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Sujo e sombrio – o esconderijo do ouro

Alcione Nascimento Tinôco

Artigo apresentado ao Instituto Junguiano de Brasília (IJBsb), em 2017,


como trabalho do Curso de Psicologia Clínica de Orientação Junguiana.
SUJO E SOMBRIO – O ESCONDERIJO DO OURO

Os alquimistas sabiam e avisaram que o tesouro mais valioso se encontra na matéria


que eles qualificaram como caótica, suja, obscura, informe, desprezível. Recomendaram o
trabalho paciente e corajoso com essa matéria. Disseram ser mesmo necessário adotar uma
atitude religiosa nesse trabalho. E avisaram que alguns perecem ao longo do caminho, pois ele
é perigoso. (Jung, 2012/1944; Raff, 2002; Edinger, 2006; Roob, 2014)

Christophorus Pariensis (citado por Jung, 2012/1944, pg. 360) afirmou que “No caos...
existe in potentia a mencionada substância preciosa sob a forma de uma ‘massa confusa’ dos
elementos reunidos”.

Jung (2012/1944, p. 357) explicou que ao penetrar nas áreas menos nobres da própria
alma a consciência corre o risco de ser subjugada por forças inconscientes arquetípicas que
exercem sobre ela uma atração muito forte a ponto de ameaçá-la com a desintegração da
personalidade, ou seja, com a fragmentação da psique em complexos, em “funções isoladas da
consciência”. É do pressentimento desse risco que nasce a resistência à descida às regiões
obscuras da psique no processo psicoterápico.

Entretanto, a transformação desejada por todo aquele que se compromete com o


próprio processo psicoterápico é resultado de um trabalho corajoso de conhecimento das áreas
sombrias, menos nobres, da própria psique. Trata-se de colocar as mãos na massa informe e
desprezível para encontrar ali o tesouro oculto.

Essa massa informe, inicial, foi denominada prima materia pelos filósofos pré-socráticos
que, desejosos de explicar a origem do mundo, buscavam descobrir a primeira matéria, a
matéria inicial que teria gerado tudo o que existe no mundo tangível. Assim, cada filósofo
levantou uma hipótese: Tales apontava a água como prima materia; Heráclito viu no fogo a
origem de tudo; Anaximandro nomeou esse elemento primordial de apeiron ou “o ilimitado”;
Anaxímenes preferiu nomeá-lo de ar. (Edinger, 2006)

Encontra-se na linguagem alquímica, por herança dos antigos filósofos, a expressão


prima materia. Roob (2014, p. 30) informa que os alquimistas a definiram como “o nosso caos”
ou “as tenebrosas massas informes” e buscavam descobri-la, protegendo-a como um segredo,
mas, ao mesmo tempo, dizendo ser muito fácil descobri-la, uma vez que ela se encontra “em
todos os elementos, mesmo na poeira da estrada, e embora, à semelhança de Cristo, ela seja na
realidade a coisa mais preciosa do mundo, para os ignorantes é a ‘mais miserável de todas as
coisas terrenas´”. Assim, segundo Roob (2014, p. 31), os alquimistas trabalhavam para alterar a
estrutura dos elementos materiais, transmutando-a, buscando trazer “o quinto elemento
aristotélico, a subtil quintessência” para a terra.

Como a ideia de uma matéria original não foi confirmada pela experiência, esclarece
Edinger (2006, p.30), “a idéia deve ser a projeção de um fato psíquico”. Assim, os filósofos
imaginaram que a prima materia havia se transformado e se decomposto em terra, ar, fogo e
água e que esses elementos, quando combinados, originavam os objetos materiais. Dessa
forma, eles atribuíram à prima materia “uma estrutura quádrupla, uma cruz, que representa os
quatro elementos, dois grupos de contrários: terra e ar, fogo e água.” (Edinger, 2006, p. 30)
Ainda Edinger (2006, p. 30) explica que “Psicologicamente, esta imagem corresponde à criação
do ego a partir do inconsciente indiferenciado mediante o processo de discriminação das quatro
funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição. ”

Raff (2002, p. 38) cita Coenders, autor da obra “Escada dos sábios”, exibindo duas
imagens circulares: a primeira delas representa a “confusão do início da obra”, ou seja, o
momento inicial em que o material que passará por processos alquímicos encontra-se em
desordem, malformado, sem conexão entre seus elementos. Representa “o caos da psique
antes do início da alquimia interior” (Raff, 2002, p. 41). Em meio a esse caos, a figura exibe um
ponto no centro que representa “a imagem do si-mesmo latente e a promessa de crescimento
futuro” (Raff, 2002, p. 41). A segunda imagem refere-se à ordem resultante da grande obra,
uma vez que o Si-mesmo manifestado estabelece a harmonia entre os elementos e faz com que
tudo se movimente e se concentre em um ponto central que é representado pela imagem de
uma deidade relacionada ao Cristo.

Assim, Raff (2002, p.38) afirma que “Podemos ver a prima materia como o si-mesmo
latente com que o si-mesmo manifestado é criado...”.

A prima materia contém o alfa e o ômega do processo de individuação. É a partir dela


que tudo começa como caos, mas desde o início já se encontra também nela o ouro que espera
ser descoberto sob o material aparentemente desprovido de valor. E, portanto, retorna-se a ela
no final do processo, quando as transformações pelas quais passou produzem algo valioso, faz
surgir a pedra reluzente e indestrutível que poucos suspeitavam jazer sob a massa confusa e
caótica do começo.

Descobrir a prima materia, trabalhá-la, submetê-la a transformações até sutilizá-la,


trazer ao mundo material e fazer nele existir o que só existe no mundo divino: eis o trabalho do
alquimista. Para isso, era preciso descobrir o material adequado e fazê-lo passar por diversas
operações até que fosse possível criar a Pedra Filosofal ou o Elixir da Vida. (Edinger, 2006)

Ao estudar a alquimia, Jung percebeu que a descrição das operações a que o metal
comum era submetido, passando por sucessivas transformações, era uma metáfora para o
trabalho com a psique. Segundo Jacobi (2013, p. 242), Jung chegou a afirmar que a corrente
espiritual da alquimia foi um “pré-estágio gerador da mais moderna psicologia”.

Concordando com Jung, Edinger (2006, p. 32) afirma que descobrir a prima materia
corresponde a descobrir “o material de trabalho na psicoterapia” e, com base nos textos
alquímicos, explica as características que ela apresenta, traçando um paralelo com a
psicoterapia: é ubíqua, ou seja, está em toda parte, na vida cotidiana, nas reações emocionais,
nos humores aparentemente sem importância; tem uma aparência exterior desagradável,
apesar do seu grande valor, o que significa que ela é encontrada na sombra, nos aspectos menos
nobres e mais dolorosos da personalidade que precisam ser conhecidos e trabalhados pelo
indivíduo; é múltipla, ou seja, corresponde à condição fragmentada da psique que,
gradualmente, é conscientizada pela pessoa ao longo do processo psicoterápico para, mais
tarde, ter os seus fragmentos percebidos como aspectos de uma unidade; é indiferenciada, sem
forma, sem limites definidos, o que significa que a experiência do inconsciente faz com que o
ego se arrisque e tema perder o controle e se dissolver em busca da ampliação de seus
horizontes.

Assim, desde o início do processo de análise, é preciso que o terapeuta saiba colocar
todo o seu ser na escuta que o ajudará a ouvir, a ver, a sentir e a apreender de maneira mais
sutil aquilo que, no discurso do paciente, esconde ou revela a prima materia, o material psíquico
que uma vez identificado como central em suas questões passará por sucessivas transformações
para que aquilo que há de mais essencial, original e inteiro na psique do analisando se revele
em sua existência.

Nesse trabalho, o conteúdo psíquico é cozido, submetido ao fogo das emoções cuja
intensidade o analista precisa saber dosar. Ao passar pela operação da solutio, ele é dissolvido,
ou seja, tem o seu estado material desfeito, sua primeira forma desaparece nas águas que tantas
vezes se expressam no choro e aparecem nos sonhos do paciente como banho, aguaceiro,
imersão, natação ou no batismo que purifica pela total imersão do corpo e simboliza o retorno
ao estado que precedeu a forma inicial da matéria. Assim, a morte por afogamento é seguida de
renascimento. Na água se dissolvem as diferenças entre os elementos separados como se
encontram na prima materia. Também é pela água, num estágio posterior do trabalho
psicoterápico, que ocorre a mistura do corpo e do espírito ou da dissolução do corpo para que
o espírito se consolide. (Edinger, 2006; Hilman, 2011)

Em outro momento os conteúdos psíquicos são calcinados, ou seja, passam pela


calcinatio ao serem submetidos ao fogo até que seja retirado deles todo o líquido e reste apenas
a matéria seca esbranquiçada, a cinza branca que, dependendo do estágio da obra, representa
tanto o desespero e o arrependimento quanto o corpo incorruptível que sobreviveu ao
sofrimento que o purificou. Nesse processo, o paciente experimenta emoções intensas, fortes
desejos de prazer ou poder, frustrações desses desejos até que a matéria seja purificada de sua
identificação com o ego e, num estágio mais aprofundado do processo psíquico, fique de certa
forma imune à umidade dos afetos, das emoções. Nesse processo de calcinação, são frequentes
imagens oníricas de incêndio, devoramento, fornos, cremação, inferno, refino de substâncias e
sal, entre outras. (Edinger, 2006)

Quando passa pela coagulatio, o conteúdo psíquico é concretizado, ou seja, é ligado ao


ego, ganhando um corpo. É a operação do elemento terra, do que é fixo, do que tem peso. Nela,
o paciente sofre com as atribulações da vida, de forma que a batedura (pg. 102) a que sua
personalidade é submetida termina por solidificar sua personalidade. Nesse processo, ele pode
passar por depressão ou por compulsões, tomar consciência de suas limitações, deparar-se com
a realidade que o entristece, que desfaz suas fantasias, que o obriga a assumir
responsabilidades. As imagens relacionadas ao processo da coagulatio incluem terra, corpos,
casas, carne, roupas, cera, comida, agitação, prisão, culpa e crime, queda, descida, crucificação,
santa comunhão, diamante. A coagulatio tanto pode resultar na tomada de consciência dos
próprios desejos egóicos e da aceitação de limitações a eles quanto na expressão final do
espírito, no alcance da meta da individuação quando o Si-mesmo se manifesta na vida. Nesse
processo, toma-se consciência dos próprios desejos, do próprio ego. (Edinger, 2006)

Outro processo é o de sublimação, ou sublimatio. Nele, o elemento ar simboliza a


volatilização de um corpo inferior. Um sólido que foi aquecido dentro de um recipiente passa ao
estado gasoso, sobe até a borda e lá torna a se solidificar, agora em um estado mais frio. Ou
seja, após sofrer a calcinação, consegue-se lidar com um problema de outra forma, vê-lo de
maneira objetiva, posicionar-se “acima” dele para compreendê-lo melhor. As imagens
produzidas pela sublimação são de movimento ascendente em escadas, elevadores e
montanhas. Também surgem imagens de voo, de pomba branca, de torres e levitação. Assim,
na sublimação, sem nenhuma canalização intencional de libido, o indivíduo vive uma
transformação alquímica que lhe permite ver as situações difíceis da vida a partir de uma posição
elevada, a refletir sobre si, o que possibilita a ampliação da consciência. Assim, na sublimatio
inferior, a elevação é seguida por uma descida, enquanto na superior ocorre uma transformação
permanente da consciência, a percepção da totalidade. (Edinger, 2006)

Assim, a prima materia pode ser encontrada no sofrimento de uma depressão, na


dificuldade de amar ao outro ou a si mesmo, nas compulsões por comida, drogas, compras, sexo,
roubo ou tantas outras, na falta de confiança na própria capacidade profissional, na dúvida sobre
que profissão escolher, na dor resultante do abuso sexual ou da violência simbólica... Enfim, em
diversas formas de sofrimento que colocam o analista em contato com a escuridão das mazelas
humanas. Em cada uma delas ele precisará identificar a questão que perpassará todo o trabalho
alquímico do paciente e seguir com ele, colocando luz aqui e ali, aumentando ou diminuindo a
intensidade do fogo, recolhendo as cinzas, presenciando respeitando a transformação de que
cada um é capaz. Para não se perder nesse trabalho, ele precisará manter a consciência de que
em meio à massa confusa do sofrimento está a pedra preciosa que aguarda ser revelada pelo
trabalho árduo de lapidação. É por meio do trabalho com os quatro elementos que se permite
a “diferenciação das quatro funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição.” (Edinger,
2006, p. 30)

Todo esse trabalho significa uma tomada de consciência sobre “os aspectos... de nós
mesmos que gostaríamos de fingir que não existem ou que... não têm efeito sobre nossa vida...”
(Hopcke, 2011, p. 95), o que é o mesmo que conhecer a nossa sombra, uma parte inconsciente
de nossa identidade, nem sempre realmente negativa, que preferimos ignorar em razão de sua
incompatibilidade com os valores que aprendemos. Ao conhecê-la, conseguimos enfraquecê-la
e disponibilizamos mais energia à nossa consciência, ampliando-a. (Hopcke, 2011 & Jacoby,
2011)

Jacobi (2013) explica que os arranjos das quatro funções psíquicas (pensamento,
sentimento, intuição e sensação) são complexos, funcionam de forma compensatória e que a
função que menos se desenvolve e que se encontra totalmente no inconsciente é a inferior,
aquela que se caracteriza pela indiferenciação, pela grosseria, infantilidade ou pelo seu caráter
arcaico, primitivo. É por meio dessa função que os conteúdos do inconsciente acedem à
consciência ou que os complexos atuam de forma autônoma.

A completude psíquica seria alcançada caso todas as funções se elevassem à consciência,


mas isso não é alcançado senão de forma aproximada, pois “a nenhum ser humano é concedido
poder clarificar em si toda a escuridão” (Jacobi, 2013, p. 35). Assim, resta-nos a condição
humana, terrena, de conviver com a nossa sombra, além do compromisso de conhecê-la e
integrá-la à nossa psique.
O trabalho com a própria sombra significa uma integração progressiva do conteúdo
rejeitado e fazê-lo “rouba a nossa inocência” (Zweig e Abrams 1991, p. 296), mas também nos
torna menos presunçosos, mais abertos para o outro, para “o estranho, o fraco, o pecador, o
desprezado”. (Zweig e Abrams 1991, p. 297)

Se o fizermos e se caminharmos, em busca do tesouro oculto, atenta e amorosamente


ao lado dos que estejam dispostos a fazê-lo, estaremos contribuindo para tornar o mundo mais
tolerante e nos dispondo ao amor transpessoal sem perder a consciência da nossa condição
humana.
REFERÊNCIAS

Edinger,E. F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. Adail Ubirajara


Sobral e Maria Stela Gonçalves Trads. São Paulo: Cultrix, 2006.

Hilman, J. Psicologia alquímica. Gustavo Barcellos Trad. Petrópolis: Vozes, 2011.

Hopcke, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. Edgar Orth e Reinaldo Orth Trads.
Petrópolis: Vozes, 2011.

Jacobi, J. (2013). A psicologia de C. G. Jung: uma introdução às obras completas. Enio Paulo
Giachini Trad. Petrópolis: Vozes (Trabalho original publicado em 1940).

Jacoby, M. O encontro analítico: transferência e relacionamento humano. Ana Paula Garbuglio


Trad. Petrópolis: Vozes, 2011.

Jung, C. G. (2012). Psicologia e alquimia. Dora Mariana R. F. da Silva Trad. 6 ed. Vol 12.
Petrópolis, Vozes (Trabalho original publicado em 1944)

Raff, J. Jung e a imaginação alquímica. Marcello Borges Trad. São Paulo: Mandarim, 2002.

Roob, A. O museu hermético. Alquimia e misticismo. Tersa Curvelo Trad. Köln: Taschn, 2014.

Weig, C; Abrams, J. (Orgs.) Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da


natureza humana. Merle Scoss Trad. São Paulo: Cultrix, 1991.

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