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REVISTA LITTERIS ISSN: 1983 7429 Número 3, novembro 2009

O ESCÂNDALO DO “PRAZER RACIONAL” NA CRÍTICA DA


RAZÃO PRÁTICA DE IMMANUEL KANT

Homero Fraga Bandeira de Melo1


(UERJ)

1. Introdução
“[...] Se com Epicuro, para determinar a vontade, expomo-nos na
virtude ao simples deleite que ela promete, não podemos depois censurá-lo
pelo fato de considerar este deleite totalmente homogêneo aos mais rudes
sentidos; pois não se tem absolutamente razão para imputar-lhe que tivesse
atribuído as representações, pelas quais este sentimento seria suscitado em
nós, meramente aos sentidos corporais. [...]”. (Kant, 2002, p. 41).

A indagação fundamental deste trabalho é a seguinte: partindo do pressuposto que a


sensibilidade é um caráter subjetivo e necessário no plano sintético 2 e que uma lei universal
deve ser analiticamente3 racional e desinteressada, (desta forma, completamente apartada do
sensível), e baseando-se, então, nestas duas premissas, podemos pensar que qualquer ação que
seja realizada efetivamente ou simplesmente cogitada, mas que acarrete, seja lá onde for, o
mais simples sentimento de satisfação ou de amargor, coloca-a no nível da síntese e do
imperativo hipotético4.

1
Homero Fraga Bandeira de Melo - Professor de Filosofia e Bacharel pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ
2
No sentido dos juízos sintéticos. Os juízos sintéticos são aqueles em que não se pode chegar à verdade por pura
análise de suas proposições. Os juízos sintéticos, as proposições sintéticas, são resultado de se "juntar" (síntese) os
fatos, ou dados, da experiência.
3
Os limites de uma determinada capacidade só podem ser de duas ordens: intrínsecos e extrínsecos. Os limites
intrínsecos são aqueles que podem ser conhecidos a priori e analiticamente, por dedução a partir do seu conceito.
Ora, segundo Kant, nenhuma dedução a priori pode emigrar, sem mais, para o domínio dos fatos, de vez que o
conhecimento deste domínio só tem validade quando é indutivo e fundado na experiência. Logo, os limites
intrínsecos do conhecimento humano, caso conhecidos, seriam puramente formais e não se aplicariam ao
conhecimento de nenhum objeto real e determinado. Seriam, por assim dizer, limites vazios, hipotéticos, que na
prática não limitariam nada.
4
O imperativo hipotético é, segundo Kant, o princípio representando a necessidade prática de uma ação possível,
considerada como meio de se alcançar um determinado fim. Então, se quero comprar algo tenho que ter dinheiro e
para ter dinheiro devo trabalhar honestamente e em conformidade com a lei.
É irracionalmente sintética5 a razão que nos „dá prazer‟. Assombroso é o paradoxo da
razão que não é racional, decaída do universal. Nem mesmo a unanimidade do assentimento de
todos os seres racionais deste planeta poderia conferir uma exceção a essa conclusão
necessária. Como sair deste embaraço? Como defender uma razão desprovida de sentimentos
se o nosso aparelho cognitivo trabalha com afecções das quais se ocupa o entendimento? Se
notarmos bem, há outros incidentes bastante estranhos e espalhados por nossa existência
cotidiana como: alegrar-se ao resolver um problema de matemática e descobrir uma lei ou um
juízo sintético a priori na natureza. Por que essas ações que deveriam ser puramente racionais
nos afetam?
Uma filosofia a priori não poderia depender de um conceito empírico; uma filosofia
que busca princípios práticos universais, não poderia assentar-se numa noção, cuja definição
depende do sentimento de prazer e desprazer de cada agente. De toda forma encontramos em
Kant o que segue e que nos parece um problema dentro do sistema kantiano de subordinação do
prazer à razão:

“Ora, a consciência que um ente racional tem do agrado da vida e que


acompanha ininterruptamente toda a sua existência é, porém, a felicidade; e o
princípio de tornar esta o fundamento determinante supremo do arbítrio é o
princípio do amor de si. Logo todos os princípios materiais, que põem o
fundamento determinante do arbítrio no prazer ou desprazer a ser
sensorialmente sentido a partir da efetividade de qualquer objeto, são
totalmente da mesma espécie, na medida em que pertencem no seu conjunto
ao princípio do amor de si ou da felicidade própria.” (Kant, 2002, p. 38).

Vemos, através do fragmento acima exposto, que Kant, em algum momento, tangencia
com a filosofia de Epicuro no que diz respeito a felicidade como objetivo da vida. De toda
forma, para Epicuro a felicidade está relacionada ao bem viver e, ao viver bem, o indivíduo
passa a ter prazer e este está associado à beatitude como atributos interdependentes. A
felicidade e o prazer, para Epicuro, não estão dissociados. Isto posto, esse prazer está
relacionado a um reto viver dentro de um sistema de moral e jamais se associa à busca por
prazeres baixos que não são naturais e que, por não o serem, levam a dor e ao sofrimento
(Epicuro, 1980). Viver é viver bem, para Epicuro. Vamos tentar reconstruir esses argumentos a
partir da análise exegética da “Crítica da Razão Prática – Das Proposições Fundamentais da

5
Na forma que não se pode mensurar o prazer pela análise de proposições dadas a priori.
2
Razão Prática Pura”6, §3, Teorema II. A fim de fazer com que nossa tarefa pareça ser
suficiente, trataremos de procurar subsídios seguindo a linha proposta por Lewis White Beck 7
(1960) onde o mesmo defende Kant desenvolvendo dogmaticamente esse argumento: que é da
mais alta importância não se deixar levar pela apreensão falha do Teorema II, §3, “Das
Proposições Fundamentais da Razão Prática Pura” da Crítica da Razão Prática de Kant e
concluir que quer significar a presença de um desejo e daí de um material que desqualifica a
máxima de ser de uma lei. “O teorema desqualifica somente aquelas máximas que são
escolhidas para guiar a conduta por causa do seu conteúdo, i.e., por causa das suas referências a
um objeto do desejo (material) como fator determinante”8 (Beck, 1960, pp. 96-97). Beck se
apóia em quatro conceitos fundamentais: Desejo; Prazer; Faculdade Mais Alta e Baixa do
Desejo e Felicidade.

2. O Desejo na Crítica da Razão Prática


O desejo se divide em duas partes: fator cognitivo9 ou idéia e fator dinâmico ou
conativo10. Outra distinção que nos parece relevante para a nossa investigação é a diferença dos
conceitos kantianos „vontade‟ e „desejo‟. Pelo primeiro, o filósofo entendia se tratar de um
“desejo já domesticado e canalizado”, inteiramente voltado para realização de um “objetivo”
(objeto de uma ação) segundo o qual a “razão” através do “interesse” teria previamente
determinado a “vontade” – impulso consciente e comprometido com a racionalidade. Portanto,
teríamos, desta forma, um gradiente quádruplo [razão – interesse – vontade – desejo] do plano
sintético ao analítico, consubstanciando uma „Razão Pura Prática‟. Até os animais poderiam
desejar, porém, somente os homens possuem vontade. Então, segundo Kant:

“Pois, se nos perguntamos pelos fundamentos determinantes da


apetição e os colocamos em um esperado agrado de algo qualquer, não nos

6
Observando a seguinte tradução: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. com Introdução e Notas de
Valério Rohden Baseada na Edição Original de 1788. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
7
Lewis White Beck escreveu uma série de obras sobre a filosofia germânica dos séculos XVIII-XIX. Dentre essas
obras citamos: A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason (1960), Studies in the Philosophy of Kant
(1965), Early German Philosophy: Kant and His Predecessors (1969), Critique of Practical Reason and Other
Writings in Moral Philosophy (1976) e Essays on Kant and Hume (1978).
8
A Tradução do trecho em questão é de responsabilidade do autor.
9
Cognição é o conjunto dos processos mentais que englobam o pensamento, a percepção, o reconhecimento de
objetos e pessoas e a classificação dos objetos.
10
Tendência consciente para atuar.
3
interessa de onde a representação desse objeto deleitante provém mas
somente de quanto ela deleita. Se uma representação, mesmo tendo sua sede e
origem no entendimento, só pode determinar o arbítrio pelo fato de pressupor
um sentimento de prazer no sujeito, então o fato de ela ser um fundamento
determinante do arbítrio é totalmente dependente da natureza do sentido
interno, ou seja, de que este pode ser afetado por ela com agrado. Além disso,
quer as representações dos objetos sejam heterogêneas, quer elas sejam
representações do entendimento e mesmo da razão em oposição às
representações dos sentidos, apesar disso o sentimento de prazer, pelo qual
única e propriamente aquelas constituem o fundamento determinante da
vontade (o agrado, o deleite que disso se espera e impele à atividade para a
produção do objeto), não somente é da mesma espécie, na medida em que
sempre só pode ser conhecido empiricamente, mas também na medida em que
ele11 afeta uma e idêntica força vital que se exterioriza na faculdade de
apetição, e sob este aspecto não pode ser diferente, senão em grau, de outro
fundamento determinante. Do contrário, como se poderia fazer uma
comparação de magnitude entre dois fundamentos determinantes totalmente
diversos quanto ao modo de representação, para preferir aquele que mais afeta
a faculdade de apetição? Um mesmo homem pode restituir, sem ter lido, um
livro instrutivo que só uma vez lhe cai às mãos, para não perder a caçada, ir
embora em meio a um belo discurso para não chegar tarde demais à refeição,
abandonar uma conversação racional, que afora isso aprecia muito, para
sentar-se à mesa de jogo, e até despedir um pobre, em cuja ajuda ele afora isso
sente prazer, porque justamente agora não tem no bolso mais dinheiro do que
precisa para pagar o ingresso para o teatro. Se a determinação da vontade
depende do sentimento de agrado ou desagrado que ele por algum motivo
espera, então lhe é inteiramente indiferente através de que modo de
representação é afetado.” (Kant, 2002, pp. 38-40).

O segundo conceito relevante seria o apetite (impulso, inclinação, incentivo, coação,


atração etc.) do qual Platão nos fala no Timeu (Platão, 1995). O apetite é pujante e não possui
como atributo conceitual os „freios da racionalidade‟. Corroborando com o primeiro
Wittgenstein: “Não se pode ter „desejo‟ pela racionalidade, pois são de naturezas diferentes”.
Essa operação é um desvio da linguagem, em suma, não sendo possível em nenhum dos
mundos possíveis.
Nos sistemas empiristas e materialistas uma idéia possui uma realidade objetiva – é um
ente corpuscular – forjada nas impressões hauridas da matéria e depositada extensivamente no
cérebro humano, ela tem o seu poder de afecção (inclinação) e coação no sujeito. Toda essa

11
Nota de número 40 da tradução da Crítica da Razão Prática (Kant, 2002, p. 39) por Valério Rohden: “Na 1ª, 4ª-
6ª edições constou er (“ele”, pronome pessoal masculino singular), na 2ª edição es (forma neutra do pronome),
concordando então com Gefühl (sentimento); adotado também por Hartenstein e Ak.”
4
operação é puramente sintética. De toda forma, as idéias analíticas não podem envolver
afecções (que são de outra natureza), quanto mais ser a “causa final” de um comportamento.

3. O Prazer na Crítica da Razão Prática


Os epicuristas12, os wolffianos13, os hedonistas14 e quase todos os sistemas helenísticos
em sua totalidade afirmam que „toda a escolha é relacionada ao prazer‟. De toda forma, para os
seguidores de Christian Wolff, a perfeição é mais luminosa no conhecimento advindo dos
prazeres mais refinados intelectualmente. Outrossim, Epicuro, através da sua teoria da
antecipação (do grego: prolepses) ensina-nos que todo o conhecimento é materialmente
corpuscular e advindo da intuição sensível.
É possível experimentar o prazer sem desejo antecedente (teoria que Platão vai
amadurecer no seu diálogo Filebo). O prazer pode vir à tona da mera contemplação de um
objeto ou da experiência de uma idéia na imaginação (Kant, 2002, pp. 37-38). Tal prazer é
chamado “Prazer Contemplativo” e é mais bem visto na fruição da beleza, onde o prazer é
caracterizado como sendo desinteressado (Pascal, 2005, pp. 136 e 140). O Prazer que é o
escopo e recompensa da ação, entretanto é chamado de “Prazer Prático” (Kant, 2002, p. 38).
Ambos os tipos de prazer podem ser definidos pela referência ao estado “subjetivo” da
pessoa (Kant, 2002, p. 37). Prazer é a consciência de causalidade de uma idéia para manter o
sujeito num estado no qual ele está tendo essa experiência. Dor é, pelo corolário, nossa
consciência de um efeito que uma idéia tem em fazer-nos tentar ou querer mudar nosso estado

12
A moral, no sistema de Epicuro, é comandada pelo primeiro princípio: o bem é o prazer. Para Epicuro, o prazer
é o soberano bem, e a dor o soberano mal. É o prazer estável que garante a felicidade. Aprender a bem viver é
aprender a melhor gerir os seus prazeres, afastando aqueles que não são nem naturais, nem necessários e
fomentando aqueles que se encontram nos limites da natureza. O cume dessa moral seria a beatitude da ataraxia: a
total imperturbabilidade diante da dor e o desprezo pela morte.
13
Os wolffianos são os seguidores do filósofo alemão Christian Wolff (1679-1754). Wolff se preocupa com a
moral e sua confluência com as questões ontológicas. Antes de Kant, defendia que se pode estabelecer a moral
sem recorrer a Deus. Para Wolff a filosofia é a ciência dos possíveis. Anunciou em sua obra Psychologia Empirica
(1732) a possibilidade de a psicologia tornar-se uma ciência.
14
O hedonismo é, num sentido mais estrito, um pensamento egocêntrico e egoísta, preocupado apenas com os
prazeres. O hedonismo é diferente do epicurismo, pois para o epicurismo a felicidade consiste na total ausência de
perturbação (ataraxia).
5
subjetivo (Kant, 2002, p. 38). O prazer é presente quando há harmonia ou facilitação da
função. Kant chama a função de idéia de acordo com um objeto ou ação ou com a condição
subjetiva de uma pessoa (desejo) ou com o trabalho de nossas capacidades perceptivas e
imaginativas (como no prazer desinteressado da arte). Seria talvez mais claro dizer que o prazer
é o sentimento produzido por tal acordo.
A faculdade ou capacidade de experimentar prazer e dor é o sentimento (Kant, 2002, pp.
37-38). Se o conteúdo de nossa experiência sensorial é de tal tipo que possa ser relacionado a
um objeto do conhecimento, então, pode se tornar um componente no conhecimento do objeto.
Isto posto, o conteúdo é chamado “sensação” (Kant, 2002, p. 38). A cor verde, por exemplo, é
uma sensação e é subjetiva, desde que ela dependa de uma pessoa, até agora é relacionada ao
objeto de tal modo (pela significação de uma síntese a priori sob a categoria da inferência e da
subsistência) que alguém pode corretamente dizer que o objeto é verde. Esta atribuição objetiva
não pode tomar lugar com sentimentos (os sentimentos, tal como as sensações, são subjetivos)
e daí eles seriam subjetivos em um duplo sentido, pois a determinação exata da cor verde, pela
maior parte das pessoas, pode não ser tão exata (embora a intuição pareça ser igual em todas as
pessoas) e no que tange a sentimentos pode ser muito diferente (o que traz prazer a uma pessoa
pode não o ser para outra). Desse modo, a razão que gera os princípios do conhecimento é,
quando razão prática, o norte para nossa conduta. Na experiência encontramos princípios
fundamentais que nos possibilitam uma ação uniforme, entretanto dentro do caráter subjetivo
da experiência há variações. De toda forma, essas variações ainda possibilitam que as intuições
sejam apreendidas aparentemente de forma igual por todas as pessoas.
Há somente duas sensações elementares – prazer e dor. Todos os outros sentimentos,
tais como os sentimentos do sublime e do belo são definidos pelos acompanhamentos,
contextos, causas, ou objetos do prazer ou dor que nós sentimos. Como a origem do prazer se
assenta em estímulos físicos, o preenchimento físico de um desejo, ou alguma idéia tomada na
contemplação, o sentimento é sempre um efeito sobre nossa sensibilidade (Kant, 2002, p. 38).
Pelo que afirmamos acima, Kant observa a tese dos sistemas helenísticos e de Epicuro
de Samos. Kant ao usar o Teorema II da primeira parte da “Crítica da Razão Prática – Doutrina
dos Elementos da Razão Prática Pura” a fim de denunciar a não distinção do prazer do
entendimento e da sensibilidade empreendida pela escola wolffiana acaba apresentando um
problema que aproxima a questão dos sistemas helenísticos e de Epicuro. Ao apresentar esse

6
problema Kant estaria caindo em uma aporia15 da qual dificilmente sairia. O homem ao
interpretar os dados de uma intuição sensível ou puramente intelectual sofre uma reação (prazer
ou dor) que é da parte da sensibilidade, desse modo, tornando sintético algo que deveria ser a
priori e criando uma razão (no sentido das premissas kantianas) irracional.

4. O Escândalo do “Prazer Racional” na Crítica da Razão Prática de Immanuel


Kant
A distinção entre a faculdade mais baixa e a mais alta do desejo pertence à tradição
escolástica que salienta a diferença fundamental entre ‘appetitus sensitivus’ e ‘appetitus
rationalis’. Ambos os termos são derivações da concepção clássica de „paixão‟ e „vontade‟.
Os wolffianos, ao reeditarem esta distinção, não se importaram em separar as
„faculdades sensitivas‟ e „racionais em geral‟. Na doutrina de Christian Wolff, „desejar‟ se
relaciona diretamente ao “conhecimento da perfeição”. Tal filosofia é um desdobramento
moderno das teses platônicas encontradas no Fedro, mais especificamente na interpretação
ciceriana da palavra “desejo”, ‘de siderum’.
Se algo conhecido é „obscuro ou confuso‟ – apegado à materialidade e a subjetividade –
estará necessariamente relacionado à faculdade mais baixa do sentido, desse modo, sendo
apenas um conhecimento parcial. O desejo que diz respeito a sua forma mais rudimentar e
apetitiva pode nos desencaminhar em direção a uma errônea e má conduta; outrossim, se é
claro e distinto (esclarecido no sentido voltairiano (Voltaire, 2006, p. 464)), vindo da faculdade
cognitiva mais elevada da compreensão, a vontade é certamente guiada a escolher a real
perfeição (Pascal, 2006, p. 146).
A tarefa principal dos filósofos wolffianos tão bem quanto de toda a filosofia
racionalista subseqüente, é trazer as nossas idéias brutas, tal qual diamantes não lapidados, à
compreensão racionalmente moral, à clareza e à distinção, ou seja, à iluminação (Aufklärung).
Um „senso‟ – a boa e velha doxa no sentido mais helênico da palavra – e um conceito
racional – „pomposamente‟ apoiado em toda a lógica aristotélica – diferem somente em
gradientes de claridade e não em modo. No Prefácio da “Fundamentação da Metafísica dos

15
Aporia: Dificuldade de ordem racional, que parece decorrer exclusivamente de um raciocínio ou do conteúdo
dele. Para os Antigos “aporia” é raciocinar por absurdo. Na Alta Idade Média Ocidental, a fim de conciliar as
questões racionais da filosofia aos dogmas da fé, alguns teólogos usaram esse sistema.
7
Costumes” Kant afirma que tais “filósofos” devem deixar essa “tarefa” para a „verdadeira
legião de moralistas‟, ou seja, aos homens aptos a enxergar “as duas” faculdades do desejo.
Para eles, “consistencialmente”, tudo se resumiria apenas a uma simples faculdade e alguns
„homens estranhos‟ estariam aptos para distinguir duas. A reação kantiana é a de que segundo a
sua “premissa epistemológica” há uma “diferença genérica” entre sensibilidade e compreensão.
A “tese ética” correspondente aqui é a de que haveria uma “diferença genérica” entre qualquer
“desejo sensitivo” e uma “mais alta faculdade do desejo”. Pois, se este plano kantiano falhar e
não houver distinção alguma, todos os princípios éticos, por mais refinados que sejam, estarão
eternamente relacionados com a sua máxima. O que se poderia inferir do exposto neste
parágrafo é que não importa quão clara e distinta seja tal idéia, ela será determinada pelo desejo
do prazer.
Podemos observar que a tentativa do estabelecimento da distinção apontada acima é
mais apurada nos escritos éticos de Kant que na sua epistemologia. Para Kant, o conhecimento
é o produto da junção da sensibilidade e da compreensão e a moralidade depende
exclusivamente da determinação da conduta pela faculdade racional.
A razão prática empírica (a moralidade baseada em máximas da sensibilidade) seria
sempre aos olhos de Kant concernente à satisfação da faculdade mais baixa do desejo. Se há
uma razão pura prática, ela deve ser a faculdade mais alta do desejo que não é apenas uma
versão hedonista de nossa natureza empírica e animal. Kant vai tentar provar que a “mais alta
faculdade do desejo” deve, é claro, ter uma estrutura inteiramente diferente e função da “mais
baixa faculdade”.
Considerando a abundância de material (comentários e traduções) amiúde encontrado
para as duas outras críticas, a Crítica da Razão Prática é uma obra menos trabalhada. Desde a
sua publicação em 1788 até o comentário de Lewis White Beck 16 publicado em 1960, apenas
um comentário secundário (sobre a ética e a religião kantiana) foi publicado em 1929 por
August Messer. Cassirer que desenvolveu importantes trabalhos sobre as duas outras Críticas,
nunca o fez referente à segunda.

16
Segundo nota anterior, vemos que Lewis White Beck escreveu também em 1976 o seguinte livro comentando a
Crítica da Razão Prática: Critique of Practical Reason and Other Writings in Moral Philosophy.
8
O leitor não profundamente familiarizado com o sistema ético kantiano poderá pensar
que se tratava de um „escrito menor‟, pois, se compararmos com os outros trabalhos, ela é
quase uma obra perdida.
Tal “efeito” se deve principalmente ao fato de que a maioria de suas teses e
desenvolvimentos são reeditados na Fundamentação da Metafísica dos Costumes – um escrito
notoriamente mais popular. Além desta obra ser quase um opúsculo, a leitura das suas
primeiras partes não pressupõe um conhecimento prévio do corpo de doutrinas éticas kantianas
– o que torna esta obra mais pedagógica. A Fundamentação é o escrito mais lido de Kant.
A „Segunda Crítica‟ é urdida entre as outras duas; seus fios não podem ser feitos
desconexos do sistema da Filosofia Crítica. Diversos pontos extremamente polêmicos e
desenvolvidos à exaustão nesta importante obra foram pedagogicamente „omitidos‟ na
Fundamentação. Hoje em dia, apenas as suas partes que não foram “reexpostas” ao sabor mais
popular são citadas pelos seus leitores – o que se perfaz em um sonoro escândalo.

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