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Conjugalidades Queer

Ronaldo Trindade1

Introdução

Desde a idade média, e até uma boa parte da chamada era moderna, paira a ideia de que
as relações conjugais são possíveis apenas no âmbito da heteronormatividade. De certa
maneira essa ideia não apenas era coerente com as concepções cristãs ocidentais como
também servia de sustentáculo a um sistema capitalista que tem na família nuclear a sua
menor célula produtiva.

Se até o século XIX os casamentos tinham por objetivo preservar heranças e manter
articulações entre grupos privilegiados da sociedade, a afirmação do amor romântico
colocaria para os casamentos uma questão historicamente nova: a afetividade. Porém,
tanto num caso como em outro, estávamos diante de uma relação heteronormativa,
afirmada como natural e sustentada por dualismos do tipo homem-mulher, masculino-
feminino ou heterossexualidade-homossexualidade.

No final do século XX, essas dicotomias passaram por diversos questionamentos


oriundos tanto das perspectivas filosóficas desconstrucionistas e pós-estruturalistas
quanto dos movimentos contra disciplinares como o feminismo e o movimento LGBT.
O esforço da teoria queer tem sido o de submeter dualismos do tipo feminino-
masculino, homem-mulher, heterossexual-homossexual a uma critica histórico-cultural.
Homens e mulheres passam a ser entendidos não como entidades naturais, mas acima de
tudo, como formações discursivas ou como produtos de determinadas operações do
poder.

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Doutor em Antropologia Social pela USP.

1
Pensar a questão das uniões afetivas entre indivíduos LGBT significa, de certa forma,
atentar para outras possibilidades de relações afetivas que consigam escapar das tramas
do poder. Este capítulo pretende, portanto, refletir sobre as relações conjugais entre
indivíduos LGBT e explorar as transformações que elas promovem não apenas na
sociedade, mas também na própria experiência afetiva e sexual contemporânea.

A crítica queer.

Amor, casamento e conjugalidade são temas de interesse das mais diversas disciplinas
das ciências humanas. Em termos históricos, é possível perceber transformações
paradigmáticas, decorrentes de transformações políticas e econômicas ocorridas no
ocidente e que acabaram por definir tanto o formato quanto os limites de uma relação
conjugal adequada. Para os sociólogos e cientistas políticos, o casamento é um contrato
social estabelecido entre dois indivíduos, sujeitos de direito, que assegura a segurança
de seus patrimônios e os direitos dos herdeiros. Até o século XIX, este contrato não
remetia necessariamente a uma relação amorosa nem era uma garantia de prazer sexual,
principalmente para as mulheres. Para a antropologia, os casamentos são entendidos
como o estabelecimento de relações de alianças sem as quais a sociedade não poderia se
produzir. Foi somente no momento em que os homens passam a simbolizar as relações
consanguíneas como parentesco que o tabu do incesto apareceu como um sistema de
interdições que obrigava os diferentes clãs a promoverem trocas de esposas. Dessas
trocas e que teriam, então, surgido as relações sociais. Mas existe outro campo de
conhecimento, recentemente constituído, que para o qual as discussões sobre amor,
casamento e conjugalidade são questões ainda muito problemáticas: os estudos queer.

Não existe um consenso sobre o lugar exato em que surgiu a teoria queer, mas a maioria
dos autores que se esforçaram em traçar sua genealogia sugere que foi nos EUA, na
década de 80 do século XX, no mesmo contexto de aparição das teorias pós-coloniais,
ambas gestadas no campo dos estudos culturais. (Louro, 2001). Mas se os estudos
culturais e pós-coloniais de Edward Said (2007), Gayatri Spivak (1998) e Homi Bhabha
(1998) denunciavam os efeitos do colonialismo na formação da cultura (global), sendo,
portanto, uma poderosa crítica da cultura, a teoria queer se direcionou para a
sexualidade, mais especificamente para os mecanismos de normalização, fazendo da
(hetero) normatividade o alvo principal de suas investidas.

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Queer é uma expressão anglófona que pode ser traduzida por estranho, ridículo,
excêntrico, raro ou extraordinário, mas que foi apropriada de forma subversiva. Como
explica Louro, o termo queer foi assumido e reapropriado por militantes e intelectuais
com o propósito de subverter a carga pejorativa com que eram designados os indivíduos
considerados “estranhos” ou os fora da norma. Uma vez ressignificada, essa expressão
passou a ser acionada para postular uma diferença que não quer ser integrada.
Queer passou a nomear um movimento político guiado pela transgressão, ambiguidade,
entre-lugar, ou não-lugar. (Louro, 2015)

As teóricas e os teóricos queer se empenharam em positivar essa expressão e destituí-la


de seu potencial pejorativo, já que ela foi sempre acionada como xingamento lançado às
pessoas LGBTs. Judith Butler esclarece que “(...) queer adquire todo o seu poder
precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias
e insultos” (Butler, 2002, p. 58). Queer, portanto, faz referência a práticas de vida
contrárias às normas socialmente estabelecidas como as dos homossexuais, travestis,
transexuais, crossdressers e drag queens, mas pode também abrigar heterossexuais que
escapam a modelos heteronormativos como no caso dos praticantes do SM
(sadomasoquismo). Guacira Lopes Louro define o termo queer como uma espécie
guarda-chuva sob o qual se abrigam todas as identidades não-heterossexuais e os
comportamentos ou práticas que escapam das normas regulatórias da sociedade. (Louro,
2015).

Para entender o contexto de produção da teoria queer é preciso recordar que os países
do hemisfério norte passavam por um refluxo conservador que punha em risco os
ganhos trazidos pela revolução cultura e sexual experimentada pós-1968. Havia
governos de direita ocupando o cenário político tanto na Europa (Margaret Thatcher)
como nos EUA (Ronald Reagan). Foi nesse cenário ultraconservador que se deu o
aparecimento e a proliferação da AIDS, uma doença tão mortal quanto desconhecida,
cujas primeiras vítimas eram homossexuais. Não tardou para que uma série de imagens
negativas a respeito da homossexualidade fosse disseminada por diversas instituições
levando ao que Trindade (2018) chamou de “repatologização da homossexualidade”,
que passa a ser tomada como uma questão epidemiológica e marcada pela ideia de
contagio. Os atuais discursos de ódio devem ser desdobramentos desse contexto, uma
vez que a homossexualidade passou a ser representada como uma ameaça à própria
sobrevivência da sociedade. Esse período de pânico sexual se estendeu do início da

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década de 1980, até por volta de meados dos anos de 1990, quando apareceu o coquetel.
(Trindade, 2018). Os diversos casos de homofobia que ocorrem cotidianamente mesmo
nas grandes cidades dão mostras de que esse pânico ainda persiste em alguma medida.
Alguns autores, remanescentes revolução sexual dos anos 60, continuaram a pesquisar e
a escrever, elaborando críticas contundentes a uma sociedade que fazia do desejo
homossexual um espectro. Alguns deles se voltaram, por meio do método
desconstrucionista, para os mecanismos que geraram essa recusa generalizada da
homossexualidade.

Os Gays and Lesbians Studies surgiram nos EUA e em alguns países da Europa ainda
na década de 1970, buscando compreender a existência de outras expressões da
sexualidade. Foi nesse contexto que surgiram os importantes trabalhos de Jeffrey Weeks
- Coming Out: Homosexual Politics in Britain from the Nineteenth Century to the
Present (1977) -, John D'Emílio - Sexual Politics, Sexual Communities: The making of a
Homosexual Minority in the United States, 1940-1970 (1983) -, Kenneth Plummer - The
Making of the Modern Homosexual (1981), Dennis Altman - Homosexual: Oppression
and Liberation (1971) e The Homosexualization of America (1982) - e Stephen Murray
- Social Theory, homosexual Realitie (1984). Também devem ser lembrados o artigo de
Steven Epstein, publicado na Socialist Review de 1987, "Gay Politics, Ethnic ldentity" e
Hidden from history: Reclaiming the Gay and Lesbian Past, coletânea publicada em
1989, editada por Martin Duberman, Martha Vicinus, and George Chauncey, Jr. No
mais das vezes, os autores ligados aos Gays and lesbians studies tomavam as
sexualidades dissidentes por minorias, ou seja, uma identidade estável incompatível
com as normas sociais vigentes. Assim procedendo, reforçavam a certeza de que a
maioria da sociedade – a sociedade mais ampla, como se dizia na época - era
heterossexual. Futuramente, os teóricos e as teóricas queer denunciariam a estratégia
das identidades estáveis como contraproducente, pois, se falamos em minorias falamos
apenas de um grupo pequeno quando talvez fosse mais lucrativo elaborar condições
sociais para que qualquer indivíduo possa viver os seus desejos livremente, já que elas
não cabem em duas ou três orientações do desejo que lhes são reservadas. Vale
ressaltar, como fez Teresa de Lauretis (1990), que a historiografia e a sociologia gay só
tardiamente incluíram as mulheres lésbicas nos seus interesses. Mas já havia desde a
década de 1950 estudos que investigavam a peculiaridade do gênero no interior dos
Gays and lesbians studies. Precursores, nesse sentido, foram os trabalhos de Jeannette

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Fosler, Sex Variant Women in Literature (1956), Sydney Abbott e Barbara Love,
Sappho was a Right-On Woman (1972), Del Martin and Phyllis Lyon, Lesbian/Woman
(1972), Jill Johnston, Lesbian Nation: The Feminist evolution (1973), Ti-Grace
Atkinson, Amazon Odyssey (1974), Dolores Klaich, Womam plus Woman (1974),
Barbara Ponse, Identities in the Lesbian world: The Social Construction of Self (1978) e
o artigo de Adrienne Rich, "Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence"
(1980).

Ainda que elementos da teoria queer apareçam de forma dispersa nesses estudos, uma
virada se daria finalmente nos anos de 1980, com a mudança no eixo da política sexual,
que passa da defesa das identidades estáveis para uma crítica das normas sociais. Não se
tratava mais de uma questão de minoria, mas uma problemática de toda a sociedade, já
que, sem o reforço das normas, as pessoas transitariam livremente pelo desejo.
Interessava agora a centralidade do desejo de toda a sociedade e não apenas do desejo
de uma minoria. É nesse contexto que apareceu, por exemplo, o livro de Michael
Warner, The trouble with normal (1999), que se refere a uma permanente tensão no
interior do movimento homossexual e de dissidências de gênero entre aqueles que
propunham questões assimilacionistas – tolerância, aceitação, casamentos, adoções por
parte de pessoas do mesmo sexo – e aqueles que não queriam aceitar a sociedade como
ela é e nem a assimilação (normalização) a qualquer custo.

A teoria queer se produziu num diálogo estreito tanto com a filosofia pós-estruturalista
de Michel Foucault quanto com o método desconstrucionista de Jacques Derrida, dois
autores que já rondam os estudiosos não apenas da filosofia, mas de praticamente todas
as ciências humanas, já há algumas décadas. Michel Foucault foi um dos primeiros
filósofos a apontar a centralidade da sexualidade para a formação dos estados nacionais
e para a manutenção da ordem jurídica do ocidente desde o século XVIII. (Foucault,
1988). Os estudos de Jeffrey Weeks (1985, 1991, 1999) e Michael Warner (1999), por
exemplo, evidenciam como o dispositivo da sexualidade heterossexualizou a sociedade
por meio da naturalização e normalização da heterossexualidade. Essa perspectiva se
coaduna com a de algumas teóricas feministas como Gayle Rubin, de "The traffic in
women: notes on the "political economy" of sex" (1975) e Adrienne Rich que escreveu
Compulsory Heterosexuality and Lesbian Experience (1992), que também direcionaram
críticas contundentes à heterossexualidade compulsória.

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De farta influencia para a teoria queer seria também o paradigmático O Anti-Édipo, de
Deleuze e Guatarri (1976), obra pós-estruturalista que auxiliou na formulação de
conceitos chaves para a constituição de suas bases teóricas. Portanto,
epistemologicamente falando, a teoria queer não existiria sem as questões levantadas
pelo pós-estruturalismo francês e sem o método da desconstrução de Derrida. As
críticas queer revelam as formas como o sujeito é criado pelas instituições, pela cultura
e pela política; refere-se, dessa forma, a um sujeito moldável e nunca pré-existente. A
noção de cultura aqui empregada não é a mesma da antropologia cultural, mas vem dos
estudos culturais e deriva de um marxismo crítico, com origem em Antônio Gramsci.
Para os teóricos e para as teóricas queer, é preciso desconstruir a cultura não para
explicar o que as pessoas são, mas como elas vêm a se tornar o que são.

Homoconjugalidade

O feminismo e o movimento LGBT que se afirmaram ao longo do século XX e início


do século XXI devem ser tomados como dois movimentos contradisciplinares na
medida em que desafiaram sedimentadas formações discursivas que teimavam em dizer
a verdade de seu gênero e de seu sexo. Às voltas com estes movimentos, viram-se
envolvidos diversos intelectuais, artistas e ativistas que, cada um a sua maneira,
questionava as estabelecidas normas de gênero e sexualidade. A crítica à
heteronormatividade e à heterossexualidade compulsória podia ser percebida no
questionamento das normas vestimentais, na afeminação ou Masculinização
exacerbadas de gays e lésbicas ou na crítica à normatividade sexual que veio no rastro
da eclosão das saunas gays, dos cinemas pornográficos, da pegação de rua, dos
banheiroes, etc.

A formação do Movimento LGBT no Brasil aconteceu num contexto muito particular.


Com o país ainda imerso em uma ditadura militar, que acentuava o conservadorismo e
oferecia perigos reais para os ativistas. O antropólogo Edward MacRae sugere que esse
período embrionário do movimento representou também um momento de assepsia, no
qual os ativistas se distanciavam da imagem da bicha louca, em prol da figura do
respeitável militante.

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Na década de oitenta do século passado, a ditadura começou a dar sinais de cansaço e os
grupos ativistas de mulheres, negros, operários e homossexuais ganharam as ruas
levando para o grande público as duas demandas e seus posicionamentos. Mas isso foi
um pouco antes do surgimento da epidemia da AIDS.

A AIDS/HIV, iniciada na década de 1980, atraiu visibilidade para as práticas


homoeróticas e impulsionou os estudos sobre homossexualidades (CARRARA &
SIMÕES, 2007). Mas o surgimento da AIDS alterou os rumos do ativismo LGBT e, em
boa medida, contribuiu para a heterossexualização das homossexualidades. Trindade
(2018), Miskolci (2007) e Pelúcio e Miskolci (2009) afirmam claramente que o advento
da AIDS/HIV nos Estados Unidos, Europa e Brasil ocasionou uma reconfiguração dos
grupos homossexuais em prol dos direitos civis. “A luta pelo direito à união civil seria
resultado, no fim do século XX, de uma desvalorização dos aspectos ‘marginais’ de
vivências gays e lésbicas. O casamento gay, nesse sentido, revela-se um meio de
enfrentamento da epidemia, mesmo que à custa do fortalecimento de um aparelho de
controle social”. (Luz e Gonçalves, 2013:05). Para Regina Facchini (2005), as
demandas da chamada “segunda onda” do movimento, se tornaram mais pragmáticas,
voltando-se para a garantia de direitos civis.

Nesse sentido, as disputas discursivas que se estabeleceram em


torno das homossexualidades, pelo menos nos últimos dois
séculos, trazem elementos importantes para pensarmos como se
dá a relação entre processos identitários e formulação de
demandas no contexto de lutas sociais. Partindo-se de uma
leitura mais ampla e posteriormente centralizando-a no episódio
da AIDS/HIV, é possível concluir que a trajetória das vivências
homoeróticas aponta para o reconhecimento não apenas de
certas possibilidades de vivências homossexuais, como também
de relações homossexuais. (Luz e Gonçalves, 2013:05).

A homoconjugalidade tanto poderia promover uma assepsia, na medida em que, para


afastar os homossexuais da AIDS, tirava-os dos cinemas de pegação, das saunas, dos
dark rooms e dos clubes de sexo para realoca-los no interior de uma relação
homossexual heteronormativa.

Com o advento da teoria queer vieram à tona contribuições significativas para o estudo
dos gêneros, não mais pensados por meio de esquemas binários. Suas investidas contra
a heteronormatividade obrigaram a uma revisão dos nossos entendimentos a cerca das

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relações conjugais. Heteronormatividade é um sistema social e cultural que instaura e
regula uma coerência entre gênero, sexo e desejo/práticas sexuais, o que garante a
inteligibilidade alguns sujeitos enquanto execra outros (TONELI & BECKER, 2010).
Judith Butler (2012) a definiu como uma matriz que naturaliza identidades aceitáveis
culturalmente ao mesmo tempo em que invizibiliza e torna não inteligíveis (abjetos) os
corpos e expressões do desejo que escapam a essa matriz.

A oposição entre masculino e feminino, afirmada e regulada pela heteronormatividade,


deriva da heterossexualidade compulsória, uma norma que estabelece ou pressupõe a
heterossexualidade como dado natural. (RICH, 2010). Por meio de atos cotidianamente
reiterados se produz uma ilusória estabilização e naturalização do gênero, processo que
Butler (2012) chamou de performatividade (2012). A performatividade ocorre no
interior de um quadro regulatório rígido, que pode referendar as normas de gênero e
sexualidade ou subvertê-las, ou seja, a heteronormatividade abriga sua própria
possibilidade de subversão. (BUTLER, 2012).

Certamente, a homoconjugalidade promove fissuras na heterossexualidade compulsória,


esse sistema político de controle dos corpos que visa a normalizar determinadas
posturas como certas e outras não. A conjugalidade gay ou lésbica se afasta dessa matriz
de inteligibilidade e, assim, produz sua subversão.

Trindade (2018), Trevisan (2011), Pelúcio e Miskolci (2009); Carrara & Simões (2007),
Miskolci (2007), Facchini (2005), Mell0 (2005), Green (2000); Fry & Macrae (1985) e
Fry (1982) escreveram textos de grande relevância para se pensar a trajetória dos corpos
queers no Brasil. Mas estes autores também nos deixam ver que a despatologização da
homossexualidade não foi acompanhada de uma problematização da sexualidade como
um todo e a heterossexualidade se manteve o parâmetro de expressão sexual normal.
Passou a ocorrer uma espécie de heteronormalização das sexualidades periféricas, ou
seja, tentativas de adequação de outras expressões da sexualidade aos parâmetros da
heterossexualidade, definidos pela medicina.

O processo acima descrito legitima as homossexualidades heteronormativas ao mesmo


tempo em que outras são encerradas no plano do não legítimo ou do não factível. É
preciso então tomar cuidado para não confundir o direito ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo com um momento de maior aceitação das homossexualidades, mas de
apenas alguns de seus tipos.

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A homoconjugalidade é uma tentativa de diálogo com a norma de gênero, sexo e
práticas sexuais, desenvolvido por algumas pessoas (queers) de forma a tornar suas
relações erótico-afetivas inteligíveis ou aceitáveis. Isso fica claro nos estudos sobre
relações de conjugalidades vividas por travestis e transexuais desenvolvidos por Larissa
Pelúcio, (2006) e por Zambrano (2006). Em ambos os textos, emergem as constantes
negociações com as normas de sexo e gênero, ou seja, a uma busca da coerência
heteronormativa através da coerência do gênero. Se por um lado estas formas de
conjugalidades rompem promovem fissuras na matriz heteronormativa, por outro
acabam por reafirma-la na medida em que tentam configurar sua existência nos moldes
heteronormativos.

No campo do Direito e da jurisprudência, os trabalhos que tratam da


homoconjugalidade se voltam para o reconhecimento jurídico das famílias de gays e
lésbicas (BUNCHAFT, 2012; TAVARES ET AL., 2010; FUTINO & MARTINS, 2006;
LOREA, 2006; MOTT, 2006; MELLO, 2006). A ideia de homoconjugalidade traçada
por estes autores propõe uma forma de conjugalidade homoafetiva similar à
conjugalidade heterossexual moderna - monogâmica, dual, estável e fundada no amor.
A relação gay é, então, dessexualizada em favor do reconhecimento jurídico.

O termo homoafetividade, criado por Dias (2005), é comum


nessa literatura, o que parece indicar uma estratégia de
negociação com a lógica jurídica da família, há muito embasada
na prevalência do afeto. Tal manobra, mais do que simplesmente
linguística, reflete a configuração de determinada relação,
fundada e marcada pelo afeto, com vistas ao reconhecimento
jurídico. O referido termo eventualmente aparece nos demais
textos, porém sem maiores justificativas. Sua escolha parece
denotar não apenas sua disseminação, mas também a crescente
visibilidade do modelo conjugal que ele pressupõe. O termo,
portanto, não surge do acaso: ele reflete as disputas discursivas
que estão sendo travadas no interior do debate sobre a
legitimidade jurídica de certa conjugalidade. (Luz e Gonçalves,
2013:07).
Assim, vemos que a ideia de homoconjugalidade tanto constrói esses discursos quanto é
construída por eles.

O debate em torno da defesa do reconhecimento jurídico desses


casais não parece apontar para um abarcamento da diversidade
sexual, como pressupõe Mott (2006), mas para uma apropriação
da diversidade sexual pela norma jurídica, assim como uma
formatação das relações no interior daquilo que já está definido

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pelo contrato jurídico do casamento. (Luz e Gonçalves,
2013:07)

Com isso, amplia-se a noção jurídica de família para que elas possam finalmente incluir
as relações homossexuais. Porém, continua a ser o Estado, como lembra Butler, a
definir os termos pelos quais tais relações podem existir e ganhar reconhecimento.

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