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Da natureza para a cultura

Entre feras e animais domésticos, o homem definiu as fronteiras da casa, da


cidade e o seu próprio lugar na natureza
Cláudia Beatriz Heynemann
6/9/2010  

A ciência, os hábitos de civilidade, a industrialização e o avanço das cidades nos séculos XV a XVIII
separaram a casa da natureza, os homens dos animais. Na Europa e na América, isso não aconteceu de
uma hora para outra. Crenças e práticas culturais  tiveram seu papel nessa transformação. Por volta
dos séculos XV e XVI, acreditava-se que a natureza tinha uma finalidade: os animais e as plantas
existiam para satisfazer as exigências de ordem prática, moral ou estética da vida humana. O canto dos
pássaros servia para o entretenimento e as ovelhas eram criadas para nos alimentar. Na visão religiosa,
esse era o universo da Criação, uma leitura cristã das ideias de Aristóteles (384- 322 a.C.), filósofo
grego que sustentava que nada na natureza existe por acaso.

Representada por nomes como Galileu (1564-1642) e Descartes (1596-1650), a ciência moderna rejeitou
o antropocentrismo e tirou os seres humanos do seu lugar de destaque na “grande cadeia do ser”. Além
disso, as viagens e descobertas, o aumento das espécies identificadas na natureza e até mesmo o
advento do microscópio – que desvendou uma realidade até então invisível – aprimoraram o que já se
sabia sobre os animais. Se, até então, tudo existia para atender ao homem, sentimentos e
características humanas também acabavam sendo projetados nesses seres, sobretudo nos animais. E
esta era a base do antropomorfismo.

Circulava pelo Brasil colonial o manual francês de taxidermia – a arte de empalhar animais – O
naturalista instruído, escrito pelo abade Denis Joseph Manesse (1743-1820), que atribuía
personalidades aos espécimes, referindo-se às “feições” que uma boa técnica deveria preservar. Dessa
forma, era possível perceber “a viveza, a doçura, a ferocidade do seu caráter...”. Essa atitude convivia
com o outro lado da moeda, pois era fundamental diferenciar as pessoas dos animais em seu
comportamento, como assinalou o historiador Keith Thomas sobre a Inglaterra dos séculos XVI ao XVIII.
Os manuais de civilidade, que traziam normas para o bom comportamento, lembravam aos leitores que
ao rir não deveriam “relinchar”, ou roer ossos como se fossem cães. Outras atitudes, como os excessos
sexuais, a gula ou a própria ferocidade, eram classificadas como “bestiais” ou “animalescas”, e esses
adjetivos acabavam sendo aplicados a grupos humanos. Aos pobres, mulheres, índios, ou africanos
atribuía-se uma animalidade, uma vez que, ainda de acordo com Keith Thomas, “a ética da dominação
humana retirava os animais da esfera de preocupação do homem. Mas também legitimava os maus-
tratos àqueles que supostamente viviam uma condição animal. Nas colônias, a escravidão, com seus
mercados, as marcas feitas com ferro em brasa e o trabalho de sol a sol, constituía uma das formas de
tratar os homens vistos como bestiais”.

Para a demarcação dos espaços da casa e da natureza, esteve em jogo a possibilidade de domesticação
dos animais, sua utilidade para o trabalho, seu caráter comestível e o status social que proporcionavam
– como alguns cães ou pássaros.

Outras distinções seriam estabelecidas pela posse de animais domésticos, como observou Gilberto
Freyre em Sobrados e mucambos (1936). Tal como no estilo das hortas e jardins, as casas nobres ou
ricas ostentavam cães de raça de grande porte e ferozes – com nomes temíveis como Rompe-ferro,
Vulcão e Dragão – como sinal de opulência: “espécie de expressão viva, máscula e útil dos leões ou
dragões de louça ostentados aos umbrais dos portões senhoriais. O gato, também. A vaca de leite em
contraste com a cabra. O cavalo em contraste com a mula. E o pavão, cujo leque dourado tornou-se
tão simbólico de casa nobre quanto o penacho da palmeira-imperial”.
Mas havia outros aspectos em jogo. Charles Darwin (1809-1882), autor de A origem das espécies, de
1859, observou que os homens imprimiram um ritmo próprio na adequação dos animais às suas
necessidades. Embora tenham partido do estado natural e dependam das variações que naturalmente
ocorreriam, os homens, movidos pela cultura, pela criação ou mesmo pela moda, ampliaram e
aceleraram a formação de raças domésticas, selecionando os indivíduos e orientando sua reprodução.
Foi uma experiência que ocorreu em tempo reduzido, quando comparada ao processo ininterrupto que
a natureza realizou “no decurso da longa marcha do tempo”, como escreveu o cientista em seu tratado
sobre a variação das plantas e dos animais domésticos.

Antes mesmo que Darwin revolucionasse a biologia, a ciência dos séculos XVII e XVIII tornou-se
gradualmente autônoma, separando-se da esfera religiosa. Regida pela razão, a observação dos
fenômenos passou a favorecer a experimentação e a buscar uma neutralidade naqueles procedimentos.
O conhecimento da natureza era muito mais remoto, já que desde a Antiguidade procedeu-se à
descrição e classificação de plantas e animais de forma contínua e incorporada pelos naturalistas, do
Renascimento ao século das Luzes. Mas tratava-se agora de uma mudança no pensamento ocidental, e
o direito do domínio sobre a natureza mudou o comportamento dos homens.

No Brasil colonial, o limite entre a casa, seus arredores e a selva foi dado pelo povoamento, pelo
avanço das fronteiras agrícolas e urbanas, e dentro das cidades ou das residências. A restrição ao
convívio com os animais no Brasil acompanhou a mudança de costumes imposta por acontecimentos
como a chegada da Corte portuguesa em 1808 e outros projetos civilizadores que baniam porcos e
galinhas das ruas ou que modificavam o interior das casas e a convivência familiar. Como na Europa, o
distanciamento dos animais domésticos e a proximidade com os de estimação – principalmente os cães
– davam distinção aos seus donos. Além dos limites da rua ou da roça, os sertões e as florestas, por
onde passaram bandeirantes e as expedições científicas que se seguiram, ainda eram temidos. Mas isso
não impediu a captura de onças, aves, macacos e quadrúpedes diversos para envio a Portugal. Quanto
mais animais como esses chegassem à metrópole, mais fortalecida ficava sua imagem de dominadora.

CLÁUDIA BEATRIZ HEYNEMANN É PESQUISADORA DO ARQUIVO NACIONAL E AUTORA DO LIVRO AS


CULTURAS DO BRASIL (HUCITEC, 2010).

Saiba Mais - Bibliografia

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 9ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996.

ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. São Paulo: Unesp, 1992.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

TORT, Patrick. Darwin e a ciência da evolução. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

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