é. Ela tem conse-
e enviados por Ele com a mesma autori- prata, entre outros exemplos. E não quências e atitudes que exigem muito
dade de realizar curas e milagres (cf. Mt receber salário pelo serviço; do escolhido.
10,1-4). Em seguida (cf. Mt 10,5-16), a i) levar a paz às casas e às cidades;
comunidade lembrou as recomendações j) ser prudente como as serpentes e tEr conSciênciA DA
que o Mestre lhe havia feito. São elas: sem malícia como as pombas. pErSEguição (cf. Mt 10,17-25)

a) não ir aos gentios nem entrar na São dez recomendações importantes A perseguição é a consequência natu-
cidade dos samaritanos; para o trabalho evangelizador e mis- ral na vida de um missionário. Por causa
b) ir ao encontro das ovelhas perdidas sionário. Os milagres que Jesus fazia da palavra anunciada, os discípulos serão
da casa de Israel; poderiam também ser realizados pelos levados aos tribunais, mas Jesus garante

Cristo pregando, 1892, enrique simonet

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33
ENTENDENDO A BÍBLIA

que o Espírito do Pai falará por cada ter de demonstrar mais dedicação a um, ter de deixar que os mortos enterrem seus
um, sendo o Seu defensor. O discípulo é em detrimento do outro. O discípulo mortos (cf. Mt 8,21-22).
odiado por causa do nome de Jesus, mas terá de fazer opção no seguimento, ser
ele deve perseverar na fé até o fim, para desapegado de tudo, por causa de Jesus. A coMuniDADE conclui
encontrar a Salvação. Caso uma cidade A comunidade de Mateus explicou isso o DiScurSo DA MiSSão
persiga o discípulo, ele deve ir para muito bem, quando usou o comparativo (cf. Mt 10,40-42)
outra localidade, mas nunca desistir de ‘amar mais’ (cf. Mt 10,37).
percorrer as cidades de Israel, preparando Nessa mesma linha de pensamento, O discurso apostólico da comunidade
a vinda do Filho do Homem. O discípulo está a ação de carregar a própria cruz, que de Mateus termina dizendo que quem
não pode ser superior ao mestre. pode significar o martírio e os sofrimentos acolhe a proposta de Jesus está acolhen-
advindos da cruz pesada da vida. Até do Deus, o Pai, em sua vida. Quem acolhe
não tEr MEDo E fAlAr nisso, o discípulo tem de ter clareza no o discípulo, o missionário enviado por
AbErtAMEntE (cf. Mt 10,26-33) seguimento. A lógica da cruz, não como ele, seja como profeta, seja como justo,
sofrimento resignado, mas como motiva- seja até alguém desejoso somente de um
O discípulo é convocado a não ter ção para a busca da vida para todos, faz copo de água fria, receberá a recompen-
medo de nada, falar abertamente, pro- parte do projeto missionário do Reino. sa divina (cf. Mt 10,40-42).
clamar à luz do dia e sobre os telhados. Jesus não morreu na cruz porque quis,
Não temer os que matam o corpo, mas mas como consequência de Sua ação. Deus “A igrEJA DEvE SAir
não podem matar a alma. Deus tudo não preparou a cruz para Jesus. Pena que DA SAcriStiA.”
vê e de tudo cuida e dispõe. Quem se o cristianismo, historicamente, identificou
declarar diante dos homens por Jesus, a cruz com o sofrimento e anunciou mais A missão evangelizadora proposta por
Ele mesmo o defenderá diante do Pai o Jesus morto que o Ressuscitado. A cruz Jesus continua como desafio para nós,
no Juízo Final, mas, se agir de modo no fim do caminho, entendida como re- cristãos. O papa Francisco (1936-) não se
contrário, não terá a Sua defesa. dentora, exige do discípulo não ter onde
reclinar a cabeça (cf. Mt 8,20) e até mesmo
o EnSinAMEnto DE JESuS
trAz A ESpADA E não A pAz
(cf. Mt 10,34-36)

A consequência lógica dos fatos de


não ter medo e falar abertamente é
situação de discórdia criada entre as
pessoas, sobretudo entre familiares, os
quais se tornam inimigos do apóstolo
do Evangelho. O ensinamento de Jesus
traz divisões, espada, e não paz.

rEnunciAr à fAMíliA E toMAr


A cruz (cf. Mt 10,37-39)

A lógica do caminho missionário


proposto por Jesus soa um tanto absurda:
é preciso odiar pai, mãe, esposa, filhos,
irmãos, irmãs e a própria vida; carregar
a própria cruz; renunciar a tudo que
possui; perder a vida por causa d’Ele para
encontrá-la. Não amar pai, mãe e filhos
mais que a Jesus. Tomar a própria cruz
e sair em missão. Em relação ao amor
familiar, a comunidade de Lucas (cf. Lc
14,26) acrescentou o verbo ‘odiar’, o qual
não pode ser entendido como rejeição
aos pais, à mulher e aos filhos. Um judeu
nunca ensinaria ódio aos familiares, base
de sua vida e de sua fé. Ódio aqui significa

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Novembro
Entendendo a Bíblia
cansa de dizer que a Igreja deve sair da Em um passado longínquo, a Igreja dupla: deve haver espaço para dar e
sacristia, ir para as ruas. Deixar de lado a Católica enviou missionários além-mar, receber, cultivando um diálogo inter-reli-
ostentação, a badalação e ir ao encontro para levar a fé e a salvação anunciada por gioso. Todas as comunidades e as pessoas
do pobre e do sofredor. Aliviar o sofri- Jesus. Nosso país é fruto dessa intrépida são chamadas a serem missionárias, no
mento é anunciar que o Reino já chegou. ação que chegou às terras brasileiras com sentido de anunciar o Evangelho, mesmo
Jesus sabia que não seria capaz de aliviar a cruz e a espada. Com o Evangelho a sem nunca saírem de suas cidades. Assu-
todo o sofrimento humano, mas tinha bordo, o que desembarcava mesmo era a mindo atitudes missionárias no próprio
consciência de que a Sua ação libertadora cultura cristã europeia. Por outro lado, é ambiente geográfico, por meio da prega-
transforma as pessoas e inaugura o Reino. difícil desvencilhar uma da outra. Aos na- ção e da vivência dos ensinamentos de
E esse é o papel do missionário. O missio- tivos restava uma única opção: aceitar ou Jesus, estarão colaborando com a missão
nário há de se perguntar sempre: como ser aceitar a fé e a cultura dos missionários. do Reino. Continua o desafio de evangeli-
testemunha da fé para aqueles que nunca Quando os nossos indígenas já estavam zar no além-mar, mas de modo diferente.
ouviram falar de Jesus? É possível ser massacrados, os negros foram trazidos da A missão proposta por Jesus e que con-
missionário para aqueles que já se dizem África para trabalharem e serem domesti- tinua a nos incomodar, desafiando nosso
cristãos, mas que não vivem conforme o cados na fé do Novo Mundo. O princípio modo de ser cristão nos dias de hoje, é
Evangelho? Que relação existe entre justi- missionário, o combustível que movia os de anunciar e viver o Reino de Deus, que,
ça e missão? Como agir com misericórdia evangelizadores, era a certeza de que a como vimos na proposta da comunidade
no trabalho missionário? Quem são os semente do Verbo não estava presente de Mateus, consiste em ir eliminando o
missionários de hoje? Onde eles vivem? A nas culturas dominadas. mal, o sofrimento, em vivenciar a miseri-
essas duas últimas perguntas, uns poderão Em nossos dias, esse modo de evange- córdia divina, em acolher na sociedade os

Jesus e seus discípulos, autor desconhecido


responder: “Conheço um padre que veio lizar não é mais compatível. É consenso excluídos. Desse modo, um mundo novo
para o Brasil como missionário”. Outros que toda cultura tem de ser valorizada. se instaura como prefiguração daquele
ainda dirão: “Lugar de missão é na África”. Além disso, evangelização é via de mão que há de vir. Assim seja!

reFerÊnCia
1
SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Prosseguir
o caminho com as comunidades judaico-
-cristãs: uma leitura do evangelho de Mateus
feita pelo Cebi-MG. São Leopoldo: Oikos;
Minas Gerais: Cebi, 2014. p. 58-63.

Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
Arquivo pessoal

Escritor e mestre em
Ciências Bíblicas pelo
Pontifício Instituto
Bíblico de Roma
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novembro d e 2 0 1 4
Novembro
Entendendo a Bíblia 59
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ENTENDENDO A BÍBLIA

EvangElhos
apócrifos
Theotokos de Vladimir, século Xii, autor desconhecido

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dezembro
marianos
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M
aria, a mãe! Mãe, a Maria! a) EVAngElho DoS hEBrEuS.

Nossa Senhora da Grande Panagia, século XIII, autor desconhecido


Mãe de Jesus. Mãe dos Escrito provavelmente no Egito, en-
cristãos. Mãe de Deus e tre os anos 100 a 120, há somente
nossa. Como Maria viveu? fragmentos desse evangelho. Seu
Qual é sua história? Podemos reconsti- conteúdo foi muito difundido entre
tuir a história de Maria? Se tomarmos os cristãos. Seu conteúdo é semelhan-
os Evangelhos Canônicos, isto é, os te ao do evangelho de Mateus, mas
oficiais, com certeza teremos muitos com um forte teor gnóstico. Maria é
dados sobre a atuação desta mulher apresentada como a força que desceu
ímpar na história do cristianismo. do céu. Jesus refere-se ao Espírito
Mas, e se considerarmos os Evangelhos como “minha Mãe, o Espírito”.
Apócrifos, aqueles que não entraram
na Bíblia? Poderemos reconstituir a b) ProtoEVAngElho DE tIAgo.
história da vida de Maria? Estamos Como indica o título desse evangelho,
em um terreno novo, o dos apócrifos. sua autoria é atribuída ao apóstolo
Verdade ou não, eles falam de Maria, tiago, com certeza, o Menor, que
sendo mais de uma dezena; esses fora o primeiro bispo de Jerusalém,
textos nos trazem luzes novas, com- também conhecido como o “Irmão do
plementando nossa fé mariana. Fé, Senhor”. Possivelmente, é uma obra
na maioria das vezes, transmitida na do ano 180, mais precisamente entre
oralidade, mas também transformada 150 e 200. Foi escrita em Alexandria,
em dogma pela Igreja Católica. Eu por um judeu-cristão, que a compôs
existem vários livros
ousaria dizer: uma ortodoxia mariana em grego. Este apócrifo ressalta o
popular, para além do oficial. Antes apócrifos que contam papel de Maria como mãe de Jesus e
de apresentar os apócrifos marianos, a história de Maria. alguns virgem. Maria é a nova Eva. A história
faz-se necessário classificar os apócri- são dedicados especificamente de seus pais estéreis, seu nascimento,
fos em três categorias, a saber:1 a ela, como os de sua dormição a consagração no templo, o casamen-
e assunção; outros narram fatos to com o ancião José e sua virgindade
ABErrAntES: textos que exa- perpétua são descritas de forma
de sua vida. eles
geram na descrição de fatos sobre poética. um dos motivos da rejeição
Jesus e Seus seguidores ou discorda estão situados nos primeiros desse evangelho foi o fato de ele
totalmente da narrativa canônica; séculos do cristianismo apresentar São José como viúvo e pai
e influenciaram sobremaneira de vários filhos. Muitos dos relatos
AltErnAtIVoS: textos que apre- a liturgia e a arte foram incorporados, posteriormente,
sentam uma alternativa de apresentar à doutrina teológica da Igreja grega
o cristianismo, bem diferente daquele e latina. A celebração na liturgia de
que se tornou hegemônico, representa- são dedicados especificamente a São Joaquim e Sant’Ana tem, por
do pelos textos inspirados (canônicos); ela, como os de sua dormição e exemplo, base nesse evangelho.
assunção; outros narram fatos de
CoMPlEMEntArES: textos que sua vida. Eles estão situados nos c) ProtoEVAngElho DA nAtIVI-
procuram complementar os relatos primeiros séculos do cristianismo DADE DE MArIA. Datado do ano 200,
canônicos sem, na maioria das vezes, e influenciaram sobremaneira a esse apócrifo, também conhecido
diminuir-lhes o caráter de textos liturgia e a arte. A maioria desses como Papiro de Bodmer (por perten-
inspirados; mas, ao contrário, refor- apócrifos foi escrita entre os sécu- cer a uma biblioteca que leva esse
çam um posicionamento teológico ou los II ao VI. Alguns poucos foram nome), pode ser considerado como a
eclesial do cristianismo hegemônico. produzidos na Idade Média, quando forma mais antiga do Protoevangelho
a devoção mariana ganhou novo vi- de tiago. A natividade de Maria res-
os apócrifos marianos enqua- gor entre os cristãos e os apócrifos salta o papel importante de Maria na
dram-se, em sua quase totalidade, sobre Maria dos primeiros séculos história do cristianismo. Ela é vista
na categoria complementar. do cristianismo foram resgatados e como a novidade na história, mesmo
influenciaram fortemente o modo não tendo consciência disso. Maria é
APóCrIFoS MArIAnoS de viver a fé na época, chegando uma menina bem cuidada pelos pais,
até nossos dias. os apócrifos com vivendo como consagrada no templo.
Existem vários livros apócrifos que enfoque ou que trazem dados de fé A história mariana é relida a partir
contam a história de Maria.2 Alguns mariana são: do Primeiro testamento.

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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dezembro
Entendendo a Bíblia 53
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ENTENDENDO A BÍBLIA

também a infância de Jesus. A tra-


dição atribuiu sua autoria ao evan-
gelista Mateus, que o teria escrito
em hebraico, sendo traduzido para
o latim por São Jerônimo (347-420).
A tradição diz que esse santo teria
traduzido um pequeno livro que o
questionada por Pedro sobre seu evangelista Mateus teria escrito,
protagonismo na eliminação da mas que não quis juntá-lo a seu
transgressão de Eva. Maria reco- evangelho. O Evangelho do Pseu-
nhece Pedro como chefe, grande do-Mateus teve forte influência na
coluna da Igreja. literatura e na arte da Idade Média.

e) lIVro Do DESCAnSo. g) hIStórIA DE JoSé, o


Escrito provavelmente do século CArPIntEIro. A datação desse
III, este é um dos mais antigos apócrifo é, provavelmente, do ano
apócrifos sobre a Assunção de 380. No entanto, o frade fran-
Maria. O conteúdo composto de ciscano e arqueólogo Bellarmino
cinco livros e 136 capítulos. Ele não Bagatti (1905-1990), por consi-
d) EVAngElho trata somente da morte e assunção derar dados das comunidades ju-
DE BArtoloMEu ou de Maria, mas também de outros daico-cristãs, propõe o século II.
PErguntAS DE BArtolo- fatos de sua vida e dos apóstolos. O livro trata propriamente sobre
Mosaico bizantino, século XII, autor desconhecido

MEu. Atribuído ao apóstolo Jesus recorda, com Maria, a fuga a história de José, narrada por
Bartolomeu, esse apócrifo foi para o Egito. Ele lhe diz que é o Jesus, de forma carinhosa, aos
originariamente escrito em gre- terceiro da divindade. A virgindade apóstolos, no Monte das Oliveiras.
go e pode ser datado no século III. é apresentada, por Pedro, como Maria é apresentada como “Nossa
Eusébio de Cesareia diz que, quan- agradável a Deus. Antes de Maria Senhora” e “Senhora, mãe de
do foi pregar na Índia, Bartolomeu ser assunta aos céus por Jesus, os nossa Salvação”, que é o Senhor
escreveu um evangelho. O apóstolo apóstolos discutem se Paulo pode- Jesus Cristo. No conteúdo, são
conversa com Jesus ressuscitado ria ser considerado como apóstolo. narrados vários relatos da vida de
sobre questões, como: inferno, Quando Maria é levada aos céus, Maria, como: vida de consagrada
pecado, sacrifício no paraíso, entre Jesus confirma Paulo como após- no Templo, casamento com José,
outros temas. O livro inicia com tolo, com Pedro. viagem para Belém, fuga para o
Jesus contando para Bartolomeu Egito, aflição diante da morte
como foi Sua descida aos infernos. f) EVAngElho Do PSEuDo- de José, sua morte e assunção.
Já em relação a Maria, o texto diz -MAtEuS. Este apócrifo, datado de Nesse livro, José é apresentado
que, a pedido dos apóstolos, ela 350, narra o nascimento de Maria, como esposo carinhoso de Maria
conta como recebeu a anunciação sua permanência no Templo como e pai terreno de Jesus. Nascido
do anjo e da concepção daquele consagrada por nove anos, quando em Nazaré, exerceu a profissão
que é inconcebível. No entanto, fez voto de castidade. Posterior- de carpinteiro e morreu idoso.
é impedida pelo Senhor de narrar mente, ela dá à luz virgem e assim Antes da morte, teve medo, sendo
todo o mistério. Ela é também permanece. Esse evangelho narra amparado por Maria e por Jesus.

O MensageirO de santO antôniO


O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
54
38 dezembro de 2014
Entendendo a Bíblia
originalmente em latim, seu

Natividade da Virgem com os selos da vida na terra, século XVI, autor desconhecido
conteúdo é atribuído a Militão,
bispo de Sardes, na lídia, onde
atuou no século II. Autor de
livros com temas sobre a Páscoa,
batismo, criação, alma e corpo,
encarnação, ele travou disputas
teológicas com Marcião. A nar-
rativa inicia com a referência
a Maria sendo entregue a São
João, aos pés da cruz. Ela vai
morar em Jerusalém. Dois anos
depois, um anjo aparece a ela e
lhe entrega um ramo de palmei-
ra, anunciando a sua morte em
três dias. Maria pede a presença
dos apóstolos, que são trazidos
pelas nuvens até sua casa. Ela
prepara a roupa para a morte e
dorme. Jesus vem para levar sua
alma. os apóstolos organizam o
sepultamento. Durante o cortejo
fúnebre, um chefe dos sacerdotes
judeus quis virar o esquife, mas
suas mãos secaram. Então ele
suplicou a Pedro, que lhe exigiu
profissão de fé em Jesus, antes de
ser curado. E assim ocorreu. Em
seguida, com a palma de Maria,
ele entrou em Jerusalém e curou
a cegueira de muitos. o corpo de
Maria foi levado ao sepulcro. Je-
sus veio com anjos e a levou para
o céu. os apóstolos retomaram
seu apostolado.

reFerÊnCias
1
FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos
aberrantes, complementares e cris-
tianismos alternativos: poder e he-
h) lIVro DE São João EVAngE- que sua assunção ocorreu em um resias! Introdução crítica e histórica
à Bíblia Apócrifa do Segundo Testa-
lIStA, o tEólogo, SoBrE A PASSA- dia de domingo. Ela não encontra mento. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
gEM DA SAntA MãE DE DEuS. Mes- empecilhos para chegar ao paraíso. 2010.
mo não sendo o mais antigo apócrifo o culto a Maria como intercessora
2
A história completa de Maria nos
apócrifos está em nosso livro: His-
sobre a assunção de Maria, alguns da humanidade junto a Jesus, tão tória de Maria, Mãe e Apóstola de
estudiosos falam de um apócrifo do amplamente difundido entre os seu Filho, nos Evangelhos Apócrifos.
mesmo gênero no século II: trânsito cristãos, sobretudo da Idade Média, Petrópolis: Vozes, 2006.
da Santa Maria, de leucio, discípulo deve muito a esse texto, atribuído a
dos apóstolos. livro de São João São João evangelista.
evangelista, o teólogo, foi o apócrifo Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
assuncionista mais popular entre os i) trânSIto DE MArIA Do PSEu-
Arquivo pessoal

Escritor e mestre em
cristãos do oriente bizantino. Foi es- Do-MIlItão DE SArDES. Escrito Ciências Bíblicas pelo
crito no século IV ou um pouco antes. entre o fim do século IV e início Pontifício Instituto
A narrativa conta, além de outros do V, esse livro narra a morte, a Bíblico de Roma
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detalhes sobre a morte de Maria, ressurreição e a assunção de Maria.

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O MENSAGEIRO DE SANTO ANTONIO
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ENTENDENDO A BÍBLIA
A educação da Virgem, 1700, Jean-Baptiste Jouvenet

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Consagração de
aos filhos de Rúben que Ana está
amamentando? Ouvi, ouvi, vós, as
doze tribos de Israel, que Ana está

de maria
amamentando”. E ela colocou a
criança para repousar, saiu e pôs-se
a servir os convidados. Quando ter-
minou a refeição, todos desceram
repletos de alegria e glorificaram o
Deus de Israel.
Os meses passavam-se. Quan-
do Maria completou dois anos,

nos evangelhos
Joaquim disse: “Vamos levá-la ao
Templo do Senhor, para cumprir
a promessa que fizemos, a fim
de evitar que o Soberano Senhor
nos puna ou que nossa oferta seja

apóCrifos
rejeitada”. Ana respondeu-lhe:
“Esperemos o terceiro ano, para
que ela não sinta falta de seu pai e
de sua mãe”. E Joaquim concordou
em esperar mais um ano.
Quando a menina fez três
anos, Joaquim disse: “Convide-
mos as filhas dos hebreus, que

M
são puras, para que tomem suas
aria passou quase toda ele apresentou a menina aos sacer- candeias e as conservem acesas
a infância no Templo dotes. Estes a abençoaram, dizendo: para acompanhá-las. Deste modo,
de Jerusalém, como “O Deus de nossos pais, abençoa a menina não voltará atrás, e
consagrada a Deus. esta criança e dá-lhe um nome glo- seu coração não estará preso por
Dia após dia, nos três primeiros rioso e eterno por todas qualquer coisa fora
anos de sua vida, conforme rela- as gerações”. E todo o do Tempo do Senhor”.
tado no Proto-Evangelho de Tiago povo respondeu: “Assim Quando chegaram ao Assim eles fizeram,
(VI-VII), ela se tornava uma crian- aconteça! Amém!” E os Templo, o sacerdote re- até chegar ao Templo
ça robusta. Quando completou seis sacerdotes apresenta- cebeu Maria e, depois do Senhor.
meses, sua mãe a colocou no chão ram-na aos chefes dos de beijá-la, abençoou-a, Quando chegaram ao
para ver se permanecia em pé. sacerdotes, que a aben- dizendo: “O Senhor exal- Templo, o sacerdote re-
Maria deu sete passos e voltou-se çoaram, dizendo: “Oh! cebeu Maria e, depois de
tou teu nome por todas
ao regaço materno. Ana tomou-a Deus Altíssimo, lança Teu beijá-la, abençoou-a, di-
nos braços, dizendo: “Tão certo olhar sobre esta menina as gerações. Em ti, nos zendo: “O Senhor exal-
como vive o Senhor meu Deus, não e concede-lhe a mais últimos dias, o Senhor tou teu nome por todas
andarás por esta terra, até que te ampla bênção, além da mostrará a salvação aos as gerações. Em ti, nos
conduza ao Templo do Senhor”. qual não haja outra”. filhos de Israel”. Então o últimos dias, o Senhor
E a progenitora preparou-lhe um Ana, levando a crian- sacerdote a fez sentar no mostrará a salvação aos
santuário em seu quarto e não ça para o santuário do filhos de Israel”. Então
terceiro degrau do altar
permitia que nada de profano nem quarto, deu-lhe o seio. o sacerdote a fez sentar
de impuro tocasse seu corpo. E Ana Ela também elevou um e o Senhor fazia descer no terceiro degrau do
chamou as donzelas hebreias sem cântico ao Senhor, di- Sua graça. Maria dançou altar e o Senhor fazia
mácula para entreter-se com ela. zendo: “Entoarei um com os pés e foi amada descer Sua graça. Maria
Quando a menina completou um cântico sagrado ao Se- por toda a casa de Israel dançou com os pés e foi
ano, Joaquim preparou uma gran- nhor meu Deus, porque amada por toda a casa
de recepção e convidou os chefes me visitou e afastou de de Israel.
dos sacerdotes, os sacerdotes, os mim a afronta de meus inimigos. Como vimos, os três primeiros
escribas, o conselho dos anciãos e O Senhor meu Deus concedeu-me anos de Maria são marcados pelo
todo o povo de Israel para festejar um fruto santo, que é único e múl- enaltecimento da criança. Até uma
o aniversário da filha. Naquele dia, tiplo a seus olhos. Quem anunciará festa de aniversário é realizada

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ENTENDENDO A BÍBLIA

para comemorar seu primeiro ano de vida.


A alegria dos pais e do povo, incluindo
aí as autoridades religiosas, pode parecer
exagerada diante dos costumes da cultu-
ra judaica daquela época. Uma mulher
nunca seria enaltecida pelo judeu por
causa de seu nascimento. Ao contrário,
o judeu conservador reza, ainda hoje, ao
levantar-se “Obrigado, Senhor, por não
ter nascido mulher!” No entanto, a nar-
rativa quer ressaltar o valor de Maria, sua
pureza, entendida como santidade, desde
o nascimento. Ela vive sem colocar os
pés no chão e possui um santuário no
quarto. Nisto está a teologia do corpo
puro para ser consagrado, o que exigia a
separação de pessoas e de objetos. Nisto
o texto segue os costumes judaicos de
purificação para ser puro, isto é, santo.

Dos três anos aos Doze


anos – consagração
no templo De Jerusalém

Maria foi levada ao Templo de Jeru-


salém por Joaquim e Ana. Assim, eles
cumpriram o voto que Ana havia feito. Ao
chegar ao Templo, Maria subiu velozmente
os quinze degraus do Templo, sem sequer
olhar para trás nem procurar pelos pais.
Joaquim e Ana voltaram para a casa, oração enquanto não lhe aparecia o anjo para não interromper seus louvores a
louvando e glorificando a Deus, Soberano de Deus, de cujas mãos recebia o alimen- Ele, respondia “Graças a Deus” a quem
Senhor, porque a menina não havia vol- to. Assim, sempre mais e sempre melhor, a saudasse. Ela se alimentava todos
tado para junto deles. E Maria viveu no progredia no serviço de Deus. os dias apenas com o alimento que
Templo de Jerusalém, como consagrada, Além disso, enquanto as virgens mais recebia da mão do anjo. Os alimentos
desde os três anos aos doze anos, ou ca- velhas repousavam dos louvores divinos, que os sacerdotes lhe davam, Maria os
torze anos, conforme Pseudo-Mateus. Já ela nunca repousava, de modo que, nos distribuía aos pobres. Frequentemente
no apócrifo História de José, o carpinteiro, louvores e nas vigílias, nenhuma estava se viam os anjos de Deus falando com
afirma-se que Maria viveu nove anos no antes dela, nenhuma era mais instruída ela e obedecendo-lhe diligentemente.
Templo. O número 9 é simbólico. O número no conhecimento da Lei, nenhuma mais Se alguma doente a tocasse, no mesmo
3 representa a dimensão divina (Céu, Xeol humilde na humildade, nenhuma possuía instante, a enferma voltava sã para casa. O
e Firmamento). Já dizer 9 é o mesmo que mais graça no canto, nenhuma era mais sacerdote Abiatar apresentou ao pontífice
dizer o tempo de Deus três vezes. Assim, perfeita em todas as virtudes. (= sumo sacerdote) um número infinito de
vivendo nove anos no Templo, Maria viveu Maria era constante, firme, imutá- presentes para tomá-la como esposa de
completamente consagrada a Deus. vel e progredia para melhor todos os seu filho. Maria rejeitou-os, dizendo: “Não
O Evangelho Pseudo-Mateus (6,2-7-2) dias. Ninguém a viu zangada, nem a pode acontecer que eu tenha relações
descreve a vida de Maria no Templo do se- ouviu amaldiçoar. Todo o seu falar era sexuais com um homem ou um homem
guinte modo: ela se impusera a seguinte repleto de graça, que se compreendia comigo”. Os pontífices e todos os conhe-
regra: de manhã, até a hora terceira (das que Deus estava em seus lábios. Assí- cidos lhe disseram: “Deus é venerado nos
6 horas às 9 horas), dedicava-se à oração; dua na oração e na meditação da Lei, filhos e adorado nos descendentes”. Como
da hora terceira à nona (das 9 horas às era atenta para não maldizer contra as sempre tem sido em Israel. Maria respon-
15 horas), ocupava-se no trabalho de companheiras, nem se deixar levar em deu: “Deus é honrado antes do mais pela
tecelagem; da hora nona em diante (das risos muito ruidosos, nem em desafo- castidade, como é comprovado. Pois, antes
15 horas às 18 horas), dedicava-se nova- ros, ou jactâncias contra suas compa- de Abel, nenhum homem foi declarado
mente à oração. A jovem não deixava a nheiras. Bendizia a Deus sem cessar e, justo; e ele agradou a Deus por causa de

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apócrifos merece um comentário à parte.
Maria mesma se declara consagrada a
Deus pela virgindade. Ela nega a relação
sexual e justifica que, desde pequena,
aprendeu o valor à virgindade. Esse
acento demasiado na castidade como
negação do corpo deve ser compreendido
a partir da influência dos gnósticos en-
cratistas, grupo que pregava a negação
do corpo como caminho para encontrar a
salvação. Dizer que Maria pensava assim
reforçava essa visão de mundo.
Ainda em nossos dias, essa ideia
está presente entre nós. A virgindade

Apresentação da Virgem no templo, c. 1500, nicolas dipre


de Maria, como é apresentada nos
apócrifos, continua como ideal de vida
para muitos. Parece um absurdo pensar.
E é. A consagração só tem sentido se
for vista de modo integrador. Negar
os prazeres do corpo, porque isso é
pecado e não querido por Deus, não é
um caminho salutar. Quantos de nossos
jovens, seguindo esse modo de pensar,
veem pecado em tudo. Confessam sem-
pre, não para dizer que deixaram ser
honestos, que não lutaram pela justiça
social, mas porque pecaram contra
a castidade, isto é, não conseguiram
anular os prazeres do corpo. Os corpos
da mulher Maria e de tantas Marias
suas ofertas e foi impiamente assassinado faz parte das festas litúrgicas da Igreja mulheres de nossos dias não podem
por aquele que não agradou (a Deus). Ele Católica. Ela é celebrada no dia 21 de ser vistos como modelo de negação do
ganhou assim duas coroas: a da oferta e novembro. Essa festa era celebrada corpo. Uma visão integrada de gênero
a da virgindade; pois sua carne nunca foi na Igreja do Oriente desde 543 E.C. não nos permite pensar assim. Ou pas-
poluída (pelo casamento). Elias também, A Igreja do Ocidente (Romana) incor- samos a ver e vivenciar a castidade de
quando estava na carne, foi arrebatado porou-a no calendário no século XVI, outro modo, ou esse modo de pensar
porque guardou virginalmente sua carne. quando o culto a Maria foi revigorado. deixa de ser virtude.
É o que aprendi no Templo desde a minha Na liturgia do Batismo da Igreja Cató- No Templo, Maria age com persona-
infância: que a virgindade pode ser muito lica, a comunidade reclama, quando o lidade de mulher. Ela tem autoridade;
preciosa para Deus. Por isso decidi em meu celebrante resiste em manter no ritual estuda a Toráh, algo reservado aos ho-
coração não ter relações (matrimoniais) do Batismo, a Consagração da criança mens, discute com os sacerdotes e não
com homem algum”. a Nossa Senhora. E há até padrinho e aceita uma proposta de casamento. A
No apócrifo História de José, o madrinha de consagração. Com isso, piedade popular inspira-se em Maria,
carpinteiro (3,1), Jesus declara: “En- os pais querem que seus filhos sejam, porque é uma mulher de Deus, repleta
quanto meu pai José permanecia em como Maria e por meio de sua interces- de graça e de fé. Queremos ter a fé de
sua viuvez, minha mãe, de sua parte, são, consagrados a Deus. Maria; por isso, estamos sempre com ela
dotada de belas qualidades e bendita No Templo, Maria vivia em oração no coração e em nossa devoção.
entre as mulheres, vivia no Templo, constante. Trabalhava e rezava. Rezava
servindo a Deus em toda a santidade”. e trabalhava. Essas atitudes marcaram
sua vida de consagrada. Ela viveu de Frei Jacir de
Freitas Faria, OFM
a atualiDaDe Da modo ascético. Um anjo falava-lhe e lhe
Arquivo pessoal

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consagração De maria trazia o alimento, o que significa que Ciências Bíblicas pelo
Deus falava com Maria e cuidava dela. O Pontifício Instituto
A Apresentação de Maria no Templo de anjo é a presença divina, é Deus mesmo. Bíblico de Roma
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Jerusalém, e a consequente consagração, A exaltação da virgindade mariana nos

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