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Universidade de Brasília

Instituto de Letras

Departamento de Teoria Literária e Literaturas

EU SEREI SEU ESPELHO

ANTONIO DA MATA

Brasília Julho – 2019

1
ANTONIO DA MATA

EU SEREI SEU ESPELHO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

à Universidade de Brasília como pré-requisito

para a Graduação em LETRAS – PORTUGUES

Orientadora: Ana Laura dos Reis Corrêa

Brasília Julho – 2019

2
AGRADECIMENTOS

À minha querida Mãe, Soraia, por estar sempre ao meu lado e me apoiar de maneira
infinita.

À minha companheira, Carmem, por sua paciência e carinho; por todos os conselhos e
ajuda.

A todxs xs amigxs, por todas as valiosas conversas, ideias e vivencias trocadas.

Aos
https://monoskop.org/images/c/cb/LeWitt_Sol_1969_2006_Sentencas_sobre_Arte_Con
ceitual.pdf
https://monoskop.org/images/3/3c/Goldsmith_Kenneth_Day_2003.pdf
https://www.google.com/search?q=instagram&oq=insta&aqs=chrome.2.69i57j35i39l2j
0l3.2743j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8
https://www.youtube.com/channel/UCSkzHxIcfoEr69MWBdo0ppg
https://www.youtube.com/watch?v=VjVp0hTgzlI
https://www.youtube.com/watch?v=9srhgHzUFd4
https://www.dazeddigital.com/fashion/article/28261/1/remembering-japans-badass-70s-
schoolgirl-gangs
https://www.imdb.com/title/tt0071396/
https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2014/02/danto-andy-warhol-cc3b3pia-
limpa.pdf
https://2yrskulll.tumblr.com/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Fran%C3%A7ois_Lyotard
https://www.dailymotion.com/video/x6epr2g
https://www.supremenewyork.com/previews/fallwinter2018/t-shirts/1994-l-s-tee
http://www.languageisavirus.com/cutupmachine.php#.XHXMDohKjIU
https://mega.nz/#F!vOpwmQiJ!nJFgpdsE-0mCF0yOOQYqCA!uGx2AISJ
https://www.vogue.com/fashion-shows/spring-1995-ready-to-wear/alexander-mcqueen
https://www.buzzfeed.com/annakopsky/candyman-candyman-candyman-candyman-
candyman?utm_term=.kv6lPPZxy#.ptOx33qRz
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/11179/8898
http://robinroche.tumblr.com/
https://www.google.com/search?q=olhos+sem+rosto+filme&source=lnms&sa=X&ved=
0ahUKEwiInPHNxr3fAhXFEZAKHXqoAdsQ_AUICSgA&biw=1366&bih=657&dpr=
1,
A todo o tempo que me distraíram da pesquisa.

A todxs elxs, com amor, dedico essas palavras, pois elas não me pertencem.

3
“I'll be your mirror
I'll be your mirror
I'll be your mirror
I'll be your mirror
I'll be your mirror”
Velvet Undergroud

4
Introdução

Reprodução. Estou especialmente interessado por essa palavra. É caraterístico do


momento em que vivemos que nada mais seja imediatamente vivido. Ao invés da
presença imediata, possuímos a ausência mediada. As imagens se proliferam de maneira
acelerada e o que resta, enfim, são apenas restos de imagens. Fragmentos. Não possuímos
mais a vivencia imediata, temporal e que carece de certa lógica linear e ritualística. Hoje,
não precisamos ir muito longe para repararmos que boa parte dessa experiência sem
mediações está sendo substituída por um outro tipo altamente dependente da mediação.
Penso que hoje não vivemos mais ... mas através. É assim que, por exemplo, ao vermos
um show, não importa a imediatidade do show, sua sensação imediata, mas que filmem

Na web nada é falso e nada é verdadeiro. É nessa espécie de limbo da autoria que
as mais bizarras formas de informação surgem. É curioso pensar que esse tipo de logica
nos coloca em um lugar de suspensão das noções clássicas de autenticidade e
originalidade. Trocamos o “quem” pelo “onde” ou melhor, pelo número de
compartilhamentos, likes ou retwits. A veracidade de uma informação dependerá, então,
do número de vezes que ela será reproduzida na web. Basta que pensemos nas eleições
ocorridas no brasil no segundo semestre de 2018, onde, praticamente, quem ganha as
eleições não é nem um partido X nem um partido Y, mas uma notícia que corria no wpp
a época de que um dos partidos estaria distribuindo “mamadeiras de piroca” nas escolas
públicas de ensino fundamental. Pensar no fenômeno “mamadeira de piroca”, ou melhor,
no fakenews, é especialmente interessante diante das perspectivas que pretendo construir
com esse trabalho.

Na internet podemos captar a linguagem muito mais rápido do que na escrita;


muito mais rápido do que a máquina de escrever, por exemplo. Copy paste. Print screen.
A inevitável perda da noção de autor. Se não perda, ao menos repensar: o que significa a
autoria num momento em que, absolutamente, qualquer texto pode ser copiado e
creditado a mim e por mim sem que ninguém me conteste? E quais as implicações que
isso pode ter para arte e, mais precisamente, para a literatura?

Pretendo, nesse trabalho, deixar em evidencia, então, qual viria a ser o papel da
literatura diante dessa complexa relação entre suporte e conteúdo que, segundo acredito,
estariam intimamente relacionados. Assim, o surgimento da web afetaria diretamente a
forma como autor e leitor lidariam com a materialidade do texto. A questão está, então,

5
em entender como antigas tecnologias se renovam através de novas e como essa relação
pode afetar profundamente tecnologias já existentes. Como bem coloca Kenneth
Goldsmith, o surgimento da web estaria para a literatura assim como o da fotografia
esteve para o da pintura1. E se, nesse caso, a pintura teve que se renovar em função de
uma nova necessidade que lhe foi imposta (essa que já não dependia mais da
representação fiel do “real”, pois a fotografia havia assumido essa posição), quais seriam
os efeitos da reprodução em massa da palavra –pela web-- para a literatura?

A reprodução, bem se vê, então, exercerá um papel central ao longo desse ensaio.
E não apenas a reprodução da palavra na literatura, mas a reprodução enquanto fenômeno
característico daquilo que se conveniou chamar de pós-modernidade. Ora, é comum que
ao ser formulado, o conceito de pós- modernidade esteja frequentemente associado a ideia
de réplica, simulacro e reflexo. E não à toa. Como nos mostra Jamesson, por exemplo, a
pós modernidade seria incapaz de produzir novos futuros: sua lógica seria tão somente a
da reprodução de passados até que, em algum momento, eles se esgotassem2. Daí ideias
como as de fukuiama, de que a historia havia acabado, se tornarem tão famosas durante
a década de 90.

Não pretendo assumir tal posição – acredito que esse fatalismo possui algo de
ideologicamente perigoso pois, afinal, o tempo passa. Mas ao mesmo tempo a lógica do
espelho me parece central para compreendermos o momento histórico em que vivemos
bem como a arte que é produzida nele.

Interessante delimitar, também, o espaço de análise que pretendo desenvolver


nesse ensaio, que não se presta a analisar apenas uma obra, mas um conjunto de obras
(principalmente poemas), com o fim de desenvolver o conceito de escrita conceitual, sua
importância e desdobramentos, bem como compreende-lo como uma possível resposta
que literatura possa dar a uma certa crise iniciada pela implementação da web.

Como bem coloca Benjamim, ao longo de todo seu ensaio a respeito da


reprodutibilidade técnica na arte, tal capacidade de reprodução em massa só foi possível
porque existiam suportes que dependiam da reprodutibilidade como lógica de
funcionamento. A fotografia analógica, que é de alguma maneira o foco de todo o ensaio
de Benjamin, funciona através da revelação de um negativo. Assim, a imagem que vemos,

1
2
JAMESON, pg. 33.

6
colorida, sempre seria, forçosamente, resultado de um processo de reprodução imposto
pelo próprio suporte. É necessário que enxerguemos as mudanças que foram operadas na
sociedade em razão de tal processo, não só como fez Benjamin, mas também suas
consequências para os demais campos da arte na sociedade, e aqui mais precisamente o
da literatura.

7
Fragmentos da história / da produção à reprodução

A transição do sec. XIX para o XX é marcada pela evolução do capitalismo. Desde


meados do sec XIX, o capitalismo já se anunciava cada vez mais globalizante – e nesse
sentido, figuras como as de Marx e Engels estiveram extremamente sensíveis a esse
processo de globalização empreendido pela segunda fase do capitalismo. Se, na sua
primeira fase, possuíamos um sistema que se dedicava a encontrar um denominador
comum entre todos os objetos e ideias -- o capital -- na segunda, possuímos uma
aceleração do processo anterior, com o aumento da produção de recorte industrial.

A segunda revolução industrial foi o período heroico do capitalismo. O momento


em que a civilização humana estava crescendo desmedida e irresponsavelmente. Nesse
período, possuímos marcas fortes de processos imperialistas/colonialistas. O sujeito
ocidental, sua ideia, tal como era concebida pelas filosofias da era moderna (o
iluminismo, Descartes etc), estava no auge. O conhecimento, nesse sentido, durante muito
tempo, esteve a serviço desse sujeito “falogocentrico” (como bem coloca Derrida),
defendendo todas as suas posições e atos – o positivismo. Subjugar outras culturas era
necessário. Absorve-las e destruí-las, também. Podemos compreender esse período, o fim
do sec IXX, também como a época das absorções, onde a sociedade ocidental, através
dos mais variados processos de colonização, tentava dar conta de outros sistemas de
organização e representação da realidade que não lhe pertenciam.

Podemos compreender a segunda revolução industrial, também, como a era das


produções. Ora, basta que observemos as tecnologias que, à época, estavam surgindo.
Datam do período de industrialização a invenção dos motores a vapor e a gasolina, por
exemplo. A invenção de tais maquinas é muito interessante para pensarmos o momento
histórico das duas primeiras revoluções industriais. Assim como essas maquinas (que na
verdade são apenas um exemplo de todas as outras maquinas que haviam de ser inventas
na mesma época), o capitalismo das duas primeiras revoluções industriais era um sistema
de produção. Com os processos de imperialismos e colonização correndo a toda, o
humano se viu diante da um mundo que ele até então não conhecia; seus recursos, lhe
parecia, poderiam beirar ao infinito.

8
Assim, aliado a uma aparente infinidade de recursos e a uma lógica de produção
que estava aos poucos se massificando, o capitalismo seguia sendo comandado pelo
sujeito ocidental. É interessante que reparemos nas paridades culturas criadas pelo então
novo sistema de produção industrial. Foi durante a primeira revolução industrial que toma
forma o movimento do romantismo. O romantismo, então, é fruto de uma sociedade da
produção – assim como é fruto do colonialismo e do imperialismo.

Ser fruto de uma sociedade da produção, aqui, quer dizer muito: foi o momento
em que a arte ganhou centralidade, passou a produzir objetos que eram relevantes
culturalmente e que, mais precisamente, eram produto de um sujeito, de um indivíduo –
tal tipo de produção está intimamente ligado a setorização do mercado artístico,
consequência direta da divisão de trabalho. De fato, o romantismo, em oposição ao
classicismo, ajuda a sedimentar toda uma noção moderna de sujeito e de individualidade
burguesas. É no romantismo, por exemplo, que possuímos a noção moderna de autoria e
a criação de originalidade do gênio.

É claro que a ideia do autor é algo que precede o romantismo. Desde os gregos, o
autor já está ali; aquele nome que permite que um texto siga na história sem que se perca
seu referencial temporal/geográfico de origem. Mas o autor, a partir do romantismo, passa
a exercer uma função diferente: ele se associa a ideia de individualidade e identidade
burguesas,

Ora, a noção de gênio e originalidade possuem um forte teor mercadológico3. Não


à toa, atribui-se o nascimento do gênio, e mesmo a noção de autoria, ao romantismo4.

3
“cant beat the real thing”, « a cada segundo tem alguem que pede coca-cola, compra coca-cola, bebe
coca cola”,“abra a felicidade”,“novas escolhas, o mesmo prazer”. Enxertos de propagandas da coca-cola.
É possível reparar como o mercado movimenta, fortemente, a noção de indivíduo, atualmente.
Portanto, ser indivíduo significa ao mesmo tempo possuir o poder de consumo, mas estar restringido a
consumir aquilo que o mercado nos impõe. Isso fica evidente diante de propagandas como essa. O
retorno ao mesmo, de alguma maneira, é sempre inevitável.
4
“Gênio original: essa expressão comum é, em seu cerne, uma tautologia. O Oxford English Dictionary
nos diz que original vem do verbo latino oriri, surgir, nascer; o latim genius, como genesis, deriva de gen,
a raiz de gignere, gerar, que vem do grego gignesthai, nascer. Na crença pagã clássica, um genius era ‘o
deus tutelar ou o espírito patrono dado a cada pessoa ao nascer, para governar suas fortunas,
determinar seu caráter e, enfim, conduzi-lo para fora do mundo; também, de modo semelhante, o
espírito tutelar e controlador se conecta a um lugar (genius loci), uma instituição etc.’ Até o final do sec.
17, gênios bons e maus controlavam nossos destinos; a primeira ocorrência de gênio no sentido
moderno de uma ‘habilidade ou capacidade; qualidade da mente, o dote especial que se adequa a um
homem [sic] por seu trabalho peculiar’ se encontra em Milton (1649), e, ainda que os homens possam
ter um gênio para isso ou para aquilo, a noção de uma pessoa individual ser um gênio foi uma invenção
do sec. 19, sobretudo da Alemanha na época do Sturm und Drang. E, é claro, os gênios de Beethoven ou
Goethe precisavam ser originais: o nome originalidade, definido pelo Oxford English Dictionary como ‘o

9
Historicamente o romantismo se situa em um período de forte ascensão da burguesia e
industrialização da sociedade. De alguma maneira, o nascimento do capitalismo clássico
vai de encontro diretamente ao nascimento da autoria, da originalidade e do gênio. É
sensível, nesse sentido, que hoje estejamos passando por uma atual crise dos dois
sistemas. Genialidade e capitalismo fazem parte de um mesmo tempo histórico. É
possível, mesmo, que compreendamos que o capitalismo é indissolúvel da noção de
autoria e de gênio – a propriedade privada, por exemplo, é um evidente desdobramento
da noção de autoria (a autoria, por si só, já pressupõe autoridade sobre um x produto da
criatividade humano). A crise no sistema capitalista (o que não quer dizer que ele esteja
colapsando, apenas mudando), então, aponta seriamente para a crise da autoria. Durante
a primeira e segunda revolução industrial, o problema do capitalismo era a questão da
interiorização do externo – como já foi dito mais acima. Como ele poderia assimilar
aquilo que não participava de si sem abandonar a si mesmo? A questão se resolveu através
da capitalização de tudo. Hoje, tudo é perigosamente horizontal. Tudo perdeu sua aurea5.
Nada mais é único6.

No entanto, podemos compreender que hoje o problema enfrentado pelo


capitalismo é justamente o inverso: como ele pode sobreviver sem possuir um fora que
possa ser colonizado? Tudo se tornou moeda de troca e espetáculo – isso se expressa
muito bem pela ideia de pinkmoney, por exemplo. Isso seria um dos fortes argumentos
para que o temido fim da história já chegou. Como defende Jamesson, nós não somos
mais capazes de produzir novos futuros, mas apenas de reproduzir passados e projeta-los
no futuro7. Assim, estaríamos presos numa espécie de mito sisifiano em escala mundial,
onde seriamos apenas capazes de levar a mesma pedra até um certo mesmo ponto. A
pedra carregada por Sísifo, a meu ver, é como a reprodução no sistema capitalista: existe
uma sensação do novo, de que algo está progredindo, mas todo esse progresso é ilusório,
é uma simulação de progresso, e o que estamos fazendo é apenas soerguer a mesma pedra
há muito tempo.

fato ou atributo de ser primário, originário; auntenticidade, genuinidade’, fez sua primeira aparição em
1776, em travels in spain, de H. Swinburne: ‘Uma das mais valiosas pinturas do mundo. Não sei como
Amiconi veio a duvidar de sua originalidade’”. (PERLOFF, pg. 56)
5
O conceito de aura será particularmente caro ao longo desse ensaio. Terei a oportunidade desenvolve-
lo mais à frente.
6
FISHER, pg. 12
7
JAMESON, pg. 33.

10
É aqui que chegamos no momento que me interessa. Se o a primeira e a segunda
revolução industriais foram marcadas pela produção, tanto tecnológica quanto
socialmente, a terceira revolução industrial, que tem início no final do período da primeira
e segunda guerras mundiais, é dominada pela reprodução. Basta que observemos as
tecnologias que melhor a representam: a máquina fotográfica, a televisão – e,
posteriormente, o computador e a web. São todas tecnologias que estão dispostas muito
mais a reproduzir um conteúdo do que necessariamente produzi-lo.

A principal diferença entre uma e outra, produção e reprodução, repousaria,


justamente, na lógica de concepção histórica-econômica-cultura. Se a primeira concebe a
história como uma linearidade, onde o velho dá lugar ao novo – e o conceito de novidade,
na era da produção, ainda era possível--, se, economicamente, possuímos relações de
exploração evidentes entre a burguesia e proletário, e culturalmente ainda podemos falar
em conceitos de identidade e representação etc., na segunda, tudo isso viria a cair por
terra. O que era linear, se torna circular, sem tempo, sem lugar – as relações entre os Ceo’s
das corporações e seus empregados se tornam cada vez mais sutis e dissolvidas – basta
ver a Uber, por exemplo, em que não possuímos nem um horário fixo nem um chefe, no
sentido mais banal do termo, para fiscalizar nossos serviços: mas mesmo assim, os
funcionários do aplicativo são submetidos a jornadas de trabalho cada vez mais longas e
abusivas em função de ganhar algum dinheiro. A Uber, de fato, é uma empresa
característica do período da reprodução. É praticamente impossível que seus empregados
rastreiem ou saibam quem os empregou; tudo que eles têm acesso se limita ao que o
aplicativo lhes apresenta. Sua relação com o empregador é uma relação anônima,
unicamente mediada pelo capital. Aqui é muito importante que reparemos na anonimia
do processo. Para a Uber, cada um de seus funcionários é uma cifra, um número. Eles não
possuem vida; o que possuem – e aqui estamos alinhados às teorias do marxismo
clássico—é a força de trabalho. No entanto, o que muda é justamente o ponto que se
encontra ausente no processo: o humano. Trabalhar para Uber não é bem como ser
funcionário de uma empresa de taxis local. Na empresa de taxi, o empregado possuiria
uma relação de presença com seu contratador (. Trabalhar para a Uber é como que
trabalhar para uma máquina, e o que quero defender, aqui, é que essa máquina que omite
as partes humanas do processo é justamente o capital. Talvez máquina não seja o melhor
nome, mas certamente podemos chama-lo de tecnologia. Neste ponto, o capital pode ser
concebido como uma entidade que assimilou tudo em si mesmo. Ele é como o monstro

11
do filme de Jonh Carpenter8. Assimila a forma com o fim de simular uma aparência. O
capital é a superficialidade levada ao extremo. Debord coloca muito bem essa questão. E,
se aplicarmos tais leis à indústria cultural, percebemos que a imagem no capitalismo
apaga as relações reais que existem entre a sociedade humana9. No lugar do calor do
corpo, temos a frieza da máquina.

Assim, gostaria de pensar a literatura em face de tais mudanças.

Aura: pg 23. Pg 27

8
The Thing, lançado em 1982, é um filme de terror em que uma equipe de pesquisa na Antártica é
caçada por um alienígena que muda de forma e assume a aparência de suas vítimas.
9
Na tese de numero 4 de seu livro a “sociedade do espetáculo”, Debord nos diz : “O espetáculo não é
um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. de certa
maneira, essa tese é capaz de sintetizar todo o jogo arquitetado por Debord ao longo de seu livro. A
tensão entre o real e a simulação, entre a mentira e esse momento da que chamamos verdade, todas
elas seriam resultado direto dessa omissão do humano pela imagem.

12
O não gênio a não expressão

A literatura, a meu ver, se encontra em um momento delicado da história. Me


parece que, assim como muitos tem se referido a um certo fim da historia, no sentido dela
já ter se esgotado enquanto técnica artesanal. Ora, se pensarmos historicamente, o início
do sec XX significou para a literatura a explosão do suporte sintático comum. O
capitalismo estava rapidamente transitando de um sistema local para um sistema
globalizado, onde a experiência individual burguesa estava prestes a dar lugar para a
experiência geral das massas (o que marcaria a transição entre uma sociedade da produção
para uma sociedade da reprodução). Benjamin10 compreende muito lucidamente esse
processo. A mecanização como meio de contato entre a obra e o expectador traria uma
nova relação entre este e aquele – e no fim, certamente modificaria a “obra de arte”. Já
não seriam mais os museus vazios a serviço de alguns poucos indivíduos que
determinariam o caminho da arte, mas as grandes salas de cinema lotadas por pessoas de
todos os tipos do tecido social11, segundo Benjamin.

As novas tecnologias de comunicação, então, trouxeram drásticas mudanças para


o suporte artístico e sua relação com o receptor. Podemos pensar, aqui, num movimento
de crise.

Seja negando ou continuando a história, uma coisa é inegável: houve um


momento de extrema negatividade em que a linguagem passava a ser considerada não
como um veículo transparente de informações, mas como uma superfície opaca e
absorvente12. Tal diferença pode ser exemplificada pelas teorias poéticas dos formalistas
russos, principalmente as de um Roman Jakobson13, por exemplo. O suporte linguístico
não tentava mais esconder sua relação precária com a realidade, pelo contrário,
arbitrariamente acentuava a desconexão entre significado e significante. É claro que tal
revolução não era desmotivada. O início do sec XX, principalmente as três primeiras

10
Benjamin, pag. 29.
11
Benjamin ainda chega a falar da crise dos próprios museus também, que não sustentavam a
quantidade de pessoas que se apresentavam para ver um único quadro. O problema aqui é conceitual,
mas também material, logístico.
12
Tal opacidade da obra fica evidente em livros como o Finnigans Wake, de Joyce, um livro quase
impossível de ler, de tão denso. De fato, o livro possui, em sua composição, mais de 8 línguas, vivas e
mortas, o que já nos dá uma noção das dimensões de dificuldade apresentadas por tal leitura. É claro
que Joyce se tornou um dos nomes mais conhecidos se tratando de literatura “densa” e para
“iniciados”, mas possuímos exemplos no brasil como o grande sertão de Guimarães Rosa, que se perde
numa espécie de dialeto caipira cosmopolita, local e ao mesmo tempo mundial.
13
Vide “linguistica e comunicação”, Roman Jakobson.

13
décadas, foram extremante conturbadas. Novas tecnologias estavam surgindo, alterando
assim a percepção da realidade do humano (despertando uma espécie de inconsciente
corpóreo14, como Benjamin coloca muito bem). Foi nesse período que, também, as duas
grandes guerras eclodiram etc. Enfim, a globalização estava em direção de se consolidar
e prestes a tomar a sua última forma – que hoje podemos sintetizar numa espécie de
formula da não distância e da atemporalidade.15

Essa explosão dos suportes está fortemente relacionada ao surgimento de novas


tecnologias de comunicação, que colocavam em suspeita as relações que até então se
havia construído com os objetos artísticos. O movimento de explosão do suporte sintático
estava fortemente associado, então, às novas mídias da palavra. Um pouco como na
pintura, que ao se ver diante de uma invenção como a fotografia foi forçada a criar novas
necessidades de expressão que não fossem tão vinculadas à verossimilhança do real, a
literatura tentou responder a tais tecnologias. Assim, ela foi se tornando cada vez mais
experimental ao longo dos modernismos, e seu foco passava a se tornar cada vez mais
uma poética da forma – no sentido dos formalistas russos16. Assim, como demonstra
Burger, as vanguardas artísticas, estavam muito interessadas, em geral, em
experimentações formais que esgotassem ou programaticamente resinificassem o suporte
artístico – tal resposta diante da realidade, para Burger, seria uma herança do esteticismo
da arte do final do sec. XIX que, uma vez que se desvinculou do mercado de consumo
ordinário (pois a arte também sofreu com a setorização de mercado empreendida pelo
capitalismo da segunda revolução industrial, que dividia cada vez mais fortemente
produto da produção e do produtor – pensar aqui, principalmente, na alienação), se viu
presa a círculos de apreciação altamente burgueses e supostamente “cultos”17. As
vanguardas, portanto, foram uma herança desse tipo de “arte pela arte”, interessada em
falar mais sobre a própria arte em seu recém-criado universo burguês do que em
estabelecer contato com a sociedade. Daí as vanguardas significarem, para alguns, uma

14
BENJAMIN, pg.
15
O conceito de aura, apara Benjamin, expressa muito bem essa questão. Para ele, a aura de uma obra
seria justamente aquilo que
16
Um dos principais lemas do formalismo russo era o da arte como procedimento: a forma que pensa e
acompanha a função.
17
« O conceito de autonomia da arte é a pedra de toque fundamental da teoria de Burger,
indispensável para compreender a sua ideia de vanguarda. O autor identifica a autonomia com o
atributo da arte burguesa sobre o qual a instituição estabelece a sua estrutura ideológica.”
(BURGER, introdução à teoria da vanguarda, pg.5)

14
espécie de erro na arte18. No entanto, possuir uma compreensão mais ampla a respeito
das vanguardas é fundamental para compreender o momento atual da arte em geral e,
principalmente, da literatura.

É curioso que, para nos referirmos aos movimentos artísticos do início do sec XX,
utilizemos um termo de origem bélica. “Vanguardas”. Só isso já é capaz de nos dizer
muito a respeito do momento em que esse tipo de arte estava sendo produzida. Em um
exército, cabe a vanguarda estar na frente. Ela será a primeira parte do batalhão que
entrará em contato com o oponente.

É característico das vanguardas uma certa violência com a história – e aqui, o


termo vanguarda adquire uma força bélica maior ainda. As vanguardas, em certa medida,
violentaram a história da arte. Tal violência se justificava por uma certa necessidade do
novo – daí serem chamadas de vanguardas; elas estavam à frente (avant) da história, cabia
a elas, de alguma maneira, compreender como a arte passaria a funcionar diante de tantas
mudanças. Nesse sentido, o caso do DADA é especialmente sintomático. O dadaísmo, de
todos os movimentos de vanguarda, foi o que mais recusou a história da arte, a ponto de
declarar que aquilo que estava sendo produzido dentro do movimento poderia ser
qualquer coisa, menos arte. É claro que observando retrospectivamente nem mesmo o
DADA foi capaz de sobreviver ao cânone artístico e à cultura do consumismo. Isso quer
dizer que, uma vez absorvido pelo cânone e pela cultura do consumo, ele nega seu
programa original. Porém, isso demonstra como o programa do DADA era em grande
medida frágil e incapaz de se manter novo ao longo da história. Isso não quer dizer que o
DADA seja um movimento em si insuficiente, mas apenas que ele participa, ainda, desse
período histórico que caracterizei como o período da produção—assim como todas as
vanguardas em geral. Uma das principais características da arte no período da reprodução,
em contrapartida, seria o fenômeno do consumismo – essa necessidade de se manter
sempre em mutação, efêmera mas também permanente.

18
Lukács utiliza o conceito de “realismo crítico” para estabelecer uma ligação entre, de um lado,
realismo e progressismo social (agrupando aqui as correntes herdeiras do renascimento e do
iluminismo, as correntes “sadias” da burguesia, e os escritores a serviço da URSS) e, do
outro lado, abstracionismo, irracionalismo e reacionarismo social. Tal
ponto de vista levará a diversos julgamentos estéticos lamentáveis, desde a crítica a Kafka
até seus violentos ataques contra todos os tipos de arte de vanguarda, em particular ao
expressionismo e aos surrealistas – igualados como produtos decadentes da época
imperialista.

15
Propor uma literatura da não-expressão-não-criatividade não apaga a história da
literatura. Não estamos falando do fim da literatura, no sentido de um fim, um
distanciamento e uma alienação da sua própria história. As vanguardas clássicas, elas sim,
diante da crise dos suportes artísticos (que geralmente é promovida pelo movimento de
massificação de novas tecnologias), tinham como projeto um rompimento com a
história19. O dadaísmo quis suprimir a arte sem a realizar. Os objetos produzidos pelo
DADA eram ao mesmo tempo alienados da história da arte e engajados socialmente.
Inclusive, sua alienação histórica diante da arte vinha justamente porque eles se
utilizavam de objetos que, por serem muito comuns, muitos pertencentes ao cotidiano das
massas (basta pensar na fonte de Duchamp), não poderiam estar inseridos no universo da
arte, ou pelo menos da ideia de arte que até então se havia construído. É curioso pensar
que o DADA acabe justamente no momento em que é absorvido pelo universo da arte,
ou seja, no momento em que se torna parte do processo histórico. Ao se tornar história, o
DADA não poderia continuar existindo.

Mais sintomático ainda é que, apesar de se utilizar de objetos que participavam


ativamente do cotidiano das massas (existem passagem em Joyce, por exemplo, que
parecem que foram transcrições exatas de conversas nas ruas de Dublim, com aquele
inglês quase incompreensível se lido como literatura, perpassado por gírias etc.) a
vanguarda sempre foi tida como para iniciados ou de difícil compreensão para as massas.
E de fato, isso era reflexo de uma sociedade que ainda estava se adaptando a novas
maneiras de consumir a arte. Benjamin é capaz de enxergar isso com muita clareza, por
exemplo. Para ele Charles Chaplin faria o mesmo tipo de comedia empreendida pelos
dadaístas – uma comedia que provocasse o espectador etc. —mas, por se utilizar de um
suporte que possuía muito mais visibilidade do que os que usados pelos dadaístas (que
apesar de criticar a lógica de consumo da arte burguesa de alguma maneira nunca
conseguiram escapar dela), ele foi capaz de se inserir no imaginário das massas, a ponto
de, hoje em dia, ser considerado um dos pioneiros do cinema moderno. Esse suporte, é
claro, era o cinema. Daí compreendermos o período heroico das vanguardas (+/-1910-
1930, ou até os últimos sopros do surrealismo) como um período que se alinhava ainda a
sociedade de produção. Já Chaplin, através do cinema, jogava com questões mais

19
Tal rompimento, evidentemente, possuía um sentido programático. Basta que reparemos,
novamente, no nome que se atribuiu a arte de tal período “Vanguarda”. É quase como se as vanguardas
estivessem encarregadas de enfrentar, sozinhas, esse futuro que estava chegando muito rapidamente.
Daí, muitas vezes, muito da produção da vanguarda nos parece ou muito complexa ou

16
complexas de massificação da obra de arte que, certamente, estavam muito mais
conformes aquilo que chamo de sociedade da reprodução. Assim, Chaplin era esse ser
cambiante, misto entre mendigo e ditador – seu visual era signo da decadência da
sociedade ocidental: parodia de Hitler que se vestia como mendigo, talvez indicando a
miséria na qual o humano tinha submetido a si mesmo através de processos exploratórios
empreendidos pelo capitalismo. Ele não era apenas um indivíduo, não possui apenas um
sujeito dentro de sua imagem: era várias pessoas, possuía várias personalidades que,
frequentemente, eram contraditórias entre si. Sua imagem jogava com representações
que, na época, eram extremamente provocativas e sedutoras. Esse jogo, estava em vias de
se formar na arte de recorte mais “culto” desde o fim do sec. XIX – vide poetas como
Rimbaud, por exemplo. Chaplin, porém, ao ser incorporado pelo mercado da imagem,
compreende perfeitamente que, dali em diante, o interesse estaria muito mais na
fragmentação da expressão individual do que na unidade, na coerência de apenas uma
expressão, de apenas um indivíduo.

De fato, a questão da expressão é um problema que se inicia já no fim do sec XIX.


Na literatura, por exemplo, podemos ver em figuras como as de Mallarmé o início da
crise do sujeito na arte. Mallarmé, muito acuradamente, é um dos primeiros artistas que
suspeita fortemente da expressão de um “eu” que esteja por trás do gesto da escrita. Não
à toa, ele viria a ser um dos principais responsáveis por encetar a crise do verso, que se
desdobraria durante boa parte do século vinte (se aliando, assim, àquilo que chamei mais
acima de explosão do suporte sintático comum). Em Coup de dés, provavelmente um de
seus poemas mais importantes, possuímos um raro momento de vaticínio e sensibilidade
da arte, em que os versos, ao invés de estarem escritos linearmente da esquerda para a
direita, um embaixo do outro, estão arbitrariamente dispersos ao longo das páginas, na
tentativa de acentuar os brancos que haveriam entre uma expressão e outra – como em
uma partitura musical, segundo o próprio Mallarmé. A ideia de arbitrariedade é
extremamente cara a Mallarmé. Todo seu projeto poético se resume, de alguma maneira,
a elimina-la-- através do acaso20-- da linguagem. Sua intenção seria, então, livrar a

20
A ideia do acaso e da aleatoriedade será de extrema importância para o desenvolvimento da arte e da
literatura ao longo do sec XX. Acredito que ela merecesse um enfoque maior ao longo desse ensaio, mas
por falta de tempo e espaço, acredito que deixarei para uma próxima oportunidade. Mas a título de
exemplo, basta que observemos a produção de 3 grandes artistas do sec XX. Duchamp, que durante
todo seu corpo de obras se preocupou com a ideia do jogo, do acaso, etc. Gertrude Stein, que em seus
livros trabalha com pedaços de linguagem associados, em sua maioria, de maneira aleatória e John

17
linguagem de qualquer intenção de um “eu” de forma que ela restasse pura linguagem,
pura enunciação; não querendo expressar nada mais que a si mesma. É claro que esse
projeto, a meu ver, possui sérias dificuldades, de cunho não apenas literário como também
profundamente econômicas e filosóficas – não à toa Mallarmé seria tão revisitado pela
filosofia pos-estruturalista, por exemplo; e muito do seu pensamento foi responsável pela
“morte do autor”. O conceito de morte do autor desenvolvido pelo estruturalismo/pós-
estruturalismo é interessante na discussão, aqui, na medida em que evidencia uma certa
preocupação da crítica em compreender o fenômeno da não expressão característico da
literatura que estava transacionando de um período da produção para a reprodução em
massa. Focault, por exemplo, vai além de Barthes e atribuí a morte do autor a um certo
fim de uma lógica de consumo que fosse estritamente burguesa. Assim, “Se o motivo pós
estruturalista da ‘morte do sujeito’ significa algo no âmbito social”, escreve Jameson, “ele
assinala o fim do individualismo empreendedor e dirigido interiormente, com seu
‘carisma’ e seu arsenal categórico de exóticos valores românticos que o acompanha, como
o do ‘gênio’ em primeiro lugar”. A nova ordem “não precisa mais de profetas e videntes
do tipo carismático e do alto modernismo (...) Tais figuras não mais detêm qualquer
encanto ou mágica para os assuntos de uma era corporativa, coletivizada, pós-
individualista.”21 Jameson prossegue para explicar como, na era do simulacro, a teoria do
gênio está simplesmente passé. De fato, os próprios modernistas agora foram reificados
como “clássicos” da sala de aula – e assumiram, portanto, uma posição de segurança,
desinteressantes e passando em grande parte sem serem lidos.

Historicamente, a arte tentou lidar de maneira criativa e original com a questão


da expressão. Temos o extremo desse esforço empreendido nas vanguardas; seu
esteticismo é herança direta desse tipo de esforço. É o momento em que a arte começa a
se dar conta dos seus limites frente a novas organizações e tecnologias sociais, e sente
que deve se atualizar em função de continuar existindo. A ideia da expressão é
caraterística do sujeito. Em uma sociedade de sujeito não-sujeito, de sujeito
descentralizados de seus próprios eixos, o que é a expressão? Assim, a crise da arte está
intimamente ligada à sociedade da reprodução22, onde noções de sujeito, expressão

Cage, um dos criadores da música estocástica, que via no I Ching uma fonte para produção – não
criativa—de partituras musicais.
21
Fredric Jameson, conclusão de Postmodernism, or the cultural logico f the late capitalismo, Durham,
NC, Duke University Press, 1991, p.306.
22
A reprodutibilidade tecnica, como bem percebe Benjamin, coloca em cheque a ideia de que exista um
original do qual a série derive—“ A esfera da autenticidade, como um todo, subtrai-se à

18
original/individual são colocadas completamente em cheque pelo movimento de espelho
da sociedade.

É sintomático que em um dos seus escritos a respeito do concretismo, decio


pignataria use a frase “contra a poesia de expressão”23, e em um outro critique a poesia
tradicional por não ser capaz de incorporar o barulho das maquinas etc. Com o seu projeto
artístico, o concretismo buscava uma maneira não de representar a realidade, mas de
apresenta-la, com o mínimo da expressão do eu possível (algo tão comum na poesia,
principalmente naquela de recorte lírico, que cresce eternamente nas terras brasilianas—
aquilo que os concretos chamavam, ironicamente, de “poesia lágrima”). O concretismo
foi um dos últimos suspiros daquilo que podemos chamar de período heroico das
vanguardas, assim como uma das últimas manifestações da vanguarda de recorte clássico.
Extremamente programático, o concretismo possuía claras intenções para a literatura, que
remontavam a figuras como Joyce, Mallarmé, Gertrude Stein e Oswald de Andrade, por
exemplo. Como aponta Goldsmith24, o concretismo foi um movimento de cunho
internacional; para os concretos, seus poemas deveriam funcionar em qualquer língua e
em qualquer cultura. Isso porque eles possuíam um programa que era (ou tentava ser), de
fato, cosmopolita. Isso é extremamente importante para compreendermos o ponto da
discussão aqui, e não apenas porque os concretos estivessem realmente atentos a uma
necessidade de globalização da arte, mas porque a maneira como eles articulavam a
realidade estava em contanto direto com essa espécie de “cultura mundial” que a cultura
de consumo viria a desenvolver, ao longo da segunda metade do sec. XX.

Mas, de fato, existe qualquer coisa de antiquado no concretismo. Sua produção,


apesar de, na época em que ocorreu, estar em diálogo direto com aquilo que havia de mais
contemporâneo na produção artística literária visual musical– inclusive já antecipando
questões colocas pela escrita conceitual, como a apropriação de textos com a intenção de

reprodutibilidade técnica- e, naturalmente, não só a que é técnica” (Benjamin, pg 19). Se são todos
iguais, porque eu devo atribuir mais importância ao que veio primeiro? É quase como se a originalidade,
sua produção, não fosse capaz de alcançar a velocidade da reprodução técnica. Daí a ideia da Fake News
ser particularmente interessante aqui. É claro que não me escapa o perigo que ela pode representar
para o sistema de representações em uma sociedade; bem como todo o pensamento da pós-verdade
em geral. No entanto, o que me interessa é reparar como as demandas atuais mudaram frente a criação
de narrativas e discursos. É quase como se houvesse mais interesse justamente naquilo que é falso etc.;
e acredito que esse interesse não seja desmotivado. Pois, afinal de contas, na web tudo pode e não
pode ser: o interesse pelas Fake News seria um reflexo da lógica de funcionamento da web e da
sociedade de reprodução como um todo.
23
Teoria da poesia concreta, pg 68.
24
Goldsmith, Uncreative Writing, Language as Material.

19
provocar o mercado de consumo, como no poema coca-cola, de Décio Pignatari,
analisado mais a frente--, pareceu nunca superar o estreito círculo de alguns artistas e
poetas, novamente considerados iniciados; e como boa parte da produção das vanguardas,
também sofreu ataques no sentido de ser obscura e de transmitir mensagens que não eram
direcionadas às massas. Kenneth Goldsmith, um dos principais expoentes e idealizadores
da escrita conceitual, nos apresenta uma ideia interessante a respeito de tal fato. O
concretismo, assim como os dadaístas quando comparados a Chaplin, ainda não possuíam
o ambiente necessário para divulgarem suas ideias e poemas. Goldsmith, no entanto,
defende que, hoje em dia, a coisa teria sido diferente. A internet lhe parece o suporte ideal
para compreendermos o que foi o concretismo25. E de fato, não precisamos nos esforçar
muito para enxergarmos correlações evidentes entre o concretismo e a maneira como a
palavra é tratada na web. Assim, o concretismo funciona como uma espécie de link entre
a literatura e o suporte da web, e uma de suas principais heranças é compreender a forma
do texto como sendo tão importante quanto seu conteúdo. Assim, conteúdo e forma são
parte indissolúveis de uma mesma coisa. E é aí que encontramos a escrita conceitual.

25
“Eu fiquei atordoado. Tudo que Pignatari dizia parecia prever o funcionamento da internet (...) o
envio, o conteúdo, a interface, a distribuição, as características multimídia, só para citar alguns
elementos. De repente, fez sentido: como na famosa declaração de Kooning: “A história não me
influencia. Eu que influencio a história”, demorou até a vinda da Web para vermos o quanto a poética
concretista foi pré-ciente em prever sua própria e calorosa recepção meio século depois. De imediato,
compreendi que o que faltava para a poesia concreta era um ambiente apropriado em que ela pudesse
florescer. Por muitos anos, a poesia concreta tem estado numa espécie de Limbo: um gênero deslocado
em busca de um novo meio. E agora, ela o encontrou”. Kenneth Goldsmith, From (Command) line to
(iconic) Constellation, em Ubuwebpapers, disponível em
www.ubu/com/pappers/goldsmith_command.html.

20
O Poema “Coca-Cola”, de Décio Pignatári – um dos fundadores do concretismo
no Brasil--, é um excelente exemplo da trajetória e legado deixados pelo concretismo.
Escrito na clássica e predileta fonte do movimento concreto, a Futura Bold – fonte,
inclusive, criada pela Bauhaus--, o poema pode ser considerado uma acida crítica ao
mercado de consumo, onde possuímos clichês propagandísticos que, o tempo todo, nos
impõe a consumo de uma nova mercadoria. De fato, o poema é uma parodia evidente da
própria identidade visual da coca cola: o vermelho e o branco, a primeira frase, que é, de
fato, uma propaganda da coca cola etc. Assim, podemos entender que Décio, para criticar
o mercado de consumo, aplica a mesma lógica que o mercado aplica para ser consumido,
que é a ideia do espelho, a ideia de um objeto que, facilmente, possa apelar para a
identidade do individuo consumidor. Porém, onde, na propaganda original da coca-cola,
possuiríamos uma mensagem de caráter positivo, algo que afirmasse a subjetividade do
indivíduo – geralmente apelando para a ideia de que o produto coca cola pode trazer
felicidade se consumido --, Décio a preenche com um caráter negativo, que atinge seu
ápice ao final. A cloaca, então, seria aquilo que a coca-cola verdadeiramente significa
para o consumidor: lixo, algo que sai do órgão excretor de um pássaro. Décio é sagaz. Se

21
utiliza da linguagem do consumo para efetuar uma crítica à linguagem do consumo, e ao
fazê-lo expõe a ideologia por trás de uma suposta felicidade do discurso da sociedade de
consumo. É interessante, ainda, que reparemos que o autor, apesar de modificar a
propaganda original, faz poucas mudanças, se limitando muitas vezes a efetuar anagramas
da primeira frase “beba coca cola”. Isso estaria de acordo com a ideia de se utilizar, cada
vez menos, a subjetividade, a originalidade etc. para produzir obras de arte. De fato, ser
indivíduo numa sociedade de consumo, talvez, já esteja gastado pelos produtos que essa
mesma sociedade nos impõe

22
A desapropriação do próprio
Em seu livro DAY, Kenneth Goldsmith transcreve todas as palavras e símbolos da
edição de 1 de setembro de new York times. O resultado? Um livro de 836 páginas que
levou X anos para ficar pronto. O que me chama atenção nesse livro é como seu autor
concebe a linguagem. E mais precisamente a maneira como ele a expressa. O livro, por
exemplo, possui paralelos interessantes com a história da arte e da literatura em geral.
Como no Ulyses, de James Joyce, possuímos um livro que é o recorte de um dia. E, de
fato, basta que reparemos em algumas páginas do livro para percebermos que,
graficamente, o livro se assemelha muito a experimentos presentes nas poesias de uma
Gertrude Stein ou em produções textuais do DADA. Ao traduzir um suporte não literário
(o jornal) para um literário (o livro), Goldsmith acentua o caráter estranho da linguagem
do dia-a-dia. Nesse sentido, ele está muito próximo de um certo projeto pop das
vanguardas em geral, esse de se utilizar de objetos do cotidiano, pois estes, porque não
foram ainda incorporados pelo imaginário do que geralmente se considera arte, ainda
seriam capazes de provocar um estranhamento no espectador. O jogo é sutil, e me lembra
muito uma certa posição warholiana, de transformar a cultura de consumo em cânone e o
cânone em cultura de consumo26. Esse seria, a meu ver, uma das principais características
da escrita conceitual – da forma como é trabalhada em Goldsmith, ao menos.

Um outro aspecto que vale ainda ressaltar é o conceito da obra. Ora, apesar de ser
um livro, ele não é propriamente feito para ser lido. Ao menos não da maneira tradicional.
O próprio Goldsmith já acentuou esse aspecto de seus trabalhos em geral: são livros muito
grandes, quase sempre tratando de temas muito banais e, portanto, maçantes27. O objetivo
do objeto livro, então, passa a ser outro. Sua economia se modifica, se torna mais veloz;
como uma propaganda, baste que nós passemos os olhos para que compreendamos, quase
que instantaneamente, seu objetivo. O livro já não é mais um objeto de contemplação,
diante do qual o leitor deve passar algumas horas em função de decodificar uma narrativa.
Nesse sentido, ele não seria um objeto de absorção individual, que pretenderia trabalhar
as várias nuances de um indivíduo. Ele não convida o leitor a permanecer nele. Muito

26
“Andy Warhol was an unoriginal genius, one who was able to create a profoundly original body of
work by isolating, reframing, recycling, regurgitating, and endlessly reproducing ideas and images that
weren’t his, yet, by the time he was finished with them, they were completely Warholian ».
(GOLDSMITH, Uncreative Writing,
27
Em uma entrevista, o autor indica que seus livros seriam mais interessantes no sentido de gerarem
conversas interessantes do que em, propriamente, gerarem leituras interessantes. Disponível em:
https://bombmagazine.org/articles/kenneth-goldsmith/

23
pelo contrário. Como em um espelho, o leitor se encontra diante de um objeto reflexivo,
que ao invés de absorve-lo, o leva a observar outros aspectos da obra, tais como a intenção
do autor em transcrever toda uma edição de um jornal – um objeto que representa o que
é o coditiano—para um livro. A obra, então, não estaria na capacidade criativa do autor
de combinar tais e tais expressões para formar uma narrativa emocionante e atrativa, mas
sim muito mais na sua intenção. Tanto é que ela possui esse caráter receita-de-bolo28. Por
não envolver um procedimento de manufatura artesanal da escrita – no sentido de
enfrentar o laborioso e romântico processo de escrita—qualquer um que entenda o
conceito poderá reproduzi-lo. Portanto, o compromisso da obra não está na originalidade
da expressão individual através de um suporte. Não existe necessariamente um eu que
padeça de nada daquilo que é tratado ao longo da obra (afinal de contas ela é uma cópia
do início ao fim).

No entanto, é importante repararmos, também, que apesar de o próprio Goldsmith


alcunhar a escrita conceitual de “escrita-não-criativa” (em uma espécie de parodia aos
cursos de “escrita criativa”, que possuem a suposta intenção de ensinar a se escrever
criativamente), o exercício da escrita conceitual impõe muitas escolhas criativas que vão
sim, de uma maneira ou de outra, exprimir a individualidade dx autorx. O que deve ser
posto em evidencia, nesse caso, é como a criatividade, a genialidade e a autoria etc. são
concebidos e trabalhados em tais obras. Esse, a meu ver, é um dos aspectos centrais para
a discussão aqui. A ideia de que procedimentos artísticos que dependam daquilo que
comumente se chama originalidade estão em crise porque eles se baseiam em
pressupostos que remontariam ao romantismo burguês.

Um dos principais pilares dessa crise, a meu ver, é o estágio do sistema capitalista
em que nos encontramos, que ao incorporar a arte a espetaculariza. Tornar a obra de arte
um espetáculo significa transforma-la num objeto de poder ideológico a serviço do
consumo – e ideias como gênio, individualidade e autoria, muitas vezes, são usadas

28
Como declara Sol Lewitt, no seu famoso texto « sentenças sobre a arte conceitual”: “6. Se o artista
muda de opinião no meio do caminho, durante a execução da peça, ele compromete o resultado e
repete resultados passados. 7. A vontade do artista é secundária em relação ao processo que ele inicia,
da ideia à conclusão do trabalho. Sua obstinação pode ser apenas ego”. Para Lewitt, então, a arte deve
ser um procedimento distante (como se processado por maquinas) da vontade do artista – ler vontade
como originalidade, autoria etc. A arte conceitual, assim, serve de forte influência para pressupostos e
poéticas trabalhadas ao longo dos procedimentos da escrita conceitual. De fato, a relação entre a escrita
conceitual e as artes plásticas é de proximidade, tanto é que o próprio Goldsmith chega a nos dizer que
“escrita tem muito que aprender com as artes visuais”.

24
apenas como sloogan comercial. Ser original, hoje em dia, é ser um consumidor. A obra,
então, a partir do momento que passa a ser enxergada enquanto produto artístico de
expressão do eu, não possuiria mais um caráter libertador – ao contrário do que queria
Benjamin, que enxergava o avanço da sociedade de consumo como algo positivo e
libertador para as massas29. Aliado ao movimento de espetacularização da arte, possuímos
a perda de si do indivíduo também: como que distraído por esse mundo de espelhos, sua
identidade se dissolveria num esquema contínuo de alienações. Daí a importância de
repensarmos, na literatura, conceitos que são tão caros à individualidade burguesa, como
a originalidade, a autoria, a identidade etc., pois tais conceitos nos parecem cada vez mais
anacrônicos, ainda mais numa sociedade pós-web, por exemplo, onde nada é o que
aparenta ser.

29
É claro que, em certo sentido, Benjamin possui razão. Historicamente falando, a massificação da arte
foi de extrema importância tanto cultural como economicamente. Mas acredito que ainda estejamos
nos ajustando a velocidade que tal associação – arte e sociedade de consumo— possa vir a atingir. No
entanto, é importante que reparemos que a visão de Benjamin é essencialmente positiva. Para ele,
conceitos como os de genialidade e autoria iriam, naturalmente (no sentido de ser um movimento que a
história empreenderia inevitavelmente), cair por terra, porque eram uma contradição em termos com
os novos sistemas de reprodução técnica. E, novamente, ele possui certa razão; mas, ao mesmo tempo,
sua crítica é ingênua ao relevar o caráter ideológico do mercado. Por isso, hoje em dia, o conceito de
indivíduo, apesar de ser datado, ainda possui um extremo apelo social e, principalmente, comercial:
Assim, Eu sou a única pessoa que pode comprar uma coca-cola, por exemplo.

25
3 exertos de DAY,

26
27
28
Como se vê, DAY mais parece um amontoado ininteligível de símbolos do que um
livro que se preste a possuir uma narrativa. Possuímos uma sopa de informações não
digeridas pelo autor. Assim, classificados, tabelas de preços de metais, coordenadas ou
números da bolsa de valores se horizontalizam na medida em que passam a participar de
um mesmo suporte. Sua ininteligibilidade, é claro, é intencional. Goldsmith certamente
quer nos chamar atenção para o excesso de informação, veiculado por palavras, que um
cidadão, em uma urbe como Nova York, tem acesso no dia-a-dia. As palavras, então, se
tornam vazias, e o que sobram são apenas imagens, símbolos e cifras. Se comparado ao
Coca-Cola de Pignatari, o que temos é uma radicalização do processo. Justamente por
não digerir – no sentido de filtrar através de um prisma original de autoria—Goldsmith
nos apresenta a realidade da sociedade de consumo da maneira como ela de fato é:
confusa, ininteligível e impossível de ser digerida.

Novamente, possuímos um certo quê de opacidade provocado pelo texto—como


nos textos da vanguarda. Porém, o interessante aqui é que, ao invés de ter sido escrito, o
texto foi simplesmente transcrito, apropriado. De fato, “DAY” é uma simples edição do
New York Times, simplesmente, nada além disso. Sua sacada, no entanto, está na aparente
simplicidade do conceito. É curioso como, após uma simples mixagem (ou tradução de
suportes), uma linguagem extremamente cotidiana – afinal de contas, nada mais comum
do que um jornal--, se torne assim, tão estranha. Sua estranheza certamente repousa na
sua extrema banalidade: ao ser enfocada como literatura, a língua do cotidiano adquire
um caráter que, aparentemente, não lhe pertence. Novamente, como nas obras de Andy
Warhol, possuímos uma obra que transforma o banal em culto e, na mesma medida,
banaliza o culto, ao demonstrar que um simples jornal pode possuir mais valores literários
e originais do que muito da produção autoral e supostamente original contemporânea. E,
novamente, sem que o autor tenha no mínimo escrito qualquer uma dessas palavras. A
extrema banalidade do código também contribui para um certo quê de realismo que a obra
adquire. Ou melhor, como o próprio Goldsmith coloca, de hiper-relismo.

A poética do hiper-realismo, em geral, está fortemente embasada no jogo entre a


realidade e seu simulacro. Muitas vezes, o que possuímos é um Tromp-L’oeil, por
exemplo. DAY, certamente, pode ser compreendido como um texto camaleão, um tromp-
l’oeil literário. Ao mimetizar a língua de um suporte cotidiano, Goldsmith não só torna a
linguagem de um certo procedimento da vanguarda acessível a qualquer um (contornando
a questão, sempre presente, da vanguarda como movimento para elites), como também

29
faz com que a literatura seja capaz de alcançar, talvez da maneira mais verossímil
possível, a realidade cotidiana de qualquer cidadão de uma grande metrópole capitalista:
essa espécie de imersão numa imensa confusão, onde nenhuma narrativa é linear e tudo,
apesar de ser estranhamente igual, sempre como um reflexo em um espelho, é sempre
diferente. Assim, o texto passa a ser invadido pela realidade das propagandas
reproduzidas de maneira vazia pelo capitalismo; e a grande sacada é justamente essa: a
melhor maneira de criticar o sistema, muitas vezes, é não apenas compreender suas falhas
e tentar combate-las, mas também compreender a maneira como elas se codificam, a
maneira como elas são reproduzidas pelo próprio sistema. Isso, é claro, pode se aplicar
não apenas ao sistema financeiro etc., mas também aos sistemas criados pela arte, como
a literatura. Assim, a melhor maneira de criticar o sistema passa a ser se utilizar da própria
lógica do sistema30. Daí a ideia da não originalidade ser especialmente cara aqui. Ou como
Goldsmith propõe, em um de seus tweets: “ser difícil, é difícil, mas ser fácil, é mais difícil
ainda”.

30

30
Conclusão.

A apropriação é profundamente pessoal e impessoal ao mesmo tempo. A invenção


da web exerce um papel fundamental no dia-a-dia da sociedade contemporânea. Ela torna
tudo mais veloz. E principalmente: nossa relação com os textos mudou drasticamente
desde sua invenção. Se antes, para compartilharmos uma informação, seja no formato do
texto ou de outros suportes, era necessário que embarcássemos numa verdadeira odisseia
– por exemplo, se eu quisesse, há uns 40 anos, divulgar minha opinião escrita a respeito
de um dado assunto para muitas pessoas, eu deveria estar, de alguma maneira, vinculado
a alguma grande mídia, como um jornal televisivo ou um jornal impresso. Ou se não, eu
deveria publicar um livro. As duas opções, independentemente, me custariam muito
trabalho e dinheiro. Hoje, no entanto, posso simplesmente postar um tweet para que, quem
sabe em questões de minutos, o mundo inteiro já tenha lido e se informado a respeito do
que eu penso e falo sobre um dado assunto. Assim, a linguagem escrita, hoje em dia,
possui um meio perfeito para sua divulgação e reprodução em massa: a web.

Me lembro certa vez que, ao ser apresentado a ideia de escrita conceitual, um certo
conhecido meu, nem pensa duas vezes e rapidamente crítica: “mas isso é igual aos
experimentos de readymade feitos no início do século XX por Marcel Duchamp”. De
fato, ao meu conhecido, não retiro certo crédito. Duchamp é, inegavelmente, um
antecedente histórico da arte conceitual em geral. Mas o perigo dessa afirmação mora
justamente nessa proximidade tão semelhante. Onde o primeiro pretendia atacar o
mercado artístico enquanto tal, questionando noções de originalidade profundamente
burguesas e ocidentais, a outra, além de incorporar esse tipo de crítica renovando-a,
adiciona à equação certos elementos que, na época, seriam, de certa maneira, impossíveis
de serem trabalhados, dado os avanços do sistema e dos meios de comunicação de então,
que no início do século XX se encontrava na transição da segunda para sua terceira fase31.

Portanto, a principal diferença entre um tipo e outro de apropriação estaria


justamente na evolução do mercado de consumo, que, como é evidente, se baseia

31
E como bem coloca Jameson, no seu fim da temporalidade, não apenas o fluxo de consumo da cultura
e do seu imaginário mudou, como se tornou mais rápido – (JAMESON, O Fim da Temporalidade, pg. 7).
Assim, já temos nos modernismos questões que mais tarde viriam a ser trabalhadas com a pós-
modernidade; a diferença é que o que no modernismo ficava em segundo plano e, portanto, não foi
possível de ser esgotado, no pós-modernismo passa a adquirir centralidade. Algo muito semelhante ao
conceito de Retaguarda que Perloff desenvolve em seu ensaio “Da Vanguarda ao Digital” –( PERLOFF,
pg. 95)

31
fortemente em noções de apropriação e reprodução em massa da cultura – como foi o new
age, durante a década de 80, que se apropriava, principalmente no território da música,
de culturas autóctones com a falsa desculpa de divulga-las, quando, no fundo, se tratava
apenas de uma estratégia de marketing –novamente, o pinkmoney. Uma outra questão
relevante que entra em jogo aqui é a maneira como temos tratado a comunicação através
da palavra. Como foi dito acima, o suporte da web, do computador etc. empregam uma
nova maneira de se utilizar a linguagem. De fato, nunca se reproduziu tanta informação
quanto agora. E essa é a principal lógica da internet, a da reprodução, do roubo, da
apropriação. Assim, repensar a apropriação enquanto procedimento literário hoje em dia
me parece essencial, pois a literatura finalmente encontrou aquilo que a fotografia
representou para a pintura: a web32. Com a web, noções antigas de autoria e genialidade
original são forçadas a se resinificar. Pois, assim como já foi dito mais acima, o original
perde seu valor quando passa a ser reproduzido. A originalidade, então, da maneira como
foi concebida, hoje em dia, não parece mais suscitar tanto interesse quanto suscitava no
sec. XVIII, por exemplo. Mesmo porque, o processo de reprodução ultra acelerado
iniciado pelo mercado de consumo aumenta desumanamente a demanda pela “novidade”.
Quantidade é qualidade. A obra de arte reproduzida torna-se cada vez mais a reprodução
de uma obra de arte voltada para a reprodutibilidade. Não interessa mais a produção de
novos materiais, mas apenas a edição de coisas já existentes. Como coloca Goldsmith:
“Em 1969, o artista conceitual Douglas Huebler escreveu: “O mundo está cheio de
objetos, mais ou menos interessantes; Eu não quero adicionar mais nada”. Eu abraço as
ideias de Huebler, embora elas possam ser refeitas como“ O mundo está cheio de textos,
mais ou menos interessantes; Eu não quero adicionar mais nada. ”33

É claro que a escrita conceitual apresenta problemas de formulação. É comum


que, a ela, se orientem críticas de cunho semelhante as da vanguarda: uma literatura que
é feita para alguns. Literatura para acadêmicos etc34. Um outro problema que geralmente

32
33
34
Mas é interessante que pensemos na utopia pensada por Banjamin, onde a vanguarda seria
emancipada de seu caráter tautológico pela própria ideia da reprodução. Se as vanguardas se fundam
naquilo que Benjamin, ecoando a ideia de autonomia desenvolvida por Burger, chama de “teologia da
arte” (BENJAMIN, pg. 33-35) – a arte-pela-arte, o esteticismo, seriam uma busca da arte “pura”—é na
reprodutibilidade, justamente, que reencontramos a arte como política. Pois a busca pelo puro, para
Benjamin, só seria possível a partir do autentico; se, diante da arte reproduzida, a pergunta do autentico
ou do original se torna indiferente, deveríamos levar tais manifestações para outro campo em função de
melhor compreende-las. E é aí que as vanguardas, enfim, encontrariam novamente as massas: na
política.

32
se coloca é justamente a dissolução do sujeito, ou da experiência da escrita. O que
aconteceria, então, com a literatura no futuro? Isso quer dizer que as experiências já não
importam mais? Etc.

Segundo vim tentando demonstrar, acredito que não se trata aqui de substituir uma
coisa pela outra; antes, de permitir que concebamos a questão de maneira diferente, pois
os tempos, hoje, são diferentes, e urge uma nova forma ou maneira de corresponder às
crises do mundo atual, principalmente no que diz respeito a produção cultural dentro de
uma lógica de reprodução desumana – responsável, inclusive, por dissolver as noções
clássicas de gênio e indivíduo criadas pelo romantismo. Portanto, a questão estaria muito
mais em lançar suspeita sobre certos cânones que adquiriram status de verdade – nas
instituições da arte e da literatura--, como a própria ideia do gênio, que como coloca
Burger, após as vanguardas passa a ser sinônimo de ideologia35.

Enfim, tais necessidades de reinvenção estariam afinadas ao momento histórico


em que vivemos – aquele que chamo de sociedade da reprodução. Cercados de espelhos,
não possuímos nada que seja exatamente nosso, e passamos a definir nossas
subjetividades muito mais pelo que está ao nosso redor do que propriamente por aquilo
que carregamos dentro de nós.

“Uma das ideias de Warhol para ‘I’ll Be Your Mirror” nunca viu a luz do dia, o
que destaca o abismo que separava suas ideias conceituais das reais possibilidades
técnicas disponíveis em um estúdio, em 1966. A sugestão de Andy era que o disco ‘
tivesse uma fenda, feita propositadamente, para que tocasse ‘I’ll Be Your Mirror’, ‘I’ll
Be Your Mirror’, ‘I’ll Be Your Mirror’, ‘I’ll Be Your Mirror’, ‘I’ll Be Your Mirror’, e
nunca pulasse, tocaria e tocaria, até que alguém viesse e arrumasse a agulha no disco.”36

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Harvard, pg. 124

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Referências Bibliográficas.

Perloff, Marjorie

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