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CONFRARIA DE ARTES LIBERAIS


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LÓGICA

AULA I

APRESENTAÇÃO DO CURSO E EXPOSIÇÃO DO ÓRGANON DE ARISTÓTELES.

§ 1. Apresentação do Curso

1. Objetivo. – O objetivo deste curso é apresentar lógica clássica, como desenvolvida por
Aristóteles e pela tradição escolástica, enquanto técnica. Isso significa duas coisas: (i) não
tratarei da lógica moderna, e (ii) tudo o que for ensinado aqui deve ser avaliado por sua
utilidade. Não tratarei da lógica moderna, porque este curso se insere no plano da Confraria,
que passa pelo ensino das artes liberais, e a lógica que compõe o Trivium é a lógica
aristotélica. Digo que apresentarei a lógica como técnica e que, por essa razão, tudo o que for
ensinado aqui deve ser avaliado por sua utilidade, porque, se o nosso fim é o ensino das artes
liberais, iremos muito mal se, em vez de ensinarmos uma arte, ou seja, um conhecimento que
nos serve para a produção de alguma coisa, ensinarmos apenas um belo sistema de conceitos.

2. A função da lógica entre as artes liberais. – Para avaliarmos a utilidade de algo é


necessário que saibamos seu fim. Qual é, portanto, o fim da lógica? A resposta a essa questão
se esclarecerá ao longo do curso, mas, por ora, podemos respondê-la do seguinte modo: o
Trivium é composto pela Gramática, pela Lógica e Pela Retórica. Essas três disciplinas
guardam uma analogia com as três atividades da alma racional descritas por Hugo de São
Vítor em seu opúsculo de modo dicendi et meditandi: a leitura, a meditação-contemplação
(tomadas como uma atividade, uma vez que id quod meditatio quaerit, contemplatio possidet)
e o ensino.

A gramática, como sabemos, não se restringe ao conhecimento das regras gramaticais,


mas é, antes, a arte de compreender o que se lê em todas as suas nuances e, do mesmo modo
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de verbalizar a própria experiência. O fim da gramática é, então, que a nossa alma seja como
um espelho cristalino.
Se essa arte é, por um lado, fundamental, por outro, é insuficiente. Ainda que um leitor
viva imaginativamente com plenitude o que lê, se não conseguir integrar em sua alma suas
várias leituras, pecará por sua volubilidade. Esta, pois, é a função da lógica: integrar as
contradições em uma compreensão superior. E, como o filósofo é aquele que, diante da
perplexidade ocasionada pela consciência de uma contradição, busca superá-la, a lógica é o
instrumento da filosofia.
Enfim, após ter integrado as experiências contraditórias em uma compreensão superior,
devemos buscar actuar essa verdade. A esse fim serve a retórica, que diz respeito ao discurso
enquanto ação humana.

§ 2. O Órganon de Aristóteles

3. O Órganon de Aristóteles. – Feito esse esclarecimento sobre a função da lógica, que é


fundamental para sabermos o que estamos fazendo aqui, passo a tratar do Órganon de
Aristóteles. Essa exposição vai servir, entre outras coisas, para que entendamos a estrutura
deste curso.
A lógica foi tradicionalmente ensinada pela exegese dos livros de Aristóteles. Esses
livros eram chamados na Antiguidade de orgânicos, e, a partir do Renascimento, o seu
conjunto recebeu o nome de Órganon. Recebem esses nomes em razão de seu caráter
instrumental para a filosofia.
Hoje é opinião quase consensual que são seis os tratados que compõe o Órganon: o livro
das categorias, os livros de interpretatione, os primeiros analíticos, os analíticos posteriores,
os tópicos e o das refutações sofísticas. Há, porém, uma controvérsia histórica, e alguns
autores, entre os quais Santo Tomás, incluem ainda os livros sobre a retórica e a Arte
Poética.
Além desses seis ou oito livros, a tradição acrescenta ainda alguns outros, que não são
de autoria de Aristóteles. O mais conhecido deles é a Isagoge de Porfírio, uma introdução
(eis-agogé) às Categorias e, por conseguinte, a toda a lógica aristotélica.
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Cada um desses tratados tem um propósito, implícito ou explícito, e cumprem, portanto,


uma função no aprendizado da lógica. A tradição encontra o fundamento da sua divisão na
doutrina das três operações do intelecto, na distinção entre o aspecto material e formal do
discurso e entre os seus graus de certeza.

4. Distinção fenomenológica das três operações do intelecto. – Seria fácil distinguir as


três operações do intelecto a partir de uma exposição sistemática, demonstrando como um
silogismo pressupõe logicamente proposições e como proposições, por sua vez, pressupõem
conceitos. Em vez disso, tentarei desenvolver uma distinção fenomenológica, a fim de que
essas operações se tornem reconhecíveis na nossa experiência interior.
Comecemos pelo discurso, ou raciocínio. Se eu digo que o homem orgulhoso não tende
à verdade, porque lhe é doloroso admitir a verdade que o humilha, estou fazendo um
raciocínio. É claro que esse discurso não tem uma forma silogística perfeita. Não obstante,
temos uma premissa (ao orgulhoso é doloroso admitir a verdade que o humilha) e uma
conclusão (logo, o homem orgulhoso não tende à verdade). Como é feito esse raciocínio? Eu
percebo que eu mesmo, ou outra pessoa, tenho dificuldade de admitir uma verdade e, por um
esforço racional, percebo que a causa disso é o orgulho. Com um esforço racional posterior,
percebo que a razão disso é que ao orgulhoso é doloroso admitir o que o humilha, e uma
considerável parte da realidade nos humilha. Assim, portanto, o raciocínio é esse ato interior
que surge do esforço racional e que pode ter dois sentidos: o de buscar as razões de algo ou o
de extrair as suas conseqüências.
Pois bem, no raciocínio buscamos a razão de uma verdade e extraímos as conseqüências
de uma verdade. Assim, o ato interior do raciocínio pressupõe outro ato interior, que é o juízo
– uma afirmação ou uma negação. Digo, por exemplo: “o homem orgulhoso não tende à
verdade”. Como se origina esse ato interior? Como vimos, percebo em mim ou em outrem
uma dificuldade de aprender. O juízo, portanto, também exige certo esforço, anterior ao do
raciocínio, que é o de comparar uma representação com a realidade. Se eu digo “há um ar-
condicionado nessa sala”, ou “Wilson usa óculos”, não estou simplesmente fazendo uma
representação, juntando um conceito (o sujeito) com outro (o predicado); antes, estou
comparando uma representação com a realidade e dizendo: assim como penso, é (sic cogito,
ita est).
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Finalmente, para que eu ligue essas representações pela sua comparação com a
realidade, é necessário que eu tenha essas representações. A formação interior dessas
representações é a chamada simples apreensão. Embora sejam operações distintas, a simples
apreensão e o juízo se dão de modo muito concomitante; a simples apreensão já contém juízos
virtuais, porque os conceitos que formo têm um supósito, um sentido, uma referência a coisas.
A simples apreensão é semelhante à visão: enquanto dormimos, não vemos; no momento em
que acordamos, nossa visão não é nítida, é confusa: as várias coisas que estão em nosso
campo de visão aparecem como que fundidas uma com as outras. Gradualmente, as coisas
vão se distinguindo, até que cada uma fique com sua figura bem delimitada. Do mesmo modo,
enquanto nosso intelecto está adormecido, não distinguimos os vários lógoi, as formas
inteligíveis das coisas. Quando despertamos, e damos atenção intelectual às coisas, aos
poucos seus lógoi vão se distinguindo. O esforço da simples apreensão é, de certo modo, mais
passivo, e se evidencia no esforço por encontrar os nomes próprios dos fenômenos.

5. Distinção fenomenológica entre intelecto e imaginação. – Distinguidas entre si essas


três operações interiores, convém ainda distingui-las, enquanto operações intelectuais, dos
atos interiores da imaginação. Santo Alberto chama de “homines idiotae” aqueles que não
distinguem o particular do universal e, por isso, não distinguem a imaginação do intelecto.
Com efeito, a burrice não está tanto em não ver certas coisas, mas em confundi-las, em estar
intelectualmente adormecido. Quando eu imagino um rio, por exemplo, posso me lembrar de
um rio existente, ou fantasiar a partir de imagens que já vi; mas quando falo que o rio é a água
que corre naturalmente, que corre de um lugar mais alto para um mais baixo, que tem
margens, que tem um talvegue, que pode ter afluentes etc., não estou falando sobre nenhum
rio em particular, mas sobre os rios de modo universal. Ainda que quando pense sobre rios
uma imagem em particular acompanhe o meu pensamento, ela não é o objeto sobre o qual
penso, mas, antes, o objeto a partir do qual penso, e uma pessoa que me ouve e me entende
pode ter em mente outro rio.
Vê-se, então, que temos essa capacidade de atender, em um único ato, uma pluralidade
de coisas materiais em razão de uma forma comum, uma forma inteligível. Esse e um dos
sentidos de “conceito”: con-ceptus é o con-captado; con-captamos muitas coisas em um
mesmo conceito, em uma forma comum. A simples apreensão é um ato interior que tem por
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objeto uma forma invisível, ainda que se apresente em várias imagens visíveis como uma
proporção interna.
Tanto os atos da imaginação como os do intelecto são atos interiores, isto é, não tem
como objeto algo que está diante de nós fisicamente. Porém, os atos da imaginação, ainda
assim, têm como objeto algo visível, algo que eu poderia ver. A imaginação é, portanto, um
sentido interno. Já o intelecto não é um sentido, mas é uma faculdade humana diferente, com
um objeto invisível.

6. Distinção entre os aspectos material e formal do discurso. – O raciocínio, esse ato


que surge do esforço de buscar as razões ou extrair as conseqüências de um juízo, expressa-se
em um artefato lógico, que consiste em premissas seguidas de uma conclusão. Desse modo, o
raciocínio pode ser analisado sob dois aspectos: quanto à validade da inferência e quanto à
certeza das premissas. Se eu digo, por exemplo: “O orgulhoso não aprende nada. Ora, quem
aprende o nome de alguém aprende. Logo, o orgulhoso não aprende o nome de ninguém.”;
esse raciocínio é formalmente perfeito, isto é, em razão da forma do raciocínio, isto é, da
disposição dos seus termos, postas as premissas se segue necessariamente a conclusão. No
entanto, a conclusão é evidentemente falsa. Embora nenhuma das premissas seja evidente
falsas, vê-se que não estão ambas perfeitamente concebidas. Diante disso, evidencia-se que a
perfeição formal de um raciocínio não pode, por si só, nos evidenciar a certeza da conclusão.
Por isso, ainda mais importante que a análise formal do discurso, é a sua análise
material do discurso, que diz respeito não à disposição de suas partes, mas à sua matéria,
entendida no sentido em que dizemos que tratamos de matéria certa, provável, verossímil ou
meramente possível.

7. Distinção entre os quatro graus de certeza. O verossímil. – A imagem do processo


judicial é útil para evidenciar a distinção entre os graus de certeza. Em um processo, temos as
partes, com interesses contraditórios, e, sobre elas, um terceiro imparcial que é o juiz. Se as
partes contam com bons advogados, cada vez que ouvirmos um deles, seremos persuadidos de
que seu interesse é justo, porque seu discurso parecerá verdadeiro, será vero-símil. Esse é o
grau de certeza próprio do discurso retórico. O que o caracteriza, mais que a mera maior
certeza que o meramente possível e menor certeza que o discurso provável é a sua
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parcialidade. O grau de certeza do discurso retórico é o que advém de um discurso de


acusação e defesa em que se busca reforçar todas as razões em favor de uma tese e
enfraquecer todas as razões contrárias. Esse discurso se manifesta, por exemplo, quando nossa
razão é movida por paixões. Na alma tomada pelo rancor, como que fervilham razões contra a
pessoa que é objeto de sua irascibilidade e seus atos; na alma do jovem apaixonado, tudo na
pessoa amada é visto sob bom aspecto.

8. O provável. – A disputa judicial já se configura de modo que ao juiz se apresentem dois


discursos contraditórios quanto a certos pontos. O discurso que resiste ao contraditório porém
ainda se acha sob a tensão de ser confutado é o provável. Aqui convém fazer um
esclarecimento etimológico: provável é o digno de ser submetido à provação. Além disso,
deve notar-se que os graus de certeza, como todos os conceitos lógicos, não convêm às coisas
em si mesmas, mas às coisas enquanto pensadas pelo homem. É o que Avicena ensinou e os
escolásticos chamaram de segundas intenções: primeiro eu atendo à coisa, depois atendo à
minha própria atenção, e é nessa segunda atenção que se revelam os conceitos lógicos. Um
juízo verossímil, a partir do momento em que o submeto ao contraditório e ele resiste, se torna
provável. Logo, o provável não tem mais aquele aspecto da parcialidade, embora conserve a
tensão. Por isso, os escolásticos diziam que a opinião, que é o juízo correspondente à
probabilidade, é um juízo cum formidine contradictorii (com medo do contraditório).

9. O certo. – Quando toda contradição é resolvida, atinge-se a certeza. “Certo” é o


particípio do verbo cerno, cernere (separar, distinguir, discernir). Em posse da certeza, não
estamos na posição de propriamente de discutir com ninguém, mas apenas de ensinar; isso
porque a discussão pressupõe que cada pessoa possa acrescentar à outra uma parte da verdade,
mas quando uma pessoa está em posse da verdade do todo, a outra não lhe tem nada a
acrescentar, mas apenas o inverso. Em posse da certeza, o que se pode fazer é ingressar em
uma discussão com certa ironia, assumindo a defesa de uma verdade parcial complementar à
do interlocutor.

10. Divisão do Órganon. – Feitos esses esclarecimentos, é possível esclarecer a estrutura


do Órganon. São oito livros: o livro das categorias, o de interpretatione, os primeiros
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analíticos, os analíticos posteriores, os tópicos, o das refutações sofísticas, o sobre a retórica e


a Arte Poética.
O livro das categorias diz respeito à simples apreensão. O livro de interpretatione ao
juízo. Os demais, ao discurso. Os primeiros analíticos dizem respeito ao discurso tomado
formalmente, isto é, não determinado por nenhuma matéria, enquanto os demais dizem
respeito ao discurso determinado por alguma matéria. Os analíticos posteriores tem como
objeto o discurso certo; os tópicos e o das refutações sofísticas, o discurso provável; o sobre a
retórica, sobre o discurso verossímil, e a Arte Poética, sobre o discurso possível.

11. Resumo:
I. A lógica, ainda que teorética, é uma técnica, e, portanto, deve ser avaliada por sua utilidade;
II. A função da lógica entre as artes do Trivium, a partir da qual sua utilidade deve ser aferida,
é a de integrar dialeticamente a consciência do leitor;
III. O Órganon é o conjunto dos tratados de Aristóteles sobre a lógica, chamados orgânicos,
ou instrumentais, porque a lógica é o órgão, ou instrumento, da filosofia.
IV. É composto por seis ou oito livros: o livro das categorias, o de interpretatione, os
primeiros analíticos, os analíticos posteriores, os tópicos, o das refutações sofísticas, o sobre a
retórica e a Arte Poética.
V. Os livros do Órganon são tradicionalmente divididos segundo as operações da razão e os
graus de certeza.
VI. As operações da razão são três: a simples apreensão, o juízo e o raciocínio, ou discurso.
Fenomenologicamente, podemos dizemos que o raciocínio é o ato interior que surge do
esforço de encontrar as razões de algo ou extrair suas conseqüências; o juízo é o ato interior
que surge do esforço de comparação entre uma representação e a realidade; a simples
apreensão é o ato interior mais passivo, que surge de uma aberta à racionalidade das coisas e
se evidencia no esforço por encontrar o nome próprio de um fenômeno.
VII. As operações da razão se distinguem das da imaginação. As operações da imaginação
também são atos interiores, mas tem como objeto algo sensível. O intelecto tem como objeto
uma proporção invisível que pode ser comum a várias coisas visíveis.
VIII. O discurso possui um aspecto formal, relativo à validade de sua inferência, e um aspecto
material, que diz respeito à sua certeza.
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IX. Os graus de certeza são quatro: a possibilidade, a verossimilhança, a probabilidade e a


certeza. Correspondem às figuras do peta, do advogado, do juiz e do geômetra; aos atos do
assentimento imaginativo, da suspeita, da opinião e da certeza (formal); à suspensão do juízo,
à parcialidade, à totalidade contraditória e à totalidade resolvida, ou analisada.
X. O livro das categorias diz respeito à simples apreensão. O livro de interpretatione ao juízo.
Os demais, ao discurso, tomado formalmente (primeiros analíticos) ou materialmente
(demais).

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