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Do fundo da caverna que é um quarto de hospital vejo uma procissão de

mulheres carregadas de vasos elegantes que são jarros de urina. Formas


estranhamente belas de um mundano ignorado, uma cena de bastidor desta
nossa vida neste palco estreito do corredor visto por uma porta.

Ao meu redor, destroços humanos afundam-se em longas camas


mecânicas. Mas há histórias para contar entre o vaivém de arrastadeiras, no
ranger de colchões e no staccato de tosse.

Alguma coisa resulta desta camaradagem forçada. Procuro extrair o que


seja até à superfície das palavras.

O soro goteja claro e insinuante no seu circuito até às minhas veias. É um


problema de sangue, bem o sei, um diagnóstico palavroso que aflige dizer:
trombocitopenia auto-imune. Num exagero de zelo o corpo ataca-se a si próprio,
numa guerra sem tréguas contra as plaquetas sanguíneas. Uma vez
dissolvidos os alicerces do sangue, qualquer corte resulta em cataclismo, num
desfalecimento irremediável.

Mas podia ser pior, penso eu enquanto as rodas do andarilho deslizam


chiantes sobre o linóleo riscado. Apesar do nome obscuramente assustador a
minha doença ocupa um lugar quase modesto na hierarquia das mazelas do
sangue. Talvez tenha sido um instinto de preservação ou a necessidade de
procurar consolo mas esta foi a minha primeira reação aquando do diagnóstico:
podia ser pior.

Acaba por se tornar numa mantra. Como todos os clubes, a comunidade


dos doentes tem as suas regras próprias e a devassa da privacidade torna-se
normal entre perfeitos estranhos. Genealogias inteiras de padecimento são
partilhadas com grande afinco como se o grau de doença conferisse uma
espécie de estatuto. Experiências sulcadas por distúrbios de entranhas e
outras tantas desgraças.

Era quase madrugada quando me internaram. A minha surpresa foi total e


suficiente para me proteger do desconhecido antissético que me recolheu sob
a forma de um corredor, depois de um quarto, e por fim uma cama: uma
progressão para espaços mais limitados, o espaço de manobra cada vez mais
reduzido e simplificado.

Levaram-me numa maca pelos interiores meio mortos do hospital. Como


uma iniciação primeiro tive que vestir a túnica de azul desbotado e ceder todos
os meus pertences tirando o telemóvel cuja bateria está fraca. Vejo o aproximar
das curvas, dos cantos anunciados, escadas várias, o cromado metálico de
elevadores. Sinto-me quase num filme, o meu ponto de vista definido por um
movimento que escapa ao meu controlo.
Parte por incúria, parte por preguiça, tinha interrompido o tratamento de
dois anos. A força da inércia fizera o resto, uma-mal avisada ida ao dentista
precipitou a crise: horas a sangrar, o sabor corrosivo a ferro roendo todos os
restantes sentidos até se integrar no próprio ar.

Seguiram-se os fiapos de uma noite gastos a sugar blocos de gelo e


cuspi-los numa grande terrina com o objectivo de parar a hemorragia. Metal na
boca, metal no colo, água manchada de sangue, frio dormente na língua. Na
penumbra e monotonia exausta, evitei perturbar o sono de estranhos que mais
não eram mais que incógnitas atrás de cortinas.

É uma oferta de respeito em abstrato, como um cheque em branco


dirigido a ninguém em particular. Obliquamente afirmando a minha
superioridade em termos de saúde como se ao prestar homenagem aos
doentes me distanciasse deles.

A luz num friso sobre a cama desmaia na água que se tolda de cor-de-
rosa. Cansaço que se aproxima na obscuridade mas que é repelido pela tarefa.
Chupar gelo, gorgolejar água sangrada, repetir. O som ressoa dentro da minha
cabeça e desce até aos dedos já insensíveis do frio.

Durante dias até falar trazia o sabor de sangue à mente. As refeições


eram ferrugem amarga. Rapar o prato tornou-se numa façanha e motivo de
orgulho. Conquista modesta não fosse o jantar uma papa de carne macerada
que se serve frio para não reabrir a ferida.

A situação torna-se penosa uma vez que a cada novo médico tenho que
explicar tudo de novo e falar é a última coisa que quero fazer. Uma camada de
sangue cobre a minha língua e obscurece a fala. A repetição constante vincula-
me ainda mais ao sucedido. Como é de esperar, censuram-me ter parado o
tratamento ao mesmo tempo que a irresponsabilidade do dentista que sabia da
minha doença é rispidamente criticada.

Num misto de humildade e tédio retomo a medicação como algo inevitável.


Pelo menos já ganhei o hábito de engolir comprimidos. Durante muito tempo
era-me quase impossível, um reflexo imediato trancava a garganta e mesmo
pequenas cápsulas causavam engasgos sérios.

Recordo-me da medicação interrompida e agora retomada. Uma longa


cápsula amarela recheada de esferas mínimas, serve para almofadar o
estômago e proteger de remédios mais agressivos. Ferro em comprimidos
achatados e não muito grandes que tentei substituir por uma solução líquida
com resultados nefastos. Em pouco tempo os meus dentes ficaram pretos, uma
camada ferrugenta corrompendo o esmalte.

Os corticoides sob a forma de comprimidos brancos que se esfarelam


num violento ataque químico mal entram em contato com a água. Pior ainda
são os efeitos secundários, o descompassar da batida cardíaca e o inchar
generalizado que se concentra na face. Dosear este quase veneno é talvez a
componente mais importante do tratamento. Procura-se um equilíbrio com o
mínimo possível de corticoides. Ajusta-se constantemente.

De momento a dose é bastante elevada, consequência do nível


perigosamente baixo de plaquetas: vinte seis mil quando o aceitável fica nas
cento e cinquenta mil. Toda a diferença entre uma sentença de cativeiro no
hospital e poder andar ao ar livre. O deixar andar paga-se caro e não
compensa.

Considero isto enquanto engulo mais uma fornada de comprimidos antes


que se dissolvam em virulência áspera. Um deles está cortado ao meio e
lembra uma meia-lua amarga, indícios de fel. Há sempre o risco de esmagar
quando se corta, os vincos na superfície plana nem sempre ajudam. Distração
ou falta de jeito e o comprimido pulveriza-se em nuvens de pó e pontas
aguçadas que resvalam a toda a velocidade. Uma pequena irritação que
assume proporções mais sérias quando os medicamentos se esgotam.

São produtos ambíguos de aplicação muito específica. As suas vantagens


são contrabalançadas por efeitos secundárias e como tal estão sujeitas a
receita médica. Estas resmas de papel assinadas e aprovadas funcionam como
uma chave sem a qual não podemos aceder ao manancial curativo.

O sistema altamente regulado convida ao abandono. Cada qual tem o seu


lugar perfeitamente definido, uma engrenagem bem calibrada assegura-se
disso.

Demasiado tempo para pensar, olhar o relógio que parou as horas,


observar tudo. Mas não escrever. A letargia rotinada vincula os dias a um
estado de curiosidade parada. Ao mesmo tempo há um processo de aprender
a não ver certas coisas.

Ver a parede cinzenta através de duas janelas gretadas de persianas. O


voo rasgado de pássaros por entre os raios do sol lembra-me analogias
demasiado fáceis. Mesmo assim tento prende-las em palavras na esperança
de lança-las num futuro ainda não inventado.

Tal como brinco com a perspectiva: da minha casa consigo ver o hospital,
de tal modo que a distância tangível é mínima em termos de espaço mas o
quarto de doença é um universo específico e auto-suficiente ao ponto de existir
além dos limites da distância.

Estas mesmas janelas foram lanternas acesas durante muitas das minhas
noites. As escadas de incêndio do hospital alinham-se com as de um hotel num
ângulo peculiar quando vistas da janela da sala de jantar, degraus suspensos
no ar como ecos retrocedendo até ao horizonte.
Mais uma correspondência arbitrária, esta geometria que só existe se a
virmos. Por exemplo, a certa altura ocorreu-me que a enfermaria é
estranhamente parecida com um avião. A mesma prolongada inação suspensa
numa espera imposta à vontade, o mesmo clima rarefeito de estufa.
Campainhas sempre prontas a chamar assistência solícita, as previsíveis
rondas de comida distribuídas em tabuleiros, os assentos ou camas
mecanizados.

O quarto equivale a um compartimento do avião imaginário que se


estende pelas outras divisões, sala de convívio, casas de banho, arrecadações.
A bagagem de mão acumula-se em livros, jornais, garrafas de água, telemóveis,
por vezes fotografias. Máscaras de ar esperam por uma oportunidade para
serem úteis.

A equipa de enfermagem com os seus uniformes brancos faz o papel de


assistentes de bordo enquanto os pilotos são os médicos que só se misturam
com os passageiros em certas ocasiões para ditarem o curso a seguir.

Deste ponto de vista, a viagem faz-se não entre dois lugares mas entre
duas datas. Do internamento à alta, a nota de alta como bilhete de
desembarque. E a duração depende de um milhão de fatores que se inclinam
ora na direção da recuperação ora na da recaída.

Sofrer é universal mas narrar é humano. Provamos a nós próprios e aos


outros que somos pessoas ao contarmos histórias. A palestra dos doentes cria
elos de ligação com o exterior, expande-se em episódios e ritmos de vida,
tecendo um sentido de continuidade através da palavra.

O grau de entendimento mútuo pode ser quase nulo mas o ato de contar
estabelece uma relação por si próprio.

Do que ouvi dos meus colegas e a que chamo a palestra dos doentes,
muito me soou a estranho. Parcelas de vivências tão alheias que afinaram os
meus limites por contraste. Mas poder intercetar estas vidas mesmo que
apenas à superfície de intermitências foi uma dádiva inesperada.

Histórias do campo desdobradas para mim, um bicho de cidade


inveterado para quem as pedras da calçada são o habitat natural. Os meus
colegas não pertencem ao meio urbano, rejeitaram a cidade por atos e
omissões, pergunto-me se a cidade os rejeitou também. Para eles navegar
pelas ruas é uma tarefa árdua a superar.

Antes os ciclos consagrados de plantação, cultivo e colheita. Uma infância


indistinguível da terra gretada debaixo das unhas, sachola ao ombro, do rio que
corre friamente mesmo no pico do verão. Poupar e poupar para comprar uma
casa na terra, uma âncora terrestre que prende e assegura. Problemas com os
homens das obras que têm de ser vigiados, uma grande renovação feita de
aprumo e orgulho calmo. Enquanto a herdade se perde em oliveiras que
derramam o seu ouro sem nenhum proveito: os mais novos nada sabem sobre
a apanha da azeitona.

Um passado de privação é exibido como um tesouro. O pão como pilar da


alimentação, amassado com dedicação e cozido em grandes fornos, um
pedaço de calor comestível, duro por fora e suave por dentro. Pão que se
reparte à mesa para toda a família de muitos irmãos, irmãs, avós, avôs.
Gerações que comem juntas. A verdade do lugar-comum, comer juntos é o que
faz uma família.

São histórias em que o passado se mistura. A velha cega da aldeia que


calcorreava veredas até ao fogareiro comunal onde assava uma mistura de
legumes e por vezes até carne. Privada de visão, esta mulher decorara a
anatomia mais íntima de caminhos íngremes e aprendera como lidar com o
fogo.

Sem mais pormenores imagino a figura encurvada sobre o solo árido


cravejado de raízes, caminhando com a segurança do hábito, a trouxa de
nabiças atravessada nas costas balançado com cada passo num equilíbrio
acertado mas aparentemente frágil. A cada momento parece prestes a cair na
poeira, a cada momento conquista um quinhão de um percurso que é eterno de
tão repetido.

Pergunto-me como é possível ir assim por esse mundo fora sem ver. Que
exigências de coragem prática embutidas do quotidiano, fecho os olhos e tento
adivinhar.

O privilégio de trepar da cama alta pelos meus próprios meios e fazer o


percurso pelos corredores na companhia do andarilho deslizante. Uma
sensação quase de prazer, esta liberdade tão limitada. Encontro outros
peregrinos mas somos uma minoria. A maioria, as outras turmas da palestra
dos doentes, está confinada aos quartos. Destes reclusos só retenho breves
vislumbres quando passo no meu passeio higiénico.

Há ainda uns quantos com a duvidosa honra de um quarto individual.


Trata-se dos doentes contagiosos, verdadeiros prisoneiros, confinadas à
solitária apesar de inocentes. Destes nada se sabe, uma barreira de silêncio
resguarda-os como que por simpatia.

De manhã o bulício é total. O pequeno-almoço expulsa finalmente a noite


com toda uma parafernália de tabuleiros, papa, iogurtes, pão, manteiga, café.
Um exército de auxiliares dita a ordem dos banhos e os corredores enchem-se
de carrinhos carregados de toalhas, pilhas de roupa, lençóis.

O duche é uma operação delicada, em pontas dos pés, o novo robe azul
desbotado posto a salvo do jato selvagem da água. Evitar uma pequena
inundação requer algum cuidado. Uns paninhos servem de esponja,
escorregadios e ensopados de sabão incolor e quase sem cheiro. A lavagem é
rápida mas catártica. Limpa-se o suor de ânsias noturnas em preparação para
mais um dia lento.

É a única altura em que o apêndice do soro se solta mas o tubo


permanece alojado nas costas da mão. Protegido por camadas de fita adesiva
é um canal de acesso ao sangue que por vezes se insinua pelo tubo numa
linha muito vermelha contra a pele branca.

As veias são azuis e dançarinas, difíceis de apanhar com a seringa.


Vasos condutores de vida cujo precioso conteúdo é controlado periodicamente.
Testes de qualidade, a agulha trespassando a pele sem dor.

O dado bruto de sangue em tubos é traduzido em informação:


hemoglobina, hematócrito, volume globular médio, hemoglobina globular média,
concentração média da Hb globular, dispersão dos volumes (RDW),
eritroblastos, contagem de leucócitos, neutrófilos, eosinófilos, basófilos,
linfócitos, monócitos, contagem de plaquetas, plaquetócrito, volume
plaquetócrito médio, dispersão dos volumes (PDW).

Indicações linguísticas cheias de mistério para o não iniciado. Seguidas


de números que finalizam a padronização. É a partir da análise que se orienta
a cura, um trabalho intenso de conhecimento aplicado. O contributo de
gerações e gerações realiza-se em cada momento rotineiro. Paro para saudar
os anónimos investigadores aos ombros dos quais nos elevamos acima da
doença.

A compacta máquina que mede o gotejar do soro é mais uma prova do


infindo potencial humano. Diferentes composições líquidas pendem do
andarilho como frutos transparentes e o timing de cada é medido por meios
mecânicos. Uma solução salina que arde ao invadir as veias é regulada com
grande precisão.

Tão vagaroso é o processo que os sacos se esvaziam invisivelmente,


tornam-se cascas ocas ao longo de manhãs, dias, noites completas. A máquina
dá o alerta de imediato e divide o tempo em mais umas parcelas. Por vezes
apitam durante largos momentos e tal como os doentes precisam de se
recarregar. Ligam-se à consola fixada por cima da cama ao lado da tomada do
telemóvel. Às tantas os doentes aprendem a lidar com as ocasionais manias da
máquina.

De noite manobro o andarilho com redobrada lentidão. Há algo inviolável


no descanso dos doentes. A etapa mais problemática é escapulir-me do quarto
sem acordar ninguém. Encontrar os chinelos do escuro, escorregar no silêncio,
tudo para apagar a minha presença ao máximo. Torno-me uma sombra colada
às sombras.

O corredor alumiado apenas por luzes de guia lembra-me mais que nunca
um avião parado. A qualquer hora uma campainha pode tocar, quer seja por
capricho ou por aflição.

Os veteranos topam-se à distância. Verdadeiros soldados, têm por


trincheirais tratamentos penosos que dominam o total da sua vida.
Transplantaram muito do lar para o quarto de hospital. Lidam com a cadeira de
rodas com uma destreza que compensa a atrofia dos membros.

Um dos meus companheiros de quarto é uma veterana cuja resistência à


adversidade já se tornou numa filosofia pessoal. Várias vezes ao dia precisa de
ajustar um colete estranho que espartilha o torso, negociar a saída da cama,
ser acomodada à cadeira de rodas e levada para outras enfermarias.
Radioterapia e outras torturas fazem parte de um sacrifício diário. Esta senhora
pequena e rotunda encara a sua doença entre muitas queixas mas por trás
deste aparente desalento está uma energia vital grande.

Em si combinam-se várias maleitas e o tratamento de uma interfere com


as restantes. Os seus pés estão sempre frios, precisam de botijas de água
quente elétricas que são recarregadas de tarde para estarem prontas de noite.
Usa na cabeça nua, o cabelo há muito tolhido pela agressividade da terapia,
toucas coloridas que contrastam com a palidez quase mórbida da pele.

Tal como todos os veteranos viu-se obrigada a mudar-se de armas e


bagagens para o hospital e nem usa as túnicas mas sim a sua própria roupa,
robe felpudo cor-de-rosa colmatado por um casaco vermelho. Pergunto-me se
as cores explosivamente quentes combatem o frio que tanto a atormenta. De
qualquer modo, há uma certa graça no seu aprumo. Lutando contra o desleixo
ao qual nos abandonamos, esta senhora é um dos mestres da palestra.

Assisto à rendição da turno da noite quase com estupefação, tão


omnipresentes são os enfermeiros que custa imaginá-los fora do hospital. E
como um corpo unificado são na realidade perenes, renovam-se os indivíduos
mas permanece o todo. O que não quer dizer que não haja favoritos. Os
veteranos em particular têm as suas antipatias e afinidades profundas, produto
de uma convivência longa e estreita. Não demora muito até os recém-
chegados formarem as suas preferências e leves antagonismos.

A palestra assume-se como o júri e juiz. Talvez seja a sua única


oportunidade de avaliar outros e a palestra é plácida nas suas considerações
mesmo quando classifica o pessoal médico com alguma intransigência. O
direito à opinião é usufruído liberalmente. Uma espécie de ranking não oficial
resulta desta troca de impressões. Consciente da fragilidade da sua posição de
inválidos, a palestra sublima-se e ganha poder ao decidir entre os bons
profissionais e os restantes.

É a doença que lhes dá autoridade até sobre especialistas. Por vezes


dócil, a palestra rende-se à sua vulnerabilidade e aceita passivamente os
intermináveis exames e tudo o resto, mas há alturas de quase rebeldia. Estes
momentos raros ocorrem quando a paciência se esgota e tendem a
desvanecer-se em ataques de frustração. Por exemplo, uma das residentes
invisíveis foi avisada que abusava da campainha. Deixou por e simplesmente
de chamar assistência mesmo quando precisava. Acabou alagada em urina.

O episódio causou grande consternação e acusações voaram. Procurou-


se localizar a culpa mas de nada serviu. De qualquer modo era preciso mudar
o colchão, fazer a cama de novo, lavar o corpo humilhado. Os enfermeiros
lidaram com a senhora com uma mistura de admoestação e pena, procurando
sossegar e corrigir ao mesmo tempo.

Há subtilezas, um quase paternalismo robusto que tolera muito mas que


exige obediência, toda uma rede de interações que se estabelece
paulatinamente. Deslinda-la é impossível, pertence ao domínio dos gestos.
Menos que elos pessoais mas muito mais que meras relações profissionais.

Visto de fora há algo de trágico-cómico em tudo isto. Tal como a doente


quase acamada que se desequilibrou ao tomar duche e ao cair se agarrou à
enfermeira que acabou por cair também de modo a que ambas se estatelaram
no lajedo molhado. A história foi relatada por entre risos se bem que tenha sido
um susto para as duas. Potencialmente venenosa num ambiente tão
concentrado sobre si próprio, a troça pode ser salutar se utilizada sabiamente.

Saber quando rir, saber quando ouvir. O hospital é uma verdadeira escola
de capacidades humanas das quais pouco sei. Mas talvez aprenda algo de útil
por osmose. A porosa influência do ambiente pode ainda penetrar em mim tal
como o soro ganha terreno nas minhas veias.

A hora das visitas forma um intervalo, um indisputável ponto alto do dia.


Dá-se um tipo de convívio a dois níveis, entre cada membro da palestra e a sua
família e entre os visitantes entre si e outros membros doentes. Apesar de
oficialmente desencorajadas estas conversas tendem a transvazar os limites
específicos. Não duram muito mas são momentos de expansão.

As visitas são assimiladas à palestra durante um tempo e é com


relutância que voltam ao mundo.

Depois a palestra recolhe-se numa solidão paliada. Felizmente a


contagem decrescente até ao jantar está quase a terminar e o frémito da
comida ocupa e distrai. Nem as arrastadeiras interferem muito se bem que à
hora da refeição me encham de um horror mudo que me leva a cravar o olhar
no prato no qual concentro toda a minha atenção. Bloquear odores é mais
difícil pelo que tento respirar devagar como se assim pudesse reduzir
potenciais cheiros.

A conversa estagna aquando da mastigação. Cada doente tem o seu


regime alimentar ajustado por uma dietista mas o sabor ou falta dele não é
grandemente afetado. O paladar é sacrificado em nome dos nutrientes.
Mínimos pacotes de sal de pouco servem para introduzir um tempero em
comida sensaborona. A sopa em especial é desprovida de gosto. Por outro
lado há sobremesa, uma nota de indulgência.

Dependemos quase exclusivamente da comida de hospital. Apenas


iogurtes podem ser trazidos do exterior e armazenados no frigorífico, marcados
com o nome do doente. É um pequeno mas muito agradável luxo. Mais que a
frescura cremosa com o seu efeito apaziguador é o valor simbólico que faz o
iogurte tão apetecível.

Ao limitar o espaço, o internamento amplia a intensidade dos mais


pequenos detalhes. A concessão ao gosto pessoal alia-se assim ao desvelo,
no aroma frutado flutua uma teia de associações que se devoram à colher.

Em oposição ao cortejo platónico que tão é recorrente como efémero, o


cenário permanente que vejo do fundo do quarto de hospital é um quadro de
uma espiral. Vibrante de cor, laranja raiada de vermelho, retorcida num
movimento tenso. Repete-se como um remoinho fractal.

Tenho reparado nos espécimes de arte que adornam os hospitais.


Fotografias de flores e reproduções de cenas famosas da cidade dominam.
Imagens abertas à luz, escolhidas decerto para trazer alegria à doença.

Quando me aconchego na minha almofada em preparação para o sono, é


a espiral que eu vejo antes de dormir. Gostaria de transferir a sua
excentricidade colorida para os meus sonhos mas as noites passam sem
imagens. Tenho o hábito de aproveitar os níveis mais profundos da noite mas
no hospital dorme-se muito cedo. No final de um dia pesa a exaustão. O regime
resulta comigo, durmo livremente sem o auxílio de fármacos.

Tento ouvir música mas dá-me dores de cabeça. O som ressoa em


distorções que me assustam um pouco. Pouso os auscultadores na mesa
articulada que serve de secretária e passo ao sudoku. Enfileirar algarismos
numa grelha cria a ilusão de pensamento sem exigir demasiado esforço.
Deduções puramente lógicas flutuam por sim próprias, simples processo de
eliminação que em nada compromete. Tenho alguma prática mas não me
apresso. Se encontro um puzzle demasiado difícil limito-me a passar a outro,
indolentemente prossigo pelo caminho da mínima resistência.
De lápis em riste sublinho um livro. Marco as passagens mais importantes
que leio com vagar e diletantismo. Tenho leitura suficiente para durar muito
tempo mas só leio algumas páginas de cada vez. Salto de livro em livro, entre
português e inglês, ficção e não ficção. Esta abordagem fragmentária dá-me a
impressão de vastidão, de quebrar limites. Consigo concentrar-me quase
plenamente mas apenas por intermitências. Divido o esforço para o apurar e ao
terminar um capítulo respiro fundo e descanso.

Gerir a minha leitura é um meio de estabelecer uma área de liberdade.


Parca autonomia mas muito gratificante. Leio sem ter em conta metas, faço
cada livro render. O horário está adaptado às minhas competências e como tal
não pesa, o verdadeiro problema é o fardo físico dos livros em si. Manuseá-los
e ir de um para outro acaba por enfraquecer os braços, os pulsos ligeiramente
trémulos.

Após uma sessão de leitura estico-me ao comprido na cama, estendo a


totalidade do meu corpo na horizontal e fecho os olhos. Apenas respirar e
aproveitar o momento para relaxar, conter o ar nos pulmões antes de o soltar.

À deriva entre consciência e sono. Uma leveza insensível insufla-se


dentro de mim, através de mim, até formar um casulo sobre mim. Flutuo sem
rumo num quase devaneio. Regresso à constante realidade do quarto com um
sobressalto.

A alta surge repentinamente. Como uma revelação demasiado súbita ou


uma epifania prematura. Trocam-se números de telemóvel, fazem-se planos de
encontros futuros em circunstâncias mais felizes e a todos quero bem de
verdade. Assim me despeço da palestra dos doentes.

A súbita luz do dia arde nos olhos. Vacilo no cinzento aberto onde o céu
se abre sobre mim.

Uma estadia no hospital é uma interrupção abrupta da vida mas também


um porto de abrigo. Sinto que estou a retomar uma linha que já se esboçou e
agora se desenha com mais nitidez.

Cá fora, hesito no meio do tempo escorregadio com medo que me arraste


para demasiado longe. O familiar ruído dos carros converte-se num confusa
impressão de movimento na qual não me reconheço.

Avanço. Guia-me um sentido profundo de instinto…não sei bem por onde


vou mas de incertezas se faz a vida. Qualquer caminho ainda não trilhado é
uma aposta na esperança, por isso avanço, por isso tenho que avançar.

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