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Samizdat PDF
Samizdat PDF
www.revistasamizdat.com
34
setembro
2012
ano V
ficina
SAMIZDAT 34
setembro de 2012
www.revistasamizdat.com
ISSN 2281-0668
Sumário
Por que Samizdat? 8
Henry Alfred Bugalho
CONTOS
Algo Indefinível 12
Joaquim Bispo
Morfeu, Morfina 15
Mariza Lacerda
O Galo Meu 16
Henry Alfred Bugalho
Microcontos 19
Edweine Loureiro
O “Gato” Maluco 20
Lilly Araújo
Nadja Ausente 28
Isabela Penov
Grávida 32
Aline Nardi
Iniciação 34
Léo Tavares
O Bichinho 36
Diana Cunha Gil
Sonho de Cores 42
Isabella Gonçalves
Ocolândia 44
Silvana Michele Ramos
Menina na Tempestade 48
João Vereza
Sombras de Carne 50
Cinthia Kriemler
TRADUÇÃO
Provérbios do Inferno 54
William Blake
A Imagem Divina 58
William Blake
O Cordeiro 59
William Blake
ARTIGO
O Muro de Indiferença, ou a invisibilidade dos
candidatos a escritores 66
Henry Alfred Bugalho
TEORIA LITERÁRIA
Os Signos do Mundo, do Amor e da
Sensibilidade na Literatura de Marcel Proust 74
Leonardo Araújo
CRÔNICA
Crônica Transitiva 78
Adriane Dias Bueno
Sinestesia, Oximoro e Anadiplose 80
João Paulo Hergesel
A 5ª Sinfonia de Beethoven 82
Otávio Martins
POESIA
II Concurso de Poesia Autores S/A 86
Letícia Simões 87
Cinthia Kriemler 88
Geovani Doratiotto 89
Henrique César Cabral 90
Malvina 91
Cris Dakinis
Visitante 92
Volmar Camargo Junior
Procedimentos Técnico-administrativos em
Caso de Desordem na Gaveta dos Papéis
Involuntariamente Esquecidos 94
Volmar Camargo Junior
Caem Corpos em Pinheirinho 96
Caio Dezorzi
Sobre o Trabalho do Tempo 98
André Kondo
Noturno para Franz 99
Danilo Augusto de Athayde Fraga
Joanna 100
Fernando Domith
Mendigo de Tal 101
Ana Peres Batista
Dançando e Encontrando – Loucuras Sãs 102
Rodrigo Pereira dos Santos
5
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/
ficina
6 SAMIZDAT setembro de 2012
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Editor
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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky
8
E por que Samizdat? revistas, jornais – onde ele randes tiragens que subs-
g
possa divulgar seu trabalho. tituam o prazer de ouvir o
O único aspecto que conta é respaldo de leitores sinceros,
A indústria cultural – e o
o prazer que a obra causa no que não estão atrás de gran-
mercado literário faz parte
leitor. des autores populares, que
dela – também realiza um
não perseguem ansiosos os
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um 10 mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor de mercado. Inexplica- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
velmente, estabeleceu-se que liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
contos, poemas, autores des- total: ele é dono de sua pala- de nenhum movimento
conhecidos não podem ser vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
comercializados, que não vale diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
a pena investir neles, pois os é quem recebe os louros por modernistas, vanguardistas
gastos seriam maiores do que seus acertos. ou q ualquer outra definição
o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escrevem sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que
leitor. Não há grandes apa-
lê. Não há sucesso, não há
ratos midiáticos – como TV,
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Autor em Língua Portuguesa
Encarnação
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos...
Carnal e Místico
Pelas regiões tenuíssimas da bruma
Vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
Todo o horizonte em derredor perfume.
http://www.flickr.com/photos/7522203@N06/434640017/
Como a lua entre a névoa dos espaços...
Sinfonias do Ocaso
Musselinosas como brumas diurnas
Descem do ocaso as sombras harmoniosas,
Sombras veladas e musselinosas
Para as profundas solidões noturnas.
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Conto
Joaquim Bispo
Algo Indefinível
Quando o padre Vicente entrou na barbe- Leirosa do Côa há pouco mais de um mês e
aria, temeu por um momento que não fosse quase só conhecia o pequeno grupo que ia
conseguir cortar o cabelo antes da missa das à missa. Ainda não tinha atingido os trinta
seis: na cadeira do ti Matias estava o presi- anos, era alto e rosado, e não vestia batina.
dente da Junta, e à espera estava o secretário, – Sim, já conheço bastantes paroquianos,
mas depressa percebeu que este não vinha alguns até em confissão. Já se confessaram
para cortar o cabelo; simplesmente acompa- este ano? – inquiriu, com um prazer pouco
nhava o chefe para todo o lado. católico.
– Boa tarde, meus senhores! – cumprimen- – Lá havemos de ir, Sr. padre – respondeu
tou. o presidente, prazenteiro. Era um homem na
– Boa tarde, Sr. padre! – responderam os casa dos sessenta, um pouco anafado, de ca-
três em coro. belo ralo e nariz abatatado. – Todos os anos,
Sentou-se num dos bancos forrados a napa pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu
que se alinhavam voltados para a majestosa secretário, não é verdade, Simão?
cadeira onde os homens se vinham libertar O visado acenou que sim, subserviente.
de sumptuosas melenas, quando se tornavam Teria quarenta e poucos anos, usava o cabe-
demasiado rebeldes para aceitar o pente. lo liso com brilhantina e trazia um fato às
No rádio acabara de cantar Artur Garcia e riscas.
anunciava-se Suzy Paula. – Mas isto é uma terra sem pecados – car-
– Então, Sr. padre, já está ambientado cá à regou o presidente, enquanto o barbeiro se
terra? – perguntou o presidente. esmerava no recorte da orelha direita. – Aqui
O padre Vicente tinha sido colocado em é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria.
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Concluiu pela condenação: vinte pai-nossos. morder o que era para manter na boca até se
liquefazer.
Joaquim Bispo
Português, reformado, ex-técnico de televisão, licenciado tardio em História da
Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a
escrita de ficção desde 2007, com pontos altos nas oficinas virtuais de Henry Bugalho
e de Marco Antunes. Rejeitado pelas editoras, tem obtido, no entanto, alguns prémios
em concursos literários dos dois lados do Atlântico.
Contacto: episcopum@hotmail.com
Morfeu, Morfina
Mariza Lacerda
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Conto
http://www.flickr.com/photos/kaozkz/4826424573/
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Retornei meses depois à casa de Como assim, jantar um galo de estima-
minha avó, chegando cedinho como o ção? Quer dizer que agora as pessoas
habitual. Tomamos café da manhã e deveriam comer seus cachorros quando
eu saí ao quintal, à procura por meu estes morressem? Ou que um jóquei
galo, mas não o avistei. Nada estranho, deveria comer o cavalo que montava?
reconheço, pois o quintal era enorme Ou um falcoeiro a seu falcão? Ou um
e ele poderia estar vagando em meio dono de circo cearia o elefante ou o
às bananeiras e amoreiras. Certamente tigre quando estes passassem desta para
apareceria para comer quirera mais melhor?
tarde. Eu precisava confirmar esta histó-
Mas não o vi depois, o que me per- ria, poderia ser apenas uma maldade
turbou. do meu primo, e corri para falar com
— Não estou encontrando o Harrison minha vó.
— comentei com meu primo na manhã — É verdade que meu galo morreu?
seguinte. — Morreu sim.
— Ninguém te contou? — v islumbrei — E o que fizeram com ele?
um risinho sardônico — Ele morreu...
— Comemos, ora bolas!
— Sério?
Para vovó era simples pensar deste
— Sério. modo, ela que quebrava o pescoço de
Calei-me por um tempo, pensativo. um frango sem esforço algum, e deixa-
— E o que fizeram com ele? va-o dependurado numa trave, debaten-
do-se até esvair-se-lhe a vida, mas, para
— Como assim?
mim, nada fazia sentido. A ausência
— Com o cadáver do Harrison? de Harrison, o galo dos galos, naquele
— Sabe a canja de ontem à noite? quintal imenso, era devastadora, um
— Sei. vazio inexplicável.
PREÇOS
Edweine Loureiro
CINEMA MUDO
Edweine Loureiro
COREIA DO NORTE
Edweine Loureiro
Edweine Loureiro
Nasceu em Manaus em 20/09/1975. É advogado, professor de Literatura e Idiomas,
e reside no Japão desde 2001. Em 2005, obteve o Mestrado em Política Internacional
pela Universidade de Osaka (Japão). Premiado em diversos concursos literários, é
autor dos livros: Sonhador Sim Senhor! (Ed. Litteris, 2000), Clandestinos [e outras crô-
nicas] (Clube de Autores, 2011) e Em Curto Espaço (Ed. Multifoco, Selo 3x4, 2012). É
membro-correspondente da Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências (RJ) e da
Academia de Letras de Nordestina (BA).
Blog do autor: http://edweineloureiro.wordpress.com/
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Contos
O “gato” maluco
Lilly Araújo
regalias.
Em protesto, estava resolvido a mu-
dar sua vida radicalmente, abrindo mão
de todo luxo a que estava acostumado,
visto que o pai lhe recusara a ceder
qualquer bem material para aquele trai-
dor, que o estava abandonando. Posse.
Pura posse! Sofriam de possessão crôni-
ca pai e filho.
Passados alguns dias da nova rotina,
Carlos estava completamente entedia-
do no seu novo lar. Não tinha mais o
videogame de última geração, nem seu
inseparável tablet que ainda estava com
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cheirinho de loja. Agora se contenta- rgumentou a si mesmo para aliviar o
a
va apenas com seu notebook, que seu ardor. Ligou a TV com o coração na
pai só liberou por ter sido presente de mão. E lá estava a imagem que o salvou
aniversário, mas que nas atuais circuns- de seu martírio! Dezenas de canais, que
tâncias era quase inútil, porque lá não agora o manteriam cativo por vontade
tinha internet. Não tinha piscina. Não própria no seu pequeno “quarto prisão”.
tinha sauna. Nem tinha sua motinha Mas, numa noite de tempestade e
ou amigos ricos. Não tinha sequer TV muitos raios, a conexão de alegria do
a cabo. Tédio. Puro tédio! pobre Carlos foi subitamente inter-
Até que numa tarde, Carlos estava rompida. Ele ficou chocado. Desespero.
sentado perto da janela, com vista nada Puro desespero!
privilegiada para os telhados dos vizi- Na manhã seguinte foi à escola
nhos e num lance de olhar, notou uma brigado com sua TV. Havia gastado
antena de onde pendia um tremulante toda madrugada fuçando, sacudindo,
fio que partia telhado adentro do vi- torcendo e pedindo aos céus por um
zinho mais afortunado que ele. Teceu auxílio. Quando retornou, já na hora do
então um plano mirabolante em sua almoço, esquentou a comida e engoliu
mente vazia. Iria fazer um “gato” para a desinteressadamente. Pulou na cama e
TV que ficava em seu quarto. dormiu, exausto que estava. Acordou
Foi a uma lan house e procurou por com um barulho e uns feixes de luzes
manuais de instalação para realizar sua vindas do telhado do “vizinho-sócio”.
peripécia. – É impressionante o que se Achou estranho aquilo e teve medo.
pode encontrar na net hoje em dia! – Será que agora o seu delito seria des-
pensou o garoto. Pesquisou. Revisou. coberto? Resolveu ligar a TV por pura
Imprimiu. E marcou o dia, ou a noite, curiosidade, e para sua surpresa os
para o leitor melhor entender. canais estavam todos de volta.
Carlos se esgueirou pelo corredor Foi à cozinha e fez pipoca para espe-
apertado com o cinto de ferramentas rar pelo jogo do seu time que iria co-
pendendo-lhe de um dos lados e for- meçar em dez minutos. Enquanto assis-
çando a calça larga para baixo. Todo tia ao jogo vibrante e comia pipoca, um
desengonçado e tremendo um pouco, o sorriso de orelha a orelha não lhe saía
garoto alcançou a tal antena por sobre do rosto. De repente, um lance dentro
o telhado. Sentiu-se um felino aventu- da grande área, já aos quarenta e cinco
rando-se naquela altitude. Em poucos minutos do segundo tempo, dava chan-
minutos, seguindo o manual passo a ce ao seu time de ser o vencedor. Ele se
passo, ele cortou e remendou fios na colocou debaixo do monitor, se contor-
caixinha conectora que comprou num cendo à espera de um milagre para que
ferro velho, e que iria piratear e re- aquele gol saísse, e no auge da expec-
transmitir o sinal para sua TV, dando tativa de vitória do seu timão: “Tssss”!
umDesceu sem maiores dificuldades. Alguém mudou o canal da televisão.
Mas não antes de se engarranchar – Não! Não! Não! Isso não pode estar
no último trecho do seu percurso e acontecendo! – Não podia, mas estava.
ralar todo o antebraço esquerdo. Va-
...
leria o preço se o “gato” funcionasse,
Lilly Araújo
Bióloga, pós-graduada em Geo-Ambiental, começou sua carreira literária apenas
no ano de 2011; de lá para cá já tem obtido sucesso e participações nos seguintes
meios literários: Participou de 25 Antologias da CBJE-RJ, em poesias, contos e crônicas
e em três e-books; MH e Antologia do Conc. de Poesias Encantadas II; 12° Lugar no V
Conc. POESIARTE; Classif. para compor o livro do Conc. Landa Lopes; Prêmio Desta-
que no III Conc. Claudionor Ribeiro de Contos; Classif. na Antologia do V Conc. Crô-
nica e Lit.- Prêmio lit. Ferreira Gullar; MH e Antologia do Conc. Poesias Encantadas
III; Classif. entre os vinte para o Livro Prêmio do Conc. Alt Fest-Fliporto; Classif. no
Conc. Um Poema em Cada Árvore; Classif. para Antologia do Conc. Letras no Palco
2011 – Digit-AL 2011, nas categorias Poema e Micro Poema; Classif. em 10° no Conc.
Augusto dos Anjos; Vencedora do III JOGOS FLORAIS DE CAXIAS DO SUL.
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Contos
http://www.flickr.com/photos/snapeverything/2513146873/
aparecia pela primeira vez com
força, fazendo-a recolher-se ainda
mais nas cobertas. Outubro era um
mês que a assustava, pois lhe vinha
um sentimento de má-fé em relação
ao inverno que se aproximava. O
inverno deixava-a muito bela; ainda
assim, era sempre complicado con-
tinuar viva depois que camadas de
gelo formavam-se na sua principal
artéria: o Danúbio. Todavia, o inver-
no em nada alterava sua eloquência;
reafirmava-a, porém, num sentido
mais peculiar.
Naquela manhã teve vontade de ir
à praia. E disse consigo mesma que
sim, iria viajar. A escolha mais natu-
ral era alguma praia no Adriático, e
apesar de os dias estarem cada vez
mais frios, poderia sentar-se à beira-
mar e conquistar uma calma que ela
não mais proporcionava a si mesma.
Após tomar essa decisão, alegrou-se
bastante.
Ao olhar para o prédio em frente
ao dela, na Rua Timár, observou a
moça portuguesa que morava ali há
alguns meses. Sabia-a estrangeira,
porque o tempo lhe havia dado esse
discernimento; sabia-a portuguesa
porque pela primeira vez sentia que
havia no apartamento algo diferente.
Todos os dias saía e voltava a Sau-
dade. Dava à moça quase todas as
manhãs de presente uma neblina,
como se dissesse:
“Vem, busca teu D. Sebastião, que
logo chega.”
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A moça, entretanto, não esperava levá-las até à Dalmácia pelo inte-
por nada que não fosse seu Sebas- rior do país. Os carros passavam,
tião magiar, e que, ironicamente, se os bairros zagrebinos ficavam cada
chamava Sebestyén. O homem pelo vez mais longe. Em muitas regiões
qual ela se fez estrangeira, depois por onde passavam, Budapeste viu
de dez meses juntos, abandonou-a e prédios com buracos causados pelos
voltou a sua cidade na Transilvânia. tiros da guerra recente.
Como portuguesa num país sem Enquanto isso, os budapestinos e
mar, ela fez de seu apartamento a zagrebinos viam-se perdidos, com a
torre de Belém, na qual esperava o sensação de que algo importante em
marinheiro que nada lhe prometera, suas cidades estava faltando. Alguns
e que desse nada, tudo esperava. disseram que era o frio cedo demais
No frio daquela manhã Budapeste em outubro, outros que se tratava de
sentiu que precisava fugir de si mes- uma sensação bélica. Poucos disse-
ma. Fundar-se noutro lugar, como ram que tinham a sensação de que
se nunca tivesse sido fundada ali. a alma da cidade havia ido embora,
Sairia pela primeira vez dos alicer- como se estivessem vivendo abraça-
ces danubianos, das colinas budinas, dos ao cadáver de alguém querido.
da imensidão plana pestina, de seu Nas duas cidades as pessoas senta-
apartamento em Óbuda. vam-se nas calçadas com a sensação
Ela comprou a passagem de trem de que a gravidade passara a ser, ao
na Estação Keleti, e avisou Zagreb menos ali, a mais fraca das forças da
que estava indo visitá-la, e que se- Natureza. O Danúbio em Budapes-
guiriam à praia. Fazia frio, mas no te e o Sava em Zagreb portavam-se
trem conseguiu cobrir-se com um como se não se importassem com as
pequeno cobertor que levara consi- beira-rios, inundando-as com ondas
go. de ressentimento.
Algumas horas depois ela desceu Makarska estava vendo o mar no
na estação central de Zagreb, que bulevar central da riviera. O dia es-
a esperava. As duas seguiram até tava bastante cinza, e ela sabia quem
o estacionamento. Na Praça do Rei iria atacá-la à noite. Sabia-o há cen-
Tomislav Budapeste viu no meio do tenas de anos, e sempre que aconte-
parque crianças brincando com seus cia novamente ela se assustava. Para
pequenos trenós, treinando para o se tranquilizar, foi se encontrar com
inverno que logo chegaria. suas amigas. Em casa, a anfitriã ser-
viu vinho e começaram a conversar
“Vou levar você à Dalmácia para
animadamente.
conhecer uma amiga: Makarska.”
As três foram dormir tarde, e no
Zagreb pegou a estrada que iria
meio da noite Budapeste acordou
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Contos
Isabela Penov
Nadja Ausente
Há sempre uma ausência ao lado Acumulou-se essa falta por séculos
http://www.flickr.com/photos/stampinmom/4239147705/
de cada um que existe. A ausência em cada novo membro da família, a ca-
dos mortos, das alegrias, ausência dos rência de uma geração depositando-se
sonhos, a ausência da esperança, e a na próxima, herança dos vazios pas-
noiva que se foi, o marido que jamais sados. As crianças iam nascendo mir-
retornou, e as roupas carcomidas, as radas e pálidas, parecendo que aquela
cartas que o tempo vai apagando... Mas lacuna estava cada vez mais tomando
naquela família as ausências eram tan- o espaço que o corpo deveria ocupar.
tas e tão imensas, que possuíam nomes Esse legado somava-se ao vazio de
próprios, impronunciáveis, no entanto. cada um deles que pelo mundo passa-
Aqueles sujeitos apenas sabiam-se pela va, constituindo em cada tempo uma
falta, entendiam o que eram pelo que ausência suprema, uma insuficiência
não eram e o que tinham pelo que incurável.
não tinham. Odiavam-se, amavam-se, Em certo tempo nasceriam descen-
entediavam-se, separavam-se, eles e suas dentes raquíticos, e os descendentes
ausências, num pacto rancoroso. Seus dos seus descendentes nasceriam sem
olhares vagos viam somente o que não alguns membros do corpo, até que na
estava. E enquanto isso os corpos iam geração próxima as mulheres ficariam
pela vida escorregando inúteis, esque- grávidas sem sequer notar, grávidas de
cidos de si, em volta de suas presentes um vento ínfimo que se libertaria para
ausências.
Nadja estava com doze anos. Pos- Na casa da frente morava Ana. Ana
suía todas as suas partes e era possível saiu para a rua pela primeira vez quase
enxergá-la toda, embora com certo dois anos depois de se mudar para o
esforço: era um vulto de pele muito bairro. Talvez por timidez, talvez por
branca, corpo um pouco translúcido estar muito ocupada consigo mesma
que não chamaria a atenção não fosse em seu quintal. Ela era tão distraída,
pelo vestígio daquele legado de ausên- mas tão, que às vezes se esquecia de
cia em sua geração: sua perna direita usar as mãos. Mas isso de distração
era mais curta e muito mais delgada é uma mentira. Fato é que ela estava
que a esquerda, de maneira que ela atenta demais às suas fantasias, que
acabava por mancar com evidência. Ao eram aliás muito mais dignas da sua
andar, todo o seu corpo caía para um concentrada dedicação. Essa distração
lado, para então levantar-se todo para o entre aspas fazia de Ana a amiga per-
outro, de um modo estranho na medi- feita para Nadja. Exatamente pelo que
da exata para satisfazer as necessidades se possa suspeitar. Ana saiu para a rua,
alheias do sentimento de estar a salvo. avistou Nadja com seus tatus, puxou
conversa e não pôde perceber nem que
Na maior parte do tempo estava
a menina mastigara quase meia dúzia
no quintal de casa, visível através das
de tatus-bola naquele tempo, e muito
grades mas salva da maior parte das
menos que ela tinha uma perna dife-
ameaças. Ficava sentada com as pernas
rente da outra. Claro, porque a conver-
esticadas, fazendo comidinhas com fo-
sa foi de nuvens a cavalos-marinhos,
lhas e montes de terra, comendo pe-
dos avós a um primo que enlouquecera,
queníssimos tatus ou vestindo bonecas
e depois até muitas coisas inventadas.
com roupazinhas feitas do mesmo pano
das suas próprias. Seu olhar às vezes Se a princípio Irene, a mãe de Nad-
doce acostumou-se alheia do além ja, vigiava assustada a menina esguia
das grades, exceto nos seus momentos no portão, em algum tempo convidou-a
de ódio absoluto: enquanto passavam para o quintal, e pouco depois até para
meninas pulando a corda, tropeçando dentro de casa, embora raras vezes.
graciosas, correndo com seus tornozelos Gostava de Ana tanto quanto Nadja, e
repletos de hematomas e cicatrizes que Ana as estimava reciprocamente, em-
nasciam do viver excessivo. As suas ci- bora o cheiro de Irene lhe enjoasse o
catrizes e hematomas não nasciam, mas estômago por vezes.
eram os sinais da morte gradual da- Uma vez Nadja fez Ana reparar na
quele membro que ela carregava como perna. Não precisa fingir que não sou
a um animal morto. Nessas horas ela aleijada, disse. Não vou ficar triste se
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você falar disso. E Ana se deu conta. mordê-los, dedicou-se à arte de comer
Dói? Pouco, sempre. Muito, às vezes. os bichinhos, mas ainda assim não se
Posso tocar? Mas não aperta. É fria. constituiu nenhum vício. Nadja de-
Está um pouco morta, eu acho. Será? cepcionou-se, mas aos poucos também
Não sei. Não, acho que não. Você é diminuiu as doses de tatu. Chegou um
bonita. A gente sempre olha primeiro dia em que resolveram ter pena deles.
nos olhos das pessoas. Não se repara Passavam quase todo o tempo sentadas
muito nas pernas. Mentira, a gente olha na calçada em frente à casa, mas estar
primeiro sempre o defeito. Será? É. Eu em frente às grades já preenchia as
nunca te vejo andando. É estranho. Dei- tardes de um vigor novo. Conversavam
xa eu ver. Melhor não. Eu te digo o que muito sobre todas as coisas, mas prefe-
parece, juro. Será? Eu não rio, não acho riam o silêncio. Flutuavam completas
graça nem do que tem graça. Bom. num silêncio sem constrangimento,
Sabe o que parece? O quê? Mas a mãe um silêncio de amor absoluto e sem
de Nadja chamou detrás da vidraça, e exigências. Uma pureza era aquilo.
isso era sinal de que Ana precisava ir. Algumas vezes se assustavam e perma-
Mas nem são quatro horas ainda. Irene neciam se olhando com a desconfiança
espiava pela janela. do medo da morte, mas algo insuspeito
Depois de alguns meses Nadja e repentino as fazia gargalhar, e então
tomou coragem para pedir à mãe uma ficava tudo bem para sempre.
saída à rua. Com Ana, evidentemente. Ana distraiu-se em casa com a sua
Depois de muita resistência, ganhou árvore, naquele dia. No dia seguinte
uma ida. A rua toda se juntou para permaneceu sentada no muro balan-
ver. Nadja precisou engolir com força çando o corpo para a frente e para trás,
aquilo que parecia ser todos os tatus estudando a sensação do risco falso da
já engolidos querendo retornar. Sentiu queda. E foi ficando tarde para ir à casa
rebentar dentro de si uma novidade da amiga. Nadja estava magoada, menos
que não soube nomear. Recolheu qual- por Ana não aparecer e mais porque
quer reação que ousou escapar pelo seu não se sentia capaz de atravessar o
rosto. Foi útil a sua aparição para que portão sem ela. Enquanto Ana brinca-
alguns tivessem do que rir, outros do va com os mil muros do muro, Nadja
que lamentar, outros do que se apiedar abriu o portão e permaneceu ali para-
e outros ainda como se sentir salvos da lisada naquela fronteira, entre a casa e
truculência da vida, por um instante. a rua. Ficava balançando o corpo para
Os dias passaram e diminuíram os ri- a frente e para trás, estudando os riscos
sos, lamentos, piedades e alívios. Restou possíveis de quedas, abandonos, risos e
um pouco de cada coisa, mas já era da piedade. E da solidão. E do silêncio
mais fácil acostumar. vazio a que se desacostumara. Largou o
Ana experimentou os tatus. Eram corpo um passo em frente, permaneceu
crocantes na boca, mas raspavam por uns instantes levemente vitoriosa.
a garganta. Depois aprendeu a não Baixou os olhos e retornou ao quintal
com um único passo. Nesse momento
Isabela Penov
Isabela Penov é escritora, atriz e arte-educadora. Dedica-se sobretudo a contos e
críticas teatrais – esporadicamente, poesia. Publica alguns de seus trabalhos em
seu blog Semeaduras, e também no blog Filacantos, um jogo-autoral coletivo. Desde
que se lembra é apaixonada pelas palavras – sua potência, seus limites e seus segre-
dos. Ama as crianças, adora o ócio, gosta de cantar, tem esperança na educação e
uma fé inabalável nas pessoas e na construção de um mundo mais justo.
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Contos
Grávida
Aline Nardi
http://www.flickr.com/photos/bensonkua/3339996466/
Aline Nardi
Escreve desde criança, mas apenas aos 29 teve coragem de publicar em papel. É autora de Misté-
rios do Meu Ventre (2010), pela Ed. Multifoco e A Cova da Alma (2011), pela Ed. Bookess. Publica de
forma independente e sonha em continuar assim até o fim da vida. Persegue alguns títulos acadêmicos,
mas não os considera relevantes ao ponto de serem mencionados. Publica sua literatura em http://aline-
nardi.com.
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Contos
Léo Tavares
Iniciação
A gente gostava de passar as tardes na olhar zeloso pela humanidade parecia fixar-
casa do meu avô. Quando era inverno eu ia se em minha direção. Mas eu não soube
pro quintal ficar procurando os espaços no distinguir uma expressão de complacência
chão onde o sol batia mais largo, peneira- nos olhos azuis daquele Cristo pintado. O
do pelas folhas da parreira. Achava bonito que queria dizer “estou olhando por vocês”
ficar olhando aqueles recortes de sombra. para mim significava: “estou à espreita.”
Algumas folhas secavam e caíam e então eu Senti-me incomodado porque era como se
escolhia as maiores para levar pra dentro um estranho tivesse adentrado a sala para
e jogar na lareira. Lá para as cinco horas o me pôr medo. Ele poderia me atacar a qual-
meu avô trazia a lenha e eu me arrumava quer momento. Afastei-me do fogo, fui até a
atrás dele, todo encurvado, as mãos juntas porta. Saí de dentro da casa e fiz a volta pela
entre os joelhos, pronto pra sentir o calor do varanda. Pela janela ele também me olhava.
fogo no rosto, com olhos e ouvidos aguçados, Tinha um manto azul claro sobre os ombros,
porque gostava de escutar o crepitar da folha e os cabelos eram dourados. Mais tarde o
se desmanchando pra virar cinza, e porque reconheci no Drácula de Coppola. Aquele
cada vez que eu lançava um punhado delas, Jesus era Gary Oldman aparecendo em Lon-
a cor do fogo se avivava. dres para reencontrar Winona Ryder. Ambos
Foi numa dessas tardes, ocupando o meu haviam sido sentenciados e condenados às
posto diante da lareira, com meu punhado agonias físicas mais terríveis, até a hora de
de folhas secas e o rosto muito vermelho sua morte: um por empalamento, outro por
pela proximidade do fogo, que eu levantei crucificação. Um pelas mãos dos fiéis, outro
os olhos num momento raro de distração pelos infiéis. Mas Jesus eu temia mais, por-
e fiquei paralisado diante de um Jesus cujo que me disseram a vida toda que existia. E se
Léo Tavares
Natural de São Gabriel, RS, mora em Brasília, onde estuda Artes Visuais na UnB. Participou da
antologia do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, edição 2007, Concurso Nacional de Poesia
Cassiano Nunes, edição 2009, e Prêmio SESC de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2011. Colaborou
com textos na edição nº 4 da Revista Literária Macondo. Foi finalista do Prêmio SESC de Literatura
em 2010, com o livro de contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer.
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Contos
O Bichinho
Diana Cunha Gil
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Contos
João Pilão
O sineiro de Del Rei
Não vou ficar aqui me consumindo em badalos, onde os sinos falam com seus ha-
exaustão, tentando descrever o que já está bitantes, entoados pela glória dos dobres e
tão bem descrito. Bernardo Guimarães as- repiques cheios de regras litúrgicas em que
sim nos apresenta a bela São João Del Rei, cantam a vida e a morte.
essa formosa odalisca, que abre as portas das É quaresma. E ali, onde abrem as portas
magníficas regiões do sul de Minas, com seu para o Senhor do Bonfim, com suas ruelas
aspecto faceiro e risonho a dar-lhe aparência incrustadas de pedras, e casarios coloridos,
de noiva gentil trazendo na fronte a grinalda desce um negro magro, esguio, e forte. O
da festa nupcial, e nos lábios o sorriso da negro, conhecido por João Pilão, sineiro de
alegria e do amor. Travessa pastorinha. Com tradição, ofício transmitido por gerações,
seu aroma de flor de laranjeira, rosa, jasmim, sabedor dos mais de 40 tipos de toques
jambo e manjerona, das fragrâncias que se festivos e criador de outros tantos aprova-
exalam de seus inúmeros jardins e pomares, dos pela mais alta cúpula eclesiástica das
sempre toucados de flores e frutos porque lá confrarias, desce para o cumprimento de
só se conhecem duas estações, a primavera suas obrigações.
e o outono, que reinam ali harmoniosamen-
te durante todo o ano. Terra dos frutos, das Naqueles dias João andava cabreiro, não
flores, dos perfumes e das canções, dos risos se sabe se por amor a uma singela negri-
e das festas, da beleza e do amor... A Nápoles nha, ou se por conta do seu afastamento
de Minas. das forças armadas em Juiz de Fora, mas
o certo é que foi visto passar ao lado da
Melhor introdução não há de ter, essa Igreja de São Francisco olhando discreta-
bela dama ribeirinha, com suas pontes de mente e de soslaio, como se para não ser
pedras, envolta pelo sagrado e o profa- avaliado. Depois, foi visto no botequim
no. Cheia de histórias, mistérios, e lendas, da Ponte do Rosário, logo na entrada do
senhora da erudição, das melodias e dos
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Contos
Zulmar Lopes
O Centauro de Saramago
Conheceu a Nélida no salão de tou Nélida enquanto manejava com
cabeleireiro. Fora fazer um corte a maestria a máquina. “Professor de
máquina e a gerente, uma fellinia- matemática” foi a lacônica resposta.
na de quase 100 quilos, a convocou Como estávamos na Quarta-feira de
para executar o serviço. Sentado Cinzas, Ignácio ouviu atento e as-
na cadeira, observando-a através sombrado, o relato de Nélida para as
do espelho, Ignácio sentiu o célebre outras cabeleireiras sobre suas aven-
desconforto machista em ser atendi- turas no Baile Gay fantasiada de Co-
do por um travesti. Suas mãos eram elhinha da Playboy. Voltou para casa
pesadas, mãos de homem, a despeito curioso, imaginando Nélida dentro
da tentativa de figura feminina que dos seus trajes carnavalescos.
Nélida se esforçava em representar. Na terceira ida ao salão, encon-
Não fosse o leve azular da barba e trou um negro forte sentado onde já
a voz artificialmente colocada, por considerava o seu lugar. A felliniana
mulher passaria. Ele voltou para chamou outra cabeleireira para dar
casa incomodado, mas reconhecen- um trato em sua cabeça semirraspa-
do que Nélida havia caprichado no da e Ignácio, disfarçando a contra-
corte. riedade, ficou bisbilhotando os mo-
Na segunda vez, já estavam um vimentos de Nélida que, num frenesi
pouco mais íntimos e o desconforto entusiástico, esculpia na nuca do
diluíra. “Trabalha em quê?” pergun- Apolo de Ébano a palavra “Mengo”.
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Contos
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Isabella Gonçalves
Sonho de Cores
O verde engole e envolve o tudo. olhos. Com o movimento, me deixei
A estrada fica ali, reservada. Seu cin- dormir. Acordei em um lugar en-
za apagado, enquanto carros passam cantado. Existiam milhares de bor-
em cima, desejando explorar ainda boletas, e elas pousavam em todos
mais a sua imensidão. Casas peque- nós, enquanto fotos e flashes eram
nas. Vacas brancas. Árvores. Mato, disparados. Tentativa de eternizar
mato e mato... Nem vejo o final. o invisível. As aves cantavam, sem
Cadê o horizonte? Sumiu... E a gente se espantarem muito com a nossa
continua indo e indo em cima desse presença. Tudo era iluminado com
carro que não sabe muito bem qual o sol e mais nada. A noite reservava
destino tomar. Só segue a estrada, a presença da lua, que ainda refletia
perdido e guiado por aquele cami- certa luminosidade, mas apenas o
nho incerto que guarda as surpresas bastante para fazer nossos olhos se
do Pantanal. acostumarem.
Pássaros voando. Um, dois, três, As estrelas decoravam o céu, for-
quatro. Formavam um V, fazendo ba- mavam um caminho branco, a via
rulho e ilustrando o céu. Persegui- láctea. Deitei no barco, sem saber
os, até que foram embora para não onde estava. Não podia ser o nos-
mais voltar. Abandonaram os meus so planeta, a nossa casa. Era mais.
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Contos
http://www.flickr.com/photos/roadblog/96979912/
Naquela pacata terra, tudo funcionava com sobre a bagagem, cogitava-se que seria arti-
a mais perfeita integração. Era como uma lharia das mais pesadas: de Gógol a Dostoié-
engrenagem celeste: o açougueiro cortava a vski, de Donne a Hemingway, passando pelos
carne, o escrivão relatava as ocorrências, o Machados...
leva-e-traz levava e trazia. Tudo ia bem, até Não foi absolutamente infundado concluir
que apareceu lá um arruaceiro. que ele traria problemas. E, se os traria, não
À sua chegada, todos se alvoroçaram. interessava saber quais seriam ou quando
Pudera! Ele portava uma bagagem para lá de iriam começar. O negócio era cortar logo o
esquisita. Diversos caixotes castanhos com mal pela raiz, e em casos como aquele, de ní-
inscrições de “Cuidado! Frágil!” despertaram tida transgressão, tinha validade saltar toda a
curiosidade nos moradores que se achavam na baboseira de ouvir o outro lado e chegar sem
estação de trem no instante do desembarque delongas à parte em que o réu é condenado
do sujeito. E, como em todo lugar, houve quem e punido. Com este ânimo, todos, até os mais
se aproximasse tanto que conseguisse desco- liberais, repudiaram em coro a inaceitável
brir, pela denúncia de alguma fresta em um abjeção do infame – ainda que não a tivessem
dos contêineres, o teor daquela tralha suspei- presenciado – e se inclinaram, favoráveis, na
tíssima: livros! direção da sentença.
O boato logo tomou o lugarejo; e, tal como Algumas almas caridosas apiedaram-se
no ditado “quem conta um conto aumenta um quando a noite caiu sem que o forasteiro
ponto”, havia quem jurasse que ele, mal en- tivesse encontrado guarida, mas, que remédio?
trara na cidade, já sacara – que perigo! – um Havia provas irretorquíveis de que ele era re-
robusto exemplar de As mil e uma noites. Já almente nocivo, e, diante de tantas e
vidências,
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desafio para um duelo que envolvia a comuni- que ninguém se lembrava mais de averiguar a
dade inteira – já toda ciente, àquelas horas, da sua legitimidade, determinou que acontecesse
ineficácia do corretivo. Infâmia! Era a prova da precisamente o oposto. Que queimassem os
qual os guardiões da honra da cidade necessi- livros antes, e bem na frente dele, para que ele
tavam para punir exemplarmente o desajusta- pudesse ter, como última lembrança, a visão
do. de seu tesouro arruinado, e para que eventuais
Juntaram-se em volta do infeliz e o arrasta- seguidores ficassem certos de que a lei dali
ram pela praça até chegar ao canteiro cen- tinha de ser cumprida.
tral. Lá, fincaram uma madeira à qual ele foi Então, os zeladores da tradição do lugarejo
amarrado. E, como o instrumento acionado na dispuseram, sob o olhar regozijado do leiteiro
hora H pelo membro da orquestra bem en- – cujo prestígio crescera a ponto de se poder
saiada, seus valiosos bens ressurgiram, trazidos deleitar no mesmo espaço em que o prefei-
em lombo de cavalo pelo policial, que mante- to, o policial e outros ilustríssimos do lugar
ve um risinho sarcástico no rosto por todo o celebravam o triste ocaso da ovelha negra – os
tempo em que os descarregou diante da teta, livros empilhados a certa distância do réu, de
cuja exaustão, perturbadoramente, tardava em modo que ele pudesse observar sua destrui-
se manifestar, encolerizando ainda mais os ção para, na sequência, senti-la de encontro à
protetores da ordem da cidade. própria pele. E não tardou para que calibrosas
Aquelas crianças para quem o desordeiro labaredas começassem a se erguer, enquanto
lera histórias durante sua polêmica passagem os cidadãos, tochas em punho, observavam,
pela cidadela, em franco indício de que o mal atarantados, o olhar indiferente e até altivo do
já se havia instalado a despeito da seriedade e salafrário.
empenho com que todos trataram a questão, Subitamente, entretanto, o inusitado acon-
choravam copiosamente. As que felizmente teceu: aquelas pessoas impolutas, aqueles
haviam escapado ilesas àquela nefasta impreg- autênticos guardiões dos bons costumes, iam,
nação, riam-se e gritavam palavras de ordem, repentina e inexplicavelmente, sendo puxados
atiçadas pelos pais que não cabiam em si de para o alto em solavancos. Um a um, a come-
orgulho. çar pelos mais próximos da fogueira e depois
Em tom forçadamente piedoso, o policial, de maneira caótica, habitantes reles e célebres
abarrotado de solenidade, quis saber sobre o decolavam, como jatos, para sumirem nas nu-
último desejo do – seu, enfim! – sujeitado. En- vens. E o homem mantinha-se calmíssimo.
tão o homem – que não era afeito a dar espe- Pânico instalou-se na praça lotada. Enten-
táculos tendo a si como personagem – pediu, dendo que aquilo devia ser alguma espécie de
em tom artificialmente submisso, que o quei- maldição do monstro, a multidão começava
massem primeiro, e se deu ao luxo de uma a se dispersar. Houve correria e estardalhaço.
justificativa, qual fosse a de que não suportaria Os lugares mais insuspeitados serviram de
ver seus livros, cujo valor, para ele, transcendia esconderijos, mas as pessoas iam, inexoravel-
o meramente material e passava a ser afetivo mente, sendo arrancadas de onde quer que
– sendo, por isso, inestimável – convertendo-se estivessem, e, dada a aparente aleatoriedade
em inúteis cinzas. daquela macabra escolha, não havia muito o
Alguns, precisamente aqueles que se pres- que fazerem, a não ser se deixarem ficar – de
tam a ser os redentores póstumos dos mais nenhum modo isentas daquele tormento que
indefensáveis criminosos, viram pertinência no amolece e acovarda – até terem que ir. Uma
pedido. Mas o prefeito, que pertencia à ala dos angústia acachapante pairava no ar, mas – não
opressores a la Nero e ansiava por esmagar que aquela gente ainda estivesse reparando –
aquele que ousara ir de encontro a todo um o homem dela se eximia. Apenas ficava ali,
regime que vinha dando certo há tanto tempo amarrado e quieto.
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Contos
Menina na Tempestade
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João Vereza
Céu escuro, troço violento, trovões sem saber de onde, os raios sem saber o próximo,
estalo!, explosão!, valei-nos que Deus acordou furioso.
A tripulação espalhada na correria, recolham as velas descabeladas, amarrem firme
estes barris, Nossa Senhora, tranquem logo os víveres na gaiola.
O Capitão um capeta delirante, ordenou ser amarrado, chumbado, preso ao timão
pela corda serpente.
Gorgolejou com os pulmões, gargalhou como uma viúva louca, ‘molhe mais, vente
mais, minha menina o Senhor não naufraga!.
Seus marujos visíveis nos relâmpagos estroboscópicos, agora esticam uma corda, agora
estirados no convés, agora rezam à garrafa de rum.
O navio carregado pela avalanche do oceano, que chance terão suas almas?, pra que
destino lhes suga o redemoinho?.
O vidro cai na água, o menino se livra das cordas e salta o herói alado, o mergulho
sob uma pratada de orquestra.
Nada no estômago das ondas, chega até o jarro e agarra-se ao medalhão salva-vidas.
Os besourinhos sobreviventes e amontoados, as patinhas vagarosas pelo ar, as pernas
do menino gastando a bravura.
Ele grita para o vulto do barco, a água rouca encharcando a voz adolescente.
O Capitão voltaria com sua menina, nem homem, nem besouro, se esquece para trás.
Seu fôlego falhando e o navio se distanciando, a esperança tola ninguém ouviu.
‘Meu Capitão, doutor Beautrace!, já iam lhe jogar a bóia, ‘aqui!, claro que iam, ‘aqui!, já
iam já.
João Vereza
32 anos, é carioca.
Redator publicitário, mora há 6 anos em São Paulo e tem seus textos publicados nos sites Mundo-
Mundano e Jornalirismo.
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Contos
Sombras de carne
Cinthia Kriemler
http://www.flickr.com/photos/amycgx/2877633638/
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Fizeram sexo, ela e o homem do brava-se sempre dele e dos outros, de
perfume suave, por quase um ano. Ele mesma idade... É impressionante como
ia até a banca, encomendava os produ- são desajeitados!, pensava, observando-
tos e pedia que fossem entregues em lhes os gestos durante o coito. Como
sua casa. E a entrega se fazia no suor muitos deles não tinham dinheiro ou
dos corpos apressados. Lola fez-lhe uma renda, comprometiam-se com a obriga-
exigência: que comprasse sempre muito. ção de levarem pais e amigos à banca
Aplicava, assim, ao amante e a si mesma, no mercado. Cumpriam direito o trato,
um mea culpa. Ambos pagavam, a seu com medo de terem que ir correr atrás
modo, pelo que consumiam. Quando o de jovens cheias de espinhas e regras
amante parou de procurá-la, Lola per- que os afastavam por pudor ou esperte-
cebeu que não sentia falta dele, mas das za.
compras que fazia em abundância. E de- Rodrigo tinha ido à banca, pela pri-
cidiu que era preciso repor o prejuízo. meira vez, num dia frio. Primeiro, ficara
Da banca e do corpo. Um a um, foram olhando para o chão, com timidez, mas
surgindo outros fregueses. No princípio, no momento em que seu olhar cruzou
ocasionais, induzidos pela boca pintada com o dela, Lola percebeu a inquietação
de Lola, que parecia a polpa das frutas que havia naqueles olhos que fugiam de
que vendia. Mas, em poucos meses, o tudo. Chegando ao pequeno apartamen-
plantel que a solicitava era constante. to do rapaz para entregar as frutas e os
Assim que Xavier quis contratar um doces, surpreendeu-se com a arrumação
ajudante para ajudá-la com as entregas, e o bom gosto do lugar. E surpreendeu-
ela se opôs: “Desse jeito, o lucro vai-se se mais ainda quando Rodrigo lhe disse
embora!”. Aos 42 anos, Lola rendia-se que morava sozinho. Fizeram um sexo
pela primeira vez em sua vida a um ruim sobre a cama macia e larga, mas
vício. Viciara-se não somente no sexo Lola não estava interessada nas habili-
diversificado, mas na urgência, no de- dades de Rodrigo. Impressionava-se era
sejo pelos corpos que aliviavam os seus com os gestos relutantes e respeitosos
tremores. Nenhum dos amantes dava do rapaz, quase como se lhe quisesse
trabalho. Nenhum deles fazia do sexo fazer amor.
mais do que o prazer das línguas an- — Primeira vez? — perguntou, curiosa.
siosas, das penetrações que a invadiam
com mais ou menos força. Aceitava o — Não, com certeza não. Mas, de uma
aperto nos seios, as bofetadas ocasio- certa maneira, sim...
nais que levava ou dava, a cavalgada e Apesar de intrigada, Lola decidiu que
a posse animal. Recusava-se, apenas, a já tinham conversado demais. Coitado,
dentes que lhe marcassem o corpo que não bate bem das ideias, disse a si mes-
Xavier veria, cedo ou tarde; e aos beijos ma, enquanto saía do apartamento de
na boca, que se empenhava em reser- Rodrigo, logo depois.
var para o marido. Negava-se, também, O rapaz a procurava havia cinco
a deitar-se com menores e com mais meses. Procurava sempre, em excesso.
de um amante ao mesmo tempo. Afora E Lola concordava em se deitar com ele
essas rejeições, fazia pouco sexo com por pena, curiosidade, culpa... Sim, era
mulheres, porque sentia falta da pene- culpa aquele sentimento que sempre a
tração e dos fluidos. levava a fazer coisas das quais se arre-
O primeiro rapaz com o qual havia pendia depois. Sentia-se culpada por
feito sexo tinha cerca de 20 anos. Lem- não conseguir dar a Rodrigo o alívio
Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em
Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o
público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me
deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e
do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de con-
tos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — RE-
BRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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Tradução
Provérbios do Inferno
O Casamento entre o Céu e o Inferno (excerto)
William Blake
trad.: Henry Alfred Bugalho
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Alegria impregna. Pesar dá a luz.
Que o homem vista a pele do leão, a mulher o pelego da ovelha.
O pássaro, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade.
O sorridente tolo egoísta e o tolo triste e carrancudo serão ambos considerados
sábios e servirão de exemplos.
O que hoje é prova, ontem era somente imaginação.
A ratazana, o rato, a raposa e o coelho: atenção às raízes; o leão, o tigre, o cavalo
e o elefante: atenção aos frutos.
A cisterna contém; a fonte transborda.
Um pensamento preenche a imensidão.
Esteja sempre pronto para dizer o que pensa e um homem vil o evitará.
Qualquer crença é uma imagem da verdade.
A águia nunca desperdiçou também tempo como quando ela resolveu aprender
com o corvo.
A raposa provê para si própria, mas Deus provê para o leão.
Pense de manhã. Aja ao meio-dia. Coma à tarde. Durma à noite.
Aquele que te permite abusar dele, a ti conhece.
Como o arado obedece às palavras, assim Deus recompensa as orações.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Espera veneno das águas paradas.
Nunca saberás o que é o suficiente, a não ser que saibas o que é mais do que o
suficiente.
Ouve a repreensão dos tolos! É um título real!
Os olhos do fogo, as narinas do ar, a boca da água, a barba da terra.
O débil em coragem é forte em astúcia.
A macieira nunca pergunta à faia como ela deve crescer, nem o leão ao cavalo
como ele deve caçar sua presa.
Aquele que agradece o que recebe tem uma abundante colheita.
Se os outros não fossem tolos, nós deveríamos sê-lo.
A alma do deleite doce não pode ser maculada.
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A Imagem Divina William Blake
trad.: Henry Alfred Bugalho
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William Blake (Londres,
28 de novembro de 1757
— Londres, 12 de agosto de
1827) foi um poeta, tipó-
grafo e pintor inglês, sendo
sua pintura definida como
pintura fantástica.
Blake viveu num perío-
do significativo da história,
marcado pelo Iluminismo e
pela Revolução Industrial
na Inglaterra. A literatura es-
tava no auge do que se pode
chamar de clássico “augus-
tano”, uma espécie de para-
íso para os conformados às
convenções sociais, mas não
para Blake que, nesse senti-
do era romântico, “enxergava
o que muitos se negavam a
ver: a pobreza, a injustiça
social, a negatividade do
poder da Igreja Anglicana e
do Estado.”
Infância
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62 SAMIZDAT setembro de 2012
William Blake, O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida em Sol
William Blake, Sete Espíritos de Deus
www.revistasamizdat.com 63
64 SAMIZDAT setembro de 2012
William Blake, The Ancient of Days setting a Compass to the Earth
www.revistasamizdat.com 65
65
William Blake, Night startled by the Lark
Artigo
http://www.flickr.com/photos/lchifi/231115148/
Henry Alfred Bugalho
O Muro de Indiferença
ou a invisibilidade dos candidatos a escritores
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editoras e foi recusado, então já deve o editor afirma que meu livro é um
ter alguma ideia do que estou falando, lixo, que meus personagens são fracos,
senão, está na hora de você tentar. que não sei escrever, que não tenho
Em janeiro de 2012, entrei em conta- nenhum futuro no mercado literário,
to com quase trinta editoras para con- pois, pelo menos, terei a certeza que fui
firmar se estavam recebendo originais lido, que alguém realmente dedicou um
para análise, pois estas pouco de seu tempo para
informações nem sempre
“Pior do que a tentar encontrar algum
estão muito claras nos crítica negativa, ou valor naquelas páginas
sites delas. até mesmo do que que me tomaram tantos
Destas, somente três a crítica destrutiva, dias para serem escritas e
revisadas.
responderam, sendo que é a indiferença”
duas delas não recebiam Pior do que a crítica
mais material por não terem equipe negativa, ou até mesmo
suficiente para dar conta de todos os do que a crítica destrutiva, é a indife-
manuscritos que já haviam recebido rença, a sensação que você é tão insig-
anteriormente. nificante que não merece sequer uma
resposta por e-mail.
De trinta, somente três respostas!
Este é o cenário que você, escritor
As que informam que só analisam
iniciante, encontrará diante de si.
material enviado através de agentes lite-
rários já delimitaram sua política: “não Após mais de uma década escre-
trabalhamos com autores estreantes”. Pois vendo, conversando com centenas de
qual autor em início de carreira possui escritores e participando de oficinas li-
um agente literário influente? terárias, editando obras e revistas inde-
pendentes, não conheço nenhum autor
Em julho deste mesmo ano, contatei
que tenha sido publicado por uma das
dez editoras, enviando algumas breves
grandes editoras do Brasil. Nenhum,
perguntas sobre o processo de sele-
absolutamente zero!
ção de autores estreantes e apenas a
Soraia Reis, diretora editorial da Editora E isto porque eu, que não tenho ne-
Planeta, respondeu*. nhuma influência no mercado literário,
já pude me deparar com escritores bri-
Agora, cá entre nós, se a equipe de
lhantes, daqueles que escrevem histórias
uma editora é incapaz de ler e respon-
que reverberam em sua mente por dias
der simples e-mails, você ainda acredita
e dias, de fazer os pelos de suas costas
que eles lerão e darão alguma atenção
se arrepiarem durante a leitura. Vários
ao seu livro de trezentas páginas?
deles não suportaram o muro de indife-
Como escritor, eu não me importo se rença e hoje nem escrevem mais.
receberei uma carta de recusa na qual
Alguns simplesmente não aguentam.
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Mesmo assim, Soraia Reis é categó- potencial comercial deste autor que acaba
rica em afirmar que “recebemos muitos de vender milhões e milhões de livros
originais, como já citado, mas dentre estes, digitais?”, é a questão que se levanta,
podemos descobrir grandes pérolas, afinal, e muita gente tem começado a dar-se
todo escritor um dia foi inédito, não é conta que nem sempre os editores são
mesmo?” um bom referencial na hora de deter-
minar o que é que os leitores realmente
gostam.
Qual é o caminho das pedras?
2 - concursos literários
Se eu pudesse lhe indicar este cami-
nho, provavelmente nem estaria escre- Ganhar algum prêmio literário im-
vendo este artigo. Talvez nem haja um portante, além de inflar seu ego e dar-
caminho, a não ser o simples rolar dos lhe uns tostões, pode também atrair a
dados da Fortuna. atenção de alguma editora.
Alguns conseguem, outros não: uma No entanto, cautela! Nem todos os
verdade definitiva da existência. concursos são confiáveis e alguns deles
são obviamente com cartas-marcadas.
No entanto, nem tudo está perdido.
O panorama é cinzento, as nuvens são Os grandes concursos, entenda-se os
carregadas, mas sempre há uma espe- que possuem um prêmio em dinheiro
rança. apetitoso, atraem tanto autores anôni-
mos quanto consagrados, e você pode
estar certo que, entre premiar Dalton
Seguem algumas alternativas para
Trevisan e você, eles escolherão o
o candidato a escritor:
famoso.
1 - publicação independente
3 - tente as pequenas editoras
Autopublicar-se nunca foi visto
Fechar um contrato com uma grande
com bons olhos por editores nem por
e influente editora é o ideal de todo o
leitores.
escritor, motivado principalmente pela
No entanto, tudo tem mudado tão ilusão que assim ele terá muito mais vi-
rápido que, hoje em dia, com tantos sibilidade nas livrarias e venderá muito
casos de megassucessos instantâneos de mais livros.
autores publicados independentemente
Contudo, é preciso começar por
nos EUA, a autopublicação não ape-
algum lugar e existe uma porção de
nas não tem sido mais observada com
pequenas casas editoriais, às vezes no
desconfiança, como agora a crítica tem
fundo do quintal do editor, dispostas a
se voltado contra as grandes editoras
encontrar e publicar novos talentos.
americanas.
Mas também não se engane... Quase
“Como é que vocês não perceberam o
sempre você terá de meter a mão no
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Soraia Reis, diretora editorial da escritor pode confiar que um livro com
Planeta, responde: potencial será descoberto em meio aos
demais originais que a editora recebe
1 - além de escrever um livro interes- todos os meses?
sante, como deve proceder um escritor O texto precisa ser bom, condição
em início de carreira para despertar a primordial, mas quando um agente co-
atenção das grandes editoras? nhecido acredita no livro, já sabemos que
Como você disse, escrever bem em pri- devemos ler, pois ele já fez a primeira
meiro lugar. O autor de ficção deve criar leitura. Afinal você conhece o trabalho
uma história encantadora, aquela que o de cada agente. Mas inúmeras vezes não
leitor não tem vontade de parar de ler. contratamos livros vindos dos agentes e
Para isto o texto deve ter fluência. Já no contratamos livros que recebemos direto.
livro de não-ficção, o autor deve conhecer Normalmente o agente ajuda na divulga-
profundamente sobre o que está escreven- ção do livro, como também a melhorar a
do. Deve pesquisar, se atualizar. Em ambas forma do livro.
as áreas, o escritor precisa se preparar. 3 - apostar em um autor nacional es-
Após preparar um belo texto que se treante é um risco? Por quê?
diferencie dos demais, pois as editoras
Tudo é risco. Por exemplo: compra-
recebem centenas de originais por mês, o
mos direitos de livros estrangeiros que
autor deve fazer uma boa apresentação do
venderam 1 milhão de cópias nos EUA,
seu trabalho e encaminhar a sua biografia
mais 1 milhão na Europa, e no Brasil não
anexa. Outro ponto importante é enviar
acontece nada. O editor apostou em um
http://www.flickr.com/photos/johnjoh/766356899/
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Teoria Literária
OS SIGNOS DO MUNDO,
DO AMOR E DA SENSIBILIDADE NA
LITERATURA DE MARCEL PROUST
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força-o a pensar e realizar descobertas: alizar descobertas, mas de que essas desco-
bertas sejam feitas sempre posteriormente.
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Crônica
CRÔNICA TRANSITIVA
Adriane Dias Bueno
http://www.flickr.com/photos/alanvernon/3051226992/
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Crônica
http://www.flickr.com/photos/pixelcatcher/5027024217/
João Paulo Hergesel
Sinestesia,
Oximoro
e Anadiplose
Meu mal de nascença é a preferên- nem sabia o que era isso.
cia por coisas incomuns; sempre fui — Estatística?
o patinho feio que rodeia o lago dos
cisnes. Nas aulas de educação física, — Não. Estilística!
todos brigavam pela bola de futsal, — Ah, aquilo de fazer vestido de
mas eu só queria saber do tabuleiro de noiva.
ludo. Nos fins de semana, todos idola- Quando eu tentava, humildemente,
travam o sol, mas eu adorava os sába- explicar que se tratava de estudar o es-
dos e domingos chuvosos. Nas baladas, tilo da palavra, a decepção era notável:
todos carregavam o frasco de vodca,
— Tanta coisa para fazer, e você fica
mas eu só segurava o copo com suco
dizendo se a palavra é feia ou bonita?!
de abacaxi.
De nada adiantavam meus soliló-
Na faculdade, não foi diferente.
quios sobre funções, vícios e figuras de
Cada um tinha sua própria paixão
linguagem. Era inútil mostrar que há
por uma das áreas do curso de Letras:
nome para quando se mescla sentidos,
uns eram rígidos na gramática; alguns,
ou se fala de modo contraditório, ou se
meticulosos na linguística; outros, fan-
repete a última coisa que foi dita; si-
tasiosos na literatura. A amplitude da
nestesia continuava sendo aquilo que o
Língua Portuguesa, no entanto, me per-
médico aplica para o paciente relaxar,
mitiu ser diferente (de novo) e escolher
oximoro permanecia uma marca de
me especializar em outro campo: o da
alvejante e anadiplose ainda era nome
estilística. A maioria dos meus colegas
de uma tribo indígena do sul do Mato
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Crônica
A 5ª Sinfonia de
Beethoven Otávio Martins
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estruturas usadas, tanto para ficarem maneira de falar, não sei se é assim
fixadas (tesouras, cumeeiras e outros que se diz, foi que comecei a enten-
bichos), quanto os meios de se ir levan- der melhor. Ora, além de formar esses
tando uma construção, são na forma quatro triângulos, na subida, existe,
triangular. Ele disse que o triângulo era ainda, na base, o quadrado, mais quatro
o melhor suporte para segurar qualquer lados, formado, ao mesmo tempo, pelos
coisinha, mesmo que seja, ainda, uma próprios lados dos tais triângulos, para
coisona. Numa obra, revelou o mestre, sustentá-los. Parece coisa de louco, mas
é só pegar três pedacinhos de madeira não é. Tirando essa rigidez toda fora, o
e três preguinhos, desses manjados 12 que será, no frigir dos ovos, que susten-
x 12, e estará construída a fortaleza. ta aquela pontinha, lá de cima? Uma
Nossa, juntando as informações do meu das explicações achei numa frase cor-
amigo mestre de obras e alguns dados riqueira: “Você ainda chega lá.” Ou, “Eu
da minha investigação, me assustei. Ele ainda chego lá.” Saindo daqui de baixo,
também dissera que o triângulo, por considerando a tal de Pirâmide Social,
ter três ângulos, tinha essa propriedade. pra se chegar lá, me pareceu lógico, o
Mas, se a tal de pirâmide tem quatro sujeito terá que se valer de vários de-
triângulos, postados sobre um quadra- graus, humanos. Por vezes, mais exata-
do, cujos lados, são, também, os lados mente pela maioria das vezes, fica-se
de cada um desses triângulos e, ainda, pelo caminho. Aí, não tem cristão que
lá em ciminha tem um vértice pra nin- dê jeito. É uma longa estrada. Pior, na
guém botar defeito... Parei. Desisti. Vai subida. Ainda, pra se chegar lá, é preci-
ser forte, assim, no inferno. Esses egíp- so ser bom de capoeira, rasteira, coto-
cios... Nem tentei fazer os cálculos. velada, puxação de tapete e, claro, bom
Por saberem, os analistas políticos e de corrupção e de hipocrisia, também.
econômicos – expertinhos como eles só E, disso tudo, saber se defender. Os que
– que a pirâmide é um “achado”, pas- estão, ou pensam que estão no meio
sam a vida inteira tomando-a como o do caminho (aí, precisa imaginar uma
seu cavalo-de-batalha. Pano pra mais de outra pirâmide, cujas bases, mantendo a
metro. Vichi! A vida inteira, dela sobre- mesma estrutura, vão-se estabelecendo
viverão. Quatro milênios não são ape- ao longo da subida). Se for na descida,
nas uma vida. Bota um monte de gera- vertiginosa, certamente será. Triângulos
ções nisso. Bem, até aí morreu Neves. E abaixo e, sabe-se lá, quantos quadrados
a tal de Pirâmide Social, propriamente durante a queda, assim, no rapidão, se
dita? Tive que percorrer algumas eta- apresentarão?
pas da evolução do homem, até chegar Isso tudo começou porque eu estava
onde cheguei. Quando atingi o cume, assistindo a um vídeo da Orquestra
Otávio Martins
68 anos, iniciou a escrever contos e crônicas por volta de 2006, para preencher alguns espaços
em seu jornal eletrônico nb-NOTÍCIAS DO BRASIL, posteriormente rebatizado de O SPAM.
É fotógrafo e cinegrafista (ou era). Trabalhou na extinta TV TUPI - (TV Ceará, em Fortaleza,
1969 e 1970). Produziu alguns shows em São Paulo, com Adoniran Barbosa e Grupo Talismã; Edu-
ardo Gudin, Márcia e Roberto Riberti, além de Paulinho Nogueira; Tom Zé e Vicente Barreto; João
do Vale, Zé Keti; Odair Cabeça de Poeta; Premeditando o Breque e outros.
Foi assistente de produção do Festival Universitário de MPB, 1979, assessorando o produtor,
Eduardo Gudin, do qual surgiram Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque, Celso Viáfora e outros.
No Festival do Guarujá, através da Secretaria de Cultura, coordenou e, junto com outros, definiu
a participação e contratos na área musical (Hermeto Pascoal, Gonzaguinha, Egberto Gismonti,
Sivuca, Baden Powell, Sérgio Cabral, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Paulinho Nogueira,
Eduardo Gudin, Sérgio Ricardo, Maurício Tapajós e outros - participantes).
Trabalhou como cozinheiro em Florianópolis. Arrisca algumas harmonias no violão para suas
composições, como O dono do barco, Beija-flor, Meu amor sereno, É do mar e outras.
Atualmente se dedica, somente ao jornal O Spam e escrever alguns contos e crônicas.
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Poesia
Idealizado por Lohan Lage Pignone, o risco de encarar o ‘novo’. Nesta, con-
graduado em letras pela UNESA Nova firmamos o formato inovador e atesta-
Friburgo e autor de Poesia é isso pela mos que, definitivamente, é um certame
Editora Multifoco, o Concurso de Poe- que tem tudo para se tornar um dos
sia Autores S/A é um concurso virtual mais importantes do país nos próximos
que tem como arena o blog Autores S/A anos”. Foram 502 inscritos de todo o
(http://autoressa.blogspot.com/). Prezan- Brasil (além de Angola, Portugal, Japão
do pela transparência na divulgação e Áustria) na fase de pré-seleção, ten-
dos poemas, das notas e dos comentá- do restado somente 12 finalistas, após
rios dos jurados, o concurso teve sua três grandes peneiras. Os 12 guerreiros
primeira edição em maio de 2011 e, poetas lutaram pelo título e pela pre-
como ganhador, o poeta friburguense miação. “O formato dinâmico, uma sur-
Marcelo Asht. presa a cada etapa e o alto nível quali-
A escolha do corpo de jurados é tativo dos poemas são os ingredientes
um ponto alto neste certame, que já infalíveis desta receita”, afirma Lohan.
contou com grandes participações O concurso foi disputado por pontos
como as dos autores João Gilberto corridos semanalmente. A final ocorreu
Noll, A ntônio Carlos Secchin, R
onaldo nos dias 16, 17 e 18 de agosto, após
Cagiano, Afonso Henriques Neto, uma boa dose de suspense na divulga-
Thelma Guedes, Nilto Maciel, André ção do nome do campeão. A vencedora
San’tanna, Micheliny Verunschk e um foi a poeta baiana Letícia Simões, 24,
belo parecer geral de Marina Colasanti, que, no começo do concurso, morava
entre outros ícones do cenário literário no Rio de Janeiro; e hoje reside em
brasileiro. São Paulo. A vice-campeã foi a poeta
Com a segunda edição finalizada, Cinthia Kriemler, tendo ficado apenas 4
Lohan afirma que o legado deixado pontos atrás da vencedora.
pelo certame é bastante rico. “A segun- Para ter acesso aos poemas tanto da
da edição foi um marco, um recorde primeira quanto da segunda edição,
de participantes, tanto entre os poetas além de outros textos artísticos dos
quanto entre os jurados oficiais e con- autores s/a, acessem:
vidados. Na primeira edição assumimos autoressa.blogspot.com.
necessidade.
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2ª Colocada do II Concurso de Poesia Autores S/A: Cinthia Kriemler
(Brasília, DF)
Reconstruir o
parvo futuro. Calo
que declara extinta a mudez ficta do povo. o Camponês que planta a semente
http://www.flickr.com/photos/catzrule/4793895869/
Mudo-me, Dentro de
do morto. [En-
quanto ele caía
minha mãe paria] O médico disse em tom
Disse o homem concreto - armado: de bravata:
Nem homem, nem mulher,
MUDO-MURO-MUDO seu filho é Comunista.
MURO-MUDO-MURO
MUDO-MURO-MUDO
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4º Colocado no II Concurso de Poesia Autores S/A: Henrique César Cabral (São
Paulo, SP).
além-ali o pio
as amarras do tempo – as correntes da inocência
envolvem teu corpo de madeira
o coração cai placenta adentro
sonha que é dardo passa pelo estreito osso do tempo
no encalço de uma ideia
MALVINA
Cris Dakinis
Cris Dakinis
é o nome artístico de Ana Cristina Mendes Gomes, premiada em diversos concur-
sos literários no Brasil e no exterior. É autora dos livros de poesia “Por Arte de Magia”
(2008), “Aos Distraídos!” (2010). Menções Honrosas por livro infanto-juvenil (Argenti-
na, 2009) e livro de poesia (Portugal, 2010). Membro da Academia de Letras e Artes
de Arraial do Cabo/RJ, escreve para sua página: www.crisdakinis.com
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Poesia
“Vocês sempre se agarram às velhas identidades, omésticas menos ainda das invisíveis
d
faces e máscaras, mesmo depois que elas não
servem mais. nem tenho qualquer traço de controle
sobre tais bichos
http://www.flickr.com/photos/opaqueuphony/3080381221/
Mas um dia, você tem que aprender a jogá-las
fora.” como aqueles caras da televisão ou da
Índia
Death
em Sandman #20
que se envolvem corajosamente com
Terra dos sonhos: Fachada
crocodilos, cobras e leões
de Neil Gaiman
[vi mais de um deles corajosamente
morrer desse jeito]
não é possível que queira voltar para o lobo foi-se embora outra vez
onde o mantive preso
faço ideia de que não apenas eu fui
roído no processo
ele também se feriu
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Poesia
http://www.flickr.com/photos/psyberartist/6607876803/
do início ao fim a exceção é a saudade
tudo dividido em volumes
tudo impresso em sinais gráficos a saudade é uma pilha de folhas
reconhecíveis soltas
tudo atravessado num dos cantos
da página por um número vez ou outra bate sobre quem as
de um ao [isso varia de caso a juntou a vontade de revê-las
caso] como bate sobre elas o ar movido
e se vai-se à frente por uma janela esquecida aberta
ou se volta-se ou por uma porta que
de propósito se fecha
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Poesia
Caem corpos
em Pinheirinho
http://www.flickr.com/photos/pedromoriyama/5767006855/
Caio Dezorzi
Não é terça-feira
E nem é dia de alguém trabalhar Moradores despejados
Pensa que o povo sempre aceitará Sonha em poder ser uma bailarina
Caio Dezorzi
Caio Dezorzi é um ator, professor e escritor paulistano, formado em educação pela
Unesp, idealizador do jogo autoral “Filacantos” (filacantos.blogspot.com) e mantém um blog
autoral chamado “Fundo da Gaveta” (caiodezorzi.blogspot.com).
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Poesia
http://www.flickr.com/photos/tonivc/2283676770/
A tempestade das décadas:
Os segundos enferrujam
Os minutos racham
As horas trincam
O tempo desmorona
André Kondo
é autor dos livros “Além do Horizonte”, “Amor sem Fronteiras” (Prêmio Paulo
Mendes Campos – UBE-RJ), “Contos do Sol Nascente” (Prêmio Bunkyo de Literatura
2011, M.H. Prêmio Esfera das Letras – Portugal e ProAC 2010). A lançar: “O Pequeno
Samurai” (D.M.H. Prêmio João-de-Barro 2009) e “Palavras de Areia” (Prêmio Alejan-
dro Cabassa – UBE-RJ). Como poeta, aceita também seu nome nipônico, gravado
de forma equivocada no momento de seu registro: “Telucazu”, pois a poesia admite
todos os equívocos do mundo. Com mais de 50 prêmios literários, é pós-graduado
pela University of Sydney. Viajou por 60 países. Continua viajando, pelo universo das
letras. www.andrekondo.blogspot.com
http://www.flickr.com/photos/pagedooley/3769058618/
E a mão desiste, e a palavra desiste na longa música poderá
iminência E mesmo que a gente esteja doente ou
E mesmo o pensamento se amedronta deseje a morte de forma sincera
E mesmo o leve gesto queda ao lado: E mesmo depois de tudo o que acontece
vencido Somos num instante rendidos por coisas
E a música descansa no silêncio – talvez tão pequenas
para sempre Por este mínimo incessante que existe
Ele nos lembra em sua doce paciência em tudo
Demasiadamente
www.revistasamizdat.com 99
Poesia
http://www.flickr.com/photos/djt23/3207556438/
Fazem minha alma sangrar
Se ela hoje falasse comigo A morte espreita
Choraria ao ouvir os fracos lamentos A morte sou eu
De onde uma vez saíram belas palavras Sangue pelos poros
De onde uma vez extraiu-se consolo De alguém extremamente
De onde uma vez a confiança transbordou Perturbado
Maravilhando e assustando Órgãos se rompendo
O pequeno coração encerrado em seu peito A vida em colapso
A loucura vagarosamente
Tudo um dia pareceu bonito Forçando a porta
E hoje tudo parece borrado
Além de minhas lágrimas E nem hoje ou amanhã
As pernas bambeiam e a mente hesita Ela será minha
Fernando Domith
Tem 22 anos e estuda Psicologia na Universidade Federal de São João Del-rei. Um dos
vencedores do 2º Prêmio Literário da FUMEC, categoria conto. Espera também causar uma
boa impressão na categoria poesia e almeja escrever profissionalmente algum dia.
Pobre dele, sem nome, que fala de amor e nunca se permitiu vivê-lo.
Que por um pouco experimentou e fechou-se no medo.
http://www.flickr.com/photos/erikathorsen/3001817579/
Não tem batismo e nem tenta o mistério.
Faz do sagrado dia um deserto.
O sobrenome se repete,
e eu o que posso, com o que fizeste?
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Poesia
Dançando e encontrando –
loucuras sãs
102 SAMIZDAT setembro de 2012
Querendo fazer das dores e suas marcas algo Não é, Édipo? Alice?
concreto Vou dançando, vou de olhos fechados
Buscando uma janela que seja, uma porta, Me chamem de insano, me chamem do que
uma fresta melhor o ego de vocês ficar saturado de
Preciso de ar, preciso olhar lá fora orgulho por terem encontrado uma defini-
Preciso ver que nada acabou ção perfeita pra meu estado crônico-deliroso
Que chances podem ser colhidas Não é absinto, não é haxixe, viu, ultrarro-
como flores à beira do caminho mânticos?
Meio que dançando, num ritmo desconheci- Não é tuberculose, não é a morte
do mas envolvente É a busca, é o encontro
Parece que um som me guia, me transporta Vejam, vejam só!
Um ar fresco me acalma o temor Não é tarde! Não é tarde!
Não é tarde, não, não é! Estou solto. Preso talvez a mim mesmo
Pareço falar com tanta gente Mas solto para encontrar a chave
Pareço me comunicar descontroladamente E abrir-me, e dizer-me livre
Alguém me ouça! Solto, mas em busca de liberdade
Não é tarde, não, não é! Preso, mas ciente do ciclo da vida
Tenho noção da fantasia Como teclando um piano, vou comunicando
Mas o que seria de mim sem o sonho? infinitamente
Chega de ser José. E agora? E agora? Não é Não é tarde! Não, não é!
mesmo, Drummond? É o que tenho a dizer
http://www.flickr.com/photos/hoill/6070208004/
Pra que tanta métrica, não é, Camões? Aos crédulos e incrédulos
Pra que tanta preocupação com a forma, Aos tripulantes e aos que acenam
meus amigos parnasianos? Aos simpatizantes e aos críticos
Se os símbolos podem me ajudar a chegar Aos livres, aos libertos
ao desconhecido
Ao mundo. A mim. A você. A nós
E por sinal esse desconhecido sou eu mesmo
Não é tarde! Não, não é!
Os labirintos estão aí
Senhas, signos, códigos
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Também nesta edição, textos de