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RESUMO: Este artigo versa sobre o significado do arquétipo da Deusa em diversos setores da vida
humana, principalmente na arte literária. Com base em estudos antropológicos, especificamente nas
teorias junguianas: Jung (1995), Neumann (1996), Bolen (1990) Woolger (1994), evidencia-se
mitos e imagens originárias da Deusa arcaica, seus papéis e significados, interpretando-os como
fonte dos padrões emocionais dos pensamentos, sentimentos e instintos femininos que sobrevivem
submersos no inconsciente coletivo, estão representados na literatura de todos os tempos e são
entendidos como expressões metafóricas da psique feminina projetados em mulheres reais e
ficcionais. Tenta-se explicar o sentido do retorno da Deusa na contemporaneidade e as formas como
suas imagens são ressemiotizadas na literatura.
Palavras-chave: literatura; mito, arquétipo
ABSTRACT: This paper discusses the archetypes imagery of the Great Mother that are present in
different aspects of the human life, especially in literary art. The analysis of this paper will be
carried out in a dialogue with the theoretical perspectives of the anthropological studies as well as
junguian theory: Jung (1955), Bolen (1990), Woolger (1994) and Neumann (1996), considering the
myths and the archetypes imagery of the archaic Goddess such as the fairies and witches,
interpreting them as a search for the emotional patherns: thoughts, sentiment and female´s instincts
that are present in the collective unconscious. It will be also consider their representations in
literature as a metaphor of female’s psyche that are projected into fiction.
Keywords: literature, myth, archetype
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Professora do Mestrado em Literatura e Interculturalidade / UEPB.
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A fecundidade animal da Deusa era cruelmente dramatizada em rituais de mistério, isto se revelava
como um aspecto relevante da simbologia da Senhora da vida e da morte. Os cultos da Grande
Deusa resultavam em autoflagelações, autocastrações, circuncisões de sacerdotes e veneradores,
defloramentos rituais e prostituição sagrada. Os rituais de passagem praticados nos santuários
arcaicos são ainda conservados por grupos humanos primitivos. Outros procedimentos em rituais de
castração foram transformados em atos simbólicos religiosos, como a tonsura dos monges, o voto de
castidade e a batina sacerdotal, formas de emasculação que significam aderência à Deusa (Cf.
PAGLIA, 1994, p. 51).
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evolução da consciência, ela passou a ser cultuada como duas entidades distintas a
quem eram atribuídos poderes do bem e do mal. Os homens arcaicos formulavam a
idéia do mundo abstrato conforme a realidade existencial concreta se apresentava
para eles. Desse modo, a Grande Deusa Bondosa era a Natureza benéfica quando
os presenteava com as riquezas da terra e era Terrível quando os castigava com a
força dos seus elementos.
O mundo mediterrâneo cultuou essa divindade através de imagens diversas
como Deusa do amor, da guerra, dos lares, da polis, da morte, e com muitos nomes,
que variam conforme sua nacionalidade, mas ela era predominantemente a Grande
Mãe, Senhora do Destino, que tanto protegia e cumulava de benefícios quanto des-
prezava, perseguia e punia com castigos implacáveis homens e mulheres. Dentre as
mais conhecidas configurações da Deusa Mãe destacam-se Ísis, no Egito, Gaia, em
Creta, Rea em Micenas, Deméter, no santuário de Elêusis, Hera na cidade de
Atenas, Afrodite, na Frígia, Ártemis, em Éfeso, Dea, na Síria, Anaitis, na Pérsia,
Isthar, na Babilônia, Astarte, na Fenícia, Atargatis, na Cananéia, Mâ, na Capadócia,
Bendis e Cottyto, na Trácia. Conhece-se também variadas personificações dos
horrores femininos que derivam da suprema Mãe Terrível, como as Górgonas, as
Fúrias ou Erínias, as Keres, as Sereias, as Harpias, Lâmia, Êmpusa, Circe, Cila,
Caríbdis, Kali, Sin, dentre outras.
Todas essas faces da Deusa são formas de manifestação de uma pluralidade
de figuras benévolas e malévolas difundidas pela humanidade ao longo dos tempos
através dos rituais religiosos e dos mitos. Tais imagens simbolizam o poder primor-
dial do Grande Feminino divino em seu papel de gerar e de destruir que o homem
arcaico percebeu nos fenômenos naturais das águas, do fogo, da terra, dos astros
celestes (sol, lua, estrelas, chuva, raio, relâmpagos, trovões), na vida dos animais de
todas as espécies porque tudo constitui o corpo da Deusa, cujas imagens são
conservadas no inconsciente coletivo, podendo se revelar nos sonhos, nas culturas,
nas artes em geral e, de modo muito especial, na literatura.
Imagens míticas da Deusa estão associadas à psicologia da mulher em
diferentes fases de sua vida, da puberdade à velhice, que, por sua vez, representam
os aspectos da natureza intrínseca do Feminino em seu caráter elementar e transfor-
mador positivo e negativo. Assim, gestar, proteger, abrigar, conservar, amamentar,
cuidar, são funções elementares do materno e têm sentido positivo enquanto
aprisionar tem sentido negativo. O caráter transformador do Feminino revela-se por
meio de características que apresentam perspectivas de mudanças existenciais. A
puberdade, a maternidade e a menopausa são eventos de transformação na vida da
mulher intimamente ligados ao sangue que ritualizam a “ginergia”, energia relacio-
nada à essência divina entendida como natureza do Feminino (Cf. BOLEN, 1990).
A puberdade está associada à Deusa grega Coré; a maternidade à Deméter e a
menopausa à Hécate porque os mitos dessas divindades relatam episódios refe-
rentes a esses eventos.
O processo de transformação do Feminino foi vivenciado em três estágios
da evolução da consciência: a fase da Grande Deusa, que compreende o “estar
contido” na totalidade urobórica do Grande Círculo – estágio propriamente in-
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Abalada no mais íntimo recesso de seu ser, a mulher eleva aos céus um clamor que
ultrapassa as mais altas e silenciosas montanhas, buscando em toda parte aquele
deus revelado, que também prefere trilhar as alturas... A intensidade do ardor
orgiástico, misto de religião e sensualidade, mostra como a mulher, apesar de mais
fraca que o homem, é capaz, com o passar do tempo, de atingir planos mais
elevados que ele. Através de seu mistério, Dioniso capturava a alma feminina com
sua inclinação por tudo que é sobrenatural, por tudo que desafia a lei natural;
através de sua ofuscante e sensual epifania, ele atuava sobre a capacidade de
imaginação que, para a mulher, constitui o ponto de partida para todas as suas
emoções interiores, e para suas sensações eróticas, sem as quais ela nada consegue
realizar, mas à qual, sob a proteção da religião, ela permite uma expressão
avassaladora, que ultrapassa todas as barreiras.
Jung (1995, p. 218) também fala sobre a orgia sagrada proporcionada pela
possessão de um deus.
Por sua vez, Qualls-Corbett (1990, p. 26-30) comenta que, centenas de anos
antes de Cristo, o fascínio masculino pela Deusa levava muitos gregos aos templos
de Afrodite para aprenderem a arte de amar com as prostitutas sagradas e
vivenciarem êxtase sexual divino ainda que a conjunção carnal com a divindade se
concretizasse por meio da fantasia ou da possessão psíquica. O imaginário
masculino era ativado pelo arquétipo da Deusa que lhe oferecia emoções sagradas
no santuário do coração.
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[...] de seus olhos escorre o visgo da sedução fatal e esplêndida, de sua boca as
palavras da sabedoria última, de seus peitos o leite da proteção infalível, de seu
ventre o cordão da vida que se desenrola de século em século, mas ela está ali, a
grande amante, a grande mãe, a grande.
Essa mulher sonâmbula sobre o telhado, fascinada pela lua, embalando-se ao som
de uma melopéia que os anjos escutam, nesse estado de maravilhamento que só a
arte pode instaurar.
A mulher selvagem aparece sem que eu a tenha invocado, quer que eu fale dela:
seu cabelo é musgo, sua urina é fonte, sua saliva é chuva, sua raiva é furor de
vulcões, seu desdém é a neve dos invernos, seu sexo é o oco do fim do mundo.
Essa mulher antiga, selvagem, “raiz que brota do tempo e vem”, “grande
amante, grande mãe, a grande” pode ser considerada uma representação arquetípica
da Deusa arcaica. Sua epifania no texto literário se realiza como uma irrupção do
inconsciente coletivo e pessoal – relicário de todas as experiências humanas – o
que significa dizer que a criação poética constrói essa persona comprometida com a
memória arcaica. A compreensão das metáforas que modelam sua identidade
psicológica e sociocultural suscita uma incursão no tempo em busca da imagem
Deusa Mãe cultuada nas religiões de mistério e conhecida em mitos muito antigos.
É perceptível a identificação da personagem com a Tellus Mater, pois “seu cabelo é
musgo, sua urina é fonte, sua saliva é chuva, sua raiva é furor de vulcões, seu
desdém é neve dos invernos, seu sexo é o oco do fim do mundo”. Vê-se que a
configuração materna da personagem é construída em bases arquetípicas – um
modelo inconsciente registrado na psique imemorial e projetado de forma própria
nessa figura ficcional.
Portanto, as imagens arquetípicas do Feminino, os mitos ascensionais e
destrutivos da mulher em qualquer época e lugar são inspirados, em sua maioria, no
modelo arcaico da Grande Deusa, primeira entidade divina cultuada pela
humanidade que ficou registrada nos labirintos da alma, o inconsciente, e sempre
retorna soberana. Com efeito, apesar de o processo de evolução da consciência ter
dessacralizado essa divindade e de ter destituído o seu poder, ela ressurge nos
comportamentos culturais, nas artes e na vida como energia da criatividade, da sen-
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