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Onde, quando, quem? 1


Sincero relato de alguém que conheceu Novarina aos poucos

Meu primeiro contato com Novarina foi através de seu texto DIANTE DA
PALAVRA2. Em seguida, li o belíssimo CARTA AOS ATORES 3
Não gosto muito de jogos de palavras e, num primeiro momento, tive a
impressão de que era disso que se tratava. E que todo aquele discurso sobre o
sopro e sobre a respiração e sobre os órgãos e sobre a matéria não passava
de uma espécie de romantismo sobre a língua francesa e sobre o esgotamento
da linguagem articulada. Até aí, nada que eu já não conhecesse a partir das
falas desesperadas de Artaud ou dos elípticos e belíssimos artigos de Blanchot.
Claro que via ali inteligência na reivindicação de uma palavra concreta, uma
palavra que existe por si e não pelo sentido que encerra; havia poesia nessa
reclamação, mas eu não conseguia ver nada além de uma espécie de
afogamento contemporâneo pelo excesso de sentidos e de conteúdos. Não me
trazia novidade alguma.
Gelei quando Ana Kfouri me convidou para dirigi-la em O animal do tempo.
A primeira intenção foi negar: – “desculpe, mas não é muito a minha praia;
talvez eu possa ajudá-la de outra forma...” – mas não falei nada. Apesar de a
Ângela, tradutora de Novarina e amiga de muitos anos, já me ter recomendado
vivamente a leitura, não conhecia ainda o texto. Ela sabia que Novarina não me
entusiasmava muito.
Resolvi ler antes de dar uma resposta à Ana.
Texto estranho. Quando algum sentido parecia que iria se formar, ele se
transformava em outra imagem ou pensamento. Não podia dizer que estava
gostando. Mas também não podia afirmar o contrário. Uma segunda leitura. A
estranheza persistia. Mas consegui percorrer de forma mais atenta o labirinto
que o texto propunha. Percebia que ali havia alguma força narrativa que nem
de perto se parecia com o tradicional fio narrativo. Alguma coisa movia o leitor
como quem caminha por uma cidade com ruas muito estreitas e muitos prédios
e pessoas diferentes, e muitos pensamentos vêm à cabeça, todos ao mesmo
tempo, sendo que alguns sobressaem e quase vêm aos lábios para logo em
seguida serem absorvidos por outros pensamentos, até que, de repente, abre-
se uma grande avenida à frente do leitor e é como se os pensamentos se
espalhassem e uma lufada de ar enchesse seus pulmões para, em seguida,
penetrar de novo pelas ruelas de prédios, casas e pessoas muito diferentes
umas das outras e os pensamentos voltassem à cabeça, todos ao mesmo
tempo, com uns sobressaindo em relação aos outros.
Mas não há angústia. Esse percurso se faz como se déssemos um mergulho
pra dentro de nós mesmos e, em seguida – empobrecendo uma imagem
recorrente no texto de Novarina – saindo por outro buraco, para fora do corpo.
Como se ficássemos do avesso.

1
Este título é inspirado por um ensaio de Maurice Blanchot sobre Beckett: Agora onde? Agora
quem? In O livro por vir, Relógio d’água, Lisboa, 1984.
2
NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Trad. Ângela Leite Lopes, Rio de Janeiro: 7 letras, 2003.
3
NOVARINA, Valère. Carta aos atores e Para Louis de Funès. Trad. Ângela Leite Lopes, Rio
de Janeiro: 7 letras, 2009.
2
Foi uma experiência física, esse primeiro contato com o texto. Ainda sem uma
resposta para Ana, marcamos uma leitura. Ouviria o texto pela primeira vez.
Começamos a leitura e...
Antes de continuar, preciso atualizá-lo, caro leitor, de algo muito importante
para que eu consiga evocar um pouco o que foi minha experiência daquela
leitura em voz alta.
A obra e a trajetória de Antonin Artaud foram de enorme importância para que
eu pudesse compreender muito do que se produz hoje e muito do que já
experimentei no meu próprio trabalho. Uma das coisas que sempre me
impressionaram na cena que ele buscava era a exigência de precisão e de
ordenação dos sons, imagens ou palavras que seriam escolhidos para o
espetáculo. Tudo em cena deveria convergir para a criação de uma experiência
de sonho. Nunca me interessei pela leitura habitual de Artaud, que via no
improviso, na espontaneidade, uma possibilidade de trazer o teatro para o
momento presente, de ver nisso uma espécie de presentificação do devir e do
acaso, de trazer o jogo cênico para a realidade do instante. Espontaneidade
para mim nunca foi um valor importante para o resultado de um espetáculo.
Minha leitura de Artaud se concentrava na busca de uma sonoridade que
criasse, em cena, uma dimensão onírica que prescindisse do relato ou da
organização lógica dos acontecimentos. Artaud foi buscar essa sonoridade em
línguas primitivas ou em sons guturais que evocassem uma dimensão pré-
cultural 4 na busca por uma palavra mágica que havia perdido seu sentido ao
longo da história do ocidente. Ele estava atrás de uma linguagem para a cena
que recuperasse para a experiência teatral o sentido dos rituais. Mas a partir do
uso preciso da palavra. A partir da perfeita ligação entre as palavras.
Essa busca por uma dimensão da linguagem que funda o sentido não na
compreensão lógica, mas na mistura entre a sonoridade das palavras, na
presença do ator e, claro, também no sentido das palavras sempre me
emocionou. Em Artaud, não é a história que importa, mas as imagens e
lembranças que a experiência de linguagem – uma experiência primitiva –
evocariam.
Voltando à primeira leitura: Ana, uma atriz já apaixonada pela estrutura
dramatúrgica – se é que podemos falar de ‘estrutura dramatúrgica’ ao nos
referirmos ao Animal do tempo – de Novarina, fez uma leitura igualmente
apaixonada. E, ao longo da leitura, fui me emocionando de maneiras muito
4
Na poesia EM BUSCA DA FECALIDADE, que aparece no seu texto, produzido para a rádio,
ele lança mão não apenas de referências semelhantes aos ‘buracos’ referidos por Novarina,
mas de palavras incompreensíveis que pudessem adquirir sentido a partir de suas
sonoridades. Eis um trecho:
Para ter merda,
ou seja, carne
onde só havia sangue
e um terreno baldio de ossos
onde não havia mais nada para ganhar
mas apenas algo para perder, a vida.
o reche modo
to edire
de za
tau dari
do padera coco
Então o homem recuou e fugiu.
In ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Trad., seleção e notas Cláudio Willer,
Porto Alegre: L&PM Editores, 1983. pgs. 152
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diferentes, como quem não apenas imagina aquelas ruas estreitas do labirinto
da minha leitura, mas como quem as percorre vivamente. Vejo sentido naquele
texto, mas não posso, a partir daí, constituir uma história única. Tenho tantas
histórias! E tantas outras que não foram contadas ali, mas que me vieram à
lembrança!
Experimentei, de novo, a estranheza daquele texto de Artaud. Mas com uma
diferença fundamental: enquanto no texto de Artaud eu lia nas entrelinhas o
pensamento, a ‘teoria’ que fundamentava aquele delírio, agora, ouvindo a Ana,
eu estava DENTRO do delírio. Como ela não me contava nada, aquele delírio –
ou aquele sonho que eu imaginava estar sendo contado – era meu.
O texto que me parecia estranho na leitura, falado adquiria pleno sentido.
Pude responder ao convite da Ana: “é claro que quero dirigir você em O animal
do tempo”.

TEATRO E COMUNICAÇÃO
A palavra comunicação é comumente identificada com a transmissão de
mensagens ou de informações. A narrativa linear, adotada pela tradição teatral,
tem como objetivo contar uma história. Portanto, há algo para ser comunicado.
Muitas vezes, essas histórias têm um caráter pedagógico, ao colocar forças
antagônicas em conflito; levam, portanto, o público a refletir sobre os
acontecimentos ficcionais e tirar dali algum aprendizado. Muitas vezes, o
objetivo é apenas fazer rir e, o mais comum é vermos uma cena que procura
colocar o homem ou a sociedade em foco extraindo graça de situações
cotidianas. Nesse caso, também há comunicação. Há algo para dizer e que
deve ser recebido pela platéia inteira; caso contrário, corre-se o risco de a
piada não ter graça.
Entretanto, modernamente, nos habituamos a buscar no teatro contemporâneo,
uma experiência especificamente teatral. Então, podemos até ter uma história
como fio, mas ele é tênue. O foco não está ali, mas no jogo que a própria cena
produz. E, entre os elementos da cena, o diretor dimensiona também a platéia.
É ela quem vai articular a história ou as imagens produzidas pela cena. Aqui, a
palavra comunicação já não é boa. Não se trata de utilizar uma linguagem para
sensibilizar a platéia num determinado sentido. Trata-se de pensar uma cena –
que inclui o público – que instaura, funda – seja a partir de um texto dramático,
seja a partir de uma idéia – uma experiência teatral.
Novarina, especialmente no Discurso aos Animais, texto do qual foi extraído O
animal do tempo, não comunica nada. Ele produz algo que, sem sombra de
dúvida, deixaria Artaud maravilhado. Ele promove, no contato entre a atriz e a
platéia, uma experiência com a própria linguagem. É a linguagem tornada
protagonista. Não é um jogo de palavras como supus no meu primeiro contato
com sua obra. É uma poderosa narrativa que se lança em direção à platéia.
Não é um conto, é uma avalanche de sentidos que obriga a platéia a escolher
entre duas opões: negar-se à compreensão (e se entregar ao tédio até o fim do
espetáculo) ou deixar-se levar por uma espécie de encantamento provocado
pelas palavras.
E, ao usar a palavra encantamento, quero chamar a atenção para o que há de
mágico nela. Aqui, as palavras não se limitam a funcionar com instrumentos de
um dizer; como uma ferramenta com o objetivo de transmitir uma mensagem.
4
Não há nesse texto a utilização técnica, quase científica, das palavras, com o
objetivo de produzir um sentido específico. Em O animal do tempo, as
palavras não querem se esconder atrás de seus significados. As palavras são,
elas próprias, aquilo que se quer dizer e, a partir de sua presença, de sua
elocução, a partir do momento em que são proferidas pela atriz, tornam-se
poderosas máquinas de produzir sentidos. E são máquinas sem controle, pois
quem vai moldar, lapidar e polir essa escultura é aquele que ouve.
Nenhuma comunicação. Entretanto, a palavra como uma potência de criação
de sentidos. Portanto, muito além da comunicação: uma experiência mágica
com a linguagem. É a linguagem sendo devolvida à sua origem encantatória,
devolvida ao tempo em que ao evocarmos uma coisa por seu nome, nós a
presentificávamos. E, quando queríamos levar conosco, para sempre, uma
lembrança, nós a nomeávamos.

PENSAR É ESCULPIR – ENCENANDO O ANIMAL


Todo homem é um artista. Isso não significa, bem entendido,
que todo homem é um pintor ou escultor. 5

Joseph Beuys trabalhou a partir desse conceito para criar uma teoria sobre a
escultura: pensar é esculpir. É claro que seu objetivo aqui é fragilizar,
esfumaçar os contornos da arte escultórica, ampliando o conceito de arte.
Explodindo com os limites dos gêneros artísticos, Beuys obriga-nos a repensar
sobre a atividade dos artistas e suas especialidades. Leva-nos a estabelecer
outros parâmetros para a leitura do pensamento artístico. A produção de
objetos artísticos, para ele, tornou-se muito mais uma necessidade
mercadológica do que propriamente um resultado do pensamento sobre uma
experiência humana.
A arte, para Beuys, é uma metáfora da experiência humana. Metáfora não é a
palavra; a arte é uma potência da experiência humana. Daí a citação acima
que dá a todo homem o papel de artista. Afinal, diante de uma experiência
artística, a obra está naquilo que é vivenciado pelo que antigamente
chamávamos de espectador. A arte não está na forma elaborada pelo artista,
mas no espaço entre a elocução e o ouvido. E escultura é aquilo que se forma
aí, nesse espaço.
Eis o desafio da encenação: construir, não uma escultura, mas a abertura que
possibilite que uma escultura se forme. Fazendo um trocadilho infame, não
domando este Animal do tempo, mas mantendo a pluralidade de sentidos e, ao
mesmo tempo, fazendo, ao público, um convite àquele mundo labiríntico.
Deixando transparecer, de alguma forma, que aquele mundo é a vida inteira e
não a vida de alguém. Portanto, ele, o espectador, é um animal que cabe ali
dentro. Aquele é o lugar dele também. Ele também precisa se nomear – seja
João Sem Nome, seja João Mancada, seja João Ninguém.
O início dos ensaios foi uma série de tentativas frustradas. Abordagens
erradas, cheias de formas elaboradas e gestos significativos. Logo esse desejo
de trazer um pouco de filosofia para a cena se mostrou como o caminho
errado. Faltava espírito lúdico. Faltava uma certa irresponsabilidade e, aos
poucos, sem elaborações formais nem teóricas, fomos nos aproximando de
5
BEUYS, Joseph. Polentrasnport 1981: entrevista debate conduzida por Ryszard Syanislawisk.
In: Et tous ils changet le monde. Catálogo da 2ª Bienal de Arte Contemporânea de Lion. p.110.
5
uma fluência natural daquelas sequências de palavras. Relaxando, deixando
conceitos de lado, fomos enxergando uma ‘lógica do conto’, um sentido oculto
muito simples, muito corriqueiro, por trás daquela aparente forma de
expressão.
E encontramos a chave. Por trás de uma aparente expressão, não se expressa
nada. Resta apenas a palavra. Vazia. À espera de sentido. Mas é importante
criar a aparência de que há algo sendo dito. É essa aparência que faz o convite
à platéia. É ela quem diz ao espectador: “há algo para ser preenchido... venha
preencher”. Se ignorássemos que há possibilidade de sentido naquela fala, se
não levássemos em conta a necessidade que aquele João Ninguém tem de
falar, estaríamos descartando a possibilidade do sentido; mas a potência do
delírio está no sentido que as imagens adquirem para nós. A chave da
encenação, portanto, estava encontrada: precisávamos encontrar – ou inventar
– um sentido oculto naquele ‘relato’ e trabalhá-lo com o máximo de
simplicidade e bom humor. Porque se trata de um relato que se dirige ao
exterior, ao mundo. Não é um conto sobre a impossibilidade. Ao contrário, é,
positivamente, o lugar da possibilidade da linguagem. E com alegria.
Alegria é o sentimento a ser instaurado na experiência da cena. Mas a
profusão de palavras às vezes cansa. Tínhamos o silêncio para, em
determinados momentos, valorizar certas frases, mas precisávamos de outro
artifício que criasse outra sonoridade que pudesse ser conjugada com a
musicalidade das palavras. Um acordeom foi a primeira idéia. Ana, que nunca
tinha tocado esse difícil instrumento, mergulhou vorazmente num estudo básico
e, ao longo dos ensaios, compôs, ela própria, as músicas que foram para a
cena. Durante o processo, o acordeom foi, assim como as palavras, deixando
de ser apenas um instrumento para se tornar parte da atriz, parte importante da
elocução de todo o texto. Ela passou a carregar o acordeom por todo o tempo,
utilizando, inclusive, o ruído do fole aludindo à respiração como parte
importante do sentido das palavras, do sentido daquele encontro com a platéia,
do sentido de pensarmos sobre nós, vivos e sobre nós, tendo a morte como
limite.
E o espaço? Precisava ser uma ambiência e não um lugar. E mergulhamos
essas palavras num corredor muito profundo no qual João Ninguém circulava
mostrando-se ora muito próximo, ora distante da platéia. As palavras eram,
assim, lançadas, às vezes, de muito longe e, às vezes, à distância dos
perdigotos. E no final, Ana dava nomes à platéia enquanto recuava e
desaparecia no espaço ficcional no qual todos se lançaram durante uma hora.
Simplicidade era a tônica. Sem excessos, sem golpes cênicos.
Novarina é um inventor de palavras. Ou melhor, de sequências de palavras. Ele
não é um contador de histórias, mas é responsável pela realização de uma
vivência com as palavras que ficará na lembrança da platéia. É o pensamento
esculpindo sentidos com aquelas palavras.
A lembrança dessa experiência é uma escultura de palavras, de sons. Retomá-
la, é como relembrar um sonho; uma experiência muito diferente de estar
acordado, mas que só foi possível porque foi real.
Artaud ficaria, literalmente, encantado. E eu vou partir, agora por um convite de
Ângela, para a segunda experiência com Novarina: Teatro dos ouvidos: onde
mora o teatro?
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Maio de 2010

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