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CASA DE PARTO: reconstruindo a forma de nascer

CASA DE PARTO: reconstruindo a forma de nascer

ARTIGOS CIENTÍFICOS
CHILDBIRTH HOUSE: reconstructing the way of birth

Júlia de Souza Matos


Arquiteta

RESUMO
A assistência ao parto está em crise no Brasil. A redução da mortalidade materna e neonatal ainda é um desafio para os
serviços de saúde e a sociedade como um todo. As altas taxas encontradas se configuram como uma violação dos Direitos
Humanos de Mulheres e Crianças e um problema de gênero e saúde pública. A assistência médica prestada no interior
dos hospitais, passa a produzir iatrogenias para a mulher em trabalho de parto, que tem experienciado um momento de
violência e desrespeito à sua fisiologia. Através do entendimento dessa problemática, o presente trabalho sugere a Casa
de Parto como uma ferramenta arquitetônica capaz de corroborar para a reconstrução de valores sociais e mudança de
paradigma acerca do ato de parir e nascer como um ato fisiológico, desvinculado do ambiente hospitalar geralmente
associado à insegurança e sofrimento. Utilizou-se como metodologia o estudo de pesquisas observacionais que levam em
consideração a perspectiva das usuárias nesses estabelecimentos de saúde bem como visitas a duas unidades em funcio-
namento. É proposto um projeto arquitetônico de Centro de Parto Normal que contempla as principais necessidades de
humanização do ambiente de nascer, sob o viés da percepção do ambiente pelos usuários e a influência deste no processo
do parto.
Palavras-Chave: arquitetura de ambientes de saúde; centro de parto normal; parto humanizado

ABSTRACT
Delivery care is in crisis in Brazil. The reduction of maternal and neonatal mortality is still a challenge for health
services and society as a whole. The high rates are seen as a violation of women and children’s human rights and a
problem of gender and public health. The medical assistance provided within hospitals produces iatrogenic effects for
women in labor, who have been experiencing a moment of violence and disrespect to their physiology. Through the
understanding of this issue, this paper suggests the Birth Center as an architectural tool to improve the reconstruction
of social values and paradigm shift about the act of giving birth as a physiological act, detached from the hospital usually
associated with insecurity and suffering. Observational studies that consider user’s perspective and site visits to two
units in operation were used as methodology. A Birth Center architectural design is proposed, which considers the main
needs of humanization in birth care place and the user’s perspective in the parturition process.
Keywords: health care architecture, birth center, humanizing birth.

1 INTRODUÇÃO de hospitais e 88% deles realizados por médicos, com uso


indiscriminado da tecnologia e intervenções de rotina (DI-
Em 2015, o Brasil não cumpriu a sua meta de reduzir a NIZ, 2009). Num primeiro momento, pode-se concluir que
mortalidade materna e neonatal estipulada pela Organiza- o ambiente hospitalar e o acompanhamento médico não es-
ção das Nações Unidas (ONU) (DREZETT, 2013). As al- tão necessariamente atrelados a uma maior segurança.
tas taxas vigentes representam uma violação dos Direitos
Humanos de Mulheres e Crianças e um problema de saú- Uma em cada quatro mulheres revela ter sofrido violên-
de pública (BRASIL, 2004; OMS, 2014). Isso se torna um cia institucional no momento do parto (TESSER, 2015).
paradoxo num país onde 98% dos partos são feitos dentro A chamada violência obstétrica é a apropriação do corpo

ISBN: 978-85-93004-00-1 | P. 59 - 67, Congresso Brasileiro para o Desenvolvimento do Edifício Hospitalar, 7, 2016 59
e dos processos reprodutivos das mulheres por profissio- 2 ASPECTOS HISTÓRICOS
nais da saúde. O Projeto de Lei 7633/14 (BRASIL, 2014)
reconhece a violência obstétrica como o “tratamento de- O parto deixa de ser um evento estritamente feminino
sumanizado, abuso de medicalização e patologização de quando passa a ser auxiliado por médicos no lugar das
processos naturais, que causem a perda de autonomia e da parteiras tradicionais. Essa mudança, que remete ao iní-
capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus cio do século XVII, trouxe a primeira intervenção no
corpos e sua sexualidade” (BRASIL, 2014 [s.p.]). Para ambiente de nascer. A posição adotada pela mulher passa
evitar isso, muitas mulheres procuram o parto cirúrgico. a ser a horizontal, que, apesar de antifisiológica, propor-
Assim, parto violento e a epidemia de cesarianas muitas ciona melhor visualização e comodidade ao médico. Essa
vezes são sinônimos (DINIZ, 2005). simples alteração de mobiliário – do banco para a cama
obstétrica – representa a perda do protagonismo do parto
O Brasil apresenta, hoje, a maior taxa mundial de cirur- pela mulher, que adota então uma posição passiva durante
gias cesarianas (LEÃO, 2013). Na rede privada, chega todo o processo (COELHO, 2003; LIMA, 1996).
a 88% dos partos realizados (ANS, 2015). Essa taxa re-
presenta, muitas vezes, apenas uma comodidade médica, Com a chegada da família real ao Brasil, surgem as pri-
conforme exposto pelo dossiê “Parirás com Dor”, que meiras escolas de medicina e cirurgia no Rio de Janeiro
denuncia indicações de cirurgias cesarianas por profissio- e na Bahia, que tinham como principal problema a falta
de prática dos estudantes (BRENES, 1991). O processo
nais médicos, sem respaldo na literatura científica (PAR-
de hospitalização do parto foi fundamental para a apro-
TO DO PRINCÍPIO, 2012).
priação do saber nesta área e para o desenvolvimento do
ensino médico (VIEIRA, 2002).
Como uma reação das políticas governamentais a estes
dados, são criados, em 1999, os Centros de Parto Nor- [...] a partir da segunda metade do século XIX, a
mal (CPN) – ou Casas de Parto, como eram conhecidas medicina se articula a outras instâncias do social na
no Brasil – como uma das primeiras ações governamen- produção de uma nova imagem sobre a mulher, da
tais para se humanizar a assistência obstétrica (BITEN- relação desta com os filhos e sobre seu papel em so-
ciedade, esposa-mãe-dona-de-casa. (BRENES, 1991,
COURT; BARROSO-KRAUSE, 2004; BRASIL, 1999).
p.137)

O CPN é um estabelecimento assistencial de saúde des-


Ainda nesse contexto, há uma constante estereotipação
tinado ao acompanhamento do parto e nascimento de
de eventos fisiológicos femininos como patológicos, a
evolução fisiológica (BRASIL, 1999). Esse tipo de insta-
exemplo dos períodos menstrual e puerperal como pe-
lação contribui para que o parto seja reconhecido como ríodos especialmente propensos a distúrbios neuroló-
um evento fisiológico e psicossocial para a mulher e sua gicos (BRENES, 1991). A literatura médica produzida
família. Apesar de ainda enfrentarem embates culturais, nesse período promoveu a ideia de que o hospital era
políticos e econômicos para se consolidar, os CPN são o lugar mais seguro para a mulher, agora chamada de
amplamente recomendados por políticas governamentais paciente.
(ABENFO, 2011). Essas estruturas indicam que o am-
biente hospitalar não é necessário na assistência ao parto Com a promessa de controle e cadastramento dos nasci-
de baixo risco (RIESCO, 2009). mentos ocorridos no interior das unidades de internação,
os médicos conquistam o apoio do governo, que estabele-
Os incipientes estudos científicos que levam em con- ce uma série de normas burocráticas para os nascimentos
sideração a visão feminina durante a gravidez, parto e domiciliares (BRENES, 1991). Com o desenvolvimento
puerpério e a influência dos espaços construídos du- de técnicas cirúrgicas, anestésicos e assepsia, o hospital
rante este processo, são as principais motivações deste torna-se o local padrão para a mulher ter os seus bebês.
artigo, cujo objetivo é sugerir a importância do Centro Ao longo do século XX, consolida-se o processo de medi-
de Parto Normal como arquitetura eficaz na humaniza- calização, que trouxe grandes transformações no modelo
ção do nascimento e dos espaços de saúde obstétricos de assistência ao parto e chega ao atual momento de con-
e perinatais. traprodutividade.

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A contraprodutividade é descrita como uma ferra- Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 1999). No mesmo ano,

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menta que passa a produzir efeitos paradoxais, ope- foi aberta no Ministério da Saúde uma linha de finan-
rando contra o objetivo implícito em suas funções
como, por exemplo, instituições de saúde que produ-
ciamento para construção e implantação de Centros de
zem doenças, medicina que produz iatrogenias. No Parto Normal, que recebeu diversos projetos. Destes,
caso em questão, a cesariana que produz morbidade foram aprovados 19, referentes a 33 CPN, dos quais ape-
e mortalidade materna e neonatal. [...] em relação ao nas uma minoria foi concluída e está em funcionamento
parto, a medicalização influenciou a capacidade da
mulher de enfrentamento autônomo da experiência (ABENFO, 2011).
de parir, gerando dependência excessiva, heterono-
mia e um consumo abusivo e contraprodutivo de Além do Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vi-
cesarianas. (LEÃO, 2013, p. 2396) gilância Sanitária (ANVISA), após ampla consulta públi-
ca, reconheceu o CPN como instituição de saúde, através
A experiência individualizada do parto e nascimento da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 36/2008, que
domiciliar, onde a mulher se sentia segura e confortá-
regulamenta o “Serviço de Atenção Obstétrica e Neona-
vel, acompanhada de sua família, torna-se uma expe-
tal” (BRASIL, 2008). A implementação de Casas de Parto,
riência similar a uma linha de montagem (sala de pré-
contudo, “envolve disputas corporativas e de recursos, e
-parto, sala de parto e sala de pós-parto) dentro de uma
é um campo de intenso conflito, pois os médicos sentem
indústria (hospital) (FRAGA; MATOS, 1996). Sozi-
seu espaço expropriado, reagindo de várias formas” (DI-
nha, em um lugar estéril, mecânico, metálico, a mulher
NIZ, 2005, p.634).
tem vivido um momento de violência e desrespeito à
sua fisiologia.
Nas Casas de Parto se observa o alinhamento de duas pre-
3 UMA NOVA PERSPECTIVA missas necessárias para a humanização do nascimento:
práticas profissionais inclusivas e o ambiente construído
Muitos esforços têm sido feitos para disfarçar a frieza e com aparência doméstica. A equipe que atua nesses es-
a impessoalidade dos ambientes hospitalares. A tentati- paços é multidisciplinar, majoritariamente composta de
va de humanizar espaços hospitalares já construídos nos enfermeiras obstétricas e obstetrizes. Todas as demandas
moldes tradicionais parece não surtir efeito, pois a insti- do ciclo gravídico puerperal de baixo risco são contem-
tuição ainda é atrelada a patologias e sofrimento no in- pladas, com práticas fundamentadas em evidências cien-
consciente coletivo. tíficas, sendo os profissionais atuantes também no âmbito
social e emocional da mulher.
No Brasil, os projetos de arquitetura de maternidades
que levam em consideração a humanização do parto ain- 4 OS IMPASSES NA IMPLEMENTAÇÃO
da são incipientes. Além disso, as práticas profissionais
de conduta humanizada – “respeito ao parto como expe-
A Portaria MS 985/1999 (BRASIL, 1999) admite três
riência pessoal, cultural, sexual e familiar, fundamenta-
da no protagonismo e autonomia da mulher” (BRASIL, modalidades de CPN: intra-hospitalar, peri-hospitalar
2015 [s.p.]) – nem sempre estão presentes nessas edifi- e comunitário. Este último, um serviço de administra-
cações. ção própria, situado a distâncias variáveis de um hos-
pital de retaguarda. Exige ambulância de plantão, bem
A implantação de unidades obstétricas não hospitalares, como autonomia técnica da equipe no atendimento de
como as Casas de Parto, surge como uma possibilidade de emergências obstétricas e neonatais. Todo o processo de
resgatar a percepção do parto e nascimento como evento atendimento – captação, triagem, admissão, prestação de
fisiológico, dissociado da imagem de doença normalmen- cuidados, remoção e alta – são de responsabilidade de en-
te vinculada ao hospital. fermeiras obstétricas. O termo CPN se refere tanto a essas
unidades autônomas, também chamadas Casas de Parto,
Em 1999, foi publicada a Portaria 985/MS, que insti- quanto àquelas que configuram um dos serviços hospita-
tuiu os Centros de Parto Normal no âmbito do Sistema lares (peri ou intra) (ABENFO, 2011).

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O Centro de Parto Normal deverá estar inserido no Área
sistema de saúde local, atuando de maneira comple- AMBIENTES RELACIONADOS DIRETAMENTE
mínima
mentar às unidades de saúde existentes e organizado AO PARTO
(m²)
no sentido de promover a ampliação do acesso, do • Sala de acolhimento da parturiente e seu
vínculo e do atendimento, humanizando a atenção acompanhante;
ao parto e ao puerpério. (BRASIL, 1999 [s.p.]) • Sala de exames e admissão de parturientes;
• Quarto de pré-parto, parto e pós-parto (PPP),
com previsão de instalação de barra fixa e/ou 14,5
O número de CPN extra-hospitalares no Brasil, 17 anos escada de Ling);
após sua regulamentação, é muito escasso. Estas institui- • Banheiro para parturiente 4,8
ções são responsáveis por uma parcela muito pequena dos • Área para deambulação (interna ou externa); 20,0
partos realizados pelo SUS e atuam numa área de abran- • Posto de enfermagem; 2,5
gência reduzida, o que permite afirmar que sua função • Sala de serviço; 5,7
• Área para higienização das mãos.
está sendo cumprida apenas de maneira pontual e não
sistêmica, como deveria ocorrer. AMBIENTES DE APOIO:
• Sala de utilidades; 6,0
Como parte do SUS, o CPN deve fornecer aos órgãos per- • Sanitário para funcionários (masculino e
feminino);
tinentes informações estatísticas quanto à mortalidade • Rouparia;
materna e neonatal e funcionar em parceria com um hos- • Sala de estar e/ou reunião para
pital de referência, a fim de garantir o atendimento ade- acompanhantes, visitantes e familiares;
quado à parturiente em casos excepcionais. Essa última • Depósito de material de limpeza;
• Depósito de equipamentos e materiais; 3,5
condição induz a ocorrência de CPN peri e intra-hospita- • Sala administrativa;
lares. Além disso, a portaria mais recente, que redefine as • Copa;
diretrizes para implantação e habilitação de CPN no âm- • Sanitário para acompanhantes, visitantes e
bito do SUS (BRASIL, 2015), não menciona mais o CPN familiares (masculino e feminino).
Comunitário, confirmando a dificuldade administrativa e
Quadro 1: Programa mínimo de um Centro de Parto Normal.
logística em sua implementação.
Fonte: Autora, baseado na Portaria 11/2015 (BRASIL, 2015)

O presente trabalho pretende, portanto, apontar as lacu-


Estas demandas elucidam as necessidades específicas de
nas dessa relação físico-funcional dos CPN peri e intra-
um CPN, sendo de significativa relevância na tomada de
-hospitalares pois, em vez do programa de incentivo go- decisões projetuais alinhadas com a humanização do nas-
vernamental proposto prever a implantação de mais CPN cimento.
comunitários (Casas de Parto) desmedicalizados, o pro-
grama usará recursos financeiros para incrementar am- 6 VISITAS
bientes hospitalares antes mesmo que haja um trabalho
de conscientização e treinamento dos profissionais não Para o projeto de CPN proposto nesse trabalho, duas
referências pioneiras nas cidades do Rio de Janeiro e
alinhados com a humanização do parto e do nascimento.
Salvador foram estudadas. O Centro de Parto Normal
Dessa forma, o investimento poderia resultar no reforço
Marieta de Souza Pereira, situado na cidade de Salvador,
da prática que já ocorre dentro dos hospitais.
foi o primeiro a ser implementado na região Nordeste
do país. Atrelado ao projeto Rede Cegonha do SUS, o
5 O PROGRAMA CPN faz parte também da obra social Mansão do Cami-
nho, complexo educacional e assistencial cujo propósito
A RDC 36/2008 (BRASIL, 2008) e, posteriormente, a Por- é “cuidar da criança desde o nascimento até a conclusão
taria 11/2015 (BASIL, 2015), que tratam dos serviços de de sua escolaridade básica” (MANSÃO DO CAMINHO,
atenção obstétrica e neonatal, estabelecem importantes 2015 [s.p.]), conforme idealizado por seu criador, Dival-
alterações nos itens da RDC 50/2002 (BRASIL, 2002), do Franco. O projeto integra seus espaços de maneira
que passam a vigorar, para unidades de Centro de Parto acolhedora com o privilegiado entorno verde e silencio-
Normal, conforme explicitado no quadro 1. so (ver figura 1).

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É estimulada a participação do acompanhante, visando o

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fortalecimento das relações pessoais e familiares. Este, re-
cebe o preparo necessário para o acompanhamento do tra-
balho de parto e parto, além de informações sobre o desen-
volvimento do bebê. A Casa de Parto ganhou fama e passou
a ser conhecida principalmente pela divulgação “boca a
boca”. Nos últimos anos, uma procura cada vez maior de
gestantes, de diversas localidades e classes sociais, demons-
tra a crescente demanda por esse tipo de serviço na cidade
do Rio de Janeiro (DAVID CAPISTRANO FILHO, 2015).

7 PROPOSTA ARQUITETÔNICA

Estudos recentes mostram que a violência de gênero


Figura 1: Quarto PPP da Mansão do Caminho, Salvador, BA.
abrange também a violência obstétrica sofrida pelas mu-
Fonte: Autora.
lheres no momento do parto, e esta violência atinge em
maior proporção aquelas que são de origem pobre e negra
A Casa de Parto David Capistrano Filho, no Rio de Janei- (DINIZ, 2009; MARTINS, 2006). Diante do exposto e da
ro, é a primeira e única da cidade. Inaugurada no dia 8 de necessidade de mais estruturas físicas no Rio de Janeiro
março de 2004 pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio que permitam tratar o parto e a parturiente com qualidade,
de Janeiro, foi implementada no bairro de Realengo, de- respeitando as políticas do Ministério da Saúde e da Orga-
vido ao alto índice de natalidade da região. Seu principal nização Mundial de Saúde, foi executada uma proposta de
diferencial é a estrutura física simples e acolhedora, que CPN para atendimento voltado ao público do SUS.
em muito lembra um espaço domiciliar (ver figura 2). O
acompanhamento à gestante é diferenciado desde a recep- O local de implementação escolhido foi o Complexo da
ção. Ao longo do pré-natal, a mulher participa de oficinas, Maré. Assim como o Complexo do Alemão e outras re-
onde recebe informações sobre a sua parte corporal, modi- giões próximas de baixo índice de desenvolvimento hu-
ficações do organismo, transformações sociais, amamenta- mano (IDH), o projeto pretende beneficiar também mu-
ção, trabalho de parto, parto e cuidados com o bebê. Todo nicípios da Baixada Fluminense e São Gonçalo, devido à
o processo conta com dramatizações, vídeos, gincanas e di- proximidade a vias expressas de grande fluxo (Avenida
nâmicas diversas (DAVID CAPISTRANO FILHO, 2015). Brasil e Linha Vermelha).

O terreno escolhido encontra-se no limite de uma linha


de ruptura de densidade: onde a área verde institucional
(pertencente à Fundação Oswaldo Cruz) encontra a Fave-
la do João. O projeto cria uma transição entre essas duas
escalas e sensações (agorafobia x pessoalidade). O concei-
to principal em todo o projeto é estabelecer um filtro: de
público, privacidade, visibilidade, intimidade.

O partido arquitetônico adotado foi o mais simples possí-


vel, levando em consideração a viabilidade econômica da
construção e a mínima intervenção na vegetação pré-exis-
tente. A edificação totalmente térrea, pouco imponente,
cria uma maior intimidade com o pedestre e a rua. A au-
sência da necessidade de uma circulação vertical reduz o
custo e a manutenção, conectando com mais eficiência os
Figura 2: Quarto PPP da Casa de Parto David Capistrano Fi- espaços em termos de acessibilidade. A volumetria da fa-
lho, Rio de Janeiro, RJ. chada é destacada apenas pelos blocos abertos ao público
Fonte: Autora. (sala multiuso e serviço social).

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A sala multiuso pode servir para oficinas e workshops re- A instituição de referência é o Hospital Geral de Bonsu-
lativos ao tema, tanto para o público em geral interessa- cesso, situado a uma distância de 3,2 km, com uma média
do, quanto para capacitação e atualização de profissionais de percurso de automóvel durando 8 minutos. Procurou-
de saúde. A possibilidade de subdivisão do espaço – feita -se minimizar a segregação dos acessos dos diferentes
através de painéis móveis – faz com que ele se adapte a tipos de usuários. Todos devem circular pelos mesmos
diferentes demandas tanto de uso interno quanto exter- locais, reforçando a interação e a proximidade entre pro-
no. A sala de serviço social é um equipamento que pode
fissional e cliente. A recepção procura se assemelhar à sala
atender também à comunidade, com serviços de nutrição,
de uma residência: sua configuração permite a troca de
psicologia e assistência social. Desta forma, são criados
novos fluxos, conectando o CPN ao seu entorno e à po- experiências entre as pessoas e o convívio social.
pulação, tornando o lugar mais seguro e aumentando a
aceitação da opinião pública a uma nova edificação. Os quartos PPP se desenvolvem nos fundos do terreno,
para garantir a privacidade e o silêncio, fundamentais du-
O acesso de veículos aproveita a barreira do muro já exis- rante o trabalho de parto. Unindo os dois blocos, foi cria-
tente com a edificação vizinha. Esse acesso cria uma cone- da uma área de deambulação e convivência. Os espaços
xão direta da rua com os quartos. São otimizadas a chega- projetados procuram atender às necessidades dos diferen-
da de parturientes em carro particular e a eventual saída tes tipos de usuários (gestantes, parturientes, visitantes,
em caso de remoção para o hospital de referência – feita, familiares, profissionais de saúde e prestadores de serviço
se necessário, por ambulância disponível 24 horas. de apoio).

Legenda: Amarelo: quartos PPP; rosa: deambulação/convivência; azul: apoio enfermagem; laranja: acolhimento/voltado ao público; verde: apoio
serviços; vermelho: consulta/avaliação
Figura 3: Planta CPN proposto – sem escala.
Fonte: Autora

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CASA DE PARTO: reconstruindo a forma de nascer

Concebidos sob o mesmo conceito de filtro de privacida- necessidades da parturiente no momento dos pródromos,

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de e público, os seis quartos PPP se desenvolvem na parte parto e pós-parto. Um exemplo disso é a legislação vigen-
externa do CPN, com uma varanda que os conecta, crian- te exigir que apenas um dos quartos PPP tenham banhei-
do um ambiente de uso comum e deambulação coberta. ra. Esse fato sugere que nem todas as parturientes possam
Apesar da legislação limitar os CPN a cinco quartos, ob- contar com esse método não farmacológico de alívio da
servou-se, através das visitas realizadas, a necessidade de dor. O uso da água, de uma forma geral, ainda é pouco
um ambiente a mais, disponível para mulheres que pos- explorado nos CPN já existentes.
suam demandas específicas no pós-parto. Essas deman-
das, como dificuldades na amamentação, por exemplo, O projeto proposto sugere a implementação de uma
podem prolongar o prazo da alta e, consequentemente, a “área molhada” dentro de cada quarto, conformada
estadia no CPN. através de um desnível no piso. Um jardim linear com
espelho d’água e vegetação trazem a sensação de refú-
Separada por um pano de vidro, está uma antessala para gio quando coloca o ambiente em contato direto com a
refeições e espera de visitas. Esse ambiente de transição é natureza. Os brises pivotantes, controláveis do interior
um convite à socialização da mulher com o ambiente ex- do quarto, filtram a luz e a visibilidade, proporcionando
terno após a experiência do parto, que é um procedimen- maior privacidade ou integração com o verde do terreno
to extremamente intimista. Ao observar o movimento de (ver figura 4).
outras pessoas na área de deambulação, se tem a mesma
sensação de familiaridade e segurança que o “olhar a rua” A possibilidade de personalização e controle do espaço
nos proporciona quando dentro de nossas residências, pela parturiente são fatores importantes para a humani-
sem abrir mão do silêncio e tranquilidade ali presentes zação e o conforto ambiental que se busca em ambientes
(JACOBS, 2000). de nascer. Essas qualidades não perceptíveis, configuram
umas das principais características do ser humano, que é
Uma estante faz a transição para a cama e o quarto pro- dominar e conhecer o espaço para se sentir seguro.
priamente dito: em alusão ao mobiliário domiciliar, cum-
pre a função também técnica de “esconder” os equipa- Com a possibilidade de uso de objetos e vestimenta pró-
mentos médicos. prios, regulagem da temperatura, iluminação e ventila-
ção, a experiência vivenciada nesse centro torna-se indi-
Foi observado, através desta pesquisa, que os CPN cons- vidualizada, pois leva em consideração o significado que
truídos no Brasil ainda não atendem completamente às o momento do parto tem para cada indivíduo.

Figura 4: Perspectiva do quarto PPP proposto.


Fonte: Autora

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA). RDC 36, de 03 de junho de 2008. Dispõe
Novos modelos de assistência ao parto foram propostos sobre Regulamento Técnico para Funcionamento dos
no Brasil nos últimos anos, entre eles, a criação dos Cen- Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal. Brasília,
tros de Parto Normal, em 1999. Entre essa primeira legis- 2008.
lação e a atual, referente ao ano de 2015, existe um grande
conflito de interesses financeiros, corporativos, sociais e BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 985/GM/MS, de
políticos. O resultado disso é um espaço para o nascimen- 05 de agosto de 1999. Dispõe sobre a criação do Centro
to que apresenta deficiências e lacunas entre as normas de Parto Normal, no âmbito do SUS, para o atendimento
que o regem e a real necessidade de seus usuários. à mulher no período gravídico-puerperal. Brasília, 1999.

A proposta arquitetônica desse trabalho procura respon- BRASIL. Ministério da Saúde. Pacto nacional pela
der a essa demanda não atendida com as unidades de redução da mortalidade materna e neonatal. Brasília,
CPN existentes e, acima de tudo, contribuir para o debate 2004.
sobre o papel do arquiteto na humanização dos ambientes
de saúde. BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei 7633/2014.
Dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao
neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e dá outras
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