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Christophorus Pariensis (citado por Jung, 2012/1944, pg. 360) afirmou que “No caos...
existe in potentia a mencionada substância preciosa sob a forma de uma ‘massa confusa’ dos
elementos reunidos”.
Jung (2012/1944, p. 357) explicou que ao penetrar nas áreas menos nobres da própria
alma a consciência corre o risco de ser subjugada por forças inconscientes arquetípicas que
exercem sobre ela uma atração muito forte a ponto de ameaçá-la com a desintegração da
personalidade, ou seja, com a fragmentação da psique em complexos, em “funções isoladas da
consciência”. É do pressentimento desse risco que nasce a resistência à descida às regiões
obscuras da psique no processo psicoterápico.
Essa massa informe, inicial, foi denominada prima materia pelos filósofos pré-socráticos
que, desejosos de explicar a origem do mundo, buscavam descobrir a primeira matéria, a
matéria inicial que teria gerado tudo o que existe no mundo tangível. Assim, cada filósofo
levantou uma hipótese: Tales apontava a água como prima materia; Heráclito viu no fogo a
origem de tudo; Anaximandro nomeou esse elemento primordial de apeiron ou “o ilimitado”;
Anaxímenes preferiu nomeá-lo de ar. (Edinger, 2006)
Como a ideia de uma matéria original não foi confirmada pela experiência, esclarece
Edinger (2006, p.30), “a idéia deve ser a projeção de um fato psíquico”. Assim, os filósofos
imaginaram que a prima materia havia se transformado e se decomposto em terra, ar, fogo e
água e que esses elementos, quando combinados, originavam os objetos materiais. Dessa
forma, eles atribuíram à prima materia “uma estrutura quádrupla, uma cruz, que representa os
quatro elementos, dois grupos de contrários: terra e ar, fogo e água.” (Edinger, 2006, p. 30)
Ainda Edinger (2006, p. 30) explica que “Psicologicamente, esta imagem corresponde à criação
do ego a partir do inconsciente indiferenciado mediante o processo de discriminação das quatro
funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição. ”
Raff (2002, p. 38) cita Coenders, autor da obra “Escada dos sábios”, exibindo duas
imagens circulares: a primeira delas representa a “confusão do início da obra”, ou seja, o
momento inicial em que o material que passará por processos alquímicos encontra-se em
desordem, malformado, sem conexão entre seus elementos. Representa “o caos da psique
antes do início da alquimia interior” (Raff, 2002, p. 41). Em meio a esse caos, a figura exibe um
ponto no centro que representa “a imagem do si-mesmo latente e a promessa de crescimento
futuro” (Raff, 2002, p. 41). A segunda imagem refere-se à ordem resultante da grande obra,
uma vez que o Si-mesmo manifestado estabelece a harmonia entre os elementos e faz com que
tudo se movimente e se concentre em um ponto central que é representado pela imagem de
uma deidade relacionada ao Cristo.
Assim, Raff (2002, p.38) afirma que “Podemos ver a prima materia como o si-mesmo
latente com que o si-mesmo manifestado é criado...”.
Ao estudar a alquimia, Jung percebeu que a descrição das operações a que o metal
comum era submetido, passando por sucessivas transformações, era uma metáfora para o
trabalho com a psique. Segundo Jacobi (2013, p. 242), Jung chegou a afirmar que a corrente
espiritual da alquimia foi um “pré-estágio gerador da mais moderna psicologia”.
Concordando com Jung, Edinger (2006, p. 32) afirma que descobrir a prima materia
corresponde a descobrir “o material de trabalho na psicoterapia” e, com base nos textos
alquímicos, explica as características que ela apresenta, traçando um paralelo com a
psicoterapia: é ubíqua, ou seja, está em toda parte, na vida cotidiana, nas reações emocionais,
nos humores aparentemente sem importância; tem uma aparência exterior desagradável,
apesar do seu grande valor, o que significa que ela é encontrada na sombra, nos aspectos menos
nobres e mais dolorosos da personalidade que precisam ser conhecidos e trabalhados pelo
indivíduo; é múltipla, ou seja, corresponde à condição fragmentada da psique que,
gradualmente, é conscientizada pela pessoa ao longo do processo psicoterápico para, mais
tarde, ter os seus fragmentos percebidos como aspectos de uma unidade; é indiferenciada, sem
forma, sem limites definidos, o que significa que a experiência do inconsciente faz com que o
ego se arrisque e tema perder o controle e se dissolver em busca da ampliação de seus
horizontes.
Assim, desde o início do processo de análise, é preciso que o terapeuta saiba colocar
todo o seu ser na escuta que o ajudará a ouvir, a ver, a sentir e a apreender de maneira mais
sutil aquilo que, no discurso do paciente, esconde ou revela a prima materia, o material psíquico
que uma vez identificado como central em suas questões passará por sucessivas transformações
para que aquilo que há de mais essencial, original e inteiro na psique do analisando se revele
em sua existência.
Nesse trabalho, o conteúdo psíquico é cozido, submetido ao fogo das emoções cuja
intensidade o analista precisa saber dosar. Ao passar pela operação da solutio, ele é dissolvido,
ou seja, tem o seu estado material desfeito, sua primeira forma desaparece nas águas que tantas
vezes se expressam no choro e aparecem nos sonhos do paciente como banho, aguaceiro,
imersão, natação ou no batismo que purifica pela total imersão do corpo e simboliza o retorno
ao estado que precedeu a forma inicial da matéria. Assim, a morte por afogamento é seguida de
renascimento. Na água se dissolvem as diferenças entre os elementos separados como se
encontram na prima materia. Também é pela água, num estágio posterior do trabalho
psicoterápico, que ocorre a mistura do corpo e do espírito ou da dissolução do corpo para que
o espírito se consolide. (Edinger, 2006; Hilman, 2011)
Todo esse trabalho significa uma tomada de consciência sobre “os aspectos... de nós
mesmos que gostaríamos de fingir que não existem ou que... não têm efeito sobre nossa vida...”
(Hopcke, 2011, p. 95), o que é o mesmo que conhecer a nossa sombra, uma parte inconsciente
de nossa identidade, nem sempre realmente negativa, que preferimos ignorar em razão de sua
incompatibilidade com os valores que aprendemos. Ao conhecê-la, conseguimos enfraquecê-la
e disponibilizamos mais energia à nossa consciência, ampliando-a. (Hopcke, 2011 & Jacoby,
2011)
Jacobi (2013) explica que os arranjos das quatro funções psíquicas (pensamento,
sentimento, intuição e sensação) são complexos, funcionam de forma compensatória e que a
função que menos se desenvolve e que se encontra totalmente no inconsciente é a inferior,
aquela que se caracteriza pela indiferenciação, pela grosseria, infantilidade ou pelo seu caráter
arcaico, primitivo. É por meio dessa função que os conteúdos do inconsciente acedem à
consciência ou que os complexos atuam de forma autônoma.
Hopcke, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. Edgar Orth e Reinaldo Orth Trads.
Petrópolis: Vozes, 2011.
Jacobi, J. (2013). A psicologia de C. G. Jung: uma introdução às obras completas. Enio Paulo
Giachini Trad. Petrópolis: Vozes (Trabalho original publicado em 1940).
Jung, C. G. (2012). Psicologia e alquimia. Dora Mariana R. F. da Silva Trad. 6 ed. Vol 12.
Petrópolis, Vozes (Trabalho original publicado em 1944)
Raff, J. Jung e a imaginação alquímica. Marcello Borges Trad. São Paulo: Mandarim, 2002.
Roob, A. O museu hermético. Alquimia e misticismo. Tersa Curvelo Trad. Köln: Taschn, 2014.