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INTRODUÇÃO
A poesia de Roberto Piva foi pouco estudada pelo meio acadêmico. Somente
nos últimos anos um enfoque maior está sendo dado para a obra desse, que foi um dos
maiores artistas brasileiros ativos pós década de 60. Não surpreende tanto esse
ostracismo da sua obra, já que compreender um poema, somente, de Roberto Piva,
separando-o do resto de sua obra é uma tarefa bastante difícil e quase improvável.
Sendo assim, um parâmetro maior, mesmo que superficial, por toda a sua obra (e
vida) é indispensável para se compreender poemas isolados, e esse é o objetivo
central deste trabalho.
O escritor foi publicado pela primeira vez em 1961, na coletânea feita por
Massao Ohno, Antologia dos Novíssimos. Seu primeiro livro, Paranóia, também foi
publicado por Ohno em 1963. Nessa obra, Piva deu voz ao seu eu-lírico explosivo,
extasiado, incomum. Porém, ao contrário de muitos poetas, como o próprio Fernando
Pessoa (a quem o poeta dedica uma ode, “Ode a Fernando Pessoa” e foi uma grande
influência para seu trabalho), o eu-lírico de Piva na maioria das vezes não quer ser
separado do poeta ele mesmo. Assim como Antonin Artaud diz “para conhecer minha
obra, leia-se a minha vida”, Roberto Piva afirmou “só acredito em poeta experimental
que tem vida experimental”. Ou seja, sua obra é um reflexo de todas suas vivências,
ou pelo menos assim ele quer nos fazer crer. A obra, por outro lado, possui uma
grande influência de grandes nomes da literatura, que são publicamente declaradas ao
longo do livro. Os nomes de Dante Alighieri, Murilo Mendes, Mário de Andrade,
Jorge de Lima e García Lorca estão presentes. A ligação com Mário de Andrade e
Dante é ainda mais estreita que com os outros escritores citados. Anos depois de
Mário ter publicado a sua Paulicéia Desvairada, Piva produz esse livro que nos traz a
sua visão “desvairada” da mesma cidade, São Paulo. E durante todo o percurso
literário de Roberto Piva, Dante e Mário de Andrade serviram como mestres, como os
totens xamânicos do poeta.
mas eu não sabia que aquilo chamava xamanismo. Para mim ele
estava fazendo bruxaria. Era um empregado na fazenda do meu pai,
descendente de índio e de negro, que me iniciou no xamanismo e na
piromancia. Ele acendia fogueira. Toda noite a gente ia perto da
casa dele. E ele perguntava a nós o que a gente via que o fogo
formava. Então, tinham coisas espantosas, formava figuras
espantosas. Era uma fazenda em um lugar muito estranho, num
lugar muito alto (PIVA, 2008).
A relação com a cultura xamânica fez uma enorme diferença para a futura
obra de Piva. No entanto, para chegar à obra mais tardia de Roberto Piva, uma
reflexão um tanto apurada sobre seus primeiros períodos poéticos se faz necessária.
Como sabemos, Roberto Piva levou uma vida bastante agitada. Foi de professor de
ensino regular a produtor de shows de rock em bairros mais periféricos de São Paulo.
Era adepto da liberdade sexual, e o assunto não era um tabu para o poeta: Piva
acreditava na vida sexual plena e não fugia disso. Todavia, Paranóia não é um livro
feito abaixo de bebedeiras, drogas fortes e orgias, como mais tarde viria a acontecer.
De acordo com Claudio Willer, seu amigo e grande crítico de sua obra, Piva tinha
parado de beber nessa época. E veio a morrer em 3 de julho de 2010.
focará em um dos períodos e analisará a partir de uma poesia icônica que possa
representar como “funcionou” cada um desses surtos. Pécora faz o trabalho de divisão
dos períodos poéticos de Piva nas introduções dos volumes da Obra Reunida, porém
não há um aprofundamento na análise dessa divisão. Os capítulos que compõem essa
monografia objetivam estudar mais detidamente cada período e como eles se
realizaram separadamente e, também unidos.
Como a Commedia de Dante foi dividida em três partes, a obra de do poeta
também foi organizada em três volumes: começando com o caráter totalmente
destrutivo do primeiro, a reconstrução do segundo e o ápice do aprendiz que se torna
mestre no terceiro. Portanto, a disposição do trabalho será em três capítulos, cada um
para uma fase específica da poesia de Piva. Como a obra do poeta é, digamos, pouco
“analisável”, o trabalho de crítica dessa monografia não partirá de modelos
tradicionais, como uma forma mais fechada de analisar poesia, tampouco fará uso de
um outro aparato teórico específico, mas preferirá buscar nas palavras do próprio
autor (poemas, ensaios, manifestos e entrevistas, além de alguns comentadores de sua
obra e as referências literárias dadas pelo próprio Piva) um modo de encarar esses
poemas complexos. Em outras palavras, como a poesia de Roberto Piva não permite
uma maneira canônica para ser estudada, tentarei os modos dados pelo próprio Piva
como modelo de leitura. Portanto, para cada poema trabalhado, o foco e o contexto de
que partirá a análise será individual, sem forma pré-definida.
No primeiro capítulo focaremos na fase beat-pessoana do poeta. Para tanto a
poesia analisada será do livro Paranoóia, mais precisamente “A piedade”. A escolha
deste poema deu-se porque ele demonstra, digamos, todo o envolvimento literário que
Piva tem com os escritores já citados acima, como Mário de Andrade, Dante e Pessoa,
e outros como Sade e Nietzsche. Além desse fator, o poema é importante por
sintetizar a paranoia e o caráter destrutivo da primeira fase do trabalho do poeta.
Obviamente, o trabalho com outros poemas dessa época e do mesmo livro é de suma
importância para tentar desvendar “os delírios histéricos” pivianos. A figura de Dante
é de extrema importância para a obra de Piva e a questão do “mestre como sujeito-
lírico” também impulsiona grande parte do texto desta monografia.
No segundo capítulo, o poema central que sustentará a análise será “Osso &
Liberdade”, que faz parte do livro Coxas sex fiction e delírios. A escolha deste texto
foi pautada na evolução do “caráter destrutivo” para uma forte influência de Sade, que
poderíamos definir como uma “anarquia com regras”. Em outras palavras, nos anos
8
70 e 80, Piva começou a construir a partir do que havia desconstruído anos antes.
“Osso & Liberdade” relata o funcionamento, as regras, e os participantes de um clube
literário e místico, de certa forma, aos moldes do que podemos entrever nos textos do
Marquês de Sade. Portanto, este segundo capítulo será destinado a mostrar como os
delírios do poeta evoluíram e deixaram de existir apenas para “pregar” a destruição do
que veio antes para começar a construir uma sociedade própria, com suas regras e
hierarquias, num modo mais afirmativo.
O terceiro, e último, capítulo centrará a análise na evolução do menino
aprendiz até sua ascensão a menino xamã.. O poema-base deste capítulo chama-se
“Menino curandero (poema coribântico)”, que encontramos no livro Ciclones, de
1997. Este livro é muito diferente do estreante Paranóia. É uma obra com partes mais
definidas e mais circular. Temos o começo, com o menino aprendiz de xamã, o
desenrolar, com rituais e a figura do xamã como guia espiritual e poético, e o final,
quando o menino alcança o lugar de xamã. O que não o dispersa das outras obras,
com certeza, é a figura constante do mestre, aqui retratado pela figura do líder
espiritual do xamanismo, as referências literárias que nunca abandonaram a obra de
Piva e a liberdade dos desejos do corpo. No entanto, poderemos notar a evolução, se
assim podemos nomear, tanto no estilo da escrita do poeta como na organização de
pensamentos e ideias revolucionárias que sempre fizeram parte do eu-poético de
Roberto Piva.
Dito isso, vamos então, à essa pequena viagem pela obra tão peculiar desse
poeta paulistano com alma de xamanista e coração libertário.
9
[libertação.
Quando leio teus poemas, alastra-se pela minh'alma dentro um
comichão de
saudade da Grande Vida [...]
não é permitida, portanto Dante segue Beatriz, sua musa e imagem da iluminação, e
por fim São Bernardo). De modo similar Roberto Piva é muito inspirado por uma
representação do “mestre”, sua escrita está sempre interessada (se não fundada) nessa
imagem de transmissão de um saber poético; seja no estabelecimento de um
paideuma, ou de uma tradição onde se posicionar, seja na própria figuração do eu-
lírico como um homem dotado de um saber a ser repassado; e isso persiste até sua
obra tardia, principalmente no que se refere à figura do xamã, que será tratada no
terceiro capítulo. Mas, retornando à influência dantesca, podemos dizer que as
referências e ligações com o trabalho do poeta italiano que encontramos nos poemas
de Piva são inúmeras e explícitas:
Eu não tinha interesse nenhum em ser poeta. Eu queria ser
gângster. [...] O problema é que não consegui ser gângster. Então
acabei escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar o
gangsterismo. Este curso sobre A Divina Comédia foi dado pelo
então adido cultural da Itália no brasil, e ali comentamos e
discutimos os três livros de Dante (Inferno, Purgatório e
Paraíso), um ano para cada livro. [...] O que aconteceu é que
Dante, como todo verdadeiro poeta, era nômade. [...] Eu também
me sentia muito nômade, e havia uma grande identificação
minha com todos os personagens de Dante (PIVA, R.).1
Tal como fizera com Dante, Roberto Piva elegeu vários outros poetas que o
antecederam como seus mestres, de modo a formar sua própria tradição literária. Um
dos mais marcantes foi Fernando Pessoa, a quem o poeta dedicou sua primeira “Ode”.
“Fernando Pessoa, grande mestre” é como o poeta se dirige ao seu “professor”. No
poema, o mestre representa toda a motivação do poeta para escrever já como um
recurso eminentemente metaliterário de diálogo entre autores. Como já se disse, até o
final de sua obra, Piva destacou essa figura superior e seu aprendiz. No livro Ciclones,
por exemplo, o último de inéditas antes das obras reunidas, acompanhamos a
evolução de “menino-aprendiz” a “menino-xamã” por meio do aprendizado poético
explicitado nos poemas pela voz do xamã maduro que é o eu-lírico.
Nota-se também, com certa clareza, que o estilo de Piva na “Ode” não se
parece em nada com o que veremos em sua obra mais experimental: apenas o discurso
mais exaltado e a intertextualidade que fazem parte de todo trabalho do paulista estão
presentes; porém aqui ele tenha uma apresentação mais elevada, que se afasta do tom
1
“O
banquete do poeta”, por Floriano Martins. Publicado originalmente em O começo da
busca”, editora Escrituras, 2001.
11
das suas obras subsequentes. Aliás, Piva utiliza a figura do “poeta-guia” nomeado e
localizado em quase todos os seus primeiros livros, mais tarde, no entanto, as
referências tornam-se menos diretas e normalmente se apresentarem no título, ou nas
epígrafes de cada texto. Veremos esse ponto com mais atenção adiante. Como diz
Pécora em outro trecho do prólogo de Um estrangeiro na legião:
É literatura embebida em literatura, que respira literatura, que
fala o tempo todo de literatura. Um levantamento sem qualquer
intuito de exaustividade encontra, em Paranóia, referências
explícitas a Mário de Andrade, Dostoiévski, Lautréamont, Rilke,
Garcia Lorca, Machado, Rimbaud, Murilo Mendes, Jorge de
Lima, Dante, Whitman, Leopardi, Tolstói, Oscar Wilde, Gide,
Keirkegaard, Artaud etc. Se passarmos a Piazzas, estão lá, além
de vários dos já citados, Maiakóvski, Nietzsche, Blake, Mary e
Percy Shelley, Sade, Baudelaire, Isaac Asimov, Villon,
Apollinaire, Michaux, Byron, Swift, Jarry etc. Predomina, mas
sem hegemonia, a linhagem maldita do romantismo, o que ajuda
a esclarecer o fato de que, mesmo neste primeiro volume,
quando o aspecto laico da profanação é mais evidente, a
literatura já se insinue como o limiar do sagrado (PIVA, 2005, p.
14 e 15).
2
Cf. A Estrututura da lírica moderna.
12
muito bem dar voz a um eu-lírico muito próprio, muito consistente e original dentro
do cenário literário brasileiro do início dos anos 60.
Com a publicação de Paranóia, o poeta galgou seu lugar de poeta marginal
avant la lettre. No entanto, ele dizia que nunca se marginalizou, mas foi
marginalizado. A sua temática homoerótica e política, além de uma linguagem que
vai contra tudo que é típico da lírica tradicional e pelo fato de não ter se encaixado em
uma corrente clara da historiografia literária, contribuíram para que Roberto Piva
fosse deixado de lado pela crítica por certo tempo. Willer, em um ensaio publicado
pela Revista Agulha, em 2004, escreveu que “O motivo imediato para nossas elites
culturais esfriarem seu relacionamento com Piva foi a liberdade vocabular.” A época
em que ele começa a publicar é também marcada pelo início da ditadura militar que
tanto oprimiu artistas no país. Pois é justamente nessa maneira de quebrar os
paradigmas que o artista mostra como sua poesia é toda composta por indignação,
revolta, angústia, fúria e, em alguns momentos, por uma crescente violência (por
exemplo, em versos como “universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus/cadela”,
de Paranóia). Essa é sua marca, sua individualidade literária. Para exemplificar essa
“literatura embebida em literatura”, examino a seguir o poema “A piedade” que está
no livro Paranóia.
A piedade
Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na
extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e
me
fariam perguntas: por que navio bóia? Por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas
ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
13
3
“O gavião caburé no olho do caos sangrento”, por Ademir Assunção. Publicado originalmente na
revista Coyote, em novembro de 2004.
15
[...]
Ao não lutar contra seus desejos, mas ao contrário afirmá-lo e fazer parte de
um grupo que destoa do normal (“eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras / iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
5
“Conversa com Roberto Piva”, por Fabio Weintraub. Publicado originalmente na revista Cult, em
maio de 2000.
17
Paraíso
[...] esta espécie de música
nascendo ao mesmo tempo
em máquinas
& ilusões
nenhum cálice
nenhum amor [...]
Piazza VII
O equilíbrio (embora meu)
é um pouco teu como esta luz ao nível da maré
18
Temos, então, novamente a imagem do inferno como algo que está mais
próximo do natural do humano (“eu não sou piedoso / eu nunca poderei ser piedoso”).
Para construir a imagem de ser piedoso, Piva usa expressões fortes e muitas vezes
ofensivas; usa imagens que chocam o leitor: “eu seria um bom filho meus colegas me
chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio bóia? por que prego
afunda?”: em apenas um verso o escritor consegue ridicularizar toda a sociedade e
seus métodos de ensino, com suas finalidades medíocres para o saber, que aqui é
representado como uma mera compilação de informações quase inúteis para a
experiência humana em seus limites. Como já dito no início, “A Piedade” é um
poema que em poucos versos consegue criticar de forma bem contundente a
6
“Roberto
Piva: poesia & crime ou blsfêmias eróticas heróicas & assassinas”, por Ricardo
Mendes Mattos. Publicado originalmente na revista Zunái em Dezembro de 2009.
19
sociedade, sua política, sua educação, sua religião. E não podemos esquecer que esse
foi apenas o primeiro livro do poeta.
Ao usar de toda sua experiência como leitor para escrever sua poesia, Piva
consegue fazer algo próprio, único e extremamente incômodo. Tão incômodo, mas
que, infelizmente, passou despercebido por muito tempo. Talvez a complexidade dos
pensamentos do poeta tenham causado esse “ostracismo”. Como podemos ver, em
apenas um poema, “A piedade”, Piva consegue inserir versos sobre economia,
educação, religião, sexualidade, política, moralismo social etc.
Em um outro poema Piva lança mão de suas referências de outra forma.
Piazza I é recheado de referências explícitas e, mesmo assim, é preciso certo
conhecimento (ou paciência para pesquisa) para compreender minimamente como se
ligam e o que fazem no poema.
Piazza I
Uma tarde
é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
uma tarde de inverno
sobre um grave pátio
onde garòfani milk-shake & Claude
obcecado com anjos
ou vastos motores que giram com
uma graça seráfica
tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado provado sonhado
& longos viveiros municipais
sem procurar compreender
imaginar
a medula sem olhos
ou pássaros virgens
aconteceu que eu revi
a simples torre mortal do Sonho
não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
Swift Jarry com barulho
de sinos nas minhas noites de bárbaro
os carros de fogo
os trapézios de mercúrio
suas mãos escrevendo & pescando
ninfas escatológicas
pequenos canhões do sangue & os grandes olhos abertos
para algum milagre da Sorte
(De Piazzas)
20
Hieronymus Bosch foi um artista conhecido por pintar cenas que retratam
tentações e pecados. Ao colocar justamente esse pintor em seu museu, o mote do
poema está feito.
[...]uma tarde de inverno
sobre um grave pátio
onde garòfani milk-shake & Claude
obcecado com anjos[...]
Portanto, a figura do jovem que permeia quase toda a bra do poeta não reflete
apenas sua sexualidade aflorada e despida de tabus, mas incorpora a força jovial que
21
não vê limites e muito menos se sente acuado para não infringir as leis que regem a
sociedade.
Com a poesia domada, a ditadura é da informação. O monopólio
infomativo favorece à subordinação administrativa em seu papel
de controle social. A imagem do Estado policial se trata menos
de uma repressão franca e policial que de uma opressão insidiosa
caracterizada pelo domínio do conjunto dos comportamentos7.
7
“O erotismo dará o golpe de estado”, depoimento. Publicado originalmente na revista
Cobra, no Brasil, e na revista Cerdos & Peces, na Argentina, em janeiro de 1987.
22
8
Chico
Science foi o líder do movimento musical denominado manguebeat, que nasceu nos
anos 1990 em Pernambuco.
23
9
O agitador da transgressão, por Paulo Mohlovski. Publicado originalmente na revista argentina
Cerdos y Peces, em maio de 1987.
24
pelos ares. É nisso que ele se opõe à sua época: a liberdade que
ele reclama não é a dos princípios e sim a dos intestinos.10
Ganimedes 76
Teu sorriso
olhinhos como margaridas negras
meu amor navegando na tarde
batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de fuligem
cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão rococó
força de um corpo frágil como âncoras
gostei de você eu também
amanhã então às 7
amanhã às 7
[...] assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem
garoto pornógrafo
antes que a Lua chegue
esta feijoada será uma
batalha
Átila vence a grama do mundo
ADRIANUS CESAR imperador
caminhando na manhã romana com seus doze amantes
eu gostaria que você lesse Jacob Boehme
suas coxas se retesam
& você
chora um pouco
venha, lamba minha mão &
se prepare para um
milhão
de comas loucas loucas
antes que a Lua chegue
morda meu coração na
esquina
&
não me esqueça13
Nesses três exemplos, o poeta convida o jovem ao ato sexual. Não há pudores,
e a vitória do desejo sobre a razão e, sobretudo, fora da lei fica mais evidente. Em
“Interminável-Exterminável” até o subtítulo é convidativo: “ouvindo Barney-Kessel”,
que é um guitarrista de jazz, um gênero muito afim à poesia de Piva, uma vez que se
baseia no improviso, num certo desregramento como mote de funcionamento. Piva,
dessa forma, cria esse clima sedutor e sensual para poder vivenciar o ápice do sexo
13
Trechos de Abra os olhos e diga ah!.
26
com seus “pupilos” (“meu amor navegando na tarde [...]força de um corpo frágil
como âncoras [...] assim te quero: anjo ardente no abraço da paisagem”). Já “Afetando
profundamente o emocional”, nos traz o personagem histórico de Antínoo, que é
reconhecido como o jovem amante do imperador Adriano, o que gera uma
composição complexa transistórica, em que o amor do eu-lírico é atravessado pelo seu
próprio grupo de referências literárias, musicais, lisérgicas, sexuais, etc. Portanto,
“Afetando...” junta referências clássicas de Piva e seu mote do amor entre o homem
maduro e o jovem aprendiz. Além da busca irrefreada pelo prazer que vem
diretamente de Sade e sua revolução sexual e amoral. Entretanto, a grande diferença,
aqui, entre os dois escritores está na abordagem do objeto de desejo. Enquanto Piva
abusa de gestos e palavras doces e sensuais para seduzir seus amantes, Sade é mais
adepto da força bruta e de uma abordagem mais radical (apesar de sua escrita
profundamente permeada por um estilo bem cuidado), como os quatro amigos que
sequestram as suas vítimas para os 120 dias de Sodoma.
Convencei-vos em sua escola que, só estendendo a esfera de
seus gostos e de suas fantasias, só sacrificando tudo à volúpia, o
infeliz indivíduo denominado homem e jogado a contragosto
neste triste universo conseguirá semear algumas rosas sobre os
espinhos da vida (SADE, Marquês de.)14.
14
Filosofia na Alcova, de 1795. Tradução de Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 1999, p.11.
27
Entretanto, é importante lembrar que Piva não escreve sobre o desejo sexual
apenas como “a flauta doce do encantamento”, mas como “ato político de
transgressão”, como bem disse Pécora em mais um prólogo para as obras reunidas:
Na poesia de Piva, porém, essa questão não se formula como
reação apenas ao interdito da expressão cultural galante entre
homens, mas ao controle normativo do desejo em todas as suas
formas – um desejo que é despojado de suas soberania e
obrigado a prestar contas ao lugar-comum e à banalidade
partilhada. Assim, mesmo embebido na contemplação do efebo –
que não raro dorme, sonha e se coça, alheio e descansado, o
poeta incorpora nos graus do êxtase amoroso-cognitivo a
exigência do ato político da transgressão (In: PIVA, 2006, p.11).
Como em Sade, essa revolta que Piva carrega em sua poesia é resultado de
uma recusa dos interesses sociais em favor dos interesses particulares. Afinal, o
próprio poeta sempre se disse contra o comunismo, ou qualquer política que pregasse
a igualdade em despeito da libertação sexual. Portanto, se virtudes andam ao lado da
utilidade pública, o que o poeta busca são os vícios que andam à margem do
socialmente correto. Nesse ponto, o que mais aproxima Piva de Sade no poema “Osso
& Liberdade” é a descrição de Oscar Amsterdan por Onça Humana:
Onca Humana quis saber se Pólen conhecia um garoto meio
pirado chamado Oscar Amsterdam que tinha vícios
requintados & que gostava de ser comido por mulheres
aparelhadas com falos de borracha & que gostava de se
banquetear com carne de tatu assado no restaurante
Sujinho aos sábados & colecionar amantes revisionistas para
envenená-los (influência dos personagens de O Príncipe) &
jogá-los no rio Tietê depois de ter saciado feito uma
Messalina adolescente seu apetite sexual louco & ter a cara
dura de ir jantar frango com polenta & declamar poemas
de Lorenzo de Médici bebendo cerveja ou lendo algum
artigo sobre a Iuguslávia ou trabalhando em algum
manifesto de Política Cósmica batendo sua linda mão na
mesa com manchas de vinho na toalha branca & coberta
com alguns restos de salsa.
Pólen disse que sim.
17
“O agitador da transgressão”, por Paulo Mohvovski. Publicado originalmente na revista argentina
Cerdos y Peces, em maio de 1987.
32
Na verdade, o poeta é contra tudo que o homem moderno, que vive em uma
sociedade urbana possa criar. Por isso, o clube “Osso & Liberdade”, na sua recusa
radical, não apresenta nenhum traço de moderninade tecnológica ou moral cristã.
18
“O gavião caburá no olho do caos sangrento”, por Ademir Assunção. Publicado originalmente na
revista Coyote, em novembro de 2004.
33
19
“Amor, loucura, drogas”, por Carlos von Schmidt. Publicada originalmente na revista artes:, em
outubro de 1985.
20
PIVA, Roberto. Mala na mãe & asas pretas. São Paulo: Globo, 2006, p.145.
34
Oscar Amsterdan transmite esse sujeito que busca o prazer, pratica crimes e não
remorso ou intenção de mudança.
3. A (DES)CONSTRUÇÃO DO XAMANISMO
Reprimindo a criança que existe nele, o homem moderno aniquila os deuses do júbilo
em seu coração. Deixa de improvisar sua vida, enquadrando-se na marcha uniforme
da sociedade organizada & vestida.
Roberto Piva
21
“Epifanias do erotismo sagrado”, por Miguel de Almeida. Publicado originalmente no jornal O
globo, em 1 de junho de 1993.
36
Etnopoesia do Milênio; assim, é bem provável que tenha sido muito influenciado pelo
pensamento de ambos, como se pode depreender pela similaridade entre o seguinte
trecho de Rothenberg e a poética de Piva:
A palavra “xamã” (do tungue: saman) vem da Sibéria & “no
sentido restrito é preeminentemente um fenômeno religioso da
Sibéria & Ásia Central” (Eliade). Mas os paralelos em outros
lugares (América do Norte, Indonésia, Oceania, China, etc.) são
notáveis & também conduzem a uma consideração de
coincidências entre os pensamentos “primitivo-arcaico” &
moderno. Eliade trata o xamanismo, no sentido mais amplo,
como técnica especializada & êxtase, & o xamã como “técnico-
do-sagrado”. neste sentido, também, o xamã pode ser visto como
protopoeta, pois quase sempre sua técnica depende da criação de
circunstâncias linguísticas especiais, i.e., da canção & evocação
(2006, p. 31).
22
“poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase”. Publicado originalmente na revista Poesia
Sempre, em junho de 1997.
37
A figura do xamã é um novo recurso que Piva usa para transformar sua poesia
em algo mais universal. O caos, o delírio e a destruição que ele descreve tornam o
signo do xamã a representação da maneira que o poeta acredita que seja o rumo
contrário à destruição para a qual a sociedade está se encaminhando. O líder
xamânico conduz o eu-lírico ao êxtase da comunhão com o primitivo, com as forças
da natureza. Desse modo, a poesia passa, definitivamente, ao seu estado orgânico, a
ser a forma mais intensa de vínculo entre homem e o universo. O poeta-xamã é o
profeta que vem dar uma boa-nova à humanidade. Essa figura está frequentemente
vinculada à liderança pois
o xamã opera sempre atento aos sinais que possam ser lidos à
sua volta; ele ouve as pulsações da terra, compreende o caráter
dos ventos e tempestades, entende o que lhe dizem os animais,
extrai conhecimento de plantas sagradas, vale-se das
propriedades medicinais dos reinos mineral, vegetal e animal
que o cerca, e prevê em razão de eventos observados a tendência
das coisas vindouras (URBAN, Paulo, 2009).
quatro ventos
quatro montanhas
no olhar do garoto
que dança
no céu chapado [...]
[...] o garoto
& seu cu em flor
adorno de um deus
deslumbrando o caos [...]24
compõem essa fração da obra, pois o poeta instiga o aprendiz a criar poesia com
regras que ele chama de anárquicas, mas que não deixam o posto de regras. Como um
manual sobre como escrever poesia, Piva escreve metalinguisticamente:
seja devasso
seja vulcão
seja andrógino [...]
[desertaremos as cidades
ilhas de destroços [...]
As “leis” que Piva cria para o fazer poético claramente não se assemelham a
nada parecido em qualquer curso ou teoria poética. O poeta escreve para um jovem-
aprendiz de xamã-poeta. Em outras palavras, é uma metapoesia do delírio, do êxtase
xamânico e essas são suas leis. Aqui, então, somos apresentados ao modo como a
poesia do futuro xamã-poeta será criada. As antirregras que aparecem no texto
conduzem o aprendiz a uma contraeducação, ou uma educação libertina fundada na
anomia.
O “Incorporando o jaguar”, como o próprio título diz, é um conjunto de
poemas em que rituais xamânicos acontecem. Como o próprio Piva assinalou, a
experiência xamânica é a busca pelo totem, e o jaguar é um animal totêmico.
[...] pequeno exu que
dança extático
é o coração do jaguar
na ponta de fogo [...]28
Além do “jaguar” que abre a série, outros animais totêmicos são citados
diversas vezes nos outros textos (a “coruja”, o “gavião”, os “roedores”, o “falcão
mateiro”). A busca por esses totens é o que motiva esses rituais. Os totens interagem
com elementos da natureza o tempo todo, assim como as representações do eu-lírico:
a “folha que cura”, a “floresta”, a “miraculosa Cannabis”, as “pétalas selvagens”, o
“poder das Ervas”, o “exército de folhas”, a “Pimenta d’água”, a “flor d’água” e
outros. Esses componentes da natureza diversas vezes atuam como o tambor que
insere o xamã em seu êxtase. É interessante observar, também, como o escritor faz
alusão aos variados tipos de drogas alucinógenas (ou não) de que os ritualistas fazem
uso:
[...] miraculosa Cannabis
planta do incesto
do sol com as
águas [...]
no país profano
da medicina alopática
na lerdas armadilhas
da anemia
você diz que a
noite está negra
eu conheço seu tesouro
onde o pavilhão da vida
toca seus acordes30
III.
garoto Crevel
garoto inferno
banhado no verde claro[...]
bons músculos poéticos
garoto Nerval
caralho azul enforcado
na dobra da noite
VI.
30
Trecho de “poemas violetas da cura xamânica”.
31
Trechos de “VII Cantos xamânicos”.
43
32
Trecho de “Inventem suas cores abatam as fronteiras”.
33
44
ao trazer à tona os coribantes. No entanto, os elementos que fazem parte dos ritos são
semelhantes. Além disso, a menção à morte (“os meninos curanderos/ [...] / bebem a
Morte numa / taça de Crânio) nos remete novamente ao transcender do discípulo para
algo além, como se a morte do que se era representasse seu novo nascimento como
um novo xamã. A vida urbana e doente fica em um passado morto, agora a vida
Menino curandero
(Poema Coribântico)
I.
os meninos curanderos
se vestem de anjos nos Canaviais
resgatam Eros nas ruas
das cidades-sucata
nos ritos da magia do Amor
& bebem Morte numa
taça de Crânio
II.
O anel solar é o ânus intacto do seu
corpo adolescente, e nada
há tão ofuscante que se lhe possa
comparar; a não ser o Sol,
e apesar de ter um ânus que é a noite.
Georges Bataille
é a janela vermelha do
Ocidente onde grita
o Anjo
entre coxas dos marinheiros
tremem meninos
das ilhas
paisagem pós-nuclear onde
a flor negra atravessa
a sombra [...]
[...] VI.
rico de asas
o menino xamã
incorpora o gavião
escuta a luz do monte
fica nu & deita impassível na Terra
é dele o tambor feito de Tíbias
& a estrela mais límpida
cabeça
Ilha Comprida, 93
livro que tem como base uma religião de tradição oral e musical que o poeta
transformou em símbolo de poesia pura e natural.
47
CONCLUSÃO
A ideia inicial deste trabalho era analisar toda a obra recente de Roberto Piva.
No entanto, para um trabalho de final de graduação era um projeto muito ousado. A
poesia de Piva é muito intensa, e o corpus para a análise, potencialmente maior do
que o tempo despendido para a realização da monografia.
Depois de diversas conversas entre mim e meu orientador, chegamos à
conclusão que a melhor forma de trabalhar com a poesia piviana seria, a partir da
divisão em três volumes, por Alcir Pécora, da obra reunida do poeta, traçar a evolução
de sua obra e como se deu em cada período. É claro que não posso ficar inteiramente
satisfeita, pois a pesquisa que aqui se anunciou pode tomar rumos muitos mais
ambiciosos.
Há uma falta muita grande na bibliografia sobre a obra de Roberto Piva,
principalmente a que se refere a suas últimas publicações, como Ciclones e Estranhos
Sinais de Saturno. O livros com um número mais razoável de leituras ainda
permanece sendo Paranóia. No entanto, seu trabalho não se resume a um livro apenas
e, muito menos, a uma linha poética. Portanto, daí surge a necessidade de estudos
mais apurados da poesia piviana.
A maneira como o poeta se transformou ao longo dos anos e como sua poesia
não ficou presa a um mesmo tom é fascinante. Piva é um poeta fascinante. Essa
lacuna de estudos sobre sua poesia é, infelizmente, algo que não nos surpreende;
afinal, a poesia contemporânea não é um assunto em evidência, muito menos quando
se trata da obra de um poeta controverso como Roberto Piva. Porém, acredito que,
com propostas como esta à qual me comprometi, podemos ter uma pequena
continuidade nas possíveis leituras de seus livros. O próprio Piva deixou claro muitas
vezes, em entrevistas que deu, que seu desejo era não se tornar um objeto de estudo
da academia. Para tentar respeitar seu desejo e ao mesmo tempo poder estudar sua
obra, tentei concluir este trabalho de uma maneira mais heterodoxa. Em outras
palavras, como explicitei na introdução da monografia, a poesia de Roberto Piva não
permite uma análise mais canônica, mas sim uma leitura de seu texto em si, sem
muitas bases teóricas e análises mais severas de forma e conteúdo.
Como já dito no início, uma vez que se trata de um trabalho de graduação a
possibilidade de uma pesquisa mais aprofundada não foi a meta que traçamos. O
principal fim deste trabalho foi redesenhar a divisão que Alcir Pécora fez dos surtos
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