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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

34
setembro
2012
ano V

ficina
SAMIZDAT 34
setembro de 2012

Edição, Capa e Diagramação Editorial


Henry Alfred Bugalho
A Revista SAMIZDAT sempre teve um espírito combativo.
Editora de poesia Ela nasceu da nossa revolta, e também de uma certa angús-
Mariana Valle tia.
Não pretendemos revolucionar a Literatura, tampouco
Autores transformar o mundo.
Adriane Dias Bueno Nossos anseios como escritores são muito mais básicos e
Aline Nardi essenciais: queremos ser lidos, deixarmos definitivamente as
Ana Peres Batista sombras e expormos aos demais nossos trabalhos.
André Kondo Não é fácil bater-se contra o muro de indiferença do
Caio Dezorzi
mercado literário, Obstáculos mil tentam nos convencer que
não há mais espaço, que qualquer esforço é vão e que nossas
Cinthia Kriemler
obras não têm valor, porém, não nos cansamos e jamais des-
Cris Dakinis cansaremos. Não desistiremos, por mais que nos rejeitem ou
Danilo Augusto de Athayde Fraga nos ignorem. Pois desistir não é uma opção quando a escrita
Diana Cunha Gil está entranhada até os ossos.
Edweine Loureiro Recentemente, numa entrevista, afirmei que: “há um mito
Fábio Wanderson de Sousa que os artistas são sentimentais, mas isto é conversa fiada; para
Fernando Domith ser um artista é preciso trajar suas armas e armaduras e prepa-
Geovani Doratiotto rar-se para uma guerra sem fim.”
Henrique César Cabral Estamos atolados até o pescoço nesta guerra sem fim,
Henry Alfred Bugalho
combatendo até o limite de nossas forças para chegarmos
aos nossos leitores fiéis, aqueles que justificam todas as
Isabela Penov
horas gastas na criação de personagens, universos, versos e
Isabella Gonçalves ­conceitos.
João Paulo Hergesel Escrevemos para você. E a sua leitura é o combustível
João Vereza que nos moverá adiante, apesar de todos os contratempos
Joaquim Bispo ­inevitáveis.
Léo Tavares
Leonardo Araújo Henry Alfred Bugalho
Letícia Simões
Lilly Araújo Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
Luís Felipe Sprotte a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Mariza Lacerda
Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
Otávio Martins
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Rodrigo Pereira dos Santos
Silvana Michele Ramos Os textos publicados são de domínio público, com consenso
Volmar Camargo Júnior
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mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de
Zulmar Lopes
Copyright dos EUA (§107-112).
Textos de: As ideias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
Cruz e Souza autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade
William Blake
expressa dos colaboradores da revista.

www.revistasamizdat.com
ISSN 2281-0668
Sumário
Por que Samizdat? 8
Henry Alfred Bugalho

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


Broquéis 10
Cruz e Souza

CONTOS
Algo Indefinível 12
Joaquim Bispo
Morfeu, Morfina 15
Mariza Lacerda

O Galo Meu 16
Henry Alfred Bugalho

Microcontos 19
Edweine Loureiro

O “Gato” Maluco 20
Lilly Araújo

Budapeste vai à Praia 24


Luís Felipe Sprotte

Nadja Ausente 28
Isabela Penov

Grávida 32
Aline Nardi

Iniciação 34
Léo Tavares

O Bichinho 36
Diana Cunha Gil

João Pilão – O Sineiro de Del Rei 38


Fábio Wanderson de Sousa
O Centauro de Saramago 40
Zulmar Lopes

Sonho de Cores 42
Isabella Gonçalves

Ocolândia 44
Silvana Michele Ramos

Menina na Tempestade 48
João Vereza

Sombras de Carne 50
Cinthia Kriemler

TRADUÇÃO
Provérbios do Inferno 54
William Blake
A Imagem Divina 58
William Blake

O Cordeiro 59
William Blake

ARTIGO
O Muro de Indiferença, ou a invisibilidade dos
candidatos a escritores 66
Henry Alfred Bugalho

TEORIA LITERÁRIA
Os Signos do Mundo, do Amor e da
Sensibilidade na Literatura de Marcel Proust 74
Leonardo Araújo

CRÔNICA
Crônica Transitiva 78
Adriane Dias Bueno
Sinestesia, Oximoro e Anadiplose 80
João Paulo Hergesel
A 5ª Sinfonia de Beethoven 82
Otávio Martins
POESIA
II Concurso de Poesia Autores S/A 86
Letícia Simões 87
Cinthia Kriemler 88
Geovani Doratiotto 89
Henrique César Cabral 90
Malvina 91
Cris Dakinis
Visitante 92
Volmar Camargo Junior
Procedimentos Técnico-administrativos em
Caso de Desordem na Gaveta dos Papéis
Involuntariamente Esquecidos 94
Volmar Camargo Junior
Caem Corpos em Pinheirinho 96
Caio Dezorzi
Sobre o Trabalho do Tempo 98
André Kondo
Noturno para Franz 99
Danilo Augusto de Athayde Fraga
Joanna 100
Fernando Domith
Mendigo de Tal 101
Ana Peres Batista
Dançando e Encontrando – Loucuras Sãs 102
Rodrigo Pereira dos Santos

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da Revista SAMIZDAT

5
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
6 SAMIZDAT setembro de 2012

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Editor

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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão logo se converte em uma di-


henrybugalho@hotmail.com tadura como qualquer outra.
É a microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa – que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo –, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
ideias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi de-
perigoso, pois apresenta signado "samizdat", que nada
alternativas, às vezes, muito mais significa em russo do
melhores do que o estabe- que "autopublicado", em opo-
lecido. Por isto, é necessário sição às publicações oficiais
suprimir, esconder, banir. do regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo de um samizdat. Corte-
sia do Gulag Museum em Perm-36.

8
E por que Samizdat? revistas, jornais – onde ele ­ randes tiragens que subs-
g
possa divulgar seu trabalho. tituam o prazer de ouvir o
O único aspecto que conta é respaldo de leitores sinceros,
A indústria cultural – e o
o prazer que a obra causa no que não estão atrás de gran-
mercado literário faz parte
leitor. des autores populares, que
dela – também realiza um
não perseguem ansiosos os
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um 10 mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor de mercado. Inexplica- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
velmente, estabeleceu-se que liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
contos, poemas, autores des- total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
conhecidos não podem ser vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
comercializados, que não vale diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
a pena investir neles, pois os é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
gastos seriam maiores do que seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escrevem sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que
leitor. Não há grandes apa-
lê. Não há sucesso, não há
ratos midiáticos – como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ratuita, escrita, editada e publicada pela
g
­novíssima geração de autores lusófonos.
Diariamente são incluídos novos textos de
autores consagrados e de jovens e ­ scritores
amadores, entusiastas e profissionais. Contos,
crônicas, poemas, resenhas literárias e muito
mais.

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Autor em Língua Portuguesa

Broquéis Cruz e Souza

Encarnação
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos...

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,


À noite, ao luar, intumescer os seios
Lácteos, de finos e azulados veios
De virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos


De estranhos, vagos, estrelados rumos
Onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias


Formem, com claridades e fragrâncias,
A encarnação das lívidas Amadas!

Carnal e Místico
Pelas regiões tenuíssimas da bruma
Vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
Todo o horizonte em derredor perfume.

N’uma evaporação de branca espuma


Vão diluindo as perspectivas claras...
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
As Estrelas apagam-se uma a uma.

E então, na treva, em místicas dormências


Desfila, com sidéreas lactescências,
Das Virgens o sonâmbulo cortejo...

Ó Formas vagas, nebulosidades!


Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo...

10 SAMIZDAT setembro de 2012


Flor do Mar
És da origem do mar, vens do secreto,
Do estranho mar espumaroso e frio
Que põe rede de sonhos ao navio,
E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.

Possuis do mar o deslumbrante afeto,


As dormências nervosas e o sombrio
E torvo aspecto aterrador, bravio
Das ondas no atro e proceloso aspecto.

Num fundo ideal de púrpuras e rosas


Surges das águas mucilaginosas

http://www.flickr.com/photos/7522203@N06/434640017/
Como a lua entre a névoa dos espaços...

Trazes na carne o eflorescer das vinhas,


Auroras, virgens músicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços...

Sinfonias do Ocaso
Musselinosas como brumas diurnas
Descem do ocaso as sombras harmoniosas,
Sombras veladas e musselinosas
Para as profundas solidões noturnas.

Sacrários virgens, sacrossantas urnas,


Os céus resplendem de sidéreas rosas,
Da lua e das Estrelas majestosas
Iluminando a escuridão das furnas.

Ah! por estes sinfônicos ocasos


A terra exala aromas de áureos vasos,
Incensos de turíbulos divinos.

Os plenilúnios mórbidos vaporam...


E como que no Azul plangem e choram
Cítaras, harpas, bandolins, violinos...

João da Cruz e Sousa

(Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis), 24 de novembro de 1861 —


­Estação do Sítio, 19 de março de 1898) foi um poeta brasileiro.
Alcunhado Dante Negro e Cisne Negro. Foi um dos precursores do simbolismo no
Brasil.

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Conto

Joaquim Bispo

Algo Indefinível
Quando o padre Vicente entrou na barbe- Leirosa do Côa há pouco mais de um mês e
aria, temeu por um momento que não fosse quase só conhecia o pequeno grupo que ia
conseguir cortar o cabelo antes da missa das à missa. Ainda não tinha atingido os trinta
seis: na cadeira do ti Matias estava o presi- anos, era alto e rosado, e não vestia batina.
dente da Junta, e à espera estava o secretário, – Sim, já conheço bastantes paroquianos,
mas depressa percebeu que este não vinha alguns até em confissão. Já se confessaram
para cortar o cabelo; simplesmente acompa- este ano? – inquiriu, com um prazer pouco
nhava o chefe para todo o lado. católico.
– Boa tarde, meus senhores! – cumprimen- – Lá havemos de ir, Sr. padre – respondeu
tou. o presidente, prazenteiro. Era um homem na
– Boa tarde, Sr. padre! – responderam os casa dos sessenta, um pouco anafado, de ca-
três em coro. belo ralo e nariz abatatado. – Todos os anos,
Sentou-se num dos bancos forrados a napa pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu
que se alinhavam voltados para a majestosa secretário, não é verdade, Simão?
cadeira onde os homens se vinham libertar O visado acenou que sim, subserviente.
de sumptuosas melenas, quando se tornavam Teria quarenta e poucos anos, usava o cabe-
demasiado rebeldes para aceitar o pente. lo liso com brilhantina e trazia um fato às
No rádio acabara de cantar Artur Garcia e riscas.
anunciava-se Suzy Paula. – Mas isto é uma terra sem pecados – car-
– Então, Sr. padre, já está ambientado cá à regou o presidente, enquanto o barbeiro se
terra? – perguntou o presidente. esmerava no recorte da orelha direita. – Aqui
O padre Vicente tinha sido colocado em é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria.

12 SAMIZDAT setembro de 2012


Olhe, aquela que ali vai, a D. Clotilde, não a percorrer-lhe o corpo com o olhar. Em
deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva momentos de maior desvario, imaginava que
há uns quatro anos e nunca mais se lhe co- o abraçava, indefeso, e lhe arrancava o pano
nheceu homem, ou sequer interesse por eles. que a separava de algo tão indefinível que só
Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava se reconhece quando se volta a experimentá-
que houvesse mais movimento, para a gente lo. Louca! O mais perto que conseguia chegar
ter de que falar, sem ser só de caça. A pro- desse algo indefinível acontecia quando, antes
pósito, o Sr. padre não caça? – rematou, com de adormecer, se persignava interminavel-
muita malícia na entoação. – Há por aí umas mente com o crucifixo, em que um Cristo
coelhas… em tudo igual, só que mais pequeno, abria os
O secretário e o barbeiro riram-se, mas braços de impotência perante tal carência.
com pouco à-vontade, devido à inconveniên- Roçava com ele os peitos, por cima da cami-
cia do presidente da Junta. O padre também sa de dormir: “do Espírito” – “Santo”. Elevava-
riu, e sem cinismo. o ao rosto, aos lábios, beijava-o: “Em nome
do Pai”; baixava-o até ao ventre: “do Filho”, a
– Há muito tempo que a minha alma e o rojar sempre um pouco mais abaixo, a cada
meu corpo pertencem à Igreja. Sou homem, descida.
reparo quando uma mulher é bonita, mas es-
tou comprometido com algo maior e só aos
seus encantos me dedico – acentuou, numa Pouco depois, de cabelo cortado e pes-
meia verdade. Fazia parte do saber viver do coço escanhoado, o presidente abandonou a
relacionamento social. barbearia do ti Matias, seguido pelo secretá-
– Ah, Sr. padre, contam-se muitas histórias rio. O padre Vicente sentou-se, pediu só uma
de padres e saias. E não são batinas. Ali na aparadela, e daí a pouco estava na igreja.
aldeia de Trevez correram com o de lá, há D. Irene, a esposa do presidente da Junta,
uns cinco anos, porque andava metido com veio pedir-lhe para se confessar. Era uma
a governanta, o desavergonhado. Levou uma paroquiana muito bem arranjada, de uns
sova! cinquenta anos. Como ainda faltava quase
– Há sempre ovelhas ronhosas em todos meia hora para a missa, o padre acedeu. Pôs
os rebanhos. Por mim, espero ficar aqui por a estola e sentou-se no confessionário. Do
muitos anos, com o respeito de todos, que já outro lado da grelha, a senhora, em vozinha
vi que estou entre gente honrada. sussurrante, pediu perdão dos pecados e co-
meçou a estender um rol dos atos que vinha
a ter com o seu homem e que ela temia que
Sentada numa das filas da frente da igreja, fossem pecados da carne. Pormenorizava o
D. Clotilde observava o Cristo crucificado de que ele fazia, como fazia, com que vagares. O
tamanho natural, que estava em fundo, so- padre Vicente, envolvido pelo perfume floral
branceiro ao altar-mor. Os seus olhos percor- de D. Irene, ia ouvindo a confissão num fluxo
riam os músculos das pernas, magras e ossu- morno ciciado junto ao seu ouvido, tentando
das, como as do seu Albano, que Deus tinha. avaliar se a paroquiana era culpada de luxú-
Custava-lhe muito a viuvez. Nenhum homem ria ou tudo se devia ao cio do marido. Foi a
se tinha aproximado, a não ser o untuoso do voz suave de D. Irene que se encarregou de
presidente da Junta, com umas insinuações o elucidar: queria confessar tudo, porque se
porcas. Ela própria também não se mostrava sentia culpada de ter gostado e de ter cola-
acessível. Tinha muitas saudades, mas do seu borado com entusiasmo. “Perdoai-me padre,
homem. Recordava-o, ao olhar este Cristo: o que eu pequei”, pedia. O sacerdote observa-
mesmo corpo ossudo, a barba, uma certa ex- va o rubor do rosto da pecadora, os lábios
pressão de abandono. Ficava horas e­ squecidas cheios, o suave arquejo do peito generoso.

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Concluiu pela condenação: vinte pai-nossos. morder o que era para manter na boca até se
liquefazer.

D. Irene sentou-se na sua cadeirinha almo-


fadada da primeira fila e esperou pela missa, Acabada a missa, o padre Vicente refu-
enquanto cumpria a penitência. Sentia-se giou-se no seu pequeno reservado da sacris-
mais aliviada. Tinha confessado tudo. Ou tia. Depois de, em gestos rápidos, retirar os
quase. Tinha descrito as partes mais esca- paramentos, sentou-se na cadeira da escriva-
brosas, mas dissimulara com quem praticara ninha e abriu a sua Bíblia, de onde retirou
os atos confessados. Não tivera coragem de um “santinho”. Era uma reprodução de uma
contar que, todas as quintas-feiras, enquanto “virgem do leite” do pintor Frei Carlos, que
o marido ia à reunião com o presidente da ele procurava em momentos de maior per-
Câmara, na cidade, ela se encontrava com o turbação, desde os longos tempos de desam-
secretário Simão, num anexo da Junta. Por paro do seminário. Reviu o rosto adolescente
outro lado, cedera ao prazer mórbido de se da imagem, o olhar inocente, a boca onde
alongar em pormenores, para ver a reação do parecia aflorar um sorriso compreensivo.
jovem padre. Pressentira a sua perturbação, o Demorou-se a contemplar o seio da Vir-
que, inexplicavelmente, lhe agradara. gem, que esta apertava, e do qual jorrava um
fino esguicho de leite em direção à boca do
menino, da qual escorria em veios brancos
O padre Vicente disse a missa um pouco pelo queixo. A estampa, talvez pela assumida
inquieto. Não que duvidasse da sua vocação, carnalidade, desencadeava sempre um mo-
mas aquela vozinha insinuante reavivara-lhe vimento da sua alma, desta vez potenciado
algumas memórias gratas de adolescente. pela visão da boca recetiva de D. Irene e dos
Quando chegou o momento da comunhão, seus dois dedos a introduzirem nela o corpo
D. Irene encabeçou a pequena fila de comun- de Cristo, com a mesma delicadeza com que
gantes. Ajoelhou à frente do padre, abriu a agora seguravam o seu corpo e, mentalmente,
boca, pôs a língua ligeiramente de fora, esten- repetiam o mesmo gesto. A comunhão de
deu um pouco o rosto para a frente e fechou corpo e alma com o divino não tardou. Em
os olhos. O padre, sugestionado, pensou arrebatamento. Em ausência de si. Em trans-
reconhecer nesta visão uma das peripécias cendência. Deus atingia-se de muitos modos.
lúbricas ouvidas há pouco em confissão, mas
mal hesitou: pegou na hóstia branca e, com
calma forçada, depositou-a na língua húmi- Conto integrante da coletânea de contos
da e rosada da cativante paroquiana. Logo a “Ora, vejamos… 2009”
língua se recolheu com a sua preciosa carga,
como se recolheu D. Irene à sua cadeira, de
cabeça humildemente baixa, tentando não

Joaquim Bispo
Português, reformado, ex-técnico de televisão, licenciado tardio em História da
Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a
escrita de ficção desde 2007, com pontos altos nas oficinas virtuais de Henry Bugalho
e de Marco Antunes. Rejeitado pelas editoras, tem obtido, no entanto, alguns prémios
em concursos literários dos dois lados do Atlântico.

Contacto: episcopum@hotmail.com

14 SAMIZDAT setembro de 2012


Contos

Morfeu, Morfina
Mariza Lacerda

Meu coração, acelerado, tentava entoar uma melo- http://www.flickr.com/photos/socialspice/5713714538/

dia que velasse o teu sono. Meus olhos, paralisados,


tentavam penetrar em teus mais secretos sonhos.
Meus braços, inquietos, imaginavam-se abraçando e
embalando o teu corpo. Meus lábios, sedentos, de-
sejavam revisitar os traços do teu rosto. Eu já não
sabia se era noite ou se era dia. Apenas te olhava,
enquanto dormias.

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Conto

O Galo Meu Henry Alfred Bugalho

http://www.flickr.com/photos/kaozkz/4826424573/

16 SAMIZDAT setembro de 2012


Ele desfilava com imponência pelo Pensei muito no meu galo na via-
quintal da minha vó: o meu galo. O gem de volta para a cidade, repleto de
mais lindo de todos, alto, quase do meu planos para as próximas férias. Existia
próprio tamanho no auge de meus oito coleira para galos? Assim eu poderia
anos, com uma plumagem reluzente, o exibir-me com ele pela vizinhança da
pescoço de um azul vivo e brilhante, minha vó, eu e o mais galo dos galos, o
e esporas ameaçadoras como lâminas, Hulk Hogan dos galos, temível e gran-
mesmo sendo um galo pacífico, até dalhão. A molecada e as donas de casa
onde eu podia perceber. se recolheriam ao ver-me caminhando
Encantava-me o mundinho dos gali- com o galo ao meu lado, atemorizados
náceos, todos se aglomerando desespe- que ele pudesse se soltar da coleira e
radamente para comer a quirera que sair bicando e esporeando a torto e a
minha vó lançava ao ar, gritando: direito, muito mais perigoso do que
qualquer cão de guarda. Cogitei até
— Cuti-cuticuticuti!
a levá-lo a rinhas, eu do lado do rin-
Vinham as galinhas e os pintinhos, gue, dando instruções a ele, e Harrison
redondinhos e amarelinhos, e também ganhando todas as pelejas. Mal sabia,
os frangotes desengonçados. Mas o naquele tempo, que isto era crueldade
meu galo, não, observava tudo de longe, animal, proibido por lei, nem que voa-
o dono absoluto do terreiro. va sangue e penas para todos os lados.
Ele não havia sido sempre meu galo, Nas brigas de galos de minha imagi-
até que, num verão, fiz o ­pedido: nação infantil, um deles sairia com o
— Vó, sabe aquele galo grandão? olho roxo, enquanto o outro levantaria
as asas em glória, assim como nos dese-
— Sei sim.
nhos animados, sem demasiado sofri-
— Dá ele pra mim? mento nem mortes.
— E o que você vai fazer com um Com o passar das semanas, esqueci-
galo, moleque? me um pouco de Harrison e só me
— Cuidar dele. ocorria a existência dele quando, oca-
sionalmente, comentava com os colegas
— Então ‘tá certo.
de escola:
Assim, daquele dia em diante, o galo
— Sabia que eu tenho um galo? Acho
mais lindo de todos havia se tornado o
que deve ser o maior galo do mundo!
meu galo. Batizei-lhe de Harrison, e era
o meu dever jogar-lhe a quirera: Mas a mente estava ocupada o bas-
tante com as matérias da escola de
— Cutu-cuticuticuti! Vem cá,
manhã e com os seriados japoneses à
­ arrison!
H
tarde. E, vez ou outra, eu desenhava o
E lentamente ele vinha, cheio de si,
meu galo, intercalando panteras, leões e
bicando a comida com soberbia.
super-heróis.

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Retornei meses depois à casa de Como assim, jantar um galo de estima-
minha avó, chegando cedinho como o ção? Quer dizer que agora as pessoas
habitual. Tomamos café da manhã e deveriam comer seus cachorros quando
eu saí ao quintal, à procura por meu estes morressem? Ou que um jóquei
galo, mas não o avistei. Nada estranho, deveria comer o cavalo que montava?
reconheço, pois o quintal era enorme Ou um falcoeiro a seu falcão? Ou um
e ele poderia estar vagando em meio dono de circo cearia o elefante ou o
às bananeiras e amoreiras. Certamente tigre quando estes passassem desta para
apareceria para comer quirera mais melhor?
tarde. Eu precisava confirmar esta histó-
Mas não o vi depois, o que me per- ria, poderia ser apenas uma maldade
turbou. do meu primo, e corri para falar com
— Não estou encontrando o Harrison minha vó.
— comentei com meu primo na manhã — É verdade que meu galo morreu?
seguinte. — Morreu sim.
— Ninguém te contou? — v ­ islumbrei — E o que fizeram com ele?
um risinho sardônico — Ele morreu...
— Comemos, ora bolas!
— Sério?
Para vovó era simples pensar deste
— Sério. modo, ela que quebrava o pescoço de
Calei-me por um tempo, pensativo. um frango sem esforço algum, e deixa-
— E o que fizeram com ele? va-o dependurado numa trave, debaten-
do-se até esvair-se-lhe a vida, mas, para
— Como assim?
mim, nada fazia sentido. A ausência
— Com o cadáver do Harrison? de Harrison, o galo dos galos, naquele
— Sabe a canja de ontem à noite? quintal imenso, era devastadora, um
— Sei. vazio inexplicável.

— Era o seu galo. Pois o meu galo havia sido o senhor


absoluto do terreiro, e também a canja
Fiquei horrorizado. Era possível isto?
da noite passada.
Que desumanidade absurda! Barbárie!

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Litera-
tura e História. Autor de “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), de outros
quatro romances e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fun-
dador da Oficina Editora. Autor do best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”,
cidade na qual morou por 4 anos, e do “Curso de Introdução à Fotografia do Cala a
Boca e Clica!”. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua
cachorrinha.

18 SAMIZDAT setembro de 2012


Conto

PREÇOS
Edweine Loureiro

Gritava à janela da amada, que o havia


deixado por um homem mais rico:

— E o Amor, Julieta? Vale quanto?


E uma voz, vinda da esquina:

— Duzentos reais, uma noite.

Nota: Miniconto vencedor do certame


M­iniconto para Dickens (Fevereiro/2012).

CINEMA MUDO
Edweine Loureiro

Quase no final do filme, surge aquele


homem, ensandecido, atirando contra a mul-
tidão. Em meio a gritos e tumulto, uma das
balas atinge a criança ao meu lado, matando-
a no mesmo instante. Enquanto isso, na tela,
Chaplin discursa pela paz...

COREIA DO NORTE
Edweine Loureiro

Kim Jong-un, em pânico, no meio da noite,


conversa com um dos generais ao telefone:

— Pensava que era o botão do microon-


das, e não o da bomba atômica!

Edweine Loureiro
Nasceu em Manaus em 20/09/1975. É advogado, professor de Literatura e Idiomas,
e reside no Japão desde 2001. Em 2005, obteve o Mestrado em Política Internacional
pela Universidade de Osaka (Japão). Premiado em diversos concursos literários, é
autor dos livros: Sonhador Sim Senhor! (Ed. Litteris, 2000), Clandestinos [e outras crô-
nicas] (Clube de Autores, 2011) e Em Curto Espaço (Ed. Multifoco, Selo 3x4, 2012). É
membro-correspondente da Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências (RJ) e da
Academia de Letras de Nordestina (BA).
Blog do autor: http://edweineloureiro.wordpress.com/

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Contos

O “gato” maluco
Lilly Araújo

20 SAMIZDAT setembro de 2012


Carlos já beirava os dezessete anos
quando resolveu sair da casa de seu pai
e ir morar com sua mãe. Talvez o mo-
tivo fosse o ciúme que lhe tomou quan-
do a bela e jovem madrasta engravidou.
Não que sua mãe não o amasse,
mas devido ao fato de suas condições
financeiras serem milhares de vezes
inferiores às do ex-marido, Cláudia
preferia que o filho único tivesse uma
vida mais abastada que a dela. Apesar
de todos os argumentos, nada adiantou
diante da decisão irredutível e conflitu-
osa que Carlos impôs. Era mesmo um
“cabeça dura” como o pai, ela pensava.
Quem não gostou nada nada da
novidade foi o Sr. Francisco. Homem
austero, mas muito apegado ao filho,
não aceitava ficar longe assim tão de
repente dele, fosse pela saudade ou por
orgulho de perdê-lo exatamente para
a mulher que fora o único verdadei-
ro amor de sua vida. O que também
explicaria o fato de tê-la deixado em
tamanha dificuldade financeira. Pirraça.
Pura pirraça! Pirraça que, aliás, agora
lhe retribuía o filho sem saber, por não
aceitar perder o status de filho único
que até hoje ocupava cheio de mimos e
http://www.flickr.com/photos/xixidu/504337940/

regalias.
Em protesto, estava resolvido a mu-
dar sua vida radicalmente, abrindo mão
de todo luxo a que estava acostumado,
visto que o pai lhe recusara a ceder
qualquer bem material para aquele trai-
dor, que o estava abandonando. Posse.
Pura posse! Sofriam de possessão crôni-
ca pai e filho.
Passados alguns dias da nova rotina,
Carlos estava completamente entedia-
do no seu novo lar. Não tinha mais o
videogame de última geração, nem seu
inseparável tablet que ainda estava com

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cheirinho de loja. Agora se contenta- ­ rgumentou a si mesmo para aliviar o
a
va apenas com seu notebook, que seu ardor. Ligou a TV com o coração na
pai só liberou por ter sido presente de mão. E lá estava a imagem que o salvou
aniversário, mas que nas atuais circuns- de seu martírio! Dezenas de canais, que
tâncias era quase inútil, porque lá não agora o manteriam cativo por vontade
tinha internet. Não tinha piscina. Não própria no seu pequeno “quarto prisão”.
tinha sauna. Nem tinha sua motinha Mas, numa noite de tempestade e
ou amigos ricos. Não tinha sequer TV muitos raios, a conexão de alegria do
a cabo. Tédio. Puro tédio! pobre Carlos foi subitamente inter-
Até que numa tarde, Carlos estava rompida. Ele ficou chocado. Desespero.
sentado perto da janela, com vista nada Puro desespero!
privilegiada para os telhados dos vizi- Na manhã seguinte foi à escola
nhos e num lance de olhar, notou uma brigado com sua TV. Havia gastado
antena de onde pendia um tremulante toda madrugada fuçando, sacudindo,
fio que partia telhado adentro do vi- torcendo e pedindo aos céus por um
zinho mais afortunado que ele. Teceu auxílio. Quando retornou, já na hora do
então um plano mirabolante em sua almoço, esquentou a comida e engoliu
mente vazia. Iria fazer um “gato” para a desinteressadamente. Pulou na cama e
TV que ficava em seu quarto. dormiu, exausto que estava. Acordou
Foi a uma lan house e procurou por com um barulho e uns feixes de luzes
manuais de instalação para realizar sua vindas do telhado do “vizinho-sócio”.
peripécia. – É impressionante o que se Achou estranho aquilo e teve medo.
pode encontrar na net hoje em dia! – Será que agora o seu delito seria des-
pensou o garoto. Pesquisou. Revisou. coberto? Resolveu ligar a TV por pura
Imprimiu. E marcou o dia, ou a noite, curiosidade, e para sua surpresa os
para o leitor melhor entender. canais estavam todos de volta.
Carlos se esgueirou pelo corredor Foi à cozinha e fez pipoca para espe-
apertado com o cinto de ferramentas rar pelo jogo do seu time que iria co-
pendendo-lhe de um dos lados e for- meçar em dez minutos. Enquanto assis-
çando a calça larga para baixo. Todo tia ao jogo vibrante e comia pipoca, um
desengonçado e tremendo um pouco, o sorriso de orelha a orelha não lhe saía
garoto alcançou a tal antena por sobre do rosto. De repente, um lance dentro
o telhado. Sentiu-se um felino aventu- da grande área, já aos quarenta e cinco
rando-se naquela altitude. Em poucos minutos do segundo tempo, dava chan-
minutos, seguindo o manual passo a ce ao seu time de ser o vencedor. Ele se
passo, ele cortou e remendou fios na colocou debaixo do monitor, se contor-
caixinha conectora que comprou num cendo à espera de um milagre para que
ferro velho, e que iria piratear e re- aquele gol saísse, e no auge da expec-
transmitir o sinal para sua TV, dando tativa de vitória do seu timão: “Tssss”!
umDesceu sem maiores dificuldades. Alguém mudou o canal da televisão.
Mas não antes de se engarranchar – Não! Não! Não! Isso não pode estar
no último trecho do seu percurso e acontecendo! – Não podia, mas estava.
ralar todo o antebraço esquerdo. Va-
...
leria o preço se o “gato” funcionasse,

22 SAMIZDAT setembro de 2012


A partir daquele dia era essa a vida continuou a ficar no seu quarto todo
de Carlos: No meio do filme, na cena tempo. Em frente à TV desgovernada,
do beijo, e “tsss!”, o canal mudava. concentrado em meias imagens. Esta-
Quando finalmente estavam pegando va meio triste, meio desiludido e meio
o serial killer, “tsss!”... Ele passou a ter arrependido de ter deixado sua outra
memórias fragmentadas de tudo que casa. Descompletado!
assistia. Frustração. Pura frustração! Foi aí então que algo iluminou sua
E Carlos nem imaginava o quanto mente por inteiro. Ele foi atrás do
aquilo influenciaria a sua mente. Agora seu pai e lhe estendeu uma bandeira
ele andava todo interrompido. Fazia as branca. Pediu sinceras desculpas em
lições pela metade. Comia metade da palavras que enterneceram o coração
comida. E um dia até chegou à esco- paterno de Francisco, e no embalo das
la com apenas um dos pés calçado. A emoções intercedeu por sua mãe junto
namorada rompeu com ele, se recusava ao pai, e conseguiu que ele se compro-
a ter meio namorado. E boletim escolar metesse em dar todos os direitos aos
passou a vir com notas medianas. Até a bens financeiros dela, na época sonega-
mesada dele foi reduzida a meia, refle- dos.
xo de seus últimos desempenhos. Carlos comprou ainda flores para a
Agora aquele “meio garoto” não con- madrasta e presentes para o bebê. Que
seguia ter uma ideia por inteiro para torceu para ser uma menina. Estava
restaurar a sua vida desconfigurada. mudado, mas nem tanto! Queria conti-
– Francisco, você precisa levar nosso nuar ao menos a ser o único varão da
filho ao médico. Estou muito preocupa- casa.
da. Tudo resolvido naquela família. Pare-
– Besteira. Isso é artimanha dele para cia até um milagre! E talvez fosse mes-
eu voltar atrás. Mas não volto! Onde já mo um tipo de milagre para restaurar
se viu, fazer um desaforo desses com a tantos conflitos antigos. Foi o “gato”
Lucinda grávida? Justo ela que sempre maluco. Puro “gato”!
o tratou como um filho. Não volto!
Mesmo com o problema, Carlos

Lilly Araújo
Bióloga, pós-graduada em Geo-Ambiental, começou sua carreira literária apenas
no ano de 2011; de lá para cá já tem obtido sucesso e participações nos seguintes
meios literários: Participou de 25 Antologias da CBJE-RJ, em poesias, contos e crônicas
e em três e-books; MH e Antologia do Conc. de Poesias Encantadas II; 12° Lugar no V
Conc. POESIARTE; Classif. para compor o livro do Conc. Landa Lopes; Prêmio Desta-
que no III Conc. Claudionor Ribeiro de Contos; Classif. na Antologia do V Conc. Crô-
nica e Lit.- Prêmio lit. Ferreira Gullar; MH e Antologia do Conc. Poesias Encantadas
III; Classif. entre os vinte para o Livro Prêmio do Conc. Alt Fest-Fliporto; Classif. no
Conc. Um Poema em Cada Árvore; Classif. para Antologia do Conc. Letras no Palco
2011 – Digit-AL 2011, nas categorias Poema e Micro Poema; Classif. em 10° no Conc.
Augusto dos Anjos; Vencedora do III JOGOS FLORAIS DE CAXIAS DO SUL.

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Contos

BUDAPESTE VAI À PRAIA


Luís Felipe Sprotte

24 SAMIZDAT setembro de 2012


Budapeste acordou com frio, que

http://www.flickr.com/photos/snapeverything/2513146873/
aparecia pela primeira vez com
força, fazendo-a recolher-se ainda
mais nas cobertas. Outubro era um
mês que a assustava, pois lhe vinha
um sentimento de má-fé em relação
ao inverno que se aproximava. O
inverno deixava-a muito bela; ainda
assim, era sempre complicado con-
tinuar viva depois que camadas de
gelo formavam-se na sua principal
artéria: o Danúbio. Todavia, o inver-
no em nada alterava sua eloquência;
reafirmava-a, porém, num sentido
mais peculiar.
Naquela manhã teve vontade de ir
à praia. E disse consigo mesma que
sim, iria viajar. A escolha mais natu-
ral era alguma praia no Adriático, e
apesar de os dias estarem cada vez
mais frios, poderia sentar-se à beira-
mar e conquistar uma calma que ela
não mais proporcionava a si mesma.
Após tomar essa decisão, alegrou-se
bastante.
Ao olhar para o prédio em frente
ao dela, na Rua Timár, observou a
moça portuguesa que morava ali há
alguns meses. Sabia-a estrangeira,
porque o tempo lhe havia dado esse
discernimento; sabia-a portuguesa
porque pela primeira vez sentia que
havia no apartamento algo diferente.
Todos os dias saía e voltava a Sau-
dade. Dava à moça quase todas as
manhãs de presente uma neblina,
como se dissesse:
“Vem, busca teu D. Sebastião, que
logo chega.”

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A moça, entretanto, não esperava levá-las até à Dalmácia pelo inte-
por nada que não fosse seu Sebas- rior do país. Os carros passavam,
tião magiar, e que, ironicamente, se os bairros zagrebinos ficavam cada
chamava Sebestyén. O homem pelo vez mais longe. Em muitas regiões
qual ela se fez estrangeira, depois por onde passavam, Budapeste viu
de dez meses juntos, abandonou-a e prédios com buracos causados pelos
voltou a sua cidade na Transilvânia. tiros da guerra recente.
Como portuguesa num país sem Enquanto isso, os budapestinos e
mar, ela fez de seu apartamento a zagrebinos viam-se perdidos, com a
torre de Belém, na qual esperava o sensação de que algo importante em
marinheiro que nada lhe prometera, suas cidades estava faltando. Alguns
e que desse nada, tudo esperava. disseram que era o frio cedo demais
No frio daquela manhã Budapeste em outubro, outros que se tratava de
sentiu que precisava fugir de si mes- uma sensação bélica. Poucos disse-
ma. Fundar-se noutro lugar, como ram que tinham a sensação de que
se nunca tivesse sido fundada ali. a alma da cidade havia ido embora,
Sairia pela primeira vez dos alicer- como se estivessem vivendo abraça-
ces danubianos, das colinas budinas, dos ao cadáver de alguém querido.
da imensidão plana pestina, de seu Nas duas cidades as pessoas senta-
apartamento em Óbuda. vam-se nas calçadas com a sensação
Ela comprou a passagem de trem de que a gravidade passara a ser, ao
na Estação Keleti, e avisou Zagreb menos ali, a mais fraca das forças da
que estava indo visitá-la, e que se- Natureza. O Danúbio em Budapes-
guiriam à praia. Fazia frio, mas no te e o Sava em Zagreb portavam-se
trem conseguiu cobrir-se com um como se não se importassem com as
pequeno cobertor que levara consi- beira-rios, inundando-as com ondas
go. de ressentimento.
Algumas horas depois ela desceu Makarska estava vendo o mar no
na estação central de Zagreb, que bulevar central da riviera. O dia es-
a esperava. As duas seguiram até tava bastante cinza, e ela sabia quem
o estacionamento. Na Praça do Rei iria atacá-la à noite. Sabia-o há cen-
Tomislav Budapeste viu no meio do tenas de anos, e sempre que aconte-
parque crianças brincando com seus cia novamente ela se assustava. Para
pequenos trenós, treinando para o se tranquilizar, foi se encontrar com
inverno que logo chegaria. suas amigas. Em casa, a anfitriã ser-
viu vinho e começaram a conversar
“Vou levar você à Dalmácia para
animadamente.
conhecer uma amiga: Makarska.”
As três foram dormir tarde, e no
Zagreb pegou a estrada que iria
meio da noite Budapeste acordou

26 SAMIZDAT setembro de 2012


assustada com um vento fortíssimo. Dois dias depois, de volta a si
Ela foi até a janela ver o que era. mesma, em frente à Estação Keleti,
Makarska acalmou-a, dizendo: Budapeste viu dois orelhões con-
“É o bora. Destrói tudo, como a versando em meio à multidão. Ao
paixão.” entrar no carro, percebeu que esque-
cera um livro de contos de István
As três sabiam que nenhuma ci-
Örkény, o que explicava a visão,
dade sobrevive por si só, da mesma
minutos antes.
maneira que as pessoas fatais não
podem viver sem amor, sem paixão, Chovia quando o táxi deixou-a
e pulam cada dia num oceano novo, em casa. Todos os habitantes da
cada vez mais profundo, cada vez cidade cochichavam que tudo estava
mais perigoso. O bora podia que- ajeitado novamente. Não dava mais
brar todas as janelas de Makarska, vontade de fugir de uma cidade no-
mas nunca a destruiria. Elas sabiam vamente com alma. Seus habitantes
que havia pessoas que sofriam por poderiam temer Budapeste, graças
amor, e por isso cada uma delas aos mandatos diários que eles pro-
rezou por alguém, para que essas punham a si mesmos, ao percebê-la
pessoas, e também elas, morres- pela primeira vez após abrirem as
sem da ferida venenosa que vem do janelas todas as manhãs. Ali estava
amor, e não mais dos dons sábios e deitada na cama quando viam Peste;
conselhos benditos que nunca pre- escondida nas colinas quando viam
valecem diante do cáustico. E se Buda. E por não olharem jamais
rezar levava à lembrança, veio até Óbuda, nunca desconfiaram que
elas uma pequena oração com o de fato a alma da cidade que tanto
nome do santo do dia, um daqueles amavam e odiavam vivia lá, reclusa
mártires do amor, aqueles que nunca – uma senhora sem trajes de idosa, e
esqueceriam as cidades que amaram, com o frescor do compartilhamento.
nem os amantes que os despreza- Pela janela do seu quarto Budapes-
ram, e que morreriam, assim, fracos te viu a moça portuguesa arrumar
de servidão, por encher a mente de as malas. Falou-lhe, baixinho, como
tantas lembranças afiadas, que, inútil se cantasse um fado:
dizer, só lhes faria mal. Levá-los-ia à “Tu servias de porto latino, e ele
morte. de barco magiar.”
Com rosários nas mãos, as três Budapeste deixou a Saudade en-
cidades dormiram caídas no chão e trar em seu apartamento, como se
acordaram na praia. fosse o vento bora. Estrangeira em
sua própria casa, dormiu antes mes-
mo de anoitecer.

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Contos

Isabela Penov

Nadja Ausente
Há sempre uma ausência ao lado   Acumulou-se essa falta por séculos

http://www.flickr.com/photos/stampinmom/4239147705/
de cada um que existe. A ausência em cada novo membro da família, a ca-
dos mortos, das alegrias, ausência dos rência de uma geração depositando-se
sonhos, a ausência da esperança, e a na próxima, herança dos vazios pas-
noiva que se foi, o marido que jamais sados. As crianças iam nascendo mir-
retornou, e as roupas carcomidas, as radas e pálidas, parecendo que aquela
cartas que o tempo vai apagando... Mas lacuna estava cada vez mais tomando
naquela família as ausências eram tan- o espaço que o corpo deveria ocupar.
tas e tão imensas, que possuíam nomes Esse legado somava-se ao vazio de
próprios, impronunciáveis, no entanto. cada um deles que pelo mundo passa-
Aqueles sujeitos apenas sabiam-se pela va, constituindo em cada tempo uma
falta, entendiam o que eram pelo que ausência suprema, uma insuficiência
não eram e o que tinham pelo que incurável.
não tinham. Odiavam-se, amavam-se,   Em certo tempo nasceriam descen-
entediavam-se, separavam-se, eles e suas dentes raquíticos, e os descendentes
ausências, num pacto rancoroso. Seus dos seus descendentes nasceriam sem
olhares vagos viam somente o que não alguns membros do corpo, até que na
estava. E enquanto isso os corpos iam geração próxima as mulheres ficariam
pela vida escorregando inúteis, esque- grávidas sem sequer notar, grávidas de
cidos de si, em volta de suas presentes um vento ínfimo que se libertaria para
ausências.

28 SAMIZDAT setembro de 2012


se espalhar e somar mais falta à falta. semicerrava as pálpebras, torcendo para
Assim essa família se extinguiria, de que todas as pernas caíssem e rolassem
ausência em ausência. pela íngreme descida logo mais ali.
  Mas podemos parar no tempo, Depois se ausentava, preocupada com a
muito antes dessa extinção familiar. caça aos tatus.

  Nadja estava com doze anos. Pos-   Na casa da frente morava Ana. Ana
suía todas as suas partes e era possível saiu para a rua pela primeira vez quase
enxergá-la toda, embora com certo dois anos depois de se mudar para o
esforço: era um vulto de pele muito bairro. Talvez por timidez, talvez por
branca, corpo um pouco translúcido estar muito ocupada consigo mesma
que não chamaria a atenção não fosse em seu quintal. Ela era tão distraída,
pelo vestígio daquele legado de ausên- mas tão, que às vezes se esquecia de
cia em sua geração: sua perna direita usar as mãos. Mas isso de distração
era mais curta e muito mais delgada é uma mentira. Fato é que ela estava
que a esquerda, de maneira que ela atenta demais às suas fantasias, que
acabava por mancar com evidência. Ao eram aliás muito mais dignas da sua
andar, todo o seu corpo caía para um concentrada dedicação. Essa distração
lado, para então levantar-se todo para o entre aspas fazia de Ana a amiga per-
outro, de um modo estranho na medi- feita para Nadja. Exatamente pelo que
da exata para satisfazer as necessidades se possa suspeitar. Ana saiu para a rua,
alheias do sentimento de estar a salvo. avistou Nadja com seus tatus, puxou
conversa e não pôde perceber nem que
  Na maior parte do tempo estava
a menina mastigara quase meia dúzia
no quintal de casa, visível através das
de tatus-bola naquele tempo, e muito
grades mas salva da maior parte das
menos que ela tinha uma perna dife-
ameaças. Ficava sentada com as pernas
rente da outra. Claro, porque a conver-
esticadas, fazendo comidinhas com fo-
sa foi de nuvens a cavalos-marinhos,
lhas e montes de terra, comendo pe-
dos avós a um primo que enlouquecera,
queníssimos tatus ou vestindo bonecas
e depois até muitas coisas inventadas.
com roupazinhas feitas do mesmo pano
das suas próprias. Seu olhar às vezes   Se a princípio Irene, a mãe de Nad-
doce acostumou-se alheia do além ja, vigiava assustada a menina esguia
das grades, exceto nos seus momentos no portão, em algum tempo convidou-a
de ódio absoluto: enquanto passavam para o quintal, e pouco depois até para
meninas pulando a corda, tropeçando dentro de casa, embora raras vezes.
graciosas, correndo com seus tornozelos Gostava de Ana tanto quanto Nadja, e
repletos de hematomas e cicatrizes que Ana as estimava reciprocamente, em-
nasciam do viver excessivo. As suas ci- bora o cheiro de Irene lhe enjoasse o
catrizes e hematomas não nasciam, mas estômago por vezes.
eram os sinais da morte gradual da-   Uma vez Nadja fez Ana reparar na
quele membro que ela carregava como perna. Não precisa fingir que não sou
a um animal morto. Nessas horas ela aleijada, disse. Não vou ficar triste se

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você falar disso. E Ana se deu conta. mordê-los, dedicou-se à arte de comer
Dói? Pouco, sempre. Muito, às vezes. os bichinhos, mas ainda assim não se
Posso tocar? Mas não aperta. É fria. constituiu nenhum vício. Nadja de-
Está um pouco morta, eu acho. Será? cepcionou-se, mas aos poucos também
Não sei. Não, acho que não. Você é diminuiu as doses de tatu. Chegou um
bonita. A gente sempre olha primeiro dia em que resolveram ter pena deles.
nos olhos das pessoas. Não se repara Passavam quase todo o tempo sentadas
muito nas pernas. Mentira, a gente olha na calçada em frente à casa, mas estar
primeiro sempre o defeito. Será? É. Eu em frente às grades já preenchia as
nunca te vejo andando. É estranho. Dei- tardes de um vigor novo. Conversavam
xa eu ver. Melhor não. Eu te digo o que muito sobre todas as coisas, mas prefe-
parece, juro. Será? Eu não rio, não acho riam o silêncio. Flutuavam completas
graça nem do que tem graça. Bom. num silêncio sem constrangimento,
Sabe o que parece? O quê? Mas a mãe um silêncio de amor absoluto e sem
de Nadja chamou detrás da vidraça, e exigências. Uma pureza era aquilo.
isso era sinal de que Ana precisava ir. Algumas vezes se assustavam e perma-
Mas nem são quatro horas ainda. Irene neciam se olhando com a desconfiança
espiava pela janela. do medo da morte, mas algo insuspeito
  Depois de alguns meses Nadja e repentino as fazia gargalhar, e então
tomou coragem para pedir à mãe uma ficava tudo bem para sempre.
saída à rua. Com Ana, evidentemente.   Ana distraiu-se em casa com a sua
Depois de muita resistência, ganhou árvore, naquele dia. No dia seguinte
uma ida. A rua toda se juntou para permaneceu sentada no muro balan-
ver. Nadja precisou engolir com força çando o corpo para a frente e para trás,
aquilo que parecia ser todos os tatus estudando a sensação do risco falso da
já engolidos querendo retornar. Sentiu queda. E foi ficando tarde para ir à casa
rebentar dentro de si uma novidade da amiga. Nadja estava magoada, menos
que não soube nomear. Recolheu qual- por Ana não aparecer e mais porque
quer reação que ousou escapar pelo seu não se sentia capaz de atravessar o
rosto. Foi útil a sua aparição para que portão sem ela. Enquanto Ana brinca-
alguns tivessem do que rir, outros do va com os mil muros do muro, Nadja
que lamentar, outros do que se apiedar abriu o portão e permaneceu ali para-
e outros ainda como se sentir salvos da lisada naquela fronteira, entre a casa e
truculência da vida, por um instante. a rua. Ficava balançando o corpo para
Os dias passaram e diminuíram os ri- a frente e para trás, estudando os riscos
sos, lamentos, piedades e alívios. Restou possíveis de quedas, abandonos, risos e
um pouco de cada coisa, mas já era da piedade. E da solidão. E do silêncio
mais fácil acostumar. vazio a que se desacostumara. Largou o
  Ana experimentou os tatus. Eram corpo um passo em frente, permaneceu
crocantes na boca, mas raspavam por uns instantes levemente vitoriosa.
a garganta. Depois aprendeu a não Baixou os olhos e retornou ao quintal
com um único passo. Nesse momento

30 SAMIZDAT setembro de 2012


Ana sentiu o cheiro da comida mesma ­ resa para sempre. E pensava no que
p
da mãe, e descobriu que estava tarde poderia ter levado uma menina a es-
demais novamente. O tempo ia passan- magar o pé de outra, e de onde poderia
do estranhamente. vir esse ódio sentido pelas imperfei-
  Ana pensava debaixo da sua árvore ções. Pensava nos motivos possíveis de
quando ouviu um grito pelo meio da tantas coisas, estática sobre o muro. E
tarde. Correu para o portão e viu um pensava que teve vontade de rir quan-
fio de sangue escorrendo pela ladeira do viu Nadja andando pela primeira
logo ali. Os olhos de Nadja estavam ar- vez, mas depois se distraiu com todas
regalados e a boca muito aberta, silen- as coisas que Nadja em movimento
ciosa então, um silêncio que só aparece parecia ser: barcos, águas, buracos,
no cume da aflição, quando o som foge tempestades, molas, proezas, dias enso-
de medo e o corpo todo troca a sua larados que terminam com chuva, fruta
matéria por uma massa insuportável e misturada com comida salgada, quan-
latejante de dor. O seu pé jazia amas- do a gente descobre que a goiaba está
sado sob um enorme paralelepípedo. bichada e continua comendo tentando
Na hora Ana não pôde saber ao certo não pensar, pedaço de carta amassada
se o pé machucado fora o doente ou o no fundo do baú, um pano de copa
saudável. Mas quando a boca de Nadja úmido útil encolhido no canto, rabo
se fechou e ela desfaleceu, Ana voltou de lagartixa sacudindo fora do corpo
os olhos para a menina morena que lembrando que o amor não morre fácil
observava tudo. As suas mãos morenas assim.
e pequenas destruíram um pé de Nadja   De Nadja não houve mais notícias,
esmagando-o com uma imensa pedra. mas Ana pensaria nela ainda anos mais
Seu rosto pequeno estava pasmo: quan- tarde. Dizem que Ana engravidou seis
do pensou em machucá-la não imagi- vezes, mas que nenhum feto vingou.
nou que seria tanto. Houve um único que nasceu aos cin-
  Havia boatos de que mãe e filha co meses, cabia num bolso de paletó
partiram de madrugada, retornando a e viveu horas, respirando pouco. Não
um país frio. Mas algumas vezes Ana chorou nem gemeu sequer por um
ficava certa de ter visto os olhos de momento, não se sabe se por falta de
Nadja dentre as pregas das cortinas. forças, por falta de tempo, por não
E pensava se era justo que ela ficasse estar suficientemente formado para o
sofrimento, ou por pura compreensão.

Isabela Penov
Isabela Penov é escritora, atriz e arte-educadora. Dedica-se sobretudo a contos e
críticas teatrais – esporadicamente, poesia. Publica alguns de seus trabalhos em
seu blog Semeaduras, e também no blog Filacantos, um jogo-autoral coletivo. Desde
que se lembra é apaixonada pelas palavras – sua potência, seus limites e seus segre-
dos. Ama as crianças, adora o ócio, gosta de cantar, tem esperança na educação e
uma fé inabalável nas pessoas e na construção de um mundo mais justo.

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Contos

Grávida
Aline Nardi

http://www.flickr.com/photos/bensonkua/3339996466/

32 SAMIZDAT setembro de 2012


Estou grávida do mundo, e não sei Não são o que falam; a coerência
o que fazer com ele. Me machuca, me caminha à margem do real. Engolem a
irrita, está aqui. Não o quero, mas está porra de um mundo contemporâneo.
aqui. Tudo o que ocorre por dentro, o Ele copula com um passado ora glorio-
que ocorre por fora, o que ocorre ao so, ora infame.
derredor, tudo converge pra esta barri- E eu sou filha deste passado! E mãe
ga. Se reúnem ao redor desta barriga; deste futuro! Quem eu sou? Sou uma
esperam um novo milênio, como se encruzilhada. Várias vias convergindo
novo fosse melhor, mas não é. num ponto de onde se parte para o
Caminho lentamente para um fim de nada. E mastigo as oferendas como se
ciclo, aterrorizada por saber das coisas. fossem parte minha. Como se movi-
Mãos nas costas, barriga proeminente, mentassem minhas cólicas. Como se
as pernas caminham levemente abertas pressionassem meu ventre cheio.
e as pontadas me lembram uma foda E fujo. Sem rumo, contraindo as
espetacular de ressaca terrível. vísceras para um fim desolador. Eu vou
Eu acreditava num mundo melhor. morrer neste parto. Eu vou implodir
Agora esta criança se forma incons- com a expulsão deste feto do amanhã.
ciente de seu futuro. E eu, a errância de Não há fogos de artifício para receber
sentimentos frívolos, a comer os doces o futuro. Não existem festas de con-
hidrogenados das celebrações de ano templação para este novo rebento. O
novo. E enjoo. E enjoo. Vomito e enjoo que há é choro, desespero, um soltar
com o resto de mim. As imagens em- de mãos protetoras rumo ao caminhar
baçadas, misturando o meu reflexo. Lá sozinho aterrorizante. E não sabemos
fora estão se comendo, se embebedan- nada! E a dúvida é mais tenebrosa que
do. Aqui dentro protejo com a placenta a certeza de uma mentira.
doente um futuro incerto. Tenho medo. Desfaleço. E fico de cócoras. Esperan-
Tenho medo. do o momento em que as luzes serão
Os corredores estão escuros, eu acesas; em que as cartas serão viradas;
ouço as vozes, ouço os gemidos. Não em que eu morrerei na mesa, estendida
os vejo, mas sei o que estão fazendo. em oferenda.
Todas as verdades malditas e perverti- Estou grávida. Com medo. Mas com
das em ações mascaradas para melhor o gosto acre na boca, ele me lembra
­degustação. que engoli a porra toda.

Aline Nardi
Escreve desde criança, mas apenas aos 29 teve coragem de publicar em papel. É autora de Misté-
rios do Meu Ventre (2010), pela Ed. Multifoco e A Cova da Alma (2011), pela Ed. Bookess. Publica de
forma independente e sonha em continuar assim até o fim da vida. Persegue alguns títulos acadêmicos,
mas não os considera relevantes ao ponto de serem mencionados. Publica sua literatura em http://aline-
nardi.com.

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Contos

Léo Tavares

Iniciação
A gente gostava de passar as tardes na olhar zeloso pela humanidade parecia fixar-
casa do meu avô. Quando era inverno eu ia se em minha direção. Mas eu não soube
pro quintal ficar procurando os espaços no distinguir uma expressão de complacência
chão onde o sol batia mais largo, peneira- nos olhos azuis daquele Cristo pintado. O
do pelas folhas da parreira. Achava bonito que queria dizer “estou olhando por vocês”
ficar olhando aqueles recortes de sombra. para mim significava: “estou à espreita.”
Algumas folhas secavam e caíam e então eu Senti-me incomodado porque era como se
escolhia as maiores para levar pra dentro um estranho tivesse adentrado a sala para
e jogar na lareira. Lá para as cinco horas o me pôr medo. Ele poderia me atacar a qual-
meu avô trazia a lenha e eu me arrumava quer momento. Afastei-me do fogo, fui até a
atrás dele, todo encurvado, as mãos juntas porta. Saí de dentro da casa e fiz a volta pela
entre os joelhos, pronto pra sentir o calor do varanda. Pela janela ele também me olhava.
fogo no rosto, com olhos e ouvidos aguçados, Tinha um manto azul claro sobre os ombros,
porque gostava de escutar o crepitar da folha e os cabelos eram dourados. Mais tarde o
se desmanchando pra virar cinza, e porque reconheci no Drácula de Coppola. Aquele
cada vez que eu lançava um punhado delas, Jesus era Gary Oldman aparecendo em Lon-
a cor do fogo se avivava. dres para reencontrar Winona Ryder. Ambos
Foi numa dessas tardes, ocupando o meu haviam sido sentenciados e condenados às
posto diante da lareira, com meu punhado agonias físicas mais terríveis, até a hora de
de folhas secas e o rosto muito vermelho sua morte: um por empalamento, outro por
pela proximidade do fogo, que eu levantei crucificação. Um pelas mãos dos fiéis, outro
os olhos num momento raro de distração pelos infiéis. Mas Jesus eu temia mais, por-
e fiquei paralisado diante de um Jesus cujo que me disseram a vida toda que existia. E se

34 SAMIZDAT setembro de 2012


ele tivesse mesmo aquele olhar do quadro na alguém que tinha em casa uma verdadeira
casa do meu avô, eu certamente não gostaria galeria de personagens católicos: anjos e san-
de encontrá-lo. tos pendiam de paredes descascadas pintadas
Minha infância teve tardes de sábado de bege, que era a cor do hospital, da igreja,
pavorosas em que a minha irmã me chamava das capelas mortuárias e de todas as coisas
para assistir a filmes de terror. Eu não podia amedrontadoras ou tristes construídas na
recusar. Reconhecia a vergonha do medo minha cidade. Mas lembro de ter voltado
pelas coisas que não existem e não queria toda a minha atenção para aquela mulher
demonstrar covardia. Olhava para minha que trazia uma roda com serras de ferro.
irmã de canto de olho – para ver se ela me Perguntei quem era e me disseram que era
observava enquanto eu escondia o rosto com Santa Catarina de Alexandria. Mais tarde me
as mãos nas cenas mais terríveis. Eu nunca contaram que a roda fora um instrumento
via as piores partes, mas sabia que nessas de tortura imposto por um imperador ro-
noites o sono seria perigoso, na iminência mano; que ela aos dezoito anos vencera com
dos pesadelos. Foi de tanto ter pesadelos que argumentos os cinquenta maiores sábios do
acabei me acostumando com as imagens mundo, e que quando morrera, no lugar de
mais sinistras e aos poucos, escondia o rosto sangue, saíra leite. Nunca me interessei por
cada vez menos. questionar a veracidade desses fatos. A histó-
ria me deixara embevecido no sentido mais
Aos oito anos, já encarava de frente o Jesus místico que pode existir. Foi uma primeira
na casa do meu avô, e por longos minutos. sensação de enlevo erguendo meu corpo e
Vi que o que tinha de crueldade nele era levando a minha imaginação para longe da
exatamente o nosso sentimento de culpa. Di- terra e de todas as pessoas. Mas não para um
ziam-nos que ele morrera pela gente. Como lugar de fé, eu sabia. Era um mundo de coi-
olhá-lo nos olhos, então? Eu queria dizimar sas indizíveis, inexplicáveis, muito mais rico
numa inquisição de brinquedo um punhado do que qualquer mundo que eu já visitara no
de folhas secas, e naquela tarde reconheci no sono ou quando lançava ao fogo pequenas
olhar dele um crime que eu nem suspeitava coisas mortas. Literatura, ficção, conto. Quan-
ter cometido. A primeira vez que aprofundei do me contaram a história de Catarina de
minha relação com as imagens foi através do Alexandria pela primeira vez, eu tive sim, um
medo e da culpa. Também foi a primeira vez verdadeiro arrebatamento. Não conseguia
que me revoltei, sem sequer saber o que era explicá-lo, a quem perguntasse. Eu disse à
isso. Logicamente, naquela idade eu também minha mãe: “virei fã de Santa Catarina!”. Em
não poderia suspeitar o que significa ser tempos mais antigos, me diriam ser este um
uma pessoa teofóbica. Mas foi através de êxtase católico, e talvez me levassem a seguir
Jesus que tive medo de Deus. Dele e de seu uma vida religiosa porque reconheceriam
séquito de santos retratados em martírio e nisto uma espécie de chamamento. E foi. Não
redenção epifânica. é à toa que hoje escrevo.
Certa vez fui com minha mãe visitar

Léo Tavares
Natural de São Gabriel, RS, mora em Brasília, onde estuda Artes Visuais na UnB. Participou da
antologia do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, edição 2007, Concurso Nacional de Poesia
Cassiano Nunes, edição 2009, e Prêmio SESC de Poesia Carlos Drummond de Andrade 2011. Colaborou
com textos na edição nº 4 da Revista Literária Macondo. Foi finalista do Prêmio SESC de Literatura
em 2010, com o livro de contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer.

Blog pessoal: http://mobileazul.blogspot.com

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Contos

O Bichinho
Diana Cunha Gil

36 SAMIZDAT setembro de 2012


Não dormia há três dias seguidos; co- dele e contra a qual já não conseguia lutar.
mer era quando se lembrava; os amigos Ao fim de quase duas semanas de re-
não lhe punham os olhos em cima; estava colhimento, os amigos acharam que era
uma sombra do que costumava ser. Tudo demais, tinham de saber o que se passava
tinha começado com uma ideia. Estava no e, por isso, organizaram uma equipa de
café muito bem a conversar e, de repente, a salvamento.
ideia surgiu assim do nada. Desde então só
pensava nisso. Tocaram à campainha por mais de uma
hora, pensaram que afinal talvez tives-
Ao princípio ainda conseguia fazer a sua se saído. Ligaram para o telemóvel, mas
vida normal, mesmo com a ideia dentro da ouviram-no tocar dentro do apartamento.
sua cabeça, constantemente a martelar. As Encostaram o ouvido à porta e ouviram
ideias são assim, teimosas, obsessivas, ciu- a presença de alguém, por isso ele estava.
mentas, quanto mais lhes tentamos escapar Consideraram a hipótese de arrombamen-
mais elas se agarram a nós. to, mas pareceu-lhes excessivo, por isso
Os dias foram passando e parecia que a tocaram por mais uma hora à campainha.
ideia cada vez crescia mais, ganhava forma Nada.
dentro dele, alimentava-se do seu próprio Decidiram-se pelo arrombamento e
corpo e ia ganhando vida própria. Come- lançaram-se todos sobre a porta. PUM!
çou a falar sozinho na rua, a ficar parado PUM! PUM! O barulho ecoava pelo prédio
no meio dos passeios, simplesmente a olhar e receavam que alguém chamasse a polícia.
para o vazio; as pessoas atropelavam-no e Ao fim de muito esforço e recorrendo a
achavam que estava meio louco. diversas artimanhas a porta abriu-se, exa-
Os amigos preocupavam-se, diziam- tamente no momento em que dois agentes
lhe para esquecer o assunto, levavam-no a da polícia chegavam a correr para tomar
passear e a beber copos, mas nada o tirava parte da ocorrência.
daquele estado. Ao abrirem a porta viram-no sentado no
Começou a ficar cada vez mais tempo meio da sala, rodeado de folhas, de portá-
fechado em casa, ninguém sabia o que ele til no colo, a teclar de forma furiosa. Nem
fazia. Recusava convites, não atendia o tele- levantou a cabeça. Só quando um polícia
móvel, encerrou-se em profunda solidão. ameaçou os seus amigos de os levar para a
Chegou a um momento em que já nem esquadra é que se ouviu:
ia trabalhar, tinha posto férias. Começava – Senhor agente não se preocupe, eles
a ter problemas em conciliar a vida com a são meus amigos e não há queixa a apre-
ideia, pois a ideia era já maior do que a sua sentar.
própria vida. Ao começarem a ler as folhas que se
O seu melhor amigo pedia-lhe que con- encontravam espalhadas um pouco por
sultasse um médico, um psicólogo talvez, todo o lado os amigos perceberam, a ideia
pois era óbvio que estaria doente, talvez à não era mais que o bichinho da escrita que
beira de um esgotamento nervoso. Ele não o tinha dominado e se tinha transformado
ouvia, os seus ouvidos já só ouviam o que num romance.
ela lhe dizia, aquela coisa que estava dentro

Diana Cunha Gil


Portuguesa, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universida-
de de Coimbra, Portugal, publica os seus textos no blog Diário da Loira.

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Contos

Fábio Wanderson de Sousa

João Pilão
O sineiro de Del Rei
Não vou ficar aqui me consumindo em badalos, onde os sinos falam com seus ha-
exaustão, tentando descrever o que já está bitantes, entoados pela glória dos dobres e
tão bem descrito. Bernardo Guimarães as- repiques cheios de regras litúrgicas em que
sim nos apresenta a bela São João Del Rei, cantam a vida e a morte.
essa formosa odalisca, que abre as portas das É quaresma. E ali, onde abrem as portas
magníficas regiões do sul de Minas, com seu para o Senhor do Bonfim, com suas ruelas
aspecto faceiro e risonho a dar-lhe aparência incrustadas de pedras, e casarios coloridos,
de noiva gentil trazendo na fronte a grinalda desce um negro magro, esguio, e forte. O
da festa nupcial, e nos lábios o sorriso da negro, conhecido por João Pilão, sineiro de
alegria e do amor. Travessa pastorinha. Com tradição, ofício transmitido por gerações,
seu aroma de flor de laranjeira, rosa, jasmim, sabedor dos mais de 40 tipos de toques
jambo e manjerona, das fragrâncias que se festivos e criador de outros tantos aprova-
exalam de seus inúmeros jardins e pomares, dos pela mais alta cúpula eclesiástica das
sempre toucados de flores e frutos porque lá confrarias, desce para o cumprimento de
só se conhecem duas estações, a primavera suas obrigações.
e o outono, que reinam ali harmoniosamen-
te durante todo o ano. Terra dos frutos, das Naqueles dias João andava cabreiro, não
flores, dos perfumes e das canções, dos risos se sabe se por amor a uma singela negri-
e das festas, da beleza e do amor... A Nápoles nha, ou se por conta do seu afastamento
de Minas. das forças armadas em Juiz de Fora, mas
o certo é que foi visto passar ao lado da
Melhor introdução não há de ter, essa Igreja de São Francisco olhando discreta-
bela dama ribeirinha, com suas pontes de mente e de soslaio, como se para não ser
pedras, envolta pelo sagrado e o profa- avaliado. Depois, foi visto no botequim
no. Cheia de histórias, mistérios, e lendas, da Ponte do Rosário, logo na entrada do
senhora da erudição, das melodias e dos

38 SAMIZDAT setembro de 2012


Tijuco, a ­tagarelar com outros negros sobre dopiava ­Jerônimo anunciando a passagem
mulheres, música, e capoeira, entornando da comitiva formada pelo clero, coronéis,
uns goles de restilo de cana-de-açúcar. comerciantes, beatas e gente do povo são-
Lá pelas tantas, a observar o movimento joanense.
dos transeuntes, percebeu que já se encon- — Hoje os dobres estão perfeitos — dizia
trava em atraso para o cumprimento do o bispo.
dever. Um pixote que por lá passava gritou De repente os dobres foram perdendo
para ele que o pároco estava à sua procura, o seu ritmo, o que não era comum, justa-
pois havia de iniciar a cerimônia dos do- mente na passagem do Senhor dos Passos.
bres convidando os fiéis para a procissão Uma afronta. João abandonará o posto,
do Senhor dos Passos. pensou o Bispo acenando com a mão. O
Saiu dali num corisco, subiu a torre cor- sacristão correu até a torre, entrando zu-
rendo dando início naquele dia aos mais nindo por entre os seus corredores aperta-
belos dobres, jamais ouvidos por aquela dos, lá encontrou um pesado alçapão. Com
estância, e a cidade toda foi envolvida pela um dos ombros forçou até o esgotamento.
sonoridade das baladas de Jerônimo. Estirado sobre uma poça escarlate o corpo
Na cidade Del Rei, todo sino tem o seu de João Pilão, com sua cabeça decepada
nome, todo sino é batizado. E Jerônimo era um pouco mais adiante. Jerônimo encerra-
o nome do sino de João Pilão, por quem ele va o seu último dobre. Lá de cima, já num
tinha grande estima e admiração. Jerôni- silêncio absoluto e com todos olhando
mo era o sino perfeito, de uma precisão para cima gritou a sacristão:
rítmica inigualável. E foi por conta dessas — João morreu, João morreu! — se fez
considerações que os sineiros foram crian- ecoar por todo o Campo das Vertentes.
do voz própria, sendo comum um sineiro Alguns dias depois, lá estava Jerônimo
reconhecer o outro apenas pela sonoridade no banco dos réus, o juiz da comarca op-
que cantavam os sinos, quando estes soa- tou pela condenação, e Jerônimo foi cha-
vam alegres ou tristes por toda a região. mado de o “Sino Assassino”, seu badalo foi
As confrarias subiam formando a pro- retirado e não deveria mais ser tocado até
cissão e já apontava suntuosa com os seus ser conduzido à fundição.
confrades a carregar o Senhor dos Passos Porém, os sinos são como a Fênix, eles
em seus ombros, os coronhinhas vinham à ressurgem das cinzas dando forma a outros
frente, fazendo tilintar numa só harmonia sinos, são conduzidos novamente ao batis-
as matracas ululantes, as corolas com suas mo clerical onde recebem um novo nome.
ladainhas a repetir sem parar os contos Jerônimo foi rebatizado com o nome de
do rosário, e lá no alto, na torre do belís- Francisco.
simo monumento erguido em homenagem
a São Francisco de Assis, cartão postal, Dizem que nas madrugadas sombrias
rainha majestosa de todas as igrejas, ro- da quaresma ouve-se Jerônimo chorar o
­badalo do dobre fúnebre.

Fábio Wanderson de Sousa


Mineiro de São João Del Rei, nascido no ano de 1971. Estudou Filosofia na Faculdade Católica de
Anápolis – Goiás. Na filosofia é leitor de Nietzsche, o seu preferido; na literatura, Jorge Amado e Nelson
Rodrigues. É membro da U.L.A – União Literária Anapolina. Lançou o seu primeiro livro de contos em
julho de 2012. Atualmente deseja entrar para a comunidade SAMIZDAT, por acreditar na sua missão e
filosofia.

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Contos

Zulmar Lopes

O Centauro de Saramago
Conheceu a Nélida no salão de tou Nélida enquanto manejava com
cabeleireiro. Fora fazer um corte a maestria a máquina. “Professor de
máquina e a gerente, uma fellinia- matemática” foi a lacônica resposta.
na de quase 100 quilos, a convocou Como estávamos na Quarta-feira de
para executar o serviço. Sentado Cinzas, Ignácio ouviu atento e as-
na cadeira, observando-a através sombrado, o relato de Nélida para as
do espelho, Ignácio sentiu o célebre outras cabeleireiras sobre suas aven-
desconforto machista em ser atendi- turas no Baile Gay fantasiada de Co-
do por um travesti. Suas mãos eram elhinha da Playboy. Voltou para casa
pesadas, mãos de homem, a despeito curioso, imaginando Nélida dentro
da tentativa de figura feminina que dos seus trajes carnavalescos.
Nélida se esforçava em representar. Na terceira ida ao salão, encon-
Não fosse o leve azular da barba e trou um negro forte sentado onde já
a voz artificialmente colocada, por considerava o seu lugar. A felliniana
mulher passaria. Ele voltou para chamou outra cabeleireira para dar
casa incomodado, mas reconhecen- um trato em sua cabeça semirraspa-
do que Nélida havia caprichado no da e Ignácio, disfarçando a contra-
corte. riedade, ficou bisbilhotando os mo-
Na segunda vez, já estavam um vimentos de Nélida que, num frenesi
pouco mais íntimos e o desconforto entusiástico, esculpia na nuca do
diluíra. “Trabalha em quê?” pergun- Apolo de Ébano a palavra “Mengo”.

40 SAMIZDAT setembro de 2012


Voltou para casa platonicamente Saramago que a criatura mitológica
enciumado. sempre tivera o desejo de dormir
Em sua quarta visita ao salão, deitado de costas, o que sua consti-
durante o ritual do corte, Ignácio tuição, meio homem, meio equino, o
pediu Nélida em namoro. Seguiram impedia de realizar. Encurralado, o
para a casa do professor e tiveram centauro queda-se por um desfila-
sua primeira noite de amor. deiro e tem seu corpo violentamente
cortado ao meio por efeito de uma
Passaram a dividir uma quitine-
pedra pontiaguda. Em seus últimos
te em Copacabana em companhia
momentos de vida, a porção huma-
de um gato angorá chamado Oscar
na do centauro caído de costas ex-
que interpretava o papel de filho
perimenta o prazer de sentir o solo
que nunca teriam. Viviam como
acariciando suas omoplatas. Emocio-
marido e mulher, pois Ignácio não a
nada, Nélida cerrou o livro e tomou
desejava como homem e tão pouco
uma decisão.
Nélida prestava-se ao papel ativo.
Só um detalhe atrapalhava a paz Foram quase dois anos de espe-
conjugal: os flácidos 11 centímetrosra, mais seis meses de recuperação
de Nélida. Ignácio tinha verdadeira após a cirurgia. Dr. Euclides Pessoa,
ojeriza ao falo da amada, mal con- conhecido nos meios cirúrgico-cien-
seguia encará-lo. Passaram muitas tíficos como “O Pitanguy das Xo-
madrugadas de carinhos no escuro, xotas”, fizera um trabalho digno de
com o membro de Nélida ocultado figurar em qualquer galeria de arte,
pelo negrume do quarto enquanto dada a perfeição em que construíra
a vagina de Nélida. Então, tal qual o
o travesti recebia Ignácio de bruços,
escondendo a parte de sua anatomia centauro de Saramago, o agora ex-
embaraçosa ao seu amor. travesti provou da emoção única
de, omoplatas roçando os lençóis,
Um dia, pousou nas mãos de Néli-
receber um homem, seu homem, de
da um livro de contos de José Sara-
frente pela primeira vez na vida e
mago. Não era dada a leituras, mas
ambos, unidos e extasiados, gozarem
interessou-se pela história de um
os prazeres que um prosaico papai-
centauro caçado impiedosamente
e-mamãe só àquele casal poderia
por um grupo de humanos. Narrava
proporcionar.
Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios
literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de
Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de
contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Há anos escreve um romance cujo pano de fundo é o carnaval
carioca. Espera terminá-lo ainda nesta encarnação.

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Contos

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Isabella Gonçalves

Sonho de Cores
O verde engole e envolve o tudo. olhos. Com o movimento, me deixei
A estrada fica ali, reservada. Seu cin- dormir. Acordei em um lugar en-
za apagado, enquanto carros passam cantado. Existiam milhares de bor-
em cima, desejando explorar ainda boletas, e elas pousavam em todos
mais a sua imensidão. Casas peque- nós, enquanto fotos e flashes eram
nas. Vacas brancas. Árvores. Mato, disparados. Tentativa de eternizar
mato e mato... Nem vejo o final. o invisível. As aves cantavam, sem
Cadê o horizonte? Sumiu... E a gente se espantarem muito com a nossa
continua indo e indo em cima desse presença. Tudo era iluminado com
carro que não sabe muito bem qual o sol e mais nada. A noite reservava
destino tomar. Só segue a estrada, a presença da lua, que ainda refletia
perdido e guiado por aquele cami- certa luminosidade, mas apenas o
nho incerto que guarda as surpresas bastante para fazer nossos olhos se
do Pantanal. acostumarem.
Pássaros voando. Um, dois, três, As estrelas decoravam o céu, for-
quatro. Formavam um V, fazendo ba- mavam um caminho branco, a via
rulho e ilustrando o céu. Persegui- láctea. Deitei no barco, sem saber
os, até que foram embora para não onde estava. Não podia ser o nos-
mais voltar. Abandonaram os meus so planeta, a nossa casa. Era mais.

42 SAMIZDAT setembro de 2012


Fechei os olhos, enquanto tentava ­ reparava, emergia lentamente das
p
memorizar o instante. Esqueci rápi- águas ainda escuras do rio, pronto
do o imensurável. Não tinha como para iniciar o show e ocultar as ou-
lembrar. Logo já me via espiando, tras estrelas.
tentando contar todas, perceber os – “A casa está cheia hoje, chefe” –
nomes, lembrar os detalhes. Falaram uma nuvem comentou.
do Cruzeiro do Sul, que apontava
E ele logo se inflou todo, prepa-
e mostrava a direção, e então o vi.
rando-se até que o vento lhe sopras-
Navegávamos, seguindo um caminho
se um aviso final.
que ora coincidia com a sua indi-
cação e ora desrespeitava. Ele fica- Luzes surgiram, com raios irra-
va ali, vitorioso e brilhando. Devia diando atrás de nuvens e invadindo
olhar para nós lá de cima, tentar o céu. O sol nascia. Olhei para a
nos contar e guardar as caracterís- frente e estava colorido. A bola ver-
ticas. Do jeito que fazíamos. Uma melha pintava com a sua cor. Azul
ironia constelar. misturado com laranja em uma
aquarela imensa. Alguns pássaros
Fiz três pedidos. Um para cada
já se levantavam, tentando tirar um
estrela cadente. A azul despencou,
pouco da cara de sono voando por
depois a verde e a amarela. Caíram
aí.
e sumiram no horizonte, forman-
do uma faísca em nossos olhos que Quando o sol já estava no alto,
perdurava... Ao nosso lado, pássaros flashes foram disparados, tentando
descansavam em galhos e jacarés copiar aquilo tudo. Fotógrafos ga-
ficavam imóveis, com apenas a ca- nhavam a fama de artistas, enquanto
beça à mostra, movidos pela curiosi- a estrela amarela era a principal.
dade. A gente também os via, quase Dava vontade de ficar ali, caçando
caindo do barco, de tanto esticar o animais com uma câmera e escre-
pescoço. Os olhos deles à mostra, vendo as suas músicas em um papel.
cientes de nossa presença, mas sem O bom mesmo seria deitar sobre
atacar. uma grama dessas para sempre,
vendo o Cruzeiro do Sul ao longe,
– Ah, se você estivesse fora des-
enquanto o verde abraçava e não
se navio – deviam pensar. Porque o
deixava ir embora.
bote deles era pequeno demais para
aquela embarcação.
Tudo estava preto. Um silêncio
quase total. O barco avançava lento,
tentando acompanhar a calmaria.
O céu se clareava pouco a pouco,
e a lua se despedia dele. O sol se

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Contos

OCOLÂNDIA Silvana Michele Ramos

http://www.flickr.com/photos/roadblog/96979912/
Naquela pacata terra, tudo funcionava com sobre a bagagem, cogitava-se que seria arti-
a mais perfeita integração. Era como uma lharia das mais pesadas: de Gógol a Dostoié-
engrenagem celeste: o açougueiro cortava a vski, de Donne a Hemingway, passando pelos
carne, o escrivão relatava as ocorrências, o Machados...
leva-e-traz levava e trazia. Tudo ia bem, até Não foi absolutamente infundado concluir
que apareceu lá um arruaceiro. que ele traria problemas. E, se os traria, não
À sua chegada, todos se alvoroçaram. interessava saber quais seriam ou quando
Pudera! Ele portava uma bagagem para lá de iriam começar. O negócio era cortar logo o
esquisita. Diversos caixotes castanhos com mal pela raiz, e em casos como aquele, de ní-
inscrições de “Cuidado! Frágil!” despertaram tida transgressão, tinha validade saltar toda a
curiosidade nos moradores que se achavam na baboseira de ouvir o outro lado e chegar sem
estação de trem no instante do desembarque delongas à parte em que o réu é condenado
do sujeito. E, como em todo lugar, houve quem e punido. Com este ânimo, todos, até os mais
se aproximasse tanto que conseguisse desco- liberais, repudiaram em coro a inaceitável
brir, pela denúncia de alguma fresta em um abjeção do infame – ainda que não a tivessem
dos contêineres, o teor daquela tralha suspei- presenciado – e se inclinaram, favoráveis, na
tíssima: livros! direção da sentença.
O boato logo tomou o lugarejo; e, tal como Algumas almas caridosas apiedaram-se
no ditado “quem conta um conto aumenta um quando a noite caiu sem que o forasteiro
ponto”, havia quem jurasse que ele, mal en- tivesse encontrado guarida, mas, que remédio?
trara na cidade, já sacara – que perigo! – um Havia provas irretorquíveis de que ele era re-
robusto exemplar de As mil e uma noites. Já almente nocivo, e, diante de tantas e
­ vidências,

44 SAMIZDAT setembro de 2012


quem se arriscaria a dar hospedagem a ele- vilania, a representação do lugar reuniu-se.
mento tão vil? Ficava até mal... Veio o barbeiro, e propôs que se passasse
A ele coube, então, a sarjeta. Mas não qual- a navalha. Veio o carpinteiro e sugeriu que se
quer sarjeta. Afinal, havia moradores de rua e descesse a lenha. Veio o banqueiro e impôs
moradores de rua, e ele era uma serpente que que se fechasse a conta. Mas melhor sugestão
precisava ser mantida ao largo dos cidadãos foi a do leiteiro, que se mudara há pouco para
de bem. E foi no lugar mais afastado e inós- a cidade e ainda pisava em ovos para agradar
pito que ele improvisou uma acomodação ao os compatriotas e estabelecer seu negócio em
relento. terra tão tradicional. Ele ponderou – atento
Na manhã seguinte, um grave acinte. Mal o a cada reação positiva que sua fala ia impri-
sol nascera e já estava ele, cometendo franco mindo nos semblantes de quem lhe convinha
ato ilícito em plena praça pública: em riste e bajular – que um resultado mais eloquente
perigosamente aberto, ostentava nada menos surgiria se se espremesse o indivíduo até a úl-
que um Tolstoi, em cuja capa, alguns adoles- tima gota, exaurindo-o, diante de todos, como
centes, já dando sinais de perigosa aculturação, uma teta. Sugestão acatada, era hora de cuidar
leram: A morte de Ivan Ilitch. da sua execução. E na calada da noite, um pla-
no pela salvação da cidade foi engendrado.
Todos se escandalizavam com aquelas
atitudes aviltantes. Que situação! Uma cidade No outro dia, espreitaram desde cedo até se
outrora tão tranquila estava agora relegada a certificarem de que o sórdido tinha-se posto a
aturar tipos como aquele... E as crianças eram caminho de seu banco de praça já cativo. Em
as mais suscetíveis. Nutriam temerária simpa- seguida, esgueiraram-se na direção da mo-
tia pelo degenerado. Se os pais descuidavam- radia improvisada. Lá, confiscaram todos os
se um instante sequer, lá estavam elas, rentes livros do abutre e deixaram um aviso: “O FIM
ao mal-encarado, implorando, ouriçadas, por DE QUEM LÊ, AQUI, É O FOGO.”
uma estória. Ele, insensível a todo o dano que De volta à morada, ao cair da tarde, o
isto acarretaria a elas e à sociedade no futuro, homem deu com a subtração e com o bilhete.
contava-lhes as mais instrutivas, e elas, vulne- Porém, ao contrário do que seria natural em
ráveis, sorviam-nas como água de um poço situação semelhante, não fez nenhum alarde
contaminado, embevecidas, para, mais tarde, sobre o sumiço dos seus bens. Tampouco arre-
de volta às casas, exasperarem os pais com dou pé dali, e sequer pediu auxílio à autorida-
perigosas interpretações, conjecturas e – hor- de máxima do lugar, atordoando os idealizado-
ror! – questionamentos. res e – versáteis! – desencadeadores do ato.
Preocupado com a repercussão que aquele No outro dia, os criadores do plano – que,
exemplo de má conduta teria, o policial do antecipando-se ao escândalo que o biltre
lugar foi ter com o prefeito da cidade, a quem seguramente faria, tinham dado o confisco a
expôs detalhadamente o que se estava passan- saber aos que se encarregariam, involuntaria-
do para depois pedir, em nome da manuten- mente, da disseminação do boato – divisaram
ção da ordem e da segurança, providências as o atrevido, que se encaminhava, nem minima-
mais emblemáticas. mente abalado e no horário de costume, para
O prefeito, que era adepto de delegar e de a praça.
reprimir, nem pestanejou. Era mesmo o caso Não bastasse isso, o desvelo com que os
de tomar uma atitude para solapar exemplar- saqueadores do bem executaram aquela edifi-
mente aquela audaciosa dissidência, sob risco cante tarefa não bastou para que um exemplar
de as bases da governabilidade implodirem a de O Anticristo, de Friedrich Nietzsche, fosse
qualquer momento. E, enquanto ele seleciona- incluído na operação. Desta forma, o abomi-
va com toda a cautela um castigo à altura da nável levava-o consigo, como um declarado

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desafio para um duelo que envolvia a comuni- que ninguém se lembrava mais de averiguar a
dade inteira – já toda ciente, àquelas horas, da sua legitimidade, determinou que acontecesse
ineficácia do corretivo. Infâmia! Era a prova da precisamente o oposto. Que queimassem os
qual os guardiões da honra da cidade necessi- livros antes, e bem na frente dele, para que ele
tavam para punir exemplarmente o desajusta- pudesse ter, como última lembrança, a visão
do. de seu tesouro arruinado, e para que eventuais
Juntaram-se em volta do infeliz e o arrasta- seguidores ficassem certos de que a lei dali
ram pela praça até chegar ao canteiro cen- tinha de ser cumprida.
tral. Lá, fincaram uma madeira à qual ele foi Então, os zeladores da tradição do lugarejo
amarrado. E, como o instrumento acionado na dispuseram, sob o olhar regozijado do leiteiro
hora H pelo membro da orquestra bem en- – cujo prestígio crescera a ponto de se poder
saiada, seus valiosos bens ressurgiram, trazidos deleitar no mesmo espaço em que o prefei-
em lombo de cavalo pelo policial, que mante- to, o policial e outros ilustríssimos do lugar
ve um risinho sarcástico no rosto por todo o celebravam o triste ocaso da ovelha negra – os
tempo em que os descarregou diante da teta, livros empilhados a certa distância do réu, de
cuja exaustão, perturbadoramente, tardava em modo que ele pudesse observar sua destrui-
se manifestar, encolerizando ainda mais os ção para, na sequência, senti-la de encontro à
protetores da ordem da cidade. própria pele. E não tardou para que calibrosas
Aquelas crianças para quem o desordeiro labaredas começassem a se erguer, enquanto
lera histórias durante sua polêmica passagem os cidadãos, tochas em punho, observavam,
pela cidadela, em franco indício de que o mal atarantados, o olhar indiferente e até altivo do
já se havia instalado a despeito da seriedade e salafrário.
empenho com que todos trataram a questão, Subitamente, entretanto, o inusitado acon-
choravam copiosamente. As que felizmente teceu: aquelas pessoas impolutas, aqueles
haviam escapado ilesas àquela nefasta impreg- autênticos guardiões dos bons costumes, iam,
nação, riam-se e gritavam palavras de ordem, repentina e inexplicavelmente, sendo puxados
atiçadas pelos pais que não cabiam em si de para o alto em solavancos. Um a um, a come-
orgulho. çar pelos mais próximos da fogueira e depois
Em tom forçadamente piedoso, o policial, de maneira caótica, habitantes reles e célebres
abarrotado de solenidade, quis saber sobre o decolavam, como jatos, para sumirem nas nu-
último desejo do – seu, enfim! – sujeitado. En- vens. E o homem mantinha-se calmíssimo.
tão o homem – que não era afeito a dar espe- Pânico instalou-se na praça lotada. Enten-
táculos tendo a si como personagem – pediu, dendo que aquilo devia ser alguma espécie de
em tom artificialmente submisso, que o quei- maldição do monstro, a multidão começava
massem primeiro, e se deu ao luxo de uma a se dispersar. Houve correria e estardalhaço.
justificativa, qual fosse a de que não suportaria Os lugares mais insuspeitados serviram de
ver seus livros, cujo valor, para ele, transcendia esconderijos, mas as pessoas iam, inexoravel-
o meramente material e passava a ser afetivo mente, sendo arrancadas de onde quer que
– sendo, por isso, inestimável – convertendo-se estivessem, e, dada a aparente aleatoriedade
em inúteis cinzas. daquela macabra escolha, não havia muito o
Alguns, precisamente aqueles que se pres- que fazerem, a não ser se deixarem ficar – de
tam a ser os redentores póstumos dos mais nenhum modo isentas daquele tormento que
indefensáveis criminosos, viram pertinência no amolece e acovarda – até terem que ir. Uma
pedido. Mas o prefeito, que pertencia à ala dos angústia acachapante pairava no ar, mas – não
opressores a la Nero e ansiava por esmagar que aquela gente ainda estivesse reparando –
aquele que ousara ir de encontro a todo um o homem dela se eximia. Apenas ficava ali,
regime que vinha dando certo há tanto tempo amarrado e quieto.

46 SAMIZDAT setembro de 2012


Depois de algum tempo (o mais longo era e, ao lançar os olhos em todas as direções
da vida de quem lá esteve), os puxões ces- buscando o entendimento amplo, vislumbrei, ao
saram. E, passado o susto, os remanescentes olhar para cima, talas e fios coordenando os
lembraram-se do motivo pelo qual estavam movimentos de todas elas, e compreendi que não
ali. Aproximaram-se do sujeito e o desamar- passavam, na realidade, de marionetes. Eu as in-
raram, não sem, simultaneamente, crivá-lo de duzi a queimarem os livros porque, desta forma,
questões acerca do extraordinário episódio. no momento em que as chamas atingissem as
O que havia ocorrido? Para onde tinham ido mãos que as animavam, estas mãos, por reflexo,
os demais habitantes? Por que ele, que deveria afastar-se-iam, e elas, consequentemente, seriam
ser o mais apavorado, não aparentava o menor retiradas deste cenário.
dos receios? – E nós? Porque nós não fomos puxados tam-
Ele caminhou lentamente até o gramado, bém? – quis saber uma mocinha que também
onde se sentou. Os demais fizeram o mesmo, não lhe era estranha. – Foi porque vocês, ao
construindo um semicírculo ao seu redor. Ele, resolverem não se privar do conhecimento, ad-
placidamente e fitando cada um daqueles ros- quiriram, por meio dele, uma volição autônoma
tos tão indagadores quanto familiares, princi- que os desatrelou desse comando central.
piou uma explicação. Assim foi que o homem, auxiliado pela
No momento de fazer o pedido, ele conhe- população remanescente, reouve os exempla-
cera que seus algozes, ávidos por demonstra- res que haviam escapado ao fogo, catalogou
rem, finalmente, quem mandava – ou desman- os incinerados e, graças a diversas vaquinhas
dava – naquela cidade, fariam precisamente o levadas a cabo sobretudo pelas crianças, re-
oposto do que ele solicitasse. Por isso mesmo, construiu o acervo extraviado.
fizera-o ao contrário. Algum tempo depois, ele inauguraria a
– Mas para quê, se você seria queimado em primeira biblioteca da Ocolândia e, anos mais
seguida? – perguntou um menino, que tinha tarde, essa mesma população, junto com seus
sido – ele reconhecia – um dos frequentadores descendentes, em plebiscito, decidiria que a
mais assíduos das sessões que ele promovera cidade, em homenagem ao seu opinioso quase
naquela praça. mártir, chamar-se-ia Opiniópolis, e que ali,
– Ora – respondeu ele – depois de ler todos doravante, só haveria uma proibição: recrimi-
aqueles livros, eu aprendi que nem tudo o que nar pensamentos que divergissem do senso
aparenta ser, chega a ser, na verdade. comum.

– Como assim? – insistiu o garoto. E naquela pacata terra, ao se olhar para


cima, via-se, agora, o céu azul...
– Note – explicou ele – que todas aquelas
pessoas tinham um comportamento padrão.
Elas não tinham vontade própria. Logo, alguém (Revisto em 08.07.12)
as comandava. Eu me interessei por saber quem

Silvana Michele Ramos


Ingressou propriamente na Literatura em 2006 com este conto “Ocolândia”. De então até o momen-
to da presente republicação, foram 16 as deferências auferidas em seleções literárias.
O conto “Ocolândia” foi publicado em 2007, em Belém do Pará, na coletânea “PRÊMIO DE LITE-
RATURA AP” (Ícone Gráfica), decorrência de seu 3o. lugar no referido prêmio, em 2006. Pode ser tido
como conto de estreia porque a única publicação afim e anterior é a de uma redação em coletânea
trilíngue (concurso para universitários brasileiros promovido por UNESCO / Folha Dirigida / MEC em
2005), publicação esta que, apesar de seu alcance além-país (todos os países afiliados da UNESCO), ain-
da não assume inteiramente o formato de ficção. Mas o valor do velho conto “Ocolândia” é o de uma
“obra-testemunho”: os elementos em que se baseia o estilo atual de escrita da autora já figuravam nele.

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Contos

Menina na Tempestade

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João Vereza

48 SAMIZDAT setembro de 2012


Gabriel Beautrace, o naturalista, deixou sua cabine e a enxurrada lhe cuspiu a cara.
O aguaceiro escorria sem misericórdia, Deus perdeu o coração, o tanto que jorrava, a
água que mandava, descia das calhas do galeão como corredeira.
Foram os espécimes, seus potes de insetos, caíram pelo balanço labirintite, volta aqui,
rola prali, criançada na gangorra do tombadilho.
Beautrace partiu atrás, sal no peito, frio na vista, enfrentou lufada e escorregão, catan-
do suas descobertas feito uma tia desesperada.

Céu escuro, troço violento, trovões sem saber de onde, os raios sem saber o próximo,
estalo!, explosão!, valei-nos que Deus acordou furioso.
A tripulação espalhada na correria, recolham as velas descabeladas, amarrem firme
estes barris, Nossa Senhora, tranquem logo os víveres na gaiola.
O Capitão um capeta delirante, ordenou ser amarrado, chumbado, preso ao timão
pela corda serpente.
Gorgolejou com os pulmões, gargalhou como uma viúva louca, ‘molhe mais, vente
mais, minha menina o Senhor não naufraga!.
Seus marujos visíveis nos relâmpagos estroboscópicos, agora esticam uma corda, agora
estirados no convés, agora rezam à garrafa de rum.
O navio carregado pela avalanche do oceano, que chance terão suas almas?, pra que
destino lhes suga o redemoinho?.

Beautrace um suplício em direção à cabine, agachado, bambeado, um braço empilhan-


do três jarros de borboletas, o outro se apoiando nos mastros e canhões.
O barco subia, o barco descia, a porta a uma ironia do seu alcance.
O naturalista olhou e se apavorou, um jarro de besouros passou entre seus pés, giran-
do sem freio pro mar.
Agarrado às madeiras velhas, o moleque Mirandinha também viu, se recuperar estes
bichos, certeza!, Beautrace o adotará como aprendiz.

O vidro cai na água, o menino se livra das cordas e salta o herói alado, o mergulho
sob uma pratada de orquestra.
Nada no estômago das ondas, chega até o jarro e agarra-se ao medalhão salva-vidas.
Os besourinhos sobreviventes e amontoados, as patinhas vagarosas pelo ar, as pernas
do menino gastando a bravura.
Ele grita para o vulto do barco, a água rouca encharcando a voz adolescente.
O Capitão voltaria com sua menina, nem homem, nem besouro, se esquece para trás.
Seu fôlego falhando e o navio se distanciando, a esperança tola ninguém ouviu.
‘Meu Capitão, doutor Beautrace!, já iam lhe jogar a bóia, ‘aqui!, claro que iam, ‘aqui!, já
iam já.

João Vereza
32 anos, é carioca.
Redator publicitário, mora há 6 anos em São Paulo e tem seus textos publicados nos sites Mundo-
Mundano e Jornalirismo.

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Contos

Sombras de carne
Cinthia Kriemler

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Lola limpou a boca no lençol, pouco não iam embora por causa da amizade.
se importando com o olhar magoado Ela e Xavier mantinham a banca desde
do rapaz ao seu lado. Aqueles encontros que tinham se casado, 18 anos antes.
estavam começando a irritá-la. Rodrigo Dezoito anos atrás Rodrigo tinha três
aparecia mais de uma vez por semana anos, pensou, esquecendo-se do marido
no Mercado Municipal, com um jeito e do mercado. Mas logo afastou o pen-
desamparado de cachorro com fome, e samento e concentrou-se no vaivém da
ela acabava por se deixar vencer pela toalha com que enxugava as costas.
piedade. Os olhos... Eram os olhos de Desde que Xavier tinha ficado doente,
Rodrigo que atraíam, prendiam. Não a havia algum tempo, nunca mais fora o
boca, nem os gestos que não passavam mesmo. Acabaram-se as brincadeiras
de uma mão trêmula e gelada, e de um prolongadas no colchão, o sexo em pé,
único grito abafado na hora do gozo. atrás da porta, quando a urgência não
Seus olhos, no entanto, cuspiam sofri- permitia chegar ao quarto, e as fugas
mento, escondiam algum segredo. para os fundos da banca, onde se exci-
Havia entre os dois um comércio. tavam como adolescentes, escondidos
Nada mais. Lola não gostava da demora atrás dos caixotes de fruta. Ela se acos-
do rapaz, do tempo arrastado que levava tumara, ano a ano, a fazer tudo com
para gozar. Uma coisa tão simples essa pressa. Não fosse aceitar aquela rapidez
de trepar, mas Rodrigo insistia em fazer do marido, ficaria sem nada.
de cada uma das vezes um ritual de afe- Traíra Xavier, pela primeira vez, seis
to, como se estivessem num encontro. anos antes. Um freguês perguntou se
Ela já estivera com outros da idade dele, faziam entregas em domicílio e ela
outros que se apaixonaram pelos seus mesma se encarregou de ir levar as
seios e pelo seu sexo sem pelos, que a compras. Preferia que o marido ficas-
tocaram como gatos nervosos, desajeita- se na banca. Por mais desajeitado que
dos, arranhando, mordendo, se esfregan- fosse, Xavier era melhor do que ela nas
do em sua pele lisa. Mas Rodrigo tinha contas, e havia ainda os fornecedores,
aqueles olhos, só podia ser isso! E ela com quem Lola preferia não ter que
acabava por se deitar com ele novamen- lidar. Quando chegou ao apartamen-
te, rendendo-se a preliminares que não to sofisticado, foi o freguês quem lhe
permitia a ninguém mais. abriu a porta. Alto, com a pele clara e
— Por que é que você limpou a boca? os cabelos escuros levemente ondulados,
— quis saber o rapaz. recendia a um perfume discreto, mas
Sem lhe dar resposta, Lola enfiou o insinuante. Lola teve vontade, assim que
corpo carnudo debaixo do chuveiro. Ela o viu, de passear os dedos naquele peito
tinha pressa. Sempre tinha. As coisas largo. Deve ser bom deitar em cima
deveriam estar fervendo no mercado, e dele depois do sexo, se pegou pensando.
Xavier não gostava de ficar sozinho na Depois, as mãos que se roçaram na en-
banca. Reclamava da demora nas entre- trega das compotas, o pacote que caiu,
gas e pedia a ela que não se ausentasse os dois corpos que se abaixaram juntos
por tanto tempo. Não que desconfiasse na tentativa de pegá-lo, e o perfume que
dela. Não, isso nunca! Mas ficava deso- se impregnou nos seus sentidos, rou-
rientado quando a mulher não estava bando-lhe o juízo. Por fim, os olhos se
para atender os fregueses. Embrulhava provocaram. E os dois se completaram
os queijos e as compotas no papel erra- pela fome. Era assim que Lola gostava
do, amassava as frutas, e os fregueses só de se lembrar das coisas.

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Fizeram sexo, ela e o homem do brava-se sempre dele e dos outros, de
perfume suave, por quase um ano. Ele mesma idade... É impressionante como
ia até a banca, encomendava os produ- são desajeitados!, pensava, observando-
tos e pedia que fossem entregues em lhes os gestos durante o coito. Como
sua casa. E a entrega se fazia no suor muitos deles não tinham dinheiro ou
dos corpos apressados. Lola fez-lhe uma renda, comprometiam-se com a obriga-
exigência: que comprasse sempre muito. ção de levarem pais e amigos à banca
Aplicava, assim, ao amante e a si mesma, no mercado. Cumpriam direito o trato,
um mea culpa. Ambos pagavam, a seu com medo de terem que ir correr atrás
modo, pelo que consumiam. Quando o de jovens cheias de espinhas e regras
amante parou de procurá-la, Lola per- que os afastavam por pudor ou esperte-
cebeu que não sentia falta dele, mas das za.
compras que fazia em abundância. E de- Rodrigo tinha ido à banca, pela pri-
cidiu que era preciso repor o prejuízo. meira vez, num dia frio. Primeiro, ficara
Da banca e do corpo. Um a um, foram olhando para o chão, com timidez, mas
surgindo outros fregueses. No princípio, no momento em que seu olhar cruzou
ocasionais, induzidos pela boca pintada com o dela, Lola percebeu a inquietação
de Lola, que parecia a polpa das frutas que havia naqueles olhos que fugiam de
que vendia. Mas, em poucos meses, o tudo. Chegando ao pequeno apartamen-
plantel que a solicitava era constante. to do rapaz para entregar as frutas e os
Assim que Xavier quis contratar um doces, surpreendeu-se com a arrumação
ajudante para ajudá-la com as entregas, e o bom gosto do lugar. E surpreendeu-
ela se opôs: “Desse jeito, o lucro vai-se se mais ainda quando Rodrigo lhe disse
embora!”. Aos 42 anos, Lola rendia-se que morava sozinho. Fizeram um sexo
pela primeira vez em sua vida a um ruim sobre a cama macia e larga, mas
vício. Viciara-se não somente no sexo Lola não estava interessada nas habili-
diversificado, mas na urgência, no de- dades de Rodrigo. Impressionava-se era
sejo pelos corpos que aliviavam os seus com os gestos relutantes e respeitosos
tremores. Nenhum dos amantes dava do rapaz, quase como se lhe quisesse
trabalho. Nenhum deles fazia do sexo fazer amor.
mais do que o prazer das línguas an- — Primeira vez? — perguntou, curiosa.
siosas, das penetrações que a invadiam
com mais ou menos força. Aceitava o — Não, com certeza não. Mas, de uma
aperto nos seios, as bofetadas ocasio- certa maneira, sim...
nais que levava ou dava, a cavalgada e Apesar de intrigada, Lola decidiu que
a posse animal. Recusava-se, apenas, a já tinham conversado demais. Coitado,
dentes que lhe marcassem o corpo que não bate bem das ideias, disse a si mes-
Xavier veria, cedo ou tarde; e aos beijos ma, enquanto saía do apartamento de
na boca, que se empenhava em reser- Rodrigo, logo depois.
var para o marido. Negava-se, também, O rapaz a procurava havia cinco
a deitar-se com menores e com mais meses. Procurava sempre, em excesso.
de um amante ao mesmo tempo. Afora E Lola concordava em se deitar com ele
essas rejeições, fazia pouco sexo com por pena, curiosidade, culpa... Sim, era
mulheres, porque sentia falta da pene- culpa aquele sentimento que sempre a
tração e dos fluidos. levava a fazer coisas das quais se arre-
O primeiro rapaz com o qual havia pendia depois. Sentia-se culpada por
feito sexo tinha cerca de 20 anos. Lem- não conseguir dar a Rodrigo o alívio

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que vira em outros homens, em outros do. Prosseguiu a passo rápido, dando-se
rapazes, como ele. Era o mesmo senti- conta de onde estava apenas quando
mento que a tomava quando percebia passou a ouvir alguns gracejos pesados
os olhares perdidos de Xavier, o cenho e assovios que começaram a incomodá-
franzido, as mãos apertadas como se la. O atalho pela praia não tinha sido
fossem dar socos no vazio, ou como se uma boa escolha. Percebeu, tarde de-
pensamentos absurdos lhe passassem mais, que atravessava uma das piores
pela cabeça. zonas de meretrício da cidade. Nos mu-
Chega!, pensava ela agora, contrariada, ros, as sombras dos corpos que faziam
descendo com barulho as escadas do sexo não a assustavam tanto quanto os
prédio de Rodrigo. Enquanto caminha- corpos que enxergava em carne e osso
va de volta ao mercado, decidiu que se consumindo-se perto dos barcos, na
livraria dele. Rodrigo não lhe fazia bem areia, ou nos carros estacionados ao lon-
ao corpo nem aos pensamentos, que se go do meio-fio. Correu para afastar-se
aceleravam em hipóteses que ela não daquelas Lolas multiplicadas em trepa-
conseguia entender. Que se foda com os das rápidas, daqueles espelhos incômo-
seus segredos!, decidiu, pouco antes de dos. Encostando-se nas grades de uma
chegar à banca. loja fechada, vomitou.
Naquela noite, Lola resolveu que tinha Pouco depois, retomou a caminhada,
que se livrar do rapaz. Xavier estava com passos ainda mais rápidos. Viran-
fora, num dos cursos para comerciantes do a última esquina em frente ao porto,
que vivia fazendo, e ela teria tempo de suspirou, sentindo-se aliviada. No en-
sair e voltar sem ser vista. O marido tanto, logo a seguir, viu os dois corpos
não era homem de controlar os seus projetados na parede mais à frente. Pen-
passos, mas ela preferia não ter que se sou em parar, em recuar, mas alguma
explicar, para não ter que mentir. Orgu- coisa naquele coito a atraiu, deixando-a
lhava-se de pensar que não mentia para excitada. O movimento das sombras
Xavier. Eu omito coisas dele, eu o enga- acelerou-lhe os sentidos, e ela procurou
no, mas não minto para ele, repetia Lola avidamente os próprios seios, apertando-
para si mesma, quando a consciência os com força. Devagar, gemendo muito
teimava em vir à superfície. baixo, aproximou-se mais e mais do
muro que se contorcia, e tornou-se parte
Aprontou-se rapidamente e borrifou daquele clímax.
nos pulsos e nas orelhas o perfume que
usava diariamente. Em vez do táxi que Então, seus olhos se cruzaram com
pensara inicialmente pedir, preferiu outros. Nos de Rodrigo, mais nenhum
caminhar. A noite estava um pouco fria segredo. Nos de Xavier, o fogo que ela
e a falta do agasalho fez com que seus perdera para sempre.
mamilos se avolumassem inconvenien-
temente sob o vestido de malha decota-

Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em
Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o
público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me
deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e
do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de con-
tos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — RE-
BRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

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Tradução

Provérbios do Inferno
O Casamento entre o Céu e o Inferno (excerto)
William Blake
trad.: Henry Alfred Bugalho

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Na semeadura, aprenda, na colheita, ensine, no inverno, desfrute.
Conduza sua carroça e o arado sobre os ossos dos mortos.
O caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria.
Prudência é uma rica senhora velha e feia cortejada pela incapacidade.
Aquele que deseja mas não age, engendra pestilência.
A minhoca perdoa o arado que a corta.
Mergulha no rio aquele que ama a água.
Um tolo não vê a mesma árvore que vê um homem sábio.
Aquele cujo rosto não resplandece, jamais se tornará uma estrela.
Eternidade é apaixonada pelas obras do tempo.
A abelha ocupada não tem tempo para lamento.
As horas de tolice são contadas pelo relógio, mas as de sabedoria nenhum relógio
pode contar.
Nenhuma comida saudável é apanhada com rede ou armadilha.
Usa número, peso e medida num ano de escassez.
Nenhum pássaro voa alto de mais se voa com as próprias asas.
Um corpo morto não vinga ferimentos.
O ato mais sublime é colocar o outro adiante de si.
Se o tolo persistir em sua tolice, tornar-se-á sábio.
Tolice é o disfarce da astúcia.
Vergonha é orgulho disfarçado.
Prisões são construídas com as pedras da Lei, bordéis com os tijolos da Religião.
O orgulho do pavão é a glória de Deus.
A luxúria do bode é a recompensa de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
Excesso de pesar, risos. Excesso de alegria, pranto.
O rugido dos leões, o uivo dos lobos, a fúria do mar tempestuoso e a espada des-
trutiva são porções da eternidade grandes de mais para o olhar do homem.
A raposa condena a armadilha, não a si mesma.

www.revistasamizdat.com 55
Alegria impregna. Pesar dá a luz.
Que o homem vista a pele do leão, a mulher o pelego da ovelha.
O pássaro, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade.
O sorridente tolo egoísta e o tolo triste e carrancudo serão ambos considerados
sábios e servirão de exemplos.
O que hoje é prova, ontem era somente imaginação.
A ratazana, o rato, a raposa e o coelho: atenção às raízes; o leão, o tigre, o cavalo
e o elefante: atenção aos frutos.
A cisterna contém; a fonte transborda.
Um pensamento preenche a imensidão.
Esteja sempre pronto para dizer o que pensa e um homem vil o evitará.
Qualquer crença é uma imagem da verdade.
A águia nunca desperdiçou também tempo como quando ela resolveu aprender
com o corvo.
A raposa provê para si própria, mas Deus provê para o leão.
Pense de manhã. Aja ao meio-dia. Coma à tarde. Durma à noite.
Aquele que te permite abusar dele, a ti conhece.
Como o arado obedece às palavras, assim Deus recompensa as orações.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Espera veneno das águas paradas.
Nunca saberás o que é o suficiente, a não ser que saibas o que é mais do que o
suficiente.
Ouve a repreensão dos tolos! É um título real!
Os olhos do fogo, as narinas do ar, a boca da água, a barba da terra.
O débil em coragem é forte em astúcia.
A macieira nunca pergunta à faia como ela deve crescer, nem o leão ao cavalo
como ele deve caçar sua presa.
Aquele que agradece o que recebe tem uma abundante colheita.
Se os outros não fossem tolos, nós deveríamos sê-lo.
A alma do deleite doce não pode ser maculada.

56 SAMIZDAT setembro de 2012


Quando tu vês uma águia, vês uma porção do gênio. Ergue tua cabeça!
Assim como a lagarta escolhe as folhas mais belas para deitar seus ovos, assim o
padre deita sua maldição nas mais belas alegrias.
Criar uma pequena flor é um labor de eras.
Maldição fortalece. Benção afrouxa.
O melhor vinho é o mais antigo, a melhor água é a mais nova.
Orações não aram! Elogios não ceifam!
Alegrias não riem! Pesares não choram!
A cabeça, Sublime, o coração, Pathos, os genitais, Beleza, as mãos e pés, Proporção.
Assim como o ar para o pássaro e o mar para o peixe, assim é o desprezo para o
desprezível.
O corvo desejaria que tudo fosse preto, a coruja que tudo fosse branco.
Exuberância é Beleza.
Se o leão fosse aconselhado pela raposa, ele seria astuto.
O progresso constrói estradas retas, mas os caminhos tortuosos, sem progresso,
são estradas de gênio.
Antes assassinar um bebê em seu berço do que nutrir desejos não realizados.
Onde o homem não está, a natureza é estéril.
A verdade nunca deve ser dita para ser compreendida, e não ser acreditada.
Basta! Ou de mais!

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A Imagem Divina William Blake
trad.: Henry Alfred Bugalho

À Misericórdia, Piedade, Paz e Amor


Todos rezam em seu sofrimento;
E para estas virtudes de deleite
Devolvem seu agradecimento.

Pois Misericórdia, Piedade, Paz e Amor


É Deus nosso pai querido,
E Misericórdia, Piedade, Paz e Amor
É homem, sua cria e cuidado.

Pois Misericórdia tem um humano coração,


Piedade, um humano rosto,
E Amor, a divina humana forma,
E Paz, a humana veste.

Então, cada homem, em cada clima,


Que reza em sua desdita,
Reza para a divina humana forma.
Amor, Misericórdia, Piedade, Paz.

E todos devem amar a humana forma,


Nos pagãos, Turcos, ou Judeus;
Onde Misericórdia, Amor e Piedade habi-
tam
Ali também habita Deus.

58 SAMIZDAT setembro de 2012


O Cordeiro William Blake
trad.: Henry Alfred Bugalho

Cordeirinho, quem te fez?


Acaso sabes quem te fez?
Deu-te vida e comida
Pelo córrego e pelo pasto;
Deu-te veste de deleite,
Veste macia, lanosa, reluzente;
Deu-te tal terna voz,
Regozijando os vales todos.
Cordeirinho, quem te fez?
Acaso sabes quem te fez?

Cordeirinho, direi a ti,


Cordeirinho, direi a ti:
Por teu nome ele é chamado,
Pois ele se chama por Cordeiro.
Ele é humilde, ele é amável;
Ele se tornou um menino.
Eu um menino, tu um cordeiro,
Somos chamados pelo nome
dele.
Cordeirinho, Deus abençoe a ti!
Cordeirinho, Deus abençoe a ti!

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William Blake (Londres,
28 de novembro de 1757
— Londres, 12 de agosto de
1827) foi um poeta, tipó-
grafo e pintor inglês, sendo
sua pintura definida como
pintura fantástica.
Blake viveu num perío-
do significativo da história,
marcado pelo Iluminismo e
pela Revolução Industrial
na Inglaterra. A literatura es-
tava no auge do que se pode
chamar de clássico “augus-
tano”, uma espécie de para-
íso para os conformados às
convenções sociais, mas não
para Blake que, nesse senti-
do era romântico, “enxergava
o que muitos se negavam a
ver: a pobreza, a injustiça
social, a negatividade do
poder da Igreja Anglicana e
do Estado.”

Infância

Blake nasceu na “28ª Broad


Street”, no Soho, Londres, numa
família de classe média. Seu
pai era um fabricante de
roupas e sua mãe cuidava da

60 SAMIZDAT setembro de 2012


educação de Blake e seus três c­ aráter e das ideias artísticas dois estados opostos da alma
irmãos. Logo cedo a Bíblia de Blake, que iam de encon- humana.
teve uma profunda influência tro às de seus professores e William Blake expressa sua
sobre Blake, tornando-se uma colegas. recusa ao autoritarismo em
de suas maiores fontes de Não há religião natural e Todas
inspiração. as religiões são uma só, textos
Desde muito jovem Blake Casamento em prosa publicados em 1788.
dizia ter visões. A primeira de- Em 1790, publicou sua prosa
las ocorreu quando ele tinha Em 1782, após um rela- mais conhecida, O matrimônio
cerca de nove anos, ao decla- cionamento infeliz que ter- do céu e do inferno, em que
rar ter visto anjos pendurando minou com uma recusa à formula uma posição religiosa
lantejoulas nos galhos de uma sua proposta de casamento, e política revolucionária na
árvore. Mais tarde, num dia Blake casou-se com Catherine época: “a negação da realidade
em que observava preparado- Boucher. Blake ensinou-a a ler da matéria, da punição eterna
res de feno trabalhando, Blake e escrever, além de tarefas de e da autoridade”.
teve a visão de figuras angeli- tipografia. Catherine retribuiu
Apesar de seu talento, o
cais caminhando entre eles. ajudando com devoção Blake
trabalho de gravador era mui-
em seus trabalhos, durante
Com pouco mais de dez to concorrido em sua época,
toda sua vida.
anos de idade, Blake começou e os livros de Blake eram
a estampar cópias de desenhos considerados estranhos pela
de antiguidades gregas com- maioria. Devido a isto, Blake
prados por seu pai, além de Trabalhos nunca alcançou fama signifi-
escrever e ilustrar suas pró- cativa, vivendo muito próximo
prias poesias. Blake escreveu e ilustrou à pobreza.
mais de vinte livros, incluindo
“O livro de Jó” da Bíblia, “A
Aprendizado com Basire Divina Comédia” de Dante Morte
Alighieri – trabalho interrom-
pido pela sua morte – além de
Em 4 de agosto de 1772, No dia de sua morte, Blake
títulos de grandes artistas bri-
Blake tornou-se aprendiz do trabalhava exaustivamente em
tânicos de sua época. Muitos
famoso estampador James A Divina Comédia de Dante
de seus trabalhos foram mar-
Basire. Esse aprendizado, que Alighieri, apesar da péssima
cados pelos seus fortes ideais
estendeu-se até seus vinte e condição física que culmina-
libertários, principalmente
um anos, fez de Blake um ria no seu fim. Seu funeral,
nos poemas do livro Songs of
profissional na arte. Segundo bastante humilde, foi pago
Innocence and of Experience
seus biógrafos, sua relação era pelo responsável pelas ilustra-
(“Canções da Inocência e da
harmoniosa e tranquila. ções do livro, e apesar de sua
Experiência”), onde ele aponta-
situação financeira constante-
va a Igreja e a alta Sociedade
mente precária, Blake morreu
como exploradores dos fracos.
Aprendizado na The Royal sem dívidas.
Academy No primeiro volume de
Hoje Blake é reconhecido
poemas, Canções da inocência
como um santo pela Igreja
Em 1779, Blake começou (1789), aparecem traços de
Gnóstica Católica, e o prêmio
seus estudos na The Royal misticismo. Cinco anos depois,
Blake Prize for Religious Art
Academy, uma respeitada Blake retoma o tema com
(Prêmio Blake para Arte Sacra)
instituição artística londrina. Canções da experiência esta-
é entregue anualmente na
Sua bolsa de estudos permitia belecendo uma relação dia-
Austrália em sua homenagem.
que não pagasse pelas aulas, lética com o volume anterior,
contudo, o material requerido acentuando a malignidade da
nos seis anos de duração do Sociedade. Inicialmente pu- Fonte: http://pt.wikipedia.
curso deveria ser providencia- blicados em separado, os dois org/wiki/William_Blake
do pelo aluno. volumes são depois impressos
em Canções da inocência e
Este período foi marca- da experiência - revelando os
do pelo desenvolvimento do

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62 SAMIZDAT setembro de 2012
William Blake, O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida em Sol
William Blake, Sete Espíritos de Deus

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64 SAMIZDAT setembro de 2012
William Blake, The Ancient of Days setting a Compass to the Earth
www.revistasamizdat.com 65
65
William Blake, Night startled by the Lark
Artigo

http://www.flickr.com/photos/lchifi/231115148/
Henry Alfred Bugalho

O Muro de Indiferença
ou a invisibilidade dos candidatos a escritores

66 SAMIZDAT setembro de 2012


Você teve uma ideia brilhante para que nos cinco séculos precedentes,
um livro? Gastou os últimos meses, ou ­quando J­ohannes Gutenberg inventou a
talvez anos, desenvolvendo-a e pondo-a ­imprensa.
no papel? Sua obra está pronta e agora A primeira constatação a partir desta
só falta publicá-la? explosão criativa foi que talento artís-
É neste ponto que o sonho de ser um tico não é uma exclusividade de uns
escritor converte-se em pesadelo, ou poucos gênios.
melhor, é quando a realidade se mostra Todavia, a segunda descoberta é que
em sua mais crua e angustiante forma: sempre haverá muito mais lixo do que
qualquer um pode escrever um livro, obras de qualidade, pois nem todos que
mas não é qualquer um que poderá pensam ter algum talento o têm de
publicá-lo comercialmente. fato, ou, o que é pior, às vezes um escri-
tor talentoso acaba desperdiçando seu
potencial em projetos ruins, somente na
A proliferação do talento
intenção de ganhar dinheiro ou ficar
Até pouco tempo atrás, a e
­ scrita, famoso.
ou pelo menos a escrita enquanto
­profissão, era uma tarefa para poucos O muro da indiferença
­afortunados.
Não era todo o mundo que tinha O capitalismo é brutal.
acesso a educação de qualidade, nem o Ninguém precisa que eu afirme isto
domínio técnico da escrita para produ- para perceber que o capitalismo funda-
zir bons livros. Assim como em outras se na desigualdade econômica: alguns
atividades artísticas – nas artes plásticas, poucos ganham muito dinheiro, en-
na fotografia, na dança, na música e no quanto a maioria oferece sua força de
cinema – era necessário muito tempo trabalho por míseros trocados.
de estudo e prática para se consolidar
O sucesso de poucos depende neces-
numa carreira, além de ter de estar no
sariamente do fracasso de muitos.
lugar certo, relacionando-se com as pes-
Não sou contra o mercado de consu-
soas certas.
mo, aliás sou o primeiro a reconhecer
Inclusive, a quantidade de livros es-
seus inúmeros benefícios. No entanto,
critos, peças de teatro, filmes, canções,
quando se trata da criação artística e
fotografias, etc., era muito inferior, ape-
literária, estamos do lado de fora da
sar de já ser num volume muito maior
indústria, fomos esquecidos por ela.
do que qualquer ser humano pudesse
Somos e fomos ignorados.
assimilar.
Se você, caro candidato a escritor,
O fato é que, da década de 80
já enviou seus originais para algumas
para cá, publicou-se mais livros do

www.revistasamizdat.com 67
editoras e foi recusado, então já deve o editor afirma que meu livro é um
ter alguma ideia do que estou falando, lixo, que meus personagens são fracos,
senão, está na hora de você tentar. que não sei escrever, que não tenho
Em janeiro de 2012, entrei em conta- nenhum futuro no mercado literário,
to com quase trinta editoras para con- pois, pelo menos, terei a certeza que fui
firmar se estavam recebendo originais lido, que alguém realmente dedicou um
para análise, pois estas pouco de seu tempo para
informações nem sempre
“Pior do que a tentar encontrar algum
estão muito claras nos crítica negativa, ou valor naquelas páginas
sites delas. até mesmo do que que me tomaram tantos
Destas, somente três a crítica destrutiva, dias para serem escritas e
revisadas.
responderam, sendo que é a indiferença”
duas delas não recebiam Pior do que a crítica
mais material por não terem equipe negativa, ou até mesmo
suficiente para dar conta de todos os do que a crítica destrutiva, é a indife-
manuscritos que já haviam recebido rença, a sensação que você é tão insig-
anteriormente. nificante que não merece sequer uma
resposta por e-mail.
De trinta, somente três respostas!
Este é o cenário que você, escritor
As que informam que só analisam
iniciante, encontrará diante de si.
material enviado através de agentes lite-
rários já delimitaram sua política: “não Após mais de uma década escre-
trabalhamos com autores estreantes”. Pois vendo, conversando com centenas de
qual autor em início de carreira possui escritores e participando de oficinas li-
um agente literário influente? terárias, editando obras e revistas inde-
pendentes, não conheço nenhum autor
Em julho deste mesmo ano, contatei
que tenha sido publicado por uma das
dez editoras, enviando algumas breves
grandes editoras do Brasil. Nenhum,
perguntas sobre o processo de sele-
absolutamente zero!
ção de autores estreantes e apenas a
­Soraia Reis, diretora editorial da Editora E isto porque eu, que não tenho ne-
­Planeta, respondeu*. nhuma influência no mercado literário,
já pude me deparar com escritores bri-
Agora, cá entre nós, se a equipe de
lhantes, daqueles que escrevem histórias
uma editora é incapaz de ler e respon-
que reverberam em sua mente por dias
der simples e-mails, você ainda acredita
e dias, de fazer os pelos de suas costas
que eles lerão e darão alguma atenção
se arrepiarem durante a leitura. Vários
ao seu livro de trezentas páginas?
deles não suportaram o muro de indife-
Como escritor, eu não me importo se rença e hoje nem escrevem mais.
receberei uma carta de recusa na qual
Alguns simplesmente não aguentam.

68 SAMIZDAT setembro de 2012


Alguns não estão prontos para arcarem Como aponta Bacellar, não basta que
com o peso da invisibilidade. um romance seja bom, ele “precisa ter
diferencial”, recomendação que se asse-
melha muito à visão de Soraia Reis, que
A culpa é dos escritores?
um escritor deve “preparar um belo texto
que se diferencie dos demais”.
Talvez os dois grandes erros de um
escritor iniciante sejam a ingenuidade e Muitos escritores em início de carrei-
a presunção. ra tendem a parasitar o estilo e os te-
mas de seus autores favoritos, tentando
Ingenuidade porque ele não dedicou
reescrever, a seu modo, o próximo best-
algumas horas para tentar entender o
seller. Por mais que existam tendências
mercado de livros, o que se tem publi-
recorrentes no mercado l­iterário, é
cado e como se aproximar das editoras.
fundamental que o autor encontre sua
Segundo Laura Bacellar, editora e própria voz, aquela que o distinga tanto
autora da obra e site “Escreva seu L ­ ivro”:
dos grandes escritores do momento
“qualquer nível de profissionalismo é tão quanto de outros que também estão
raro entre autores brasileiros que ao fazer lutando por um lugar ao sol.
isso você já se diferencia do bando de
A indiferença das editoras talvez seja
uma maneira extravagante”. ­Soraia Reis,
uma consequência direta da grande
diretora editorial da Planeta, também
quantidade de material que recebem e
defende o mesmo argumento: “Outro
que não possui o nível
ponto importante é enviar
mínimo de qualidade
o original para as editoras “Grande parte da
para sequer ser consi-
certas, ou seja, antecipa- responsabilidade derada com atenção em
damente, verificar quais
do fracasso é do um parecer inicial.
áreas e gêneros as editoras
publicam, para não perder
escritor.” É incrível quanta
­tempo.” gente se autoproclama
escritor, mas que não consegue escrever
E não temos porque questionar que
com competência uma linha sequer de
grande parte da responsabilidade do
literatura relevante. E é justamente esta
fracasso é do escritor, e é aí que entra
legião de pretensos autores que deflagra
a presunção, pois vários autores acredi-
a avalanche de originais que se amonto-
tam que suas obras são muito melhores
am nas editoras por todo o Brasil, difi-
do que realmente são, ou eles imaginam
cultando não somente o trabalho dos
que revolucionarão o mundo da Lite-
departamentos ­editoriais, como também
ratura com suas “obras-primas” e que
a descoberta de algum trabalho de mé-
ninguém é capaz de reconhecer a sua
rito entre tantos ­entulhos.
genialidade.

www.revistasamizdat.com 69
Mesmo assim, Soraia Reis é categó- potencial comercial deste autor que ­acaba
rica em afirmar que “recebemos muitos de vender milhões e milhões de livros
originais, como já citado, mas dentre estes, digitais?”, é a questão que se levanta,
podemos descobrir grandes pérolas, afinal, e muita gente tem começado a dar-se
todo escritor um dia foi inédito, não é conta que nem sempre os editores são
mesmo?” um bom referencial na hora de deter-
minar o que é que os leitores realmente
gostam.
Qual é o caminho das pedras?
2 - concursos literários
Se eu pudesse lhe indicar este cami-
nho, provavelmente nem estaria escre- Ganhar algum prêmio literário im-
vendo este artigo. Talvez nem haja um portante, além de inflar seu ego e dar-
caminho, a não ser o simples rolar dos lhe uns tostões, pode também atrair a
dados da Fortuna. atenção de alguma editora.
Alguns conseguem, outros não: uma No entanto, cautela! Nem todos os
verdade definitiva da existência. concursos são confiáveis e alguns deles
são obviamente com cartas-marcadas.
No entanto, nem tudo está perdido.
O panorama é cinzento, as nuvens são Os grandes concursos, entenda-se os
carregadas, mas sempre há uma espe- que possuem um prêmio em dinheiro
rança. apetitoso, atraem tanto autores anôni-
mos quanto consagrados, e você pode
estar certo que, entre premiar ­Dalton
Seguem algumas alternativas para
Trevisan e você, eles escolherão o
o candidato a escritor:
­famoso.
1 - publicação independente
3 - tente as pequenas editoras
Autopublicar-se nunca foi visto
Fechar um contrato com uma grande
com bons olhos por editores nem por
e influente editora é o ideal de todo o
­leitores.
escritor, motivado principalmente pela
No entanto, tudo tem mudado tão ilusão que assim ele terá muito mais vi-
rápido que, hoje em dia, com tantos sibilidade nas livrarias e venderá muito
casos de megassucessos instantâneos de mais livros.
autores publicados independentemente
Contudo, é preciso começar por
nos EUA, a autopublicação não ape-
algum lugar e existe uma porção de
nas não tem sido mais observada com
pequenas casas editoriais, às vezes no
desconfiança, como agora a crítica tem
fundo do quintal do editor, dispostas a
se voltado contra as grandes editoras
encontrar e publicar novos talentos.
americanas.
Mas também não se engane... Quase
“Como é que vocês não perceberam o
sempre você terá de meter a mão no

70 SAMIZDAT setembro de 2012


­
bolso e liberar uma verba para custear importa mesmo é ser lido e confirmar
parte do (ou todo o) processo de pu- que as suas obras têm valor, que mere-
blicação. E também divulgar muito e, cem muito mais do que indiferença.
comumente, vender de porta em porta
seu próprio trabalho. Conclusão
4 - oficinas literárias
Não existe fórmula para ser publica-
Além de ser uma boa maneira para do, assim como não existe fórmula para
aprender técnicas novas e refinar a o sucesso.
sua escrita, algumas oficinas literárias
Se você pôs na cabeça que deseja ser
ministradas por escritores influentes
escritor, então prepare-se para ser ig-
podem lhe abrir as portas do merca-
norado, rejeitado, recusado e criticado.
do editorial, desde que seu material
Estas são as provas de fogo que você
seja bom o bastante para ele querer
terá de enfrentar para confirmar esta
­recomendá-lo.
sua decisão.
5 - escreva um blog
O fracasso estará aí, sempre esprei-
Se não é para ficar rico, nem famoso, tando do outro lado da porta, e, atrás
nem conseguir publicar por uma edito- do muro da indiferença, não está o fim
ra grande, por que não criar um blog e nem as respostas, somente outras lutas e
divulgar seus textos lá? outras dificuldades a serem ­enfrentadas.
Pelo menos assim você conquistará Às vezes, o caminho que parece ser
alguns leitores e, se seu blog fizer su- o mais glorioso pode ofuscar as estrei-
cesso ou for muito polêmico, talvez até tas e obscuras trilhas secundárias, mas
acabe fisgando alguma editora. elas continuarão lá, prontas para quem
Há alguns casos de autores publica- ousar percorrê-las.
dos que começaram desta maneira e * A Editora Globo nos enviou um e-
que hoje estão por aí, vendendo livros e mail informando que os “diretores estão
ganhando prêmios. fora da empresa e não poderemos dar a
Mas, no final das contas, o que mais atenção que você merece.”

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Litera-
tura e História. Autor de “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), de outros
quatro romances e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fun-
dador da Oficina Editora. Autor do best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”,
cidade na qual morou por 4 anos, e do “Curso de Introdução à Fotografia do Cala a
Boca e Clica!”. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua
cachorrinha.

www.revistasamizdat.com 71
Soraia Reis, diretora editorial da escritor pode confiar que um livro com
Planeta, responde: potencial será descoberto em meio aos
demais originais que a editora recebe
1 - além de escrever um livro interes- todos os meses?
sante, como deve proceder um escritor O texto precisa ser bom, condição
em início de carreira para despertar a primordial, mas quando um agente co-
atenção das grandes editoras? nhecido acredita no livro, já sabemos que
Como você disse, escrever bem em pri- devemos ler, pois ele já fez a primeira
meiro lugar. O autor de ficção deve criar leitura. Afinal você conhece o trabalho
uma história encantadora, aquela que o de cada agente. Mas inúmeras vezes não
leitor não tem vontade de parar de ler. contratamos livros vindos dos agentes e
Para isto o texto deve ter fluência. Já no contratamos livros que recebemos direto.
livro de não-ficção, o autor deve conhecer Normalmente o agente ajuda na divulga-
profundamente sobre o que está escreven- ção do livro, como também a melhorar a
do. Deve pesquisar, se atualizar. Em ambas forma do livro.
as áreas, o escritor precisa se preparar. 3 - apostar em um autor nacional es-
Após preparar um belo texto que se treante é um risco? Por quê?
diferencie dos demais, pois as editoras
Tudo é risco. Por exemplo: compra-
recebem centenas de originais por mês, o
mos direitos de livros estrangeiros que
autor deve fazer uma boa apresentação do
venderam 1 milhão de cópias nos EUA,
seu trabalho e encaminhar a sua biografia
mais 1 milhão na Europa, e no Brasil não
anexa. Outro ponto importante é enviar
acontece nada. O editor apostou em um
http://www.flickr.com/photos/johnjoh/766356899/

o original para as editoras certas, ou seja,


tema que agrada ao público brasileiro e
antecipadamente, verificar quais áreas e
que vendeu bem; a princípio, isto seria um
gêneros as editoras publicam, para não
bom parâmetro, mas não o é. Desta forma,
perder tempo. O autor deve ter paciência
o que pode vender? No que apostar? O
para receber a resposta também. Às vezes
editor não tem bola de cristal, mas o seu
os autores inéditos enviam textos para
conhecimento e o seu faro podem ajudar.
avaliação e querem resposta em um mês.
Seja o autor inédito ou não. Recebemos
O processo não funciona assim, pois a
muitos originais, como já citado, mas
pressa pode atrapalhar a avaliação.
dentre estes, podemos descobrir grandes
2 - um agente literário ou uma indica- pérolas; afinal, todo escritor um dia foi
ção influente facilita o processo, ou o
inédito, não é mesmo?

72 SAMIZDAT setembro de 2012


Laura Bacellar, editora, consultora 2 - um agente literário ou uma indica-
editorial e autora de “Escreva seu ção influente facilita o processo, ou o
Livro”, responde: escritor pode confiar que um livro com
potencial será descoberto em meio aos
1 - além de escrever um livro interes- demais originais que a editora recebe
sante, como deve proceder um escritor todos os meses?
em início de carreira para despertar a Já vi sucessos sem conta pelos dois
atenção das grandes editoras? caminhos. Um agente muitas vezes facilita
Deve mostrar que sabe a quem se diri- a entrada numa grande editora, porque
ge, em primeiro lugar. Ter conhecimento a obra tem todo o perfil de boas vendas
do público com quem fala e, se possível, já ou muito prestígio. Mas o caminho por
se entender com ele – através de um blog conta própria também é trilhável e ainda
ou rede social ou cursos ou palestras ou possível em nosso mercado; é mais uma
lá o que seja – é um megaponto a favor questão de tentar. O que não pode é
para ser levado a sério pelo editor. desistir na primeira. Muita gente me diz
que enviou para duas editoras, foi recusa-
Em segundo lugar, deve demonstrar que
do e desistiu. Eu rio. Duas? Eu já tive um
conhece o mercado. Os autores america-
original recusado por dez editoras, apesar
nos já têm uma formulazinha para isso,
de ser do meio e saber a quem me dirigir.
sempre que apresentam um original a
Depois esse original foi aceito e publica-
uma editora dizem com que outros livros
do...
e autores ele concorre, o que tem de me-
lhor ou parecido com esses livros publi- 3 - apostar em um autor nacional es-
cados (de sucesso) e como vai conquistar treante é um risco? Por quê?
esse mesmo público que gostou desses É um risco enorme, todo escritor tem
outros livros, elencando as razões para que entender isso. Porque o editor não
gostar do seu. tem a menor ideia de como o público
Aqui isso não é tão difundido, mas vai reagir àquele novo nome, àquele novo
uma postura como esta impressiona título. Pode não acontecer nada e todo
muito bem. Qualquer nível de profissiona- o esforço resultar em livros parados no
lismo é tão raro entre autores brasileiros depósito. O autor precisa entender que é
que ao fazer isso você já se diferencia uma loteria publicar e fazer de tudo, abso-
do bando de uma maneira extravagante, lutamente de tudo, para o livro ser um su- http://www.flickr.com/photos/johnjoh/766356899/

recomendo. cesso. Tem gente que fica largada em casa,


achando que divulgação é trabalho da
Em terceiro lugar, o livro precisa ter
editora. Não é. O autor precisa divulgar
diferencial. Não é só interessante, precisa
feito louco, colaborar de todas as formas
não ser igual aos milhares de outros na
possíveis para o livro acontecer. E nem vai
praça. É por isso que livros de contos cos-
ganhar muito dinheiro com isso, mas se
tumam ser recusados, que romances sem
ganhar um certo nome, uma famazinha,
algo marcante não sejam considerados. O
já vale, porque o segundo livro fica muito
autor deve pensar em algum diferencial
mais fácil. Quem quer viver de escrita ou
que combine com seu estilo, sua vontade
ser levado a sério precisa pensar estra-
de contar histórias ou seu tema, e apro-
tegicamente na carreira, não em ganhar
fundar essa diferença.
dinheiro com a primeira obra.

www.revistasamizdat.com 73
Teoria Literária

Leonardo Araújo Oliveira

OS SIGNOS DO MUNDO,
DO AMOR E DA SENSIBILIDADE NA
LITERATURA DE MARCEL PROUST

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A obra Em busca do tempo perdido grupo dos Guermantes, e vice-versa: “num
expressa a composição de um sistema de domínio comum, os mundos se fecham: os
signos. Tudo é signo, mas, esses não se dis- signos dos Verdurin não funcionam entre
tribuem homogeneamente, isto é, os signos os Guermantes; inversamente, o estilo de
compõem diferentes tipos. Os regimes de Swann ou os hieróglifos de Charlus tam-
signos são diferentes por várias razões, bém não funcionam entre os Verdurin”
dentre elas, a de que não são emitidos do (DELEUZE, 2010, p. 5).
mesmo modo, a de que produzem efeitos
O amor
diferentes nos intérpretes, de que produ-
zem diferentes sentidos e principalmente,
Os signos do amor aparecem frequente-
se estabelecem em relações com diferentes
mente no texto de Proust; o amor é toma-
estruturas do tempo.
do como um de seus grandes temas e são
Gilles Deleuze apresenta quatro des- apresentados vários casos na Recherche.
ses tipos de signos: mundanos, amorosos, Lá se encontra o amor de Saint-Loup por
sensíveis e artísticos. Seguir-se-á doravante Rachel, a paixão de Charlus por Morel,
o rastro deixado pelo filósofo francês, mas a obsessão de Swann por Odette – tema
por razões pragmáticas (limite espacial do principal do primeiro livro (O caminho
texto) não serão abordados os signos da de Swann). O amado aparece como uma
arte (que ficam, quem sabe, para um próxi- pluralidade louca de signos a qual o aman-
mo texto) e, por conseguinte, nem mesmo te não consegue apreender, decifrar, deco-
as diferentes relações que cada regime de dificar; o que mantém o mundo do amante
signo possui com o tempo, pois somente os inacessível ao amado, produzindo o ciúme,
signos artísticos permitem o desvelamento a obsessão, o sofrimento.
dessas relações. Ainda assim, será demons-
O amado aparece como algo a ser in-
trada uma ideia geral sobre o tempo: o
terpretado, e o amante, precisamente pelo
afastamento da categoria da extensão e o
sentimento do amor, pelo imperialismo da
entrelaçamento com a ordem da intensida-
paixão, sente-se forçado a interpretar, mas
de.
sempre verá no amado certos segredos,
O mundo ocultações, que por sua vez, expressam os
espaços aos quais o amante não pode aces-
É nas relações sociais descritas no ro- sar, não importando se são ou se não são
mance de Proust que surgem os signos da intenção daquele. Vários são os exem-
mundanos. Lê-se no texto vários encontros, plos de casos de ciúmes na obra de Proust.
festas e banquetes regrados com diálogos Dentre eles, o mais notável, pelo grau de
entre grupos de burgueses e aristocratas, obsessão elevado, é o descrito em A pri-
povoados por personagens como médicos, sioneira, quinto romance da série, em que
diplomatas e militares. Causa curiosidade quase todas as páginas do texto são mar-
nesse regime de signos como ele próprio cadas com o nome de Albertine – perso-
é composto de forma heterogênea, de nagem que aparece como que aprisionada
modo a situar os personagens emissores em casa do narrador. No livro seguinte, A
de signos mundanos como dotados de uma fugitiva, quando o herói do romance se dá
mútua falta de compreensão. Um exemplo conta de que Albertine fugiu, logo nas pri-
disso é o fato de que no grupo dos Verdu- meiras linhas, vê-se o personagem abando-
rin não atuam os mesmos signos que no nado, atravessado pela dor, que, no entanto,

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força-o a pensar e realizar descobertas: alizar descobertas, mas de que essas desco-
bertas sejam feitas sempre posteriormente.

“A Senhorita Albertine foi-se embora!” A sensibilidade


Como, em psicologia, o sofrimento vai mais
longe que a psicologia! Um momento antes, Os signos sensíveis são impressões mais
analisando-me, eu imaginara que tal separação gerais, qualidades tiradas da natureza. O
sem que nos víssemos de novo era justamente grande exemplo se encontra no primeiro
o que havia desejado, e, comparando a medio-
livro da série, na ocasião em que o per-
cridade dos prazeres que me dava Albertine à
riqueza daqueles de cuja realização ela me pri- sonagem narrador experimenta o bolinho
vava, julgara-me sutil, concluíra que não queria chamado madeleine, lhe dado por sua mãe:
mais vê-la, que já não a amava. Mas estas pala- Fazia já muitos anos que, de Combray,
vras: “A Senhorita Albertine foi-se embora” aca-
tudo que não fosse o teatro e o drama do
bavam de provocar no meu peito uma dor tal
que eu sentia não poder suportá-la por muito meu deitar não existia mais para mim,
tempo. Assim, o que pensara não ser nada quando num dia de inverno, chegando eu
para mim era simplesmente toda a minha vida. em casa, minha mãe, vendo-me com frio,
Como a gente se desconhece! [...] Sim, ainda há propôs que tomasse, contra meus hábitos,
pouco, antes da chegada de Françoise, pensara um pouco de chá. A princípio recusei e,
que já não amava Albertine e que não teria de
nem sei bem por quê, acabei aceitando. Ela
renunciar a nada; como analista rigoroso, ima-
então mandou buscar um desses biscoitos
ginara conhecer muito bem o fundo do meu
coração. Mas nossa inteligência, por maior que curtos e rechonchudos chamados madelei-
seja, não pode perceber os elementos de que ele nes, que parecem ter sido moldados na val-
se compõe e que permanecem insuspeitados, va estriada de uma concha de São Tiago.
enquanto, do estado volátil em que subsistem E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo
a maior parte do tempo, um fenômeno capaz dia tristonho e a perspectiva de um dia
de isolá-lo não os faça sofrer um princípio
seguinte igualmente sombrio, levei à boca
de solidificação. Eu me enganara julgando ver
claramente no meu coração. Mas esse conheci- uma colherada de chá onde deixara amo-
mento, que as mais finas percepções do espírito lecer um pedaço da madeleine. Mas no
não me haviam conferido, acabava de me ser mesmo instante em que esse gole, mistura-
proporcionado, duro, brilhante, estranho, como do com os farelos do biscoito, tocou meu
um sal cristalizado, pela brusca reação da dor. paladar, estremeci, atento ao que se passava
(PROUST, 2004b, p. 317).
de extraordinário em mim. Invadira-me
um prazer delicioso, isolado, sem a noção
O primeiro capítulo desse livro, sobre de sua causa. Rapidamente se me tornaram
mágoa e esquecimento, inicia partindo indiferentes as vicissitudes da minha vida,
do acontecimento final do livro anterior, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua
quando Françoise anuncia ao narrador que brevidade, da mesma forma como opera o
Albertine havia pedido as malas para ir amor, enchendo-me de uma essência pre-
embora. Aqui, o personagem principal per- ciosa; ou antes, essa essência não estava em
cebe algo que escapava ao seu intelecto an- mim, ela era eu. Já não me sentia medío-
teriormente, mas que depois lhe apareceu cre, contingente, mortal. De onde poderia
com a necessidade causada pelo encontro ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que
com a dor. Os signos do amor têm em estava ligada ao gosto do chá e do biscoito,
comum com os signos mundanos o fato de mas ultrapassava-o infinitivamente, não
forçarem a faculdade da ­inteligência a re- deveria ser da mesma espécie. De onde

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vinha? Que significaria? Onde apreendê-la? p. 91).
(PROUST, 2004a, p. 51). A liberação do tempo de sua face ex-
Esse tipo de signo possui ainda a parti- tensiva, espacial, faz com que o tempo
cularidade de invocar a memória involun- comporte certa multiplicidade, com que o
tária. A definição de memória involuntária tempo saia dos eixos, em consonância com
é estabelecida pela insuficiência da me- a fórmula de Shakespeare, do tempo fora
mória da inteligência enquanto meio de de seus gonzos, como anuncia (em) Hamlet:
conhecimento e de recuperação do tempo “nosso tempo está desnorteado” (SHAKES-
que passou: “Mas como o que na época eu PEARE, 2007, p. 40). A questão de Proust
lembrasse me seria fornecido exclusiva- é essa ambiguidade, essa complicação, as
mente pela memória voluntária, a memória coimplicações do tempo: “como se hou-
da inteligência, e como as informações vesse no tempo séries diversas e paralelas”
que ela nos dá do passado nada conser- (PROUST, 2004c, p. 625).
vam dele, nunca teria sentido interesse em
imaginar o resto de Combray” (PROUST,
2004a, p. 50).
Referências
O tempo
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio
A memória voluntária produz uma ima- de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
gem do passado segundo uma expressão
PROUST, Marcel. A fugitiva. Rio de Ja-
de ordem cronológica do tempo, ou seja,
neiro: Ediouro, 2004b. (Em busca do tempo
o tempo, dentro do esquema da memória
perdido, vol. III).
voluntária, aparece sob a mensuração do
espaço, pois é considerado extensivo, e não ––––––. No caminho de Swann. Rio de
intensivo. Por isso a memória voluntária Janeiro: Ediouro, 2004a. (Em busca do tem-
não traz conhecimento. A intensidade é o po perdido, vol. I).
que, conceitualmente na obra de Deleuze, ––––––. Sodoma e Gomorra. Rio de Ja-
ocupará em outros textos o lugar do signo. neiro: Ediouro, 2004c. (Em busca do tempo
Pois o signo já é da ordem do intensivo, de perdido, vol. II).
uma força produzida no pensamento, de SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto
uma violência que força a pensar, como no Alegre: L&PM, 2007.
caso da fuga de Albertine: “O que nos força
a pensar é o signo. O signo é objeto de um
encontro; mas é precisamente a contingên-
cia do encontro que garante a necessidade
daquilo que ele faz pensar” (DELEUZE, 2010,

Leonardo Araújo Oliveira


nasceu em 1990, Vitória da Conquista – Bahia, onde ainda reside. Cursa filosofia
na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Além de artigos acadêmicos em filo-
sofia publicados em periódicos, publicou a crônica Morte e democracia, pela editora
Carta, através do Prêmio Literário Sérgio Farina e tem três contos selecionados para
serem publicados em três antologias pela Editora Estronho.

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Crônica

CRÔNICA TRANSITIVA
Adriane Dias Bueno

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78 SAMIZDAT setembro de 2012


O meu coração escorre como a guna ao e­ ncontro do mar, mas
laguna para o mar. Suspiro como ­ambicionando não alcançá-lo
os navegadores ao deixarem suas nunca, nunca.
mulheres, quando partem para Que é isso que sinto? Que é
desbravar novos e velhos mundos. isso que sinto? Não quero sentir,
Ah! Meu coração escorre como mas me vai tomando como uma
essa verde água para o mar escu- canção dolorida. “Caruso”, reflito,
ro e indefinido. sempre me lembrou o mar... Não
Eu desgosto e gosto desta terra. sei quais minhas origens e então
Ela nada fez por mim... Mas eu fiz misturo todas e sai esse refrão
algo por ela? Nem sei qual é mi- assim dissonante. Fico lembrando
nha origem, que raízes eu tenho. da laguna que encontra o mar,
No entanto, tem essa coisa presa o mar que encontra a laguna, às
na garganta enquanto vou vendo vezes tão furiosos entre si, outras
a península ficar para trás. Quero tão calmos, harmoniosos.
partir, quero ficar. E fico ouvin- O meu navio transpõe a Barra
do o rugido do vento atacando o do Rio Grande, canal perigoso,
velame, entesando o cordame que cheio de armadilhas, naufrágios;
prende o mesmo ao mastro. O sal o vento continua tocando as velas
da água dói em meus olhos, mas que movimentam o barco. Eu só
não é saudade da terra que vai fi- quero partir, mas o coração, com
cando para trás não, é outra coisa, todo o seu desgosto, me implora
penso convencida. para ficar.
E detesto o cheiro do peixe, Nunca fizeste nada por mim,
o odor da maresia. Detesto os sinto aqui doendo, mas os maru-
lugares comuns da cidade que jos sempre voltam para suas ter-
vou deixando, embora desejan- ras, esposas e casas pobres e tris-
do voltar. Mesmo assim, meu tes. Os marujos são tristes. Será
coração vai escorrendo pela la- por isso que sempre retornam?

Adriane Dias Buenos


Casada, nascida em Rio Grande/RS. Formou-se Bacharel em Direito pela FURG
em 2003, ingressando na Ordem dos Advogados do Brasil em 2004, sendo advogada
militante em sua cidade, desde então. Livros e Publicações: “Casa de Ventos e Sussur-
ros – Poesias”. Editora: CBJE, 2010. “Começo, meio ou fim?”. Conto publicado no livro
“Criadores e Criaturas”, CBJE, seletiva de novembro de 2010. “Quem tem medo do
escuro?”, poesia publicada na Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, nº 72,
CBJE, seletiva de novembro de 2010. “Estranhamento”. Crônicas e poesias. São Paulo:
Scortecci, 2012.

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Crônica

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João Paulo Hergesel

Sinestesia,
Oximoro
e Anadiplose
Meu mal de nascença é a preferên- nem sabia o que era isso.
cia por coisas incomuns; sempre fui — Estatística?
o patinho feio que rodeia o lago dos
cisnes. Nas aulas de educação física, — Não. Estilística!
todos brigavam pela bola de futsal, — Ah, aquilo de fazer vestido de
mas eu só queria saber do tabuleiro de noiva.
ludo. Nos fins de semana, todos idola- Quando eu tentava, humildemente,
travam o sol, mas eu adorava os sába- explicar que se tratava de estudar o es-
dos e domingos chuvosos. Nas baladas, tilo da palavra, a decepção era notável:
todos carregavam o frasco de vodca,
— Tanta coisa para fazer, e você fica
mas eu só segurava o copo com suco
dizendo se a palavra é feia ou bonita?!
de abacaxi.
De nada adiantavam meus soliló-
Na faculdade, não foi diferente.
quios sobre funções, vícios e figuras de
Cada um tinha sua própria paixão
linguagem. Era inútil mostrar que há
por uma das áreas do curso de Letras:
nome para quando se mescla sentidos,
uns eram rígidos na gramática; alguns,
ou se fala de modo contraditório, ou se
meticulosos na linguística; outros, fan-
repete a última coisa que foi dita; si-
tasiosos na literatura. A amplitude da
nestesia continuava sendo aquilo que o
Língua Portuguesa, no entanto, me per-
médico aplica para o paciente relaxar,
mitiu ser diferente (de novo) e escolher
oximoro permanecia uma marca de
me especializar em outro campo: o da
alvejante e anadiplose ainda era nome
estilística. A maioria dos meus colegas
de uma tribo indígena do sul do Mato

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Grosso. até sentimentos. Mas uma prosopopeia
Os dias iam passando, e as pessoas de evento internacional era novidade
insistiam em ignorar a pobre estilísti- para mim. Pude imaginar aquela festa
ca, mas eu me viciava cada vez mais. toda, com estádio e gente e barulho e
Passei a fazer análise do discurso em bandeiras e polissíndeto, dando corri-
simples conversas. Meu namoro termi- dinhas até chegar ao Brasil.
nou por culpa disso. — Querem outra novidade? Acaba-
— Eu te amo do tamanho do mun- ram de confirmar que as Olimpíadas
do. também virão para a Cidade Maravi-
lhosa!
— Hipérbole!
Nem dei tanta importância para a
— O que foi, gatinho? perífrase relacionada ao Rio de Janeiro;
— Metáfora! a personificação, do mesmo tipo da
— Dá pra parar de gritar alto? anterior, estava presente novamente. E,
enquanto eu pensava a respeito disso,
— Pleonasmo!
tudo começava a se modificar: novos
— Faça isso mais uma vez e estes estádios, novos hotéis, reformas nas
dedinhos vão balançar num ritmo de cidades, reforma nos próprios brasilei-
despedida. ros.
— Eu... Eu... Ocorria uma espécie de metonímia
—? da vida real, a transformação do quase
nada para o tudo, uma sinédoque do
— Eufemismo.
todo pela parte: o Brasil se modificava.
Solteiro, sentia-me socialmente sofrí- Aí alguém comentou da tradicionali-
vel e só conseguia pensar na aliteração dade, se as cidades não perderiam seu
que isso provocava. Foi nessa ocasião valor histórico e cultural com tantas
que alguns amigos me levaram para mudanças.
o bar da universidade e, por acaso, foi
A pergunta não era dirigida exa-
anunciado que já estava decidida a
tamente a mim, mas confesso que só
sede para a Copa do Mundo de 2014.
consegui, mais uma vez, pensar na
O balconista exaltou:
estilística. Assim, responderia: a cono-
— A Copa do Mundo está vindo tação não destrói o sentido denotativo;
para o Brasil! apenas o embeleza. Mas não consegui.
Cheguei a emitir uma onomatopeia Analisei meu pensamento, a metáfora
— boom! — quando ouvi essa maravi- que foi utilizada para construir outra
lha de personificação. Já havia anali- metáfora.
sado personificações de todos os tipos: — Metalinguagem! — berrei.
animais, objetos, roupas, astros, datas e

João Paulo Hergesel


Jovem escritor brasileiro de 19 anos. Reside na cidade de Alumínio, onde é colunista de jornais
locais. É estudante de Letras na Universidade de Sorocaba e se dedica principalmente às litera-
turas infantil e juvenil. Autor de um livro de contos e com participações em diversas antologias,
coleciona dezenas de prêmios literários, nacionais e internacionais.

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Crônica

A 5ª Sinfonia de
Beethoven Otávio Martins

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Quanto vale a 5ª Sinfonia de Beetho-
ven?
Foi o que me perguntei numa ma-
drugada dessas. Não saberia responder,
mesmo. Existem coisas, concluí, não
adianta, não têm como mensurá-las. Aí,
dei de pensar, ou matutar, como falava
o meu amigo Théo, caipira, do interior
de São Paulo. Fui atrás do prejuízo,
como dizem outros. Afinal, eu formula-
ra a pergunta. Então, a responsabilidade
recaiu sobre mim mesmo.
Pirâmide Social. Vou começar por
aí, pensei. Vasculhei algumas páginas
lá na Internet e, até, livros, pra enten-
der melhor essa tal tão propalada e
considerada, Pirâmide Social. Nossa!
Fiquei assustado com tal estrutura. Fui
tentando entender, desde lá das pirâ-
mides do Egito que, não são e não será
fácil desfazê-las, tampouco cairão de
uma hora para outra. Napoleão não era
nenhum louco quando exclamou, ao
deparar-se com elas: “Quarenta séculos
vos contemplam!”. Quatro mil anos, ou
mais; É mole? Acho que não caem nem
com reza brava. Mas, alguns esperanço-
sos, acham que, um dia, a tal Pirâmide
Social, supondo que é mais frágil que as
do Egito, cairá por terra. Duvi-d+o=dó.
Ou, pelo menos, não estarei por aqui.
Quem viver, talvez, verá. Também, pen-
sei no tripé Estado, Igreja e a “Comuni-
dade” do Sistemão. Nem me aprofundei,
precisaria de mais uma vida inteira.
Certa vez perguntei para um mestre
de obras, meu conhecido, por que as

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estruturas usadas, tanto para ficarem maneira de falar, não sei se é assim
fixadas (tesouras, cumeeiras e outros que se diz, foi que comecei a enten-
bichos), quanto os meios de se ir levan- der melhor. Ora, além de formar esses
tando uma construção, são na forma quatro triângulos, na subida, existe,
triangular. Ele disse que o triângulo era ainda, na base, o quadrado, mais quatro
o melhor suporte para segurar qualquer lados, formado, ao mesmo tempo, pelos
coisinha, mesmo que seja, ainda, uma próprios lados dos tais triângulos, para
coisona. Numa obra, revelou o mestre, sustentá-los. Parece coisa de louco, mas
é só pegar três pedacinhos de madeira não é. Tirando essa rigidez toda fora, o
e três preguinhos, desses manjados 12 que será, no frigir dos ovos, que susten-
x 12, e estará construída a fortaleza. ta aquela pontinha, lá de cima? Uma
Nossa, juntando as informações do meu das explicações achei numa frase cor-
amigo mestre de obras e alguns dados riqueira: “Você ainda chega lá.” Ou, “Eu
da minha investigação, me assustei. Ele ainda chego lá.” Saindo daqui de baixo,
também dissera que o triângulo, por considerando a tal de Pirâmide Social,
ter três ângulos, tinha essa propriedade. pra se chegar lá, me pareceu lógico, o
Mas, se a tal de pirâmide tem quatro sujeito terá que se valer de vários de-
triângulos, postados sobre um quadra- graus, humanos. Por vezes, mais exata-
do, cujos lados, são, também, os lados mente pela maioria das vezes, fica-se
de cada um desses triângulos e, ainda, pelo caminho. Aí, não tem cristão que
lá em ciminha tem um vértice pra nin- dê jeito. É uma longa estrada. Pior, na
guém botar defeito... Parei. Desisti. Vai subida. Ainda, pra se chegar lá, é preci-
ser forte, assim, no inferno. Esses egíp- so ser bom de capoeira, rasteira, coto-
cios... Nem tentei fazer os cálculos. velada, puxação de tapete e, claro, bom
Por saberem, os analistas políticos e de corrupção e de hipocrisia, também.
econômicos – expertinhos como eles só E, disso tudo, saber se defender. Os que
– que a pirâmide é um “achado”, pas- estão, ou pensam que estão no meio
sam a vida inteira tomando-a como o do caminho (aí, precisa imaginar uma
seu cavalo-de-batalha. Pano pra mais de outra pirâmide, cujas bases, mantendo a
metro. Vichi! A vida inteira, dela sobre- mesma estrutura, vão-se estabelecendo
viverão. Quatro milênios não são ape- ao longo da subida). Se for na descida,
nas uma vida. Bota um monte de gera- vertiginosa, certamente será. Triângulos
ções nisso. Bem, até aí morreu Neves. E abaixo e, sabe-se lá, quantos quadrados
a tal de Pirâmide Social, propriamente durante a queda, assim, no rapidão, se
dita? Tive que percorrer algumas eta- apresentarão?
pas da evolução do homem, até chegar Isso tudo começou porque eu estava
onde cheguei. Quando atingi o cume, assistindo a um vídeo da Orquestra

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F­ ilarmônica de Viena, no youtube, sob tal de Beethoven tinha problemas audi-
a batuta do maestro Leonard Bernstein. tivos. Eu, hein? Informaçãozinha aqui,
A orquestra e o maestro, todos toma- outra ali, fui juntando os pauzinhos
dos, me pareciam, de um transe, le- e, ao final, aliás, depois do final, já no
vados por essa tal de 5ª Sinfonia, de Be- replay, eu me sentia um entendido em
ethoven. O maestro se contorcia todo, sinfonias e em Beethoven. Ainda assim,
suava, regia, fazia caretas, se escabelava não me contive, voltei a perguntar a
todo sem ficar bravo com ninguém. Por mim mesmo:
vezes, fazia até cara de satisfeito. Acho, – Quanto vale a 5ª Sinfonia de Bee-
até, que era ele quem estava provocan- thoven?
do aquele “tumulto” musical, delibera-
Parei por aí. Foi o meu melhor pre-
damente. Um monte de músicos, ainda,
sente de Páscoa. Dei-o a mim mesmo.
uma diversidade bárbara de instrumen-
tos. Pensei: Mas o que está acontecen- R. – A Quinta Sinfonia de Beethoven
do? Parece que estão loucos? Uma hora, não tem preço. Não pode ser avaliada
tudo pianinho, pianinho, daí a pouco, pela Economia de Mercado, a qual per-
nossa, um deus nos acuda. Porém per- tence ao tal Sistemão que fez água, ou-
cebi que eles estavam bem era gostando tra vez, em 2008, só por causa de umas
da coisa. hipotequinhas de merda. Teria muito
mais coisas a considerar para provar a
Como não entendo de sinfonias,
minha tese; desisto. Vou encerrar esta
fiquei ali, por quase quarenta minutos,
crônica por aqui.
tentando saber o que, realmente, pode-
ria estar acontecendo. Ainda li que o

Otávio Martins
68 anos, iniciou a escrever contos e crônicas por volta de 2006, para preencher alguns espaços
em seu jornal eletrônico nb-NOTÍCIAS DO BRASIL, posteriormente rebatizado de O SPAM.
É fotógrafo e cinegrafista (ou era). Trabalhou na extinta TV TUPI - (TV Ceará, em Fortaleza,
1969 e 1970). Produziu alguns shows em São Paulo, com Adoniran Barbosa e Grupo Talismã; Edu-
ardo Gudin, Márcia e Roberto Riberti, além de Paulinho Nogueira; Tom Zé e Vicente Barreto; João
do Vale, Zé Keti; Odair Cabeça de Poeta; Premeditando o Breque e outros.
Foi assistente de produção do Festival Universitário de MPB, 1979, assessorando o produtor,
Eduardo Gudin, do qual surgiram Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque, Celso Viáfora e outros.
No Festival do Guarujá, através da Secretaria de Cultura, coordenou e, junto com outros, definiu
a participação e contratos na área musical (Hermeto Pascoal, Gonzaguinha, Egberto Gismonti,
Sivuca, Baden Powell, Sérgio Cabral, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Paulinho Nogueira,
Eduardo Gudin, Sérgio Ricardo, Maurício Tapajós e outros - participantes).
Trabalhou como cozinheiro em Florianópolis. Arrisca algumas harmonias no violão para suas
composições, como O dono do barco, Beija-flor, Meu amor sereno, É do mar e outras.
Atualmente se dedica, somente ao jornal O Spam e escrever alguns contos e crônicas.

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Poesia

II Concurso de Poesia Autores S/A

Idealizado por Lohan Lage Pignone, o risco de encarar o ‘novo’. Nesta, con-
graduado em letras pela UNESA Nova firmamos o formato inovador e atesta-
Friburgo e autor de Poesia é isso pela mos que, definitivamente, é um certame
Editora Multifoco, o Concurso de Poe- que tem tudo para se tornar um dos
sia Autores S/A é um concurso virtual mais importantes do país nos próximos
que tem como arena o blog Autores S/A anos”. Foram 502 inscritos de todo o
(http://autoressa.blogspot.com/). Prezan- Brasil (além de Angola, Portugal, Japão
do pela transparência na divulgação e Áustria) na fase de pré-seleção, ten-
dos poemas, das notas e dos comentá- do restado somente 12 finalistas, após
rios dos jurados, o concurso teve sua três grandes peneiras. Os 12 guerreiros
primeira edição em maio de 2011 e, poetas lutaram pelo título e pela pre-
como ganhador, o poeta friburguense miação. “O formato dinâmico, uma sur-
Marcelo Asht. presa a cada etapa e o alto nível quali-
A escolha do corpo de jurados é tativo dos poemas são os ingredientes
um ponto alto neste certame, que já infalíveis desta receita”, afirma Lohan.
contou com grandes participações O concurso foi disputado por pontos
como as dos autores João Gilberto corridos semanalmente. A final ocorreu
Noll, A­ ntônio Carlos Secchin, R
­ onaldo nos dias 16, 17 e 18 de agosto, após
­Cagiano, ­Afonso Henriques Neto, uma boa dose de suspense na divulga-
Thelma ­Guedes, Nilto Maciel, André ção do nome do campeão. A vencedora
San’tanna, Micheliny Verunschk e um foi a poeta baiana Letícia Simões, 24,
belo parecer geral de Marina Colasanti, que, no começo do concurso, morava
entre outros ícones do cenário literário no Rio de Janeiro; e hoje reside em
brasileiro. São Paulo. A vice-campeã foi a poeta
Com a segunda edição finalizada, ­Cinthia Kriemler, tendo ficado apenas 4
Lohan afirma que o legado deixado pontos atrás da vencedora.
pelo certame é bastante rico. “A segun- Para ter acesso aos poemas tanto da
da edição foi um marco, um recorde primeira quanto da segunda edição,
de participantes, tanto entre os poetas além de outros textos artísticos dos
quanto entre os jurados oficiais e con- autores s/a, acessem:
vidados. Na primeira edição ­assumimos autoressa.blogspot.com.

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1ª Colocada do II Concurso de Poesia Autores S/A: Letícia Simões (Rio de
Janeiro, RJ)

Autora: Letícia Simões


Título: ulisses,

uma estrela suja caiu do céu


caiu diretamente à
minha mão
arranhou-me as costas, os vitrais, os nervos de todas as ordens
não acredito mais em você, não acredito mais em ninguém
quisera eu acreditar que um dia voltarás – hoje prefiro enterrar-me aqui.

a estrela arde os olhos e eletrifica-me o corpo

atravessando aquela porta,


morri um pouco
aliás, com você, já morri de três a quatro vezes – a insistência vã deverá querer
dizer algo.

não penses que não gostaria de partir,


de encontrar no branco o estremecimento do azul

(o amor, ulisses, é só um estremecimento do azul)

a estrela suja queima a mão


largá-la significará abrir mão do céu – mas este céu eu não quero.

este céu é sujo e feito de pássaros irrequietos.


quero os meus pássaros em paz.
talvez seja caso de renascer em azul, atropelando as fugas e reerguendo as gaivo-
tas.

fugir nunca é despreparo, mas antes: http://www.flickr.com/photos/catzrule/4793895869/

necessidade.

acordei num sobressalto mas ainda no escuro.

a estrela jazia no chão.


a porta entreaberta já avista um muro.

agora, resta apenas esse tecido:

meus dedos desmancham o ontem


esperando a sua voz.

www.revistasamizdat.com 87
2ª Colocada do II Concurso de Poesia Autores S/A: Cinthia Kriemler
(Brasília, DF)

Autora: Cinthia Kriemler


Título: Nem todo napalm será perdoado
– tributo a nudez não consentida de Kim Puhc –

existe uma carne a ser coberta


e por ela cessem os melhores coitos
os maiores gozos
por ela dobrem os sinos
ensurdecendo as turbinas
que borrifam do céu o esperma de napalm
que se cubra o nu imaculado
da fêmea pequena, sem pecado
e abram-se braços, olhos, ouvidos
ao estupro de todas as fés
que se cubra o corpo que queima
urra, verte sangue submisso
e se desnuda em dor ao fogo ácido
da Grande Meretriz do Norte
a filha insidiosa de Sam
existe uma carne impúbere
que corre rua abaixo
em medo descalço
implorando ao dono
do mesmo céu que chove morte
pelo milagre do “basta!"
mas o Grande Onisciente
não ouve, não vê
descansa
pois que sétimo é o dia
e por isso
tão somente por isso
nem toda nudez será castigada.

88 SAMIZDAT setembro de 2012


3º Colocado do II Concurso de Poesia Autores S/A: Geovani Doratiotto (Atibaia,
SP)
Autor: Geovani Doratiotto M R -M D - M R
Título: Poema-Dividido
Lágrimas ao solo.
“Esperei (tanta espera), mas agora O sol é lodo e ofusca o sorriso cinza, quan-
Nem cansaço nem dor. Estou tranquilo. do

Um dia chegarei, ponta de lança, a metade, meio desconfiada

como um russo em Berlim”. encontra o todo.

(Carlos Drummond de Andrade) Noticiário Alemão:


Calou-se
a voz de cimento.

Reconstruir o
parvo futuro. Calo

O tiro no escuro na mão do Mujiki,

que declara extinta a mudez ficta do povo. o Camponês que planta a semente

– É proibido colar cartazes no muro. acaba plantado no chão.

http://www.flickr.com/photos/catzrule/4793895869/
Mudo-me, Dentro de

Transpasso, com passos duros mim, ainda permanece

os restos que sobraram inteiro parte do muro de Berlim.

do morto. [En-
quanto ele caía
minha mãe paria] O médico disse em tom
Disse o homem concreto - armado: de bravata:
Nem homem, nem mulher,
MUDO-MURO-MUDO seu filho é Comunista.
MURO-MUDO-MURO
MUDO-MURO-MUDO

www.revistasamizdat.com 89
4º Colocado no II Concurso de Poesia Autores S/A: Henrique César Cabral (São
Paulo, SP).

com asas – roçando o azul de leve


Título: Aulas Mortas
o silêncio alto da montanha velha
cabeças são falsos girassóis
cada olho sonha um ponto em fuga o inesquecível sabor das cinzas
seu lacrimoso alojar no olho
onda de silêncio
sopra morna sobre o mundo avança um dedo
enquanto a alma se lança
em dança melindrosa o pensamento
versava sobre flecha
o mundo vespertino abre a porta o arremesso a pressa
a teu perturbado ar noturno
outro pensamento serpenteia
o insuperável sabor do voo oblíquo, por tramas paralelas
num banco duro – o coração
esquece que é matéria sem rastro
e sonha ... a aura suspensa http://www.flickr.com/photos/catzrule/4793895869/

além-ali o pio
as amarras do tempo – as correntes da inocência
envolvem teu corpo de madeira
o coração cai placenta adentro
sonha que é dardo passa pelo estreito osso do tempo
no encalço de uma ideia

90 SAMIZDAT setembro de 2012


Poesia

MALVINA
Cris Dakinis

Sem velas pra queimar


Viajando pelos “cumulus”
Cem velas ela acendera
Do passado fez recorte
Arderam por seu amor
Lançou fora as correntes
Um jovem pescador
E seus adornos de sementes
Que sequer a conheceu
Voou pela tempestade
Treze flores ressecadas
Rojões de trovoadas, raios de sina!
Sete cores desbotadas
Malvina sem um amor de verdade...
Malvina construiu um castelo
Malvina banhada de lavanda
Num nebuloso e etéreo altar
Da suíte com varanda
Guardou a Lua Negra na noite
De frente pro mar
Até o astro inteiro inchar
Fez sua única maldade:
Para dourar o seu caminho
Malvina adoçou o mar...!
http://www.flickr.com/photos/waleedalzuhair/4799873548/

Cantou o vento do Norte

Cris Dakinis
é o nome artístico de Ana Cristina Mendes Gomes, premiada em diversos concur-
sos literários no Brasil e no exterior. É autora dos livros de poesia “Por Arte de Magia”
(2008), “Aos Distraídos!” (2010). Menções Honrosas por livro infanto-juvenil (Argenti-
na, 2009) e livro de poesia (Portugal, 2010). Membro da Academia de Letras e Artes
de Arraial do Cabo/RJ, escreve para sua página: www.crisdakinis.com

www.revistasamizdat.com 91
Poesia

visitante Volmar Camargo Junior

“Vocês sempre se agarram às velhas identidades, ­ omésticas menos ainda das invisíveis
d
faces e máscaras, mesmo depois que elas não
servem mais. nem tenho qualquer traço de controle
sobre tais bichos
http://www.flickr.com/photos/opaqueuphony/3080381221/
Mas um dia, você tem que aprender a jogá-las
fora.” como aqueles caras da televisão ou da
Índia
Death
em Sandman #20
que se envolvem corajosamente com
Terra dos sonhos: Fachada
crocodilos, cobras e leões
de Neil Gaiman
[vi mais de um deles corajosamente
morrer desse jeito]

sinto a presença de um animal feroz à


minha volta sinto sua a aproximação
não sou especialista em comporta- fico em silêncio
mento de feras selvagens nem das respiro e me abstraio

92 SAMIZDAT setembro de 2012


evito encará-lo nos últimos dias de seu cativeiro eu
[ouvi isso de um desses especialistas, encolhi meu espaço
um dos que não morreu] e as paredes e as grades
e fico imóvel para que o bicho não se devem tê-lo machucado tanto...
sinta
ameaçado ele rosna

conheço-o bem “merda! ele me viu”


me fareja porque por seu turno ele me
conhece bem
rosna alto dessa vez
não contudo quis mostrar-lhe a
­intimidade permaneço imóvel
sabe-a esmago a luz com as pálpebras
ter sido a sua jaula não foi um prazer tento parar de respirar
tive de ser eu meus ouvidos zunem
de forjar meu corpo para ser todo minha garganta seca
barras de aço
chão de concreto e
telhado de qualquer coisa transparente como veio
mas intransponível foi
submeter a uma vigilância dura a mim
para registrar as reações dele olho em redor mas eu o conheço
fera pretensamente cativa submeto uma minuciosa inspeção do
que antes foi a cela
mesmo sem olhá-lo sei que está [agora é um quarto de jogar coisas de
­confuso utilidade incerta, onde costumo ir para
criar poesia quieto]
já esteve cá dentro
agora está fora
ele não está lá
está livre
desfruta da liberdade de
­existir e materializar-se quando quer confesso que tenho algo de tristeza por
isso
não mais dentro de mim
alívio
leveza, sim
lá pelas tantas ele fareja
mas algum sentimento ruim por sua
toca as trancas, os cadeados com a pata ausência

não é possível que queira voltar para o lobo foi-se embora outra vez
onde o mantive preso
faço ideia de que não apenas eu fui
roído no processo
ele também se feriu

www.revistasamizdat.com 93
Poesia

procedimentos técnico-administrativos em caso de

desordem na gaveta dos


papéis involuntariamente esquecidos
Volmar Camargo Junior

a vida é organizada em livros o lugar marcado na história esta-


rá no mesmo lugar

http://www.flickr.com/photos/psyberartist/6607876803/
do início ao fim a exceção é a saudade
tudo dividido em volumes
tudo impresso em sinais gráficos a saudade é uma pilha de folhas
reconhecíveis soltas
tudo atravessado num dos cantos
da página por um número vez ou outra bate sobre quem as
de um ao [isso varia de caso a juntou a vontade de revê-las
caso] como bate sobre elas o ar movido
e se vai-se à frente por uma janela esquecida aberta
ou se volta-se ou por uma porta que
de propósito se fecha

94 SAMIZDAT setembro de 2012


a coisa passa
o amontoado se espalha pela casa como o ar que as moveu para
toda e o tempo que se tem para reor-
as folhas misturam-se aos outros denar o ordenável
livros é o tempo que o tempo dá
e vai-se encontrar saudade no [e isso também é variável, que
meio do livro das contas a pagar inferno!]
do de certificados de cursos de
sessenta horas
qual é o procedimento?
do livro de visitas prometidas e
nunca feitas
daquele dos primos distantes que na melhor hipótese
só se viam no natal reuni-las de qualquer jeito
e – como não? – do livro dos enfiá-las na mesma – ou noutra –
amores malresolvidos gaveta
e evitar com força pôr os olhos
então – e de geral é o que aconte- na que ficou por cima
ce –
é-se tomado por essa má boa coi- [eis um processo fadado ao fra-
sa lusófona amarga e doce casso:
vai-se ver não se sabe de nenhum caso em
sentir que nele tenha tido êxito]
retraçar com os olhos – úmidos –
com as pontas dos dedos – trê- outra possibilidade seria costurá-
mulos – a grafia de cada letra las
ressignificar cada palavra entretanto ninguém ousa fazê-lo
reformular o sentido de cada sen- porque só estando quem as sente
tença inerte
mas o pior é que se pode uni-las definitiva-
mente
o realmente doloroso nas páginas
amarelecidas da saudade
é o vazio entre os ditos e os não- porém, nesse caso, o indivíduo já
ditos não sente mais nada

Volmar Camargo Junior


V., nativo de Cruz Alta, ativo em Rio Grande, é poeta, vendedor de livros. professor não prati-
cante, arquivista em formação, pai do Dimitri. Escreveu os blogs Um resto de café frio e O balcão
das artes impuras. Escreve o Verbo.

www.revistasamizdat.com 95
Poesia

Caem corpos
em Pinheirinho

http://www.flickr.com/photos/pedromoriyama/5767006855/
Caio Dezorzi

Caem corpos em Pinheirinho!


Viva Naji Nahas! Ana dos Santos
Caem casas em Pinheirinho! Tenta dormir apesar da pressão
Viva Naji Nahas! Ela é só espanto
Quando às seis horas ouve uma explo-
Cabo Oliveira são

Veste o uniforme antes do sol raiar Acode as crianças

Não é terça-feira
E nem é dia de alguém trabalhar Moradores despejados

Mas recebeu ordens Que destino eles terão?


Lá vem a tropa de choque

Leva balas de borracha Pra que tanta munição?

Que destino elas terão?


Leva bombas, gás pimenta Jennifer Souza

Pra que tanta munição? Sonha em poder ser uma bailarina

96 SAMIZDAT setembro de 2012


Mas ela não ousa Sargento Santos
Pela manhã bailará na chacina Veste o uniforme antes do sol raiar
Sem saber por quê E nem é dia de alguém trabalhar
Mas recebeu ordens
É arrancada de seus pais
Que destino eles terão? Maria Souza
Ela só tem sete anos Tenta dormir apesar da pressão
Pra que tanta munição? Quando às seis horas ouve uma explo-
são

Governador Acode as crianças

Se olha no espelho sem se assustar


Já se acostumou Kelly Oliveira

Pensa que o povo sempre aceitará Sonha em poder ser uma bailarina

E manda invadir Pela manhã bailará na chacina


Sem saber por quê

Levem balas de borracha


Blindados e um canhão! E a juíza

Levem bombas, gás pimenta Se olha no espelho sem se assustar

Levem toda a munição! Pensa que o povo sempre aceitará


E manda invadir

Caem corpos em Pinheirinho!


Viva Naji Nahas! Caem corpos em Pinheirinho!

Caem casas em Pinheirinho! Viva Naji Nahas!

Viva Naji Nahas! Caem casas em Pinheirinho!


Viva Naji Nahas!

Caio Dezorzi
Caio Dezorzi é um ator, professor e escritor paulistano, formado em educação pela
Unesp, idealizador do jogo autoral “Filacantos” (filacantos.blogspot.com) e mantém um blog
autoral chamado “Fundo da Gaveta” (caiodezorzi.blogspot.com).

www.revistasamizdat.com 97
Poesia

Sobre o trabalho do tempo


André Telucazu Kondo

O tempo constrói o templo – do homem


Cada segundo de prego
Cada minuto de tábua
Cada parede de hora
Cada telhado ao tempo

Vem a chuva dos anos

http://www.flickr.com/photos/tonivc/2283676770/
A tempestade das décadas:
Os segundos enferrujam
Os minutos racham
As horas trincam
O tempo desmorona

Do templo, só o tempo resta


E um quê de sagrado, nas ruínas do homem.

André Kondo
é autor dos livros “Além do Horizonte”, “Amor sem Fronteiras” (Prêmio Paulo
Mendes Campos – UBE-RJ), “Contos do Sol Nascente” (Prêmio Bunkyo de Literatura
2011, M.H. Prêmio Esfera das Letras – Portugal e ProAC 2010). A lançar: “O Pequeno
Samurai” (D.M.H. Prêmio João-de-Barro 2009) e “Palavras de Areia” (Prêmio Alejan-
dro Cabassa – UBE-RJ). Como poeta, aceita também seu nome nipônico, gravado
de forma equivocada no momento de seu registro: “Telucazu”, pois a poesia admite
todos os equívocos do mundo. Com mais de 50 prêmios literários, é pós-graduado
pela University of Sydney. Viajou por 60 países. Continua viajando, pelo universo das
letras. www.andrekondo.blogspot.com

98 SAMIZDAT setembro de 2012


Poesia

Noturno para Franz


Danilo Augusto de Athayde Fraga

Quando o espírito farfalha Em sua modéstia convicta


E a vontade estremece abandonada ao Que talvez a pena não valha – e mesmo
vento O poema não valha – e certamente
E a derradeira porta se entreabre – e a A Rendição se atrasará. Mas, mesmo
sabemos assim
(Essa esperança não é para nós) E apesar de tudo
E se tem o coração, mas já não o sente Existe tanta vida e por todos os lados
Entre dois espasmos Acontecendo incessante e explode em
E se tem olhos que estão como nublados um segundo
Ou completamente anoitecidos E sequer o pensamento e sequer a mais

http://www.flickr.com/photos/pagedooley/3769058618/
E a mão desiste, e a palavra desiste na longa música poderá
iminência E mesmo que a gente esteja doente ou
E mesmo o pensamento se amedronta deseje a morte de forma sincera

E mesmo o leve gesto queda ao lado: E mesmo depois de tudo o que acontece
vencido Somos num instante rendidos por coisas
E a música descansa no silêncio – talvez tão pequenas
para sempre Por este mínimo incessante que existe
Ele nos lembra em sua doce paciência em tudo
Demasiadamente

Danilo Augusto de Athayde Fraga,


jovem poeta e escritor da cidade de
Salvador, é o autor do livro “Sonhos e outros Sonos” e, do ainda não publicado, “Os
versos Quânticos”. Premiado em diversos concursos nacionais e internacionais, man-
tém o blog “www.malbelo.blogspot.com”.

www.revistasamizdat.com 99
Poesia

Joanna Fernando Domith

Se ela me beijasse hoje Muito se foi dito, pouco foi feito


Sentiria o gosto forte E vagando sozinha a alma se sabota
De uísque barato Colocando-se de joelhos diante de si mesma
O gosto amargo, azedo Esperando o golpe derradeiro
Da desesperança Num vale completamente preenchido
Onde uma vez houve De ecos e lamentos
Alegria e despreocupação
Ingênua esperança Um dia ela foi minha
Talento, direção E se hoje os ventos se contorcem em agonia
Ela não é mais
Se ela me olhasse hoje Um dia ela foi minha
Estranharia aquela sombra E se hoje alguém clama pelo nome de Deus
Para sempre estacionada Ela não é mais
Na beirada de meus olhos Quem se contorce sou eu
Onde uma vez já houve luz Quem clama sou eu
Onde uma vez já houve amor Quem não possui mais nada
Por algo singelo sutilmente Sou eu
Entrelaçado nas notas baixas de sua voz E ainda assim as amarras

http://www.flickr.com/photos/djt23/3207556438/
Fazem minha alma sangrar
Se ela hoje falasse comigo A morte espreita
Choraria ao ouvir os fracos lamentos A morte sou eu
De onde uma vez saíram belas palavras Sangue pelos poros
De onde uma vez extraiu-se consolo De alguém extremamente
De onde uma vez a confiança transbordou Perturbado
Maravilhando e assustando Órgãos se rompendo
O pequeno coração encerrado em seu peito A vida em colapso
A loucura vagarosamente
Tudo um dia pareceu bonito Forçando a porta
E hoje tudo parece borrado
Além de minhas lágrimas E nem hoje ou amanhã
As pernas bambeiam e a mente hesita Ela será minha

Fernando Domith
Tem 22 anos e estuda Psicologia na Universidade Federal de São João Del-rei. Um dos
vencedores do 2º Prêmio Literário da FUMEC, categoria conto. Espera também causar uma
boa impressão na categoria poesia e almeja escrever profissionalmente algum dia.

100 SAMIZDAT setembro de 2012


Poesia

Mendigo de Tal Ana Peres Batista

Pobre dele, sem nome, que fala de amor e nunca se permitiu vivê-lo.
Que por um pouco experimentou e fechou-se no medo.

http://www.flickr.com/photos/erikathorsen/3001817579/
Não tem batismo e nem tenta o mistério.
Faz do sagrado dia um deserto.

Pobre de mim, que o amo.


E nem posso entendê-lo.

O sobrenome se repete,
e eu o que posso, com o que fizeste?

Canta alto o vagabundo sujo e sem nome,


vai andando errante, tempo a tempo, o amor que te espere atento.

www.revistasamizdat.com 101
Poesia

Rodrigo Pereira dos Santos

Dançando e encontrando –

loucuras sãs
102 SAMIZDAT setembro de 2012
Querendo fazer das dores e suas marcas algo Não é, Édipo? Alice?
concreto Vou dançando, vou de olhos fechados
Buscando uma janela que seja, uma porta, Me chamem de insano, me chamem do que
uma fresta melhor o ego de vocês ficar saturado de
Preciso de ar, preciso olhar lá fora orgulho por terem encontrado uma defini-
Preciso ver que nada acabou ção perfeita pra meu estado crônico-deliroso
Que chances podem ser colhidas Não é absinto, não é haxixe, viu, ultrarro-
como flores à beira do caminho mânticos?

Meio que dançando, num ritmo desconheci- Não é tuberculose, não é a morte
do mas envolvente É a busca, é o encontro
Parece que um som me guia, me transporta Vejam, vejam só!
Um ar fresco me acalma o temor Não é tarde! Não é tarde!
Não é tarde, não, não é! Estou solto. Preso talvez a mim mesmo
Pareço falar com tanta gente Mas solto para encontrar a chave
Pareço me comunicar descontroladamente E abrir-me, e dizer-me livre
Alguém me ouça! Solto, mas em busca de liberdade
Não é tarde, não, não é! Preso, mas ciente do ciclo da vida
Tenho noção da fantasia Como teclando um piano, vou comunicando
Mas o que seria de mim sem o sonho? infinitamente

Sem o devaneio? Vou dançando, vou falando

Sem a esperança? Vou silenciando, vou ouvindo

Chega de só razão, razão e razão Vou decifrando, vou me encontrando

Chega de ser um “animal-máquina”. Não é Elementos, cores, símbolos, realidades vão


mesmo, Descartes? me guiando

Chega de ser José. E agora? E agora? Não é Não é tarde! Não, não é!
mesmo, Drummond? É o que tenho a dizer

http://www.flickr.com/photos/hoill/6070208004/
Pra que tanta métrica, não é, Camões? Aos crédulos e incrédulos
Pra que tanta preocupação com a forma, Aos tripulantes e aos que acenam
meus amigos parnasianos? Aos simpatizantes e aos críticos
Se os símbolos podem me ajudar a chegar Aos livres, aos libertos
ao desconhecido
Ao mundo. A mim. A você. A nós
E por sinal esse desconhecido sou eu mesmo
Não é tarde! Não, não é!
Os labirintos estão aí
Senhas, signos, códigos

Rodrigo Pereira dos Santos


29 anos, residente em Lambari-MG, professor de Língua Portuguesa e psicanalista, com
crônicas e poesias publicadas.

www.revistasamizdat.com 103
Também nesta edição, textos de

Adriane Dias Bueno Isabela Penov


Aline Nardi Isabella Gonçalvez
Ana Peres Batista João Paulo Hergesel
André Kondo João Vereza
Caio Dezorzi Joaquim Bispo
Cinthia Kriemler Leonardo Araújo
Cris Dakinis Letícia Simões
Cruz e Souza Luís Felipe Sprotte
Edweine Loureiro Mariza Lacerda
Fábio Wanderson de Sousa Otávio Martins
Fernando Domith Rodrigo Pereira dos Santos
Geovani Doratiotto Silvana Michele Ramos
Henrique César Cabral Volmar Camargo Junior
Henry Alfred Bugalho Zulmar Lopes

104 SAMIZDAT setembro de 2012

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