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A NOVA GAZETA RENANA 229

A Nova Gazeta Renana

KARL MARX1

A declaração de Camphausen dade de seu ministério foi revelado pe-


na sessão de 30 de maio lo sr. Camphausen de maneira solene
(NGR, no 3, 3/6/1848) e transcendente, com aquela, por as-
sim dizer, grave corporeidade que ocul-
Post et non propter,2 ou seja, o sr. ta as carências da alma,4 a 30 de maio
Camphausen tornou-se primeiro-minis- de 1848 à Assembléia de Berlim, resul-
tro3 não através da Revolução de Mar- tante do acordo entre ele e os eleitores
ço, mas sim depois da Revolução de indiretos.5
Março. O significado desta posteriori- “O ministério formado a 29 de mar-
ço”, diz o pensador amigo da história,6
1. Artigos recolhidos e traduzidos por Lívia
Contrim (e-mail: lcotrim@aol.com).
2. Depois e não através. 4. Do romance de Laurence Sterne, The Life and
3. O ministério Camphausen substituiu, em 29 de opinions of Tristram Shandy, Gentleman (A vida e as
março de 1848, o governo do conde Arnim- opiniões de Tristram Shandy), vol. 1, capítulo 11.
Boitzenburg, formado em 19 de março de 1848. O 5. A Assembléia Nacional Prussiana foi convocada
primeiro-ministro do novo governo era o banquei- no dia 22 de maio de 1848 para “entender-se com
ro renano Ludolf Camphausen (1803-1890), pre- a Coroa” sobre uma Constituição. Apesar da lei
sidente da Câmara de Comércio de Colônia, um eleitoral de 8 de abril de 1848, que previa o sufrá-
dos líderes da burguesia liberal renana, membro, gio universal, a Assembléia foi eleita pela via indi-
em 1847, da Dieta Unificada; o ministro das Fi- reta. A maioria dos deputados era representante
nanças era David Justus Hansemann (1790-1864), da burguesia e dos burocratas prussianos.
um dos representantes da grande burguesia 6. Designação irônica de Marx e Engels para
renana, que, na primeira Dieta Unificada, de 1847, Camphausen, aludindo ao subtítulo da obra en-
se apresentara como líder da oposição liberal e, tão muito conhecida História geral do início do co-
em 1848, se elegera deputado à Assembléia Na- nhecimento histórico até nossa época. Elaborado por
cional Prussiana. Esse governo via como sua tare- Karl Von Rotteck para os pensadores amigos da histó-
fa a mediação entre a grande burguesia e a Coroa. ria, Freiburg im Breisgau, 1834.

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“reuniu-se logo depois de um aconte- nistério Camphausen, ao menos post


cimento cujo significado não desconhe- festum.
cia nem desconhece.”7 “Este acontecimento” — a forma-
A afirmação do sr. Camphausen, de ção do ministério Camphausen ou a Re-
que não formara o ministério antes do volução de Março? — “é uma das cau-
29 de março, comprova-se nos núme- sas mais essenciais que contribuem para
ros dos últimos meses da Gazeta do Es- a transformação de nossa constituição
tado Prussiana.8 E pode-se seguramente política interna.”
supor que uma data tenha grande “sig- Isto deve significar que a Revolu-
nificado”, especialmente para o sr. ção de Março é uma “causa essencial,
Camphausen, quando constitui ao me- que contribui” para a formação do mi-
nos o ponto de partida cronológico de nistério de 29 de março, ou seja, para o
sua ascensão. Que tranqüilidade para ministério Camphausen. Ou isto deve-
os combatentes mortos nas barricadas ria meramente significar: a revolução
que seus frios cadáveres figurem como prussiana de março revolucionou a
marcos, como indicadores apontados Prússia? Em todo caso, uma tão solene
para o ministério de 29 de março! tautologia é presumível num “pensa-
Quelle gloire!9 dor amigo da história”.
Numa palavra: depois da Revolu- “Encontramo-nos no umbral da
ção de Março, formou-se um ministé- mesma” (a saber, da transformação de
rio Camphausen. Este mesmo ministé- nossas relações políticas internas), “e o
rio Camphausen reconhece o “grande caminho diante de nós é longo, o go-
significado” da Revolução de Março; verno o reconhece.”
ao menos, não o desconhece. A revo- Numa palavra: o ministério
lução mesma é bagatela, mas seu signi- Camphausen reconhece que tem ainda
ficado! Ela significa, justamente, o mi- um longo caminho diante de si, isto é,
promete-se uma longa duração. Breve
é a arte, isto é, a revolução, e longa a
7. Em seus artigos sobre os debates na Assem- vida,10 isto é, o ministério que a suce-
bléia Nacional prussiana (Assembléia Ententista), deu. E, ainda por cima, ele próprio o
Marx e Engels utilizaram as “Notas estenográficas
sobre os debates da Assembléia convocada para reconhece. Ou interpreta-se de outra
fazer um acordo sobre a Constituição Prussiana”, maneira as palavras de Camphausen?
suplemento do Diário Oficial Prussiano, vol. 1-3, Certamente não pretenderemos do
Berlim, 1848, publicadas mais tarde como edição pensador amigo da história a trivial ex-
avulsa sob o título Debates da Assembléia Constituin-
te da Prússia de 1848, vol. 1-8, Berlim, 1848.
plicação de que os povos que se encon-
8. Gazeta Geral do Estado Prussiana – fundada em tram no umbral de uma nova época
Berlim em 1819, de 1819 até abril de 1848 o órgão histórica, no umbral estão, e que o ca-
semi-oficial do governo prussiano; de maio de
1848 até julho de 1851 foi publicada sob o título
de Diário Oficial Prussiano como órgão oficial do 10. Citação modificada do Fausto, de Goethe, Pri-
governo prussiano. meira Parte, “Noite”; ali se diz: “Longa é a arte, e
9 . Que glória! curta nossa vida”.

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minho que cada época tem diante de si promulgada. Mais tarde, procurou-se
seja tão longo quanto o futuro. induzir o governo a modificar a lei de
Tal é a primeira parte do laborio- moto próprio, especialmente a conver-
so, grave, formal, sólido e fino discur- ter o sistema eleitoral indireto no di-
so do primeiro-ministro Camphausen. reto. O governo não cedeu a isto. O
Resume-se em três frases: Depois da governo não exerceu nenhuma dita-
Revolução de Março, o ministério Cam- dura; não pôde exercê-la, não quis
phausen. Grande significado do minis- exercê-la. A lei eleitoral foi aplicada
tério Camphausen. Longo caminho de fato tal como existia de direito.
diante do ministério Camphausen! Sobre a base desta lei eleitoral foram
Agora, a segunda parte. eleitos os eleitores e os deputados.
“Mas, de maneira alguma compre- Sobre a base desta lei eleitoral, os se-
endemos a situação assim”, explica dou- nhores estão aqui, com plenos pode-
toralmente o sr. Camphausen, “como res para entender-se com a Coroa so-
se tivesse se produzido, através desse bre uma Constituição que, esperamos,
acontecimento” (a Revolução de Mar- seja durável para o futuro.”
ço) “uma completa reviravolta, como Um reino por uma doutrina!12 Uma
se toda a constituição de nosso Estado doutrina por um reino!
tivesse sido derrubada, como se todo Primeiro vem o “acontecimento”,
o existente tivesse cessado de existir título envergonhado da revolução. De-
juridicamente, como se todas as situa- pois vem a doutrina e logra o “aconte-
ções precisassem ser de novo juridica- cimento”.
mente fundadas. Ao contrário. No O “acontecimento” ilegal faz do sr.
momento de sua reunião, o ministério Camphausen um primeiro-ministro res-
concordou em considerar como uma ponsável, uma figura que não tinha ne-
questão vital que a Dieta Unificada11 nhum lugar, nenhum sentido no pas-
antes convocada se reunisse efetiva- sado, na Constituição então existente.
mente, apesar das petições em contrá- Através de um salto mortale, saltamos
rio recebidas, e que se passasse à nova por sobre o velho e encontramos, por
Constituição a partir da Constituição sorte, um ministro responsável; mas o
existente, com os meios legais que ela ministro responsável encontra, por
oferecia, sem cortar o laço que liga o mais sorte ainda, uma doutrina. Com
velho ao novo. Este caminho incon- o primeiro sopro de vida de um pri-
testavelmente certo foi seguido, a lei meiro-ministro responsável, a monar-
eleitoral foi submetida à Dieta quia absoluta morrera, decompusera-
Unificada e, com sua aprovação, foi se. Entre suas vítimas, encontrava-se
na primeira fileira a defunta “Dieta
11. Era composta, mais ou menos, como a Assem-
bléia dos Notáveis da França às vésperas de 1789, 12. Citação modificada de Rei Ricardo III, de
na qual estavam representadas as três ordens (no- Shakespeare, Ato 5, cena 4; ali se diz: “Um cava-
breza, clero e terceiro Estado). lo, um cavalo! Meu reino por um cavalo!”.

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Unificada”, esta repugnante mistura de O embuste doutrinário através


delírio gótico com mentira moderna.13 do qual o sr. Camphausen, “a par-
A “Dieta Unificada” era a “fiel ama- tir da Constituição existente, pas-
da”, a besta de carga da monarquia sou, com os meios legais que ela
absoluta. Assim como a república ale- oferecia, à nova Constituição” efe-
mã só pode festejar seu advento sobre tuou-se da seguinte maneira:
o cadáver do sr. Venedey,14 o ministé- Um acontecimento ilegal faz do sr.
rio responsável só pode festejar o seu Camphausen um primeiro-ministro res-
sobre o cadáver da “fiel amada”. O mi- ponsável, um ministro constitucional —
nistro responsável procura agora o ca- uma pessoa ilegal no sentido da “ve-
dáver esquecido ou evoca o espectro lha” “Constituição existente”. O minis-
da fiel amada “Unificada”, o qual efe- tro constitucional faz, de modo ilegal,
tivamente aparece, mas, desgraçada- da inconstitucional, estamental fiel
mente, cambaleando suspenso no ar, amada “Unificada” uma Assembléia
executando as mais extravagantes ca- constituinte. A fiel amada “Unificada”
briolas, já que não encontra mais ne- faz, de modo ilegal, a lei da eleição in-
nhum terreno sob seus pés, pois o an- direta. A lei da eleição indireta faz a
tigo terreno do direito e da confiança Câmara de Berlim, e a Câmara de
fora tragado pelo terremoto do “acon- Berlim faz a Constituição, e a Consti-
tecimento”. O mestre feiticeiro comu- tuição faz todas as Câmaras seguintes
nica ao espectro que o chamara para para todo o sempre.
liquidar seu legado e poder portar-se Assim, o ganso torna-se ovo e o
como seu leal herdeiro. O espectro não ovo, ganso. Mas, no grasnido salvador
poderia jamais apreciar suficientemen- do Capitólio16 o povo reconhecerá, bre-
te este obsequioso comportamento, ve, que os ovos dourados de Leda, que
pois na vida comum não se permite que pôs na revolução, foram surrupiados.
os mortos firmem testamento postu- O próprio deputado Milde17 não pare-
mamente. Sumamente lisonjeado, o espec-
tro aquiesce como um pagode a tudo o
que o feiticeiro ordena, faz uma reverên- Camphausen, em 8 de abril de 1848 pela segunda
cia à saída e desaparece. A lei da eleição Dieta Unificada e baseava-se no sistema de elei-
indireta15 é seu testamento póstumo. ção indireta em duas etapas.
16. No ano 390 a.C., os gauleses ocuparam a cidade
de Roma, com exceção do Capitólio, cujos defensores,
13. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. segundo a tradição, quando de um ataque-surpresa
XVII. noturno dos inimigos, foram acordados a tempo pelo
14. Venedey, Jacob (1805-1871): historiador e grasnido dos gansos do templo de Juno.
publicista de Colônia. Em 1848, foi membro do 17. MILDE, Karl August (1805-1861): industrial têx-
Parlamento Preparatório e da Assembléia Nacio- til (algodão) em Breslau, membro da Dieta Unificada.
nal de Frankfurt (centro-esquerda). De 26 de maio a 26 de junho, presidente da Assem-
15. A “lei eleitoral para a Assembléia convocada bléia Nacional de Berlim, onde pertencia à direita. De
para se entender sobre a Constituição prussiana” 25 de junho a 21 de setembro, foi ministro do Comér-
foi aprovada, por proposta do ministério cio, no gabinete Auerswald-Hansemann.

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ce ser o filho de Leda, o Castor que doenças não se curam com essência de
resplandece ao longe.18 rosas.19 O sr. Camphausen conseguirá
menos ainda mudar o caráter do mo-
vimento por meio de uma teoria arti-
O Ministério Camphausen ficial, que traça uma ligação entre seu
(NGR, nº 4, 4/6/1848) ministério e as antigas condições da
monarquia prussiana. A Revolução de
É sabido que a Assembléia Nacio- Março, o movimento revolucionário
nal francesa de 1789 foi precedida de alemão em geral, não se deixam trans-
uma Assembléia de Notáveis, uma as- formar, mediante um artifício qual-
sembléia de composição estamental quer, em incidentes mais ou menos
como a Dieta Unificada prussiana. No importantes. Luís Felipe foi escolhido
decreto pelo qual convocava a Assem- rei de França porque era Bourbon? Foi
bléia Nacional, o ministro Necker se escolhido apesar de ser Bourbon? Lem-
referia ao desejo, expresso pelos notá- bramos que essa questão dividiu os
veis, de convocar os Estados Gerais. O partidos logo depois da Revolução de
ministro Necker teve uma vantagem Julho.20 O que demonstrava esta ques-
significativa sobre o ministro tão? Que a revolução fora posta em
Camphausen. Ele não precisou esperar questão, que o interesse da revolução
a Tomada da Bastilha e a queda da não era o interesse da classe que che-
monarquia absoluta para ulteriormen- gara ao poder e de seus representan-
te atar, com uma doutrina, o velho ao tes políticos.
novo, a fim de laboriosamente manter A declaração do sr. Camphausen,
a aparência de que a França chegara à de que seu ministério veio ao mundo
nova Assembléia Constituinte através não através da Revolução de Março,
dos meios legais da antiga Constitui- senão depois da Revolução de Março,
ção. Teve ainda outra vantagem. Era tem esse mesmo significado.
ministro da França, e não da Alsácia-
Lorena, ao passo que o sr. Camphausen
não é ministro da Alemanha, mas da
Prússia. E com todas estas vantagens,
o ministro Necker não conseguiu trans-
formar um movimento revolucionário
numa tranqüila reforma. As grandes
19. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap.
XXXI.
20. Quando, alguns dias antes do início da Mo-
18. De acordo com o mito grego, os filhos da sobe- narquia de Julho, foi ponderada a questão de se o
rana espartana Leda e de Zeus saíram de um ovo. novo rei devia adotar o nome de Felipe VII, Dupin
Castor, o filho de Leda, foi uma figura heróica da o Velho (1783-1865) declarou que “o duque de
Grécia antiga. A mesma designação tem uma es- Orléans fora chamado ao trono não porque, mas
trela da constelação de Gêmeos. apesar de ser um Bourbon”.

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dental? Os poloneses não foram con-


Queda do ministério
quistados para a propaganda russa
Camphausen 21
(NGR, 23/6/1848) pelo obus e pela pedra infernal?
Não foram tomadas todas as provi-
Tão belo brilha ainda o sol, dências para repetir o bombardeio de Pra-
Um dia há de se pôr,22 e também o ga em quase todas as cidades renanas?
sol de 30 de março,23 tinto do sangue Na guerra polonesa, na dinamar-
ardente dos poloneses, se pôs. quesa, nos inúmeros pequenos confli-
O ministério Camphausen vestira a tos entre a tropa e o povo, o exército
contra-revolução com sua roupagem não teve todo o tempo para se trans-
liberal-burguesa. A contra-revolução formar numa soldadesca brutal?
sente-se suficientemente forte para li- A burguesia não está farta da re-
vrar-se da incômoda máscara. volução? E não se eleva no meio do
Um insustentável ministério qual- mar o rochedo sobre o qual a contra-
quer, de centro-esquerda, pode possi- revolução construirá sua igreja, a In-
velmente suceder por alguns dias o glaterra?
ministério de 30 de março. Seu verda- O ministério Camphausen procura
deiro sucessor é o ministério do prín- apanhar ainda alguns centavos de po-
cipe da Prússia. Cabe a Camphausen a pularidade, provocar a compaixão pú-
honra de ter dado ao partido absolu- blica pela garantia de que se retira en
tista feudal esse seu chefe natural e, a dupe24 da cena do Estado. E, segura-
si próprio, seu sucessor. mente, é um enganador enganado. A
Para que mimar ainda por mais tem- serviço da grande burguesia, teve de
po os tutores burgueses? procurar privar a revolução de seus
Não estão os russos na fronteira frutos democráticos; em luta contra a
oriental e as tropas prussianas na oci- democracia, teve de se aliar ao partido
aristocrático e tornar-se o instrumento
de seus apetites contra-revolucionários.
21. Depois do ataque ao arsenal, em 17 de junho Este está suficientemente fortalecido
de 1848, renunciaram os ministros Von Kanitz, para poder desembaraçar-se de seu
conde Schwerin e barão Von Arnim, e em 20 de
junho todo o ministério Camphausen. A Nova Ga-
protetor. O senhor Camphausen se-
zeta Renana viu nessa queda de Camphausen a indi- meou a reação no sentido da grande
cação de que a grande burguesia pensava em pas- burguesia, e colheu-a no sentido do
sar do período de traição passiva do povo à Co- partido feudal. Tal era a boa intenção
roa ao período da subjugação ativa do povo sob
do homem, tal seu triste destino. Um
seu domínio em aliança com a Coroa.
22. Ferdinand Raimund, A moça do mundo das fa-
centavo de popularidade25 para o ho-
das ou O camponês como milionário, Ato 11, cena 6. mem desiludido.
23. Em 30 de março de 1848 iniciou suas ativida-
des o ministério Camphausen, formado no dia
anterior, e em cujo período de governo ocorreu a 24. Argutamente.
repressão sangrenta da insurreição na Posnânia. 25. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. XXIV.

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sessão deu ao primeiro-ministro, von


Um centavo de popularidade! Auerswald, a convicção de que devia
Tão belo brilha ainda o sol, apresentar sua demissão; também o mi-
Um dia há de se pôr. nistro von Schreckenstein não queria
Mas no oriente ele renascerá. permanecer por mais tempo moço de
recados de Hansemann, e assim ontem
o ministério inteiro se dirigiu ao rei em
O Ministério de Ação
Sanssouci. O que foi acertado lá ficare-
(NGR, nº 39, 9/7/1848)
mos sabendo até amanhã.
Nosso correspondente berlinense
Temos uma nova crise ministerial.
afirma em um pós-escrito:
O ministério Camphausen foi derruba-
“Acaba de propagar-se o boato de
do, o ministério Hansemann desabou.
que Vincke, Pinder, Mevissen29 foram
O Ministério de Ação26 teve uma dura-
convidados urgentemente para ajudar
ção de oito dias, apesar de todas as me-
a compor um novo ministério.”
zinhas caseiras, emplastros, processos
contra a imprensa, prisões, apesar do
atrevimento petulante com que a bu-
rocracia reergueu a cabeça de atas para a Investigação dos Acontecimentos na
empoeiradas e tramou uma vingança Posnânia, a Assembléia Nacional Prussiana deci-
mesquinha e brutal por seu destrona- diu conceder plenos poderes àquela comissão.
mento. O “Ministério de Ação”, resu- Tomar essa decisão significava uma derrota para
o ministério Auerswald-Hansemann. Os represen-
mo da pura mediocridade, estava ain- tantes da ala direita procuraram, então, contra as
da, no início da última sessão da As- regras parlamentares, impor uma nova votação, e
sembléia Ententista,27 suficientemente justamente sobre a proposta já rejeitada com a
confuso para acreditar em sua primeira decisão, a de limitar os plenos poderes
da comissão. Em sinal de protesto, os deputados
inabalabilidade. da ala esquerda deixaram a sala de sessões. A
No final da sessão 28 estava total- direita aproveitou-se disso e aprovou a proposta
mente destroçado. Esta transcendente de negar à comissão o direito de ir à Posnânia e
interrogar testemunhas e especialistas no próprio
local. Com isso, a decisão original da Assembléia
26. Ao governo Camphausen seguiu-se, na foi ilegalmente anulada.
Prússia, de 26 de junho a 21 de setembro de 1848, 29. Vincke, Georg Freiherr Von (1811-1875): polí-
o governo Auerswald-Hansemann, o assim chama- tico liberal prussiano; em 1848, um dos líderes da
do “Ministério de Ação”. Auerswald era o pri- ala direita da Assembléia Nacional de Frankfurt;
meiro-ministro desse ministério, e Hansemann, a mais tarde, ex-liberal.
verdadeira cabeça do gabinete, continuou sendo, Pinder: funcionário público prussiano, liberal mode-
como sob Camphausen, ministro das Finanças. rado; em 1848, chefe de administração da Silésia, de-
27. Valemo-nos, aqui, da solução encontrada pe- putado à Assembléia Nacional Prussiana (direita) e
los tradutores de A burguesia e a contra-revolução membro da Assembléia Nacional de Frankfurt.
(São Paulo, Ensaio, 1989) para o termo Mevissen, Gustav Von (1815-1899): banqueiro em
Vereinbarungsversammlung (N. da T.). Colônia, um dos líderes da burguesia liberal
28. Ao término da sessão de 4 de julho de 1848, renana; em 1848 foi membro da Assembléia Nacio-
na qual se debateu novamente sobre a Comissão nal de Frankfurt (centro-direita).

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Se o boato se confirmar teremos ta, com imperturbável e quase cínica


chegado, pois, finalmente, de um mi- serenidade, uma tal vida emprestada,
nistério de mediação, através do Mi- posta em questão a cada momento, hu-
nistério de Ação, a um ministério da milhada, alimentada pela esmola dos
contra-revolução. Finalmente! O curtís- fracos.
simo tempo de vida desta contra-re- Duchâtel! Duchâtel! O inevitável
volução ministerial seria suficiente para naufrágio desse ministério, apenas
mostrar ao povo, em todo seu tama- adiado penosamente por alguns dias,
nho natural, o anão que, ao menor ven- será tão inglório quanto sua existên-
to de reação, ergue novamente a cia. Em nosso número de hoje, traze-
cabecinha. mos aos leitores um artigo mais longo
de nosso correspondente em Berlim
em que é avaliada essa existência. Po-
A crise ministerial demos descrever em uma palavra a
(NGR, nº 40, 10/7/1848) sessão ententista de 7 de julho. A As-
sembléia troça do ministério
O ministério Hansemann protelou Hansemann, dá-se o prazer de
por alguns dias, com grande teimosia, derrotá-lo a meias, humilha-o meio
sua dissolução. O ministro das Finan- sorridente, meio rancorosamente, mas
ças em particular parece patriótico de- na despedida a alta assembléia grita-
mais para querer entregar a mãos iná- lhe: “Não leve a mal!” e o estóico
beis a administração do Tesouro pú- triunvirato Hansemann-Kühlwetter-
blico. Falando parlamentarmente, o mi- Milde murmura de volta: Pas si bête!
nistério está liquidado, e no entanto Pas si bête!30
ainda existe de fato. Em Sanssouci pa-
rece ter sido deliberada a tentativa de
prolongar sua vida. A própria Assem- Projeto de lei sobre a regovação dos encargos
bléia Ententista que, num momento, feudais 31
está prestes a dar no ministério o gol- (NGR, nº 60, 30/7/1848)
pe mortal, no momento seguinte estre-
mece de novo de medo, assusta-se com Se alguma vez um renano pôde es-
seus próprios desejos, e a maioria pa- quecer o que deve à “dominação es-
rece pressentir que, se o ministério trangeira”, à “opressão do tirano
Hansemann ainda não é o ministério
de seu coração, um ministério de seu
coração é ao mesmo tempo um minis-
tério da crise e da decisão. Daí suas 30. Não [somos] tão tolos!
debilidades, suas inconseqüências, suas 31. O “Projeto de Lei sobre a Revogação sem In-
invectivas petulantes, que se trans- denização de diversos encargos e tributos feu-
dais” foi enviado à Assembléia Nacional Prussiana
formam repentinamente em arrepen- em 10 de julho de 1848; seus motivos foram ex-
dimento. E o Ministério de Ação acei- postos na sessão de 18 de julho de 1848.

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corso”,32 que leia o projeto de lei so-


bre a revogação sem indenização dos É este sim o ar de minha pátria!
diferentes encargos e tributos que o Minha face ardente o sentiu!
senhor Hansemann, no ano da graça E este barro dos grandes caminhos,
de 1848, envia “à consideração” de É a crosta de minha pátria!34
seus ententistas. Suserania, juros
alodiais, falecimento, direito de mão Percorrendo este projeto de lei, pa-
morta, mortalha, direito de proteção, rece à primeira vista que nosso minis-
direito de justiça, tributo de três coi- tro da Agricultura, sr. Gierke,35 sob as
sas, tributo de criação, tributo do selo, ordens do sr. Hansemann, faz um gran-
tributo do gado, dízimo sobre as abe- de “gesto audacioso”,36 que suprime de
lhas etc. — quão estranhos, quão bár- uma só penada a Idade Média inteira,
baros soam estes nomes absurdos a e tudo grátis, é claro!
nossos ouvidos civilizados pela des- Se, em contrapartida, examinamos
truição franco-revolucionária do feu- os Considerandos do projeto, vemos
dalismo, através do Code Napoléon!33 que iniciam demonstrando que, na
Quão incompreensível nos é toda esta realidade, nenhuma obrigação feudal
miscelânea de prestações e tributos pode ser abolida sem indenização —
medievais, este gabinete de história portanto, com uma afirmação audacio-
natural das velharias carcomidas da sa, em contradição direta com o “ges-
época antediluviana! to audacioso”.
E contudo, patriota alemão, descal- Entre estas duas audácias, a timi-
ça-te, pois pisas um solo sagrado! Es- dez prática do sr. ministro manobra
tas barbaridades são os escombros da com prudência e precaução. À esquer-
glória germano-cristã, são os últimos da o “bem público” e as “exigências do
elos de uma corrente que perpassa a espírito do tempo”, à direita os “direi-
história e te une à grandeza de teus tos bem adquiridos dos proprietários
pais, remontando às florestas teutôni- senhoriais”, ao centro “o louvável pen-
cas! Este ar confinado, este lodo feu- samento de um desenvolvimento mais
dal, reencontrados aqui em sua clássi- livre da vida rural”, encarnado no pudico
ca pureza, são os produtos mais origi- embaraço do sr. Gierke — que conjunto!
nais de nossa pátria e aquele que for
um verdadeiro alemão deve exclamar
34. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. VIII.
com o poeta:
35. Gierke: liberal; em 1848 foi deputado à As-
sembléia Nacional prussiana (centro-esquerda),
32. Na Renânia, onde a influência da Revolução ministro da Agricultura da Prússia de março a
Francesa era muito forte, as relações feudais fo- setembro de 1848.
ram suprimidas durante o domínio de Napoleão 36. A expressão “um gesto audacioso” fora utili-
I e não foram restabelecidas depois de 1815. No zada originariamente nos debates da Assembléia
restante da Prússia, ao contrário, foram conserva- Nacional de Frankfurt pelo deputado Mathy e
das, no essencial, até 1848. pelo presidente Gagern, e rapidamente se tornou
33. Código Napoleônico. popular.

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Basta. O sr. Gierke reconhece ple- reitos a nobreza não sacrifica nem 50
namente que os encargos feudais em mil táleres por ano e salva vários mi-
geral só podem ser abolidos mediante lhões. E ainda, espera o ministro, tam-
uma indenização. Assim, os encargos bém se reconciliará com os campone-
mais pesados, os mais disseminados, ses, e no futuro, quando das eleições
os mais essenciais subsistem, ou, onde para a Câmara, obterá inclusive seus
já foram suprimidos de fato pelos cam- votos. De fato, o negócio seria bom, se
poneses, serão restabelecidos. o sr. Gierke não cometesse erros de
Mas, observa o sr. Gierke, “se, não cálculo!
obstante, relações particulares cujo fun- Desse modo, as objeções dos cam-
damento intrínseco for insuficiente, ou poneses seriam afastadas, bem como
cuja continuidade for incompatível com as da nobreza, na medida em que ava-
as exigências do espírito do tempo e liasse corretamente sua situação. Resta
do bem público, forem revogadas sem ainda a Câmara, os escrúpulos de chica-
indenização, que os atingidos saibam neiros jurídicos e radicais. A diferença
reconhecer que fazem alguns sacrifícios entre os encargos que podem e os que
não somente em prol da prosperidade não podem ser abolidos — que não é
geral como também em prol de seus outra senão a existente entre os encar-
próprios interesses bem-compreendi- gos completamente sem valor e os mui-
dos, a fim de que as relações entre os to valiosos — deve, por amor da Câ-
que têm direitos e os que têm deveres mara, receber uma aparência de fun-
resultem pacíficas e cordiais, e sobre- damentação jurídica e econômica. O sr.
tudo para preservar à propriedade Gierke tem de mostrar que os encar-
fundiária sua posição no Estado, con- gos a abolir: 1. têm um fundamento
veniente ao bem de todos”. intrínseco insuficiente, 2. estão em con-
A revolução no campo consistia na tradição com o bem público, 3. com as
abolição efetiva de todos os encargos exigências do espírito do tempo e 4.
feudais. O Ministério de Ação, que re- que sua revogação, no fundo, não é uma
conhece a revolução, reconhece-a no violação do direito de propriedade,
campo aniquilando-a sub-repticiamen- não é uma expropriação sem indeniza-
te. Restaurar completamente o antigo ção.
status quo é impossível; os campone- Para demonstrar a insuficiente fun-
ses assassinariam imediatamente seus damentação destes tributos e presta-
senhores feudais, como o próprio sr. ções, o sr. Gierke mergulha nas regiões
Gierke reconhece. Portanto, revoga-se mais sombrias do direito feudal. Todo
uma pomposa lista de encargos feudais “o desenvolvimento, inicialmente mui-
insignificantes e pouco disseminados, to lento, dos estados alemães desde um
e restabelece-se a principal obrigação milênio” é evocado por ele. Mas em que
feudal, que se resume na simples pala- isto ajuda o sr. Gierke? Quanto mais se
vra corvéia. aprofunda, quanto mais revolve o lodo
Com a abolição de todos estes di- bolorento do direito feudal, tanto mais

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A NOVA GAZETA RENANA 239

este lhe demonstra uma fundamenta- contradizem as exigências do espírito


ção não insuficiente, mas muito sólida, do tempo, tanto mais o serão as
do ponto de vista feudal, dos encargos corvéias, prestações, direitos de con-
em questão; o infeliz ministro não faz cessão etc. Ou o sr. Gierke considera
senão expor-se à hilaridade geral quan- extemporâneo o direito de depenar os
do se esfalfa para extrair, do direito feu- gansos dos camponeses (§ 1, nº 14), mas
dal, oráculos de direito civil moderno, contemporâneo o direito de depenar
e para fazer pensar e julgar o barão feu- os próprios camponeses?
dal do século XII como o burguês do Segue-se a demonstração de que a
século XIX. revogação em causa não viola o direi-
O sr. Gierke herdou, felizmente, o to de propriedade. Naturalmente, a
princípio do sr. Von Patow: abolir sem prova desta gritante falsidade tem de
indenização tudo o que seja emanação ser fictícia, e, com efeito, só pode ser
da suserania e da servidão, mas todo apresentada demonstrando-se à no-
o restante apenas sob resgate. Mas aca- breza que estes direitos são desprovi-
so o sr. Gierke acha necessária grande dos de valor para ela, o que só apro-
dose de sagacidade para demonstrar ximadamente pode ser demonstrado.
que os encargos a serem abolidos são O sr. Gierke faz então, com o maior
também, em geral, emanações da suse- zelo, o cômputo de todas as dezoito
rania feudal? seções do primeiro parágrafo, sem
Não é preciso acrescentar que o sr. perceber que, na mesma medida em
Gierke, para ser conseqüente, introduz que consegue demonstrar o desvalor
clandestinamente conceitos jurídicos dos encargos em questão, prova tam-
modernos entre as disposições jurídi- bém o desvalor de seu projeto de lei.
cas feudais; e, em caso de extrema ne- Bravo sr. Gierke! Quanto nos custa
cessidade, é sempre a estes conceitos arrancá-lo de sua doce ilusão e ani-
que apela. Mas, se o sr. Gierke mede quilar seu diagrama arquimédico-feu-
alguns destes encargos segundo as fi- dal!
guras do direito moderno, é incompre- Mas ainda há uma dificuldade!
ensível por que não faz o mesmo com Quando do anterior resgate dos en-
todos. Mas nesse caso, certamente, as cargos que agora devem ser abolidos,
corvéias passariam por maus bocados e como em todo resgate, os campone-
diante da liberdade do indivíduo e da ses foram terrivelmente prejudicados,
propriedade. em benefício da nobreza, por comis-
Mas o sr. Gierke alcança resultados sões corruptas. Eles reclamam agora
ainda piores com suas diferenciações a revisão de todos os contratos de res-
quando invoca o argumento do bem gate firmados sob o antigo governo,
público e as exigências do espírito do e têm toda razão!
tempo. Entretanto, é evidente por si Mas o sr. Gierke não pode admiti-
mesmo: se estes encargos insignifican- lo. A isto “se opõem direitos e leis for-
tes são um obstáculo ao bem público e mais”, que se opõem sobretudo a todo

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progresso, já que cada nova lei revoga como de um direito incontestável,


uma antiga e um velho direito formal. irrecusavelmente aplicado desde um
“As conseqüências disto são segu- tempo imemorial, enquanto os contra-
ramente previsíveis: proporcionar van- tos questionados no pedido de revi-
tagens aos submissos por uma via con- são não são de modo algum incontes-
trária aos princípios jurídicos de to- táveis, já que os subornos e os abusos
dos os tempos” (revoluções também são notórios e, em muitos casos,
contradizem os princípios jurídicos de demonstráveis.
todos os tempos) “traria incalculáveis É impossível negar: por muito in-
calamidades a uma enorme parcela significantes que sejam os encargos
dos proprietários fundiários do Esta- abolidos, o sr. Gierke, abolindo-os,
do, e portanto (!) ao próprio Estado”! proporciona “aos submissos vantagens
E então o sr. Gierke demonstra, por uma via contrária aos princípios
com uma seriedade comovente, que jurídicos de todos os tempos”, à qual
um tal procedimento “põe em ques- “se opõem diretamente a lei e o direi-
tão e abala toda a situação jurídica da to formal”; ele “desorganiza toda a si-
propriedade fundiária, o que, ligado tuação jurídica da propriedade
com os inúmeros processos e custos,37 fundiária”, ataca, na raiz, direitos “in-
infligiria à propriedade fundiária, fun- discutíveis”.
damento essencial da prosperidade da De fato, sr. Gierke, valeu a pena co-
nação, uma ferida da qual ela dificil- meter tão graves pecados para atingir
mente se recuperaria”; que é “um aten- um resultado tão pauvre?38
tado aos princípios jurídicos da vali- Certamente, o sr. Gierke ataca a
dade dos contratos, um ataque contra propriedade — é inegável — mas não
as relações contratuais indiscutíveis, a propriedade moderna, burguesa, e
em conseqüência do qual toda a con- sim a feudal. Ele reforça a proprieda-
fiança na estabilidade do direito civil de burguesa, que se ergue sobre as ru-
seria abalada e, assim, todas as rela- ínas da propriedade feudal, destruin-
ções comerciais seriam, ameaçadora- do a propriedade feudal. E é somente
mente, postas em perigo”!!! por isso que não quer revisar os con-
Portanto, o sr. Gierke vê aqui um tratos de resgate, porque, por meio
atentado ao direito de propriedade que destes contratos, as relações feudais de
abalaria todos os princípios jurídicos. propriedade são transformadas em re-
E por que a abolição sem indenização lações burguesas, porque não pode,
dos encargos em questão não é um portanto, revisá-los sem ao mesmo tem-
atentado? Aqui se trata não somente po violar formalmente a propriedade
de relações contratuais indiscutíveis, burguesa. E a propriedade burguesa é
naturalmente tão sagrada e inviolável

37. Nas notas estenográficas: custos inestimáveis


e inúmeros processos. 38. Pobre.

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A NOVA GAZETA RENANA 241

quanto a propriedade feudal é atacável A persistência, a sanção dos direi-


e, segundo as necessidades e a cora- tos feudais sob a forma de um (ilusó-
gem dos senhores ministros, violável. rio) resgate, eis afinal o resultado da
Em síntese, qual é o sentido desta revolução alemã de 1848. Eis o parco
longa lei? resultado de tanta agitação!
É a prova mais concludente de que
a revolução alemã de 1848 é apenas a
paródia da Revolução Francesa de A crise e a contra-revolução41
1789. (NGR, nº 100, 12/9/1848)
Em 4 de agosto de 1789,39 três se-
manas após a tomada da Bastilha, em Quem ler nosso correspondente de
um dia o povo francês deu cabo dos Berlim poderá dizer se não previmos
encargos feudais. com exatidão o desenrolar da crise mi-
Em 11 de julho de 1848, quatro me- nisterial. Os velhos ministros renunci-
ses após as barricadas de março, os en- am; o plano do ministério, de se man-
cargos feudais deram cabo do povo ale- ter por meio da dissolução da Assem-
mão, teste Gierke cum Hansemanno.40 bléia Ententista, por meio de leis mar-
A burguesia francesa de 1789 não ciais e canhões, parece não ter alcança-
abandonou um só instante seus aliados, do o aplauso da camarilha. Os junkers
os camponeses. Ela sabia que a base de ardem de desejo por um conflito com
sua dominação era a destruição do feu- o povo, pela repetição das cenas do ju-
dalismo no campo, a criação de uma nho parisiense nas ruas de Berlim; mas
classe de camponeses livres e proprie- eles não vão se bater pelo ministério
tários. Hansemann, e sim pelo ministério do
A burguesia alemã de 1848 traiu príncipe da Prússia. Radowitz,42 Vincke
sem qualquer decoro os camponeses, e outros semelhantes indivíduos dig-
seus aliados mais naturais, a carne de nos de confiança serão convocados; a
sua carne, e sem os quais ela é impo- nata da cavalaria prussiana e
tente ante a nobreza. westfaliana, ao que tudo indica associ-
ada com alguns honestos burgueses da
extrema direita, com um Beckerathe e
39. Na noite de 4 de agosto de 1789 a Assembléia consortes, a quem se pode confiar as
Nacional francesa, sob a pressão do crescente prosaicas operações comerciais do Es-
movimento camponês, anunciou solenemente a
supressão de uma série de encargos feudais, que
tado — eis o ministério do príncipe da
àquela época já haviam sido eliminados na práti-
ca pelos camponeses sublevados. A lei promul- 41. O segundo, terceiro e quarto artigos dessa
gada logo depois, no entanto, só suprimia sem série traziam, na Nova Gazeta Renana, o título “A
indenização os encargos pessoais. A eliminação Crise”.
de todos os encargos feudais sem nenhuma inde- 42. Radowitz, Joseph Maria Von (1797-1853): gene-
nização só foi efetivada no período da ditadura ral e político prussiano, representante da camari-
jacobina, pela lei de 17 de julho de 1793. lha reacionária da corte; em 1848 foi um dos líderes
40. Testemunhado por Gierke e Hansemann. da direita na Assembléia Nacional de Frankfurt.

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Prússia, com que tencionam nos pre- confirmado também por outras fontes,
sentear. Enquanto isso lançam cente- e talvez já hoje ao meio dia recebamos
nas de boatos, talvez mandem chamar a notícia de sua configuração definiti-
Waldeck43 ou Rodbertus,44 desorientam va, a crise ministerial continua em Ber-
a opinião pública, e nesse meio tempo lim. Essa crise só pode ser solucionada
fazem seus preparativos militares e, por dois caminhos:
quando for a hora, aparecerão publi- Ou um ministério Waldeck,
camente. reconhecimento da autoridade da As-
Caminhamos para uma luta decisi- sembléia Nacional alemã, reconheci-
va. As crises simultâneas em Frankfurt mento da soberania do povo;
e Berlim, as últimas resoluções das Ou um ministério Radowitz-
duas assembléias, obrigam a contra- Vincke, dissolução da Assembléia de
revolução a travar sua última batalha. Berlim, negação das conquistas revo-
Se em Berlim ousarem esmagar sob os lucionárias, constitucionalismo de fa-
pés o princípio constitucional da maio- chada ou mesmo — a Dieta Unificada.45
ria, se puserem diante dos 219 votos Não o ocultemos de nós mesmos:
da maioria o dobro de canhões, se ou- o conflito que irrompeu em Berlim não
sarem, não somente em Berlim, mas é um conflito entre os ententistas e os
também em Frankfurt, desmentir a ministros, é um conflito entre a Assem-
maioria por um ministério, o que dian- bléia, que pela primeira vez se apre-
te das duas assembléias é impossível
— se provocarem, pois, a guerra civil
entre a Prússia e a Alemanha, os de- 45. A primeira Dieta Unificada se reuniu, graças a
mocratas sabem o que têm de fazer. uma patente real, de 11 de abril de 1847 a 26 de
junho de 1847. Representava a união de todas as
oito Dietas Provinciais existentes, era convocada
(NGR, nº 101, 13/9/1848) a critério do rei e se dividia em duas câmaras. A
câmara do estamento senhorial consistia em 70
representantes da alta nobreza, a câmara dos três
Enquanto o novo ministério do im- estamentos restantes abrangia 237 representantes
pério, como informamos ontem, foi da cavalaria, 182 das cidades e 124 dos municípios
rurais. As atribuições da Dieta Unificada limita-
vam-se à autorização de novos empréstimos em
43. Waldeck, Benedikt Franz Leo (1802-1870): tempos de paz e à votação de novos impostos ou
conselheiro do Supremo Tribunal em Berlim, de- aumento de impostos. Com sua instituição, o
mocrata; em 1848 foi um dos líderes da esquerda monarca prussiano queria evitar o cumprimento
e vice-presidente da Assembléia Nacional prus- das promessas constitucionais que fizera e as de-
siana; mais tarde, progressista. terminações da lei sobre as dívidas estatais. Na
44. Rodbertus-Jagetzow, Johann Karl (1805-1875): Dieta manifestou-se uma forte oposição liberal,
latifundiário prussiano, economista político, vinda dos representantes da grande burguesia
ideólogo dos junkers aburguesados; em 1848 foi renana (Hansemann, Camphausen, Von Beckerath)
líder da centro-esquerda na Assembléia Nacional e de uma parte da nobreza da Prússia oriental
prussiana, ministro da Educação no gabinete (Von Vincke, Von Auerswald). Como a Dieta se
Auerswald; posteriormente, teórico do “socialis- declarou incompetente para autorizar um emprés-
mo de estado” junker-prussiano. timo, o rei mandou-a de volta para casa.

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A NOVA GAZETA RENANA 243

senta como constituinte, e a Coroa. foi lograda pelos ministros e pela ca-
Terão coragem de dissolver a As- marilha. Finalmente, realizou um ato
sembléia, ou não? Tudo depende dis- de soberania — por um momento,
so. apresentou-se como Assembléia Cons-
Mas a Coroa tem o direito de dis- tituinte, não mais como Ententista.
solver a Assembléia? É certo que, nos Como Assembléia soberana da
estados constitucionais, a Coroa, em Prússia, tinha pleno direito para isso.
caso de conflito e sobre a base da Cons- Mas uma assembléia soberana não
tituição, tem o direito de dissolver a é dissolúvel por ninguém, não está sub-
câmara legislativa convocada e apelar metida às ordens de ninguém.
ao povo por meio de novas eleições. E mesmo como mera Assembléia
A Assembléia de Berlim é uma câ- Ententista, mesmo de acordo com a
mara constitucional, legislativa? própria teoria do sr. Camphausen, ela
Não. Ela foi convocada para “en- se encontra em posição de igualdade
tender-se com a Coroa sobre a consti- com a Coroa. Ambas as partes celebra-
tuição prussiana”, sobre a base não de ram um acordo nacional, ambas as par-
uma constituição, mas de uma revolu- tes têm a mesma cota de soberania, esta
ção. Não recebeu de modo algum seu é a teoria de 8 de abril, a teoria
mandato da Coroa ou de seus minis- Camphausen-Hansemann, portanto a
tros responsáveis, mas sim somente de teoria oficial reconhecida pela própria
seus eleitores e de si mesma. A Assem- Coroa.
bléia era soberana como a legítima ex- Se a Assembléia está em posição de
pressão da revolução, e o mandato que igualdade ante a Coroa, a Coroa não
o sr. Camphausen, junto com a Dieta tem nenhum direito de dissolver a As-
Unificada, lhe expediu na lei eleitoral sembléia.
de 8 de abril,46 não passava de um voto Caso contrário, conseqüentemente,
piedoso, sobre o qual a Assembléia ti- a Assembléia teria do mesmo modo o
nha de deliberar. direito de depor o rei.
No início, a Assembléia acolheu em A dissolução da Assembléia seria,
maior ou menor medida a teoria pois, um golpe de estado. E o 29 de
ententista.47 Ela viu como, desse modo, julho de 1830 e o 24 de fevereiro de
1848 mostraram como se responde a
um golpe de estado.
46. A “Lei eleitoral para a Assembléia convocada
para entender-se sobre a constituição prussiana” Dir-se-á que a Coroa poderia, sim,
foi, por proposta do ministério Camphausen, apro- apelar novamente aos mesmos eleito-
vada em 8 de abril de 1848 pela segunda Dieta res. Mas quem não sabe que hoje os
Unificada e baseava-se no sistema eleitoral indire-
to em duas etapas.
47. A “teoria ententista”, com a qual a burguesia
prussiana, na pessoa de Camphausen e Hansemann, permanecendo “no terreno do direito”, devia se
procurou justificar sua traição à revolução, consistia limitar à fundação de uma ordem constitucional
em que a Assembléia Nacional prussiana, por meio da conciliação com a Coroa.

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eleitores elegeriam uma Assembléia Boa vontade com certeza não falta,
totalmente diferente, uma Assembléia mas a coragem, a coragem!
que faria muito menos cerimônias com
a Coroa?
É evidente: se após a dissolução (NGR, nº 102, 14/9/1848)
desta Assembléia só é possível o apelo
a eleitores muito diferentes dos de 8 A crise em Berlim avançou mais um
de abril, então não é mais possível ne- passo: o conflito com a Coroa, que on-
nhuma outra eleição, a não ser a que tem ainda só podia ser designado como
será proposta sob a tirania do sabre. inevitável, aconteceu de fato.
Portanto, não tenhamos ilusões: Nossos leitores encontram logo adi-
Se a Assembléia vencer, se impu- ante a resposta do rei ao pedido de re-
ser o ministério da esquerda, então o núncia dos ministros.49 Por meio desta
poder da Coroa ao lado da Assembléia carta, a própria Coroa passa para o pri-
será quebrado, o rei voltará a ser ape- meiro plano, toma partido a favor dos
nas o servidor pago do povo, e estare- ministros, contrapõe-se à Assembléia.
mos novamente na manhã de 19 de Vai mais longe ainda: constitui um
março — caso o ministério Waldeck ministério estranho à Assembléia, con-
não nos traia, como tantos antes dele. voca Beckerath, que em Frankfurt sen-
Se a Coroa vencer, se impuser o mi- ta-se à extrema-direita e que em
nistério do príncipe da Prússia, então Berlim, como o mundo inteiro sabe por
a Assembléia será dissolvida, o direito antecedência, jamais poderá contar com
de associação suprimido, a imprensa uma maioria.
amordaçada, uma lei eleitoral censitária O ofício do rei é rubricado pelo sr.
decretada, talvez até mesmo, como dis- Auerswald. O sr. Auerswald devia se
semos, a Dieta Unificada evocada mais responsabilizar por ter, assim, empur-
uma vez — tudo sob a proteção da di-
tadura militar, dos canhões e das baio-
netas. miam a liberdade de imprensa, declaravam dis-
solvida a Câmara e alteravam a lei eleitoral de
A vitória de uma das partes depen- modo que reduzia os eleitores em três quartos.
derá da atitude do povo, especialmen- Essas medidas extraordinárias do governo de
te da atitude do partido democrático. Carlos X foram o motivo da revolução burguesa
Os democratas têm de optar. de 1830 na França, a qual, em 29 de julho, supri-
miu o domínio dos Bourbon.
Estamos em 25 de julho. Ousar-se-
49. Em sua mensagem de 10 de setembro de 1848,
á decretar as ordenanças que são pre- Frederico Guilherme IV, concordando com a opi-
paradas em Potsdam? O povo será pro- nião dos ministros, declarou que a resolução da
vocado a dar o salto de 26 de julho a Assembléia Nacional prussiana de 7 de setembro
24 de fevereiro em um dia?48 de 1848 representava uma violação do “princípio
da monarquia constitucional”, e ratificou a reso-
lução do ministério Auerswald-Hansemann de re-
48. Em 26 de julho de 1830 foram publicados os nunciar em sinal de protesto contra esse procedi-
decretos (ordenanças) reais que, na França, supri- mento da Assembléia.

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A NOVA GAZETA RENANA 245

rado a Coroa à sua frente para cobrir ses, nós ainda estamos no terreno re-
sua ignominiosa retirada, por ter pro- volucionário, que a ficção de que já es-
curado se esconder, ante a Câmara, távamos no terreno da constituinte, da
atrás do princípio constitucional ao monarquia constitucional acabada, não
mesmo tempo que esmagava sob os pés leva a nada além de colisões, as quais
o princípio constitucional, comprome- já agora o “princípio constitucional”
tendo a Coroa e incitando à república! conduziu à beira do abismo?
O princípio constitucional!, gritam Toda situação política provisória
os ministros. O princípio constitucio- posterior a uma revolução exige uma
nal!, grita a direita. O princípio consti- ditadura, e mesmo uma ditadura enér-
tucional!, geme o eco surdo da Gazeta gica. Criticamos Camphausen desde o
de Colônia. início por não ter agido ditatorialmen-
“O princípio constitucional!” Esses te, por não ter destruído e removido
senhores são mesmo, então, suficien- imediatamente os restos das velhas ins-
temente tolos para acreditar que se tituições. Assim, enquanto o sr.
possa afastar o povo alemão da tem- Camphausen se embalava no sonho
pestade do ano de 1848, do colapso constitucional, o partido vencido for-
cada dia mais iminente de todas as ins- talecia as posições na burocracia e no
tituições históricas tradicionais, com a exército, e ousava mesmo, aqui e aco-
carcomida divisão dos poderes de lá, a luta aberta. A Assembléia fora
Montesquieu-Delolme, 50 com frases convocada para se entender sobre a
desgastadas e ficções há muito desmas- constituição. Ela estava em posição de
caradas? igualdade com a Coroa. Dois poderes
“O princípio constitucional!” Mas em posição de igualdade em um go-
os mesmos senhores que querem sal- verno provisório! Precisamente a divi-
var o princípio constitucional a qual- são dos poderes com que o sr.
quer custo deveriam antes de mais nada Camphausen procurava “salvar a liber-
reconhecer que em uma situação pro- dade”, precisamente essa divisão dos
visória ele só pode ser salvo com ener- poderes devia, em um governo provi-
gia! sório, levar a colisões. Atrás da Coroa
“O princípio constitucional!” Mas o se ocultava a camarilha contra-revolu-
voto da Assembléia de Berlim, as coli- cionária da nobreza, dos militares, da
sões entre Potsdam e Frankfurt, os dis- burocracia. Atrás da maioria da Assem-
túrbios, as tentativas da reação, as pro- bléia estava a burguesia. O ministério
vocações da soldadesca não mostraram procurava conciliar. Débil demais para
há muito que, apesar de todas as fra- defender decididamente os interesses
da burguesia e dos camponeses e des-
truir, de um só golpe, o poder da no-
50. Delolme, Jean-Louis (1740-1806): especialista
breza, da burocracia e dos líderes mi-
em direito público e jurista suíço, defendia a dou- litares, desajeitado demais para não
trina da divisão dos poderes. ferir sempre a burguesia com suas me-

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didas financeiras, não chegou a nada E justamente dessa tibieza do mi-


além de se tornar impossível para to- nistério ante a contra-revolução, que
dos os partidos e provocar justamente se tornava dia a dia mais ameaçadora,
a colisão que queria evitar. nasceu a necessidade, para a Assem-
Em toda situação não-constituída o bléia, de ditar ela mesma medidas em
decisivo não é este ou aquele princí- prol do bem público. Uma vez que a
pio, mas sim somente a salut public, o Coroa, representada pelo ministro, era
bem público. O ministério só poderia débil demais, a Assembléia mesma de-
evitar a colisão da Assembléia com a via tomar providências. Ela o fez com
Coroa se reconhecesse o princípio do a resolução de 9 de agosto.53 Mas o fez
bem público, mesmo correndo o risco de uma forma ainda muito suave,
de colidir ele próprio com a Coroa. Mas dando aos ministros apenas uma
preferiu manter-se “possível” em advertência. Os ministros não fize-
Potsdam. Contra a democracia, nunca ram caso disso.
vacilou em tomar medidas em prol do
bem público (mesures de salut public),
medidas ditatoriais. Ou foi outra coisa
53. Em 3 de agosto de 1848 ocorreu, na fortaleza
a utilização das velhas leis sobre cri- Schweidnitz, um ataque de surpresa das tropas
mes políticos, mesmo quando o sr. da fortaleza contra a Guarda Civil, no qual
Märker51 já havia reconhecido que es- quatorze cidadãos foram mortos. Provocada por
ses parágrafos do Direito Nacional esse sempre reacionário comportamento das tro-
pas prussianas, a Assembléia Nacional aprovou,
(Landsrecht)52 deveriam ser suprimi- em 9 de agosto, sob inclusão de algumas propos-
dos? Foram outra coisa as prisões em tas de alteração, uma moção do deputado Stein com
massa em todas as partes do império? as seguintes palavras: “O sr. ministro da Guerra
Mas em oposição à contra-revolu- deve declarar, em um decreto ao exército, que os
oficiais permaneçam longe de todas as tentativas
ção o ministério guardou-se bem de reacionárias, não apenas evitando conflitos de todo
tomar providências em prol do bem tipo com os civis, mas sim mostrando, pela apro-
público! ximação aos cidadãos e união com eles, que que-
rem colaborar com franqueza e abnegação para a
efetivação de um estado de direito constitucional,
e que aqueles oficiais cujas convicções políticas
51. Märker, Friedrich August (1804-1889): juiz
não estejam de acordo com isto considerem um
do Tribunal Criminal em Berlim, liberal; em 1848,
dever de honra desligar-se do exército”. O minis-
foi deputado à Assembléia Nacional
tro da Guerra Schreckenstein não promulgou, ape-
prussiana (centro) e ministro da Justiça (ju-
sar da resolução da Assembléia, nenhuma ordem
nho a setembro).
semelhante. Por isso Stein repetiu sua moção na
52. O “Direito Nacional (Landsrecht) Geral para os sessão da Assembléia Nacional de 7 de setembro;
Estados Prussianos” de 1794 era uma súmula do a maioria dos deputados aderiu à intimação ao
direito burguês, do direito de comércio, de troca, ministério para cumprir rapidamente essa resolu-
marítimo e de segurança, além do direito penal, ção. Diante deste resultado da votação, o minis-
religioso, público e administrativo; consolidava o tério Auerswald-Hansemann renunciou. No perí-
caráter reacionário da Prússia feudal no âmbito odo do ministério Pfuel, que o sucedeu, a ordem
jurídico e partes essenciais dele vigoraram até a foi finalmente dada, em uma forma atenuada,
introdução do Código Civil, em 1900. mas ficou só no papel.

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A NOVA GAZETA RENANA 247

Mas também como eles poderiam Em 9 de agosto, eles deixaram a


tê-la acolhido? A resolução de 9 de Assembléia se dispersar calmamente,
agosto esmaga sob os pés o princípio na boa-fé de que cumpririam a resolu-
constitucional, é uma usurpação do ção. Nem pensaram em comunicar à
poder legislativo contra o executivo, Assembléia sua negativa, e muito me-
destrói a divisão e o controle mútuo nos em renunciar a seus cargos.
dos poderes, tão necessários no inte- Refletiram durante um mês inteiro
resse da liberdade, transforma a As- e finalmente, sob ameaça de várias in-
sembléia Ententista na Convenção Na- terpelações, notificaram laconicamente
cional! à Assembléia: evidentemente não cum-
E eis agora um fogo cerrado de pririam a resolução.
ameaças, um apelo atroador ao medo Depois, quando a Assembléia, não
dos pequeno-burgueses, a perspectiva obstante, ordenou aos ministros que
aberta de governo de terror com gui- cumprissem a resolução, eles se entrin-
lhotina, impostos progressivos, confis- cheiraram atrás da Coroa, provocaram
co e bandeira vermelha. um rompimento entre a Coroa e a As-
A Assembléia de Berlim — uma sembléia e incitaram assim à república.
Convenção! Que ironia! E esses senhores ainda falam do
Mas esses senhores não estão to- princípio constitucional!
talmente equivocados. Se o governo Em resumo:
continuar como até agora, não demo- A inevitável colisão entre dois po-
rará muito para termos uma Conven- deres em posição de igualdade em um
ção — não apenas para a Prússia, mas governo provisório ocorreu. O minis-
para toda a Alemanha —, uma Con- tério não soube conduzir de modo su-
venção que será obrigada a reprimir ficientemente enérgico o governo, dei-
com todos os meios a guerra civil de xou de tomar as necessárias medidas
nossos 20 vendeanos 54 e a inevitável em prol do bem público. A Assembléia
guerra russa. Agora certamente não fez mais do que sua obrigação ao
estamos mesmo na paródia da Consti- intimar o ministério a cumprir seu de-
tuinte! ver. O ministério tomou isto por uma
Mas como os senhores ministros violação à Coroa, e ainda a compro-
que apelam ao princípio constitucional meteu no momento de sua demissão.
mantiveram este princípio? A Coroa e a Assembléia se contrapõem
uma à outra. A “conciliação” levou à
divisão, ao conflito. Caberá talvez às
54. Vendéia – província francesa em que, durante a armas decidir.
Revolução Francesa, na primavera de 1793, Quem tiver mais coragem e conse-
irrompeu uma insurreição contra-revolucionária qüência vencerá.
sob a liderança da nobreza, que se apoiou no
campesinato dessa região economicamente atra-
sada. Vendéia é, por isso, utilizada generalizadamente
para tendências contra-revolucionárias.

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248 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002

(NGR, nº 104, 16/9/1848) “O ministério Camphausen vestira


a contra-revolução com sua roupagem
A crise ministerial entrou outra vez liberal-burguesa. A contra-revolução
em um novo estágio, não graças à che- sente-se suficientemente forte para li-
gada e aos inúteis esforços do impos- vrar-se da incômoda máscara. Um in-
sível sr. Beckerath, mas sim devido à sustentável ministério qualquer, de
revolta militar em Potsdam e Nauen.55 centro-esquerda (Hansemann), pode
O conflito entre democracia e aristo- possivelmente suceder por alguns dias
cracia irrompeu no próprio seio da o ministério de 30 de março. Seu ver-
Guarda: os soldados viram na resolu- dadeiro sucessor é o ministério do prín-
ção da Assembléia do dia 7 sua liber- cipe da Prússia” (N[ova] G[azeta]
tação da tirania dos oficiais, enviaram- R[enana], nº 23, de 23 de junho). E re-
lhe mensagens de agradecimento, de- almente ao ministério Hansemann su-
ram um Viva! a ela. cedeu o ministério Pfuel 57 (de
Assim a espada foi arrancada das Neufchâtel58).
mãos da contra-revolução. Agora nin- O ministério Pfuel maneja as frases
guém ousará dissolver a Assembléia, e constitucionais como o poder central
se isso não for feito não restará nada em Frankfurt maneja a “unidade ale-
mais do que ceder, cumprir a resolu- mã”. Se compararmos o corpus delicti,
ção da Assembléia e convocar um mi- o verdadeiro corpo desse ministério,
nistério Waldeck.
Provavelmente a revolta dos solda-
dos de Potsdam nos economizou uma Pfuel foi constituído com a seguinte composição:
Von Pfuel, primeiro-ministro; Eichmann, ministro
revolução.
do Interior; Von Bonin, ministro das Finanças; con-
de Von Dönhoff, ministro do Exterior; Muller,
ministro da Justiça. Era um ministério de funcio-
O ministério Pfuel56
nários e oficiais reacionários, que aparentemente
(NGR, nº 116, 14/10/1948) ia ao encontro do desejo da Assembléia Nacional,
mas enquanto isso organizava abertamente as
Quando o ministério Camphausen forças da contra-revolução. Depois da queda de
caiu, dissemos: Viena, o ministério Pfuel foi substituído, em 8 de
novembro, pelo ministério do conde Von
55. Em 13 de setembro, os 1º e 2º Regimentos da Brandenburg, que realizou o golpe de Estado con-
Guarda em Potsdam se revoltaram contra as me- tra-revolucionário (estado de sítio em Berlim, disso-
didas arbitrárias de seus oficiais. O motivo princi- lução da Guarda Civil e da Assembléia Nacional).
pal foi o embargo, pelos oficiais, de uma mensagem 57. Pfuel, Ernst Heinrich Adolf Von (1779-1866):
de agradecimento ao deputado Stein e à Assembléia general prussiano, representante da camarilha
Nacional prussiana pela resolução de 7 de setembro. militar reacionária, governador de Neuchâtel
Os soldados chegaram a construir barricadas. (1832-1848); em março de 1848 foi comandante
Em Nauen, os couraceiros da Guarda ali estacio- em Berlim, dirigiu em abril e maio a repressão à
nados recusaram-se, em 10 de setembro, a se lan- insurreição na Posnânia; primeiro-ministro e mi-
çar contra os cidadãos por ordem de seus oficiais. nistro da Guerra (setembro a novembro de 1848).
56. De acordo com o decreto de Frederico Guilher- 58. Neuchâtel (ou Neufchâtel) – designação fran-
me IV, de 21 de setembro de 1848, o ministério cesa para o cantão suíço Neuenburg, formado do

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A NOVA GAZETA RENANA 249

com seu eco, suas declarações consti- de sacrifícios humanos que fariam vi-
tucionais, seus abrandamentos, medi- rar em seu túmulo o velho traidor
ações, conciliações na Assembléia de Latour.
Berlim, só podemos dizer sobre ele Todas as mais sombrias previsões
uma palavra, a palavra de Falstaff: de nosso correspondente de Viena61 se
“Quão sujeitos estamos os velhos confirmaram, e talvez neste momento
ao vício da mentira!”59 ele mesmo já tenha sido trucidado.
Ao ministério Pfuel só pode suce- Por um momento esperamos a li-
der um ministério da revolução. bertação de Viena do socorro hún-
garo, e os movimentos do exército
húngaro ainda nos parecem enigmá-
Vitória da contra-revolução ticos.
em Viena Traições de todo tipo prepararam
(NGR, nº 136, 7/11/1848) a queda de Viena. Toda a história do
parlamento e do Conselho Municipal
A liberdade e a ordem croata ven- desde 6 de outubro não passa de uma
ceram e celebraram sua vitória com in- contínua história de traição. Quem es-
cêndios, violações, pilhagens, com atro- tava representada no parlamento e no
cidades de uma infâmia inominável. Conselho Municipal?
Viena está nas mãos de Windischgrätz, A burguesia.
Jellachich e Auersperg.60 Hecatombes Uma parte da Guarda Nacional de
Viena, logo no início da Revolução de
antigo principado Neuenburg e Valendis. Por de- Outubro, tomou abertamente o parti-
cisão do Congresso de Viena, Neuchâtel, como do da camarilha. E no final da Revolu-
estado indivisível e totalmente separado da mo- ção de Outubro encontramos outra
narquia prussiana, foi adjudicado ao rei da
Prússia e admitido como 21º cantão da Confede- parte da Guarda Nacional em luta con-
ração Helvética. Em 1831, uma tentativa dos re- tra o proletariado e a Legião Acadê-
publicanos em Neuchâtel de forçar, por meio de
uma insurreição, uma modificação na Constitui-
ção e a total separação da Prússia foi reprimida
com grande violência pelo plenipotenciário do rei foi um dos líderes da contra-revolução na Áus-
prussiano, general Von Pfuel. Depois disso, Pfuel tria; em 1848 dirigiu a repressão às insurreições
foi nomeado governador prussiano de Neuchâtel. de junho em Praga e de outubro em Viena; depois
Imediatamente após a Revolução de Fevereiro de esteve à cabeça do exército austríaco que comba-
1848, irrompeu novamente uma insurreição re- teu contra a revolução húngara.
publicana. Foi constituído um governo provisó- Jellachich, Josip, conde de Buzim (1801-1859):
rio, Neuchâtel foi declarada república, e pôs-se general austríaco, tomou parte ativa na repres-
um fim, na prática, ao domínio da Prússia. Em são às revoluções de 1848-49 na Áustria e na
1857 o rei prussiano teve de renunciar oficialmen- Hungria.
te a suas pretensões a Neuchâtel. Auersperg, Karl, conde de (1793-1859): general
59. Shakespeare, Rei Henrique IV, Segunda Parte, austríaco, em 1848 foi comandante da guarnição
Ato 3, cena 2. de Viena, participou ativamente na repressão da
60. Windischgrätz, Alfred, príncipe de (1787- insurreição de outubro.
1862): marechal-de-campo austríaco, em 1848-49 61. Muller-Tellering.

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250 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002

mica,62 em entendimento secreto com Quem falou na língua rúnica da cota-


os bandidos do imperador. Quem per- ção da bolsa?
tence a esta fração da Guarda Nacio- A burguesia.
nal? A “Assembléia Nacional alem㔠e
A burguesia. seu “poder central” traíram Viena.
Mas na França a burguesia passou Quem eles representavam?
para a ponta da contra-revolução de- Sobretudo a burguesia.
pois de ter derrubado todos os obstá- A vitória da “ordem e liberdade
culos que se punham no caminho da croata” em Viena estava condicionada
dominação de sua própria classe. Na pela vitória da república “honesta” em
Alemanha ela se encontra rebaixada a Paris. Quem venceu nas jornadas de
caudatária da monarquia absoluta e do junho?
feudalismo, antes de ter ao menos A burguesia.
garantido as condições vitais básicas Com a vitória em Paris, a contra-
de sua própria liberdade civil e domi- revolução européia começou a come-
nação. Na França ela se apresentou morar sua orgia.
como déspota e fez sua própria con- Nas jornadas de fevereiro e março
tra-revolução. Na Alemanha ela se o poder armado fracassou por toda
apresentou como escrava e fez a con- parte. Por quê? Porque ele não repre-
tra-revolução de seus próprios déspo- sentava nada além do próprio gover-
tas. Na França ela venceu para humi- no. Depois das jornadas de junho ele
lhar o povo. Na Alemanha ela se hu- venceu por toda parte, porque por toda
milhou para que o povo não vencesse. parte a burguesia se entendera secreta-
A história inteira não mostra outra mente com ele, enquanto, por outro
miséria ignominiosa como a da burgue- lado, tinha em suas mãos a direção ofi-
sia alemã. cial do movimento revolucionário e to-
Quem fugiu de Viena aos bandos e mou todas aquelas meias medidas cujo
abandonou à generosidade do povo a fruto natural é o aborto.
vigilância das riquezas deixadas para O fanatismo nacional dos tchecos
trás, para caluniar seu serviço de guar- foi a ferramenta mais poderosa da ca-
da durante a fuga e no regresso assis- marilha vienense. Os aliados já se de-
tir a seu massacre? sentenderam. Nossos leitores encontra-
A burguesia. rão neste número o protesto da depu-
Os segredos íntimos de quem ma- tação de Praga contra a impertinência
nifestava o termômetro que descia a vil com a qual foi saudada em Olmütz.
cada sopro de vida do povo de Viena Este é o primeiro sintoma da guer-
e subia a cada estertor de morte dele? ra que começará entre o partido eslavo
e seu herói Jellachich e o partido da
62. A Legião Acadêmica era constituída de estu-
simples camarilha, posta acima de
dantes universitários e era a mais radical das or- toda nacionalidade, e seu herói
ganizações militares burguesas. Windischgrätz. Por seu lado, o campo-

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A NOVA GAZETA RENANA 251

nês alemão na Áustria ainda não está o contragolpe que aniquilou a revolu-
pacificado. Sua voz será atravessada es- ção de junho será vencido. Com a vitó-
tridentemente pela assuada nacional ria da “república vermelha” em Paris
austríaca. E por um terceiro lado, a os exércitos serão lançados do interior
amável voz do czar será ouvida até em dos países sobre as fronteiras, e o po-
Pest; seus carrascos aguardam a pala- der real dos partidos em luta se reve-
vra decisiva no principado do Danúbio. lará claramente. Então nos lembrare-
Finalmente, só a última resolução mos de junho, de outubro, e também
da Assembléia Nacional alemã em nós clamaremos:
Frankfurt, que incorpora a Áustria ale- Vae victis!63
mã ao reino alemão, devia levar a um A carnificina inútil desde as jorna-
enorme conflito, se o poder central ale- das de junho e outubro, a enfadonha
mão e a Assembléia Nacional alemã não festa de sacrifício desde fevereiro e
acreditassem ter cumprido sua tarefa março, o canibalismo da própria con-
ao entrar no palco para serem vaiados tra-revolução convencerão o povo de
pelo público europeu. Apesar de sua que só há um meio para encurtar, sim-
resignação religiosa, a luta na Áustria plificar, concentrar as terríveis dores
assumirá dimensões gigantescas, como da agonia da velha sociedade e as san-
a história mundial ainda não viu. grentas dores do nascimento da nova
Agora mesmo foi representado em sociedade, só um meio — o terroris-
Viena o segundo ato do drama, cujo mo revolucionário.
primeiro ato foi representado em Pa-
ris sob o título: “As Jornadas de Ju-
nho”. Em Paris mobilizados, em Viena A crise em Berlim64
“croatas” — em ambos lazzaronis, o (NGR, nº 138, 9/11/1848)
lumpem-proletariado armado e com-
prado contra o proletariado trabalha- A situação parece muito complica-
dor e pensante. Em Berlim presencia- da, mas é muito simples.
remos em breve o terceiro ato. O rei, como a Nova Gazeta
Posto que a contra-revolução viveu
em toda a Europa pelas armas, ela
morreria em toda a Europa pelo dinhei- 63. Ai dos vencidos! – Grito de Brennus antes da toma-
da e destruição de Roma pelos gauleses (390 a.C.).
ro. O fato que cassaria a vitória seria a
64. O artigo “A crise em Berlim” e a série de arti-
– bancarrota européia, a bancarrota do gos “A contra-revolução em Berlim”, de Karl
Estado. Nos escolhos “econômicos” as Marx, são um eco imediato da preparação e do
pontas das baionetas quebram-se como começo do golpe de estado contra-revolucionário
pavio macio. em Berlim. Em 8 de novembro, o rei destituiu o
ministério Pfuel e nomeou o ministério
Mas o desenvolvimento não espe- Brandenburg-Manteuffel, abertamente contra-re-
ra o dia do vencimento da letra de câm- volucionário. Em 9 de novembro foi anunciada à
bio que os Estados europeus sacaram Assembléia Nacional prussiana uma “mensagem
contra a sociedade européia. Em Paris suprema” do rei, que ordenava seu adiamento e

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252 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002

Prussiana65 corretamente observa, as- Até agora, a Assembléia não é cons-


senta “sobre os mais amplos fundamen- titucional, é constituinte. Até agora ela
tos” seus direitos “hereditários pela tentou constituir o constitucionalismo. Ela
graça de Deus”. pode desistir ou não de sua tentativa.
Do outro lado, a Assembléia Nacional Ambos, o rei e a Assembléia, sub-
não se assenta sobre absolutamente meteram-se provisoriamente aos ritu-
nenhum fundamento, ela deve primeiro ais constitucionais.
constituir, estabelecer o fundamento. A reivindicação do rei, de consti-
Dois soberanos! tuir ao seu arbítrio um ministério
O elo de ligação entre ambos é Brandenburg,66 apesar da maioria da
Camphausen, a teoria ententista. Câmara, é a reivindicação de um rei
Logo que os dois soberanos não absoluto.
puderem ou não quiserem mais conci- A pretensão da Câmara de proibir
liar, eles se transformarão em dois so- ao rei, por meio de uma deputação di-
beranos inimigos. O rei tem o direito reta, a constituição de um ministério
de atirar a luva à Assembléia, e a As- Brandenburg é a pretensão de uma
sembléia tem o direito de atirar a luva Câmara absoluta.
ao rei. O maior direito está do lado O rei e a Assembléia pecaram con-
do maior poder. O poder se compro- tra a convenção constitucional.
va na luta. A luta se comprova na vi- O rei e a Assembléia, cada um em
tória. Ambos os poderes só podem seu âmbito originário, recuaram, o rei
fazer valer seu direito pela vitória, seu conscientemente, a Câmara inconscien-
não-direito só pela derrota. temente.
Até agora, o rei não é um rei cons- A vantagem está do lado do rei.
titucional. É um rei absoluto, que se O direito está do lado do poder.
decide ou não pelo constitucionalismo. A frase sobre o direito está do lado
da impotência.
O ministério Rodbertus seria o zero,
transferência de Berlim para a cidadezinha pro- em que mais e menos se paralisam.
vinciana de Brandenburg. Era o começo do golpe
de Estado, consumado com a dissolução da As-
sembléia Nacional prussiana e a outorga de uma A contra-revolução em Berlim
constituição em 5 de dezembro de 1848.
(NGR, nº 141, 12/11/1848)
A Nova Gazeta Renana fez tudo para mobilizar as
massas populares para a luta contra este golpe de
Estado contra-revolucionário. O ministério Pfuel foi um “mal-en-
65. Nova Gazeta Prussiana–jornal diário publicado tendido”; seu verdadeiro sentido é o
em Berlim desde junho de 1848; foi o órgão da
camarilha contra-revolucionária da corte e dos
junkers prussianos. Esse jornal também era conhe- 66. Brandenburg, Friedrich Wilhelm, conde de
cido pelo nome de “Gazeta da Cruz”, porque trazia (1792-1850): general e estadista prussiano, pri-
em seu título uma cruz de ferro, circundada pelas meiro-ministro contra-revolucionário (novembro
palavras “Avante com Deus pelo Rei e pela Pátria”. de 1848 a dezembro de 1850).

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A NOVA GAZETA RENANA 253

ministério Brandenburg. O ministério Ou a Assembléia em Brandenburg


Pfuel foi a indicação do conteúdo, o — como se sabe, Berlim fica na provín-
ministério Brandenburg é o conteúdo. cia de Brandenburg — será o senhor...
Brandenburg na Assembléia e a As- sobre o Brandenburg na Assembléia?
sembléia em Brandenburg. 67 Brandenburg procurará proteção na
Eis o epitáfio da casa Brandenburg!68 Assembléia, como no passado Capeta
O imperador Carlos V ficou surpre- em outra Assembléia?71
so por ter sido enterrado vivo.69 Uma Brandenburg na Assembléia e a As-
piada de mau gosto cinzelada em sua sembléia em Brandenburg é uma ex-
lápide afirma que isto é mais do que a pressão dúbia, ambígua, prenhe de
pena capital, que o imperador Carlos destino.
V incluiu em seu Código Penal.70 É sabido que os povos dão cabo com
Brandenburg na Assembléia e a As- facilidade infinitamente maior dos reis
sembléia em Brandenburg! do que das assembléias legislativas. A
No passado um rei da Prússia com- história possui um catálogo de revol-
pareceu à Assembléia. Não era o ver- tas inúteis do povo contra as assembléi-
dadeiro Brandenburg. O marquês de as nacionais. Oferece apenas duas gran-
Brandenburg, que anteontem compa- des exceções. O povo inglês pulverizou
receu à Assembléia, era o verdadeiro o longo parlamento na pessoa de
rei da Prússia. Cromwell, o povo francês o corpo
O Corpo da Guarda na Assembléia, legislativo na pessoa de Bonaparte. Mas
a Assembléia no Corpo da Guarda! — o longo parlamento já se tornara havia
isto é: Brandenburg na Assembléia, a muito uma carcaça, o corpo legislativo
Assembléia em Brandenburg! havia muito um cadáver.
Seriam os reis mais felizes do que
os povos nas sublevações contra as as-
sembléias legislativas?
67. Alusão às palavras de Frederico Guilherme IV Carlos I, Jakob II, Luís XVI, Carlos X
a respeito do ministério Brandenburg: “Ou
Brandenburg na Câmara, ou a Câmara em retratam ancestrais pouco promissores.
Brandenburg”. A Nova Gazeta Prussiana, em seu Mas na Espanha, na Itália há
número de 9 de novembro, ajustou: “Brandenburg antepassados mais felizes. E recente-
na Câmara e a Câmara em Brandenburg”. mente em Viena?
68. A dinastia dos Hohenzollern, que em 1417
recebeu o marquesado de Brandenburg como
feudo hereditário.
69. O imperador Carlos V, segundo a tradição, pou- 71. O rei francês Luís XVI (Louis Capet), durante
co antes de sua morte, organizou as cerimônias a insurreição popular de 10 de agosto de 1792,
de seu próprio funeral e tomou parte pessoal- que derrubou a monarquia na França, procurou
mente nessas solenidades fúnebres. proteção na Assembléia Nacional. No dia seguin-
70. O Código Penal de Carlos V (“Constitutio te, o rei foi preso. A Convenção, que se reunia
criminalis carolina”), aprovado em 1532 pelo par- como tribunal acima de Luís XVI, declarou-o cul-
lamento em Ratisbona, destacava-se por suas pado de conspiração contra a liberdade da nação
penas extraordinariamente cruéis. e a segurança do Estado e o condenou à morte.

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254 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002

Mas não devemos nos esquecer de A Coroa prussiana está em seu di-
que em Viena tinha assento um Con- reito quando enfrenta a Assembléia
gresso popular e que os representan- como uma Coroa absoluta. Mas a As-
tes do povo eslavo, com exceção da sembléia está no não-direito, porque
Polônia, marcharam alegremente para não enfrenta a Coroa como uma As-
o acampamento imperial.72 sembléia absoluta. Acima de tudo ela
A guerra da camarilha vienense deveria prender os ministros por alta
contra o parlamento era ao mesmo tem- traição, por alta traição contra a sobe-
po a guerra do parlamento eslavo con- rania do povo. Deveria pôr sob vigi-
tra o parlamento alemão. Na Assem- lância, fora da lei, todo funcionário que
bléia de Berlim, ao contrário, não são desse ouvidos a outras ordens que não
os eslavos que formam uma cisão, mas as suas.
somente os escravos, e escravos, escra- Assim seria possível que a fraque-
vos não são um partido, são no máxi- za política com que a Assembléia Naci-
mo a retaguarda de um partido. A onal se reuniu em Berlim se transfor-
desertora direita berlinense 73 não leva masse em sua força burguesa nas pro-
nenhuma força ao campo inimigo, e sim víncias.
o infecta com uma doença mortal, com A burguesia teria transformado
a traição. com muito prazer a monarquia feudal
Na Áustria o partido eslavo ven- em uma monarquia burguesa pelo ca-
ceu com a camarilha; ele agora lutará minho amistoso. Depois de arrancar ao
com a camarilha pelo botim. Se a ca- partido feudal os brasões e títulos
marilha berlinense vencer, não terá de ofensivos a seu orgulho burguês e os
dividir a vitória com a direita e a fará rendimentos pertencentes à proprieda-
valer contra a direita; ela lhe dará uma de feudal que violam o modo de apro-
gorjeta e um pontapé. priação burguês, ela teria com todo o
prazer se casado com o partido feudal
e subjugado o povo junto com ele. Mas
72. A maioria dos deputados eslavos do parla- a alta burocracia não quer decair cria-
mento austríaco de 1848 pertencia aos círculos
liberais da burguesia e dos proprietários rurais,
da de uma burguesia, de quem fora,
que aspiravam a resolver a questão nacional pelo até agora, a despótica mestre-escola.
caminho da conservação e fortalecimento da mo- O partido feudal não quer queimar no
narquia Habsburgo por meio de sua conversão altar da burguesia suas distinções e seus
em uma federação de nacionalidades com direi-
tos iguais.
interesses. E, finalmente, a Coroa vê
73. Em 9 de novembro de 1848 a Assembléia Nacional nos elementos da velha sociedade feu-
prussiana foi notificada de um “comunicado supre- dal, de que é a mais alta emanação, seu
mo” do rei sobre o adiamento da Assembléia e sua chão social verdadeiro e natural, ao
transferência de Berlim para Brandenburg. Em conse- passo que, na burguesia, vê um terre-
qüência disso, a maioria dos deputados da ala direita
abandonou obedientemente a sala de sessões, entre
no estranho e artificial, do qual só po-
eles também dois deputados de Colônia (Haugh e deria se sustentar sob a condição de
Von Wittgenstein). definhar.

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A NOVA GAZETA RENANA 255

A burguesia transforma o inebriante ralmente agarrou com ambas as mãos


“pela graça de Deus” em um sóbrio títu- a oportunidade de o lacaio brincar de
lo jurídico, o domínio do sangue no do- senhor. Mas ele tem a satisfação de que
mínio do papel, o sol real numa burgue- o senhor, por seu lado, brinque de la-
sa lâmpada astral. caio.
Por isso a monarquia não se dei- Também em Berlim a sorte está
xou persuadir pela burguesia, e respon- lançada: o dilema está posto, rei ou
deu à sua meia revolução com uma com- povo — e o povo vencerá com o gri-
pleta contra-revolução. Rebaixou a bur- to: Brandenburg na Assembléia e a As-
guesia a braço da revolução, do povo, sembléia em Brandenburg.
gritando-lhe: Podemos passar ainda por uma
Brandenburg na Assembléia e a As- dura escola, mas é a pré-escola da
sembléia em Brandenburg. revolução plena.
Se admitimos não esperar da bur-
guesia nenhuma resposta adequada à
situação, não podemos deixar de ob- (NGR, nº 141, 12/11/1848, 2ª edição)
servar, por outro lado, que também a
Coroa, em sua insurreição contra a A revolução européia percorre um
Assembléia Nacional, recorreu à sua ciclo. Começou na Itália, em Paris as-
hipócrita imperfeição e ocultou a cabe- sumiu um caráter europeu, Viena foi
ça sob a aparência constitucional, no o primeiro eco da Revolução de Feve-
mesmo momento em que procurava se reiro, Berlim o eco da Revolução de
desfazer dessa incômoda aparência. Viena. Na Itália, em Nápoles, a con-
Brandenburg permitiu ao poder tra-revolução européia assestou seu
central alemão dar a ordem para seu primeiro golpe, em Paris — as jorna-
golpe de Estado. Os regimentos da das de junho — assumiu um caráter
Guarda foram mobilizados em Berlim europeu, Viena foi o primeiro eco da
por ordem do poder central. A contra- contra-revolução de junho, em Berlim
revolução em Berlim ocorreu por or- ela se consumou e se comprometeu.
dem do poder central alemão. Bran- De Paris novamente o galo gaulês des-
denburg deu a Frankfurt a ordem para pertará a Europa.75
lhe dar esta ordem. Frankfurt negou Mas em Berlim a contra-revolu-
sua soberania no momento em que quis ção se comprometeu. Em Berlim
estabelecê-la. O sr. Bassermann74 natu- tudo se comprometeu, mesmo a
contra-revolução.

74. Bassermann, Friedrich Daniel (1811-1855): li-


vreiro em Mannheim, político liberal moderado;
75. O canto do galo gaulês – Heinrich Heine, em
em 1848-49, foi representante do governo de
texto de 1831, diz em relação à revolução france-
Baden na Dieta; membro do Parlamento Prepara-
sa de 1830: “O galo gaulês cantou agora pela
tório e da Assembléia Nacional de Frankfurt (cen-
segunda vez, e também na Alemanha fez-se dia”.
tro-direita).

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256 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002

Em Nápoles o lúmpen, aliado com estupidez absoluta se ocultavam os


a monarquia, contra a burguesia. criticastros das conquistas de março.
Em Paris a maior luta histórica que
já ocorreu. A burguesia, aliada com o “Com a estupidez mesmo os deuses
lúmpen, contra a classe trabalhadora. lutam em vão”,77
Em Viena todo um enxame de na-
cionalidades, que viram na contra-re- exclama a perplexa Assembléia Na-
volução sua emancipação. Além disso, cional.
secreta perfídia da burguesia contra os E estes Wrangels, estes Brandenburgs,
trabalhadores e a Legião Acadêmica. estes cérebros sem tino, que podem
Luta na própria Guarda Civil. Final- querer, porque não têm nenhuma von-
mente — ataque do povo, que deu o tade própria, porque querem o que lhes
pretexto para o ataque da corte. é ordenado, que são estúpidos o sufi-
Em Berlim nada disso. A burgue- ciente para se enganar quanto às or-
sia e o povo de um lado — os suboficiais dens que se lhes dá com voz
do outro. estremecida, com lábios trêmulos, tam-
Wrangel76 e Brandenburg, dois ho- bém eles se comprometeram, à medi-
mens sem cabeça, sem coração, sem ten- da que não vêm para quebrar cabeças,
dência, meros bigodes — eis a oposi- a única tarefa da qual estes rompe-
ção a essa Assembléia Nacional muros estão à altura.
quizilenta, hesitante, incapaz de deci- Wrangel não vai além de admitir
dir. que só conhece uma Assembléia Naci-
Vontade! Ainda que seja a vontade onal, a que obedece a ordens!
de um asno, de um boi, de um bigode Brandenburg toma aulas de decoro
— vontade é o único requisito dos parlamentar, e, depois de exasperar a
abúlicos quizilentos em face da Revo- Câmara com seu grosseiro e repugnan-
lução de Março. E a corte prussiana, te dialeto de suboficial, deixa o “tira-
que não tem qualquer vontade, assim no ser tiranizado” e obedece a ordens
como a Assembléia Nacional, procura da Assembléia Nacional, pedindo a
os dois homens mais estúpidos da mo- palavra que havia pouco queria tomar.
narquia e diz a estes leões: Representai
a vontade. Pfuel tinha ainda algumas “Melhor ser um piolho na lã
de uma ovelha
partículas de cérebro. Mas por trás da
Do que uma tão valente estupidez!”78

A atitude tranqüila de Berlim nos


diverte; contra ela quebram-se os ide-
76. Wrangel, Friedrich Heinrich Ernst, conde de
(1784-1877): general prussiano, um dos líderes ais do suboficialato prussiano.
da camarilha militar reacionária; em 1848, gene-
ral-comandante do 3º Corpo de Exército em
Berlim, participou do golpe de Estado contra-re- 77. Schiller, A donzela de Orléans, Ato 3, cena 3.
volucionário em novembro de 1848. 78. Shakespeare, Tróilo e Cressida, Ato 3, cena 3.

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A NOVA GAZETA RENANA 257

Mas e a Assembléia Nacional? Por Derrotemo-la, pois, à maneira


que não pronuncia o mise hors de loi,79 burguesa.
por que não declara os Wrangels fora- E como se derrota a monarquia à
da-lei, por que nenhum deputado entra maneira burguesa?
em meio às baionetas de Wrangel e o Fazendo-a morrer de fome.
declara proscrito e arenga à soldadesca? E como fazê-la morrer de fome?
A Assembléia Nacional de Berlim Recusando os impostos.
folheia o Moniteur, 80 o Moniteur de Refleti bem nisso! Todos os prínci-
1789-1795. pes da Prússia, todos os Brandenburgs
E o que fazemos nós neste momento? e Wrangels não produzem nenhuma
Recusamos os impostos. Um munição de boca. Vós, vós produzis
Wrangel, um Brandenburg compreen- mesmo a munição de boca.
dem — pois estas criaturas estudam
árabe dos Hyghlans81 — que trazem
uma espada e um uniforme e recebem (NGR, nº 142, 14/11/1848)
salários. Mas de onde vêm a espada, o
uniforme e o salário, isso eles não com- Como outrora a Assembléia Naci-
preendem. onal francesa encontrou trancada sua
Só há um meio de derrotar a mo- sala de sessões oficial e precisou con-
narquia — isto é, até a época da anti- tinuar suas deliberações no Salão de
Revolução de Junho em Paris, que ocor- Baile, assim a Assembléia Nacional
rerá em dezembro.82 prussiana no Clube de Atiradores.83
A monarquia não desafia apenas o
povo, desafia a burguesia. presidenciais. A Constituição francesa de 4 de
novembro de 1848 concedeu ao presidente, como
79. Declarar fora-da-lei. chefe supremo do poder Executivo, plenos pode-
80. Le Moniteur Universel – jornal diário francês, res e depôs em favor do fortalecimento de atitu-
publicado em Paris de 1789 a 1901. De 1799 a des contra-revolucionárias da burguesia dominan-
1814 e de 1816 a 1868 foi o órgão oficial do gover- te desde a insurreição do proletariado parisiense
no. Durante a Revolução Francesa, o jornal publi- em junho de 1848. Como resultado das eleições
cou as atas das sessões parlamentares assim como de 10 de dezembro, Luís Bonaparte tornou-se pre-
as leis e atos do governo revolucionário. sidente da República.
81. Em 3 de novembro de 1848, a Gazeta de Colônia 83. Como resposta ao “comunicado supremo”
escreveu sobre a linhagem africana imaginária dos sobre o adiamento da Assembléia Nacional
“Hyghlans”, uma forma intermediária entre ho- Prussiana e sua transferência de Berlim para
mem e macaco. “Muitos deles”, dizia-se ali, “es- Brandenburg, a maioria dos deputados decidiu
tudam a língua árabe”. A Nova Gazeta Renana de continuar as deliberações em Berlim. Em conse-
5 de novembro zombou dessa notícia e observou, qüência disso, a Assembléia Nacional foi expul-
entre outras coisas, que “esta descoberta (...) tem sa, em 10 de novembro de 1848, de seu até então
de qualquer modo o maior significado para o par- local de sessões, o Teatro, e de 11 a 13 de novem-
tido dos criticastros, que encontra nos Hyghlans bro reuniu-se no Clube de Atiradores de Berlim.
um superlativo apropriado”. A histórica sessão da Assembléia Nacional fran-
82. Em dezembro de 1848, de acordo com a Consti- cesa no salão de baile em Versalhes ocorreu em 20
tuição, deveriam ocorrer, na França, eleições de junho de 1789.

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A decisão tomada no Clube de Ati- mais antigo país constitucional, na In-


radores e informada por nosso corres- glaterra, foi tratada a negação dos im-
pondente em Berlim no suplemento ex- postos.86 Além disso, o próprio gover-
tra de hoje de manhã, pela qual no de alta traição mostrou ao povo o
Brandenburg foi declarado culpado de caminho correto, já que ele imediata-
alta traição, não se encontra nas notíci- mente negou à Assembléia Nacional os
as da Gazeta de Colônia. 84 impostos (as diárias etc.) e procurou
Nesse meio tempo, recebemos há pou- matá-la de fome.
co a carta de um membro da Assembléia O supracitado deputado escreve-
Nacional, em que se lê literalmente: nos mais adiante:
“A Assembléia Nacional declarou “A Guarda Civil não deporá suas
unanimemente (242 membros) que armas.”
Brandenburg, por esta medida (a dis- A luta parece, portanto, inevitável,
solução da Guarda Civil), se tornou e é dever da província do Reno apres-
culpado de alta traição, e todos os que sar-se a socorrer, com homens e armas,
contribuírem ativa ou passivamente a Assembléia Nacional de Berlim.
para a execução dessa medida serão
considerados culpados de alta trai-
ção.”85 A dissolução da Assembléia
A credibilidade de Dumont é Nacional
conhecida. (NGR, nº 162, 7/12/1848,
Uma vez que a Assembléia Nacio- suplemento extra)
nal declara Brandenburg culpado de
alta traição, cessa por si mesmo o de- A contra-revolução chegou a seu
ver de pagar impostos. A um governo segundo estágio. A Assembléia Nacio-
culpado de alta traição não se deve nal foi dissolvida.87 Uma constituição
nenhum imposto. Amanhã informare-
mos detalhadamente a nossos leitores 86. Na Nova Gazeta Renana nº 142 (segunda edi-
como, em conflitos semelhantes, no ção) e nº 143, de 14 e 15 de novembro de 1848, foi
publicado o artigo de Georg Weerths “A negação
dos impostos na Inglaterra quando do Reform-
Bill no ano de 1832”.
84. Gazeta de Colônia – jornal diário, publicado 87. Em 5 de dezembro de 1848 foi publicada uma
desde 1802 em Colônia. Nos anos 1830 e princípios ordenança real sobre a Dissolução da Assembléia
dos 40, defendeu a Igreja católica contra o protes- Nacional prussiana. No relatório do ministério so-
tantismo dominante na Prússia; em 1848-49 re- bre essa ordenança a Assembléia Nacional foi es-
fletiu a política covarde e traidora da burguesia pecialmente repreendida por não ter obedecido ao
liberal prussiana e dirigiu uma luta contínua e “comunicado supremo sobre a transferência das
encarniçada contra a Nova Gazeta Renana. sessões da Assembléia convocada para se enten-
85. Essa decisão foi tomada pela Assembléia Na- der sobre uma constituição de Berlin para
cional prussiana em sua 98ª sessão, em 11 de Brandenburg”- uma medida que supostamente
novembro de 1848, no Clube de Atiradores de deveria “garantir a liberdade de deliberação dos
Berlim (ver “Sessões da Assembléia Constituinte representantes do povo diante dos movimentos
na Prússia”, vol. 9, volume suplementar). anarquistas da capital e suas influências terroristas”.

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A NOVA GAZETA RENANA 259

outorgada foi anunciada sem mais pela Sua próxima vitória porá um fim à
“graça suprema”. “entente”, como a todas as restantes
Toda a hipocrisia posta em anda- frases e hipocrisias.
mento desde maio com a “entente”
despojou-se de sua última capa.
A Revolução de Março foi declara-
da nula, e o “domínio pela graça de
Deus” festeja seu triunfo.
A camarilha, os junkers, a burocra-
cia e toda a reação com ou sem unifor-
me se rejubila por finalmente poder
outra vez tanger o povo rude de volta
para o estábulo do Estado “germano-
cristão”.

O golpe de Estado
da contra-revolução
(NGR, nº 163, 8/12/1848)

A Assembléia Nacional foi dissol-


vida. Os representantes do povo foram
dispersados “pela graça de Deus”.
Ao golpe de Estado executado com
tal ousadia juntou o ministério em seus
Considerandos a violência da zomba-
ria mais amarga.
A Assembléia Nacional colhe ago-
ra os frutos de sua crônica fraqueza e
covardia. Durante meses, ela permitiu
que a conspiração contra o povo pros-
seguisse calmamente, se tornasse forte
e poderosa, e por isso agora cai como
sua primeira vítima.
Também o povo expia aquilo de que
se tornou culpado em março e ainda
em abril e maio por generosidade ou,
mais exatamente, por estupidez, e por
último pela assim chamada “resistên-
cia passiva”. Ele recebeu agora uma li-
ção de que certamente se aproveitará.

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