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Graphos. João Pessoa, v. 10, n.

1, 2008 – ISSN 1516-1536 103

O ARQUÉTIPO DA DEUSA NA VIDA,


NA CULTURA E NA ARTE LITERÁRIA
Maria Goretti Ribeiro1

RESUMO: Este artigo versa sobre o significado do arquétipo da Deusa em diversos setores da vida
humana, principalmente na arte literária. Com base em estudos antropológicos, especificamente nas
teorias junguianas: Jung (1995), Neumann (1996), Bolen (1990) Woolger (1994), evidencia-se
mitos e imagens originárias da Deusa arcaica, seus papéis e significados, interpretando-os como
fonte dos padrões emocionais dos pensamentos, sentimentos e instintos femininos que sobrevivem
submersos no inconsciente coletivo, estão representados na literatura de todos os tempos e são
entendidos como expressões metafóricas da psique feminina projetados em mulheres reais e
ficcionais. Tenta-se explicar o sentido do retorno da Deusa na contemporaneidade e as formas como
suas imagens são ressemiotizadas na literatura.
Palavras-chave: literatura; mito, arquétipo

ABSTRACT: This paper discusses the archetypes imagery of the Great Mother that are present in
different aspects of the human life, especially in literary art. The analysis of this paper will be
carried out in a dialogue with the theoretical perspectives of the anthropological studies as well as
junguian theory: Jung (1955), Bolen (1990), Woolger (1994) and Neumann (1996), considering the
myths and the archetypes imagery of the archaic Goddess such as the fairies and witches,
interpreting them as a search for the emotional patherns: thoughts, sentiment and female´s instincts
that are present in the collective unconscious. It will be also consider their representations in
literature as a metaphor of female’s psyche that are projected into fiction.
Keywords: literature, myth, archetype

A idéia de Deusa com o qual se pretende trabalhar refere-se a um tipo


complexo de personalidade feminina que pode ser reconhecida em qualquer mulher
de carne e osso, bem como em imagens oníricas, artísticas e culturais. Com base na
concepção junguiana, Woolger (1994, p. 15-16) conceitua a Deusa como

a forma que um arquétipo feminino pode assumir no contexto de uma narrativa ou


epopéia mitológica, [...] o que vale dizer, fontes derradeiras daqueles padrões
emocionais de nossos pensamentos, sentimentos, instintos e comportamento que
poderíamos chamar de ‘femininos’ na acepção mais ampla da palavra. Tudo o que
pensamos com criatividade e inspiração, tudo o que acalentamos, que
amamentamos, que gostamos, toda a paixão, desejo e sexualidade, tudo o que nos
impele à união, à coesão social, à comunhão e à proximidade humana, todas as
alianças e fusões, e também todos os impulsos de absorver, destruir, reproduzir e
duplicar, pertencem ao arquétipo do feminino.

A Deusa arquetípica revela-se de várias formas conforme as práticas


culturais e religiosas, níveis de consciência, de conhecimento e de vivência humana
no tempo e no espaço. Na aurora dos tempos, numa fase muito primitiva da huma-

1
Professora do Mestrado em Literatura e Interculturalidade / UEPB.
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nidade, anterior mesmo à agricultura, conhecida como Período Paleolítico – mais


ou menos 10000 a.C. – em que o poder da terra estava associado a forças cósmicas,
a Deusa era a Tellus Mater. Suprema, absoluta e inelutável força corpóreo-espiri-
tual que exercia influências em todas as ações humanas, denominada de “a
Desconhecida”, a Deusa incorporava a materialidade, a beleza, a grandeza e a
fertilidade da Natureza, tomando de empréstimo a expressão de Campbell (1990, p.
24), era a “personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que
funcionava para a vida humana e para o universo”.
O maior significado do seu culto centrava-se na harmonia com a Natureza
porque esta encarnava a vida e a morte, era a própria Grande Mãe boa e má ao
mesmo tempo. Para os homens de tal época, o mistério da origem humana
ocultava-se na Natureza e no corpo da fêmea, uma vez que a Deusa segredava no
ventre feminino o enigma da fecundação. Eles acreditavam que a força procriadora
da Tellus Mater atuava na mulher após esta ter contato com qualquer elemento da
terra de modo que o mito da maternidade divina muito favoreceu a mulher até a
Idade dos Metais – 4000 a.C. – quando o homem descobriu o seu papel na fecun-
dação. Desse modo, maternais, bondosas, terríveis, sinistras, eróticas ou espirituais,
as imagens arquetípicas do Feminino foram construídas a partir das formulações
míticas sobre o poder da Deusa na fecundação, na gestação, na destruição e na
mudança dos destinos da humanidade. A ela eram oferecidos os rituais da
fertilidade porque lhe atribuíam a soberania sobre o céu, a terra, as águas e as re-
giões infernais. Senhora dos animais, das plantas e dos destinos, possuía poder
sobre a vida e a morte porque tudo o que existe teria sido gerado no seu imenso e
multiforme ventre, num contínuo nascer, morrer e renascer.
Virgem, impenetrável, simbolicamente completa, uma ditadora sexual, a
Deusa mantinha os homens − seus consortes − sob seu controle visto que eles
funcionavam apenas como agentes fertilizadores, o que declarava a nulidade
masculina mediante a força do Feminino sagrado. A eterna virgindade significava
que ela pertencia a si própria. Mesmo casada, sua condição de virgem não se
alterava porque seu esposo não a dominava. O fato de não pertencer a um homem
assegurava sua reconhecida independência.
Erich Neumann (1996, p. 25-58) comenta que um dos traços fundamentais
da Deusa era a coincidentia oppositorum, ou seja, mesmo sendo una era, parado-
xalmente, reverenciada com dupla personalidade: como Mãe Bondosa e como Mãe
Terrível − útero e túmulo da humanidade − porque exercia o ambíguo papel de
promover a vida e a morte.2 Com o passar do tempo, graças ao processo de

2
A fecundidade animal da Deusa era cruelmente dramatizada em rituais de mistério, isto se revelava
como um aspecto relevante da simbologia da Senhora da vida e da morte. Os cultos da Grande
Deusa resultavam em autoflagelações, autocastrações, circuncisões de sacerdotes e veneradores,
defloramentos rituais e prostituição sagrada. Os rituais de passagem praticados nos santuários
arcaicos são ainda conservados por grupos humanos primitivos. Outros procedimentos em rituais de
castração foram transformados em atos simbólicos religiosos, como a tonsura dos monges, o voto de
castidade e a batina sacerdotal, formas de emasculação que significam aderência à Deusa (Cf.
PAGLIA, 1994, p. 51).
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evolução da consciência, ela passou a ser cultuada como duas entidades distintas a
quem eram atribuídos poderes do bem e do mal. Os homens arcaicos formulavam a
idéia do mundo abstrato conforme a realidade existencial concreta se apresentava
para eles. Desse modo, a Grande Deusa Bondosa era a Natureza benéfica quando
os presenteava com as riquezas da terra e era Terrível quando os castigava com a
força dos seus elementos.
O mundo mediterrâneo cultuou essa divindade através de imagens diversas
como Deusa do amor, da guerra, dos lares, da polis, da morte, e com muitos nomes,
que variam conforme sua nacionalidade, mas ela era predominantemente a Grande
Mãe, Senhora do Destino, que tanto protegia e cumulava de benefícios quanto des-
prezava, perseguia e punia com castigos implacáveis homens e mulheres. Dentre as
mais conhecidas configurações da Deusa Mãe destacam-se Ísis, no Egito, Gaia, em
Creta, Rea em Micenas, Deméter, no santuário de Elêusis, Hera na cidade de
Atenas, Afrodite, na Frígia, Ártemis, em Éfeso, Dea, na Síria, Anaitis, na Pérsia,
Isthar, na Babilônia, Astarte, na Fenícia, Atargatis, na Cananéia, Mâ, na Capadócia,
Bendis e Cottyto, na Trácia. Conhece-se também variadas personificações dos
horrores femininos que derivam da suprema Mãe Terrível, como as Górgonas, as
Fúrias ou Erínias, as Keres, as Sereias, as Harpias, Lâmia, Êmpusa, Circe, Cila,
Caríbdis, Kali, Sin, dentre outras.
Todas essas faces da Deusa são formas de manifestação de uma pluralidade
de figuras benévolas e malévolas difundidas pela humanidade ao longo dos tempos
através dos rituais religiosos e dos mitos. Tais imagens simbolizam o poder primor-
dial do Grande Feminino divino em seu papel de gerar e de destruir que o homem
arcaico percebeu nos fenômenos naturais das águas, do fogo, da terra, dos astros
celestes (sol, lua, estrelas, chuva, raio, relâmpagos, trovões), na vida dos animais de
todas as espécies porque tudo constitui o corpo da Deusa, cujas imagens são
conservadas no inconsciente coletivo, podendo se revelar nos sonhos, nas culturas,
nas artes em geral e, de modo muito especial, na literatura.
Imagens míticas da Deusa estão associadas à psicologia da mulher em
diferentes fases de sua vida, da puberdade à velhice, que, por sua vez, representam
os aspectos da natureza intrínseca do Feminino em seu caráter elementar e transfor-
mador positivo e negativo. Assim, gestar, proteger, abrigar, conservar, amamentar,
cuidar, são funções elementares do materno e têm sentido positivo enquanto
aprisionar tem sentido negativo. O caráter transformador do Feminino revela-se por
meio de características que apresentam perspectivas de mudanças existenciais. A
puberdade, a maternidade e a menopausa são eventos de transformação na vida da
mulher intimamente ligados ao sangue que ritualizam a “ginergia”, energia relacio-
nada à essência divina entendida como natureza do Feminino (Cf. BOLEN, 1990).
A puberdade está associada à Deusa grega Coré; a maternidade à Deméter e a
menopausa à Hécate porque os mitos dessas divindades relatam episódios refe-
rentes a esses eventos.
O processo de transformação do Feminino foi vivenciado em três estágios
da evolução da consciência: a fase da Grande Deusa, que compreende o “estar
contido” na totalidade urobórica do Grande Círculo – estágio propriamente in-
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consciente da humanidade – o “plano da Natureza”, que é a ligação entre a Grande


Deusa e o mundo vegetal e animal, e, finalmente, o “plano cultural”, em que se
atinge a transição para as transformações da mentalidade.
Com a evolução da consciência, a Deusa adormeceu velada por um grande
mistério. Do ponto de vista psicológico, o seu longo sono na cultura ocidental
eclipsou os valores da mulher e significou uma perda inestimável para os indiví-
duos porque promoveu a dessacralização do Feminino e a conseqüente desvalo-
rização do ser profundo da mulher, de sua natureza intrínseca, visto que lhe foi
subtraída a dimensão mental e psicológica que sempre ordenou as relações huma-
nas na paridade.
Excetuando-se a evolução científica promovida pelo racionalismo platô-
nico, a humanidade ainda vive a depressão das significativas perdas promovidas
pelo desaparecimento da Deusa, especialmente da Grande Mãe imanente que fora
substituída, gradual e lentamente, pelo Grande Pai transcendental, cuja superio-
ridade submeteu a sacralidade do Feminino à insignificância absoluta ao transferir
o culto da terra para o céu. A civilização patriarcal subverteu a essência metafísica
do Feminino em todas as situações da vida ao separar o corpo do espírito, a matéria
da alma e ao degradar o eros feminino. A civilização moderna ainda sofre uma
grave desorganização psicossocial por ter olvidado a energia psicológica da Deusa.
Lamentavelmente, disso resultou a insignificância da mulher que, qualificada de
elemento inferior oponente ao homem, agente perturbador dos processos cogniti-
vos, tornou-se apenas a fêmea biológica com corpo programado para sexo, gesta-
ção e maternidade. Em contrapartida, o homem, senhor das guerras, herói de
conquistas cósmicas, dotado de poder cerebral, tornou-se órfão da Grande Mãe,
conseqüentemente imune a qualquer sentimento de ternura e submerso no caos
social instituído pela ordem do Pai.
A despeito da dessacralização da Deusa pelas religiões judaico-cristãs,
principalmente no Ocidente, apesar dos avanços tecnológicos, do apogeu de um
tempo iconoclasta e mitofágico, vislumbra-se a onipresença da Deusa em todos os
setores da sociedade, nas religiões, na mídia, no comportamento coletivo, enfim,
em todas as situações dinâmicas para as manifestações maternais, criativas, sensí-
veis, interpretativas e eróticas do espírito. Esse fenômeno que afeta os valores
humanos, os relacionamentos sociais, sexuais e profissionais, que transforma con-
ceitos e idéias, que cria outros mitos do Feminino e outra visão da mulher, é deno-
minado, metaforicamente, pelos mitólogos radicais de “retorno da Deusa”, cujo
significado psicológico sugere uma desconstrução de toda forma de repressão ao
sujeito feminino (Cf. WOOLGER, 1994, p. 19). O arquétipo da Deusa desperta na
psique de cada mulher e irrompe em todos os setores da vida exigindo mudança de
mentalidade e de comportamento que implicam um novo entendimento da mascu-
linidade e da feminilidade nas relações entre os sexos e nas atitudes socioculturais.
Ela deseja promover uma imersão profunda das pessoas na sua própria consciência.
A Deusa retorna transfigurada, remodelada, capaz de favorecer outros
caminhos de acesso aos labirintos da alma humana. Destronada nos rituais propi-
ciatórios graças ao abstracionismo monoteísta, reprimida no inconsciente coletivo,
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a Deusa subsistiu ao ostracismo que lhe impingiu o “patriarcado”, irrompendo, na


modernidade, principalmente no comportamento feminino e nas representações
artísticas. Sabedoria feminina inconsciente interpretada como aquisição da
consciência, ela intervém com grande poder na vida pós-moderna, tornando-se o
princípio transformador de concepções relativas à mulher.
Negada e reprimida durante milhares de anos de cerebralismo masculino, a
Deusa retorna numa época caótica em que a humanidade sofre os cataclismos da
destruição dos princípios éticos e dos valores morais e os indivíduos, fragmentados,
perdem, cada dia mais, a identidade num mundo coletivizado. A Deusa retorna
anunciando mudanças positivas no modo de pensar e agir das pessoas, pois, como
promotora do conhecimento profundo do Feminino, só ela é capaz de devolver os
sentimentos, as emoções, a intuição e a criatividade de que necessitam os homens
para humanizar e divinizar este mundo.
Conforme explica Qualls-Corbett (1990, p. 71-83), o conhecimento intui-
tivo ensejado pela irrupção da Deusa é um lado obscurecido da alma feminina,
pouco compreendido, muito projetado na arte e na cultura e essencialmente respon-
sável pelos mitos da sedução e da magia, apesar de ser um arquétipo ambilátero,
apto a ativar tanto a energia sensual quanto a mental e cognitiva. Todavia sua força
psicológica positiva dinamiza a natureza feminina para o aspecto elementar e
transformador do materno que promove, do ponto de vista psicológico, carinho,
proteção, amor, renúncia do ego e crescimento interior. Quando se toma consciên-
cia do aspecto divino da natureza interna feminina, quando se é guiada por ideais,
emoções, intuições e sabedoria sibilina, tende-se a valorizar o corpo, a mente e a
evoluir espiritualmente. Manifesta-se, portanto, o instinto erótico-maternal da mu-
lher como consciência integrada ao corpo, conhecimento profundo e capacidade de
conectar as emoções mais puras ao relacionamento humano.
Algumas imagens arquetípicas do Feminino, especialmente as da femme
fatale, envolvem a pureza do instinto erótico, mas formam uma poderosa arqui-
tetura mítica contra a mulher, reproduzindo o fenômeno da abjuração dos seus
valores naturais. O tema da “maldição da mulher” sempre fez parte das reflexões
sobre o seu verdadeiro papel na história, demonstrando concretamente a capacidade
que o imaginário tem de criar imagens destrutivas e conservá-las de forma atem-
poral. Isto confirma o pensamento junguiano de que nenhuma formulação inte-
lectual científica tem a permanência, a profundidade e a força de expressão das
imagens arquetípicas. Entende-se que os mitos da femme fatale que, em remotís-
simas eras, influenciaram a psique dos primitivos com conteúdos ricos de signifi-
cados destrutivos, são responsáveis pelos eternos estigmas da culpa feminina por
ter trazido os males para o mundo em decorrência de sua tendência à desobediência
e à prevaricação, como divulgaram os filósofos da Antiguidade Clássica e da
Escolástica medieval.
Jung relacionou o princípio Feminino ao eros, explicando que se trata de
uma energia anímica que implica comprometimento passional, convívio com a
porção obscurecida da personalidade, com certas realidades marginais à moral e
com inferioridades excluídas do campo dos interesses conscientes. O eros divino
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do Feminino é ativo e semelhante à loucura da alma, descrita por Platão em Fedro,


algo evocativo de forças primitivas que arrebata o indivíduo para além das
limitações e convenções das normas sociais e da vida razoável, produzindo o êxtase
– liberação dos sentidos e das convenções de grupo – que pode variar da perda da
alma até o mais profundo alargamento da personalidade. Bachofen (apud
NEUMANN, 1996, p. 257) relaciona o princípio erótico do Feminino ao “ardor da
mulher” que, nos antigos rituais sagrados em honra ao deus do vinho, ultrapassava
os domínios da razão graças à união indissolúvel de duas grandes forças: o êxtase
erótico e o culto a um deus, cujas manifestações físicas se assentavam num fundo
emocional exacerbado. Ele atribui ao arrebatamento erótico sagrado o entusiasmo
frenético das Mênades embriagadas de vinho e extasiadas mediante a revelação do
deus:

Abalada no mais íntimo recesso de seu ser, a mulher eleva aos céus um clamor que
ultrapassa as mais altas e silenciosas montanhas, buscando em toda parte aquele
deus revelado, que também prefere trilhar as alturas... A intensidade do ardor
orgiástico, misto de religião e sensualidade, mostra como a mulher, apesar de mais
fraca que o homem, é capaz, com o passar do tempo, de atingir planos mais
elevados que ele. Através de seu mistério, Dioniso capturava a alma feminina com
sua inclinação por tudo que é sobrenatural, por tudo que desafia a lei natural;
através de sua ofuscante e sensual epifania, ele atuava sobre a capacidade de
imaginação que, para a mulher, constitui o ponto de partida para todas as suas
emoções interiores, e para suas sensações eróticas, sem as quais ela nada consegue
realizar, mas à qual, sob a proteção da religião, ela permite uma expressão
avassaladora, que ultrapassa todas as barreiras.

Jung (1995, p. 218) também fala sobre a orgia sagrada proporcionada pela
possessão de um deus.

Se não tivermos uma noção do conteúdo sexual de antigos cultos e imaginarmos


que a experiência de união com um deus da Antiguidade era considerado um coito
mais ou menos completo, não podemos mais conceber que as forças motoras da
fantasia que cria símbolos se tenham modificado completamente depois do
nascimento de Cristo. O fato de os primeiros cristãos terem se afastado tão
energicamente da natureza e dos instintos e, por sua tendência ascética, terem
evitado a sexualidade, prova exatamente a origem destas motivações.

Por sua vez, Qualls-Corbett (1990, p. 26-30) comenta que, centenas de anos
antes de Cristo, o fascínio masculino pela Deusa levava muitos gregos aos templos
de Afrodite para aprenderem a arte de amar com as prostitutas sagradas e
vivenciarem êxtase sexual divino ainda que a conjunção carnal com a divindade se
concretizasse por meio da fantasia ou da possessão psíquica. O imaginário
masculino era ativado pelo arquétipo da Deusa que lhe oferecia emoções sagradas
no santuário do coração.
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A linguagem literária, que apresenta uma visão de mundo em conformidade


com o segmento sociocultural e com as motivações inconscientes que a ela se
impõem, que transforma o logos em mythos, a razão em emoção, a beleza em
novidade poética, serve-se da imagem da Deusa para metaforizar sentimentos,
comportamentos e fatos da vida e para representar a mulher sob padrões ideais, não
apenas de acordo com modelos depreciativos platônico, medieval, romântico ou
kantiano do eros feminino, mas como imagens de força existencial, susceptível à
sua natureza instintual e espiritual, criando condições propícias para se refletir
sobre a subjetividade e o significado do Feminino no mundo. Logo, as Deusas são
representadas na literatura e nas artes em geral com o significado arquetípico de
beleza, grandeza e sabedoria. Neumann (1996, p. 76) lembra que tais represen-
tações “são vivenciadas pela personalidade como ‘exteriores’, isto é, como aquilo
que o ego normal designa como ‘real’”.
Ao fantasiar a mulher perfeita, amada e desejada, a imaginação do escritor
projeta tanto imagens pessoais quanto imagens comuns ao imaginário cultural e ao
inconsciente coletivo. O arquétipo da Deusa é sempre projetado em uma bela
mulher, amante, heroína, admirada por suas virtudes: a mãe bondosa, a princesa
elegante e educada, a rainha obediente, a fada madrinha, de acordo com a forma
que esse sujeito pode assumir no contexto da narrativa, da tragédia, do poema, da
vida, nunca em mulheres sofridas, profissionais agitadas, prostitutas, etc.. A perso-
nagem sempre encarnará um perfil emoldurado no campo da energia psíquica que o
arquétipo da Deusa inspira, informando tipos, atitudes e comportamento ideali-
zados como modelo de perfeição. Dessa forma, as heroínas da literatura, do
cinema, das novelas de televisão, dos contos de fadas personificam, não raro, os
arquétipos de Afrodite, no modo de ser de uma mulher apaixonada; de Atena, nos
ideais de uma mulher racional; de Deméter, na proteção materna, que fundamentam
sempre o eterno Feminino e abrem possibilidades de equilíbrio psico-espiritual e
resistentes forças vitais que sobrevivem no tempo.
As heroínas literárias que constelam formas arcaicas da Deusa apresentam
formas peculiares de ser e de fazer, realizam escolhas inteligentes, subsistem a todo
tipo de provação, de privação, de crueldade, de abuso sexual, de carência afetiva,
de compadecimento, criando possibilidade de salvação conscientes de que são
falíveis em meio às turbulências da vida, mas que são capazes de mudar o curso de
suas histórias.
Ainda que se apresente macerada pelos complexos destrutivos que lhe
foram legados pelo patriarcado, ainda que continue perdendo no jogo cultural do
poder, o arquétipo da Deusa irrompe sempre na literatura e gesta uma nova mulher
que age em seu nome para revigorar a natureza original feminina, criando
estratégias de competição, afirmando a identidade sociocultural, possibilitando a
complementaridade criativa no relacionamento harmônico com o homem.
O perfil da mulher desconhecida descrita no ensaio poético O rio do meio,
produzido por Lya Luft (1996, p. 140-142), cujo ser transgride a realidade
existencial para se instaurar como um conceito metafórico corrobora as idéias
veiculadas até agora:
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Essa mulher agachada no fundo do corredor, boca entreaberta de pasmo e ânsia,


outras vezes fechada em recolhimento e doçura, essa mulher que espreita pelos
cantos da casa e do mundo, quem é ela? Ninguém me conhece, dirá. Ninguém sabe
quem sou. Ninguém tem a ver realmente com essa raiz que brota do tempo e vem,
e vem, e vem, como vem o grande gozo do amor ou a fulguração da morte.

[...] de seus olhos escorre o visgo da sedução fatal e esplêndida, de sua boca as
palavras da sabedoria última, de seus peitos o leite da proteção infalível, de seu
ventre o cordão da vida que se desenrola de século em século, mas ela está ali, a
grande amante, a grande mãe, a grande.

Uma mulher na sala e no quarto, pensando na vida, brincando com crianças,


preparando comida, tecendo um tapete.

Uma mulher no subterrâneo escuro feito um bicho, assustadora e bela. Nada


precisa fazer senão existir: a manhã e a noite nascem de seus olhos.

Essa mulher sonâmbula sobre o telhado, fascinada pela lua, embalando-se ao som
de uma melopéia que os anjos escutam, nesse estado de maravilhamento que só a
arte pode instaurar.

A mulher selvagem aparece sem que eu a tenha invocado, quer que eu fale dela:
seu cabelo é musgo, sua urina é fonte, sua saliva é chuva, sua raiva é furor de
vulcões, seu desdém é a neve dos invernos, seu sexo é o oco do fim do mundo.

Essa mulher antiga, selvagem, “raiz que brota do tempo e vem”, “grande
amante, grande mãe, a grande” pode ser considerada uma representação arquetípica
da Deusa arcaica. Sua epifania no texto literário se realiza como uma irrupção do
inconsciente coletivo e pessoal – relicário de todas as experiências humanas – o
que significa dizer que a criação poética constrói essa persona comprometida com a
memória arcaica. A compreensão das metáforas que modelam sua identidade
psicológica e sociocultural suscita uma incursão no tempo em busca da imagem
Deusa Mãe cultuada nas religiões de mistério e conhecida em mitos muito antigos.
É perceptível a identificação da personagem com a Tellus Mater, pois “seu cabelo é
musgo, sua urina é fonte, sua saliva é chuva, sua raiva é furor de vulcões, seu
desdém é neve dos invernos, seu sexo é o oco do fim do mundo”. Vê-se que a
configuração materna da personagem é construída em bases arquetípicas – um
modelo inconsciente registrado na psique imemorial e projetado de forma própria
nessa figura ficcional.
Portanto, as imagens arquetípicas do Feminino, os mitos ascensionais e
destrutivos da mulher em qualquer época e lugar são inspirados, em sua maioria, no
modelo arcaico da Grande Deusa, primeira entidade divina cultuada pela
humanidade que ficou registrada nos labirintos da alma, o inconsciente, e sempre
retorna soberana. Com efeito, apesar de o processo de evolução da consciência ter
dessacralizado essa divindade e de ter destituído o seu poder, ela ressurge nos
comportamentos culturais, nas artes e na vida como energia da criatividade, da sen-
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sualidade, da sensibilidade e da transformação para atuar em favor dos indivíduos.


Na literatura, esse arquétipo inspira as idealizações poéticas do feminino para o
bem e para o mal e constrói um imaginário capaz de transformar mentalidades e
realidades.

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