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Um dos grandes dilemas que Rui de legislativa, não sendo adequado que
Barbosa teve de enfrentar ao desenhar o Legislativo seja “juiz” de suas próprias
o novo modelo político referia-se à de- limitações; (b) a interpretação das leis é
finição de qual órgão estatal exerceria a função específica dos juízes, razão pela
importante missão de controlar a consti- qual é natural que lhes seja atribuída a
tucionalidade das leis. função de interpretar a Constituição; (c) o
No regime imperial, essa função era Judiciário, pela própria natureza de suas
A Criação da Justiça Federal exercida pelo chamado “Poder Modera- funções, por não dispor nem da “espada”
e o Surgimento da Jurisdição dor”. O próprio Imperador era respon- nem do “tesouro”, é o ramo menos pe-
Constitucional no Brasil sável pela fiscalização da constituciona- rigoso (the least dangerous branch) do
George Marmelstein lidade dos seus atos e dos atos do Le- poder para proteger os direitos previstos
gislativo, tendo absoluto controle sobre na Constituição (MORO, 2004).
Sem a Justiça Federal a democracia o Judiciário, cuja missão restringia-se a Tendo como suporte doutrinário as
é uma burla. Sem a Justiça Federal o regi- solucionar os conflitos entre particulares. idéias de Hamilton, a Suprema Corte nor-
me constitucional é uma falsificação. Sem Rui Barbosa sabia que o modelo re- te-americana, sob o comando do Chief
a Justiça Federal a separação de poderes publicano não era compatível com essa Justice John Marshall, adotou o controle
é um estelionato. Sem a Justiça Federal fórmula. Afinal, muitas vezes é o governo judicial de constitucionalidade das leis
a federação é um roubo. Sem a Justiça que transgride a Constituição. E como no célebre caso Marbury vs. Madison,
Federal a república é a mais indigna das dizia Montesquieu, todo homem que em 1803, mesmo sem qualquer apoio
formas de governo. tem poder é tentado a abusar dele, logo, expresso do texto da Constituição, que
Com esse trecho adaptado de um para que não se possa abusar do poder nada dizia sobre esse poder da Suprema
discurso proferido por Rui Barbosa1, ini- é preciso que, pela disposição das coisas, Corte de invalidar atos do Legislativo. A
cia-se o presente texto, em que se discor- o poder freie o poder2. Se o Executivo ou lógica adotada por Marshall foi pratica-
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rerá sobre A Criação da Justiça Federal e mesmo o Legislativo ficassem responsá- mente uma reprodução das idéias de
o Surgimento da Jurisdição Constitucio- veis pela guarda da Constituição, seria o Hamilton3.
nal no Brasil. mesmo que indicar “a raposa para vigiar Com isso, os Estados Unidos desen-
A idéia é apresentar os motivos que o galinheiro”. volveram o modelo de controle judicial
levaram ao surgimento da Justiça Federal Foi aí que Rui teve a idéia de buscar de constitucionalidade que, até hoje, é
no Brasil, bem como apresentar o primei- no Direito norte-americano a inspiração a marca do constitucionalismo ociden-
ro caso de grande relevância julgado pela para a solução desse dilema. tal. Foi esse modelo norte-americano,
nova instituição que acabara de surgir. Lá nos Estados Unidos, Alexander descrito há mais de duzentos anos, que
Vamos, então, voltar nossos relógios Hamilton, James Madison e John Jay, inspirou Rui Barbosa ao redigir o projeto
para o ano de 1889: o ano da criação da no livro O Federalista, publicado por da Constituição de 1891.
Justiça Federal no Brasil. volta do ano de 1787, desenvolveram Essa influência norte-americana fica
Para refrescar um pouco a memó- um sistema de freio e contrapesos ainda mais visível se for analisada a Ex-
ria, relembra-se que se vivia um período (checks and balances), que reservava posição de Motivos do referido Decreto
de transição: era o fim da monarquia e o ao Judiciário um lugar de destaque. Se o 848/1890, apresentada pelo então Minis-
início do período republicano. O espírito, Parlamento aprovasse uma lei contrária tro Campos Salles, que instituiu a Justiça
portanto, era de inovação e mudança. à Constituição, essa lei não seria válida Federal. Eis um trecho da Exposição que
Tão logo ruiu o regime monárquico, e, portanto, deveria ser anulada. E o Ju- ressalta qual seria o papel da magistratu-
houve uma intensa movimentação inte- diciário seria o órgão apto a exercer esse ra federal no novo regime (o vernáculo
lectual e política para definir os alicerces controle de constitucionalidade, na ótica não foi atualizado, a fim de manter a ori-
do novo modelo estatal que estava sur- daqueles pensadores. ginalidade do texto):
gindo. Esse modelo foi esboçado especial- Cabendo ao ministerio que me foi
Nesse ambiente, o Governo Provi- mente nos escritos de Hamilton. Nos tex- confiado a importante tarefa de organi-
sório convidou para redigir o arcabouço tos desse pensador, encontra-se o germe zar um dos poderes da União, e consul-
jurídico da nova ordem normativa nin- do que viria a ser o judicial review, meca- tando os grandes interesses confiados
guém menos do que Rui Barbosa, o juris- nismo que permite aos juízes a fiscaliza- à suprema direcção do Governo Provi-
ta mais preparado para essa tarefa. E foi ção da constitucionalidade das leis. sório, pareceu-me necessário submetter
assim que Rui Barbosa, em sua casa na Os principais argumentos utilizados desde já à vossa approvação e assigna-
praia do Flamengo e em apenas quinze por Hamilton, desenvolvidos no texto tura o decreto que institue a Justiça Fe-
dias, escreveu praticamente sozinho todo conhecido como “Federalista n. 78”, deral, de conformidade com o disposto
o texto do documento que viria a ser a eram, em síntese, os seguintes: (a) a na Constituição da Republica.
Constituição de 1891. Constituição estatui limitações à ativida- A proximidade da installação do
REFERÊNCIAS
AMARAL, Roberto; BONAVIDES, Paulo. Textos po-
líticos da história do Brasil. 3. ed. Brasília: Senado
Federal, 2002. v. 2. p. 333.
BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
1958, v. 20, 1893. t. 5.
BARBOSA, Rui. Obras completas. Rio de Janeiro:
Senado Federal, 1914. v. 41. t. 3.
MONTESQUIEU, Barão de La Brède e de. Do espíri-
to das leis. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como demo-
cracia. Curitiba: 2004. Tese de Doutorado, Univer- 87
sidade Federal do Paraná.
RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo
Tribunal Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991. t. 1/1891-1898.