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Intermitências

Diagnóstico

Sentado no sofá. Gravador na mão. Ela andava atarantada como a barata que acabara de
trucidar com o salto. Estourava com as mãos. Com os palavrões. Com os vidros de copos e
porta-retratos. O chão. Os vidros chegavam até as pontas dos meus sapatos. Sentado no sofá.
Gravador na mão. Eu pensei ter visto respingos de sangue. Junto de um caco de taça que voou
até o sofá. Com um peteleco ele foi se juntar a outro caco, desta vez um caco de espelho que
se despedaçava com alguma imagem raivosa imprimida em si na parede do corredor.

Ela chorava e ria. Pensei numa hiena. Ou num palhaço sendo assassinado. Ou mesmo no riso
que eu dei quando um arte-educador foi jogado longe por um carro de um mauricinho
embriagado o atropelou. Eu ri, sabe-se lá por quê. E ainda passei, a pé. E vi o choro da amiga
dele. E eu me calei. Achei que estava perdendo o juízo. Ela me olhou e perguntou por que eu
fizera aquilo.

- Você me pediu. Ou melhor, pagou. Fiz algo de errado?

E olhei o gravador no meu colo. E os quadris dela balançando em direção ao banheiro. Ela
deve ter vomitado almoço e janta, junto com o choro de raiva dela. Eu suspirei. Achei mais
uma vez tudo um tremendo absurdo.

Aproximação

Eu sempre detestei clichês. Acho que justamente por isso comprava minha bebida e levava pra
casa. E evitava fumar como quem põe pose pra tragar. Mas, ainda assim saía e observava.
Afinal, era meu serviço. Pegava o gravador e saía. Às vezes o telefone tocava e as pessoas, a
medo, me pediam o que eu tinha de fazer. Combinava-se o preço e eu fazia. É foda porque
você faz o serviço e ainda tem vez que se leva um esculacho de brinde. Normal.
Aí um dia ela ligou. E ela quis me ver num bar. Eu disse que não frequentava bares. Ela
insistiu. E foi para aquele bar em que uma porção de colegas meus iam. Pelo clima do bar, eu
tinha como clichê ficar ali, olhando, fumando, os braços no balcão. Achei que ela era doida,
mas fui. Dei um olá amarelo a umas cinco figuras. E sentei esperando-a figura que já estava
lá, me olhando de viés, talvez para se certificar se a descrição que eu dera batia. Ela veio,
perguntou se eu bebia. Me pagou um gim e perguntou pelo gravador no balcão. Eu ri, disse
que gostava muito dele. Ela falou. Eu quero isso. Fiquei realmente preocupado. Tá bom. Eu
faço.

Sob as frestas de um sol sem fim

Era um calor absurdo aquele daqueles tristes marços. A preguiça acordava comigo, andava
comigo à rua. Sem querer acabei me lembrando de outras andanças, outras ruas. Eu andara
pela cidade que visitava pela primeira vez com uma sensação estranha de familiaridade:
parecia que cada esquina, cada monte de lixo acumulado era o mesmo, e até o ar de estranho
dos estranhos. Enfim, tolices... Cheguei ao apartamento que um colega tinha me arranjado e já
sabia o que iria fazer, afinal já tinha explorado toda a redondeza e já tinha feito as primeiras
coisas necessárias. Sentei, deixei o gravador na mesa. E esperei.

Tentei dormir, mas em vão. Enfiei um palito em um pedaço de sabão e o pus em cima da
mesa, ao lado do gravador. Entreabri a janela. O sol entrou vagarosamente já foi marcando
com a sombra do palito o seu caminhar. E eu comecei a ouvir as vozes de sempre. Eu tinha
calor. E estava puto, porque não tinha comprado água. O sol parecia que não acabava.

As vozes

Você guardou? Sim está guardado, muito bem guardado. E ela? Ela o quê? Será que
desconfia? Talvez. E você fica com essa risada na cara? Claro! Tá brincando, não pode.
Cadê a garrafa? Toma. Nossa... O que foi? Espantado, apenas. Nunca tinha visto, né?É
fantástico. Sempre achei... E como você fez? É segredo... Putz... Que foi? Nada, acho que
viajei. Normal, todo mundo sente isso... Você sentiu? Desde que eu nasci. Caralho. Deixa de
tolice. Vem cá. Vem fazer parte do meu pesadelo...

A alucinação

Sempre tive esse pesadelo. Via a ladeira. O chicote voando. E o sangue pululando nos rostos
das pessoas. E o sol impiedoso caindo sobre todos. Aí eu acordava. E via o sangue aparecendo
nas minhas mãos. Nas paredes. Nos retratos. Eu gritava e o grito era sangue. As vozes se
foram e eu fiquei com o grito suspenso. Fiquei com medo de o gravador ter pego o meu grito
e eu perder tudo. Estava suado. Desci pra comprar água.

Fiquei olhando a janela do apartamento da porta do bar, na rua. O que estaria acontecendo?

Acontecimento

Liguei a vida ao acordar. Catei óculos e gravador. Liguei-o. Ouvi tudo aquilo com um rosário
de estupefações passando na minha cara enquanto eu escovava os dentes. A imagem da minha
própria pessoa pensativa olhando da minha posição (que eu julgava privilegiada) a janela que
se fechava vinha à minha mente. As palavras gravadas continuavam me espantando e por um
momento eu me arrependi de ter entrado naquela. Desliguei o gravador. Peguei minhas coisas,
fui voando para o outro apartamento.
Pesadelos pesadelos pesadelos.
Cheguei lá sentindo o mormaço das ruas sobre minha nuca e sob os meus sapatos. Abri a
bolsa, bebi água, deixei o gravador em cima da mesa. Parecia que ele estava captando algo a
mais do eu e ele esperávamos. A fumaça do calor das ruas subitamente parecia subir pelo
apartamento enquanto as vozes entravam no meu gravador, como se subissem na mesa e se
jogassem dentro dele. Não ouvi passos nem nada. Senti um gosto estranho na boca e na água.
Pedras rolavam dentro do meu labirinto, mas eu não fiquei tonto. Olhei para o gravador.
Parado. As vozes: caladas. Fui pegar a garrafa d'água, ela estava suspensa na minha frente. E
os olhos que me calavam, também.
Um grito

Acordei sentado e molhado. De suor. Com a garrafa derramando água como se fosse uma
fonte que não secasse. E sangue escorrendo da mesa, perto do gravador. Eu rebobinei e só
ouvi um grito. Não era o meu, por mais incrível que parecesse para mim. E o sangue também
não era meu. Não estava ferido. Só os meus ouvidos doloridos é que denunciavam algo. O
gravador continuava reproduzindo aquela coisa bestial, e foi então que eu percebi.

As vozes

Saiu. Não acredito. E aí? Aí, ai. Ai? É. Estranho, mas como fez? Hum, você leu tudo
direitinho? Acho que sim. Imbecil. Eu?Não, ele. Não diz isso. Digo sim, é um imbecil.
OUVIU?UM IMBECIL. Tá, não precisa gritar. Mas ele volta? Ele está aí. Aí?Onde?Tá, vou
ver. ............... Que foi?............. Vai, porra, o que foi?.......................... Idiota! Ele é meu.
Minha substância ainda informe...Por que o medo?............. Pode soltar esse imbecil.

A conversa

A encontrei no mesmo bar. Parecia nervosa, mas olhei no espelho que minha cara não andava
nada boa. Ela perguntou se havia evoluções. Falei da noite e do acontecimento. Ela pareceu
espantada a princípio. Perguntou se eu lembrava algo além do grito. Eu disse que podia
parecer risível, mas lembrava de uma testa. Ela estendeu um papel para mim. Pensei em todos
os clichês da minha vida, mas fiz o que ela pediu. Ela sorriu, pegou o desenho que eu fiz e
disse: eu sabia.

O silêncio

Acabei de jantar e olhei pela a janela, desconfiado de tudo, de mim, dos papeis e dos clichês.
O gravador, desligado, parecia querer ligar sozinho, captar o plano dos sonhos e do medo. Eu
sorri. Fechei a janela, fechei a mente e sentei, olhando o teto. Olhei a minha pistola pela
primeira vez naqueles dias e apertei-a contra mim. O silêncio escorregava pelo meu sono e
parecia uma cobra de sangue, como o filete de sangue que eu comecei a ver escorrendo da
mesa. O gravador começou a tocar: Você guardou? Tá brincando, não pode.É fantástico.
Sempre achei... Idiota!IMBECIL! Pode largá-lo, agora já era. Agora já era. Agora já era.
Agora já era. Agora já era... O sangue aos poucos coagulava no chão, nas paredes do
silêncio, refazendo diante de mim o desenho que eu havia entregado a ela. Eu deveria ter
entregado mais coisas.
Quem sabe, minha alma...

Insônia

Comprei uma ficha. Parecia absurdo, uma dessas circunstâncias provocadas pelos clichês do
universo, mas lá tinha. Sonhe comigo. Achei que fosse preencher as lacunas daquele sol que
vinha até à soleira da porta. Achei que fosse me salvar do calor. Achei que fosse me salvar do
esquecimento.

— Pensando em alguém?

— Não, deve ter alguém pensando em mim. Me dá um copo de café, logo.

Ele saiu me olhando, desconfiado, o Esteves. Me deu o café com o olho enviesado. Minhas
mãos tremiam. Minha vida, ligada, estava como que empenada, como meus óculos. O
gravador em cima do balcão permanecia calado e cheio de areia. Meus olhos balouçavam na
tentativa vã de reconstruir a noite estranhamente passada na rua. Não havia sangue em mim:
só água e pedrinhas, como que se eu estivesse caído de uma muralha de pedregulhos. E o
ouvido doendo. E eu esperava que a música reconstruísse o meu mundo. Que afastasse de
mim aquela nesga de sol que alcançava meus pés, espreitando a soleira da porta do bar. Que
afastasse de mim aquela insônia, meus olhos vermelhiços, minha vida sem medo...

Nem esperei a música acabar. Fui embora.

Um nome
Percebi logo que havia dado dois tiros. Mas contra o quê?Quem? O gravador reproduzia
aquele grito horroroso. Não era meu. O desejo que eu tinha era sair descarregando a pistola a
torto e a direito. Eu escutava na gravação algo como pingos. Talvez os de sangue. Ou a água
que jorrou misteriosamente da garrafa como se fosse a fonte de Siloé. O telefone tocou e eu
distraído demorei a perceber que era o Esteves dizendo que tinha visto um cara estranho no
bar discutindo ao celular com alguém. E que depois aparecera outro estranho o chamando
pelo nome. Perguntei qual era o nome. Esteves disse que não sabia pronunciar, mas tinha
escrito num papel. Esquisitinho, o Esteves. Ainda assim, tonto de sono, fui lá. Escondido no
caixa, Esteves me passa o papel.

Meirinque

— Que nome é esse, ó Esteves?

Silêncio. E eu fiquei com aquele nome estranho na mão e o gravador no outro, enquanto na
mente a necessidade de mais uma noite de trabalho.

As vozes

Acorda!!!!Hã?Hã? Tava gritando e dormindo!!Foi?Pesadelo, acho... Ela te procurou, não


foi?Ela?Quem...Cala a boca!Eu sei que foi ela quem te procurou!!!EU VOU MATÁ-LA!!!
Fala baixo!!!!!!!...... Não chora... ................. Você sabe que... Não, não sei nada. As noites
passam, os dias passam e só vejo tudo desmanchando... Você viu?Ele deixou um bilhete e
quer saber dele... Por onde ele andou?À minha procura...Não só de você; ele sentiu a
presença do outro. E o que vamos fazer?Ora, o de sempre!Vamos esticar o sono para não
terminar com o pesadelo.

A noite das longas facas

Tentei imaginar quem seria aquele tal Meirinque. Talvez apelido, mas logo vi que poderia ser
algum gringo perdido por aqui. E tentei lembrar algum Mairink ou Mayrinck que tivesse
passado por aqui. Não me era complicado descobrir quem era. Se passou por aqui, alguém
mais competente me saberia informar. O caminho para o apartamento estava molhado, mesmo
com o céu limpo. Estava silencioso, mesmo com os bares da avenida abertos. Subi, gravador a
postos. Em cima da mesa. Liguei. Será que imaginariam que eu pudesse estar por perto? Não
sei. O calor fedia por cima do mormaço e a água não me ajudava...

A primeira me pegou sonolento, debruçado à mesa...Caiu perto do gravador, mas ainda bem
que não o destruiu. Eu pus ele embaixo da mesa e também fiquei lá olhando o tamanho
daquela faca e quem poderia tê-la jogado. Peguei a pistola no exato momento em que outra
faca caiu em cima do sofá. E outra no limiar da porta. Senti um cheiro forte de sangue e
barulhos de pingos. Liguei o gravador. Outra faca despencou na cozinha, derrubando pratos e
copos. Depois foi o estrondo.

Vi os pés com um soluço pendurado na garganta. Um estranho sibilar misturado a barulho de


cascalhos caindo no chão. E o cheiro de sangue. Peguei a pistola, pronto a disparar. Ele se
mexia como um astronauta pesado no chão de Marte. O meu medo tamborilava nas veias do
meu coração. Uma faca finalmente acertou a mesa. E minha mão. Segurei o grito, mas não o
gravador que começou a reproduzir o outro grito. Ele parou, se virou. Olhou o sangue que
caía do teto e o que escorria da minha mão, diante do meu silêncio. E eu vi em sua testa a
mesma marca do desenho que eu fizera para ela. Ele me olhou com um olhar imbecil. E
gritou.

A notícia

G.Meyer, um jovem administrador de empresas austríaco, foi encontrado morto hoje no


apartamento que ele alugara para passar alguns dias em nossa cidade. Marcas de violência
foram encontradas em todo o apartamento. Provavelmente ele lutou contra alguém muito
forte, esse mesmo alguém que lhe desferiu sessenta facadas. O corpo do estrangeiro encontra-
se no IML para autópsia.

Um difícil acordar

Havia um sem-fim de ligações dela, mas o sono não tinha me permitido atender algum. A
minha mão doía e no jornal a notícia da morte do tal Meyer repousava embaixo do gravador
como um sopro de mistério sobre a própria faca que me ferira e que eu trouxera para casa. Eu
parecia ainda preso àquela noite, como se milhares de cascalhos tivessem entrado goela
abaixo e me deixado pesado para se movimentar nas amplas planícies da vigília. Resolvi
voltar lá, com a luz do dia, para ver se ela tinha sido capaz de dissipar o meu medo que lá
ficara incrustada na testa daquela criatura enigmática. Isto é, se ela ainda estivesse por lá.

As vozes

Vamos indo. Para onde? Qualquer lugar. Meyrinck está morto. Como assim? Ele veio atrás
do que é dele, mas não deu certo, tudo saiu de controle. E se disséssemos as palavras?Não
dará mais certo. Por quê?Só o Meyrinck é quem podia dizer as coisas para o imbecil.E ela?
Ela vai estourar com o intrometido e vai ficar por isso mesmo... E ele?Ele? Não sei. Só
espero que ele não nos encontre.

Sonho de (re)encontro

Talvez um vizinho ouvisse uma música de desalento. Não sei. Meus ouvidos captavam os
passos dos pássaros que olhavam desconfiados para dentro de seus ninhos, dos ratos que
margeavam o meio-fio e preocupados guinchavam para os esgotos, a bota que rachava
vagarosamente a sola nas escadas de granito do velho prédio. Talvez a música fosse um
réquiem incidental para o término daquilo tudo. Quando abri a porta um cheiro forte de
sangue coagulado e o rachar de centenas de pedrinhas adentraram no meio da minha insônia
já milenar e do meu enfado e da minha falta de compreensão daquilo tudo. Vi a mesa rachada,
pegadas de um ser que parecia um gigante. As facas tremiam com o vento teimoso que vinha
pela janela que permanecera aberta para o grito bestial que somente eu ouvi naquela noite. As
vozes talvez ficassem mais caladas porque era dia e porque o gravador ficara em casa, sem
colo para deitar-se, sem roncos para guardar, sem gritos para reproduzir. Outro vento soprou,
minha ferida arrepiou-se com o leve sussurrar daquela voz que me disse Ele é meu, mas me
matou...Eu sou o Gustav, o Meyrinck...E sumiu, como uma voz some sem ser captada: nem
pela sensibilidade do tímpano e da memória, nem pela fita de um gravador. Pus a mão na
pistola. Ouvi vozes. Disparei.

Destruição

Cheguei em casa tonto. Camisa cheia de coágulos e suor. Ainda tinha suor na minha testa. E
sangue na ponta das minhas botas. E uma memória que estranhou aquelas vozes caladas ao
serem alvejadas e caírem duras em meio às pedrinhas que pareciam vivas, cobrindo os corpos
depositados em um estranho abraço no chão. E que pareciam devorá-los como se fossem
pedaços de morte. Ainda estava tonto quando percebi que tudo estava revirado. Desesperei-
me, procurando o gravador. Estava em cima da cama, junto a pedras enormes e a facas
ensangüentadas. Ele ligou sozinho e começou a reproduzir: Somos todos uns imbecis. Todos
nós.

E um grito balançou as minhas roupas e os meus livros e o meu dia de insônia e o meu medo e
a pistola que na minha cabeça, não consegui disparar...

Diagnóstico

Sentado no sofá. Gravador na mão. Ela andava atarantada como a barata que acabara de
trucidar com o salto. Estourava com as mãos. Com os palavrões. Com os vidros de copos e
porta-retratos. O chão. Os vidros chegavam até as pontas dos meus sapatos.

Sentado no sofá. Gravador na mão. Eu pensei ter visto respingos de sangue. Junto de um caco
de taça que voou até o sofá. Com um peteleco ele foi se juntar a outro caco, desta vez um caco
de espelho que se despedaçava com alguma imagem raivosa imprimida em si na parede do
corredor. Ela chorava e ria. Pensei numa hiena. Ou num palhaço sendo assassinado. Ou
mesmo no riso que eu dei quando um arte-educador foi jogado longe por um carro de um
mauricinho embriagado o atropelou. Eu ri, sabe-se lá por quê. E ainda passei, a pé. E vi o
choro da amiga dele. E eu me calei. Achei que estava perdendo o juízo. Ela me olhou e
perguntou por que eu fizera aquilo.

— Você me pediu. Ou melhor, pagou. Fiz algo de errado?


E olhei o gravador no meu colo. E os quadris dela balançando em direção ao banheiro. Ela
deve ter vomitado almoço e janta, junto com o choro de raiva dela. Eu suspirei. Achei mais
uma vez tudo um tremendo absurdo.

Epílogo

Meu gravador explodiu durante uma noite. Fiquei olhando as vozes discutirem dentro dele
como fantasmas insones, indo embora com palavras desesperadas. Recolhi aquelas pedrinhas
que se balançavam como monstros vivos. Joguei-as fora, no velho fogareiro de uma padaria
vizinha da minha casa. Apertei a pistola junto a mim, com medo, para me certificar de que ela
talvez pudesse me ajudar quando precisasse. Cheguei ao bar e Esteves já me pergunta,
assustado, se eu sabia que ela tinha deixado a grana e se mandado, acossada por um pânico
inexplicável. Algo me dizia que talvez ela já estivesse morta. Ele riu, ao me ver pensativo.
Estranho, o Esteves.

De repente, stars shining bright above you; night breezes seem to whisper ‘I love you’; birds
sing in a sycamore tree; dream a little dream with me…

Olhei para trás. Esteves perguntou:

— Alguém está pensando em você?

Vi aqueles passos pesados, os cascalhos. A marca na testa. Um livro em cima da mesa. Vi, a
capa, sorri.

— É. Alguém que eu pensei que fosse, mas não tinha certeza.


Pisca Luzes

Formigas

Quando me dei conta, no chão do quarto um batalhão de formigas, dessas pequenas que
quando você mata exalam um cheiro estranho de carga de caneta bic, trucidava o pequeno
cadáver de uma barata. Olhei pela janela: o calor fundia a cuca dos transeuntes, a fumaça de
tudo que se movia sobre 2 e 4 rodas. As formigas subiam pela mesa cadeira parede, o calor
subia pelos meus pés cansados que pareciam alicerces de minha ressaca e formigavam como
se todas aquelas formigas subitamente tivessem esquecido da pequena barata morta e
tivessem me eleito seu banquete matinal. Depois de todos aqueles dias em que eu parecia um
espectro calcinado no assoalho daquele velho apartamento em que aconteceram todas aquelas
maluquices minha própria sombra andava desconfiada ao ver qualquer luz. E, talvez sem o
espanto que outrora eu tinha, a vi pisar algumas formiguinhas, enquanto eu bebia água
preocupado, pensando nos dias e nas noites. Nos cascalhos de horas que às vezes eu chamava
de vida.

Pisca-luzes

Esteves sorriu ao me ver, como se não nos víssemos por um longo tempo. Ele evitava
conversar sobre aqueles dias tão plenos de coisas absurdas. Não pus música alguma, nem
acendi cigarros. Ele me deu água, com gás, acho que só para zoar comigo. E repassou o papel
com o nome de um cara que eu já conhecia de vista e no qual não confiava muito. Por que ele
queria que eu trabalhasse pra ele?

— A grana é boa — garantiu Esteves — E ele não enche.

Seria isso mesmo? Saí dali ressabiado, ao encontro do Velho, pensando se a morte do Drieu é
quem movia aquela súbita lembrança da minha pessoa. E pensei no que o Esteves falou sobre
encher ou não. O Velho tinha lá as bizarrices dele. Umas taras que envolvia esposa, cunhada e
- segundo as más línguas - sobrinhas e até a filha dele. Que tinha topado com o Drieu numa
festa de rua no carnaval, lá no Antigo. Mas nunca consegui entender o porquê de tal relação.
Pessoas muito diversas e de relacionamento eu nunca entendi bulhufas. Então ficava o hiato, o
abismo, a incompreensão. E meus pensamentos no caminho no qual eu olhava minha sombra
relapsa driblando as luzes dos postes no chão enlameado. E nos meus olhos as luzes piscavam
como vaga-lumes arredios. E eu não entendia o chão que tinha se aberto diante de mim, em
meu peito. E senti falta das conversas longas que eu tinha com o Drieu. E minha vida
começava a se instituir como uma solidão sonora.

Precisava de um gravador novo. Urgente.

O Velho

A Igreja dos Martírios guardava poucos fiéis, muitas velas e a figura do Velho, perto de uma
das pias batismais. Desliguei o celular por puro respeito. E esperei ele vir até mim.Falou de
bobagens, perguntou sobre o meu estado de saúde depois do caso do Meyrinck. Disse a ele
que não conhecia o homem, mas que o tinha visto morto e não sabia se o casal — que
provavelmente tinha ligação com a morte do austríaco — ainda estava vivo. Ele calou e
depois me mostrou um papel.

— Sim, conheço. Vi uma ou duas vezes, mas...

— Encontra ele. Não importa a maneira.

E se foi, me deixando no meio da entrada da nave central, tentando imaginar pormenores


daquilo tudo. Voltei para casa passando pelo casario degradado e o vento roçando nas canelas
e cabeças de todos. E o riso fino rasgado na cara do Velho me dizendo que havia algo muito
óbvio que eu não conseguia alcançar.

O rádio

Ouça bem: as cordas e os sinos soltaram-se e tudo veio abaixo. As sombras gritaram adeus, o
vento desiste de entrar nos versos, cansados de serem inutilmente usados. A morte tirou férias,
as lágrimas cansaram de cair, até o escrever cruzou os braços, olhou o abismo e pulou fora. É
isso.
Não pude evitar um riso largo, mas logo entendi que havia algo de cifrado (ai de mim)
naquilo tudo. Peguei minha pistola, escondi-a cuidadosamente e saí tentando imaginar como
me livrar do calor daquele final de tarde. E parecia que todas as pessoas então começaram a
sintonizar a mesma estação e me olhavam risonhas e desconfiadas desconfiando minha
sombra que tentava correr mais rápido do que eu. Por um momento pensei em ouvir a risada
contida do Drieu ou um pedido de socorro impregnando as dobras das ruas e/ou as pontas das
minhas unhas que riscavam as linhas da minha calça jeans.

É isso. A crueldade é pura crueldade.

— O imperfeito, meu caro, é apenas a solução do perfeito para se manter vivo.

Olhei para trás. A filha do Velho sorria, sentada no batente de uma loja de tecidos.

— Vem cá, preciso te mostrar algo.

A sombra

Se alguma vez achei que sombras não tinham medo de subir a lugares escuros, passei a saber
que sim. A minha sombra ficou achatada na rua, enquanto a filha do Velho me conduzia para
sabe-se lá onde.

Drieu

— Você sabe que seu amigo me amou tremendamente... — Suzana me olhava enquanto abria
a porta e me introduzia na sala. Procurava minha sombra e só via um fino raio de luz que
passava no meio da nossa conversa. – Mas, ainda assim, ele era meio lerdo, desatento, sujeito
a esses percalços que desatam as cordas da vida...

Não me atrevi a perguntar que percalços seriam, embora eu supusesse que Drieu fizesse parte
de uma espécie de confraria. Ela falava do alheamento dele nos últimos dias e de uma
estranha sensação que perpassava-os quando se amavam. Ela me dizia isso com um olhar que
eu julguei a princípio pretensamente cativante. Soprei tal ideia como se sopra uma mosca. E
até a pistola tremeu. Ela ainda perguntou se eu queria saber quem teria morto o Drieu.
— Pensei que ele tivesse morrido de doença. Ele não estava doente?

Ela calou.

Martírios e Augusta

Não sei por que, deu-me a vontade de voltar aos Martírios, passando pela Augusta, olhando o
celular bestificado como se ele fosse um contador Geiger tentando me mostrar a radiação das
coisas que passavam na minha frente. Por um momento cri que as pessoas me olhavam como
se fosse um anacronismo ambulante pelas ruas do Recife e até as frases do locutor do rádio
pareciam querer me dizer algo que eu não conseguia apreender. Minha sombra se esquivava
do calor e do sol fazendo uns trejeitos estranhos, dizendo para eu tentar esquecer a morte do
meu amigo e jogar fora o papel que o Velho havia me dado. Eu queria esquecer tudo, comprar
um gravador novo, talvez fotografar a igreja dos Martírios, tomar um porre e rir com o
Esteves. As tardes balançam as mãos translúcidas que abanam as areias de um breve pátio, as
ruas que não mais são, as ilusões dos sonhos feitos pesadelos, as luzes das casas fechadas, das
cerimônias perdidas pelo olho que se esgueira por sobre seu próprio piscar. Continuei
caminhando, na vã tentativa de que os meus passos fizessem extinguir as frases que o rádio
cuspia e que o sol não crestasse minha sombra, que segurava em sua mão algo parecido com
um gravador, o meu que tinha explodido no dia em que passei por tantas bizarrices. Entrei na
Igreja olhando a cadeira em que o Velho se sentara e vi um outro papel no chão. Peguei. E
levei para casa.

Falenas nas lâmpadas

Olhei as falenas assombradas passarem por cima das minhas coisas e irem falecer queimadas
nas lâmpadas. Olhei minhas mãos trementes por cima de um monte de fotografias borradas.
Olhei a tarde se esvaindo no caminho entre minha mesa, um copo de água com sal na quina da
sala e a janela que abrigava um filhote de pombo morto, provavelmente caído de alguma
calha onde sua mãe fizera seu ninho. E ouvia ao longe o chacoalhar de inúmeras castanholas
provavelmente sacudidas por crianças vestidas de papangus pretensamente assombrosos que
se divertiam nas ruas. Lembrei-me de uma história que uma vez Drieu me mostrara; ele
mesmo tinha escrito um conto de horror no qual uma jovem, na volta para casa depois de uma
noite de bebedeiras no carnaval de Olinda era abordada por quinze desses papangus (ocorreu-
me saber que aqueles arlequins pobres eram chamados de clóvis em alguns outros lugares)
que, armados e excitados a cercavam. Diziam, nosso carnaval é contigo, gatinha. Ela tentava
correr, mas era rapidamente cercada. Jogava seus pertences na cara mascarada deles, pedia
pela alma da sua mãe que eles não fizessem nada. Mas, sem usar outra arma que não a do
medo, tiravam a roupa dela, a acariciavam libidinosamente em meio aos gritos de desespero
enquanto completavam a sevícia cantando velhas canções de carnavais, fartando-se do sangue
que ela vomitava e que saía pelas pernas dela como filhotes de tremedeiras e tristeza. O conto
acabava com a imagem perdida na retina da menina, de roupas coloridas, losangos verdes,
vermelhos, pretos e amarelos: o céu cinzento da manhã e uma borboleta que inadvertidamente
pousava em seu nariz, enquanto ela dizia, meu Deus e percebia resquícios de seu espírito
escorrerem pelos seus dedos e sua consciência embriagada vendo seu corpo profanado agora
não mais por sua vontade, depois das orgias de um encontro de amigos numa casa em meio à
folia. Drieu ria. Eu, sem querer, ria, lembrando do olhar perdido do amigo agora morto. Ele
dizia que imaginava aquela borboleta, com a outra parte da alma dela se perdendo numa
lâmpada de mercúrio de um poste de iluminação: ele passara a noite toda apagado,
acobertando outras profanações do grupo fantasiado. Mas acendera justamente naquela hora.

Em casa, lembrando isso tudo novamente, eu ri. Lendo o papel que recolhi na igreja e que me
dava um endereço de alguém que morava na Manoel Borba. Talvez algum devoto do Bom
Jesus dos Martírios que, contraditoriamente, trabalhava com distribuição de cigarros. Alguém
com a alma cheia de culpa que passara por lá em busca de indulgência, só para cometer mais
pecados.

Peguei minhas coisas: minha pistola e o mp4 que também gravava coisas. Não como o meu
velho gravador de fita-cassete, mas servia.
A noite da devoção

Ao longe ouvi novamente os metais de alguma orquestra que balançava os esqueletos de


centenas de foliões bêbados. A rua, àquela hora, com pouco trânsito e as árvores que de dia
faziam sombra para os pedestres era erma e estranha. Alguma coisa me dizia que eu poderia
saber algo não somente sobre a morte do Drieu, que por um desses clichês que tanto detesto
não tinha sido de morte morrida, mas de morte matada: apenas para garantir o mistério dos
meus dias, mas também sobre o que o Velho me pedira, e que pudesse me mostrar o motor
dos acontecimentos que mataram o tal Meyer e o sumiço do casal. Aproximei-me do porteiro
dizendo se poderia subir, mostrando a carteira de cigarros. Sabe-se lá por que ele
simplesmente assentiu com a cabeça e não impôs empecilho algum. Talvez me julgasse
negociante de cigarros também ou algo parecido. Subi as escadas, resignado, a inventar
alguma história mirabolante. Bati na porta e quem atendeu foi uma mulher com um ar
apalermado e com um cigarro na boca, perguntando se havia algum problema, para eu estar
ali à sua procura. Mesmo sem eu dizer nada.

— Eu quero saber se é possível...

— O quê? Eu não sou puta para atender homens a essa hora!

Olhei rapidamente para o interior do apartamento: tudo muito limpo e arrumado, a nota
estranha era uma das paredes ser amarela, uma ser verde e outra ser vermelha. Ela me olhou
longamente e o papel estendido em sua direção.

— Pensei que você ainda trabalhasse com isso. Ou tivesse ainda contato com o Velho, ou
mesmo com o Drieu...

Ela sorriu, inabalável, soprou a fumaça do cigarro me mandando entrar. Estive na igreja sim,
disse ela, ando devota demais, depois uns acontecidos... Perguntei-lhe dos cigarros, ela disse:

— Ah, trabalhei sim negociando. Era gerente de vendas da S.C. de Afogados. Lá conheci um
casal estranho, que acabaram me apresentando ao Drieu e sua namorada.

— E o seu contato com o Drieu, foi somente profissional?

Ela baixou a cabeça, disse que não, eram amigos, ele tinha segurado umas barras dela...
Depois, o convite inusitado:
— Você chegou na hora em que exorcizo meus fantasmas... Ora comigo?

Em meio a velas e terços — o carnaval na rua começava a despontar. E eu, o ateu mais crente
do universo, tentava fazer as pazes sabe-se lá com quem, por conta de uma doida que não
largava o cigarro da boca, no meio daquela sala colorida.

O Inferno

A garota dormia a sono solto após cair de joelhos: não sabia que preces entonteciam. Acabei
saindo sem saber nada demais. Apenas uma falena de um tamanho incomum esbarrar no meu
peito quando saí de lá. E uma sensação de que palavras, suspiros e respirações viviam em
revoada por sobre minha cabeça. Eu via então que tudo parecia ser um equívoco tremendo: eu
precisava achar uma ocupação melhor para minha vida para tentar encobrir uma sequência
interminável de frustrações. O Velho havia pedido uma coisa que a cada passo que eu dava
estava cada vez mais distante. A rua parecia uma extensão de mim mesmo: meios-fios repletos
de lixo, esgoto estagnado, um ou outro carro perdido, faróis baixos, buzina tentando espantar
os passos dos parcos transeuntes. O significado da palavra mistério parecia estar
quadruplicado em suas nuances em cada dedo passado na testa para enxugar o suor que
escorria por conta da caminhada. Quanto mais eu andava parecia cercado por personagens e
espectros, pedregulhos de pesadelos assomados em varandas e que caíam subitamente ante
aos meus passos temerosos dos equívocos da minha vida plena de estranhezas, solidão e uma
inabalável desenvoltura para com os dias. Um piscar de olhos ante a luz do oftalmologista ou
das lâmpadas dos postes insones que perscrutavam aquelas luminosidades verdes, vermelhos,
amarelos e nos pingos pretos do asfalto enlameado. Até ele parecia se cobrir de sombras como
um vestido noturno e levantava-se tentando algemar meus calcanhares. Achei cigarros nos
meus bolsos, mas quem os colocara ali? Olhei para trás e as luzes verdes, vermelhas e
amarelas escorriam pelas frestas da noite, cobrindo muros e vitrines de óticas da Manoel
Borba, me seguindo. Tentei correr, mas algo no meu eu dizia para ficar à espreita da primeira
esquina. Não consegui chegar à praça: um tapume de borboletas noturnas impedia minha
passagem. Os fones de ouvidos do mp4 começaram a despejar palavras desconexas no meu
ouvido, como se captassem o flapear das asas ou o hálito dos seres que eu percebia aos
poucos saindo das quinas das paredes do casario antigo. Peguei minha pistola e comecei a
correr no sentido contrário, para pegar outra rua: julguei ter visto um riso engasgado pelo
escárnio perto de um poste e este riso era o do Velho. Não olhei para trás, mas ouvi o farfalhar
de roupas misturados a passos que correm por cima de sapatos acolchoados: continuei a
correr. E eles continuaram a vir atrás de mim. Até que tudo parou. E vi luzes refletidas nas
lentes dos óculos da devota. Ela me esperava na frente do prédio dela, ao qual, sem querer,
acabei voltando tangido pelo medo. Disse, vem aqui, logo. Peguei em sua mão e a segui. Mas
não subimos de volta para o seu apartamento: ela levou-me para dentro de vielas de postes
apagados por onde se via, com muita caridade, algumas estrelas. Corremos como loucos, mas
nenhum vestígio, atrás de nós daqueles espectros que se derramavam na rua: lesmas
luminosas de olhos faiscantes. Até que ela parou, pôs as mãos na cabeça, sapateando sobre os
próprios pés como uma doente de coréia e gritou. E o seu grito era uma torrente de desespero
e dor de alguém assombrado por milênios de assombrações. As coisas pareceram assustar-se
com o imenso “Desapareçam!” que saiu daquela boca de lábios finos. Só ficamos eu, a
escuridão da rua, e as parcas estrelas no céu. Eu, que estava sentado estarrecido, pistola à
mão, debrucei-me para colocá-la no meu colo e, enfim, perguntar, quem era ela.

— Você ainda não me reconheceu? Você já leu sobre mim...

A fuga das horas

Rute na verdade conhecera Drieu numa festa estranha, em que o Velho se materializava como
Lot e suas filhas praticavam sexo com ele para uma platéia seleta. Ela vira um filme qualquer
em que mascarados se escondiam para praticar pequenas perversões e uma amiga, assídua
freqüentadora dos convescotes promovidos pelo Velho. Enquanto ela limpava os óculos
pensei em perguntar se o que Drieu escrevera no conto correspondia a alguma realidade. Mas
o ar cansado e coberto de um pânico constante fez-me compreender que além daquelas
lâmpadas refletidas nas lentes dos óculos havia muitas outras verdades. Ela só disse, com um
certo ar de riso triste, que a namorada do Drieu não gostou dela, uma vez que, num dia
qualquer ele dera preferência a ela. Enfim. Mas se por acaso a namorada dele estivesse
envolvida com algo, o que raios eram aquelas pessoas que nos seguiram? Eu segurei Rute
pelos ombros e perguntei. Ela chorou e calou. Deixei-a em casa. Antes de ir embora pareceu-
me que os relógios brigavam com as paredes, que os ponteiros corriam para buscar algo
perdido no caminho percorrido por eles, de horas fugidias, de horrores incrustados nos
corações dos minutos mortos.

O mistério anda no mistério

Esteves estranhou o meu sumiço. E disse que ele mesmo havia percebido uma mudança no ar
da cidade. Brincando, falou que era culpa minha. E olhou para mim, meio desconfiado,
perguntando da minha sombra. Eu olhei e não a vi. Provavelmente algo de grave acontecera
naquela rua em que Rute gritara para aquelas coisas irem embora. Esteves perguntou se eu
sabia de algo do Velho, que alguns meganhas estavam procurando-o. Por conta de quê?,
perguntei. Quem sabe?

Fui para casa. Buscando nas trilhas do meu caminho sombra da minha sombra. Entrei como se
fosse um peregrino que estivesse perdido farejando as familiaridades do regaço esquecido. O
apartamento jazia imerso numa atmosfera estranha, como se passos e hálitos tivessem
passeado por ele. Pus a mão na pistola, como se ansiasse encontrar luzes piscando ao redor
das minhas coisas, se debruçando nas varandas do meu medo, para abduzir minha essência.
Fui vasculhar a cozinha, o corredor. Parecia que vozes minúsculas escorriam pelas paredes: e
eu me assustei. Olhei para trás e o piscar das luzes da rua pararam subitamente. Eu parei
subitamente. Parecia que o balançar de uma barba idosa me aguardava em cada porta do meu
apartamento. E eu pensei, que merda de vida, onde está a normalidade com a qual sempre
pensei que pudesse encontrar? Esperei bater de portas. Não vieram. Esperei aparições
horrendas. Não vieram. Esperei gritos e sussurros. Os gritos se guardaram no piscar extinto
das luzes das ruas. Os sussurros, comecei a perceber carregando minha sombra alquebrada
que ficou dormindo perto da sombra do sofá. Calei-me esperando o que eles queriam.
Pareceram-me hipnotizar escalando meu corpo em direção ao meu ouvido. E cortando minha
pele e meus arrepios disseram-me. Fuja. Você está perto demais. Perto demais. Perto demais.
O mistério anda no mistério. Basta.

Constatação

Amanheci com um gosto de medo na boca. Pelas frestas da janela percebi serpentinas sendo
levadas pelo vento com sobras de orquestras e confetes e gritos de uma euforia fingida. E as
vozes ainda ecoavam me confundindo: afinal, eu, longe de tudo, como poderia estar perto de
algo/alguém? O telefone tocou, surdamente: era o Esteves que me chamava. Tomei um banho
ligeiro e fui, mesmo em meio à confusão colorida das ruas, do cinzento da minha alma.
Pressentia algo tristonho. Milhares de pessoas caminhavam, festejando, alheias aos meus
pressentimentos e ao compasso diferente que acontecia no meu coração. Fantasiados
entravam no bar do Esteves que me viu e sorriu.

— Bom te ver bem. Soube do fato?

Não, não sabia. Esteves disse que encontraram o corpo do Velho e da sua filha num velho
casarão da Rua Dias Cardoso, justamente próximo da Igreja dos Martírios. E que lá ainda
estavam, por conta do carnaval o IML ainda não tinha mandado o carro recolher os corpos.

Evadi-me dali ciente de que estava ainda mais longe de alguma solução plausível. Em dez
minutos, sentindo-me observado por olhos foliões que não compreendiam o meu passo
apatetado. Vi o casarão abandonado e um pm dormindo dentro da viatura. Subi. Pelas escadas
via ao longe uma massa de cores feitas gente caminhando pela Nossa Senhora do Carmo.
Festa. Ali, um leve bater de asas de borboletas insones que dormitavam no madeiramento
estragado do casarão colonial. Na sala vi o cheiro de gente pútrida e sangue derramado. O
Velho jazia nu, com os órgãos extirpados por uma navalhada certeira. Sua filha, também nua,
tinha a garganta cortada e sangue escorrendo pelo meio das pernas, além de marcas de unhas.
Olhos abertos. Baixei-me até eles: podia ver resquícios de lantejoulas verdes, pretas,
vermelhas, amarelas. Como ao lado do corpo dela: fiapos de seda rasgada e impregnados de
suor e de desespero. Tudo ficou muito claro. Pelo menos eu achava.

Pisca-luzes

22h. As ruas fediam a mijo, cerveja e a éter. Faltara energia. Cânticos e gritos andavam de
braços dados no Centro no meio da escuridão que era quebrada por sucessivas voltas das luzes
da iluminação pública. Eu sentia passos alcochoados correrem pelas calçadas tentando
alavancar meu medo. Eu coloquei a pistola ao meu alcance. Quando dei por mim estava perto
da casa da Rute, que, iluminada por uma canção silenciosa se destacava no meio do
entorpecimento do mundo. Subi a passos curtos cercado por falenas perscrutadoras do meu
sorriso, dos meus pensamentos... Chegando ao apartamento da Rute inúmeras pessoas iam e
vinham em uma nudez perturbadora de corpos pintados com losangos coloridos, numa orgia
de sussurros e canções respiradas pelos tubos de lança-perfume... Rute apareceu na sala,
também nua, com sangue sobre o corpo coberto de lâmpadas sobre as quais as falenas se
lançavam junto com os arlequins que a acariciavam. Luzes inebriavam e me entonteciam.

— Por quê?, perguntei, sem outra alternativa.

Enquanto tudo se apagava, e tudo sumia dentro de uma folha que jazia num canto da sala,
ainda a ouvi dizer.

— Eu não peco. Me equivoco.

Acalanto

Jurei a mim mesmo que cada despertar seria um exercício contínuo de olhar céu, olhar
espelhos, abstrair os pesadelos que se debatiam nos travesseiros e imaginar-me alguém mais
completo, ainda que diluído no imenso lodaçal que minha vida se tornara.

Alguns personagens dela praticamente se esvaíram, qual areia de ampulheta que corre pelas
mãos que a quebrara.

Tentei não imaginar o quanto ruas e praças, rostos e ilustrações que eu fazia em momentos de
resignação, palavras de páginas perdidas e as gravações nas quais eu deixava minhas
impressões acerca de cada trabalho em curso estavam estranhas. Eu tinha me perdido e estava
desacostumado desta nova persona que as coisas tinham exigido que eu me tornasse. A
credulidade misturado ao meu ceticismo tinha me transformado numa espécie de ser híbrido,
minotauro sem labirinto, centauro sem conhecimento, que andava a vagar por aí, como se em
algum momento eu achasse uma flauta na rua e saísse depois cambaleando como um sátiro
bêbado.

Peguei as anotações que a cliente tinha me passado. Algo desse tipo já tinha acontecido antes
e eu me precavia como podia, guardando pedaços de sanidade aqui e acolá, como quem se
presta a ser guardião de um quebra-cabeças extraviado, o qual algumas peças faltam, ou que
foram remetidas para longe para algum colecionador maluco que se contenta com coisas
inacabadas, fragmentos de saudade jamais findas.
O calor do Recife, pra variar, parecia penetrar nos ossos, aumentando meu mau-humor.
Olhava para as pessoas que passavam com ódio, imaginando-as todas vítimas de um massacre
desses que são cercados por mistérios ou como alguma das mortes que eu já presenciei, sem
explicação alguma ou movidas por um motivo imbecil. As ruas, então familiares, pareciam
me desafiar a redescobri-las, a sentirem uma nova motivação para (re)caminhá-las,
compreendê-las novamente como parte de mim, de tantas coisas pelas quais passei nas
madrugadas repletas de insônia e dor. E medo ante ao que me encostava às paredes da razão,
noites de longas facas, intermitências e procissões fantasmagóricas.

O horror, o horror pensei enquanto ria do óbvio.

Eu não imaginava, mas encontraria de novo com ele.

Ela foi uma parte que se deslocou de mim. Ela foi um momento de insanidade da qual jamais
me curei. Um parto seguido por uma eclampsia. Uma noite refletida nas dobras do rio onde
afoguei esquecimentos e moleques de rua. A fome dolorida de recordações da minha infância
pobre. Adeus perpetrado em tardes de pátios ensanguentado durante a revolta reprimida e eu
era um dos opressores. Ela acabou sendo também o próprio caminhão que a esmagou. Tinha
essa estranha capacidade de impregnar as coisas. Eu um dia fui ela, mas ela morta, eu já não
sou mais.

Sorri tristemente. Nós ambos olhávamos as pontes ao longe, do alto do prédio. Ele, ali, nem
lembro por que. Eu, tentando imaginar por onde começar, tentando me desvencilhar das gotas
da chuva temporã.

Vida dura, não?

A minha? Sempre.

E por que simplesmente não sai dessa e parte pra outra? Ficar catando invisibilidades,
explicações plausíveis dentro de uma caixa de Pandora, não é vida...

Eu sou um natimorto.

Ele se calou e ficou ali, imaginando as cores da face de sua namorada desaparecida. De certa
forma senti um desapontamento íntimo. Meu coração não tinha raízes senão dentro de minhas
próprias entranhas, nunca ousou em lançar-se em busca de uma cumplicidade tal que pudesse
fazê-lo mais colorido e menos seco. E jamais ele fora objeto de desejo, senão de vampiras
almas que aterrorizaram-no em desventuras contínuas, pesadelos tatuados na carne crua,
filhotes de sangue frio, telas de gelo cruzadas sobre o meu peito já acostumado a macabras
exposições de cotidiano duvidoso.

Me diz uma coisa: por quanto tempo aquelas coisas aconteceram por aqui?

Ih... e ele cuspiu algumas palavras que eu não ouvi ou que ele não as queria inteligíveis Já
ouviu quantas vezes o significado da palavra "sempre"? Há coisas que são ancestrais, meu
caro. São reflexos pálidos de coisas que estão por acontecer. Quando elas acontecem o seu
sentido de permanência ganha o lugar de perenidade. A faca que esmaga as vísceras, o beijo
mordido que pede sangue aos lábios. O grito do desesperado ao inevitável... Você olha os
resquícios de assombro nos degraus, nas paredes, nos teus próprios ouvidos que se aguçam e
colhem nas correntes de ar restos de suspiros. Tudo fala por si só. Como um buraco no
espelho que, dizem, há no famoso quarto. E que dá medo e escuridão. Não essa escuridão
mansa que a gente vê correr por dentro do rio daqui de cima. É algo que desveste senso e
máscaras, como o ritual budista da porta mental. Você dá um passo e se vê em meio ao
desconhecido que se abre pra ti, deixa de ser desconhecido, mas faz de ti um desaparecido.

Bobagem, falei para mim. Deixei ele com o panorama das pontes e desci.

Lembrei do meu gravador. Talvez ele tivesse um pouco de mim. Mas talvez tivesse mais
daquelas horas cruciais, até que vozes e facas o fizeram em pedaços. E li o que ela havia me
passado. Sorri. Parecia algo tão bobo e plausível que não hesitei em passar a mão esquerda na
parede. Mas... para quê? Uma eletricidade que não me parecia saída de alguma infiltração fez
meus olhos se dobrarem e minhas próprias palavras descambarem em desalinho boca afora.

Impedir!

Inútil. Corri para o térreo.

Ele estava lá.

Adormeci alguns dias depois. Antes, deitava na cama e ficava letárgico, vendo o trabalho
suspenso e aqueles corredores me chamarem para tentar entender tudo que acontecera não
somente naquele dia, mas no acontecimento que deflagara a curiosidade da minha cliente e
que fizera minha presença lá. As ruas zombavam de mim, a febre zombava de mim, minha
solidão também. Mas era preciso ir até ali.

Sob pena de eu não ser mais eu.

É complicado definir alguma coisa quando você mesmo não consegue se definir. Perceber,
quando teus rumos estão imperceptíveis. Até a perdição consciente em que se estava vivendo
parece ter se derretido como cera de vela em altar. Sendo assim era impossível definir o
silêncio, definir o vácuo em todas as cavidades do meu espírito, definir o cheiro de mofo
misturado a incenso, classificar as luzes e os sons que vinham da rua e pareciam unir-se em
uma tosca miscelânea dentro daquele prédio.

Eu tinha ouvido alguns boatos. Esteves mesmo tinha me repassado alguns. Que uma coisa
extraordinária, arauto do pânico e do desatino, havia voltado, e que procurava algo ou alguém.
Tinha olhos estranhos e parecia ter um sinal indecifrável na testa. Um volume na boca que
grunhia palavras incompreensíveis. Imaginei que tivesse a ver com toda aquela minha
odisseia naquele apartamento horrendo, de facadas e gritos descontrolados. E que pudesse ter
alguma espécie de ligação com o ataque que minha cliente sofrera. Ela não me deixara falar
com ela, mas minha intuição entrevia algo de tremendamente grave naquelas letras bêbadas
da carta. Era como se eu pudesse ver alguém que não tinha mais o que mostrar senão as
palavras, algo de tangível de sua própria personalidade, pois - doentiamente, talvez - eu
supunha que ela não tinha mais rosto para se dizer ela mesma.

Acontece. A gente se perde de tantas formas. E é justamente nessas horas nas quais sentimos
falta de um tipo de acalanto especial, algo que ultrapasse o mero macaquear dos abraços, algo
que faça-nos negligenciar qualquer tipo de espelhos, uma vez que já saberíamos que somos
nós.

O porteiro me olhou subir com um ar preocupado e de desconfiança. Será que ele imaginava
que eu pudesse tentar alçar um voo patético como o meu desajeitado colega? Eu passava as
mãos nas paredes e julgava ouvir rumores de festas antigas, gemidos de transas perdidos,
resquícios de solidões e sonhos ruins. E como uma corrente de eletricidade começaram a me
tomar, me pôr nervoso, olhar para os lados, tentando perscrutar salas e suítes...
A Rua Velha decrepitava no lá-fora e de repente pensei que tudo houvesse parado, tudo
estivesse obedecendo a ordens esdrúxulas de onirismos recorrentes de madrugadas antigas,
como se eu tivesse feito aquele prédio, traçado aquelas ruas, colocado aquele silêncio para
tocar em sinfonia, ter criado aquele olhar que me fitava e que finalmente eu compreendia.

Era ele.

Morte e verdade. Verdade e morte. Não consigo me livrar desses olhos que emitem essa voz
que esfaqueia meus ouvidos e meu coração. Queria perguntar quem era "eu", mas percebi que
não tinha mais voz para perguntar. Só essa voz imbecilizada, nas minhas costas, no meu ser,
em uma ladainha sem fim. Tentei virar as costas, em um movimento que percebi muito rápido,
mas também terrivelmente lento como um perceber o pouso pausado de uma mosca
sonâmbula e sua sombra na imensidão de um pátio em penumbra. O peso de um braço que
grunhia sandices e meu corpo jogado ao chão. Uma plateia silenciosa e estática me olhava
estranhamente. Um casal que se amava loucamente em meio a uma procissão de carneiros
cegos que trotavam balindo alegremente. Enquanto o casal gemia descontrolado e arlequins e
pierrôs cantarolavam algo indecifrável. A mulher soltou-se do seu homem e correu
desesperada pelas bordas daquele pátio, chorando. E suas lágrimas teciam um manto que se
dispersava por sobre as costas dele. E ele me olhava. Não dizia nada. O rosto era duro,
marrom. Na testa o sinal. Morte e verdade. Verdade e morte. Isso tudo vinha à minha mente
como um enigma decifrado que eu não conseguia assimilar. Alguns personagens o
empurraram de lado, como que o dissuadindo de qualquer violência maior que ele pudesse
fazer a mim. Eu fechava os olhos, mas enxergava nitidamente aquela vermelhidão que se
anunciava no meio da escuridão do seu rosto. Parecia que aqueles olhos me condenavam a
solidão, a minha conduta, o meu desamparo. Por um momento senti-me sugado e invadido,
como se tudo aquilo também fosse eu. O vagar sem rumo, uma certa falta de escrúpulos, o
estar ao largo. Mas ele me condenava. Eu não o compreendia. Algumas pessoas que eu
buscava apareceram e sumiram num vaporoso lago aberto no vácuo. Eu tentei gritar, mas ele
apertou minha boca e me jogou contra o chão, ao passo de que aquelas criaturas me
defenderam mais uma vez, mas ele jogou-as longe e veio decidido a destruir-me.

Fogos espoucaram no céu. Chuva começou a bater nos toldos de alumínio. Gritos vinham da
rua. E tudo começou a subir e a descer num torvelinho incrível. Eu me lembrei da noite das
facas. E imaginei o nome da morte na minha frente. E pensei na verdade daquilo tudo. Ele
recuou assustado. E correu.

Fiquei ali, chorando. Imaginando o que poderia acontecer se eu dormisse e não acordasse.

Recife é uma cidade claustrofóbica. Anacrônica. Minha alma passeia por ela como um medo
perpassa a espinha, dando aquele frio que desconcerta mesmo nos dias mais quentes. Sempre
tive medo de que as amarras recifenses se partissem e cada pedaço dela se perdesse no infinito
como barcaças atlântidas, distribuindo saudades pelo mar, até às inacessíveis praias onde
porventura pudessem chegar. Na verdade era um misto de medo e desejo. Sempre tive um
profundo ódio pela deselegância das pessoas que insistiam em destruir a elegância da cidade,
da feiúra da miséria que pontilhava esquinas e becos, da solidão profanada por sons estranhos
ao meu alheamento, dos questionamentos estrangeiros à minha vida sem sorrisos.

Os corpos foram aparecendo aos poucos. Perto da Rua do Aragão, no caminho do pátio da
Santa Cruz. Na Travessa do Arsenal de Guerra. Na Rua do Sossego, antes do cruzamento
com a Princesa Isabel. A minha sensação era de um fracasso imenso. Ia ter com o Esteves,
ficava bebendo sem ouvir música, imaginando o estertor de crianças sendo partidas ao meio
pelas mãos dele. O olhar agoniado da mulher violentada. A pancada certeira na nuca, o
pescoço quebrado do jovem que se dizia bruxo.

Tinha devolvido parte do dinheiro como combinado, sem ainda entender o porquê daqueles
espectros terem me dado uma espécie de sursis para carpir aquelas horas. Esteves somente me
fitava, tentando destrinchar o que ia no meu silêncio.

Saí dali.

Aquele olhar que parecia uma ausência de olhar impregnava meus passos, amplificando
minha paranoia, me impedia de alcançar o caminho de casa, fazia-me cúmplice da
proximidade de minha própria morte adiada. Eu precisava gritar, sair daquele torpor,
encontrá-lo de novo, pedir para morrer ou matá-lo, sabe lá de que maneira...

Decidi voltar àquele lugar.


Pensei que alguma espécie de música pudesse estar entremeada com o tempo ou mesmo com
as luzes que porventura entrassem em meu coração ou na penumbra daquelas paragens. Só
assim o silenciar poderia ser algo praticado com mais doçura, algo mais suportável do que
ouvir dedos estalando, passos estucados no ranger de pisos emborrachados. Meus dedos
procuraram subitamente nos meus bolsos cigarros invisíveis e por um momento julguei ter
visto vapores correrem das quinas das paredes, em um sutil gargalhar, carregando parte da
minha essência, levando-a a instâncias mais urgentes do meu universo, colocando-me como
assistente de algo improvável, testemunha ocular de milhares de segundos em desalinho,
descronometrados da minha própria concepção de tempo. Imaginei-me escrevendo tudo isso e
não cabia mais do que em um parágrafo, como se tudo coubesse mais do que num versículo in
principio creavit Deus cælum et terram. Vi que alguns corpos, outrora imperceptíveis,
desprendiam-se de covas inexplicavelmente cavadas no assoalho, dos umbrais, das paredes...
Alguns ainda semidecompostos, com um sorriso patético nos lábios descarnados, pareciam
certificar a minha incompetência. Outros, alvos como o sorriso da Morte, eram caveiras
brilhantes em sua própria insistência em serem eternas: es quia pulvis es et in pulverem
reverteris. Olhei para minhas próprias mãos e elas, para minha surpresa, revelaram a dor do
meu cadaverismo. Tremi. Mas continuei. É difícil ser ímpar. Tentar encarar a magnitude de
tudo isso que nos prende a apartamentos nomeados vida sem que além do reflexo que vemos
não há outra entidade que sorria e nos encerre nos braços que nos conduzirão à cama, para a
cumplicidade, o acalanto e o gozo. É complicado sermos fantasmagorias do tempo que nos
desconcerta e transforma voltas alavancadas por engrenagens em roldanas que movimentam
uma roda de tortura. Ele surgiu naturalmente, sem sobressaltos, mas com a mesma aura de
vontade de destruição: et ait faciamus hominem ad imaginem et similitudinem. Como falar
com ele? Apenas desarmei o meu espírito e as minhas mãos. Mostrei que a minha pistola
estava descarregada. Verdade e morte. Ele pareceu desdenhar de minhas atitudes. E naquele
momento eu fui todos os assassinados, todas as vidas passaram diante de mim ejecitque Adam
et conlocavit ante paradisum voluptatis cherubin et flammeum gladium atque versatilem ad
custodiendam viam ligni vitae. Vi que tudo que eu tinha feito tinha sido em vão, destituído de
mim mesmo. Ainda que as primeiras palavras que eu vi dele caírem da sua boca e em sua testa
a verdade virar morte, era tarde demais. Sempre é. Ego Alpha et Omega primus et novissimus
principium et finis.

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