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A Palestra Dos Doentes
A Palestra Dos Doentes
A luz num friso sobre a cama desmaia na água que se tolda de cor-de-
rosa. Cansaço que se aproxima na obscuridade mas que é repelido pela tarefa.
Chupar gelo, gorgolejar água sangrada, repetir. O som ressoa dentro da minha
cabeça e desce até aos dedos já insensíveis do frio.
A situação torna-se penosa uma vez que a cada novo médico tenho que
explicar tudo de novo e falar é a última coisa que quero fazer. Uma camada de
sangue cobre a minha língua e obscurece a fala. A repetição constante vincula-
me ainda mais ao sucedido. Como é de esperar, censuram-me ter parado o
tratamento ao mesmo tempo que a irresponsabilidade do dentista que sabia da
minha doença é rispidamente criticada.
Tal como brinco com a perspectiva: da minha casa consigo ver o hospital,
de tal modo que a distância tangível é mínima em termos de espaço mas o
quarto de doença é um universo específico e auto-suficiente ao ponto de existir
além dos limites da distância.
Estas mesmas janelas foram lanternas acesas durante muitas das minhas
noites. As escadas de incêndio do hospital alinham-se com as de um hotel num
ângulo peculiar quando vistas da janela da sala de jantar, degraus suspensos
no ar como ecos retrocedendo até ao horizonte.
Mais uma correspondência arbitrária, esta geometria que só existe se a
virmos. Por exemplo, a certa altura ocorreu-me que a enfermaria é
estranhamente parecida com um avião. A mesma prolongada inação suspensa
numa espera imposta à vontade, o mesmo clima rarefeito de estufa.
Campainhas sempre prontas a chamar assistência solícita, as previsíveis
rondas de comida distribuídas em tabuleiros, os assentos ou camas
mecanizados.
Deste ponto de vista, a viagem faz-se não entre dois lugares mas entre
duas datas. Do internamento à alta, a nota de alta como bilhete de
desembarque. E a duração depende de um milhão de fatores que se inclinam
ora na direção da recuperação ora na da recaída.
O grau de entendimento mútuo pode ser quase nulo mas o ato de contar
estabelece uma relação por si próprio.
Do que ouvi dos meus colegas e a que chamo a palestra dos doentes,
muito me soou a estranho. Parcelas de vivências tão alheias que afinaram os
meus limites por contraste. Mas poder intercetar estas vidas mesmo que
apenas à superfície de intermitências foi uma dádiva inesperada.
Pergunto-me como é possível ir assim por esse mundo fora sem ver. Que
exigências de coragem prática embutidas do quotidiano, fecho os olhos e tento
adivinhar.
O duche é uma operação delicada, em pontas dos pés, o novo robe azul
desbotado posto a salvo do jato selvagem da água. Evitar uma pequena
inundação requer algum cuidado. Uns paninhos servem de esponja,
escorregadios e ensopados de sabão incolor e quase sem cheiro. A lavagem é
rápida mas catártica. Limpa-se o suor de ânsias noturnas em preparação para
mais um dia lento.
O corredor alumiado apenas por luzes de guia lembra-me mais que nunca
um avião parado. A qualquer hora uma campainha pode tocar, quer seja por
capricho ou por aflição.
Saber quando rir, saber quando ouvir. O hospital é uma verdadeira escola
de capacidades humanas das quais pouco sei. Mas talvez aprenda algo de útil
por osmose. A porosa influência do ambiente pode ainda penetrar em mim tal
como o soro ganha terreno nas minhas veias.
A súbita luz do dia arde nos olhos. Vacilo no cinzento aberto onde o céu
se abre sobre mim.